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O debate contemporâneo sobre os

paradigmas
Alda Judith Alves-Mazzotti
Introdução
• A “crise dos paradigmas” teve seu auge nos anos 1960
(questionamentos de Kuhn e da Escola de Frankfurt)

• Reações opostas às críticas de Kuhn à impossibilidade de


avaliação objetiva de teorias científicas:

– Relativismo: “vale tudo” de Feyerabend e construtivismo social da


Sociologia do Conhecimento;
– Críticas aos argumentos de Kuhn, apontando exageros e afirmando a
possibilidade de uma ciência que busque a objetividade, não
confundindo objetividade com certeza

• Por sua vez, muitos cientistas sociais buscavam caminhos para a


efetivação de uma ciência comprometida com a transformação
social
Introdução
• Nesse contexto, ganharam força, nas Ciências Sociais, os
modelos “alternativos” ao positivismo, reunidos sob o rótulo
de “paradigma qualitativo” (falsa oposição qualitativo-
quantitativo e ilusão de homogeneidade interna)

• Discutiremos aqui as tendências atuais dos paradigmas mais


comumente apontados como sucessores do positivismo
O “paradigma qualitativo” nos anos 1980
• Críticas a um positivismo ingênuo que vê o conhecimento científico
como fotografia do real, objetiva e neutra, e que corresponde ao
único conhecimento infalível e verdadeiro (será que isto existiu?)

• Ao se definirem por oposição ao positivismo, os “qualitativos” caem


numa negação indeterminada, juntando em um mesmo
“paradigma” uma vasta gama de tradições, com pressupostos e
metodologias inconciliáveis (fenomenologia, interacionismo
simbólico, behaviorismo naturalista, etnometodologia, psicologia
ecológica, conforme Patton, 1986) ou doutrinas, disciplinas e
métodos (etologia, observação participante e não-participante,
jornalismo investigativo, connoisseurship – trabalho do crítico de
arte -, fenomenologia, estudo de caso, história oral, história natural
antropológica, trabalho de campo, etnometodologia, etnografia da
comunicação, etografia e etnologia, conforme Wolcott, 1982)
O “paradigma qualitativo” nos anos 1980
• Lincoln e Guba (1985): caracterizam o novo paradigma como naturalista
e, depois, construtivista, também sendo chamado de qualitativo, pós-
positivista, etnográfico, fenomenológico, subjetivista, estudo de caso,
hermenêutico e humanístico, as quais corresponderiam a diferentes
“doutrinas”

• Há 21 definições de paradigma na obra de Kuhn, segundo Masterman


(1979)

• Principal característica das pesquisas qualitativas é seguirem a tradição


“compreensiva” ou interpretativa (Patton, 1986), partindo do
pressuposto que as pessoas agem em função de suas crenças,
percepções, sentimentos e valores e que seu comportamento tem
sempre um sentido, um significado que não se dá a conhecer de modo
imediato, precisando ser desvelado

• Três características essenciais aos estudos qualitativos: visão holística,


abordagem indutivista e investigação naturalística
O “paradigma qualitativo” nos anos 1980
• Visão holística: compreensão do significado de um
comportamento ou evento só é possível em função da
compreensão das inter-relações que emergem em um dado
contexto

• Abordagem indutiva: pesquisador parte de observações mais


livres, deixando que dimensões e categorias de interesse
emerjam progressivamente durante os processos de coleta e
análise de dados

• Investigação naturalística: aquela em que a intervenção do


pesquisador no contexto observado é reduzida ao mínimo
O “paradigma qualitativo” nos anos 1980
• Pesquisador como principal instrumento de investigação

• Necessidade de contato direto e prolongado com o campo


para captar os significados com os comportamentos
observados

• Natureza predominante dos dados qualitativos: “descrições


detalhadas de situações, eventos, pessoas, interações e
comportamentos observados; citações literais do que as
pessoas falam sobre suas experiências, atitudes, crenças e
pensamentos; trechos ou íntegras de documentos,
correspondências, atas ou relatórios de casos” (Patton,
1986, p. 22)
Panorama atual
• Diferenças no “paradigma qualitativo”: posição referente à natureza do
real, o campo de objetos apropriados ao tipo de pesquisa, crenças
sobre os méritos dos diferentes métodos e técnicas, forma de
apresentar os resultados e critérios para julgar a qualidade dos estudos

