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Metodologia das Ciências Sociais:

Métodos Qualitativos
Tema 1 – A importância, características e história da investigação qualitativa

Ana Paula Cordeiro


Estes slides não
dispensam a leitura
complementar dos
manuais adotados para
a UC
A importância da investigação qualitativa FlicK, 2005

Mudança social acelerada

Individualização de universos de vida pluralidade de ambientes sociais e culturais

Inadequação da metodologia dedutiva tradicional, na qual as hipóteses e as questões de investigação derivam de


modelos teóricos e são submetidas ao trabalho empírico

É necessária uma nova sensibilidade para o estudo empírico das problemáticas sociais, tornando-se imperativo dar
lugar a narrativas confinadas a um tempo, um lugar e uma situação

O cientista tem de recorrer a estratégias indutivas, mobilizando para a sua investigação “conceitos sensibilizadores”
influenciados pelo conhecimento teórico existente. O conhecimento e a prática são estudados na sua dimensão
local, sendo o estudo dos significados subjetivos da experiência e da prática quotidianas tão importante como a
análise das narrativas. 3
A investigação qualitativa é particularmente adequada ao estudo de
Flick, 2005

Modos/ Padrões
Relações sociais
estilos de vida biográficos
A investigação qualitativa recorre a uma grande variedade de métodos
Flick, 2005

Cada um desses métodos:

• Parte de pressupostos diferentes

• Tem finalidades, objetivos, aplicações, potencialidades e limites diferenciados

• Apresenta uma ideia especifica sobre o objeto de estudo

• Não é independente do processo de investigação, estando diretamente enraizado nele

• Toma os diversos procedimentos metodológicos como fases de um mesmo processo.

Em função das várias alternativas o investigador deve escolher a estratégia metodológica mais apropriada ao objeto
e à problemática da sua pesquisa
Traços essenciais da investigação qualitativa (I)
Flick, 2005

 Adequação dos métodos e teorias

 É o objeto de estudo que determina a escolha do método

 Os métodos escolhidos e aplicados devem ser tão abertos que se ajustem à complexidade do objeto de estudo.

 Os objetos de estudo são estudados na sua globalidade, complexidade e integrados no seu contexto quotidiano

 O objetivo da investigação é descobrir teorias novas empiricamente enraizadas, mais do que testar aquelas que já se conhecem

 A validade do estudo é estabelecida com referência ao objeto de estudo, ou seja, os resultados obtidos fundamentam-se no material empírico

 A relevância dos resultados e a reflexão sobre os procedimentos são critérios adicionais

 Diversidade de perspetivas dos participantes

• Parte dos significados individuais e sociais do objeto e evidencia a diversidade das perspetivas sobre ele

• Estuda as práticas e os saberes dos participantes

• Analisa as interações num determinado espaço e contexto e explica-as em função deles

• Defende que no campo existem visões e práticas diferenciadas devido às diferentes perspetivas e backgrounds sociais dos sujeitos
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Traços essenciais da investigação qualitativa (II)
Flick, 2005

 Reconhecimento do contributo da subjetividade do investigador na produção do saber

• A interação do investigador com o campo e com os seus membros é assumida como variável interveniente na construção do conhecimento

• A subjetividade do investigador e dos sujeitos estudados é tomada como parte integrante do processo de investigação

• As reflexões do investigador sobre as suas ações e observações no terreno, as suas impressões e sentimentos, são considerados dados que devem ser
registados no diário de investigação e nos protocolos de contexto, atendendo a que fazem parte da interpretação

 Variedade de abordagem e métodos

• Não se baseia numa única conceção teórica e metodológica, caracterizando-se a sua prática e análises pela articulação de diversas abordagens teóricas e
respetivos métodos

• As opiniões de cada sujeito são o ponto de partida

• Estuda a construção e desenvolvimento das interações

• Tenta reconstruir as estruturas do espaço social e o significado latente das práticas


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Os limites da investigação qualitativa como ponto de partida
Flick, 2005

