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O ensaio como forma (GPELE)

 Iná Camargo Costa1 recupera o contexto do ensaio, escrito no período 54-58,


o período mais conservador da Alemanha Ocidental – o ensaio, para Adorno,
recebe uma leitura de forma política, não no sentido superficial do termo, uma
forma cuja concepção deriva de uma posição de autonomia frente aos temas e
aos enquadramentos.
o “a intelectualidade alemã é apresentada como sempre disposta à
submissão”
 A autora vai mais fundo numa consequência específica do capitalismo pós-
guerra: a proletarização dos intelectuais que implicou na superfragmentação do
saber (“a idiotia dos peritos”).
o Dois problemas estão concentrados nisso: a alienação mesma, que por
definição é a perda da noção de integridade da experiência, e a
cooptação dos intelectuais pelo mundo universitário, por meio da
burocracia, dos fomentos, dos eventos etc.
 Essa especialização é citada no ensaio do Adorno (p.20),
quando fala da separação entre ciência e arte. Digo desde já
que a natureza do ensaio se pretende pré-mercadoria, ou
melhor, antes do tempo do império da mercadoria.
 O ensaio também é uma luta, no presente do texto, pela
reuniões dos objetos concretos e discursivos da experiência
em busca de uma integridade.
o A forma contra a qual se bate o ensaio é o “tratado”.
 Quero, então, convidar vocês a estarem sensíveis ao quanto a
formatação (inclusive das oficinas de escrita) é uma forma de
nos tornar inofensivos.
o Ela também recupera a tipologia dos textos marxistas (entre tratados e
textos de intervenção) para sugerir que a própria forma do ensaio
seria o exercício possível da liberdade no mundo intelectualizado do
pós-guerra.

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Comentar um pouco a importância da Iná para os teatros de grupo de São Paulo, como sucessora de
Decio de Almeida Prado e Sabato Magaldi nessa função.
 A autora também nos ajuda a fazer duas objeções ao texto de Adorno, que
já antecipo pra não precisarmos voltar ao comentário:
o Em que medida o texto não se coloca como uma prescrição que, na
prática, retira da categoria ensaio uma boa parte dos textos, caso
observemos todas as características apontadas pelo filósofo.
o Não haveria algo de idealização nisso, de perda das bases materiais?

 Adorno começa seu ensaio falando do desconforto que o ensaio tem causado
na Alemanha justamente por sua “falta de autonomia”. Vejam bem: isso que
lhe falta é seu trunfo, porque a autonomia também pode significar sob
dominção de um saber.
 O ensaio “evoca aquela liberdade de espírito” que remonta ao século XVII
(Leibniz). Os textos posteriores estariam sempre demandando subordinação
uma instância qualquer (instância esta que traz uma série de prescrições). “O
ensaio, porém, não admite que seu âmbito de competência seja prescrito.
Em vez de... ” (p.16).
 O recorte e a duração do ensaio dependem do gesto do ensaísta . Para Adorno, o
ensaio não transforma a subjetividade em falsa objetividade, e isso seria
uma conquista decisiva. Outra: ao apostar nessa subjetividade, aposta na
mediação, na matéria mediada. A mediação é o inverso da regressão, da
reificação, do misticismo, da religiosidade.
o Tenho uma aposta muito forte de que a mediação vem sendo suprimida
e este é um dos nossos problemas.
 O ensaio, então, se distancia da análise (que é a realização de uma forma ou
método), da compreensão (que caminha rumo a um sentido que supostamente
estaria guardado pelo texto), do artigo (que preza pelos pontos objetivos de seu
argumento), do estudo acadêmico (que não raro comprova aquilo que já previa,
como um dogma).
o Em crítica ao Lúkacs de A alma e as formas, Adorno defende que o
ensaio se distancia da arte (“por seu meio específico, os conceitos” e
“por sua pretensão à verdade desprovida da aparência estética”)
 Aqui tem um “eureka” maravilhoso do Adorno, que ele não
explicita: o tratado, as análises, os artigos, a arte etc. nunca
podem chegar à verdade. Mas o ensaio pode. Por quê?
Voltaremos a isso.
 Adorno comenta o quanto a arte acaba se afastando da
verdade esta que o ensaio pode alcançar (p.22).
o Ao não seguir as regras do jogo – o que leva a crer que seguir as regras
do jogo, mesmo para combatê-lo, é algo não subversivo –, constrói-se a
subversão do ensaio.