• Três paradigmas são então apresentados como sucessores do


positivismo: construtivismo social, pós-positivismo e teoria crítica

• Paradigma: “conjunto básico de crenças que orienta a


ação[“investigação disciplinada]” (Guba, 1990)

• Caracterização destes paradigmas nas dimensões ontológica (natureza


do objeto a ser conhecida), epistemológica (relação entre conhecedor e
conhecido), epistemológica (processo de construção do conhecimento
pelo pesquisador)
Construtivismo Social
• Foi influenciado pela fenomenologia e pelo relativismo

• Tal como a fenomenologia:


– Enfatiza a intencionalidade dos atos humanos e o “mundo vivido” pelos
sujeitos, privilegiando as percepções dos atores
– Método parece “colocar entre parêntese” as crenças e proposições sobre o
mundo para melhor apreendê-lo
– Nenhuma teoria a priori é capaz de abarcar as “múltiplas realidades” que
emergem em uma investigação, acrescentando que “acreditar é ver” e por
isso o pesquisador construtivista “quer iniciar suas transações com os
respondentes do modo mais neutro possível” (Lincoln e Guba, 1985, p. 41)
– Afinados com a perspectiva de Schultz (1967): estudo do comportamento
social interpretando seu significado subjetivo através das intenções dos
indivíduos e das maneiras pelas quais atribuem significado aos fenômenos
sociais
Construtivismo Social
• Tal como os relativistas:
– Descartam qualquer possibilidade de objetividade no
conhecimento
– Contrapõem com o conceito de imparcialidade
– Afirmam que a ideia de objetividade supõe que existe
apenas uma perspectiva verdadeira sobre um dado
fenômeno, correndo-se o risco de desconsiderar
outras perspectivas possíveis
– O critério de imparcialidade seria de ouvir as
perspectivas de ambas as partes procurando chegar a
um ponto de equilíbrio, a uma posição que seja justa
com ambas as partes (tal como um juiz)
Construtivismo Social
• Pressupostos básicos (Guba, 1990):
1. Ontologia relativista: as realidades existem sob forma de
múltiplas construções mentais, locais e específicas,
fundadas na experiência social de quem as formula
2. Epistemologia subjetivista: resultados são sempre criados
pela interação pesquisador/pesquisado
3. Metodologia hermenêutica-dialética: as construções
individuais são provocadas e refinadas através da
hermenêutica (“teoria da interpretação”) e
confrontadas dialeticamente, com o objetivo de gerar
uma ou mais construções sobre as quais haja um
significativo consenso entre os respondentes
Pós-positivismo
• Enfatiza o uso do método científico como a única forma válida de
produzir conhecimentos confiáveis

• Defende a adoção deste método também para as Ciências Sociais

• Preferência por modelos experimentais e quase-experimentais


com teste de hipóteses, tendo como objetivo último a formulação
de teorias explicativas de relações causais (Green, 1990; Le
Compte, 1990; Schwandt, 1990)

• Alguns autores consideram que esta abordagem se trata de uma


forma disfarçada do positivismo
Pós-positivismo
• Seus adeptos afirmam que esta não é uma continuação do positivismo,
já que e “nova filosofia da ciência”, há muito, descartou os princípios
básicos do positivismo

• Ao contrário dos positivistas, os pós-positivistas se recusam a considerar


a observação como, ao mesmo tempo, fundamento e arbítrio do
conhecimento científico, o que exigiria que todos os conceitos teóricos
fossem traduzidos em termos observacionais

• Admitem a subdeterminação da teoria (desenvolvimento de uma nova


teoria referente aos mesmos fenômenos), mas consideram que há
critérios racionais que permitam escolher entre duas teorias rivais

• Admitem que a teoria adotada influencia a observação do fenômeno,


mas isto não é razão para que se abandone o uso de teorias a priori no
processo de investigação, como sugerem os construtivistas
Pós-positivismo
• Argumentam que pesquisadores partindo de diferentes
referenciais teóricos podem chegar a resultados consistentes
entre si e, quando isso não ocorre, seus resultados podem ser
discutidos e avaliados com base nos procedimentos utilizados
(Phillips, 1990)