• Grande parte dos ideias de objetividade - tal como são preconizados pelo modelo metodológico das Ciências da
Natureza - não são alcançados nas Ciências Sociais
• Nesta abordagem a dimensão do mensurável, do padronizado, da exatidão e do rigor do método quantitativo, é
aplicada de forma parcelar e exige muitas vezes um esforço de reinterpretação
• O processo e os resultados deste tipo de investigação são influenciados pelos interesses e pelo background social
e cultural dos que nela participam
• Neste contexto a ciência não produz “verdades absolutas” passíveis de serem aplicadas acriticamente, ela
disponibiliza meios de interpretação condicionados, que podem ser utilizados de modo flexível na prática

“ (...) O que nos resta é a possibilidade de afirmações relacionadas com os sujeitos e as situações, que têm de ser
estabelecidas por um conceito de conhecimento sociologicamente articulado”
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BonB e Hartmann (1985:21)
História da investigação qualitativa (I) Flick, 2005
Os métodos qualitativos têm grande tradição nas Ciências Sociais, desde o inicio do século XX, nomeadamente na:

• Psicologia – utilização de métodos de descrição, compreensão e experimentais

• Sociologia – utilização de métodos descritivos, biográficos e estudos de caso - tendência monográfica, orientada para a inferência, em paralelo com um perspetiva
empírica e estatística

Contudo, no percurso de consolidação destas ciências, as abordagens experimentais, padronizadas e quantificadas foram-se afirmando em contraponto às perspetivas
compreensivas, flexíveis e qualitativo-descritivas.

Apenas na década de 60 a crítica à investigação social quantitativa voltou a ganhar voz, alargando-se nos anos 70, vindo a dar lugar ao ressurgimento da investigação
qualitativa nas Ciências Sociais. Dos países onde este debate teve maior expressão destacam-se:

Alemanha

Habermas começou por identificar a mudança que se operou na Sociologia americana em torno da metodologia de pesquisa, a qual teve como principais protagonistas
Goffman, Garfinkel e Cicourel;

Glaser e Strauss criaram um modelo de processo de pesquisa que mobilizou significativa atenção, na expetativa de que o objeto de investigação pudesse ser tratado de
forma mais ajustada do que o era na investigação quantitativa. Neste contexto, preconizou-se o “princípio da abertura”, defendendo-se que a compreensão do objeto deve
ser uma questão prévia até ao fim da investigação, de modo a evitar o erro de criar um objeto de estudo resultante apenas dos métodos utilizados para o estudar. O
propósito maior desta corrente é o de captar a vida quotidiana, precisamente como ela se manifesta em cada caso.

Mais tarde este debate alargou-se incluindo questões relacionadas com: entrevista, suas aplicações e interpretação, entrevista narrativa, hermenêutica objetiva, validade e
generalização dos resultados, apresentação e transparência dos resultados etc.
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História da investigação qualitativa (II)
Flick, 2005

Estados Unidos da América

• Período tradicional (1900-1945) – interesse pelo estranho, pelo estrangeiro, na sua descrição e interpretação mais ou menos objetivas

• Fase modernista (1945-1970) – tentativa de formalização da investigação qualitativa

• Confusão de géneros (até meados dos anos 80) – coexistência de vários modelos teóricos e explicações dos objetos e métodos que podem ser escolhidos, contrapostos ou
combinados, designadamente interacionismo simbólico, etnometodologia, fenomenologia, semiótica, feminismo etc.

• Crise da representação (a meio da década de 80) – transformação do processo de apresentação do conhecimento e dos resultados numa componente substancial do processo
de investigação. A investigação qualitativa torna-se um processo contínuo de construção de versões da realidade

• Quinto momento (anos 90) – o foco incide nas narrativas e teorias que se ajustam às situações e problemas específicos, históricos e localmente confinados

• Sexto momento (atualmente) – a escrita pós-experimental liga as questões da investigação qualitativa às políticas democráticas

• Sétimo momento – futuro da investigação qualitativa

Em suma

Na Alemanha o desenvolvimento da investigação qualitativa expressou-se essencialmente através de uma progressiva consolidação metodológica, incindindo de forma particular
em questões associadas aos procedimentos relacionados com a prática de investigação.

