Você está na página 1de 164

Crônicas do Deserto

Pr. Delvacyr Bastos Costa

Crônicas do Deserto

2ª Edição

Londrina
2011
Catalogação elaborada pela Bibliotecária Roseli Inácio Alves CRB – 9/1590.

123456789012345678901234567890121234567
Dados Internacionais de Catalogação-na-Publicação (CIP)
123456789012345678901234567890121234567
123456789012345678901234567890121234567
123456789012345678901234567890121234567
123456789012345678901234567890121234567
123456789012345678901234567890121234567
123456789012345678901234567890121234567
123456789012345678901234567890121234567
123456789012345678901234567890121234567
123456789012345678901234567890121234567
123456789012345678901234567890121234567
123456789012345678901234567890121234567
123456789012345678901234567890121234567
123456789012345678901234567890121234567
123456789012345678901234567890121234567
123456789012345678901234567890121234567
123456789012345678901234567890121234567
123456789012345678901234567890121234567
123456789012345678901234567890121234567
123456789012345678901234567890121234567
123456789012345678901234567890121234567
123456789012345678901234567890121234567
123456789012345678901234567890121234567
123456789012345678901234567890121234567
123456789012345678901234567890121234567
Impresso no Brasil / Printed in Brazil
Depósito Legal na Biblioteca Nacional
2011

Forma, conteúdo dos textos e imagens são de inteira responsabilidade dos respectivos
autores.

Todos os direitos reservados e protegidos.


Proibida a duplicação ou reprodução deste livro ou partes do mesmo, sob quaisquer
meios, sem autorização expressa do autor.
Dedicatória

Dedico este trabalho com o coração agradecido:


A meu Deus, que me salvou e firmou meus passos na
Rocha, para que eu possa peregrinar com firmeza, mesmo pe-
los desertos. Que jamais nos abandonou, mas que sempre nos
guiou, sustentou e nos concedeu oásis para recobrarmos as for-
ças em nossas peregrinações.
A minha esposa Marta, por seu amor, carinho e dedi-
cação em todos os momentos. Você conhece todos os meus
desertos, sentiu comigo a inclemência do sol, a garganta seca,
os passos incertos, enfrentou duras tempestades de areia que
simplesmente nos fizeram perder totalmente o rumo, mas ja-
mais deixou de estar ao meu lado e nunca deixou de acreditar
que existe uma Terra Prometida para nós. Te amo Martinha!
A meus filhos Joni, Jonathan e Sarah Cristina, pelo
apoio e amor dedicados, mesmo sem compreenderem o por-
quê dos desertos que tiveram que enfrentar.
A meu pai, Alvacyr, homem que conhece o deserto
como poucos, e com suas palavras, seu exemplo e coragem muito
me ensinou a enfrentar os meus.
A meu amigo Bruno Câmera, missionário nômade no
deserto do Senegal. Que o Altíssimo conceda forças, muita
graça e unção em sua jornada.
Aos missionários Harald e Rose, viajantes no deserto
Terena. Deus os abençoe e possam frutificar abundantemente
nesse deserto.
Agradecimentos

Muitos foram os companheiros que o Senhor nos deu


nessas jornadas pelo deserto, tantos que seria impossível lembrar
todos; mas alguns são inesquecíveis, a estes nossa gratidão
especial.
Luiz Alberto e Margarete, também já peregrinaram por
desertos ardentes. Mais que amigos, irmãos, que nunca nos
deixaram sozinhos em um de nossos desertos mais longos e
áridos. Sempre presentes, companheiros solícitos, não apenas
enxugaram nossas lágrimas, mas choraram junto conosco nossas
dores.
Pr. Marco Antônio Guimarães de Moura, seu carinho
e dedicação jamais serão esquecidos. Mesmo tendo o seu
próprio deserto a enfrentar, acompanhou-nos no nosso.
Pr. Eliézer Souza, amigo de mais três décadas, juntos
atravessamos muitos desertos que serviram inclusive para
solidificar nossa amizade. Obrigado pelo carinho e apoio tantas
vezes dedicado a nós.
Queridos companheiros de jornadas, que colocaram sua
amizade, intercessão e recursos a nosso favor em nossas
caminhadas: Pr. Mário Juarez, Leonardi Metke, André Luiz
Sena Vaz, Antônio Carlos Macedo, Maurício Almeida, Pr.
Carlos Roberto e Delma, Isaías Tidre, Reginaldo Vieira, Binho,
Agnaldo, Drª Luci, irmã Bia, Cristina Wilke, Zezé, Luís Carlos
da Silva, Francisco e Sandra, Paulo Kinapp, Poliana Schoer,
Raquel Lange Reis, Acácio Lima Almeida, Pr. José Carlos
Peixoto e tantos outros que conhecemos em meio ao deserto.
Prefácio

O deserto faz parte da agenda de Deus para a nossa


vida. Não há vida cristã sem aflições, sem crises, sem
sofrimentos. Por isso, falar sobre o tema é sempre oportuno.
O Pr. Delvacyr Costa em seu livro Crônicas do Deserto,
com muita propriedade fala sobre a realidade do deserto.
Assegura-nos que atravessá-lo traz benefícios incomparáveis.
Dentre eles, estão dois que fazem toda a diferença: primeiro, o
deserto nos leva a um encontro com a nossa própria
humanidade, e segundo, nos leva a um encontro íntimo com a
divindade.
O deserto nos faz enxergar o que não possuímos: a
capacidade de vencermos sozinhos. Somos tão insignificantes
diante das circunstâncias difíceis da vida, incapazes de
sobreviver. Por outro lado, vislumbramos o grande amor do
Pai Eterno ao nos manter vivos debaixo do calor causticante
do deserto.
Nas páginas bem elaboradas de Crônicas do Deserto,
vemos Deus levando seus filhos ao deserto com a finalidade de
fazê-los crescer espiritualmente. Assim também é nossa vida.
Entre um deserto e outro, vamos nos tornando mais
semelhantes a Cristo.
A leitura desta excelente obra ajudará você leitor, a
superar os desafios do deserto. As experiências vividas por
Delvacyr e sua família lhe motivarão a enxergar cada deserto
como oportunidade de crescimento.
Boa leitura!

Marcos André Schulz


Pastor e Professor de Teologia - Acadêmico de Letras pela UEM
Sumário

Apresentação 1ª edição............................... . 13

Por quê Crônicas no Deserto........................................... 15

O Povo de Israel no Deserto.. ............... 17

Como é um Deserto?.............................................................19

O que pode se tornar um Deserto em nossa vida?............... 27

O que há no Deserto?........................................................... 29

O primeiro Deserto a gente nunca esquece......................... 33

Patrício – escravidão e missões no Deserto Irlandês............ 37

Um novo trabalho, um novo Deserto................................... 43

John Bunyan – o sonhador imortal no Deserto da prisão.... 47

Uma igreja no Deserto.......................................................... 51

William Carey – um Deserto na Índia................................ 53

Quando a doença se torna um Deserto................................ 69

Henry Martin – Deserto e solidão para um jovem

missionário..........................................................................73

Um sonho morre no Deserto............................................... 77

David Brainerd – um Deserto entre os índios americanos.. 83


Pr. Delvacyr Bastos Costa

Um Deserto em terras Terenas............................................. 93

Adoniram Judson – o terrível Deserto birmanes................. 101

Um novo Deserto em Cruz Alta......................................... 121

Robert Morrison – um herói no Deserto chinês...............127

O Deserto implacável – quando a morte nos bate à

porta................................................................................. 135

Aggie - quando se tomba no Deserto.................................. 143

Um Deserto na metrópole...................................................151

Por que Deus nos leva para o Deserto?............................... 157

Pós Scriptum....................................................................... 161

Referências.......................................................................... 163

Contato com o autor............................................................ 164

12
Crônicas do Deserto

Apresentação
1ª edição

O que é um deserto? O simples pronunciar desta palavra


estimula o pensamento a vagar por caminhos de desolação,
cansaço, desânimo, desesperança, sequidão, produzindo, acima
de tudo, uma estranha sensação de se estar perdido na
imensidão. Quando penso em deserto “vejo” um homem
andando lentamente, com muito esforço e suor, olhando para
todos os lados à espera de alguém, de um vulto, de um refúgio,
de um socorro. Não creio que exista sensação pior do que a de
estar perdido, de andar sem rumo. No deserto não há sinalização
de perigo, de distância percorrida, de destino final. No deserto
a paisagem pode mudar a qualquer instante pela força dos
ventos, sem, contudo ficar mais belo ou menos ameaçador. O
deserto tem o poder de impulsionar o ser humano a uma corrida
desenfreada atrás da miragem de um bosque florido e um rio
de águas claras, para vê-lo em seguida prostrado desolado ante
uma realidade nada refrescante.
Delvacyr fala de um deserto, ou de vários desertos, isto
é, de momentos que jogaram líderes num vazio desolador, onde
os amigos desaparecem, as oportunidades se evaporam, o
pesadelo ocupa o lugar do sonho, e a miragem o lugar da visão.
Fala de momentos quando as perspectivas ficam nubladas, de
caminhos sem uma sinalização que oriente se estamos no
caminho certo ou não. Fala de si mesmo, de suas esperanças
quase perdidas, mas também de grandes homens, alguns da

13
Pr. Delvacyr Bastos Costa

Bíblia e outros de nossa era, que viram sua capacidade de ação


minada pela força dos ventos contrários ou pelo calor das
provações sem fim.
Apesar da aparência, contudo, este é um livro de
esperanças, de sinalização. É um livro que não apenas mostra
um CAMINHO NO DESERTO, mas também aponta os
recursos espirituais necessários para o líder cristão renovar as
suas forças, num oásis verdadeiro.
Crônicas do Deserto é um livro de esperanças. Ele
mostra que o deserto pode ser um lugar de provação, mas
também um lugar de muitas experiências, onde se forma o
caráter de um verdadeiro servo de Deus. Se o deserto oferece
miragens, este livro apresenta uma visão clara da realidade da
vida e da provisão de Deus nos piores momentos.
Creio que este livro poderá ajudar você a encontrar este
caminho... Não deixe que o deserto engula você. Enfrente-o
com galhardia e fé, pois certamente o Oásis existe... Ele não é
uma miragem, e você, talvez mesmo desmaiando, poderá
refrescar-se nas águas límpidas e descansar sob árvores
frondosas, nas águas de descanso, pois o bom pastor sempre
estará com você.
Delvacyr passou por muitos desertos, mas não ficou
tombado nele... Reuniu forças, não sei de onde, para seguir a
íngreme caminhada...
Pr. José Aldoir Taborda
Secretário Executivo da CIBI

14
Crônicas do Deserto

Por quê Crônicas no Deserto

Eu estava nas dependências do Seminário Teológico


Batista Independente em Campinas, ao final de um período
de aulas, conversando com três alunos. Falávamos de ministério.
Ouvindo seus planos e, principalmente, sonhos ministeriais,
comecei a prepará-los para outra realidade, menos romântica.
Disse-lhes que o ministério é desenvolvido no deserto. A idéia
que eles tinham é que no ministério existem desertos, mas eu
lhes disse que não é assim, existem oásis, mas o ministério é
exercido no deserto. Citei-lhes alguns exemplos bíblicos e de
homens que a História da Igreja nos apresenta, bem como de
líderes que tanto eu quanto eles conhecemos. Narrei-lhes
algumas das experiências que conto aqui e terminei
aconselhando-os a buscarem do Senhor a plena convicção de
chamada ministerial, pois sem ela não há como sobreviver no
deserto. Disse-lhes também que quando Deus diz: Vem! Ele
assume todas as implicações desse chamado e nenhum deserto
poderá nos impedir de cumprir nosso ministério.
Nos dias subsequentes, por diversas vezes, conversei com
diferentes pessoas sobre desertos. Ouvi uma pregação (do Pr.
Wilson Guimarães) falando sobre o deserto. Conheci, ouvi e
cantei uma canção que falava de deserto. Preparei um sermão
sobre o deserto e preguei-o duas vezes e então me veio a idéia
de escrever sobre o assunto. Foi assim que nasceu Crônicas do
Deserto.
Crônicas são narrações de fatos históricos segundo a
ordem cronológica. É isso o que você irá ler: fatos históricos!
Uns fazem parte da história da igreja, outros são parte de minha
15
Pr. Delvacyr Bastos Costa

própria vida. Assim, um capítulo apresentará fatos da História


da Igreja, desertos na vida de homens que fizeram a história da
Igreja cristã, enquanto que o capítulo seguinte será a narração
de um deserto na minha experiência ministerial, e assim
sucessivamente. Você perceberá ao longo destas páginas que
realmente o ministério é exercido no deserto.
Crônicas no Deserto não é um livro de lamentações.
Também não é um relato de frustrações e tristezas. Não é um
livro fatalista escrito por um masoquista apaixonado por
desertos. É um livro que conta experiências duras, muitas vezes
extremamente dolorosas, mas reais, marcantes, que mostram o
deserto como ele realmente é, mas acima de tudo é um livro
que fala de Deus. O Deus que conduz ao deserto, que guia
através do deserto, que sustenta no deserto, que está presente
no deserto, que ama no deserto, que faz milagres no deserto,
que infunde esperança em meio ao deserto. É um livro marcado
pela esperança, a bendita esperança, de que um dia o deserto
se transformará num oásis ao ver descortinar-se ao olhar a
maravilhosa Terra da Promessa, na qual somente se chega após
atravessar o deserto.

Quero convidá-lo a acompanhar-me nesta emocionante


jornada pelo deserto.

Campinas, julho de 2006.


Pr. Delvacyr Bastos Costa

16
Crônicas do Deserto

O Povo de Israel no Deserto

Tendo Faraó deixado ir o povo, Deus não o levou pelo


caminho da terra dos filisteus, posto que mais perto, pois disse: Para
que, porventura, o povo não se arrependa, vendo a guerra, e torne
ao Egito. Porém Deus fez o povo rodear pelo caminho do deserto
perto do mar Vermelho; e, arregimentados, subiram os filhos de Israel
do Egito.Também levou Moisés consigo os ossos de José, pois havia
este feito os filhos de Israel jurarem solenemente, dizendo:
Certamente, Deus vos visitará; daqui, pois, levai convosco os meus
ossos.Tendo, pois, partido de Sucote, acamparam-se em Etã, à
entrada do deserto. O Senhor ia adiante deles, durante o dia, numa
coluna de nuvem, para os guiar pelo caminho; durante a noite, numa
coluna de fogo, para os alumiar, a fim de que caminhassem de dia e
de noite.Nunca se apartou do povo a coluna de nuvem durante o
dia, nem a coluna de fogo durante a noite.
(Êxodo 13.17-21)

17
Pr. Delvacyr Bastos Costa

18
Crônicas do Deserto

Como é um Deserto?

Um deserto é feito de areia e rochas, normalmente sem


nenhuma vegetação. As temperaturas podem facilmente
ultrapassar os 50º durante o dia e tornam-se baixíssimas à noite,
devido à baixa umidade relativa do ar e da irradiação do calor
para a atmosfera.
Num deserto existe uma baixa precipitação
pluviométrica, isto é, quase não chove. O deserto do Atacama,
no Chile, por exemplo, durante 45 anos (1919-1964), não
recebeu uma única gota de chuva.
O maior deserto do mundo, o Saara é impressionante.
Seu nome, Sahrá em árabe, significa Campo de Areias. Ele
está situado no Norte da África, e abrange os seguintes países:
Argélia, Chade, Egito, Líbia, Mali, Marrocos, Mauritânia,
Níger, Tunísia e Sudão. Sua área é de 8.600.000 km². Para efeito
de comparação, o Brasil possui 8.547.405,5 km².
No Saara os ventos constantes provocam violentas
tempestades de areia. Essas tempestades confundem e podem
até matar por sufocação os viajantes menos prevenidos.
Sua vegetação resume-se a pequenos oásis, onde a água
subterrânea e pequenos regatos permitem a existência de
algumas árvores, principalmente tamareiras.

Outros desertos famosos: Kalahari, Deserto da


Namíbia, Deserto da Síria, Deserto da Líbia, Deserto de Gobi
(China).

19
Pr. Delvacyr Bastos Costa

Uma coisa que impressiona nas páginas bíblicas são os


inúmeros casos de pessoas que foram levadas pelo próprio Deus
ao deserto. O deserto pode ser tanto um lugar de provação
como de experiências. Venha comigo, e vamos juntos observar
a vida de alguns personagens bíblicos que estiveram no deserto.
Observemos Agar. Para quem não lembra, Agar era a
serva pessoal de Sara, esposa de Abraão. Era uma egípcia dada
pelo Faraó a Abraão como recompensa, por ter ele, por engano,
tomado a Sara como concubina, imaginando ser ela
simplesmente irmã de Abraão.
Deus prometera a Abraão que lhe daria um filho e faria
dele uma grande nação, porém Sara, devido à idade avançada,
não creu nesta promessa e então convenceu Abraão a se deitar
com a escrava e ter assim um filho, o qual por direito passaria
a ser de Sara e Abraão. Desse relacionamento nasceu Ismael.
Quando Agar soube que estava grávida, começou a
desprezar a esposa de Abraão, e este, para honrar sua mulher,
deu-lhe o direito de castigar sua serva como quisesse. Agar
então, acabou fugindo! E para onde ela fugiu? Para o Deserto
de Sur. Ali começa desenrolar-se o propósito de Deus, tanto
na vida desta desprezada personagem, como (por conseguinte,)
na vida de Abraão. E ali, na solidão do deserto apareceu-lhe o
Anjo do Senhor com uma ordem (Gn 16.7-9) e uma bênção
(Gn 16.10,11). Ela voltou e se humilhou conforme a ordem
recebida.
Vindo, porém, o tempo do cumprimento da promessa
de Deus, Sara concebeu e deu à luz o filho da promessa, Isaque.

20
Crônicas do Deserto

Quando Isaque foi desmamado Sara, irritou-se muito contra


Ismael, por ter ele caçoado de seu filho, pelo que Abraão expulsa
ambos do acampamento. Abraão lhes prepara uma provisão
de pão e água, e os manda embora. Para onde desta vez? Para o
Deserto de Berseba.
Ali, onde parece não ter mais saída, onde não há mais
esperança, onde não há mais garantias, e tudo parecia estar
perdido, as provisões acabaram, não havia mais onde se agarrar,
só restava aguardar que a morte levasse diante de seus olhos a
Ismael e depois a ela também! Mas Deus os socorre e sustenta.
E é no deserto que ela cria seu filho Ismael, é no deserto que
ele constitui família e sua família se torna um povo grande,
forte e poderoso. Dele descendem os povos árabes da atualidade.
Esaú, perdendo a bênção da primogenitura para Jacó,
passa a viver no deserto. No deserto ele se torna o patriarca de
um povo, no deserto ele vive sua história e é no deserto que ele
encontra seu irmão Jacó, vinte anos depois, com o qual se
reconcilia.
Provavelmente o personagem mais maduro de toda a
Bíblia é Moisés. Como foi que ele amadureceu? Através de
oitenta anos de deserto. Quer ser como Moisés?
A Bíblia registra uma das maiores tarefas já dadas por
Deus a um homem. Quem era este homem? Seu nome era:
“tirado das águas”, parece até que seu nome seria uma profecia
de sua vida. O filho adotivo de uma princesa, filha de faraó,
deveria ter uma educação de príncipe, e por isso, foi ele,
instruído em toda a literatura egípcia, que nesse tempo excedia
21
Pr. Delvacyr Bastos Costa

em civilização a qualquer outro povo do mundo. Conhecia


matemática, medicina, astronomia e arquitetura. Moisés estava
sendo preparado para, talvez, herdar o trono do faraó. Era
conhecedor de todos os costumes da corte, experimentou a
pompa, a riqueza e a glória de um príncipe do Egito. Mas
Deus tinha um propósito muito mais elevado para Moisés do
que o de ser herdeiro do trono dos faraós. Para a grande obra
para o qual fora escolhido - o de libertador de seu povo - era
necessário muito mais do que isso tudo!
Era necessário conviver com os escorpiões e serpentes,
seria necessário ir para o deserto. Ali, na escola de Deus,
conheceria a dura realidade da vida, ali, veria que todo o seu
conhecimento, toda a sua cultura e força física, de nada
serviriam, sem o devido tratamento que lhe estava destinado.
Outrora, o príncipe do Egito, implacável nos seus atos
de príncipe matou um egípcio, agora um servo, reconhece a
sua incapacidade diante da sua chamada, passa a se transformar
de um guerreiro para o homem mais manso sobre a face da
terra e o mais paciente. Capacitado a ouvir a voz do Altíssimo
e de estar em sua santa presença. Totalmente transformado
pela escola de Deus, o deserto.
Antes seu lar era os palácios do Egito, agora, as areias
quentes e secas do deserto de Sinai. É agora que seu nome
parece ter mais significado - tirado das águas, colocado no
deserto - seu último lar.
Este tempo no deserto, não seria o de uma etapa, fase
ou passagem, este seria o tempo de sua vida. Dos seus 120
anos ele viveu 80 anos indo e vindo, por vários desertos.
22
Crônicas do Deserto

Davi, perseguido por Saul, esconde-se no deserto. Antes


de subir ao trono e reinar sobre Israel, ele enfrenta um longo e
angustiante período de deserto. Morando em cavernas, sendo
caçado como se caça a um animal, cercado de homens da pior
espécie, precisando mudar constantemente de esconderijos,
sendo traído por aqueles em quem ousava confiar. Antes de
conhecer o esplender da corte e desfrutar os privilégios reais,
precisou enfrentar o deserto.
Elias, Jeová é o meu Deus, um dos maiores profetas do
Antigo Testamento, aparece na história de um dos piores reis
de Israel, chamado Acabe e de Jezabel, a rainha; mulher idólatra
e dominadora. Parece que a principal função de Elias, era a de
atormentar Acabe e esta mulher maligna. Na primeira ocasião
o profeta aparece em cena, com uma terrível profecia para o rei
e a nação, que viriam anos de seca extrema. Pela ordem do
Senhor, Elias vai para leste do Jordão junto ao riacho de Querite,
onde iniciaria na escola de Deus. Ele passa meses por um
deserto de solidão e total dependência de Deus. O Senhor
ordenou que ali, ele ficasse, bebendo daquele riacho e sendo
alimentado pelos corvos que lhe traziam comida todos os dias.
Para muitas pessoas este não seria propriamente um deserto,
pois ele tinha tudo o que era necessário para sobreviver em
meio a uma estiagem. Sua situação era bem cômoda, não lhe
era exigido nenhum esforço e nenhum trabalho. Era uma vida
mansa! Mas apesar da situação parecer a melhor, ele estava só
e na dependência de ser alimentado por corvos! Você pode
imaginar uma situação como esta?
23
Pr. Delvacyr Bastos Costa

Entretanto, o comodismo e a apatia chegaram! Com o


tempo, ele não esperava mais em Deus, mas sim nos corvos e
no riacho que passava logo ali. Por isso, num belo dia, quando
ele acorda como fazia sempre, saiu para beber água e se lavar,
quando teve a sua primeira decepção, o rio que lhe servia com
água fresca todos os dias, secou. Talvez como as águas daquele
rio, começou a secar a sua confiança. E não era só isso, ele
voltou para caverna a fim de tomar o seu café da manhã, quando
então descobriu algo mais. Acabou a sua mordomia! Não havia
aves, não havia comida, não havia mais nada.
Este é o momento decisivo por que todos nós passamos
em situações de grande dificuldade. Temos duas decisões a
tomar: Ou lutamos com as nossas próprias forças e decisões a
fim de tentar sair do deserto que estamos passando, ou fazemos
como Elias fez, parou diante do ribeiro em meio à seca e da
possibilidade de morrer de fome, para ouvir a voz de Deus a
fim de se salvar daquela situação.
O deserto de Elias não acabou! Passam-se meses, e Elias
apresenta-se diante de Acabe, por ordem do Senhor. Segue-se
daí a cena no Monte Carmelo, os profetas de Baal são mortos
por ordem de Elias, e como consequência, Jezabel decreta a
morte do profeta que por medo corre para salvar a sua vida,
para o Deserto de Zim entre Berseba e o Sinai.
Que coisa! Aí está o profeta do Senhor, debaixo de um
zimbro, um pequeno arbusto típico da região desértica do Sinai,
que mal serve para dar sombra, pedindo ao Senhor que lhe
tirasse a vida, pois, já não suportava mais as pressões do seu
24
Crônicas do Deserto

encargo. Estava com medo de ser morto a mando de uma


“louca”, e com medo de enfrentar o seu “deserto”.
Elias, agora é acordado por um anjo que lhe trás comida.
Não são mais os corvos, mas o próprio Senhor que lhe vem em
socorro! Em 1 Reis 19.6, é lindo ver, que enquanto Elias dormia,
talvez pensando na morte como solução, o anjo, ao seu lado,
preparava-lhe a comida. O que acontece dois dias seguidos.

O Senhor lhe dava forças não para sair do deserto, mas


para prosseguir em uma longa jornada, de quarenta dias e noites,
até o monte do Deus, o monte Horebe no deserto de Sinai.
Aquele homem que outrora só pensava na morte como solução
de seus problemas, contemplou a face de Deus, se deleitou com
a presença do Altíssimo, foi-lhe restaurado o chamado e a força
do Senhor em sua vida.
João Batista viveu no deserto até o início de seu
ministério. O homem que teve o privilégio de apresentar o
Messias, o Cristo, ao mundo, foi conhecido como “voz do que
clama no deserto”. A maior parte de sua vida foi vivida sob o
escaldante sol do deserto da Judéia.
O próprio Jesus, após o batismo, é levado pelo Espírito
Santo ao deserto onde é tentado pelo diabo. Antes de iniciar
seu glorioso ministério terreno, Jesus passou pelo fogo do
deserto. Entretanto, seu deserto não durou apenas quarenta
dias, mas o tempo de seu ministério, pois sobre si estavam todos
os desertos de todos os homens! Por isso, só dele, foi possível
25
Pr. Delvacyr Bastos Costa

dizer como disse Isaías: “...homem de dores e experimentado


no sofrimento...” - Is. 53.3.
Paulo, o apóstolo, teólogo e missionário, antes do início
de seu ministério, passa três anos no deserto da Arábia. É no
silêncio do deserto que Deus prepara seu servo para o
ministério, igualmente marcado por períodos de deserto.
Nenhum outro personagem bíblico passou por tantas e
tamanhas aflições como Paulo. Fome, f rio, nauf rágios,
perseguições, apedrejamentos, açoites, prisões e abandono
foram companheiros constantes de sua vida e ministério.
Finalmente, terminou seus dias na face da terra, decapitado.
Este homem conhecia muito bem o deserto.

26
Crônicas do Deserto

O que pode se tornar um Deserto em


nossa vida?