• Questão central: afirmação da possibilidade da objetividade


nas Ciências Sociais: “a noção de objetividade, como a noção
de verdade, é um ideal regulatório subjacente a qualquer
investigação. (...) Se abandonarmos essas noções, não tem
sentido fazer pesquisa” (Phillips, 1990, p. 43)
Pós-positivismo
• Argumentam que a ideia de que pesquisas qualitativas não
podem ser objetivas parece se basear em uma noção ingênua de
objetividade, como se ser objetivo significasse conhecer a
realidade em seu “estado puro”

• Ser “objetivo” significa atender a critérios de qualidade, a padrões


de procedimentos, embora a objetividade não garanta certeza
quanto aos resultados

• Apenas significa que essas investigações estão livres de erros


grosseiros

• O questionamento da noção da objetividade tem suas raízes na


queda do fundacionalismo (crença de que o conhecimento era
construído sobre – ou justificado por – algum fundamento sólido
e inquestionável - razão ou experiência
Pós-positivismo
• Abandonar o fundacionalismo significa abandonar a certeza
de que sabemos de algo quando encontramos a verdade,
mas não se deve confundir objetividade com certeza, pois
todo conhecimento é sempre tentativo

• O que é crucial para a objetividade de qualquer pesquisa é a


aceitação da “tradição crítica” (aberta à análise, à crítica, ao
questionamento da comunidade científica para que erros
grosseiros e tendenciosidades do pesquisador sejam
eliminados)
Pós-positivismo
• Pressupostos básicos (Guba, 1990):
1. Ontologia crítico-realista: existência de uma realidade externa ao
sujeito que é regida por leis naturais, embora estas nunca possam
ser totalmente apreendidas (precariedade dos mecanismos
sensoriais e intelectivos do homem)
2. Epistemologia objetivista-modificada: objetividade como um
“ideal regulatório”, mas admite que o pesquisador dela se pode
apenas aproximar, guardando a tradição crítica (exigência de
clareza no relato da investigação e consistência com a tradição na
área)e a comunidade crítica (julgamento dos pares)
3. Metodologia experimental/manipulativa modificada: enfatiza o
“multiplismo crítico” (triangulação que recorre a várias fontes de
dados e procura corrigir os desequilíbrios anteriormente
mencionados, usando mais métodos qualitativos e mais teorias
fundamentadas e reintroduzindo a descoberta no processo de
investigação
Teoria Crítica
• Sentidos de “crítica”:
1. Crítica interna, análise rigorosa da argumentação
e do método, buscando dar consistência lógica
entre argumentos, procedimentos e linguagem

2. Ênfase nas condições de regulação social,


desigualdade e poder; papel da ciência na
transformação da sociedade
Teoria Crítica
• A diferença básica com as demais abordagens qualitativas está na
motivação política dos pesquisadores e nas questões sobre
desigualdade e dominação que, em consequência, permeiam seus
trabalhos (Carspecken e Apple, 1992)

• Abordagem crítica é essencialmente relacional: (1) investiga os


grupos de instituições relacionando as ações humanas com a
cultura e as estruturas sociais e políticas, tentando compreender
como as redes de poder são produzidas, mediadas e
transformadas; (2) pressuposto de que nenhum processo social
pode ser compreendido de forma isolada, como uma instância
neutra acima dos conflitos ideológicos da sociedade, pois estão
sempre vinculados às desigualdades culturais, econômicas e
políticas da sociedade
Teoria Crítica
• Questionam a dicotomia objetivo/subjetivo, pois confunde

• Subjetividade não como o que ocorre “na cabeça das pessoas”

• Reconhecem a subjetividade como assimétrica, sendo


determinada por múltiplas relações de poder e interesses de
classe, raça, gênero, idade e orientação sexual