Nos Estados Unidos manifestou-se pelo questionamento dos “dogmas” dos diversos métodos, designadamente no que diz respeito ao papel da apresentação no processo de
pesquisa, à crise da representação, à relatividade do material apresentado, posição que debilitou as expetativas de formalizar métodos. A investigação qualitativa passa assim a
atribuir importância fulcral à práticas e políticas de interpretação, assumindo uma atitude baseada na abertura e na reflexão do investigador. 10
A investigação qualitativa nos finais da modernidade
Flick, 2005

A investigação qualitativa expressará as seguintes tendências:

• Regresso à oralidade, manifestado na propensão para a formulação de teorias e a realização de estudos empíricos

• Regresso ao particular, expresso na construção de teorias e na orientação de estudos empíricos, direcionados para a
abordagem de problemas concretos que ocorrem em situações específicas

• Regresso ao local, manifestado no cruzamento do estudo dos sistemas de conhecimento, práticas e experiências, no âmbito de
tradições locais e nos modos de viver em que elas se suportam

• Regresso ao conceito de oportunidade, descrevendo e posicionando os problemas estudados e as soluções sugeridas no seu
contexto histórico e temporal, explicando-os com base nele

“A investigação qualitativa está vocacionada para a análise de casos concretos, nas suas particularidades de tempo e de espaço,
partindo das manifestações e atividades das pessoas nos seus contextos próprios.”

Uwe Flick, 2005:13


Metodologia das Ciências Sociais
Métodos Qualitativos
Tema 1 - A investigação qualitativa: importância, história, características
Bibliografia
FlicK, Uwe (2005), Métodos Qualitativos na Investigação Científica, Lisboa, Monitor
Metodologia das Ciências Sociais
Métodos Qualitativos
Tema 2 – Posições Teóricas

Ana Paula Cordeiro


Estes slides não
dispensam a leitura
complementar dos
manuais adotados para
a UC
Perspetivas de investigação no campo da investigação qualitativa

Interacionismo Modelos
Etnometodologia
Simbólico Estruturalistas

Diferentes hipóteses teóricas adotadas na perceção do objeto, diferentes perspetivas metodológicas aplicadas no seu estudo

3
Posições teóricas na investigação qualitativa

Flick; 2005: 27
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Interacionismo Simbólico: o significado subjetivo

 Foca-se no “ponto de vista do sujeito”, atribuindo particular importância aos significados subjetivos e às atribuições individuais de sentido

 O ponto de partida empírico é o significado que os sujeitos atribuem às suas atividades e ao seu contexto

 O núcleo da investigação são os diversos modos do indivíduo investir de significado os objetos, acontecimentos, experiências, etc.

 O imperativo metodológico é reconstituir o ponto de vista do sujeito estudado em diversos aspetos, o que leva o investigador a olhar o mundo pelo ângulo desse
sujeito, tomando em linha de conta as teorias subjetivas de que as pessoas se servem para explicar o mundo a si próprios, narrativas auto-biográficas e trajetórias
biográficas reconstituídas do ponto de vista dos sujeitos

 A reconstituição dessas perceções subjetivas devem incluir as narrativas dos sujeitos sobre os contextos locais e temporais. Ela constitui o instrumento de análise
das realidades sociais

 Incide no processo de interação – ação social caracterizada por reciprocidade imediata – sublinhando a dimensão simbólica das ações sociais

Hipóteses fundamentais
Blumer
• Os seres humanos agem em relação às coisas, com base no significado que lhes atribuem
• Esse significado resulta da interação social entre o sujeito e os seus conhecidos
• Estes significados são transformados através de um processo interpretativo que o sujeito utiliza para lidar com as coisas que encontra
Thomas
• Quando uma pessoa define uma situação como real ela torna-se real nos seus efeitos
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A Etnometodologia: a construção da realidade social
 Questiona o modo como as pessoas produzem a realidade social nos seus processos de interação