Quando olhamos para nossa realidade, percebemos que


temos passado por momentos difíceis, momentos de deserto.
O que pode se tornar um deserto em nossas vidas?
Uma longa enfermidade pode se tornar um deserto.
O desemprego ou uma crise financeira interminável.
Uma crise espiritual, quando dúvidas, incertezas,
problemas, falta de resposta para nossas orações nos atingem
com força.
Conflitos no ministério. O ministério, tão romantizado
na época da chamada ou da ida para o seminário, é desenvolvido
quase sempre no deserto. Existem alguns oásis, mas exercer o
ministério cristão é viver no deserto.
Problemas de relacionamento podem se tornar em
deserto. Conflitos no relacionamento conjugal. Longas e
violentas brigas, discussões sem fim, períodos dolorosos de
afastamento emocional e de silêncio. Conflitos de gerações
envolvendo pais e filhos podem igualmente se tornar períodos
de deserto.
Traumas e feridas emocionais. Lembranças dolorosas
de fatos passados, que nos acompanham por anos, tornando
nossas vidas tristes, secas, sem alegria, infrutíferas, também
podem ser desertos a serem atravessados.
Existe também o deserto da depressão. Há muitos que
dizem que crente não pode sofrer de depressão. Dizem isso,

27
Pr. Delvacyr Bastos Costa

pois não conhecem esse duro deserto. Não existe um porquê,


uma razão clara, as coisas parecem não ter muito sentido, muita
lógica... Mas, quando percebemos estamos no meio do
implacável deserto da depressão.
Muitas coisas podem se tornar desertos. Precisamos
entender o plano de Deus, conhecer seu caráter e recordar suas
promessas quando estamos no deserto. Ou fazemos isso, ou
perecemos.

28
Crônicas do Deserto

O que há no Deserto?

Silêncio

No deserto não existem sons ou barulho. Não há o


burburinho das multidões. Não há carros, buzinas, freadas. No
deserto não há gritos ou conversas. Não há pássaros cantando
ou cães latindo. O deserto é um lugar silencioso.
O deserto não é lugar de falar. Não há com quem
conversar, geralmente se está só no deserto. Não adianta gritar,
ninguém ouvirá. Reclamar, murmurar não é eficiente. Se você
falar muito a garganta fica seca, a língua fica mais grossa e
apega-se ao céu da boca. As palavras vão se tornando
ininteligíveis e difíceis de se pronunciar. Por isso é melhor calar.
O que fazer no silêncio do deserto? Se falar não é a
melhor coisa a ser feita, o que podemos fazer?
Meditar. Na agitação da vida moderna a meditação
tornou-se algo raro. Há muitas interrupções, muitas coisas para
atrair a atenção, para causar distrações. No deserto não há com
o que se distrair. É um bom lugar para pensar longa e
profundamente na palavra de Deus. Lembrar suas promessas,
seu caráter, sua fidelidade. No silêncio do deserto podemos
meditar.
Podemos também ouvir a voz de Deus. Deus sempre
fala conosco, o grande problema é que não estamos
sintonizados. Ouvimos muitas outras vozes e ruídos. Falamos
muito. Por isso não ouvimos a voz de Deus. Muitas vezes Deus
nos conduz ao deserto para que possamos ouvi-lo. No silêncio
do deserto a voz de Deus pode ser ouvida em alto e bom som
29
Pr. Delvacyr Bastos Costa

e com muita clareza. Se você está no deserto e parar de falar ou


gritar, você ouvirá a voz do Senhor. É precisamente para isso –
para que você o ouça – que ele o levou a esse deserto.

Aridez – Total falta de recursos

O deserto só tem areia e pedras. Não brota nada, por


isso não adianta semear. Não há água, nem chuva. No deserto
não existem frutas ou ervas que sirvam de alimentação. No
deserto não existe alimento ou onde comprá-los.
No deserto temos que depender unicamente de Deus.
Não há ninguém mais para nos socorrer ou a quem possamos
recorrer. Mas Deus está lá. O Jeová-Jireh, o Deus de toda
provisão. Ele faz milagres no deserto para suprir nossas
necessidades. Veja o que ele fez com o povo de Israel: Maná
caia do céu diariamente. Quando sentiram falta de carne Deus
enviou bandos de codornizes. Fez brotar água da rocha para
saciar-lhes a sede. As vestes e calçados não se gastaram mesmo
em quarenta peregrinações no deserto.
Esse Deus que cuidou de Israel é o seu Deus. É ele
quem te sustenta no deserto. Você pode crer, você pode confiar.
Ele jamais falha, seu poder não tem limites. O único recurso
que o deserto não consegue esgotar é aquele que provêm do
Todo-poderoso.

Falta de direção

No deserto é difícil se orientar. Não há referenciais,


marcos, placas indicativas nem espaços identificados. Não

30
Crônicas do Deserto

existem horizontes ou rotas a seguir. No deserto existem


miragens que enganam ou desviam da rota que se propôs seguir.
A cada sopro do vento as areias se movem formando novos
desenhos, novos panoramas. O deserto é sempre novo, embora
as dunas sejam sempre iguais. Por mais que se conheça o deserto
sempre há uma sensação de estar perdido.
No deserto precisamos de direção divina. Deus guiou
seu povo Israel no deserto: Com a nuvem durante o dia e a
coluna de fogo durante o dia. Com orientações precisas e
inequívocas. Ele dizia a Moisés: “vá em direção ao sul e lá você
encontrará um oásis”; Moisés dirigia o povo rumo ao sul e, lá
estava o oásis. Se ele falava: “sigam rumo ao poente e
encontrarão água e palmeiras”; lá ia o povo em direção ao poente
e logo encontravam água e palmeiras. Aquele que criou o
deserto traçou a rota precisa para seu povo e conduziu-o durante
quarenta anos.
No deserto precisamos confiar na direção divina.
Através da sua Palavra. Pela presença orientadora do Espírito
Santo. Pela sua voz no homem interior. Por intermédio de
outros irmãos que já atravessaram o deserto. Não importa o
meio, o que podemos contar é com a direção do Senhor. Ele
não nos leva para o deserto para que morramos lá, mas ele nos
conduz ao outro lado. Deus nos dirige através do deserto com
segurança até chegarmos à Terra Prometida.

Visão clara do céu

Nada encobre o céu no deserto. Não há nuvens. No


deserto não há fumaça, poluição. Não existem árvores ou

31
Pr. Delvacyr Bastos Costa

montanhas. No deserto não existem construções, edifícios. Não


existem luzes que ofuscam a visão. O céu é limpo, pode-se vê-
lo claramente, ver as estrelas, a lua...
No deserto precisamos aprender a olhar para cima. No
nível humano, horizontal, não existe para onde possamos olhar.
Tudo o que se vê é areia, areia, areia e mais areia. No deserto
Deus tira todos os nossos referenciais para que olhemos para
Ele. Temos muitos referenciais em nossa vida: dinheiro, posição
social ou eclesiástica, família, amigos, etc. Mas no deserto
estamos sós. Deus quer que dependamos somente dele. É nele
que deve repousar nossa confiança, é nele que devemos
depositar nossa fé. Por essa razão, muitas vezes, ele nos leva
para o deserto. Lá só podemos olhar para cima. É do céu que
virá a solução, é para lá que devemos olhar.

32
Crônicas do Deserto

O primeiro Deserto a gente nunca esquece

Eu tinha sete anos de idade e até aquela época havia


levado uma vida normal. De meus primeiros anos de vida tenho
poucas lembranças. Meu pai já havia sido evangelista de uma
igreja e tido uma experiência missionária no oeste de Santa
Catarina, entre os índios caingangues. Minha mãe foi professora
na reserva indígena. Foi lá que iniciaram seu namoro, noivaram
e de onde saíram para casar. Num período de transição
ministerial, meu pai trabalhou como vendedor, e
posteriormente, sub-gerente de uma grande loja de calçados.
Foi nessa época que eu nasci. Depois ele foi convidado a assumir
o pastorado de uma igreja na cidade de Canguçu (RS), onde
foi ordenado ao ministério pastoral e desenvolveu um frutífero
ministério.
Não lembro de muita coisa, não lembro de como fui
comunicado da mudança ou como foi nossa despedida. Minhas
lembranças são bem claras a partir de nossa chegada em
Cascavel (PR). Aqui começava meu primeiro deserto. Uma
cidade totalmente estranha. Comecei a sentir uma sensação de
solidão: com exceção de meus pais e irmã, todos os familiares
estavam distantes, muito distantes. Não tinha amigos, período
de férias escolares... para piorar uma época de chuvas que durou
mais de vinte dias. Vinte longos dias morando em uma casa
muito pequena, onde não havia espaço para brincar e mesmo
que houvesse, não tinha com quem. Eu lembro que chorava
todos os dias e pedia para voltar “para casa”.
33
Pr. Delvacyr Bastos Costa

Meu pai havia sido convidado para iniciar um trabalho


Batista Independente naquela cidade. Ele era “obreiro de
missões” da Convenção. À solidão do deserto, juntou-se o
período de aridez e privações. Não sei as razões, só sei que o
salário estava atrasado. Meu pai ia diariamente ao banco, mas
voltava cabisbaixo e triste. O dinheiro havia acabado há dias, a
despensa estava praticamente vazia. Lembro que muitas noites
dormi chorando, pedindo uma fatia de pão, mas minha mãe
explicava que se eu comesse, não haveria para o café na manhã
seguinte.
Certo dia não tínhamos mais nada para comer. Minha
mãe gostava de bordar e havia feito e bordado cinco babadores
para nenês. Minha irmã e eu saímos com eles a bater de porta
em porta tentando vende-los. Numa pequena loja a senhora
que nos atendeu, se interessou por eles e além de comprar os
cinco, disse-nos que voltássemos quando tivesse mais que ela
compraria. Voltamos para casa correndo com uma incontida
alegria e a pequena “fortuna de Cr$ 2,50 (dois cruzeiros e
cinquenta centavos). Era quase meio-dia, meu pai pegou o
dinheiro e foi ao mercado. Voltou com uma latinha de café
Pelé, um quilo de farinha, um de batatas e um de sal. Meu pai
conta que voltou para casa olhando para o chão na expectativa
de encontrar uma moeda de vinte centavos para comprar o
açúcar, mas não encontrou. Tivemos um banquete: bolinhos
de batata e café (sem açúcar).
Além das dificuldades financeiras, os cultos eram
frustrantes. Passávamos a tarde evangelizando, distribuindo

34
Crônicas do Deserto

folhetos e convidando para os cultos que ocorriam em nossa


sala. Saímos em duplas: minha mãe e eu, meu pai e minha
irmã. À noite, cheios de expectativa, arrumávamos as cadeiras
na sala e aguardávamos... Normalmente os cultos tinham a
frequência de quatro pessoas, meu pai, minha mãe, minha irmã
e eu.
Com o passar do tempo, a frequência aos cultos
começou a crescer e também a situação financeira estabilizou-
se. Tivemos o privilégio de ver uma igreja organizada e um
entusiasmado e crescente número de irmãos nela congregando.
Hoje a cidade tem uma grande igreja, um lindo templo, num
terreno adquirido ainda com meu pai à frente da mesma e
uma história de conquistas e vitórias, mas foi uma igreja que
nasceu no deserto... no meu primeiro deserto.

35
Pr. Delvacyr Bastos Costa

36
Crônicas do Deserto

Patrício – escravidão e missões no Deserto


Irlandês

Envolto na lenda e glorificado pela santidade, o grande


missionário irlandês do quinto século é uma das figuras mais
mal interpretadas da história da igreja. Não obstante a opinião
popular, Patrício não era nem católico nem irlandês, e sua
promoção à santidade foi concedida pelo Concílio de Whitby
(cerca de dois séculos depois de sua morte) como um incentivo
para colocar a igreja celta sob o domínio católico-romano. Hoje,
porém, seu nome tornou-se praticamente sinônimo do
catolicismo irlandês e seu verdadeiro ministério ficou
obscurecido, para além de qualquer reconhecimento.
Patrício nasceu numa família cristã na província romana
da Bretanha cerca de 389 AD. Seu pai era “diácono” e seu avô,
sacerdote da igreja celta. Isso ocorreu durante o período anterior
ao domínio romano, quando quase todo o clero era casado.
Pouco se sabe dos primeiros anos de Patrício, mas quando
chegou à adolescência, sua cidade que ficava próxima à costa
oeste da Bretanha foi invadida por um bando de saqueadores
irlandeses e muitos jovens do sexo masculino, inclusive Patrício,
foram levados para serem vendidos como escravos. Patrício foi
vendido a um fazendeiro de Slemish, onde cuidou de porcos
durante os seis anos seguintes. Foi um longo e doloroso deserto.
Embora tivesse sido criado num lar cristão, Patrício não
tinha fé pessoal em Deus. Durante os anos de cativeiro, ele
começou a refletir sobre sua condição espiritual e sua vida
37
Pr. Delvacyr Bastos Costa

mudou: “O Senhor permitiu que compreendesse minha


incredulidade e mostrou que, por mais tarde que fosse, eu podia
lembrar de minhas faltas e voltar-me para Deus de todo o
coração; Ele interessou-se pela minha triste condição e
compadeceu-se de minha juventude e ignorância, protegendo-
me mesmo antes de vir a conhecê-lo e obter sabedoria para
distinguir entre o bem e o mal; Ele fortaleceu-me e consolou-
me como um pai faz a seu filho”. A partir dessa época a vida de
Patrício foi marcada por oração intensa e persistente, e de
tempos a tempos ele tomava consciência de uma advertência
interior em que reconhecia a resposta divina às suas orações.
Foi um sinal deste tipo, no fim dos seus seis anos de servidão,
que o levou a fugir de seu dono e seguir pela costa marítima,
até um porto onde encontrasse um navio que o tirasse da
Irlanda. Ele realmente encontrou o navio sobre o qual a voz
interior o advertira.
Como homem livre, Patrício viajou para a ilha de Santo
Honorato, junto à costa da Riviera francesa. Isolando-se por
algum tempo num mosteiro que ali havia, ele voltou mais tarde
ao seu antigo lar, onde foi recebido por parentes que tinham
sobrevivido ao ataque em que fora capturado. Durante esse
período após sua volta à Bretanha, relata Patrício em sua
Confissão, é que Deus o chamou “na calada da noite”. Este foi
o seu chamado macedônico: “Vi um homem chamado Victório,
como se viesse da Irlanda, com inúmeras cartas: e ele deu-me
uma delas. Enquanto lia o começo da carta, pensei naquele
mesmo momento ouvir a voz daqueles que estavam para além
da floresta de Focluth, junto ao mar ocidental; e foi isto que
38
Crônicas do Deserto

disseram: ‘Por favor, jovem santo, venha e ande entre nós


novamente’. O grito deles atingiu-me o coração e não pude
continuar lendo, e então acordei”.
A missão de Patrício à Irlanda não teve lugar
imediatamente após o chamado. Ele foi primeiro estudar na
igreja de Auxerre, na Gália. Mas mesmo depois de seu período
de estudo e sua ordenação como diácono, seus superiores
duvidaram de sua capacidade para tal missão e indicaram
Paládio para a mesma. Paládio, porém, morreu menos de um
ano depois de chegar à Irlanda e isso abriu caminho para
Patrício. Ele já passara a casa dos quarenta anos, mas
aparentemente achava-se mais ansioso do que nunca para
cumprir seu chamado.
Quando Patrício chegou à Irlanda em 432, havia grupos
isolados de cristãos, mas a vasta maioria do povo continuava
firmada no paganismo. Eles adoravam o sol, a lua, o vento, a
água, o fogo e as pedras, assim como criam em espíritos bons e
maus de todos os tipos, habitando as árvores e os montes. A
magia e o sacrifício - inclusive o sacrifício humano - faziam
parte dos ritos religiosos realizados pelos druidas ou sacerdotes.
Não é de surpreender que Patrício imediatamente
encontrasse forte oposição por parte dos druidas, mas ele
aceitou a ordem social e política deles e finalmente alguns dos
poderosos chefes druidas foram convertidos ao cristianismo.
Não demorou muito para que os druidas, como uma classe,
começassem a perder seu poder, mas suas crenças mágicas
perduraram mediante a aparente transigência de Patrício com
o paganismo. Ele procurou diminuir o prestígio das mesmas

39
Pr. Delvacyr Bastos Costa

não pelo poder da mensagem cristã, mas por provar ser um


druida mais poderoso do que os druidas pagãos, este fenômeno
os missiológos modernos reconhecem como “encontro ou
confronto de poderes”. Este tipo de magia supersticiosa
continuou durante séculos no cristianismo celta.
Logo depois de chegar à Irlanda, Patrício assegurou
uma importante vitória ao convencer o rei Loigaire a conceder
tolerância religiosa para os cristãos. Pouco tempo depois, o
irmão do rei foi convertido e doou terras a Patrício para
construir uma igreja em seu domínio. Após o estabelecimento
da igreja, Patrício mudou-se para outras regiões onde o
evangelho jamais fora pregado; e por volta do ano 447, depois
de quinze anos de pregação, grande parte da Irlanda havia sido
evangelizada. Embora a essa altura Patrício fosse reconhecido
em toda a Irlanda como um grande homem de Deus, sua
popularidade e prestígio não haviam sido fáceis. Em sua
Confissão, ele conta a vida perigosa que teve. Doze vezes
enfrentou situações em que correu risco de vida, inclusive um
sequestro angustiante e um cativeiro de duas semanas. Apesar
disso tudo, ele continuou seu trabalho por mais de trinta anos,
motivado pelo medo além de várias outras coisas. “Temo perder
o trabalho que comecei com receio de que Deus me considere
culpado”.
Os métodos evangelísticos de Patrício eram
semelhantes de certo modo aos de tantos missionários antes e
após ele. Seu primeiro passo na evangelização de uma nova
área era atrair o líder político na esperança que seus
subordinados o seguissem, e ele não deixava de encher de
presentes esses governantes locais. Ao contrário de tantos

40
Crônicas do Deserto

missionários católicos, porém, Patrício e os missionários celtas


que o seguiram, deram grande ênfase ao crescimento espiritual.
Os convertidos recebiam instruções intensas sobre as Escrituras
e eram encorajados a envolver-se no ministério. As mulheres
desempenhavam um papel significativo nas igrejas celta, embora
Patrício tivesse cuidado em seu relacionamento com elas, na
sua condição de solteiro, recusando os presentes das mulheres
piedosas para que não surgisse qualquer causa de escândalo.
O sucesso de Patrício como missionário e evangelista
evidenciou-se nas duzentas igrejas plantadas por ele e nos cem
mil convertidos que batizou segundo se calcula. Ele estava,
porém sempre consciente de suas falhas e dava crédito a Deus
por todos os seus empreendimentos. O que lhe faltava em força
própria, Deus graciosamente provia, e ele concluiu sua
Confissão com o seguinte testemunho: “Oro para que os que
crêem e temem a Deus, quem quer que se tenha dignado a
examinar ou aceitar este documento, preparado na Irlanda por
Patrício, o pecador, homem inculto como se sabe, para que
ninguém jamais diga que foi minha ignorância que realizou
qualquer coisa que fiz ou mostrei conforme a vontade de Deus;
mas, julguem e seja verdadeiramente crido, que foi dom de
Deus. E esta é a minha confissão antes que morra”.
Hoje sua história é romantizada, contada como gloriosa
e de triunfos, mas, com toda certeza Patrício teve sua vida e
ministério marcado pelo deserto.

41
Pr. Delvacyr Bastos Costa

42
Crônicas do Deserto

Um novo trabalho, um novo Deserto

Estava casado com Marta há quase dois anos. Nosso


primeiro filho, Joni, havia nascido há pouco. Tudo parecia estar
correndo muito bem. Nenhum prenúncio do deserto que viria
a seguir. Estava trabalhando numa excelente empresa e
congregando numa igreja onde éramos amados e tínhamos
espaço para atuarmos. Então começou a aparecer a areia. Uma
série de problemas começaram a ocorrer em nossa igreja. Os
problemas se sucediam de forma impressionante. A igreja havia
pouco tempo tinha se desligado da convenção. Em nome da
defesa da “doutrina”, atitudes arbitrárias e injustas eram
cometidas pelo pastor contra membros da igreja, deixando a
todos tristes, inseguros e até mesmo indignados. Muitos foram
excluídos, outros, feridos, abandonaram a igreja. Entendemos
que não havia mais ambiente para permanecermos. Tornamo-
nos membros da Igreja Batista Independente em Santa Maria,
distante cerca de cento e vinte quilômetros de Cruz Alta, onde
morávamos.
Eu havia saído do seminário, mas ainda trabalhava
secularmente. Fui desafiado pelo pastor a iniciar um trabalho
Batista Independente em Cruz Alta. Isto, entretanto, não estava
em nossos planos; bom emprego, excelente salário...
Então veio a demissão. E de uma forma injusta e
dolorosa. Houve uma greve geral no Brasil convocada pela
CUT. No primeiro dia a empresa abriu, mas manifestantes

43
Pr. Delvacyr Bastos Costa

obrigaram a fechar as portas. No dia seguinte não haveria


atendimento ao público, mas o expediente interno seria normal.
Atravessei a cidade a pé (os ônibus estavam parados com medo
de depredações). Encontrei apenas o segurança e o meu superior
no setor de trabalho. Todos os demais funcionários haviam
faltado. Meu superior pediu-me para voltar para casa. Se eu
ficasse, ele teria que trabalhar também. Manifestei-me contrário
à greve e disse-lhe que iria trabalhar. Isso o desagradou
profundamente. Alguns dias depois fui chamado ao escritório
do gerente e comunicado que meu superior não me queria mais
em sua equipe e que não havia vagas em outros setores da
empresa, motivo pelo qual eu estava sendo demitido.
Depois de relutar um pouco e procurar emprego em
outras empresas sem sucesso, decidimos aceitar o desafio da
igreja em Santa Maria e iniciar uma congregação Batista
Independente na cidade de Cruz Alta. Iniciamos contatos
evangelísticos e a convidar pessoas para nosso culto inaugural.
Conseguimos uma sala emprestada num Centro Comunitário
e realizamos o primeiro culto. Onze pessoas se fizeram
presentes. Alugamos um salão num bairro bem distante daquele
em que morávamos e começamos uma Escola Bíblica
Dominical. Logo tínhamos um bom número de crianças
matriculadas, mas nos cultos à noite a frequência era muito
baixa.
A igreja em Santa Maria sustentava além do pastor local,
três obreiros em cidades diferentes. Eu era um deles. Uma crise
financeira, reflexo da situação do país – época do confisco do
44
Crônicas do Deserto

dinheiro depositado nos bancos pelo presidente Collor e pela


ministra Zélia Cardoso de Melo – abateu-se sobre a igreja.
Começamos a sentir o ardor de mais um deserto em nossas
vidas.
Por falta de dinheiro para ônibus, atravessávamos a
cidade a pé, com o Joni ainda bebê no colo, para abrirmos a
igreja e ficarmos orando e cantando à espera de pessoas que
jamais chegariam. Isso ocorreu muitas vezes, enfrentando o
intenso frio do inverno gaúcho. Nosso salário nunca era pago
em dia. Ficamos até quarenta dias sem receber um centavo
sequer. Mais de uma vez tivemos a energia elétrica ou a água
cortada. As ofertas que entravam na congregação ajudavam a
pagar a energia elétrica e água do salão, para mais nada.
A frequência na Escola Bíblica Dominical atingia a
média de cinquenta crianças. Realizamos batismos de alguns
adolescentes. Nos cultos à noite enfrentávamos um dilema.
Como a frequência de crianças e adolescentes era grande, os
adultos que convidávamos se diziam constrangidos em
participaram do que estava se tornando conhecido como “Igreja
das Crianças”. Pedir para que as crianças não viessem aos cultos
era correr o risco de não termos ninguém no culto seguinte.
Deixá-las frequentar, era correr o risco de não termos a presença
dos adultos. Entendemos que deveríamos continuar investindo
nas crianças, deixando-as participar dos cultos livremente,
enquanto visitávamos suas famílias e evangelizávamos seus pais
e demais familiares.
45
Pr. Delvacyr Bastos Costa

Para aumentar os problemas, o pastor da igreja da qual


havíamos saído, começou a seguir nossos passos e a visitar todas
as famílias com as quais estávamos trabalhando. Seus
argumentos é que éramos parte de um grupo rebelde, que havia
saído por ter desejo de liderança, de cargos, que ele não nos
havia dado por não ver em nós condições nem espiritualidade
para tal. Não conseguiu levar ninguém para a sua igreja, mas
afastou muitas famílias que já estavam participando de nossos
cultos.
Depois de três anos de intensa luta, comunicamos à
igreja em Santa Maria que não permaneceríamos mais à frente
daquela congregação, que contava com dezoito membros e
quarenta e sete alunos matriculados na Escola Bíblica
Dominical. A liderança da igreja sede entendeu que não havia
condições financeiras de se enviar um novo obreiro para assumir
a congregação e entregamos o trabalho para a Igreja Batista
Nacional de Cruz Alta. Era o fim de um período de escaldante
deserto.
Anos mais tarde, retornamos à Cruz Alta, e
encontramos cerca de vinte irmãos, membros de diferentes
igrejas, que tiveram seu encontro com Jesus na Escola
Dominical da “Igreja das Crianças” e agora, já adultos, serviam
ao Senhor junto com suas família. Eram os frutos de um deserto
que acabou revelando-se não tão árido e estéril assim.