• Ser objetivo “é considerar os padrões socialmente formados


impostos sobre nossa vida cotidiana (...) porque essas condições
são historicamente formadas através das lutas humanas,
[considerar] que esses padrões são dinâmicos e mutáveis”
(Popkewitz, 1990, p. 56)
Teoria Crítica
• Popkewitz: quando esses dois conceitos são aplicados aos
fenômenos do mundo, não é fácil distinguir o que pertence à
individualidade de cada um e o que é resultado de regras e
padrões sociais inconscientemente assimilados

• Teoria Crítica é inadequado para enquadrar todas as


alternativas nela incluídas: marxismo, “neomarxismo”,
materialismo, freirismo, feminismo, pesquisa participante, etc
(Guba, 1990)

• Ao invés, sugere o termo “investigação ideologicamente


orientada” (Guba, 1990, p. 23): pesquisa como ato político
Teoria Crítica
• Pressupostos básicos:
1. Ontologia crítico-realista: crença em uma realidade
objetiva que deve ser desvelada (“falsa-consciência”).
Tarefa do pesquisador fazer com que os sujeitos
(oprimidos) atinjam o nível da “consciência verdadeira”,
necessária à transformação do mundo
2. Epistemologia subjetivista: valores do pesquisador
estão presentes em todo o processo de investigação
3. Metodologia dialógica, transformadora: coerente com
o objetivo de aumentar o nível de consciência dos
sujeitos, com vistas à transformação social
Avanços e perspectivas
• Ao se livrarem da polarização quantitativo/qualitativo e
estabelecer diferenciações internas às abordagens
“qualitativas”, os pesquisadores voltaram sua atenção
para a análise dessas diferenças e das possibilidades de
diálogo entre eles

• A diferença entre as três posições está na ênfase


atribuída ao papel da teoria, dos valores e da interação
pesquisador/pesquisado na configuração dos “fatos” e a
subdeterminação da teoria, além das consequências
derivadas delas
Avanços e perspectivas
• Para os construtivistas sociais, a aceitação da
construção social da realidade desemboca
necessariamente no relativismo

• Para os pós-positivistas e teórico-críticos, o


fato de que a realidade é socialmente
construída constitui um dado importante a ser
incorporado à análise, mas não traz como
consequência o relativismo
Avanços e perspectivas
• Ponto central das divergências: questão da objetividade e da
acumulação do conhecimento
– Construtivistas: relativismo radical
– Pós-positivistas: repudiam explicitamente o relativismo
– Teórico-críticos: repudiam o relativismo

• Papel atribuído à pesquisa


– Se o pesquisador se propõe a compreender os significados atribuídos pelos
atores às situações e eventos dos quais participam, se tenta entender a
“cultura” de um grupo ou organização, no qual existem diferentes visões
correspondentes aos subgrupos que os compõem (construtivismo social), o
relativismo não constitui problema
– Se o pesquisador se propõe à construção de teorias (pós-positivismo) ou à
transformação social (teoria crítica), a qual exige acordo em torno de
decisões ou princípios que possibilitem a ação conjunta, o relativismo passa
a ser um problema
Avanços e perspectivas
• Passagem de um debate em termos de “tudo ou nada”
do período anterior para uma discussão em torno das
ênfases levou a uma maior elaboração de conceitos para
distinções mais rigorosas e explicitação dos pressupostos

• Acomodação entre paradigmas (possibilidade de


compatibilizar aspectos de diferentes paradigmas):
ciências sociais são multiparadigmáticas (competem
vários paradigmas)
– Compatibilistas
– Não-compatibilistas
Avanços e perspectivas
• Três diferentes níveis de acomodação de paradigmas
(Austin, 1990):
– Nível filosófico (é possível chegar a um acordo em termos
de questões de fundo?)
– Nível de comunicação social (podemos utilizar
conhecimentos gerados por outros paradigmas?)
– Nível pessoal (posso eu, como investigador individual, me
valer de diferentes paradigmas com o objetivo de dar
conta de problemas específicos?)

• Considera que há uma tendência a considerar que


algum tipo de acomodação seja possível (mais às duas
últimas instâncias)
Avanços e perspectivas
• Não-compatibilistas entre paradigmas:
– Argumentam que resultaria no encerramento de
um debate provocativo sobre problemas
essenciais, não resolvidos pela pesquisa (Smith e
Heshusius, 1986)

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