 Foca-se no modo como a interação se organiza e não no seu conteúdo ou significado para os intervenientes

 Centra-se no estudo dos métodos utilizados pelos indivíduos para a produção da realidade quotidiana

 Analisa as atividades do dia-a-dia, a sua execução e a construção do contexto de interação, localmente situado, onde as atividades têm lugar

 Estuda as rotinas da vida quotidiana, mais do que os acontecimentos marcantes, conscientemente entendidos e revestidos de significado

 Prossegue um programa de investigação que se materializa essencialmente através de pesquisas empíricas de análise de conversas

 Atribui especial importância ao papel do contexto em que as interações se processam e à demonstração empírica da sua relevância para os participantes

 Defende que o investigador deve abster-se de interpretações apriorísticas, bem como de adotar uma posição alinhada com qualquer um dos participantes

Hipóteses fundamentais

Heritage

• As interações organizam-se em estruturas - a interação é produzida de modo ordenado

• As interações são moldadas pelo contexto e também o renovam - o contexto é produzido em simultâneo com a interação e através dela

• As duas propriedades são inerentes aos detalhes das interações pelo que nenhum deles pode ser, à partida, ignorado ou tomado como casual, irrelevante ou desordenado – o
que é importante para os participantes na interação social só pode ser identificado através da análise dessa interação e nunca antes. 6
Enquadramento cultural da realidade social e subjetiva: modelos estruturalistas

 Concede particular relevância às normas implícitas e explicitas da ação

 Pressupõe que os sistemas culturais de significado (estruturas) estão subjacentes à perceção e construção da realidade subjetiva e social

 Utiliza diversos procedimentos metodológicos para analisar os significados “objetivos” e, assim, reconstituir as normas e as estruturas:
análises linguísticas, de expressões, de atividades, “suspensão calculada da atenção” do investigador

Hipóteses fundamentais

• Diferencia as experiências e atividades de superfície das estruturas de profundidade da ação

• A superfície é acessível ao indivíduo interventor, está associada às intenções e aos significados subjetivos da ação

• As estruturas de profundidade não são acessíveis à reflexão individual quotidiana, residem nos modelos culturais, nos padrões de
interpretação e nas estruturas de significado latentes, que existem ao nível inconsciente. Estas estruturas são geradoras e impulsionadoras das
atividades de superfície

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Rivalidade dos paradigmas ou triangulação das perspetivas

Interacionismo simbólico Etnometodologia Modelos estruturalistas

Parte da interação que se Parte do interesse em escrutinar


Parte dos sujeitos envolvidos estabelece entre sujeitos, as normas (culturais)
na situação a estudar e dos estuda o seu discurso, subjacentes e inconscientes que
significados que essa situação prestando atenção ao modo impulsionam as ações visíveis, as
tem para eles. O contexto, as como ele se estrutura estruturas latentes que podem
interações, os significados formalmente e como os atores desencadear atividades
sociais e culturais são partilham os diferentes papéis. explícitas. Os processos de
reconstruídos a partir desses O contexto externo só adquire interação são tomados como
significados subjetivos. importância se for produzido meios de exposição e
ou continuado na interação. reconstituição dessas estruturas.

Posições perante os diferentes paradigmas:


• Opção por uma única perspetiva teórica
• Confronto e competição entre paradigmas
• Complementaridade e combinação /triangulação de perspetivas
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Perspetivas na investigação qualitativa

Flick; 2005: 25

As diferentes correntes teóricas podem ser tomadas como recursos diferenciados que possibilitam o estudo de um mesmo fenómeno, permitindo
cada uma delas explorar uma segmento que o compõe. Nesta aceção as várias posições teóricas podem ser combinadas numa perspetiva de
complementaridade, ampliando e enriquecendo a visão sobre o fenómeno estudado no seu todo.
Traços comuns às diferentes posições

Independentemente das diferenças que apresentam, as diversas posições teóricas partilham os seguintes traços comuns:

A compreensão como princípio epistemológico - compreender os fenómenos a partir do seu interior, através do estudo
do ponto de vista dos sujeitos, da análise das situações e normas sociais e culturais relevantes em cada caso. A
metodologia escolhida para alcançar esse propósito varia segunda cada corrente teórica.