46
Crônicas do Deserto

John Bunyan – o sonhador imortal no


Deserto da prisão

“Caminhando pelo deserto deste mundo, parei num


sítio onde havia uma caverna (a prisão de Bedford); ali deitei-
me para descansar. Em breve adormeci e tive um sonho. Vi um
homem coberto de andrajos, de pé, e com as costas voltadas
para a sua habitação, tendo sobre os ombros uma pesada carga
e nas mãos um livro”.
Foi assim que João Bunyan iniciou seu livro, O
Peregrino. Quem conhece suas obras pode testificar que ele é,
verdadeiramente, “o sonhador imortal”. Embora milhares de
pessoas conheçam seu livro O Peregrino, muito poucos
conhecem a história da vida deste corajoso pregador do deserto.
Bunyan viveu entre 1628 e 1688. Seus pais, apesar de
viverem em extrema pobreza, conseguiram ensina-lo a ler e
escrever. Casou-se com uma moça de família cristã fervorosa.
Bunyan era funileiro e, como acontecia com todos os membros
de sua classe, era paupérrimo, não possuindo nem ao menos
um prato ou uma colher. Seu tesouro consistia de dois livros:
O Caminho do Homem Simples para os Céus e, A Prática da
Piedade, obras que herdara do pai.
Depois de lutar por algum tempo para sair dos vícios e
do pecado, encontrou a paz com Deus e sentiu-se chamado
para o ministério. A respeito desse chamado ele escreveu:
“O maior anelo em cumprir meu ministério era o de
entrar nos lugares mais escuros do país... Na pregação,
47
Pr. Delvacyr Bastos Costa

realmente, sentia dores de parto para que nascessem filhos para


Deus. Sem fruto, não ligava importância a qualquer louvor aos
meus esforços; com fruto, não me importava com qualquer
oposição”.
A oposição era grande. Calúnias e boatos a seu respeito
varreram o país com o intuito de levá-lo a abandonar o
ministério. Era chamado de feiticeiro, cangaceiro, jesuíta, diziam
que tinha duas esposas, que seus filhos eram ilegítimos e coisas
semelhantes.
Como todos os ataques contra sua moral falharam e
seu ministério continuava frutificando de uma maneira gloriosa,
seus inimigos o denunciaram de não observar os regulamentos
dos cultos da igreja oficial. As autoridades civis o sentenciaram
à prisão perpétua, recusando terminante e sistematicamente a
revogação da sentença. A única maneira de ter sua sentença
revogada era comprometendo-se a não mais pregar.
Nem todos os horrores da prisão abalaram o espírito
de João Bunyan. Quando lhe era oferecida à liberdade sob a
condição de não mais pregar, respondia: “Se eu sair hoje da
prisão pregarei amanhã, com todo o auxílio de Deus”.
De sua pena, neste período de aprisionamento, saíram
as seguintes obras: Graça Abundante ao Principal dos
Pecadores; Chamado ao Ministério; O Peregrino; A Peregrina;
A Conduta do Crente; A Glória do Templo; O Pecador de
Jerusalém é Salvo; As Guerras da Famosa Cidade de
Almahumana; A Vida e Morte de Homemau; O Sermão do
Monte; A Figueira Infrutífera; Discursos Sobre a Oração; O
48
Crônicas do Deserto

Viajante Celestial; Gemidos de Uma Alma no Inferno; A


Justificação é Imputada. Suas obras mostram não um fanático
intransigente, mas um homem de profunda e íntima comunhão
com Deus.
Passou mais de doze anos na prisão. Doze anos, os de
maior vigor, preso em uma úmida e escura cela por causa de
sua fé. Doze anos de deserto. Foi um Quacker, chamado
Whitehead, que conseguiu sua libertação. Saindo da prisão
pregou em Bedford, Londres e muitas outras cidades. Sua
pregação e pessoa tornaram-se muito populares. Foi apelidado
de “Bispo Bunyan”. Continuou seu ministério fielmente até a
idade de setenta anos, quando atacado de febre, faleceu. Até
hoje seu túmulo é visitado por milhares de pessoas, e sua
principal obra, O Peregrino, continua a edificar e influenciar
seus leitores.

49
Pr. Delvacyr Bastos Costa

50
Crônicas do Deserto

Uma igreja no Deserto

Estávamos pastoreando a Igreja Batista Independente


de Cristalina, Estado de Goiás. O trabalho prosperava e muitas
pessoas estavam sendo alcançadas com a mensagem do
evangelho. Nossa igreja era congregação da Igreja de Paracatu
(MG). Tínhamos liberdade para trabalhar, mas mesmo assim,
ao recebermos o convite para assumir o pastorado de uma igreja
emancipada, decidimos aceitar.
Foi assim que mudamos para o Paraná. Encontramos
uma igreja pequena e fortemente apegada a usos e costumes
como se fossem doutrina. Outro aspecto distintivo dessa igreja
era a baixa escolaridade e, consequente, baixo nível econômico
de seus membros.
No dia em que assumimos a igreja, um pastor, vindo de
outra denominação e cujo dízimo e ofertas eram os maiores da
igreja, reclamou publicamente da decisão da igreja em chamar
um pastor de fora, enquanto ele estava ali, participando e
cooperando ministerial e financeiramente, e anunciou sua
decisão de deixar àquela igreja. Com isso as entradas da igreja
caíram pela metade. Quando chegamos com nossa mudança
encontramos o caixa da igreja vazio e, sem condições de sequer
reembolsar as despesas de nossa viagem.
Ao final de um período de dez meses a igreja já nos
devia uma vultuosa quantia em salários atrasados. Numa
reunião com a diretoria comunicamos que estávamos abrindo
mão daquele valor e que a igreja não nos devia mais nada,
comprometendo-se apenas a tentar, dali para frente, manter
em dia nosso salário. Mas as dificuldades continuaram apenas
com ligeira melhora.
51
Pr. Delvacyr Bastos Costa

Nesse período a igreja passou por uma fase de


avivamento e conversões. Batizamos um bom grupo de pessoas,
mas também foi um período de perdas. Diversos irmãos, por
não concordarem com o “liberalismo” do pastor que se recusava
a disciplinar pessoas que, por exemplo, jogavam bola, mulheres
que cortavam os cabelos, e outras manifestações de
“mundanismo”, deixaram a congregação.
Nas reuniões de diretoria as discussões eram frequentes
e sempre pelas mesmas razões. O fato de termos ido de
cinquenta e quatro para noventa e seis membros pouco mais
de um ano, de termos funcionando na igreja uma extensão do
Seminário Teológico Batista Betel com mais de vinte alunos
matriculados, de estarmos mantendo pontos de pregação em
diferentes lares, e mais do que isso, produzindo frutos, não era
levado em consideração. A queixa era sempre a mesma:
queremos “uma igreja com doutrina” e não aceitamos o
“mundanismo” que está entrando com sua permissão.
No final de maio de 1995 comuniquei à igreja que em
sessenta dias estaríamos entregando o pastorado. Não
queríamos mais viver em guerra com a liderança por causa de
usos e costumes e, também, com nossos filhos crescendo, a
prebenda paga pela igreja não atendia nossas necessidades, sem
levar em conta os já costumeiros atrasos da mesma.
Nessa época não tínhamos um convite ou qualquer
perspectivas quanto a um novo pastorado, apenas a convicção
que deveríamos deixar aquela igreja. Cerca de um mês após
tomar a decisão e comunicá-la a igreja, recebemos um convite
daquela que se tornou nossa nova igreja. Era a mão de Deus
nos conduzindo através do deserto.
52
Crônicas do Deserto

William Carey – um Deserto na Índia

William Carey, um pobre sapateiro inglês, era um fraco


candidato para a grandeza. Todavia, ele foi apropriadamente
chamado de “Pai das Missões Modernas”. Mais do que qualquer
outro indivíduo na história moderna instigou a imaginação do
mundo cristão e mostrou pelo seu humilde exemplo o que
poderia e deveria ser feito a um mundo perdido sem Cristo.
Embora ele enfrentasse provações pesadas durante seus
quarenta anos de carreira, Carey demonstrou uma determinação
obstinada em obter sucesso e nunca desistiu. Ele soube como
poucos enfrentar o deserto. Seu segredo: “Posso trabalhar. Posso
perseverar em qualquer alvo definido. A isto devo tudo”. A
vida de Carey ilustra profundamente o potencial ilimitado de
um homem bastante comum. Ele era um homem que, sem a
sua dedicação a Deus sem dúvida teria tido uma existência
medíocre.
Carey nasceu em 1761 perto de Northampton,
Inglaterra. Seu pai era tecelão e trabalhava num tear em sua
própria casa. Embora a pobreza fosse a regra geral para as
famílias como a de Carey, a vida era simples e nada complexa.
A Revolução Industrial tinha apenas começado a substituir a
indústria caseira por confeitarias sujas e tecelagens barulhentas.
A infância de Carey foi rotineira, exceto por problemas
persistentes de alergia que o impediram de concretizar seu
sonho de tornar-se jardineiro. Ele foi, em lugar disso, colocado
como aprendiz de sapateiro aos 16 anos e continuou nessa
53
Pr. Delvacyr Bastos Costa

profissão até os 28. Foi convertido na adolescência e logo depois


associou-se ativamente a um grupo de dissidentes batistas,
dedicando seus momentos de folga ao estudo bíblico e
ministérios leigos.
Em 1781, antes de completar vinte anos, Carey casou-
se com a cunhada de seu patrão. Dorothy era cinco anos mais
velha do que Carey e como muitas das mulheres inglesas de
sua classe era analfabeta. O casamento desde o início mostrou-
se desarmonioso e com o passar do tempo e com a ampliação
dos horizontes de Carey, o abismo que os dividia cresceu mais
ainda. Os primeiros anos de casamento foram difíceis e pobres.
Durante algum tempo, Carey não teve apenas a
responsabilidade de sua mulher e família em rápido
crescimento, como também da viúva de seu falecido patrão e
seus quatro filhos.
Apesar das dificuldades econômicas, Carey não desistiu
de seus estudos e pregação leiga e em 1785 ele aceitou o convite
para tornar-se pastor de uma pequena igreja batista, onde serviu
até que fosse chamado para pastorear uma igreja maior em
Liscester, embora ainda ali fosse forçado manter-se empregado
para sustentar a família. Durante esses anos de pastorado, sua
filosofia de missões começou a tomar forma, inflamada
inicialmente pela leitura das “Viagens do Capitão Cook”.
Conta-se que enquanto trabalhava em sua banca de sapateiro,
olhava para um Mapa Mundi feito por ele mesmo com retalhos
de couro e orava pelos povos sem Cristo. Aos poucos foi
desenvolvendo uma perspectiva bíblica do assunto e convenceu-
54
Crônicas do Deserto

se de que as missões estrangeiras eram a responsabilidade


principal da igreja. Suas idéias eram revolucionárias. Muitos,
senão a maioria, dos religiosos do século XVIII criam que a
Grande Comissão fora dada apenas aos apóstolos; portanto, a
conversão dos pagãos não era problema deles, especialmente
quando não estivesse ligado ao colonialismo. Quando Carey
apresentou suas idéias a um grupo de ministros, numa reunião
da Convenção Batista, um deles replicou: “Jovem, sente-se.
Quando Deus quiser converter os pagãos, ele o fará sem a sua
ajuda ou a minha”. Mas Carey não se calou. Em 1792 ele
publicou um livro de 87 páginas que teve consequências de
longo alcance e tem sido comparado as 95 teses de Lutero em
sua influência sobre a história cristã.
O livro Uma Inquirição sobre a Responsabilidade dos
Cristãos em Usarem Meios para a Conversão dos Pagãos (sendo
este um título abreviado), apresentava muito bem a defesa das
missões estrangeiras e procurava minimizar os argumentos que
dramatizavam a impossibilidade de enviar missionários a terras
distantes. Depois de publicar o livro, Carey falou a um grupo
de ministros numa Associação Batista em Nottingham, onde
desafiou a audiência através de Isaías 54.2-3 e pronunciou sua
agora famosa frase: “Espere grandes coisas de Deus; tente
grandes coisas para Deus”. No dia seguinte, devido à sua
influência, os ministros presente resolveram organizar uma nova
junta de missões, que tornou-se conhecida como Sociedade
Batista Missionária. A decisão não foi tomada
precipitadamente. A maioria dos ministros da Associação, como
55
Pr. Delvacyr Bastos Costa

Carey, viviam com salários de fome e o envolvimento em


missões no estrangeiro significava tremendos sacrifícios
financeiros tanto da parte deles como de suas congregações.
Andrew Fuller, o ministro mais proeminente a favor
da nova sociedade, tornou-se seu primeiro secretário nacional
e o primeiro missionário nomeado foi John Thomas, um batista
leigo que havia ido para a Índia como médico da esquadra real
e permaneceu depois de seu período de serviço a fim de
trabalhar como médico evangelista-missionário independente.
Carey imediatamente ofereceu-se à nova sociedade como
“companheiro adequado” de Thomas e foi entusiasticamente
aceito.
Embora Carey já estivesse há muito tempo avidamente
interessado no assunto das missões, a decisão de oferecer-se
para servir no estrangeiro foi nada menos que repentina. O
fato de sua igreja ficar perturbada com a perda de seu pastor e
seu pai julgá-lo “louco” poderiam ser facilmente
desconsiderados, mas a reação de sua mulher deveria tê-lo feito
refletir melhor. Com três filhos pequenos e o quarto a caminho,
não é de admirar que Dorothy se opusesse terminantemente a
deixar sua pátria e embarcar numa viagem arriscada de cinco
meses (complicada ainda mais pela recente declaração de guerra
entre França e Inglaterra) para passar o resto de sua vida num
clima tropical insalubre como o da Índia. Outras mulheres
haviam feito sacrifícios desse tipo voluntariamente e milhares
de outras o fariam no futuro, mas Dorothy era diferente. Se
existe uma “Mãe das Missões Modernas”, não foi certamente
ela, pois recusou-se terminantemente a ir.
56
Crônicas do Deserto

Se Dorothy pensou que sua recusa em acompanhar o


marido iria fazê-lo mudar de idéia, estava enganada. Carey,
embora aflito com a decisão dela, estava decidido a partir,
mesmo que isso significasse seguir sozinho. Ele continuou com
seus planos, que incluíram a compra de uma passagem para
Félix, seu filho de oito anos. Em março de 1793, depois de
meses de demoras, Carey e Thomas foram finalmente
comissionados pela Sociedade. No mês seguinte, juntamente
com Félix e a mulher e filha de Thomas, eles tomaram um
navio no rio Tâmisa que os levaria à Índia. Mas a viagem
terminou repentinamente em Portsmouth, na Inglaterra.
Problemas de dinheiro, (por causa de Thomas e seus credores
descontentes) e a falta de uma licença impediu que
prosseguissem.
A demora foi uma decepção para os missionários, mas
levou a mudanças dramáticas nos planos. Dorothy, que dera à
luz três semanas antes, concordou com relutância em juntar-se
ao grupo com seus filhos pequenos, desde que Kitty, sua irmã
mais jovem, a acompanhasse. A obtenção de fundos para os
novos passageiros não foi fácil, mas a 13 de junho de 1793 eles
tomaram um navio dinamarquês e partiram para a Índia. A
longa e perigosa viagem ao redor do Cabo da Boa Esperança
teve seus momentos terríveis, mas a 19 de novembro aportaram
a salvo na Índia.
A época de sua chegada não se mostrou favorável para
o estabelecimento do trabalho missionário. A Companhia das
Índias Orientais tinha virtualmente o controle do país e sua
57
Pr. Delvacyr Bastos Costa

hostilidade contra o trabalho missionário se fez logo sentir. A


Companhia temia qualquer coisa que pudesse interferir em
seus lucrativos empreendimentos comerciais e Carey bem
depressa percebeu sua condição indesejável. Com medo da
deportação, ele mudou-se com a família para o interior. Ali,
cercados pelos pântanos cheios de malária, os Carey viveram
em tristes circunstâncias. Dorothy e os dois meninos mais
velhos ficaram muito doentes e os cuidados com a família
exigiam a atenção constante de Carey. Seus sonhos idealistas e
românticos do trabalho missionário estavam rapidamente
desvanecendo. Carey também sofria com o fato de sua mulher
e Kitty “reclamarem continuamente” contra ele e se ressentirem
da família Thomas estar vivendo com fartura em Calcutá.
Depois de alguns meses as dificuldades deles foram aliviadas
pela bondade e generosidade do Sr. Short, funcionário da
Companhia das Índias Orientais, que teve pena deles e acolheu-
os em sua casa por quanto tempo desejassem ficar, embora
fosse incrédulo. Pouco depois, porém, os Carey se mudaram
para Malda, cerca de 480 quilômetros, onde Carey conseguiu
empregar-se como capataz numa fábrica de anil (corante).
Os anos em Malda foram difíceis. Embora Carey
estivesse satisfeito em sua nova posição e descobriu que a fábrica
era uma boa escola de línguas e campo propício à evangelização,
os problemas familiares persistiam. Kitty, que ficara para casar-
se com o Sr. Short, não estava mais com eles e a saúde física e
mental de Dorothy declinava cada vez mais. A morte trágica
do pequeno Peter de cinco anos foi a última gota. Ela jamais
58
Crônicas do Deserto

recuperou completamente as faculdades mentais. A situação


agravou-se e mais tarde vários companheiros de ministério a
descreveram como “completamente louca”.
Apesar da situação traumática da família e de continuar
trabalhando na fábrica, Carey não esqueceu a finalidade de sua
presença na Índia. Ele passava horas todos os dias traduzindo
a Bíblia e também pregava e estabelecia escolas. E, fins de 1795,
uma igreja Batista fora instalada em Malda. Era um começo,
embora o total de membros fosse de apenas quatro e todos
ingleses. Os cultos, porém, atraiam grandes multidões do povo
bengalês e Carey podia afirmar com convicção que “o nome de
Jesus Cristo tornou-se agora conhecido nesta região”. Mas não
houve fruto. Depois de quase sete anos de trabalho em Bengala
Carey não podia reivindicar um só convertido indiano.
Apesar de sua falta de sucesso exterior, Carey estava
satisfeito com seu trabalho missionário em Malda e ficou
bastante decepcionado por ter de partir em 1800. Novos
missionários haviam chegado da Inglaterra e para evitar as
perturbações contínuas da Companhia das Índias Orientais
eles se estabeleceram perto de Calcutá, no território
dinamarquês de Serampore. A ajuda de Carey tornou-se
urgentemente necessária na instalação de um novo posto
missionário para acomodá-los e ele partiu então com relutância
de Malda em companhia da família.
Serampore logo se transformou no centro da atividade
missionária batista na Índia e foi ali que Carey passou os 34
anos restantes da sua vida. Carey e seus colaboradores, Josué
59
Pr. Delvacyr Bastos Costa

Marshman e William Ward, conhecidos como o “Trio de


Serampore”, se tornariam uma das mais famosas equipes
missionárias na história. O posto missionário, que alojava dez
missionários e seus nove filhos, apresentava uma atmosfera
familiar. Os missionários viviam juntos e tinham tudo em
comum, como fizera a primeira igreja no livro de Atos. Nas
noites de sábado, eles se reuniam para orar e para externar suas
reclamações, sempre “prometendo amar uns aos outros”. As
responsabilidades eram divididas conforme a capacidade de
cada um e o trabalho prosseguia sem problemas.
O grande sucesso da missão de Serampore durante os
primeiros anos pode ser creditado em grande parte a Carey e
seu comportamento santo. Sua disposição para sacrificar os
bens materiais e ultrapassar o chamado do dever foi sempre
um exemplo contínuo para os demais. Além disso, ele tinha
grande habilidade para relevar as faltas alheias, mesmo com
relação a Thomas que fez mau uso dos fundos da missão,
tornando-se um embaraço devido ao seu endividamento
descuidado, Carey podia dizer: “Eu o amo e vivemos na maior
harmonia”. Ao descrever seus colaboradores, Carey escreveu:
“O irmão Ward é justamente o homem de quem precisamos...
ele participa do trabalho de toda a sua alma. Eu o aprecio
muito... o irmão Marshmam é um prodígio de diligência e
cautela assim como sua esposa...”.
Serampore era um exemplo harmonioso de colaboração
missionária e houve resultados para provar isso. Foram
organizadas escolas, levantou-se uma grande estrutura para o
60
Crônicas do Deserto

estabelecimento de uma impressora e, acima de tudo, o trabalho


de tradução era continuamente feito. Durante os anos em
Serampore, Carey fez três traduções da Bíblia inteira (bengalês,
sânscrito e marathi), ajudou em outras traduções da Bíblia
inteira e traduziu o Novo Testamento e porções bíblicas em
muitas outras línguas e dialetos. Infelizmente, a qualidade de
suas obras nem sempre combinava com a quantidade. O
secretário nacional Andrew Fuller repreendeu-o pela ortografia
inconsistente e outros problemas na cópia que enviou para a
Inglaterra para ser ali impressa: “Jamais conheci alguém que
conhecesse tantas outras línguas, como professa conhecer, que
escrevesse tão mal em inglês... Você amontoa meia dúzia de
sentenças numa só... se o seu Novo Testamento bengalês tiver
esse tipo de pontuação, temo pelo seu destino...” Os temores
de Fuller eram bem fundados e Carey, para sua grande decepção,
descobriu que parte de seu trabalho era incompreensível. Mas
o infatigável tradutor não desistiu. Ele voltou à mesa de trabalho
e refez toda a sua tradução até ter certeza de que podia ser
compreendida.
A evangelização era também uma parte importante do
trabalho de Serampore e um ano após o estabelecimento da
missão os missionários se alegraram com o seu primeiro
convertido. No ano seguinte, houve mais convertidos, mas de
modo geral a evangelização progrediu lentamente. Cerca do
ano de 1818, depois de 25 anos de missões batistas na Índia,
havia mais ou menos 600 convertidos batizados e mais alguns
milhares que compareciam às aulas e cultos.
61
Pr. Delvacyr Bastos Costa

Mesmo trabalhando o dia todo com traduções e


evangelismo, Carey sempre achava tempo para fazer mais coisas.
Um de seus maiores empreendimentos foi a fundação do
Colégio Serampore, em 1819, para treinamento de fundadores
de igrejas e evangelistas nativos. A escola começou com 37
alunos indianos, dos quais mais da metade era constituída de
cristãos. Outra área de empreendimento educacional em que
se envolveu foi o ensino secular. Logo depois de chegar à
Serampore foi convidado a tornar-se professor de Línguas
Orientais no Colégio de Fort William em Calcutá. Tratava-se
de uma grande honra para Carey, um sapateiro inculto, ser
convidado para preencher tão elevada posição, a qual foi aceita
por ele com apoio entusiasta de seus companheiros. A posição
não só proporcionou uma renda muito útil aos missionários,
mas também colocou-os em melhor situação diante da
Companhia das Índias Orientais e deu a Carey uma
oportunidade para aperfeiçoar seu conhecimento de línguas
enquanto procurava responder às perguntas dos alunos.
Devido às múltiplas ocupações, Carey não podia cuidar
de seus filhos como seria necessário. Mesmo quando se achava
na companhia deles, sua natureza dócil impedia a aplicação de
uma disciplina firme, cuja falta se manifestava claramente no
comportamento dos meninos. Ao falar desta situação, Hanna
Marshmam escreveu: “O bom homem via e lamentava o mal,
mas era brando demais para aplicar uma correção eficaz”.
Felizmente, a senhora Marshmam interferiu. Se não fosse pelas
reprimendas severas dessa querida senhora e a preocupação
62
Crônicas do Deserto

paternal de William Ward, os filhos de Carey teriam seguido


completamente suas próprias inclinações.
Em 1807, aos 51 anos de idade, Dorothy Carey morreu.
Carey sentiu-se, sem dúvida, aliviado. Ela há muito tempo
deixara de ser um membro útil da família missionária, sendo
na verdade um impedimento para a obra. John Marshmam
escreveu “como Carey quantas vezes trabalhava em suas
traduções, enquanto sua mulher insana, frequentemente
alterada ao máximo, se encontrava no quarto junto ao seu...”.
Durante seus anos em Serampore, Carey fizera amizade
com lady Charlotte Rumohr, nascida na família real
dinamarquesa e vivendo em Serampore na esperança de que o
clima fizesse bem à sua saúde frágil. Apesar de ter chegado
incrédula a Serampore, ela assistia aos cultos na missão, sendo
depois convertida e batizada por Carey em 1803. Depois disso
começou dedicar seu tempo e dinheiro à obra da missão. Em
1808, apenas alguns meses após a morte de Dorothy, Carey
anunciou seu noivado com Lady Charlotte, e ao fazer isso
causou um terremoto na geralmente tranquila família
missionária. A oposição foi tão grande que chegaram a fazer
circular uma petição a fim de impedir o casamento; mas quando
seus colegas compreenderam que ele estava mesmo decidido,
retraíram-se e aceitaram o inevitável. A cerimônia nupcial,
conduzida por Marshmam, teve lugar em maio exatamente
depois de seis meses de Dorothy ter sido enterrada.
O casamento de Carey com Charlotte foi feliz, tendo
durado 13 anos. Durante essa época ele esteve verdadeiramente
63
Pr. Delvacyr Bastos Costa

apaixonado, talvez pela primeira vez em sua vida. Charlotte


tinha uma mente brilhante e um dom para a linguística,
tornando-se uma auxiliar valiosa para Carey em seu trabalho
de tradução. Ela também se aproximou dos meninos e foi para
eles a mãe que jamais haviam tido. Quando veio a morrer em
1821, Carey escreveu: “Nossa vida conjugal foi tão feliz como
bem poucos mortais puderam ser”. Dois anos mais tarde, Carey,
aos 62 anos de idade, casou-se novamente, dessa vez com Grace
Hughes, uma viúva 17 anos mais moça do que ele. Apesar de
Grace não ser tão bem dotada intelectualmente quanto
Charlotte, Carey elogiou-a por seu “cuidado constante
infatigável e excelente trato” durante suas doenças frequentes.
Uma das perdas mais devastadoras que Carey sofre
durante os 40 anos ininterruptos de vida na Índia, foi o
desaparecimento de seus valiosos manuscritos num incêndio
ocorrido em um depósito, em 1812. Carey se achava ausente
na ocasião, mas a medonha notícia de que seu enorme dicionário
poliglota, dois livros de gramática e versões inteiras da Bíblia
haviam sido destruídos não podia ser ocultada. Se tivesse um
temperamento diferente, é possível que Carey jamais tivesse se
recuperado; mas ele aceitou a tragédia como um juízo do Senhor
e começou tudo novamente com zelo ainda maior.
Os primeiros 15 anos de Carey em Serampore foram
anos de colaboração e trabalho em equipe. Exceto por
problemas ocasionais, tais como os relacionados com seu
segundo casamento, a pequena comunidade batista na Índia
viveu em harmonia. Talvez a situação fosse boa demais para
64
Crônicas do Deserto

ser verdadeira, mas de qualquer forma a paz não durou e os


últimos 15 anos que se seguiram foram cheios de perturbações.
O espírito de unidade se desfez quando novos missionários
chegaram e não se sujeitaram a viver da maneira comunitária
dos missionários de Serampore. Um deles exigiu “uma casa
separada, estábulo e serviçais”. Havia também outras diferenças.
Os novos missionários acharam os veteranos, especialmente
Josué Marshmam, ditatoriais, designando-lhes deveres e
posições que não lhes agradava. Os novos missionários estavam,
sem dúvida, justificados em sentir-se diminuídos. Os obreiros
mais velhos haviam-se cristalizado em seu sistema e não
aceitavam modificações. Mas se a equipe mais nova tivesse
manifestado o amor e longanimidade característica do grupo
de Serampore, as diferenças poderiam ter sido superadas.
Infelizmente, esse não foi o caso. Acusações amargas foram
feitas contra os veteranos e o resultado foi a divisão dos dois
grupos.
Os missionários mais novos formaram a União
Missionária de Calcutá e começaram a trabalhar à apenas a
alguns quilômetros de seus irmãos batistas. “Indelicada” foi a
expressão usada por William Ward para descrever a situação.
O problema tornou-se ainda mais crítico quando o
Comitê Nacional recebeu as notícias e envolveu-se na questão.
O primeiro Comitê, dirigido por Andrew Fuller, não existia
mais. Aquele pequeno comitê de três pessoas havia multiplicado
seu tamanho várias vezes, e a maioria dos membros só conhecia
Carey pelas suas cartas. Fuller e um dos outros primeiros
65
Pr. Delvacyr Bastos Costa

membros haviam morrido, deixando o Comitê Nacional


claramente à favor dos membros mais jovens, a quem tinham
nomeado pessoalmente como missionários. Enquanto Fuller
estivera na direção, ele insistira em que Serampore fosse
independente por duas razões: “Uma é que julgamos que são
mais capazes de governar a si mesmos do que nós de governá-
los. Outra é que estão muito distantes para aguardar orientação
de nossa parte”. Mas o Comitê Nacional reconstruído
discordava completamente. Os membros acreditavam que os
importantes negócios na Missão de Serampore deveriam ficar
sob o seu controle direto. Finalmente, em 1826, depois de anos
de conflito desgastante, a Missão de Serampore cortou relações
com a Sociedade Missionária Batista.
O afastamento final entre a Missão de Serampore e a
Sociedade Missionária Batista foi um golpe financeiro contra
os missionários de Serampore. Embora a equipe de Serampore
tivesse sido financeiramente auto-suficiente durante a maior
parte de sua história, recebendo apenas uma pequena
porcentagem de seus fundos da Inglaterra, os tempos haviam
mudado. Havia missionários em mais de uma dúzia de postos
que precisavam de sustento e cuidados médicos eram
necessários para outros. A equipe de Serampore não podia mais
cuidar de todos. Carey e Marshmam (Ward já havia morrido)
não tiveram escolha senão engolir o seu orgulho e submeter-se
à autoridade da Sociedade. Logo depois, uma soma substanciosa
de dinheiro e cartas bondosas chegaram da parte do Comitê
Nacional. O processo de cura começara.
66
Crônicas do Deserto

Carey morreu em 1834, mas não antes de deixar sua


marca na Índia e nas missões de todos os tempos. Sua influência
na Índia ultrapassou os seus empreendimentos linguísticos
maciços, suas instituições educacionais e os seguidores cristãos
que pastoreava. Ele causou também notável impacto sobre
práticas indianas prejudiciais através de suas lutas contra a
queima de viúvas e o infanticídio. Mas, em outros aspectos,
procurou deixar a cultura intacta. Carey estava avançado no
tempo na metodologia missionária. Ele tinha um respeito
reverente pela cultura hindu e jamais tentou importar
substitutos ocidentais, como tantos missionários que vieram
após ele procuraram fazer. Seu objetivo era fundar uma igreja
nativa “através de pregadores locais”, fornecendo as Escrituras
na língua nativa e foi com essa finalidade que dedicou sua vida.
Porém, a influência de Carey não se fez sentir apenas na Índia.
Seu trabalho estava sendo seguido de perto não só na Inglaterra,
mas também no continente e nos Estados Unidos onde a
inspiração derivada de seu exemplo ousado ultrapassou em
importância todos os seus empreendimentos na Índia.
Carey foi sem dúvida alguma um homem que conheceu
o deserto como poucos. Ele viveu a maior parte de seus dias
nele.