 O ensaio jamais apaga de si as marcas do ensaísta e seu caminho é dado


pelo próprio procedimento. Um ensaísta elabora um procedimento exclusivo
para aquela vez, uma fórmula de uso único e exclusivo, um método que se
esgota nele mesmo (p.27), está nos avessos da esteira de produção em série,
da otimização.
o Eduardo Coutinho é um ensaísta?
o Um teto todo seu é um ensaio?
 Um ensaio, do ponto de vista da emancipação do escrito, é um gênero
radical, que só deixa por herança seu princípio. Para Adorno, seria a própria
dialética tornada forma.
o Na tensão de uma performance racional, não constrói andaime ou
estrutura (p.31)
o Também por isso, porque é o jogo é com a corda o mais esticada
possível, que Adorno chama de degenerado o mau ensaio.
 Além disso, como debatido pelo filósofo, na prática positivista, que crê haver
um fim posto, o caminho não é decisivo para iluminar ou não esse fim.
o O ensaio, porque incide no caminho, é portanto anti-positivista, por
esse viés. (Não confundir com ser negativo.)
 Uma paralela do texto de Adorno, sobre não hipostasiarmos a distância entre
arte e ciência. O exemplo de Proust e Bergson. Leitura p.23.
o Adorno mobiliza este exemplo para citar a lembrança do espírito,
“irrevogavelmente modelado segundo os padrões de dominação da
natureza e da produção material”, vislumbra o estágio superado e a
possibilidade de um retorno no futuro, “a transcendência das relações de
produção enrijecidas”.
 Em seu exercício, o ensaio performa uma crítica ao sistema.
 Leitura, p.25. “Nos processos do pensamento...”
o Natureza não radical, gesto radical.
 Citação a Montaigne, lido mal por Adorno, que só apreende a modéstia afetada,
que é lugar comum do XVI.
 Ao depositar-se sobre a movência, o ensaio recusaria as disposições platônicas
sobre o conhecimento, que grada do eterno ao efêmero seus valores. De um
lado, estaria o indivíduo, o sujeito, o transitório, o concreto; de outro, o
universal, o eterno, a abstração.
o O ensaio denuncia a ilusão de que algo da cultura possa ser tomado
como da natureza.
 “A falácia de que a ordo idearum seria a ordum rerum é fundada na
insinuação de que algo mediado seja não mediado” (p.25-26).
o Aqui o ponto: o ensaio é a forma da mediação, aqui também está sua
posição anti-ideológica.
o “Não insiste caprichosamente em alcançar algo para além das
mediações” (p.27).
o “Para o ensaio, todos os graus do mediado são imediatos, até que ele
comece sua reflexão” (p.28)
 Aqui está uma relação mais interessante e dialética entre mediado
e imediato. O ensaio não visa aos efeitos para além de seu
caminho, nesse sentido, não se coloca como instrumento de
um lugar, recusa os efeitos. Diante de sua matéria, é imediato,
é não instrumentalizado.
 “A relação com a experiência...” (p.26)
o Ou seja, o imediato, que seria a experiência de cada um, é justamente
o mediado, ao passo que o mediado, dado pela teoria como objetivo,
disfarça-se de imediato.
o Não só tudo é datado, como também a acusação de datação é ideológica,
pura e simplesmente.
 O ensaio combate a volatilidade da abstração, e as objeções de contingência
e fragmentação comumente feitas ao ensaio se amparam da identificação
entre o que é e uma noção totalizante.
 Daí modulamos Adorno, quando diz “o ensaio não procura o eterno no
transitório, mas procura eternizar o transitório”. Não: o ensaio eterniza o
transitório no gesto. Para além do gesto, não há eterno que não seja
ideológico.
o O ensaísta testa os limites externos da concreção subjetiva, sem
poder mergulhar no individual mais estrito, mas sem voar para as
abstrações ilusórias.
 Se a verdade é uma ideologia, isto é, a “ideia tradicional de verdade”, ao
mesmo tempo o método não pode ser considerado em seu “conceito
tradicional”. “O pensamento é profundo por se aprofundar em seu objeto, e não
pela profundidade com que é capaz de reduzi-lo a uma outra coisa” (p.27)
 De novo uma paralela, a confiança da ciência nos métodos e nos conceitos
(que os bolsonaristas não nos ouçam: o ponto cego da ciência), “o ensaio, em
contrapartida...” (p.28)
o Os conceitos e métodos fora de questão fundam o “método científico”,
otimizando os procedimentos, dirimindo os falseamentos etc. Mas diz
Adorno, também consolidam sua autoridade.
o O caminho linear é preterido à composição em várias direções, como um
tapete.
 Pela manutenção do movediço, há também uma subversão das noções de
acerto e erro. Um acerto dentro do método pode ser antes uma adequação
acertada ao método do que um acerto. Um erro verdadeiramente ensaístico
nunca tem resto zero.
o Um protesto contra as quatro regras do Discurso do método (p.31).
Longo trecho do ensaio, com várias páginas.
 A terceira regra (do simples ao complexo) é a própria forma de
estruturação da universidade.
 O ensaio é um gênero do distanciamento, recusando continuidade e
completude.
 ‘É inerente à forma do ensaio...” (p.35)
 A totalidade, a integridade, a verdade etc. encontradas pelo ensaio, porque não
está instrumentalizada, reificada, fetichizada, metodizada, é resplandecente,
“sem que a presença dessa totalidade tenha de ser afirmada”.
 “Escreve ensaisticamente...” (p.35)
 O método esconde a arbitrariedade. O ensaio desvela a arbitrariedade
constituinte de todo exercício racional. Não que o ensaio seja totalmente
arbitrário: seu tema e o ensaísta constróem as linhas pelas quais passa a forma.
 “Ele resiste à ideia de obra-prima...” (p.36)
 “O ensaio continua sendo...” (p.38)
 Perguntas finais:
o “O ensaio como forma” seria um ensaio para o próprio Adorno?
o Para além das nomenclaturas, que o próprio filósofo desacredita, toda
boa literatura é ensaística? E todo ensaio é boa literatura? Isto é, segundo
os parâmetros, não seria a mesma forma, dialética, anti-positivista, anti-
sistemática, que se esgota em si, como um fósforo.

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