67
Pr. Delvacyr Bastos Costa

68
Crônicas do Deserto

Quando a doença se torna um Deserto

Iniciamos nosso pastorado em Novo Sarandi, no Paraná,


em agosto de 1995. Tivemos um período muito bom, de
alegrias, muitas vitórias, um verdadeiro oásis. Mas oásis são
sempre temporários, não se vive num oásis, apenas se passa um
tempo. E nosso tempo nesse oásis logo chegaria ao fim.
Dois acontecimentos prenunciaram o deserto que se
acercava de nós. Na realidade foram duas visões. A primeira
foi um pastor que pregava em nossa igreja quem teve. Durante
a ministração da mensagem ele disse que enquanto orava, via
que uma grande e densa nuvem escura surgia sobre a igreja.
Exortou-nos a nos prepararmos para momentos difíceis que
em breve chegariam. A segunda fui eu quem teve. Estava orando
em minha escrivaninha. De olhos fechados vi com clareza a
seguinte cena: Do lado de fora do templo eu olhava para dentro
e via a congregação reunida e também me via no púlpito
pregando. Atrás de mim surgia e crescia uma grande sombra,
num formato semelhante a um morcego, que se lançava sobre
mim e sobre a congregação reunida. Assustado com a visão
abri os olhos, e com os eles abertos, ela se repetiu com a mesma
clareza.
Pequenos problemas de relacionamento surgiram a
seguir. Alguns mal entendidos tomaram proporções muito
maiores do que se poderia esperar. Com muita oração e
diplomacia fomos enfrentando e resolvendo cada um deles.
Nessa época estávamos comemorando mais um aniversário da
69
Pr. Delvacyr Bastos Costa

igreja e convidamos um pastor amigo nosso para pregar. Foram


dias de bênçãos e de manifestações bem pentecostais. A igreja
tinha, alguns anos antes, passado por um período complicado
de exageros no exercício dos dons espirituais, principalmente
com profecias que além de não terem se cumprido,
escandalizaram e feriram muitas pessoas. Por essa razão
encarava com muito cuidado e receio essas manifestações. E
nesse evento as manifestações foram muitas, inclusive algumas
pessoas perderam o controle emocional e alguns exageros
ocorreram. A liderança da igreja, com medo que os fatos se
repetissem, reagiu de forma muito intensa e pediram-me que
não mais convidasse “aquele tipo de pastor” para pregar e que
não permitisse “aquelas manifestações”. Foram dias de muita
pressão e de constantes conversas, tentando mostrar a realidade
e atualidade dos dons espirituais, até conseguir contornar a
situação.
Parecia que tudo finalmente havia acabado. Mas no
deserto, muitas vezes um momento de calmaria antecede uma
violenta tempestade de areia. Era o que aconteceria a seguir.
O físico cobrou seu tributo. Comecei a sentir um
cansaço enorme e inexplicável. O peito doía constantemente,
muitas vezes eram dores lancinantes que me tiravam
completamente o fôlego. Muitas vezes, enquanto pregava, sentia
dores e mal-estar. Mais de uma vez terminei a pregação
agarrado ao púlpito para não cair. Numa dessas vezes precisei
ser carregado para o quarto, passando dois dias acamado.
Inicialmente pensei que estava com problemas cardíacos, mas
70
Crônicas do Deserto

após consulta a um cardiologista e a realização de diversos


exames, meu problema foi diagnosticado como stress profundo.
Uma dieta alimentar, alguns remédios além de recomendações
para descansar bastante e praticar alguma atividade física,
preferencialmente algum esporte, foi o tratamento prescrito.
As atividades pastorais me tomavam muito tempo. Além da
igreja sede, tínhamos quatro congregações, programa
radiofônico e as aulas do Instituto Bíblico duas vezes por
semana. Rodava mensalmente mais de mil e quinhentos
quilômetros para atender todos meus compromissos. Descansar
era quase impossível. Apesar disso a melhora foi lenta, muito
lenta, mas ao fim de alguns meses estava restabelecido.
Durante essa fase minha esposa esteve sempre ao meu
lado, cuidando-me com muita dedicação e carinho. Para agravar
a situação, meu sogro adoeceu e depois de um período de
internação hospitalar, veio a falecer. Viajamos para o Rio
Grande do Sul, para seu sepultamento e depois ficamos alguns
dias com os familiares, consolando-os e orientando-os quanto
ao que fazer dali para frente. A Marta mostrou-se muito forte,
consolando e ajudando durante os dias que estivemos lá,
apoiando sua mãe e irmãos. Quando eu estava praticamente
recuperado, ela começou a sentir dores, mal-estar, não conseguia
dormir direito, alimentava-se mal e mais de uma vez foi
acometida de mal súbito; quando a levava para o hospital os
médicos nada conseguiam encontrar de errado. Passava muito
tempo deitada, sem forças para se levantar. Preferia o escuro à
luz e não suportava o barulho. Algum tempo depois veio a
71
Pr. Delvacyr Bastos Costa

constatação: depressão. É difícil para alguns aceitarem que um


crente possa sofrer de depressão e além da doença – sim,
depressão é uma doença – tínhamos que ouvir muitas críticas
e insinuações maldosas. Neste período, a médica proibia a Marta
de continuar usando anticoncepcional, e, por um descuido
nosso, ela acabou engravidando. No terceiro mês de gravidez,
estávamos na casa de uma família de nossa igreja, quando a
Marta começou a ter uma hemorragia muito grande. Corri
com ela para o Pronto Socorro, onde foi constatado que ela
estava grávida de gêmeos e um dos fetos havia sido abortado, o
outro não. A partir dali a gravidez, considerada de risco, teria
de ser acompanhada de perto pelo médico, com a recomendação
de repouso, total ausência de esforço físico e uma série de outros
cuidados. Felizmente, depois de seis meses, com a Marta já
livre da depressão, nasceu Sarah Cristina, nossa princesinha,
um presente de Deus no meio do deserto que havíamos acabado
de atravessar.

72
Crônicas do Deserto

Henry Martin – Deserto e solidão para um


jovem missionário

Martyn nasceu em Cornawall, na Inglaterra, em 1781.


Seu pai era mercador e apoiou bastante o dotado filho. Martyn
gostava de estudar e depois de ter completado sua educação
formal seguiu para Cambridge, onde terminou o curso de
Matemática com brilhantismo. Apesar de ter voltado as costas
a Deus em sua juventude, ele foi impelido por uma combinação
de fatores a fazer uma reavaliação de seus valores espirituais. A
morte do pai, as orações da irmã, o conselho de um ministro
santo e as palavras escritas por David Brainerd, se uniram para
levá-lo à submissão a Deus e só então começou a pensar nas
missões no estrangeiro. O exemplo sacrificial de David Brainerd
e os esforços pioneiros de William Carey na Índia foram uma
fonte poderosa de inspiração. Em pouco tempo, as missões no
exterior se tornaram seu único objetivo.
Como seu herói David Brainerd, Martyn passava muitas
horas todos os dias em oração e devoção a Deus: “Eu pensava
em David Brainerd e almejava ardentemente sua dedicação a
Deus. Sinto meu coração unido ao desse homem tão amado.
Anseio ser como ele. Permita que me esqueça do mundo e seja
engolfado no desejo de glorificar a Deus”. Em seu esforço de
dar glória a Deus, Martyn começou a praticar a autonegação,
que incluía o café da manhã e a leitura, “ficando longe do fogo...
embora o termômetro estivesse em ponto de congelamento”.
73
Pr. Delvacyr Bastos Costa

O celibato era outro aspecto de sua autonegação. Ele


sentia-se grato por estar “livre de todos os desejos de conforto
da vida conjugal”, preferindo uma “vida de solteiro em que
existem muito maiores oportunidades para ocupar o
pensamento em coisas celestiais”. Mas isso foi antes de
apaixonar-se perdidamente por Lídia, cunhada de sua prima,
seis anos mais velha que ele. Foi essa “afeição idólatra” que,
mais do que qualquer outra coisa o distraiu de seu alvo único
de evangelizar os pagãos: “sentia muito claramente que a amava
apaixonadamente, a oposição direta desse sentimento com
minha dedicação a Deus provocou grande perturbação em
minha mente”. Lídia cativara o seu coração, ele não podia deixar
de pensar nela, acordando no meio da noite com a mente cheia
dela.
Martyn não seria o primeiro nem o último a ficar fora
das missões estrangeiras devido ao romance; mas apesar de
Lídia consumir seus pensamentos, ele recusou afastar-se de
seu compromisso espiritual. Estava convencido que poderia
servir mais eficazmente a Deus, livre dos laços conjugais, e é
altamente duvidoso que Lídia o tivesse acompanhado a uma
terra estranha. Ele passou a maior parte de um ano fazendo
planos para embarcar para a Índia, enquanto ao mesmo tempo
sofria por Lídia, mas alegando estar alegremente resignado à
vontade de Deus e a desistir da alegria terrena do casamento.
Na primavera de 1805, Martyn foi ordenado sacerdote
anglicano. No mês seguinte foi ordenado capelão da
Companhia das Índias Orientais e no verão de 1805 deu adeus
74
Crônicas do Deserto

à Lídia e seguiu para a Índia. Ao chegar ali encontrou-se com


William Carey e outros missionários de Serampore, que
imediatamente reconheceram seu talento e o encorajaram a
dedicar-se ao trabalho de tradução. Como capelão, suas
principais responsabilidades eram junto aos empregados e
famílias da Companhia das Índias Orientais, mas o coração
dele estava nas missões e ficou entusiasmado com a
oportunidade de colocar o Novo Testamento à disposição de
milhares de asiáticos. Ele servia em postos militares durante
quatro anos, pregando tanto a europeus como a hindus,
estabelecendo escolas e ao mesmo tempo traduzindo o Novo
Testamento para o hindustani, persa e árabe. A temperatura
tórrida da Índia central agravou, porém, o seu estado de saúde
que já era frágil e, em 1810, com seu Novo Testamento em
hindustani já pronto para ser impresso, ele partiu para a Pérsia,
esperando recuperar a saúde e revisar ao mesmo tempo suas
traduções persa e árabe.
A saúde de Martyn melhorou por algum tempo e ele
pode aperfeiçoar sua tradução com a ajuda de alguns dos
eruditos mais qualificados da Pérsia, mas em 1812 piorou de
novo. Uma viagem por via terrestre à Inglaterra parecia a única
solução para os seus problemas de saúde, sendo também uma
oportunidade para que renovasse sua relação com Lídia. Ela
havia rejeitado seus convites para que fosse à Índia e se casasse
com ele, mas mesmo assim ansiava por vê-la novamente e dizer
em pessoa o que estivera colocando nas cartas nos seis anos
anteriores, mas a oportunidade nunca chegou. Ele morreu na
75
Pr. Delvacyr Bastos Costa

Ásia Menor no outono de 1812, aos 31 anos de idade. Ao


chegar à Índia, ele escrevera em seu diário: “Que eu seja
oferecido em holocausto para Deus”. E assim foi.

76
Crônicas do Deserto

Um sonho morre no Deserto

Nosso sonho de um seminário começou em 1991.


Estávamos trabalhando como líder de jovens e professor da
Escola Bíblica Dominical na cidade de Valparaízo em Goiás.
Uma igreja grande, com um enorme templo e várias salas
disponíveis. Marta e eu treinávamos um grupo de oito jovens
para iniciarem o discipulado de novos convertidos. Olhando
para as salas que passavam a maior parte do tempo sem uso,
sonhávamos em iniciar ali um instituto bíblico, mas, por diversos
fatores esse sonho precisou ser adiado. Quando pastoreávamos
a igreja em Cristalina, além de ministrar um curso de
Homilética na igreja, recebemos o convite para lecionar num
curso teológico que a Igreja Congregacional, através de seu
pastor, nosso querido irmão e amigo, Roberval Leite Andrade
mantinha. Nosso próximo pastorado foi em Cambé (PR). Lá
montamos uma extensão do Seminário Teológico Batista Betel,
de Telêmaco Borba. Formamos 12 alunos no Curso Básico em
Teologia.
Assumindo o pastorado em Novo Sarandi, também no
Estado do Paraná, fundamos o Instituto Bíblico Filadélfia.
Começou pequeno, mas com uma visão definida e um sério
propósito. Nosso lema era: “Levando Cristo às Nações”. No
período em Novo Sarandi formamos 14 alunos. Destes alguns
logo iniciaram seu ministério pastoral, e um deles encontra-se
atualmente pastoreando na Alemanha. Nosso sonho começava
a realizar-se.
77
Pr. Delvacyr Bastos Costa

Deixamos o pastorado em Novo Sarandi e mudamos o


Instituto Bíblico Filadélfia para o município de Astorga. Foi-
nos cedida uma fazenda onde durante onze anos havia
funcionado um outro seminário. Lá estruturamos um currículo
de missões transculturais com dois anos de duração e iniciamos
o sistema de internato. Foram dois anos de bênçãos e vitórias.
Tivemos problemas a serem enfrentados, mas não foram tantos
nem tão sérios. Apesar de ser uma instituição nova e sem apoio
financeiro de nenhum grupo ou denominação, não passamos
por maiores provações financeiras. Tínhamos uma horta, os
alunos trabalhavam, que nos fornecia legumes e verduras. Das
galinhas, ovos e carne. Foi-nos emprestada pela proprietária
da fazenda uma vaca leiteira, que nos provia do leite, do qual
também tirávamos a nata. Durante nossa permanência neste
local, formamos oito alunos; destes quatro estão no pastorado
em igrejas brasileiras e um no Paraguai.
No final de 1999 fomos visitados por uma comissão de
líderes de uma pequena denominação do Sul do Brasil. Eles
estavam com um Instituto Bíblico funcionando nas
dependências de uma de suas igrejas, no sistema modular,
levando cerca de cinco anos para formar seus alunos no curso
básico, único da instituição naquela época. Foi-nos feita uma
proposta para voltarmos ao Rio Grande do Sul, e firmarmos
uma parceria com a denominação a nível de internato. Depois
de pensarmos muito na proposta, decidimos ir ao Rio Grande
do Sul para visitar os familiares e também verificarmos a
viabilidade de uma mudança. Em Cruz Alta, foi-nos dada a
78
Crônicas do Deserto

informação que um sítio, nos arredores da cidade, com amplas


construções e fácil acesso. Examinando a propriedade,
percebemos ser adequada para a instalação do Instituto Bíblico.
O presidente da referida denominação estava pregando numa
cidade próxima e fomos ao seu encontro, falando da
propriedade. O acordo foi firmado. Parte da responsabilidade
desta denominação era assumir o aluguel pelo período de dois
anos. Mudamos para Cruz Alta em janeiro de 2000.
Era uma belíssima propriedade. Dezoito mil metros
quadrados de área. Apenas três quilômetros da cidade, na
estrada que leva ao Campus universitário, com ônibus passando
na frente. Dois prédios. No principal tínhamos secretaria, duas
salas de aulas, biblioteca, cozinha, refeitório, lavanderia,
alojamento feminino, dois quartos para professores visitantes,
sala de estar e as dependências ocupadas por nossa família.
Nos fundos, alojamento para rapazes, com outra lavanderia.
Tínhamos ainda a horta e o pomar. Por ter ficado um período
desocupada, havia sido invadida e depredada, mas com muito
trabalho conseguimos colocá-la em condições de
funcionamento.
Iniciamos o ano letivo com sete alunos internos. Cinco
paranaenses, dois gaúchos e uma uruguaia. Mal sabíamos que
o deserto estava iniciando.
No mês de abril, foi eleita uma nova diretoria na
denominação. O novo presidente começou a impor condições
para manter a parceria que não estavam no acordo inicial.
Algumas eram razoáveis, e com estas concordamos, outras não
79
Pr. Delvacyr Bastos Costa

podiam ser aceitas sob risco de colocar o próprio funcionamento


da instituição. Uma destas exigências era que não se tivesse no
corpo docente nenhum professor de outra denominação.
Tínhamos, desde o Paraná, alguns colaboradores, que não
apenas lecionavam, mas ainda nos ajudavam financeiramente.
Mas o novo presidente não os queria mais como professores.
O maior problema era que a denominação não possuía
professores qualificados para nos oferecer. Os poucos com
formação teológica de nível superior não estavam disponíveis
para lecionar. Depois de duas longas e infrutíferas reuniões a
parceria foi rompida. Perdemos uma das alunas, que pressionada
por seu pastor (que era da referida denominação), nos deixou.
Estávamos com seis alunos apenas e despesas com aluguel,
energia, alimentação e manutenção, muito acima do que
poderíamos honrar. Foram meses difíceis. Muitas madrugadas
de joelhos na presença do Senhor; muitos contatos buscando
novas parcerias; divulgação e contatos em busca de novos
alunos. Iniciamos um curso à nível de externato, que logo
encontrou oposição de alguns pastores locais que temiam perder
membros para nós, mas nem ao menos nos passava pela cabeça
a idéia de plantarmos uma nova igreja.
No final do primeiro ano em Cruz Alta, formamos
quatro alunos que já estavam estudando conosco no Paraná.
Destas, uma delas está em Portugal, outra na França e dois
exercem o pastorado no Paraná.
Apesar do deserto que enfrentávamos, os frutos
apareceram. Um de nossos alunos, Eliézer, iniciou um trabalho
80
Crônicas do Deserto

evangelístico na mais perigosa área da cidade. Muitas noites,


com um violão e sua bonita voz, sentava-se no meio fio, e
cercado por jovens drogados e membros de gangues, cantava e
falava de Jesus. Alguns destes jovens entregaram sua vida a
Jesus e foram conduzidos pelo Eliézer a igrejas próximas a
suas casas.
Neste período também fundamos o Conselho de
Pastores de Cruz Alta, e fomos eleitos para exercer a presidência
do mesmo. Iniciamos um movimento de intercessão pela cidade,
com marchas mensais de oração que durou cinco anos.
No ano de 2001 recebemos apenas um novo aluno. As
dificuldades aumentaram. Em abril, precisamos reunir nossos
remanescentes (três alunos) e comunicar-lhes que estávamos
fechando o internato. Foi um momento em extremo doloroso.
Depois que os alunos saíram da sala, tendo apenas minha esposa
Marta ao meu lado, chorei amargamente por quase uma hora.
Ainda formamos uma turma de 12 alunos no externato, mas o
sonho do internato estava enterrado no deserto.
Foi uma perda muito dolorosa, mas não foi estéril.
Aprendemos que no deserto precisamos depender
exclusivamente do Senhor. Depositamos nossa confiança numa
instituição humana (uma denominação) e quando ela falhou,
não tínhamos mais onde nos apoiar. Se tivemos ouvido a voz
do Senhor, buscado sua direção antes de aceitar essa parceria,
certamente não teríamos deixado nosso sonho nas areias do
deserto.

81
Pr. Delvacyr Bastos Costa

82
Crônicas do Deserto

David Brainerd – um Deserto entre


os índios americanos

Um dos mais interessantes missionários para os


ameríndios foi David Brainerd, herdeiro do puritanismo da
Nova Inglaterra e um produto do Grande Avivamento.
Brainerd era um zelote. Levar o evangelho às tribos nômades
e dispersas era sua única missão. Ele gastou a vida nessa causa.
Aos 29 anos, depois de apenas cinco anos no trabalho
missionário, morreu devido a uma tuberculose. O lugar de
Brainerd na história se prende em grande parte a imensa
inspiração que sua vida pessoal teve sobre outros. Seu registro
de ocorrências, diário e biografia, publicado por Jonathan
Edwards, são clássicos da literatura cristã, e missionários através
dos séculos, incluindo William Carey e Henry Martin, foram
profundamente influenciados por sua vida. Mas os seus métodos
evangelísticos tem sido questionados. Os métodos de Brainerd
diferiram notavelmente dos de seu grande predecessor
missionário para os ameríndios, John Eliot, e apesar da
intensidade dos esforços de Brainerd, os resultados da obra
foram fracos.
David Brainerd nasceu em 1718, em Haddan,
Connecticut. Seu pai era um fidalgo rural que vivia com a esposa
e nove filhos numa rica propriedade margeando o Rio
Connecticut. O pai de David morreu quando ele tinha apenas
oito anos e a mãe quando fez quatorze - uma tragédia que se
agravou para sempre em sua memória. A morte era muito real
83
Pr. Delvacyr Bastos Costa

para ele e em muitos aspectos não teve as alegrias de uma


infância descuidada. David era sóbrio e estudioso, muito
preocupado com a condição de sua alma.
Na idade de vinte anos, depois de viver com o irmão e
trabalhar numa fazenda durante algum tempo, Brainerd voltou
a Haddan para estudar na casa de um velho ministro. Este
velho e piedoso cavalheiro tinha um interesse sincero pelo seu
jovem discípulo, mas seu conselho de “afastar-se dos jovens e
cultivar amizade com pessoas sérias e idosas” não era realmente
o que Brainerd precisava. Isto só serviu para perpetuar sua
peregrinação religiosa do tipo montanha russa, que o levava
dos picos da espiritualidade exaltada para os vales de desespero
mortificante. O conflito espiritual de Brainerd chegou ao auge
com uma experiência de “glória inexprimível”, que lhe deu a
segurança de sua salvação, mas seus altos e baixos espirituais
persistiram durante o resto de sua vida.
Em setembro de 1739, com a idade de vinte e um anos,
Brainerd matriculou-se na Faculdade de Yale. Era aquele um
período de transição em Yale. Quando entrou na escola, David
ficou perturbado com a indiferença religiosa à sua volta, mas o
impacto de George Whitefield e o Grande Avivamento logo
deixaram sua marca e toda a atmosfera mudou. Grupos de
oração e estudo bíblico surgiram da noite para o dia -
geralmente desagradando as autoridades escolares que temiam
o “entusiasmo religioso”. Foi nessa atmosfera que o jovem
Brainerd fez um comentário impensado sobre um dos
instrutores, afirmando que ele não tinha recebido a graça divina,
84
Crônicas do Deserto

julgando-o um hipócrita. O comentário foi levado aos


responsáveis da escola que estavam sem dúvida aguardando
um incidente para desacreditar o reavivamento espiritual. David,
um bode expiatório conveniente, foi expulso depois de ter-se
recusado a pedir desculpas publicamente pelo que dissera em
particular.
Essa foi uma situação infeliz para Brainerd, causando-
lhe angústia durante anos e contribuindo para sua disposição
melancólica. Apesar de seus esforços e de alguns amigos
influentes, ele não foi aceito de novo e nem permitido que se
formasse em Yale. Não obstante, seus anos de faculdade não
foram inúteis. Durante esse período escolar ele ouviu Ebenézer
Pemberton pronunciar uma emocionante mensagem sobre as
oportunidades para o trabalho missionário entre os índios.
Brainerd jamais esqueceu essa mensagem e em novembro de
1742, depois de sua expulsão de Yale, ele respondeu
entusiasmado ao convite de Pemberton para que fosse a Nova
Iorque, a fim de discutir a possibilidade de trabalhar na obra
missionária junto aos índios. Pemberton era um ministro
americano que também servia como secretário da Sociedade
Escocesa para a Propagação de Conhecimento Cristão. Essa
sociedade recém inaugurara sua obra entre os índios e Brainerd
estava sendo considerado como um dos dois missionários a
serem nomeados, cujo ministério seria custeado.
Embora Brainerd não se achasse à altura da tarefa, os
responsáveis pensavam de outro modo e lhe ofereceram com
entusiasmo o cargo. O primeiro período de serviço de Brainerd
85
Pr. Delvacyr Bastos Costa

foi em Kaunaumeek, Nova Iorque, onde deveria estudar a língua


com John Sergeant, um missionário veterano que servia ali
perto, em Stockbridge, Massachusetts. John, com sua mulher
Abigail, haviam servido eficazmente durante oito anos entre
os índios, batizando mais de cem convertidos e traduzindo
partes das Escrituras. Que grande oportunidade para um novato
como Brainerd trabalhar e aprender com este missionário
experiente! Mas isso não deveria acontecer. O espírito de
independência de David Brainerd e sua ansiedade em ter seus
próprios convertidos levou-o a lançar-se sozinho à tarefa,
embora ignorasse a língua nativa e estivesse absolutamente
despreparado para a vida selvagem.
Seus primeiros dias como missionário foram solitários
e deprimentes: “Meu coração estava abatido... parecia-me que
jamais teria êxito junto aos índios. Minha alma estava cansada
da vida; eu desejava a morte acima de tudo”. Embora fosse
mais tarde ajudado por um intérprete índio de Stockbridge,
durante várias semanas Brainerd tentou pregar aos índios sem
intérprete. Seus esforços foram inúteis e sua vida miserável:
“Vivo no deserto mais solitário e melancólico, cerca de 19
quilômetros de Albany;... moro com um escocês pobre; a
mulher dele mal fala inglês. Minha alimentação consiste quase
que só de pudim de farinha, milho cozido e pão assado na
brasa... Minha cama é um monte de palha colocado sobre ripas.
Meu trabalho é excessivamente difícil e duro; ando a pé cerca
de dois quilômetros numa estrada péssima, ida e volta quase
que diariamente; pois vivo bem distante dos meus índios”.
86
Crônicas do Deserto

No verão seguinte Brainerd construiu sua própria tenda


perto do povoado indígena, mas sua tentativa de evangelizá-
los continuou sem êxito. Seu primeiro inverno na selva foi cheio
de dificuldade e doença. Em certa ocasião ele ficou perdido
algum tempo na floresta e em outra “ficou muito exposto e
muito molhado por ter caído num rio”. Em março de 1744,
depois de um ano em Kaunauneek, Brainerd pregou seu último
sermão, ele se achava desanimado com sua carreira missionária,
mas apesar de ofertas para ser pastor de igrejas estabelecidas,
ele decidiu continuar com a causa dos índios.
A tarefa seguinte de Brainerd foi na Pensilvânia, ao
norte da Filadélfia na bifurcação do Rio Delaware. Ele foi bem
recebido ali pelos índios e várias vezes teve permissão para
falar-lhes na casa do chefe. O progresso, porém, era lento. Seu
novo intérprete, Tattamy, não só tinha problemas com a bebida
como também não conhecia qualquer conhecimento espiritual,
sendo então absolutamente ineficaz na transmissão da
mensagem de Brainerd. Brainerd considerava suas perspectivas
de ganhar convertidos “tão escuras como a meia-noite”.
Depois de vários meses nessa região do Delaware,
Brainerd viajou para o oeste a fim de entrar em contato com
os índios ao longo do rio Susquehanna. A viagem foi árdua:
“Nós entramos na selva e ali encontramos o caminho mais
difícil e perigoso que qualquer de nós havia visto até então.
Não se enxergava quase mais nada além de enormes montanhas,
vales profundos e rochas medonhas a serem atravessadas”. Para
piorar as coisas, o cavalo de Brainerd caiu num lugar horrível e
87
Pr. Delvacyr Bastos Costa

quebrou a perna, não deixando a ele outra alternativa a não ser


matar o animal e continuar até a casa mais próxima que ficava
a 60 quilômetros de distância. Depois de pregar com pouco
sucesso Brainerd voltou para de onde havia saído, onde, exceto
por viagens frequentes, ele permaneceu durante o seu segundo
ano de serviço missionário.
A doença e a depressão continuaram perseguindo
Brainerd. Suas grandes esperanças de reavivamento entre os
índios havia há muito diminuído. Com exceção de Tattamy e
sua mulher, que foram convertidos e estavam fazendo notáveis
progressos espirituais, Brainerd considerava seu ano naquela
região como pura perda. Sentia-se cheio de culpa por acreditar
que nada fizera em troca de seu custeio e estava tentado a
desistir. A seguir, no verão de 1745, seu ânimo levantou-se um
pouco. Ele ouviu falar de um grupo de índios a 130 quilômetros
para o sul, em Crossweeksug, Nova Jérsey, que mostravam maior
receptividade ao evangelho. Mais uma vez Brainerd se mudou.
Mas nessa ocasião sua sorte iria melhorar. Os índios de Nova
Jérsey mostraram maior boa vontade em ouvir o evangelho.
Dentro de pouco tempo tanto índios como brancos andavam
quilômetros para ouvi-lo pregar. Ansioso por resultados,
Brainerd batizou 25 convertidos em questão de semanas e no
inverno seguinte organizou uma escola.
Os verdadeiros frutos dos esforços de Brainerd se
evidenciaram no verão de 1745, quando houve um
reavivamento entre os índios. Embora Brainerd ainda
dependesse de um intérprete, e os índios compreendessem
88
Crônicas do Deserto

apenas os princípios mais elementares do cristianismo, eles


respondiam a sua pregação e as cenas (carregadas de emoção),
tão características do Grande Avivamento, surgiram
repentinamente entre os índios de Crossweeksung. Como
mostra o seu diário, foi um período de grande júbilo para
Brainerd, enquanto testemunhava os resultados visíveis de vidas
transformadas.

6 de agosto - De manhã fiz uma preleção aos índios


na casa em que morávamos. Muitos deles ficaram
bastante afetados e pareceram surpreendentemente
ternos, de modo que algumas palavras sobre as almas
deles faziam as lágrimas correrem livremente,
produzindo muitos soluços e gemidos.
A tarde, voltando ao lugar onde eu geralmente
pregava, discursei novamente para eles nesse local.
Havia cerca de 55 pessoas ao todo, entre as quais 40
tinham entendimento suficiente para assistir ao culto
divino. Eu insisti sobre I João 4.10: “Nisto consiste o
amor”. Eles pareciam ansiosos para ouvir, mas não
se via nada digno de nota entre eles, exceto sua
atenção, até perto do final de meu discurso. A seguir,
as verdades divinas foram aceitas com grande
influência, produzindo enorme interesse da parte
deles. Só praticamente 3 entre os 40 puderam reprimir
as lágrimas e gritos de amargura.
Todos eles, como se fossem um só, pareciam estar
89
Pr. Delvacyr Bastos Costa

sofrendo angústia interior a fim de alcançar interesse


em Cristo e quanto mais eu falava do amor de da
compaixão de Deus ao enviar seu filho para sofrer
pelos pecados dos homens e quanto mais os convidava
para se achegarem e participarem desse amor, tanto
mais a angústia deles aumentava, pois sentiam-se
incapazes dessa aproximação. Era surpreendente
observar como o coração deles parecia ter sido tocado
pelos ternos e doces convites do evangelho,mesmo não
tendo sido pronunciada palavra alguma que pudesse
causar-lhes terror.
Era tocante ver os pobres índios que poucos dias antes
estavam clamando e gritando em suas festas idólatras
e bebedeiras lascivas, suplicando agora a Deus que os
fizesse interessar-se pelo seu amado Filho! Descobri
duas ou três pessoas que, segundo espero, haviam
tirado consolo dos acontecimentos da noite anterior.
Estas, juntamente com outras que também se sentiram
consoladas estavam juntas e pareciam alegrar-se
muito pelo fato de Deus estar realizando sua obra
com tal poder sobre os demais.

Na primavera de 1746, Brainerd convenceu os índios


dispersos em Nova Jérsey a se reunirem em Crambury, que
ficava próxima e logo depois foi estabelecida uma igreja.
Seguiram-se mais reavivamentos e após um ano e meio os
convertidos chegavam a quase 150. A saúde de Brainerd porém
90
Crônicas do Deserto

acabara. Sua quarta e última viagem de volta a Susquehanna,


embora tivesse mais êxito do que as anteriores, foi demais para
a sua frágil constituição. Ele estava morrendo de tuberculose,
sua obra missionária chegava ao fim.
Depois de passar o inverno na casa de um amigo pastor
em Nova Jérsey, Brainerd viajou para Northampton,
Massachusetts, onde ficou durante os últimos meses de sua
vida na casa de um grande pregador e erudito, Jonathan
Edwards, esperando casar-se com a filha do mesmo, Jerusha.
Esse sonho não chegou porém a concretizar-se. Durante
dezenove semanas Jerusha cuidou ternamente dele, mas em
vão. Brainerd morreu a 9 de outubro de 1747. No mês de
fevereiro que se seguiu, Jerusha juntou-se a ele, morrendo de
tuberculose, aparentemente contraída pelo contato com ele.

91
Pr. Delvacyr Bastos Costa

92
Crônicas do Deserto

Um Deserto em terras Terenas

Depois de enviar meu Currículum Vitae para diversos


seminários e institutos bíblicos, após o fechamento do Instituto
em Cruz Alta, recebi uma correspondência de um Instituto
Bíblico no Mato Grosso do Sul; o Cades Barnéia. Era um
Instituto dirigido por indígenas e voltado para o treinamento
de índios das etnias Terena, Suruí e Xavante. Atendendo ao
convite da carta, fomos conhecer o Cades Barnéia. A instituição
havia sido fundada por missionários americanos nos anos 60,
mas desde os anos oitenta é dirigida por pastores da etnia
Terena.
Chegando lá, fomos recebidos pelo diretor e sua família.
Depois de longas reuniões, fomos convidados a assumir a
Direção Acadêmica. A instituição estava com uma grade
curricular ultrapassada e incompleta. As disciplinas não
possuíam um conteúdo programático estabelecido, eram
ministradas usando-se fragmentos de apostilas e livros da época
em que os americanos ainda dirigiam a instituição. Os
professores, com exceção de um casal de alemães, Pr. Harald e
Rose Senske, que vinham da Aldeia de Taunay uma vez por
semana para lecionar, eram todos oriundos do próprio Cades
Barnéia. A Diretora Acadêmica estava presente nas reuniões
que tivemos e concordou prontamente em entregar a mim sua
função.
Retornamos para Cruz Alta para vender nossos móveis,
uma vez que ganharíamos uma casa mobiliada no Cades
93
Pr. Delvacyr Bastos Costa

Barnéia, definir alguns negócios e retornar para assumirmos


nossa função. Vinte dias depois iniciamos a viagem, para mais
um deserto em nossa jornada.
Quando chegamos no Cades Barnéia, a casa na qual
residiríamos estava ocupada. Tivemos que ficar nove dias
hospedados na casa do diretor. Já na chegada fomos
comunicados que uma das filhas do diretor assumiria a função
de Diretora Acadêmica. A justificativa era que ainda não nos
conheciam suficientemente para nos entregar a função e
preferiam esperar um pouco. Não havia como recuar. Havíamos
vendido tudo o que tínhamos, e ido, como dizem os gaúchos
“de mala e cuia”. Era tarde para arrependimentos, era tarde
para voltar atrás; estávamos novamente no deserto. Tempo
depois fomos descobrir que a antiga Diretora Acadêmica
pertencia a “outra ala política” dentro da Missão Indígena, e
que o diretor não tinha como tirá-la. Como ela entregou
voluntariamente o cargo, o problema estava resolvido. Eu não
tinha quem me defendesse, era um “estranho no ninho”, e
jamais viria ocupar a função para qual fui contratado.
A proposta financeira não era das melhores, mas
descobri que em breve se tornaria bem pior. Foi-nos dito que
nos primeiros seis meses não teríamos um salário definido, mas
que mensalmente iríamos ao supermercado, na cidade, e
faríamos nossas compras e que o tesoureiro do Cades Barnéia
nos acompanharia para pagar a conta. No início do ano seguinte
(2002) teríamos nosso salário definido pela diretoria.
94
Crônicas do Deserto

Foi-nos dada uma casa que apesar de todos os esforços


que fiz, sempre que chovia, parecia um chuveiro. Goteiras por
todos os lados, e como não era forrada, as chuvas com vento,
entravam e molhavam tudo. Muitas vezes dormimos com
plásticos por sobre as cobertas. Os móveis fomos juntando em
depósitos e consertando na medida do possível. Nosso fogão
havia sido abandonado por um professor que fora embora e
estava há alguns anos abandonado num galpão. A Marta passou
dois dias limpando a gordura, poeira e sujeira para deixá-lo em
condições de uso. Apesar disso, sempre que o forno do mesmo
era usado recendia um insuportável odor de urina de rato.
No segundo mês, fomos comunicados pelo diretor que
as condições financeiras não permitiam que o “acordo
financeiro” feito conosco fosse cumprido. Teríamos que “nos
virar” por conta própria. A partir daí iniciamos um período de
dependência exclusiva de Deus. Tínhamos quatro irmãos na
cidade de Cruz Alta que nos enviavam uma oferta mensal,
mas que somadas alcançavam apenas cento e quinze reais.
Muitas vezes vimos milagres acontecerem. Um domingo à
tarde, estávamos com nossa despensa vazia. Conversei com o
diretor do Cades Barnéia e disse-lhe que precisava de duzentos
reais para fazer compras no dia seguinte. A resposta foi a mesma
das outras vezes: Não temos! Entrei em casa e junto com a
Marta dobramos nossos joelhos e apresentamos nossa
necessidade a ele. Neste mesmo dia, nosso querido amigo, pastor
Eliézer Souza, estava pregando na cidade de Ponta Grossa (PR).
Durante um momento de oração antes do início do culto, Deus
95
Pr. Delvacyr Bastos Costa

falou-lhe claramente que levantasse uma oferta, que deveria


me enviar no dia seguinte. Como ele era convidado na igreja,
conversou com o pastor, que também é nosso conhecido, e o
mesmo concordou que a oferta fosse levantada. No dia seguinte
ele depositou o valor integral da oferta levantada: duzentos
reais; o mesmo valor que havíamos pedido ao Senhor. Em
outras ocasiões, o saudoso pastor Juarez Dias, pastor da Igreja
Batista Nacional de Aquidauana, com a qual eventualmente
cooperávamos com estudos e pregações, nos enviava cestas
básicas ou ofertas, que sempre chegavam em momentos
oportunos.
As dificuldades eram enormes. O Cades Barnéia está
localizado próximo à cidade de Anastácio (MS). Diariamente,
levantavas às seis horas da manhã, pegava uma bicicleta,
colocava nelas meus dois filhos, Joni e Jonathan, e pedalava
oito quilômetros até a escola. Uma estrada cheia de areia, que
dificultava e, normalmente, com um forte vento contrário.
Deixando os meninos na escola, pedalava de volta, para lecionar
no Instituto Bíblico. Às onze horas, voltava para buscá-los.
Muitas vezes chorei enquanto pedalava sozinho após haver
deixado meus filhos, ou enquanto ia para buscá-los. Para ir ao
banco, para fazer compras, telefonar, consultar um médico ou
qualquer outra necessidade, era preciso fazer o mesmo trajeto.
Depois de seis meses, o micro ônibus do Cades Barnéia foi
consertado, então a rotina mudou. Levantava as cinco e meia
da manhã, fazia um trajeto de quinze quilômetros buscando
alunos nas fazendas próximas, depois passava no Cades Barnéia
96
Crônicas do Deserto

pegar nossos filhos e de outros professores, para levá-los à escola.


Às onze horas faziam o trajeto inverso. A prefeitura de
Anastácio pagava o diesel para que levássemos os alunos das
fazendas daquela região para a escola.
Os problemas não eram apenas de ordem financeira.
Vivíamos um clima de instabilidade e insegurança. Quase que
diariamente o diretor convocava todos os alunos e professores
para reuniões. Eram longas e cansativas reuniões nas quais
apenas ele falava. Regras eram impostas para na reunião
seguinte serem mudadas. Normas de conduta para alunos e
professores eram definidas, redefinidas e novamente
modificadas. Nas reuniões todos calavam, mas depois, se ouvia
muitas reclamações, logicamente longe do diretor ou de seus
familiares.
A maior pressão, entretanto, era de ordem espiritual.
Sentíamos continuamente um peso no ar. Havia uma atmosfera
maligna, uma sensação estranha, um peso pairando sobre nossas
vidas. Era difícil até mesmo orar. Mesmo sendo uma instituição
evangélica, havia muito misticismo e superstição.
Por duas vezes sofri ataques diretos do inimigo. A
primeira vez saia de casa antes das cinco da manhã para tirar
leite (ordenhava diariamente quatro vacas); ao abrir a porta,
um arrepio percorreu-me todo o corpo: eu não estava sozinho,
havia alguém a me espreitar. Comecei a andar em direção ao
curral, podia ouvir passos e uma respiração ofegante atrás de
mim, mas quando me virava não via ninguém. Eu orava
intensamente mas quase podia ouvir uma gargalhada sinistra,
97
Pr. Delvacyr Bastos Costa

como que a zombar de meus clamores. Em oração intensa,


ordenhei as três primeiras vacas, sempre sentindo aquela
presença maligna atrás de mim; parecia-me que se estendesse
a mão poderia tocar aquele ser. Finalmente o sol apareceu e
com a luz aquela presença maligna sumiu assim como surgira.
Outra ocasião eu estava dentro de casa quando um
terrível mal estar me acometeu; eu estava sendo sufocado por
uma presença maligna. Sai da casa, passando pela cozinha, onde
a Marta preparava o almoço. Ela percebeu que algo não estava
bem e me seguiu. Encontrou-me sentado no chão, encostado
na parede externa da casa. Lembro de ter-lhe dito, quando me
perguntou o que estava acontecendo, que eu estava morrendo.
Era uma sensação desesperadora, sentia a morte me rondando
e não conseguia reagir. A Marta retornou ao interior da casa
orando. Um aluno, chamado Jorge, o único aluno não índio do
Cades Barnéia, passou por ali, após conversar comigo, correu
para sua casa e junto com sua esposa e filhos, iniciaram um
clamor por mim. Cerca de uma hora depois a sensação foi
desaparecendo. Foi uma terrível experiência de confronto com
forças demoníacas.
Certo dia, Sarah, nossa caçulinha, na época com seus
quatro aninhos, estava na cozinha sozinha. Repentinamente
entrou correndo na sala, onde a Marta se encontrava, chorando;
estava apavorada. Depois de um longo período nos braços da
mãe, conseguiu dizer o que havia acontecido. Enquanto
98
Crônicas do Deserto

brincava na cozinha, percebeu alguém na janela. Ao olhar, viu


um homem, segundo ela “muito feio”, com um chapéu pontudo
(como de um bruxo) e um nariz enorme sorrindo para ela.
Certo dia estava me sentindo abandonado. Chorei
muito e perguntei a Deus se havia alguém que ainda lembrasse
de nós. Os contatos com a “civilização” eram esporádicos e
quase sempre por iniciativa nossa. Cartas eram coisa rara e
telefone não havia, a não ser que se fosse à cidade. Um dos
professores chegou da cidade, havia passado no Correio e me
trouxe uma carta. Um menino chamado Guilherme, aluno da
Escola Dominical de uma igreja em Londrina, mal nos
conhecia, mas escreveu, com sua letra irregular, dizendo que
nos amava e que estava orando por nós. Nunca uma carta
chegou em tão boa hora, nunca antes Deus havia respondido a
uma queixa minha com uma carta.
Por outro lado, sabíamos que Deus estava nos usando
naquele lugar. Muitas aulas se tornavam verdadeiros cultos.
Além de lecionar, estávamos sempre conversando com alunos
e outros professores. Podíamos orar com eles, aconselhá-los,
ouvi-los, esclarecer suas dúvidas. Recebíamos também convites
para pregar nas aldeias próximas e sempre que íamos víamos a
mão de Deus operando. A Marta além de lecionar, estava
sempre envolvida com as esposas dos alunos, que normalmente
não assistiam às aulas, mas encontravam nela uma amiga, uma
conselheira e uma professora, que fazia de nossa sala uma sala
de aula.
99
Pr. Delvacyr Bastos Costa

Também tivemos o privilégio de conhecer e conviver


com os missionários Harald e Rose, queridos irmãos, que vindo
da Alemanha para o Brasil, por razões profissionais,
conheceram a Jesus e após formarem-se no Seminário e Escola
de Missões Antioquia, no Vale da Bênção, desenvolvem seu
ministério entre os índios Terena. Foram mais do que
companheiros de ministérios, foram amigos que nos amaram
profundamente e muito nos ajudaram.
Depois de oito meses, recebemos o convite do pastor
José Darling, para retornarmos a Cruz Alta e iniciar, na igreja
que ele pastoreava, uma escola para treinamento de líderes.
Estava chegando ao fim mais um deserto em nossa jornada.

100
Crônicas do Deserto

Adoniram Judson – o terrível Deserto


birmanes

Adoniram e Nancy Judson, que chegaram à Índia em


1812, se associaram durante algum tempo a Carey e
especialmente a seu filho Félix. Os Judson, juntamente com
outros jovens missionários, haviam saído dos Estados Unidos
e tiveram a distinção de serem os primeiros missionários norte-
americanos no estrangeiro. Como tantos outros antes deles,
esses americanos descobriram que a Companhia das Índias
Orientais representava uma barreira intransponível para a obra
missionária e se viram forçados a deixar a Índia. Depois de
meses de complicações e demoras, os Judson se separaram de
seus companheiros e chegaram a Burma, onde deveriam passar
o resto de suas vidas em condições de extrema dificuldade e
penúria, num esforço para levar o evangelho ao povo dessa
terra fechada e pouco convidativa.
Adoniram Judson nasceu em Massachusetts em 1788,
sendo filho de um ministro congregacional. Mal chegara aos
16 anos quando entrou na Universidade de Brow, formando-
se três anos mais tarde (num curso de 4 anos) como orador
oficial da classe. Durante os anos de estudo ele fizera amizade
com um colega, Jacob Eames, que defendia o deísmo, doutrina
contrária ao congregacionalismo conservador em que fora
educado. Mas os pontos de vista de Eames fizeram um forte
impacto sobre o jovem Judson, não mais intelectualmente
satisfeito com a fé possuída pelo pai. Depois de formado, Judson
101
Pr. Delvacyr Bastos Costa

voltou à sua cidade natal, onde abriu uma academia e publicou


dois manuais de ensino. Mas não se sentia feliz. Sem atender
às súplicas dos pais ele resolveu correr o mundo, seguindo para
a cidade de Nova Yorque onde esperava tornar-se autor de
peças teatrais.
A estadia de Judson em Nova Yorque foi curta e
insatisfatória. Depois de poucas semanas ele estava de volta a
Nova Inglaterra, desiludido e frustrado quanto ao seu futuro.
Não tinha um rumo certo quando parou numa estalagem para
passar a noite. Seu sono foi interrompido pelos gemidos fortes
de um homem doente no quarto ao lado do seu. Ao perguntar
pela manhã sobre o infeliz viajante, foi informado que o homem
- Jacob Eames - morrera durante a noite. Foi um choque brutal
para o jovem Judson nos seus 22 anos, transformando-se num
período de meditação e exame de alma, enquanto
vagarosamente se encaminhava para casa.
Havia agitação no presbitério de Plymounth quando
Adoniram chegou de volta em setembro de 1808. Seu pai era
um dos vários ministros envolvidos no estabelecimento de um
novo seminário em Andover que, ao contrário de Harvard e as
outras escolas de teologia da Nova Inglaterra, iria manter-se
nos princípios ortodoxos da fé. Com o encorajamento do pai e
dos outros ministros, Adoniram concordou em continuar sua
busca da verdade nesse novo seminário. Ele foi admitido como
aluno especial, sem profissão de fé, mas depois de poucos meses
fez uma “solene dedicação” de si mesmo a Deus.
102
Crônicas do Deserto

Não muito depois de sua dedicação, Judson leu uma


cópia impressa de uma estimulante mensagem feita por um
ministro inglês. Ficou tão comovido que jurou que ele, Judson,
viria a ser o primeiro missionário americano em terras
estrangeiras. O Seminário de Andover não era uma colméia
de zelo missionário, mas havia outros estudantes interessados,
inclusive Samuel Mills da Faculdade Williams que fora líder
da “Reunião de Oração do Monte de Feno” alguns anos antes.
Esta reunião ao ar livre, um evento não planejado, foi um marco
para as missões norte-americanas no estrangeiro. Um grupo
de alunos da Faculdade Williams, interessados em missões,
conhecidos como a Sociedade dos Irmãos, costumavam reunir-
se do lado de fora para orar. Apanhados por uma tempestade,
eles se abrigaram sob um monte de feno nas proximidades. Foi
ali, debaixo do monte de feno que se comprometeram a dedicar-
se ao serviço missionário. Mills, que se transferira então para
Andover, foi um forte apoio para Judson e os outros alunos de
Andover interessados em missões. Ele chegou a tornar-se um
grande estadista missionário, embora jamais servisse como
missionário no exterior.
O interesse crescente pelas missões entre esse pequeno
grupo de alunos de Andover levou à formação da Junta
Americana de Comissários para as Missões Estrangeiras,
geralmente chamada de Junta Americana. Embora o
entusiasmo fosse grande, a Junta Americana teve um início
tumultuado. Paralisados pela falta de dinheiro, os comissários
enviaram Judson à Inglaterra na esperança de obter fundos
103
Pr. Delvacyr Bastos Costa

através da Sociedade Missionária Londrina. Apesar dos


diretores desta entidade estarem dispostos a patrocinarem
missionários americanos, não queriam de modo algum financiá-
los através da Junta Americana. Judson estava preparado para
oferecer seus serviços e os de seus colegas à SML, mas foi
avisado de uma generosa herança recebida pela Junta
Americana e voltou para casa.
Antes de partir para a Inglaterra, Judson tinha
começado um relacionamento com Ann Hasseltine, mas
conhecida como Nancy. Nancy, da mesma forma que Adoniram,
havia experimentado uma conversão religiosa transformadora
que fez de uma adolescente frívola, uma mulher adulta e séria,
mas vivaz. Ao contrário de Dorothy Carey, Nancy tinha um
grande interesse nos pagãos e insistiu em que sua ida à Índia
não se devia ao apego a um objeto terreno, isto é, Adoniram,
mas por causa de sua obrigação para com Deus... Com a plena
convicção de tratar-se de um chamado... Em fevereiro de 1812,
ela e Adoniram se casaram e 13 dias depois partiram para a
Índia, chegando à Calcutá em meados de junho.
A longa viagem por mar foi mais do que uma lua de
mel prolongada para Adoniram e Nancy, eles passaram muitas
horas estudando a Bíblia - procurando especialmente o
verdadeiro significado do batismo, cujo assunto estivera pesando
na mente de Adoniram. Quanto mais estudava tanto mais se
convencia de que a prática do batismo de crianças por aspersão,
adotada pelos Congregacionais era errada. Nancy ficou a
princípio perturbada com as novas idéias dele, argumentando
104
Crônicas do Deserto

que a questão não era essencial e que mesmo que ele se tornasse
um batista ela não o faria. Depois de profunda investigação,
porém, ela convenceu-se do batismo por imersão e ao chegarem
à Índia, tanto Adoniram quanto Nancy foram batizados por
William Ward em Serampore.
Quando chegou a notícia de que os Judson, assim como
Luther Rice (um dos outros seis missionários enviados à Índia
pela Junta Americana) haviam mudado para o campo batista,
houve um tumulto entre os congregacionais nos Estados
Unidos. Como o seu principal missionário iria desertá-los
depois de tudo quanto tinham investido nele? Os batistas, por
outro lado, ficaram jubilosos e rapidamente providenciaram a
formação de sua própria sociedade missionária e se
encarregaram do sustento dele.
A permanência dos Judson na Índia foi de curta duração.
Eles não podiam competir com a poderosa Companhia das
Índias Orientais. Não podendo continuar ali, eles viajaram para
a Ilha de França, junto à costa oriental da África; mas quando
as perspectivas de trabalho missionário nessa região se
mostraram fracas, eles voltaram à Índia, a caminho de Penang,
na Península Malaia onde esperavam poder conduzir a obra
missionária. Todavia, como não houvesse navio de partida para
Penang e novamente sob ameaça de deportação, os Judson
subiram a bordo de um barco que se dirigia para Burma. É
interessante notar que Burma tinha sido o primeiro ponto
escolhido por Adoniram como campo missionário, até ouvir
105
Pr. Delvacyr Bastos Costa

relatórios amedrontadores acerca do tratamento brutal aplicada


aos estrangeiros.
A chegada dos Judson a Rangoon foi deprimente para
eles. Nancy tivera um filho natimorto durante a viagem e teve
de ser carregada para fora do navio em sua nova terra. Ao
contrário da Índia, Burma não possuía uma comunidade
européia, não havendo sistema de castas. O povo parecia
bastante independente e livre apesar do regime cruel e tirânico
que ali reinava. A pobreza se achava em toda a parte. Nas ruas
estreitas e sujas de Rangoon viam-se fileiras de cabanas
estragadas e havia um senso de opressão por trás dos sorrisos
alegres que os receberam. Os Judson não eram os primeiros
missionários protestantes em Burma. Outros haviam chegado
e partido, mas apenas Félix Carey (o filho mais velho de William
Carey) e sua esposa tinham permanecido; e eles foram embora
logo depois da chegada dos Judson, quando o governo de Burma
ofereceu a Félix um cargo (sobre o que seu pai comentou
amargamente: “Félix encolheu-se, passando de missionário a
embaixador). Mais tarde, Félix voltou à Índia para trabalhar
com o pai e dar excelente ajuda ao trabalho missionário nessa
região.
Depois de dois anos de terem partido dos EUA,
Adoniram e Nancy ficaram finalmente sozinhos para
estabelecer seu próprio trabalho missionário. Eles se instalaram
na grande casa da missão batista em Rangoon, e ali passavam
até 12 horas por dia estudando a difícil língua birmanesa. Nancy,
através do contato diário com as mulheres birmanesas aprendeu
106
Crônicas do Deserto

logo a língua falada; mas Adoniram lutou longamente com a


língua escrita, uma sequência contínua de letras sem pontuação
ou maiúsculas, e sem divisão entre as palavras, sentenças ou
parágrafos.
A linguagem não era a única barreira entre os Judson e
os birmaneses. Eles descobriram que o povo não tinha qualquer
conceito de um Deus eterno que se interessava pessoalmente
pela humanidade e suas primeiras tentativas de ensinar o
evangelho foram desanimadoras. “Você não pode imaginar
como é difícil transmitir-lhes qualquer idéia do Deus verdadeiro
e do caminho da salvação através de Cristo, desde que suas
idéias atuais sobre a divindade são tão inferiores”. O budismo
era a religião de Burma, uma religião de rituais e adoração de
ídolos. “Faz agora dois mil anos desde que Gautama, sua última
divindade, entrou em seu estado de perfeição; e embora ele
não exista mais, eles continuam adorando um cabelo de sua
cabeça, que se acha conservado como uma relíquia num enorme
pagode, aonde os birmaneses vão todo oitavo dia”.
A situação dos Judson como únicos missionários
protestantes em Burma foi breve. Pouco depois de terem
mudado para a espaçosa casa da missão sua privacidade
terminou ao terem de receber George e Phebe Hough e seus
filhos. Hough, um impressor, chegou com sua prensa e seus
tipos e logo estava imprimindo partes das Escrituras que
Adoniram traduzia lentamente. Dentro de dois anos mais duas
famílias chegaram, mas a morte, as doenças e as partidas
precipitadas mantiveram pequeno o grupo missionário.
107
Pr. Delvacyr Bastos Costa

Burma era um campo desanimador para o cultivo do


cristianismo. Ao que tudo indicava, cada semente de progresso
era esmagada antes de lançar raízes. Havia ocasiões em que
surgiam sinais encorajadores de interesse, mas estes logo
desapareciam no momento em que rumores de investigação
oficial surgiam. A tolerância para com os missionários flutuava
de um a outro extremo com a mudança contínua de vice-reis
em Ragoon. Quando os Judson tinham o favor da corte, eles
podiam divulgar livremente o evangelho e os birmaneses
respondiam ao relaxamento do controle; mas quando a
tolerância diminuía, se mantinham quietos, passando o tempo
em traduções na casa da missão.
Desde o primeiro dia em Rangoon, os Judson não
ficaram satisfeitos com a localização do posto missionário, que
eles consideravam muito afastado. Eles estavam em Burma para
ministrar ao povo e queriam que as pessoas tivessem fácil acesso
a eles. Durante algum tempo se mudaram da casa da missão e
viveram entre a população, mas um incêndio devastou a seção
onde moravam e os fez voltar à casa da missão mais protegida.
Eles porém não se achavam satisfeitos. Queriam mesclar-se
ao povo e alcançá-los onde estivessem. Como isto poderia ser
feito numa cultura tão diferente da sua? Um zayat forneceu a
solução ideal.
O zayat era um abrigo aberto para quem quer que
desejasse descansar ou discutir os eventos do dia, ou ouvir
professores leigos budistas que muitas vezes paravam ali. Era
um lugar para descansar e esquecer as pressões do dia, e havia
108
Crônicas do Deserto

diversos desses abrigos em Rangoon. Judson estava convencido


de que um lugar desse tipo o colocaria em contato com o povo,
mas seus planos não puderam ser realizados por falta de fundos.
Finalmente, em 1819, cinco anos após sua chegada em Burma,
ele conseguiu obter uma propriedade a preço razoável, não
muito distante da casa da missão, na Estrada do Pagode, uma
via pública bastante usada, e ele e Nancy começaram a construir
seus zayat (uma cabana de 6 x 6 metros, com uma grande
varanda, colocada sobre colunas a alguns metros do chão). Mas
construir simplesmente um zayat não era suficiente. Adoniram
e Nancy queriam que o povo birmanês se sentisse à vontade.
Eles compareceram então a um culto religioso num zayat
próximo, a fim de familiarizar-se com a maneira de sentar e
outras peculiaridades culturais. Eles compreendiam claramente
que não estavam abrindo um local de reuniões na Nova
Inglaterra, mas um zayat birmanês.
O conceito funcionou. Quase imediatamente, visitantes
que jamais se aproximariam da casa da missão começaram a
aparecer. Embora Adoniram quase não achasse mais tempo
para fazer suas traduções, ele ficou entusiasmado com essa nova
fase do seu ministério e em maio de 1819, apenas um mês
depois de aberto o zayat, Maung Nau fez uma profissão de fé
em Cristo num culto de domingo no zayat repleto de
birmaneses. A pequena igreja birmanesa de Rangoon cresceu
vagarosamente e no verão de 1820 havia dez membros fiéis
batizados. Desde o início, os convertidos birmaneses tiveram
um papel ativo na evangelização: uma mulher abriu uma escola
109
Pr. Delvacyr Bastos Costa

em sua casa, um jovem tornou-se pastor-assistente e outros


distribuíam folhetos. A obra continuou, mesmo depois da
partida dos Judson.
Depois dos problemas com o governo, a febre tropical
era o maior impedimento para o trabalho em Burma. Tanto
Adoniram como Nancy sofriam ataques frequentes de febre
que punham em perigo suas vidas. A morte, como descobriram,
era uma ameaça sempre presente. O menino Roger, que nasceu
um ano depois de terem se estabelecido em Rangoon, encheu
de alegria o coração do casal durante seis meses, sucumbindo
então, repentinamente, vítima da febre. Em 1820 eles saíram
de Rangoon durante vários meses para Nancy tratar-se em
Calcutá. Em 1822 Nancy partiu com Adoniram para uma
licença prolongada por doença que a levou à Inglaterra e de
volta aos Estados Unidos.
Enquanto Nancy se achava ausente, Adoniram
enterrou-se em seu trabalho de tradução, completando o Novo
Testamento em menos de um ano. Nesse intervalo, sua situação
havia mudado drasticamente. O Dr. Jonathan Price, um médico
missionário que trabalhava com Adoniram, recebeu ordens de
apresentar-se diante do imperador em Ava, que ficava a uma
distância de várias semanas rio acima. O conhecimento de
Adoniram da língua birmanesa obrigou-o a acompanhar Price
nessa entrevista importante tendo ele então arrumado com
relutância sua bagagem para a jornada. Durante algum tempo
os dois missionários gozaram do favor da corte real, mas em
princípios de 1824 a situação política em Burma começou a
110
Crônicas do Deserto

parecer contrária e perigosa. Nancy voltara dos Estados Unidos


e se unira a Adoniram em Ava, mas essa reunião durou pouco
tempo. Burma e Inglaterra romperam relações e todos os
estrangeiros foram considerados espiões. Adoniram e Price
acabaram sendo presos e confinados numa cela de morte, onde
ficariam aguardando sua execução.
A vida nessa prisão da morte era medonha. Os
missionários conviviam com criminosos comuns em uma cadeia
suja, infestada por vermes, escura e úmida, com correntes nos
tornozelos. À noite os Caras Marcadas (guardas da prisão cujo
rosto e peito eram marcados por terem sido criminosos
anteriormente) levantavam as correntes prendendo a uma
coluna suspensa no teto, até que apenas as cabeças e os ombros
deles pousassem no chão. Pela manhã, os exaustos prisioneiros
se achavam entorpecidos e duros, mas o dia pouco alívio lhes
dava. A cada dia eram feitas execuções e os prisioneiros nunca
sabiam quem seria o próximo.
O sofrimento de Adoniram afetou Nacy tanto ou mais
que ele mesmo. Ela procurava diariamente as autoridades,
explicando-lhes que por ser cidadão americano, Adoniram nada
tinha a ver com o governo britânico. Algumas vezes as súplicas
e subornos dela eram atendidos, e as condições de Adoniram
melhoravam temporariamente. Mas na maioria das vezes ela
sentia-se impossibilitada de fazer qualquer coisa pelo marido
que definhava na prisão. Para piorar as coisas, Nancy descobriu
que estava grávida. Os únicos pontos brilhantes durante os
meses que se seguiram foram às visitas que conseguia fazer a
111
Pr. Delvacyr Bastos Costa

Adoniram, subornando oficiais e guardas. Suas visitas pararam


durante algum tempo, mas depois a 15 de fevereiro de 1825,
oito meses após a prisão de Adoniram, ela voltou carregando
um pequeno embrulho - a pequena Maria, com menos de três
semanas de vida.
No mês de maio seguinte, quando tropas britânicas
marchavam na direção de Ava, os prisioneiros foram
repentinamente removidos da casa de detenção e forçados a
marchar para um outro local mais ao norte. Presos durante a
maior parte de um ano, sem qualquer exercício, os prisioneiros
não estavam preparados para a marcha acelerada sob o sol
escaldante e alguns não conseguiram chegar vivos. Os pés
machucados de Adoniram logo estavam em carne viva e
sangrando. Enquanto caminhavam, passaram por sobre uma
ponte que atravessava o leito seco de um rio cheio de pedras e
por um momento Adoniram sentiu-se tentado a pular e acabar
com tudo. Seria o meio mais fácil, mas ele venceu a tentação e
continuou marchando, apenas para ser novamente confinado.
Alguns dias depois, Nancy que não tivera notícias da
transferência antecipadamente, chegou ao novo local, tentando
novamente aliviar o sofrimento do marido com suas petições.
Mas seja o que fosse que ela esperasse conseguir foi logo
obscurecido pela doença do bebê e da própria Nancy. Ela ficou
tão mal que não podia mais amamentar Maria e só a compaixão
dos guardas manteve viva a criança. Eles permitiram que
Adoniram saísse da prisão duas vezes por dia a fim de levar a
menina para ser amamentada por outras mulheres da vila. A
112
Crônicas do Deserto

mãe e o bebê foram se restabelecendo aos poucos, mas jamais


voltaram a recuperar por completo a saúde.
Em novembro de 1825, depois de quase um ano e meio
de prisão, Adoniram foi finalmente libertado, a fim de servir
de intérprete nas negociações de paz com os ingleses. Enquanto
trabalhava com os ingleses, os Judson passaram algum tempo
com os oficiais britânicos e pela primeira vez em quase dois
anos sentiram-se felizes. Nancy escreveu a seu cunhado,
“ninguém na terra poderia sentir-se mais alegre do que nós
durante a quinzena que passamos no acampamento inglês”.
Seria o último período de descanso que teriam juntos. Eles
voltaram a Rangoon por um curto período e depois seguiram
para Amherst, onde Nancy ficou só com Maria enquanto
Adoniram voltou para ajudar no término das negociações. As
semanas se transformaram em meses e antes de poder retornar
ele recebeu uma carta tarjada de negro. Nancy, sua esposa amada,
morrera de febre. Alguns meses depois Maria também morreu.
A reação imediata de Judson a morte de Nancy foi
afogar sua tristeza no trabalho. Por mais de um ano ele dedicou-
se febrilmente às traduções e evangelização, mas seu coração
não estava no que fazia. Sob a superfície havia uma pressão de
culpa e sofrimento que precisava ser aliviada. Ele não podia
perdoar-se por não estar com Nancy quando ela mais precisava
de sua companhia e não conseguia livrar-se também da tristeza
avassaladora que parecia crescer a cada instante. À medida que
se intensificava a depressão, seu trabalho foi diminuindo. Ele
começou a entregar-se a longos períodos de meditação, evitando
113
Pr. Delvacyr Bastos Costa

quaisquer contatos sociais. Deixou até de comer com os


missionários na casa da missão. Finalmente, dois anos após a
morte de Nancy, ele cortou todas as amarras com a sociedade e
foi para a selva, onde construiu uma cabana e passou a viver
como um recluso. Adoniram chegou a ponto de abrir uma
sepultura e ficar de vigia ao lado dela dias a fio, enchendo a
mente com pensamentos mórbidos de morte. A desolação
espiritual o envolveu: “Deus é para mim um grande
desconhecido, creio nele, mas não consigo encontrá-lo”.
O colapso mental de Judson felizmente não o marcou
para sempre como acontecera com Dorothy Carey. Não havia
psiquiatria, nem psicanálise, nem terapia em grupo, apenas uma
enorme corrente de amor e oração por parte de seus colegas e
convertidos nativos. Mais importante ainda, havia um
fundamento sólido de fé nele que pode suportar todas as
provações provocadas pelos períodos de dúvida. Aos poucos
ele foi se recobrando da depressão que o paralisara, e ao fazê-
lo adquiriu uma nova dimensão de espiritualidade que
intensificou o seu ministério. Ele começou a viajar pelos
arredores de Bruma ajudando outros missionários nos seus
postos. Onde quer que fosse, a resposta era a mesma - milhares
de indagações, convertidos e sinais de crescimento espiritual.
Ele sentiu um novo interesse em “todo o comprimento e largura
da terra”. Era um sentimento aterrorizante: “Algumas vezes
fico alarmado, como uma pessoa que vê um engenho poderoso
começando a mover-se, o qual sabe que não pode controlar”.

114
Crônicas do Deserto

Por mais gratificante que fosse o ministério itinerante


de Judson, ele sabia que uma tarefa maior precisava ser ainda
executada - completar a Bíblia birmanesa. Essa era uma hora
que exigiria mais do que tempo roubado daqui e dali entre as
viagens. Seria necessário concentração total e isso significava
pelo menos dois anos e manter um ritmo de tradução entre 25
a 30 versículos do Velho Testamento por dia, do original
hebraico para o birmanês - duas línguas tremendamente
complexas. Judson alcançou seu objetivo de alcançar a tradução
inicial, mas restavam anos de trabalho de revisão menos
concentrado à sua frente. Não foi senão em 1840, catorze anos
após a morte de Nancy, que ele enviou a última página de sua
Bíblia birmanesa ao impressor.
Durante esse período, Judson estivera concentrado em
outras coisas além de suas revisões. E, 1834, aos 46 anos, ele
casou-se com Sarah Boardman, uma missionária viúva de 30
anos, que continuara corajosamente no serviço missionário após
a morte de seu marido três anos antes. Eles se ajustaram bem,
mas o trabalho missionário de Sarah diminuiu à medida que
sua família aumentava. Durante os dez anos de seu casamento
ela deu à luz oito filhos. Mas o esforço foi grande demais e em
1845, no ano em que seu último filho nasceu, enquanto viajava
para os Estados Unidos em licença médica, Sarah morreu.
Judson e os três filhos que haviam acompanhado Sarah
e a tragédia que se abateu sobre eles entristeceu muitíssimo o
que poderia ter sido uma alegre reunião com a família e amigos.
Fazia 33 anos desde que Judson vira sua terra natal pela última
115
Pr. Delvacyr Bastos Costa

vez e encontrou mudanças tremendas. Ele não poderia deixar


de ficar impressionado com as cidades suburbanas e
desembarcadouros pesqueiros que se haviam transformado em
grandes cidades e portos marítimos, mas a terra de sua infância
se fora para sempre. Mal reconhecia a zona rural da Nova
Inglaterra, antes familiar. Mas não foram apenas os 33 anos de
progresso que o impediram de voltar silenciosamente aos seus
esconderijos da infância para ocultar sua tristeza. Ele
repentinamente tornou-se uma celebridade. Ao que parece,
todos queriam conhecer e ouvir aquele homem cujo nome era
repetido em cada casa e cujo trabalho missionário se
transformara em lenda. Embora desprezasse a publicidade,
Judson viu-se forçado a satisfazer seus entusiásticos
patrocinadores e começou um circuito cansativo de
conferências. O povo porém decepcionou-se com o seu herói.
Eles queriam ouvir histórias emocionantes de povos e costumes
estranhos, mas tudo o que ele pregava era o evangelho e eles já
o tinham ouvido antes.
Durante suas viagens, Judson foi apresentado a Emily
Chubbock, uma jovem autora de ficção popular que escrevia
sob o pseudônimo de Fanny Forrester. Judson ficou encantado
com seu estilo vivaz, mas ao mesmo tempo surpreendeu-se
pelo fato de o talento tão brilhante de uma cristã professa (e
ainda mais batista) fosse desperdiçado em empreendimentos
seculares. Sua sugestão de que Emily escrevesse uma biografia
de Sarah foi entusiasticamente recebida e a amizade deles
116
Crônicas do Deserto

cresceu rapidamente. Ele pediu-a em casamento em janeiro de


1846, menos de um mês após seu primeiro encontro.
A decisão de casar-se com Emily encontrou oposição.
Ela havia pensado no trabalho missionário quando mais moça
e não havia razão para crer que não se tornasse uma esposa fiel
e uma aquisição valiosa para a Missão de Burma. Mas Judson
era um santo venerado nos EUA protestante e, como tal, as
expectativas a respeito dele eram extraordinariamente elevadas.
Casar-se com uma escritora secular ainda na casa dos vinte
anos, com a metade da idade dele, não era a coisa apropriada a
fazer, decretou o público americano. Mas as críticas acirradas
somente aprofundaram o compromisso deles e, em junho de
1846, os dois se casaram.
No mês seguinte seguiram de navio para Burma,
deixando três dos filhos de Judson aos cuidados de duas famílias
diferentes - para jamais verem novamente o pai. Havia ainda
mais três crianças que tinham sido deixadas em Burma que
nunca conheceriam a mãe que os amamentara na infância. A
saga dos Judson, assim como qualquer outra história
missionária, ilustra o trauma que o trabalho missionário acarreta
para as famílias - o trauma de pequenos seres chorando
angustiados, agarrando-se aos pais, sem compreender por que
estão sendo afastados do único amor e segurança que
conheceram. Não obstante, os filhos de alguma forma se
sobrepuseram a essas provações. Dos cinco filhos que Judson
teve com Sarah que chegaram à idade adulta, dois se tornaram
ministros, um se formou em medicina, outra chegou a ser
117
Pr. Delvacyr Bastos Costa

diretora de uma academia e outro serviu honrosamente no


exército da União até que foi incapacitado no campo de batalha.
Em novembro de 1846, Judson e sua nova esposa
chegaram a Burma. Emily havia suportado bem a viagem, e
estava pronta para tomar o lugar de Sarah da melhor forma
que pudesse. Ela tornou-se uma verdadeira mãe para os
filhinhos de Judson (somente dois haviam sobrevivido para
saudá-los) e mergulhou-se entusiasticamente no estudo da
língua e trabalho missionário, jamais esquecendo seu talento
para escrever. Através de sua pena vieram à luz algumas
descrições vívidas da cruel realidade da vida missionária. Ele
detestava os milhares e milhares de morcegos, mas a maioria
das outras criaturas aceitava tranquilamente: “Somos
abençoados com nossa cota completa de baratas, besouros,
lagartixas, ratos, formigas, pernilongos e percevejos. O
madeiramento da casa está cheio destes últimos e as formigas
marcham por todos os lados em fileiras... umas vinte talvez,
cruzaram por sobre o papel em que escrevo. Só uma barata
veio visitar-me, mas a negligencia dela foi compensada por
uma boa porção de insetos negros do tamanho da ponta de
um dedo - aventureiros sem nome”.
Adoniram e Emily serviram juntos três anos em Burma.
O nascimento de uma menina deu-lhes grande alegria, mas
grande parte do tempo foi tomada pela doença. Na primavera
de 1850, quando Emily estava grávida de outro filho, Adoniram,
gravemente enfermo, partiu numa viagem por mar, esperando
curar-se. Menos de uma semana depois ele morreu e foi
118
Crônicas do Deserto

sepultado no mar. Dez dias mais tarde Emily teve um filho


natimorto e não foi senão em agosto que soube da morte do
marido. No mês de janeiro seguinte, levando a pequena Emily
e os dois filhos pequenos de Judson, ela partiu para Boston a
fim de estabelecer um lar para as crianças nos Estados Unidos;
sua saúde já estava porém abalada e três anos mais tarde morreu,
aos 36 anos de idade.

119
Pr. Delvacyr Bastos Costa

120
Crônicas do Deserto

Um novo Deserto em Cruz Alta

Depois de um período de oásis e refrigério após nosso


retorno para Cruz Alta, retornamos ao deserto. Entendemos
que nosso período junto ao Pr. José Darling havia terminado.
Não tínhamos uma definição, não tínhamos uma direção,
apenas a certeza que nosso trabalho havia terminado.
Recebemos a proposta de começar uma comunidade
independente na cidade, mas não tivemos a confirmação do
Senhor, e embora tenhamos realizado alguns cultos em nossa
casa, acabamos desistindo da idéia.
Encontramos acolhida na igreja pastoreada pelo pastor
José Carlos Peixoto. Homem de Deus, com coração de pastor,
amoroso e dedicado. Retomamos nosso ministério de ensino,
ministrando aulas para um pequeno grupo de alunos em nossa
sala. Firmamos uma parceria com a Faculdade Teológica Cristã
Reformada, de Botucatu (SP) e funcionávamos como Campus
Avançado da mesma. O resultado dessa parceria foram catorze
alunos formados no Curso de Bacharel em Educação Cristã.
Nesse período tivemos a ajuda de pastores da cidade que
ministraram aulas com total dedicação, mesmo sem
remuneração.
Foi um período de intensas lutas e dependência total
do Senhor. Morávamos em uma sala grande, onde funcionara
o laboratório de uma ótica, que nos fora cedida por tempo
indeterminado. Dividimos a mesma com móveis e cortinas mas,
tudo era muito apertado e a ventilação era precária, causando
121
Pr. Delvacyr Bastos Costa

problemas respiratórios em todos, principalmente nas crianças,


e havia ainda muita umidade. Logo a proprietária passou a nos
cobrar aluguel, embora a promessa fosse de nos ceder enquanto
precisássemos. O aluguel era bem caro para as condições do
local, além disso, como ela morava no mesmo pátio, nossa
privacidade era constantemente invadida. Finalmente nossos
amigos Pr. Marco Antônio, Luiz Alberto e Macedo juntaram-
se para pagar o aluguel de uma casa muito bem localizada e
com dependências adequadas para abrigar nossa família.
O deserto estava apenas começando. Meu físico foi
atingido em três ocasiões. Primeiramente durante quatro meses
sofri intensas e dolorosas cólicas renais. Incontáveis foram às
noites e madrugadas que precisei encontrar alguém que me
levasse ao Pronto Socorro, para receber uma injeção de
Buscopan na veia. Depois de alguns meses de tratamento com
muitos remédios e chás caseiros, finalmente consegui expelir o
cálculo. Depois veio a gastrite. Quase não conseguia comer.
Após ingerir qualquer alimento tinha queimações intensas no
estômago; foram meses de tratamento e dores, que finalmente
desapareceram, não sem antes um período de internação. Logo
depois tive, num período de seis meses, dois abscessos
extremamente dolorosos que me impediam de andar, um deles
inclusive exigindo a intervenção cirúrgica.
As mensalidades dos alunos não chegavam a suprir
nossas necessidades básicas, pois o valor que cobrávamos era
simbólico, uma vez que a realidade econômica de Cruz Alta
não nos permitia cobrar o valor real do curso. Estávamos sempre
122
Crônicas do Deserto

recebendo convites para pregações e estudos nas igrejas.


Quando ministrávamos em outras cidades, normalmente
recebíamos ofertas, que minimizavam temporariamente nossa
situação financeira. Mas houve ocasiões em que as coisas
ficaram extremamente difíceis e todos nossos recursos
acabaram.
Numa manhã, enquanto eu observava meu momento
devocional, a Marta chegou até mim, com o rosto molhado
pelas lágrimas e disse que nossa despensa estava completamente
vazia. Havia alguma coisa ainda para o almoço, mas que seria
nossa última refeição. Saí de casa chorando; não sabia o que
fazer nem a quem recorrer. Comecei a caminhar, deixei a cidade
e caminhei às margens de uma rodovia por quase três horas. Ia
andando, chorando, e clamando pelo socorro divino. Bem mais
tarde, retornei para casa. Ainda não tinha encontrado a solução,
mas tinha a convicção que Deus nos havia ouvido e que o
socorro estava a caminho. Pouco depois de haver retornado,
bateram à porta. Era o funcionário de uma empresa que trabalha
com cestas de alimentos. Segundo ele, um pastor da cidade, Pr.
Antônio Carlos, havia ligado e pedido que me fosse entregue a
maior cesta que eles vendiam. Alguns minutos depois, batem
novamente. Luiz Alberto, nosso irmão e amigo, com o porta-
malas do carro cheio de compras. Mais uma vez no deserto o
maná havia caído do céu.
Em outra oportunidade o dinheiro havia acabado
novamente. Liguei para alguns pastores da cidade e tentei
vender minha biblioteca, composta, na época, de cerca de mil e
123
Pr. Delvacyr Bastos Costa

quinhentos livros. Pedia um valor bem abaixo do real. Era meu


maior tesouro, mas também a única forma de conseguir
dinheiro. Mas não consegui vender. O único que realmente se
interessou não teria dinheiro imediatamente. No dia seguinte,
bateram à porta. Mais uma vez, um anjo que atende pelo nome
de Luiz Alberto, estava lá. Com seu sorriso costumeiro, estende-
me um envelope dizendo: “Alguém mandou entregar isso para
você!”. Dentro havia quatrocentos reais.
Foram muitas as dificuldades nesse deserto, mas
também tivemos muitas vitórias e alguns oásis. Nossa casa
estava sempre repleta de pessoas. Crentes ou não, membros de
diversas denominações, pastores, seminaristas, vinham pedir
oração, buscar um conselho, fazer perguntas de cunho bíblico
ou teológico, ou simplesmente conversar. Nos sentíamos úteis
e felizes nesses momentos. E também descobríamos que por
mais difícil que fosse nossa situação, havia gente em situação
ainda pior e que podíamos, de alguma forma, ajudar. Na
condição de presidente do Conselho de Pastores, organizamos
muitos eventos, que resultaram na conversão de pessoas.
Ajudamos alguns pastores a complementarem seus estudos
teológicos, redigimos estatutos para igrejas que estavam se
formando e encaminhamos jovens para seminários internos e
participamos do discipulado de novos convertidos. Na igreja
onde congregávamos, pregávamos, ministrávamos estudos e
aulas na Escola Bíblica Dominical. Tive o privilégio de, em 15
de novembro de 2003, batizar nossos três filhos, que
espontaneamente tomaram essa decisão.
124
Crônicas do Deserto

Outra experiência do período foi um período abençoado


de dois meses passados em Boa Vista, Roraima, onde ministrei
aulas a setenta alunos. Foi um oásis maravilhoso. Embora tenha
ido só e a saudade da família foi enorme, financeiramente foi
um período de abundância, e ministerialmente de experiências
inesquecíveis. Visitei várias aldeias indígenas, preguei em
diversas igrejas, e tive minha primeira experiência internacional
ao receber o convite para pregar em uma igreja na Venezuela.
Nunca um deserto foi tão longo, tão árido, tão
escaldante, mas ao mesmo tempo tão rico de experiências e
crescimento.

125
Pr. Delvacyr Bastos Costa

126
Crônicas do Deserto

Robert Morrison – um herói no


Deserto chinês

Robert Morrison foi o primeiro missionário protestante


a seguir para a China, distinção esta digna de nota considerando
os formidáveis obstáculos que confrontavam os estrangeiros
nessa terra hostil, durante a primeira metade do século XIX. A
oração dele fora no sentido de que “Deus o enviasse para aquela
parte do campo missionário em que as dificuldades fossem
maiores e praticamente insuperáveis segundo as aparências
humanas”. Sua oração foi respondida. Ele perseverou durante
25 anos na China, vendo menos do que uma dúzia de
convertidos, e por ocasião de sua morte havia apenas três
cristãos nativos conhecidos em todo o império chinês.
Morrison nasceu na Inglaterra em 1782, o mais moço
entre oito irmãos. Enquanto ainda criança foi aprendiz do pai
que fabricava formas de madeira usada na manufatura e
conserto de calçados. A vida do jovem Robert foi dura, estando
sempre o olhar vigilante de seu devoto mas severo pai, um
escocês presbiteriano, e havia poucas oportunidades de diversão.
Seu tempo livre era gasto estudando as Escrituras, sob a tutela
de um ministro local. Aos 15 anos, foi convertido e nos anos
que se seguiram seu interesse voltou-se para as missões no
estrangeiro - especialmente quando lia artigos nas revistas
missionárias. Ser missionário era o seu sonho, havendo para
isso apenas um obstáculo - sua mãe. Havia um laço poderoso
de afeição entre eles e Robert cedeu à pressão materna,
127
Pr. Delvacyr Bastos Costa

prometendo não ir para o exterior enquanto ela vivesse. A


demora foi breve. Ela morreu em 1802, quando ele tinha 20
anos. Ele jamais arrependeu-se de sua decisão de esperar,
entesourando para sempre a oportunidade de ter cuidado dela
durante suas últimas horas.
Logo depois da morte da mãe, Morrison seguiu para
Londres a fim de ser treinado no ministério. Ele estudou
durante dois anos e candidatou-se então para o serviço
missionário na Sociedade Missionária Londrina, tendo sido
aceito. A alegria dessa aprovação foi também abafada pela
atitude de sua família e amigos. Por que um jovem ministro
promissor desejaria desperdiçar sua vida num país pagão
quando havia tantas oportunidades para um ministério eficaz
em sua própria pátria? Apesar dos argumentos e súplicas,
Morrison manteve-se firme. A China pesava em sua mente e
uma vez tomada a decisão de que seguiria para lá, surgiu para
ele a oportunidade de estudar com um erudito chinês que
morava em Londres. Porém, sua viagem foi adiada a fim de
arranjar alguém adequado para acompanhá-lo.
Como isso não fosse possível, Morrison planejou viajar
sozinho; mas conseguir passagem para a China não era uma
tarefa simples. A Companhia das Índias Orientais recusou-se
a levá-lo. Finalmente, em janeiro de 1807, quase cinco anos
depois da morte da mãe, ele seguiu para Cantão num navio
americano, via Estados Unidos. Quando chegou aos Estados
Unidos, Morrison avistou-se com o Secretário de Estado, James
Madison, que lhe deu uma carta de apresentação para o cônsul
128
Crônicas do Deserto

americano em Cantão. Foi nos Estados Unidos também que


Morrison teve a sua muito citada conversa com o proprietário
do navio que provocou sarcasticamente o jovem missionário:
“Então, Sr. Morrison, espera realmente causar impressão sobre
a idolatria do grande império chinês?” Ao que Morrison
respondeu: “Não, senhor, mas espero que Deus o fará”.
Morrison chegou a Cantão em setembro de 1807, sete
meses após sua partida da Inglaterra. Foi só então que seus
verdadeiros problemas começaram. Novos estudos da língua
chinesa só podiam ser feitos no maior segredo, e sua presença
em Cantão se achava sob o constante escrutínio da Companhia
das Índias Orientais, cujos oficiais proibiam qualquer atividade
que envolvesse a evangelização dos chineses, por mais superficial
que fosse. Como acontecia na Índia, eles temiam pelos seus
empreendimentos comerciais. Para piorar as coisas, Morrison
tinha pouca escolha além de viver no estilo elevado de oficial
da companhia, um desperdício que o amargurava. A solidão
constituía também uma forte provação. Trabalhar sem um
parceiro já era difícil, mas a falta de notícias por parte de seus
familiares (apesar das malas regulares de correspondência) era
indesculpável e o deprimia desnecessariamente. Um ano após
sua chegada ele escreveu a um amigo: “Recebi ontem sua amável
carta. Ela foi a segunda que chegou, apesar de ter escrito pelo
menos duzentas”. A razão para a falta de cartas da família e
amigos? Estavam ocupados demais.
A permanência de Morrison em Cantão não foi tempo
perdido apesar das restrições que lhe foram feitas. Logo depois
129
Pr. Delvacyr Bastos Costa

de chegar, ele localizou dois católicos romanos convertidos que


estavam dispostos a ensinar-lhe chinês, embora temessem tanto
as autoridades que carregavam um veneno mortal aonde iam a
fim de suicidar-se rapidamente e evitar a tortura que
seguramente sofreriam se fossem descobertos. Morrison
estudou com eles e começou a compilar um dicionário e a
traduzir secretamente a Bíblia. Os oficiais da Companhia das
Índias Orientais ficaram tão impressionados com o seu
dicionário que menos de dezoito meses depois de sua chegada
eles lhe ofereceram o cargo de tradutor. Morrison ficou
perturbado por ter sucumbido ao emprego secular, mas ele sabia
que esse seria o único meio de ter boas relações com a
companhia, e o salário generoso foi mais uma atração.
Ao mesmo tempo em que negociava com a Companhia
das Índias Orientais, Morrison se preparava também para uma
mudança importante em sua vida pessoal. Depois de uma rápida
corte, ele casou-se com Mary Morton, filha de um médico
inglês que na ocasião estava vivendo na China. Não era
permitida a presença de mulheres em Cantão e Morrison
resolveu viver com ela em Macau, um colônia portuguesa, seis
meses por ano e passar o resto do ano em Cantão trabalhando
para a Companhia das Índias Orientais. Em Macau ele
descobriu que os católicos romanos eram mais restritivos que
os oficiais da companhia haviam sido em Cantão.
Os primeiros anos de casamento de Morrison não foram
felizes. Sua separação de Mary, assim como a má saúde e
condição espiritual dela contribuíram pouco para o bem-estar
130
Crônicas do Deserto

de Morrison. Ele confiou a um amigo: “Cheguei ontem a


Cantão... Deixei minha querida Mary doente. Sua mente frágil
muito perturbada... Minha pobre e atribulada Mary, o Senhor
a abençoe... ela anda nas trevas e não tem luz”. A condição de
Mary melhorou por algum tempo, mas em 1815, seis anos
depois de casar-se, sua má saúde obrigou-a a voltar para a
Inglaterra com os dois filhos pequenos. Depois de uma
separação de seis anos, ela e os filhos voltaram para uma breve
e alegre reunião antes de sua morte inesperada, no verão de
1821. No ano seguinte, Morrison separou-se dolorosamente
de sua filha Rebeca, com nove anos e seu filho John com sete.
Ele os mandou de volta para a Inglaterra, “a fim de serem
educados de maneira simples; mas, acima de tudo, aprenderem
a temer ao Senhor...”.
As longas separações de Morrison de sua mulher e
filhos, por mais deprimentes que fossem lhe concederam tempo
precioso para a tradução da bíblica, cuja tarefa ele executou
com incansável energia. Ele ressentia-se do tempo que dedicava
à Companhia das Índias Orientais (apesar de justamente esse
trabalho ter expandido bastante o seu conhecimento da língua),
por considerar-se sempre em primeiro lugar e principalmente
um missionário do evangelho, embora nunca o fazendo
abertamente. Seu primeiro convertido (depois de sete anos de
carreira missionária) foi batizado “longe dos observadores
humanos”, de modo a evitar a ira tanto dos oficiais ingleses
como chineses. Ele sabia muito bem que sua estada na China
dependia da Companhia das Índias Orientais. Isto pôde ser
131
Pr. Delvacyr Bastos Costa

visto em 1815 quando sua tradução do Novo Testamento foi


publicada e os empregadores deram imediatamente ordens para
a sua demissão. A notícia causou ansiedade a Morrison, mas
não chegou a ser demitido, pois concluíram que o trabalho
dele era indispensável à Companhia.
O fato de a Companhia ficar irritada com o trabalho
de tradução de Morrison não o surpreendeu demais, mas o
ressentimento expresso por outros cristãos causou-lhe grande
desgosto. Como é lamentável sequer haver idéia de competição
no empenho de traduzir a Bíblia para o chinês! Mas
infelizmente esse era o caso. Em 1806, mesmo antes de
Morrison ter chegado à China, Josué Maeschman,
companheiro de Carey em Serampore, havia começado a
estudar o chinês com a intenção de traduzir a Bíblia. Quando
Morrison ouviu falar dos planos de Maeschman em 1808, ele
imediatamente escreveu para Serampore mas nunca recebeu
resposta. Maeschman aparentemente queria ser lembrado como
o primeiro a ter traduzido a Bíblia para o chinês. Havia uma
forte rivalidade (embora jamais expressa), incluindo uma
acusação injusta de plágio contra Maeschman por parte de
alguns colegas de Morrison. Maeschman ganhou a corrida no
final, mas a sua tradução, segundo seu próprio filho, “era
necessariamente imperfeita”, sendo valorizada “principalmente
como um memorial ao seu zelo missionário e perseverança
literária” e, poderia ser acrescentado, ao seu orgulho obstinado.
A tradução de Morrison, que foi completamente revista antes
de sua impressão (e portanto mais demorada), era
132
Crônicas do Deserto

consideravelmente melhor e é Morrison e não Maeschman,


que é geralmente lembrado como tendo sido o primeiro a
traduzir a Bíblia em chinês.
Depois de completar sua tradução da Bíblia, Morrison
voltou à Inglaterra em 1824 para as suas primeiras férias em
mais de 17 anos. Embora quase sempre ignorado quando se
achava em Cantão, ele se viu no papel de celebridade na
Inglaterra, assediado por convites para falar. Morrison tinha
interesse em que seu ministério fosse mais positivo do que as
palestras de uma noite concedidas aos missionários e ofereceu
séries de palestras e aulas de chinês para os que desejassem
realmente servir na China. Sua preocupação com as missões e
com o trabalho das mulheres em particular era tanta, que
organizou uma classe especial para estas em sua própria casa.
Em 1826, depois de dois anos na Inglaterra, Morrison
voltou a Cantão, acompanhado por seus dois filhos e sua nova
esposa, Elizabeth. Ele continuou sua tradução de literatura
cristã e sua evangelização clandestina; mas não dispunha de
tempo, sendo feitas cada vez maiores exigências para servir de
mediador entre os interesses comerciais conflitantes da
Inglaterra e China que finalmente culminaram numa guerra.
Em meio aos seus múltiplos afazeres, ele gerou outros quatro
filhos, ficando cada vez mais sobrecarregado pelas
responsabilidades familiares até 1832, quando enviou
entristecido sua mulher e filhos para a Inglaterra. O trabalho
da Companhia continuava exigente e Morrison trabalhou até
suas energias se esgotarem e sua constituição frágil não resistiu.
133
Pr. Delvacyr Bastos Costa

Foi um período deprimente, mas de curta duração. Ele morreu


na China em 1834, antes de ter notícias de que sua família
havia chegado a salvo na Inglaterra. Sua morte coincidiu com
a partida forçada da Companhia das Índias Orientais da China
e com a morte de outro grande missionário pioneiro, William
Carey, que morrera menos de dois meses antes na Índia.

134
Crônicas do Deserto

O Deserto implacável – quando a


morte nos bate à porta

Era um dia como qualquer outro. Não lembro bem o


que estava fazendo quando o telefone tocou. Era meu pai. Com
voz grave e pausada disse-me que havia chegado do médico
com minha mãe. Ela estava com um grave problema cardíaco,
seria operada em breve. Senti um baque terrível em meu peito.
Não posso dizer que foi uma revelação, mas naquele momento
eu sabia que ela estava partindo. Não disse nada ao meu pai,
mas ao desligar o telefone, chorei amargamente. Quando Marta
me encontrou chorando, logo quis saber o que havia ocorrido.
Lembro-me de ter-lhe dito: Minha mãe vai morrer. Ela, ao ser
inteirada da situação, tentou me consolar e citou diversos casos
de pessoas conhecidas que haviam passado por cirurgias
cardíacas e estavam bem, mas eu estava inconsolável.
Os dias passaram e eu não pude ir visitar minha mãe
enquanto ela realizava novos exames e se preparava para a
cirurgia. Ela foi internada na cidade de Pelotas, cerca de
quinhentos quilômetros de Cruz Alta, lá foi operada, e eu
apenas telefonava diariamente em busca de notícias, não tinha
condições de estar com ela. Meu medo é que ela viesse a falecer
sem que eu a visse mais uma vez. A cirurgia foi delicada, mas
transcorreu dentro da normalidade. Alguns dias depois, uma
recuperação aparentemente normal, todos estavam felizes,
faziam planos para seu retorno para casa. Cerca de quinze dias
depois minha mãe estava novamente em casa, na cidade de
135
Pr. Delvacyr Bastos Costa

Santa Maria. Eu continuava apreensivo e angustiado. Trinta


dias após a realização da cirurgia era o batismo de nossos filhos,
meu pai e minha mãe, ainda convalescendo, se fizeram
presentes. Passamos o dia num sítio muito agradável. Culto de
louvor, o batismo num lago (minha mãe assistiu sentada em
uma cadeira à margem e chorou ao ver seu filho batizando
seus três netos), almoço e momentos de lazer. Minha mãe
sentia-se fraca, passou parte do tempo deitada. No dia seguinte
voltou para sua casa.
Alguns dias depois meu pai tornou a ligar. Estava
novamente apreensivo e sua voz revelava tristeza. Minha mãe
retornara ao hospital, desta vez em Santa Maria, e seu estado
era muito delicado. Novamente senti-me sufocado pela
angústia, o momento que eu temia parecia aproximar-se de
maneira inexorável.
Dia quatro de dezembro de 2003. Eu estava almoçando
quando o telefone tocou. Era minha irmã, Eunice, missionária
entre os índios Kayapó no Pará, mas de licença para acompanhar
minha mãe desde sua primeira internação. Com a voz
entrecortada por soluços ela contou-me que nossa mãe estava
muito mal (ela também é enfermeira, sabia o que dizia) e que
na noite anterior, com febre alta, delirou a noite toda e, em
seus delírios chamava meu nome. Ao acordar, suas primeiras
palavras foram: “Como queria que meu filho viesse me ver”.
Imediatamente iniciamos os preparativos para a viagem. Ao
cair da tarde chegamos ao hospital e foi-me permitido entrar
no quarto para vê-la por alguns minutos. Minha irmã mais
136
Crônicas do Deserto

nova, Ana, também enfermeira, passou a noite com ela e na


manhã seguinte me dirigi ao hospital para ficar com minha
mãe durante aquele dia. Ela estava animada. Conversamos
muito; relembramos alguns fatos de nossas vidas, falamos das
crianças, de minha colação de grau que estava se aproximando
(já havia entregue minha monografia de Mestrado para a banca
julgadora), etc. Depois ela ficou séria; disse-me que o “vale que
estou passando é muito profundo e escuro, mas já pedi ao Pastor
que me tire daqui...” Ela estava sentada em uma poltrona e eu
assentado num banquinho, com seus pés em meu colo,
massageando-os, pois ela reclamara que eles estavam frios.
Lutando contra meus temores, tentei conforta-la dizendo que
em breve ela estaria em casa, plenamente recuperada, mas ela
parecia saber que o final da jornada estava muito próximo e
que em breve estaria na Casa do Pai. Repetiu mais uma vez
que havia pedido ao Pastor para levá-la para fora daquele vale.
A seguir, por estar com dois tubos de soro, pediu-me
que a acompanhasse ao banheiro, quando retornávamos, ela
sentiu-se mal. Tomei-a em meu braços para deitá-la e senti
seu corpo estremecer e depois amolecer. Havia uma enfermeira
no quarto, que imediatamente acionou uma equipe médica.
Em poucos segundos o quarto estava cheio de médicos e
enfermeiras e eu tive que sair. Enquanto aguardava a chegada
de meu pai e irmãs a quem havia chamado, eu chorava e lutava
com Deus em oração. Um médico me procurou e disse que ela
havia tido uma parada cardíaca, mas havia sido reanimada. O
deserto não terminara, era apenas uma miragem. Seu estado
137
Pr. Delvacyr Bastos Costa

era muito grave. Antes que meu pai e irmãs chegassem ela teve
uma segunda parada. Por duas horas oramos e choramos
abraçados no corredor em frente ao quarto, enquanto minha
mãe era reanimada para logo em seguida seu coração voltar a
falhar. Meu pai fez uma oração ao chegar. Oração de homem
que conhece o deserto. Agradeceu a Deus por aquela que havia
lhe acompanhado por 41 anos. Agradeceu a Deus pelos
momentos felizes passados juntos, pelos desertos vencidos;
agradeceu por nós, os filhos, pelo ministério que ela
desenvolvera a seu lado. Depois, com lágrimas disse ao Senhor
o quanto a amava, o quando queria que ela continuasse conosco,
mas que o Senhor poderia levá-la, se essa fosse sua vontade ou
se isso fosse o melhor para ela. Do lado de fora aguardávamos,
lá dentro a batalha contra a morte continuava. Foram sete
paradas cardíacas e seis vezes a equipe médica a reanimou. Mas
a luta era perdida, para nós que ficamos; ela havia alcançado a
sua última e maior vitória, deixava de peregrinar pelos desertos
da vida e retornava a Casa daquele que tanto amara.
Exatamente um ano depois iríamos enfrentar uma nova
batalha, desta vez com nosso filho Jonathan. Era um sábado
pela manhã e ele havia chegado a pouco da casa de um
amiguinho onde dormira. Queixou-se de fortes dores
abdominais e vomitou. Medicamos em casa mesmo e o dia
passou com ele deitado, queixando-se de dores. Na manhã do
domingo o levei ao médico. “Não é nada grave”, disse-me o
médico e receitou um remédio para gases. À noite ele estava
pior. Retornei ao hospital. O médico que o examinou, deixou-
138
Crônicas do Deserto

o por duas horas no soro e pediu alguns exames. No dia seguinte


colhemos o material (sangue e urina). Apenas na terça-feira o
resultado ficou pronto. Levamos ao consultório de uma doutora
muito conceituada, que após examiná-lo, ordenou que o levasse
imediatamente ao hospital, ele estava com uma infecção
altíssima. Internado, uma nova série de exames confirmava a
infecção, mas não sua causa. Exames de ultra-sonografia e
Raios-X não acusavam nada anormal.
Durante cinco dias Jonathan esteve no hospital gritando
dia e noite com dores intensas, apesar da alta dosagem de
antibióticos a infecção não cedia. Dois médicos se revezavam
nos cuidados com ele, mas não conseguiam descobrir o que
estava acontecendo. Ele já não se alimentava mais, estava sempre
com dores, segundo ele a barriga “pegava fogo”. No sexto dia,
um cirurgião veio me procurar pedindo autorização para uma
cirurgia exploratória. Quando fizeram a incisão descobriram
sua cavidade intestinal totalmente tomada pela infecção,
incluindo seu intestino e bexiga. Descolaram o intestino e
descobriram que seu apêndice, “escondido” entre a bexiga e o
intestino, estava supurado. Depois o cirurgião me disse que
deveria estar assim a cerca de dez dias e que somente por um
milagre não o havíamos perdido.
A recuperação foi rápida, e depois de sete dias Jonathan
pode voltar para casa. Cinco dias depois viajamos para passar
o Ano Novo com meu pai. Foi uma viagem tranquila e tivemos
uma noite muito agradável assim como primeiro dia de 2005.
Dois ou três dias depois Jonathan queixou-se de dores
139
Pr. Delvacyr Bastos Costa

novamente. Levei-o imediatamente ao hospital. O médico de


plantão ordenou a internação imediata e pediu uma ultra-
sonografia. Momentos após chegar com ele ao quarto entrou
um médico cirurgião. Queria saber por quem, quando e por
que ele havia sido operado. Explicou-me que seu intestino havia
sido totalmente retirado para a cirurgia e limpeza da cavidade
intestinal, mas na hora de o recolocarem não haviam feito
corretamente. Jonathan estava com sete pontos de oclusão
intestinal e teria que ser operado na manhã seguinte. Ele ainda
manifestou-se surpreso com o fato de nosso filho não estar
vomitando fezes.
Quando o médico saiu do quarto, abracei meu filho e
juntos choramos longamente. Depois eu lhe disse que iríamos
orar e que Deus haveria de ouvir nossa oração e ele não
precisaria passar por uma nova cirurgia. Deixando meu filho
aos cuidados de minha irmã, fui para a casa de meu pai e por
telefone contatei com diversos pastores do Brasil inteiro, bem
como amigos e irmãos em Cristo. Pedi-lhe que levantassem
um clamor naquela noite e que o Jonathan fosse
milagrosamente curado. Retornei ao hospital para passar a noite
com meu filho. Meu coração estava em paz! Eu sabia que não
estávamos sozinhos, e que aquele deserto estava terminando.
Dormi uma noite absolutamente tranquila. Era bem cedo,
talvez umas seis horas da manhã, quando acordei com aquela
vozinha me chamando: “Pai, preciso ir ao banheiro”. O milagre
havia ocorrido. Faltava apenas a confirmação do médico. Por
volta das oito e meia ele entrou no quarto, sorrindo, tentando
140
Crônicas do Deserto

passar tranquilidade ao Jonathan: “Então meu filho, pronto?


Deixe-me ver como você está”. Levantando sua camiseta
começou a examiná-lo. Seu semblante foi mudando, ele
procurava algo que não estava encontrando... tornou a apalpar,
depois virou-se para mim e perguntou o que havia ocorrido,
pois não conseguia entender como o intestino dele estava vazio.
Eu lhe contei que havíamos orado e que Deus havia atendido
nosso clamor. Balançando a cabeça atônito ele deixou o quarto.
Pouco depois entrou uma enfermeira dizendo que o Jonathan
podia voltar para casa, que não haveria cirurgia alguma porque
algo “estranho” havia ocorrido.

141
Pr. Delvacyr Bastos Costa

142
Crônicas do Deserto

Aggie - quando se tomba no Deserto


Relato tirado da Internet

Em 1921, dois jovens casais de Estocolmo, na Suécia,


responderam ao chamado de Deus para o campo missionário
africano. Eram membros da Igreja Pentecostal Filadélfia, a qual
enviava missionários para o mundo todo. Durante um especial
culto missionário, estes dois casais receberam um chamamento
para irem para o Congo Belga, que agora é o Zaire.
Os seus nomes eram David e Svea Flood, e Joel e Bertha
Erickson. Svea Flood media apenas um metro e quarenta e
dois centímetros de altura, e era uma cantora bem conhecida
na Suécia. Mas os dois casais abandonaram tudo para oferecer
as suas vidas para o evangelho.
Ao chegar ao Congo Belga, estabeleceram contato com
o posto missionário local. A seguir, pegaram facões de mato e
literalmente foram abrindo caminho para dentro do interior
do Congo, infestado de insetos. David e Svea tinham um filho
de dois anos, David Jr., e eles tinham de carregá-lo nas costas.
Ao longo do caminho, as duas famílias pegaram malária. Mas,
continuaram indo adiante com um grande zelo, prontos para
serem mártires pelo Senhor.
Finalmente, chegaram a uma certa aldeia no interior.
No entanto, para sua surpresa, o povo não permitiu que eles
entrassem. Disseram aos missionários: “Não podemos permitir
a entrada de nenhuma pessoa branca aqui, pois isso será ofensa
143
Pr. Delvacyr Bastos Costa

para os nossos deuses.” Então as famílias dirigiram-se para uma


segunda aldeia - mas lá também foram rejeitados.
A estas alturas, não havia mais aldeias na região. As
famílias esgotadas não tinham escolha a não ser se fixarem
naquele local. Então, abriram uma clareira no meio da floresta,
e construíram cabanas de barro, nas quais estabeleceram os
seus lares.
Com o passar dos meses, todos eles começaram a sofrer
de solidão, de doenças e de desnutrição. O pequeno David Jr.
se tornou enfermiço. E eles não possuíam quase nenhum
relacionamento com quaisquer dos aldeãos.
Finalmente, após cerca de seis meses, Joel e Bertha
Erickson resolveram voltar para o posto missionário. Eles
insistiram para que a família Flood fizesse o mesmo, mas Svea
não podia viajar, pois havia ficado grávida recentemente. E agora
a sua malária havia piorado. Além de tudo isto, David disse:
“Desejo que a minha criança nasça na África. Eu vim para dar
a minha vida aqui.” Então, a família Flood simplesmente se
despediu, e os seus amigos iniciaram a volta de cento e sessenta
quilômetros, abrindo caminho pelo mato.
Durante vários meses Svea suportou uma febre que
produzia delírios. Contudo, durante todo aquele tempo, ela
fielmente ministrou a um menininho que veio para os ver,
procedente de uma das aldeias que havia por perto. O menino
foi o único convertido da família Flood. Ele trazia as frutas da
família, e à medida que Svea lhe ministrava, ele simplesmente
sorria de volta para ela.
144
Crônicas do Deserto

Com o tempo, a malária de Svea se agravou tanto, que


ela precisou ficar acamada. Ao chegar o tempo para nascer a
criança, ela deu à luz uma saudável menina. Mas em uma
semana, a mãe veio a falecer. Em seus últimos momentos, ela
cochichou para David: “Dê o nome de Aina para a nossa filha.”
E então, morreu.
David Flood foi profundamente abalado pela morte
de sua esposa. Reunindo todas as suas forças, ele pegou uma
caixa de madeira e fez um caixão para Svea. A seguir, em uma
primitiva sepultura nas encostas da montanha, ele enterrou a
sua amada esposa.
Ao se colocar de pé ao lado da sepultura dela, ele olhou
para o seu menino ao lado dele. Aí, ouviu o choro de sua filha
recém-nascida, na cabana de barro. E de repente, a amargura
encheu o seu coração. Uma ira cresceu dentro dele - e ele não
conseguia a controlar. Ele entrou em fúria, gritando: “Por que
o Senhor permitiu isto, Deus? Nós viemos aqui para dar as
nossas vidas! A minha esposa era tão bonita, tão talentosa. E
aqui ela jaz, morta com vinte e sete anos de idade.”
“Agora, tenho um filho de dois anos que eu mal posso
cuidar, e ainda mais esta bebezinha. E após mais de um ano
nesta selva, tudo o que podemos mostrar como resultado é um
garotinho da aldeia, que provavelmente nem entende o que
temos lhe falado. O Senhor falhou comigo, Deus. As nossas
vidas foram desperdiçadas!”
Nesta ocasião, David Flood empregou alguns homens
das tribos locais como guias, e levou os seus filhos para o posto
145
Pr. Delvacyr Bastos Costa

missionário. Ao ver a família Erickson, ele deixou escapar


raivoso: “Vou me embora! Não posso cuidar destas crianças
sozinho. Eu vou levar o meu filho comigo de volta para a Suécia
- mas vou deixar a minha filha aqui com vocês”.E assim, ele
deixou Aina para que os Ericksons a criassem.
Durante a viagem de volta para Estocolmo, David
Flood ficou sobre o convés do navio se agitando com Deus.
Ele havia dito a todo mundo que estava indo à África para ser
mártir - para ganhar as pessoas para Cristo, sem importar quais
fossem os custos. E agora ele estava de volta como um homem
derrotado e arrasado. Ele acreditava que havia sido fiel - mas
que Deus o havia recompensado com total negligência.
Quando chegou a Estocolmo, ele resolveu se dedicar
aos negócios de importação para fazer fortuna. E ele preveniu
a todos em torno dele para nunca mencionar Deus na sua
presença. Quando isto acontecia, ele entrava em fúria, e as veias
saltavam do seu pescoço. Com o tempo, ele começou a beber
intensamente.
Pouco depois de ele deixar a África, os seus amigos
Erickson faleceram de repente (possivelmente envenenados
pelo chefe da aldeia local). Então, a pequena Aina foi entregue
a um casal americano - algumas pessoas queridas, chamadas
Arthur e Anna Berg. A família Berg levou Aina consigo para
uma aldeia chamada Massisi, no norte do Congo. Lá,
começaram a chamá-la de “Aggie”. E logo a pequena Aggie
aprendeu a língua swahili e brincava com as crianças do Congo.
146
Crônicas do Deserto

Ficando só a maior parte do tempo, Aggie aprendeu a


brincar de jogos de imaginação. Ela imaginava que tinha quatro
irmãos e uma irmã, e deu a todos eles nomes imaginários. Ela
arrumava a mesa para os seus irmãos, e conversava com eles. E
imaginava que a sua irmã estava continuamente procurando
por ela.
Quando a família Berg foi de férias para a América,
eles levaram Aggie com eles, para a região de Minneápolis.
Com o desenrolar dos acontecimentos, eles acabaram ficando
lá. Aggie cresceu, e casou-se com um homem chamado Dewey
Hurst, o qual mais tarde tornou-se o diretor da Faculdade
Bíblica do Noroeste, a escola das Assembléias de Deus na cidade
de Minneápolis, nos Estados Unidos.
Aggie nunca soube que o seu pai havia se casado
novamente - desta vez com a irmã mais nova de Svea, uma
pessoa que não servia a Deus. E agora, ele tinha cinco filhos
além de Aggie - quatro filhos e uma filha (exatamente como
Aggie havia imaginado). Nesta época David Flood havia se
tornado um alcoólatra crônico, e com grave perda da visão.
Durante quarenta anos Aggie tentou localizar o seu
pai - mas as suas cartas nunca foram respondidas. Finalmente
a escola bíblica concedeu à ela e ao seu marido passagens de
ida e volta para a Suécia. Isso daria a ela a oportunidade de
encontrar o seu pai pessoalmente. Após haverem cruzado o
Atlântico, o casal passou um dia de parada temporária em
Londres. Eles resolveram fazer uma caminhada, e então
andaram pelo auditório do Royal Albert Hall. Para a sua alegria,
147
Pr. Delvacyr Bastos Costa

lá estava ocorrendo uma convenção de missões pentecostais


das Assembléias de Deus. Eles entraram, e ouviram um
pregador negro testificando a respeito da grande obra que Deus
estava fazendo no Zaire - o Congo Belga!
O coração de Aggie saltava. Após a reunião, ela se
aproximou do pregador e perguntou: “O senhor alguma vez
conheceu os missionários David e Svea Flood?” Ele respondeu:
“Sim. Svea Flood me levou ao Senhor quando eu era um
garotinho. Eles tinham uma filha bebezinha, mas eu nunca
soube o que sucedeu à ela.” Aggie exclamou: “Eu sou a menina!
Eu sou Aggie - Aina!”
Quando o pregador ouviu isto, ele apertou as mãos de
Aggie, abraçou-a e chorou de alegria. Aggie mal podia acreditar
que este homem era o garotinho convertido, a quem a sua mãe
havia ministrado. Ele havia crescido e se tornado um evangelista
missionário para o seu próprio país - o qual agora incluía
110.000 cristãos, 32 postos missionários, várias Escolas Bíblicas
e um Hospital de 120 leitos.
No dia seguinte Aggie e Dewey partiram para
Estocolmo - e a notícia de que eles estavam chegando já se
espalhara. Á estas alturas, Aggie sabia que tinha quatro irmãos
e uma irmã. E para a sua surpresa, três dos seus irmãos foram
saudá-la no hotel. Ela perguntou a eles: “Onde está David, o
meu irmão mais velho?” Eles simplesmente apontaram em
direção a uma figura solitária, sentada sobre uma cadeira. O
seu irmão, David Jr., era um homem enrugado, de cabelos
grisalhos. Igual ao seu pai, ele havia se tornado amargurado, e
quase destruiu a sua vida com o álcool.
148
Crônicas do Deserto

Quando Aggie perguntou a respeito de seu pai, os seus


irmãos se ruborizaram com raiva. Todos eles o odiavam.
Nenhum deles falava com ele já há alguns anos.
Aí, Aggie perguntou: “E a minha irmã?”. Eles lhe deram
um número telefônico, e Aggie imediatamente fez a ligação. A
sua irmã atendeu o telefone - mas quando Aggie disse quem
ela era, a linha subitamente desligou. Aggie tentou ligar
novamente, mas não obteve resposta.
Em pouco, contudo, a sua irmã chegou ao hotel, e lançou
os seus braços em torno dela. E lhe disse: “Eu sonhei com você
a minha vida toda. Eu costumava abrir um mapa mundi na
mesa, colocar um carrinho de brinquedo sobre ele, e fingia que
dirigia por toda parte para lhe achar.”
A irmã de Aggie também desprezava o seu pai, David
Flood. Mas prometeu ajudar Aggie a encontrá-lo. Então, saíram
de carro em direção à uma região empobrecida de Estocolmo,
onde entraram por um edifício deteriorado. Quando bateram
à porta, uma mulher as recebeu.
Lá dentro, garrafas de bebidas alcoólicas estavam caídas
por toda parte. E deitado sobre uma cama em um canto, estava
o seu pai - o antigo missionário David Flood. Ele agora tinha
setenta e três anos de idade e sofria de diabetes. Ele também
havia sofrido um derrame cerebral, e tinha catarata em seus
dois olhos.
Aggie pulou para o seu lado, gritando: “Papai, sou a sua
filhinha - aquela que o senhor deixou na África.” O velho virou
e olhou para ela. Lágrimas formaram-se em seus olhos. Ele
149
Pr. Delvacyr Bastos Costa

respondeu: “Eu jamais desejei entregar você para os outros. Eu


simplesmente não conseguia cuidar de vocês dois.” Aggie
respondeu: “Tudo bem, papai. Deus cuidou de mim.”
Subitamente, o rosto de seu pai se cobriu de trevas.
“Deus não cuidou de você!” ele vociferou. “Ele arruinou com
toda a nossa família! Ele nos levou para a África, e a seguir nos
atraiçoou. Não houve nenhum resultado do tempo que
passamos lá. Foi um desperdício de nossas vidas!”
Aggie então contou-lhe a respeito do pregador negro
que ela acabara de encontrar em Londres - e de como o país
havia sido evangelizado através dele. “É tudo verdade, papai”,
ela dizia. “Todo mundo está sabendo a respeito daquele
garotinho que se converteu. A história chegou a todos os
jornais.”
De repente o Espírito Santo caiu sobre David Flood -
e ele se quebrantou. Lágrimas de dor e arrependimento
desceram pelo seu rosto - e Deus o restaurou.
Pouco tempo após o encontro deles, David Flood
morreu. E apesar de haver sido restaurado para o Senhor, ele
deixou atrás dele apenas ruínas. Além de Aggie, o seu legado
eram cinco filhos - nenhum deles salvo, e todos tragicamente
amargurados.
Aggie escreveu toda a história. No entanto, enquanto
trabalhava nisto, ela desenvolveu câncer. Logo após haver
terminado os seus escritos, ela partiu para ficar com o Senhor.

150
Crônicas do Deserto

Um Deserto na metrópole

Recebemos o convite de um pastor amigo nosso para


mudarmos para Campinas e assumirmos a área de ensino em
sua igreja. Dois desejos antigos pareciam estar se realizando.
Eu havia morado em Campinas quando menino, e sempre tive
o desejo de retornar. O pastor que nos fez o convite foi o mesmo
que pediu à União de Ministros Batistas Independentes minha
ordenação ao ministério em 1993. Havíamos trabalhado com
ele e guardávamos boas recordações daquela época. Muitas
vezes Marta e eu comentamos sobre a possibilidade de um dia
voltarmos a desenvolver um ministério juntos.
Campinas é uma metrópole, uma cidade grande, mais
de um milhão de habitantes. Uma cidade muito bonita, com
todos os recursos de uma capital, mas ainda conservando seu
ar e jeito de cidade de interior. Em termos de emprego e
qualidade de vida está em oitavo lugar no Brasil, ficando atrás
apenas de algumas capitais. Em nada lembra um deserto. Parece
mais um oásis embora para alguns tenha se tornado a própria
terra prometida.
Em janeiro de 2005 mudamos para Campinas. Era uma
igreja nova, com apenas dois anos de existência, e parecia estar
crescendo. Cultos animados e bem frequentados. Iniciamos,
logo após nossa chegada, o treinamento de professores para a
Escola Bíblica Dominical e a elaboração de um currículo para
a mesma. Já no mês seguinte iniciamos o trabalho do Ministério
infantil, liderado pela Marta. Tínhamos seis classes divididas
151
Pr. Delvacyr Bastos Costa

por faixa etária, no domingo pela manhã, e o culto infantil,


com duas classes à noite. Eu trabalhava com jovens e adultos,
além de pregar nos cultos. Havia ainda o projeto de criação de
um Instituto Bíblico.
Depois de algumas semanas, percebemos que as coisas
não corriam tão bem como aparentavam. A igreja estava
passando por uma séria crise de relacionamentos e encontrava-
se dividida em dois grupos. Além disso havia uma disputa muito
grande por cargos e ministérios entre alguns membros. A
f requência já havia sido muito melhor, e tomamos
conhecimento que muitos já haviam deixado a igreja.
Pouco podíamos fazer; além do pastor e sua esposa,
também pastora, havia mais um pastor de tempo parcial. Na
hierarquia eu era o quarto e recém chegado. Eu podia orar, e o
fiz. E também ficar ao lado do pastor, sem tomar partido de
nenhum dos grupos; também o fiz.
Mas, infelizmente, a frequência continuou diminuindo.
Famílias inteiras abandonavam a igreja a cada semana. As
reuniões, tentando encontrar uma solução, uma reconciliação,
não estavam surtindo efeito algum.
Com a saída de um número tão grande de membros, as
finanças foram atingidas. As entradas caíram sensivelmente. E
os compromissos financeiros continuavam os mesmos: Aluguel
do salão de cultos, de três casas pastorais e prebenda dos
pastores. Seis meses depois de nossa chegada, fomos chamados
para uma reunião com os demais pastores e nela comunicados
152
Crônicas do Deserto

que não havia mais condições financeiras de nos manter,


estávamos demitidos.
Era já tão conhecido deserto nos convidando a mais
uma dura caminhada por suas escaldantes areias.
Inicialmente fui trabalhar com vendas de assinaturas
de uma revista evangélica. Visitava igrejas em Campinas e
realizei algumas viagens para o Paraná e Rio Grande do Sul.
Até que os resultados não eram tão ruins, mas... Não sei se por
má administração ou o que houve, mas as revistas começaram
a não sair, os contratos de assinatura não cumpridos, assinantes
ligando para reclamar e o pior é que muitas vezes ligavam para
o vendedor, isto é, para mim. Não deu para continuar; eu não
poderia continuar vendendo algo que sabia que não seria
entregue.
Quando estava parando com as vendas de assinaturas,
fui pregar, a convite de um amigo, na cidade de Contagem,
MG. Lá fui, encontrei um amigo de longa data, que me falou
de um empresário cristão que morava em Campinas e era muito
amigo seu. Passou-me o número do telefone dele e disse-me
que entrasse em contato. Liguei alguns dias depois e ele me
convidou para almoçarmos. No dia marcado fui até o prédio
onde ele tem seu escritório. Apesar de ter chegado no horário
combinado, precisei esperar no saguão por uma hora e quarenta.
Ele possui uma empresa de logística, conversamos sobre a
empresa, sobre teologia, igrejas, etc. Depois ele levou-me para
conhecer o escritório e, por causa de uma reunião, convidou-
me para voltar ainda naquela mesma semana para continuarmos
153
Pr. Delvacyr Bastos Costa

nossa conversa. Retornei e ele me convidou para trabalhar com


ele fazendo o trabalho de supervisão numa rede de lojas para
qual presta serviço. Comecei a viajar. Viagens longas,
extremamente cansativas. O pior é que ao término de cada
viagem ele me chamava para conversarmos e apresentava uma
nova proposta salarial. Foram quatro viagens. Além da expressa
recomendação que não tivesse nenhuma conversa de “teor
religioso” em minhas visitas às lojas, as viagens acabaram não
me rendendo financeiramente. Na última, dormi no carro e fiz
apenas uma refeição por dia para poder levar algum dinheiro
para casa; no final dela pedi demissão.
A essa altura estávamos congregando na Igreja Batista
Filadélfia do bairro Bonfim, em Campinas; igreja que meu pai
pastoreou nos anos 70 e na qual fui batizado em 17 de abril de
1977. O pastor, Wilson Guimarães, nos recebeu com muito
carinho e nos concedeu oportunidades para ministrarmos.
Também comecei a lecionar no Seminário Teológico Batista
Independente e no Instituto Bíblico Rhema de Nova Odessa.
No Batista Independente leciono no curso modular,
trimestral, e o Rhema nos dá uma ajuda de custo, de forma que
não conseguimos sobreviver apenas das aulas. Desafiamos um
pequeno grupo de irmãos a nos ajudarem financeiramente nessa
fase de transição. É um grupo pequeno, mas muito fiel e que
também intercede por nós e por nosso ministério.
Precisamos deixar a grande e confortável casa na qual
morávamos, não tínhamos condições de continuar pagando o
aluguel cujo valor era elevado. Nos foi cedida uma pequena
154
Crônicas do Deserto

casa nas dependências do Seminário Batista Independente.


Estávamos pagando o financiamento de nosso carro, mas as
parcelas eram muito altas e estávamos com enormes
dificuldades para pagá-las em dia. Tentei vende-lo, mas o valor
do financiamento era maior do que o valor do carro; acabamos
tendo de entrega-lo e perdendo cerca de seis mil reais que
havíamos pago.
Por diversas vezes surgiram possibilidades de assumir
um pastorado: Mato Grosso, Paraná, Minas Gerais, São Paulo.
Algumas vezes chegamos bem perto, tudo parecia real, parecia
concreto. Mas quando achávamos que havíamos encontrado
um oásis, descobríamos que era apenas mais uma miragem,
por um ou outro motivo acabava não se concretizando.
É aqui que estamos hoje. No meio do deserto.
Aguardando o maná cotidiano, esperando a água brotar da
rocha. Não sabemos qual será o próximo milagre, mas temos a
plena certeza que ele virá. Estamos olhando para o céu, na
expectativa que a nuvem se mova, para, na direção do Senhor
darmos, os próximos passos nessa jornada.
Pode parecer estranho encerrar um livro sem ter
recebido a vitória, sem ter um testemunho vibrante para relatar,
sem estar “na crista da onda”, sem ter alcançado o sucesso. Mas
este livro fala sobre deserto e foi escrito no deserto. Não nos
sentimos derrotados, não estamos derrotados. Estamos em pé,
embora os passos possam, às vezes, serem trôpegos,
continuamos nossa jornada no deserto, continuamos
marchando rumo à Terra Prometida. Sabemos que oásis
155
Pr. Delvacyr Bastos Costa

aparecerão, para depois, retornarmos ao deserto novamente,


até que “passemos o Jordão” e finalmente, cheguemos à Casa
do Pai, à Canaã celeste.

156
Crônicas do Deserto

Por que Deus nos leva para o Deserto?

Deserto não é bom, mas é importante, mais do que


isso, é necessário. No deserto amadurecemos, crescemos,
aprendemos a confiar em Deus.
No deserto somos provados e aprovados por Deus. Deus
não nos leva para o deserto para nos castigar. Também não é o
diabo quem nos leva ao deserto. É Deus. Ele quer nos provar e
o melhor lugar para isso é exatamente o deserto. Ele não nos
leva para nos reprovar, para que morramos lá como
consequências de nossos erros e pecados; ele nos leva para nos
aprovar e somente somos aprovados se nos recusarmos a desistir,
a abandonar a luta, a deixar nosso corpo estendido nas areias
escaldantes do deserto. É preciso enfrentar o deserto com a
certeza que o Deus que a ele nos conduziu é o mesmo que nos
levará, aprovados, a Terra da Promessa. Se Deus é soberano, e
nós reconhecemos e cremos na intervenção e no controle dele
em todos os assuntos do universo, inclusive os da nossa vida,
porque temos tanta dificuldade em compreender que quando
estamos no “deserto” estamos porque assim Deus o quis! O
“deserto” em nossa vida não é uma fase que estamos vivendo
por razões aleatórias à vontade de Deus, mas por intervenção
divina. É a oportunidade que temos para ouvir a voz do Senhor.
O deserto pode parecer ruim, mas é o lugar das bênçãos
de Deus. Preocupe-se se você está vivendo muito mais no oásis
do que no deserto.
157
Pr. Delvacyr Bastos Costa

Quando achamos que o nosso deserto é o lugar do


sofrimento, da angustia, da solidão, sempre vem o Senhor a
fim de trazer a bênção inigualável que só é possível contemplar
quando não há mais forças, mais recursos, mais nada.
O deserto não tem a ver com escassez ou fartura, nem
com saúde plena ou doenças persistentes. O deserto é o lugar
onde podemos ver os milagres de Deus. A terra prometida é o
lugar de descanso, Israel, nunca descansou, porque a terra
prometida é a eternidade com Deus. O deserto é agora onde
podemos ver Deus em Sua glória e soberania, agindo em nossa
vida.”
O povo que saiu do Egito passou 40 anos vagando pelo
deserto e não entrou na terra prometida, porque não aprendeu
a ver a mão de Deus agindo a seu favor no deserto.
Se você quer entrar na terra prometida, saiba que o
caminho é pelo deserto. Essa é outra razão pela qual Deus nos
conduz ao deserto. Não há outro meio de se chegar à Terra
prometida. Quando Israel saiu do Egito seu destino era Canaã,
a terra que Deus lhes prometera, a terra onde manava leite e
mel, terra de abundância, de fartura, de bênçãos. Mas, para
chegar à terra prometida a única maneira era atravessar o
deserto. Não importava a rota seguida, saindo do Egito para
Canaã, era necessário atravessar o deserto. Se a estrada escolhida
fosse o “Caminho dos Filisteus”, margeando o Mar
Mediterrâneo, era preciso atravessar o deserto de Sur. Se o
caminho escolhido fosse em direção a Cades-Barnéia e virando
depois em direção ao norte, havia o deserto de Zim. Se a rota
158
Crônicas do Deserto

fosse mais ao sul, em direção a Eziom-Geber, para depois virar


em direção ao norte, até o Mar Morto e ao Jordão, havia o
deserto de Parã. A rota escolhida foi em direção ao extremo
sul, rumando primeiramente para o Sinai, ali também havia
um deserto, o deserto do Sinai. Não importa o caminho que
você tomar, nunca chegará a terra prometida se não atravessar
o deserto. Por mais duro e sofrido que seja o deserto, é ele que
te conduzirá à terra prometida, ao cumprimento das promessas
de Deus em sua vida. Para chegar a terra prometida é necessário
atravessar o deserto.

159
Pr. Delvacyr Bastos Costa

160
Crônicas do Deserto

Pós Scriptum

Depois de haver concluído este livro recebemos o


convite do Pr. Eliézer (nosso amigo citado algumas vezes neste
livro), para retornarmos a Cascavel. O lugar de nosso primeiro
deserto. Permanecemos lá três anos e meio. Foi um tempo de
restauração. Tudo o que perdemos nos desertos anteriores Deus
nos devolveu, e apesar de algumas crises e lutas, saímos
vitoriosos. Fomos pastoreados, fomos restaurados, como família
vimos a provisão de Deus a cada dia. Passamos sim, momentos
de lágrimas e provas, mas não foram muitos, nem tão ardentes.
Alguns sonhos foram restaurados, feridas foram curadas.
Conquistamos novos amigos, reencontramos velhos
caminhantes do deserto.
Ministerialmente Cascavel foi um tempo muito
produtivo. Assumimos a direção acadêmica de um seminário
(SEAMID). Ele cedia sua estrutura física para servir como
campus avançado de outra instituição. Requeremos a
desocupação e iniciamos nossos próprios cursos: Médio em
Teologia, Bacharel e Mestrado. Em pouco mais de um ano
estávamos com 228 alunos distribuídos entre a sede e mais
cinco campus avançados em diferentes cidades. Tive o privilégio
de viajar por diversas cidades e estados pregando a palavra do
Senhor. Vimos a mão de Deus operando por nosso intermédio.
Também nesse período recebi o convite para lecionar no
Seminário e Instituto Bíblico Betânia em Altônia (PR), como
professos visitante, função que exercemos por três anos.
161
Pr. Delvacyr Bastos Costa

Em 2010, aceitamos o desafio da Convenção das Igrejas


Batistas Independentes do Paraná para assumirmos o pastorado
da igreja em Foz do Iguaçu. Uma igreja no deserto. Que
atravessou momentos difíceis em sua caminhada, que, muitas
vezes, quase fechou suas portas, mas que conseguiu permanecer
em meio à aridez e tempestades. No dia seis de fevereiro de
2010 fui empossado como pastor desta igreja e nela
permanecemos. Tem sido um tempo de restauração e refrigério.
Uma comunidade pequena ainda, mas muito querida e
batalhadora, dotada de muitos talentos. Como igreja,
vislumbramos a Terra da Promessa. Pela fé, vemos uma grande
igreja. Estamos animados, confiantes e confiados no Senhor.
Não sabemos ainda se este será um oásis ou mais um deserto.
O que sabemos é que nossa história no deserto não termina
aqui. Apenas Crônicas do Deserto chega ao final, nós
continuamos em busca da Terra Prometida. Continuamos a
peregrinar em meio aos desertos, tomando fôlego em oásis,
retornando aos desertos, até que o Senhor nos convide a deixar
definitivamente o deserto e, atravessando o “Jordão”, cheguemos
finalmente ao lar celestial.

162
Crônicas do Deserto

Referências

BOYER, Orlando S. Heróis da Fé: Vinte homens


extraordinários que incendiaram o mundo. 15ª ed., Rio de
Janeiro: CPAD – Casa Publicadora das Assembléias de Deus,
1999.

História de Missões. Cruz Alta: Centro de Treinamento


Missionário Gilgal, 2000.

TUCKER, Ruth. “...Até os Confins da Terra”: Uma História


Biográfica das Missões Cristãs. São Paulo: Vida Nova, 1986.

WILKERSON, David. Disponível em:


<http://www.tscpulpitseries.org> . Acesso em: 20/06/2006.

163
Pr. Delvacyr Bastos Costa

Família Costa

Nossa Igreja

Culto na IBI - Foz

Contato com o autor

Delvacyr Bastos Costa


45 3028_0278 s prdelvacyr@hotmail.com
Rua Alagoas, 1138 s Vila Matilde s Foz do Iguaçu s PR
164

Você também pode gostar