A reconstituição dos casos como ponto de partida - analisar as situações em estudo, de modo mais ou menos
consistente, antes de estabelecerem comparações ou generalizações. O tipo de situação escolhida para análise depende
da perspetiva teórica adotada.

A construção da realidade como base – a realidade estudada é criada, construída, pelos diversos atores em presença.
Aquele que é considerado fundamental para essa construção difere de acordo com cada posição teórica.

O texto como material empírico – o texto é a base da reconstituição e da interpretação. A relevância atribuída ao texto
diverge consoante a teoria seguida no estudo.
10
Traços da investigação qualitativa: lista completa

Flick; 2005: 27
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Metodologia das Ciências Sociais
Métodos Qualitativos

Tema 2 – Posições Teóricas


Metodologia das Ciências Sociais
Métodos Qualitativos
Tema 3 – Construção e Compreensão do texto
Ana Paula Cordeiro
Estes slides não
dispensam a leitura
complementar dos
manuais adotados para
a UC
Construção e compreensão do texto

Na investigação qualitativa o texto desempenha três funções básicas:


sistematiza os dados fundamentais em que se baseia a descoberta
suporta a interpretação
veicula a apresentação e divulgação dos resultados

Após a recolha de dados procede-se à elaboração do texto que pretende ser um substituto da realidade e a base de interpretações
posteriores e das descobertas delas resultantes. O texto é o resultado da colecta de dados e o instrumento da sua interpretação.

Procura-se traduzir a realidade para o texto, efetuar uma retradução do texto para a realidade e, assim, realizar uma inferência da
realidade a partir do texto.

A investigação qualitativa proporciona a compreensão das realidades sociais através da interpretação de textos.

As Ciências Sociais transformaram-se necessariamente em ciências do texto, apoiando-se neles como meios de fixar e objetivar os seus
resultados.
3
O texto como construção da realidade: construções de primeira e segunda ordem

É impossível reduzir a relação entre texto e realidade a uma simples representação de factos e dados.

A representação da realidade tem limites

Dúvidas sobre a possibilidade do


Dupla crise de Os critérios clássicos de
investigador social captar
representação controle são rejeitados para a
diretamente a experiência vivida.
e de investigação qualitativa, o que
Esta é criada/traduzida por ele no
legitimidade se traduz na rejeição da
texto escrito, o que torna
possibilidade de legitimar o
problemática a ligação direta
conhecimento científico
entre a experiência e o texto.

Questiona-se a existência de uma realidade externa aos pontos de vista subjetivos socialmente partilhados, com base na qual
seja possível validar a sua representação nos textos
De acordo com o construtivismo social e o construcionismo, a realidade é ativamente produzida pelos atores por meio da
atribuição de significado a acontecimentos e objetos, sendo impossível fugir a essa circunstância quando se estuda a
realidade social. Assim sendo, não existem factos puros e simples, eles apenas se tornam relevantes na sequência da sua
seleção e interpretação. Neste contexto impõem-se colocar as seguintes questões:

O que é que os sujeitos tomam como real? Como o fazem? Em que condições?

Os pontos de partida da investigação qualitativa são, então, as ideias sobre acontecimentos sociais, coisas, factos, que se
encontram no campo social estudado, e o modo como essas ideias comunicam entre si.

As construções como ponto de partida

A realidade é socialmente construída através de diferentes tipos de conhecimento (do conhecimento comum até à ciência
e à arte), que constituem formas diferenciadas de construir a realidade.

Segundo Goodman e Schutz a investigação social consiste numa análise desses modos de construir a realidade e dos
esforços que os atores empreendem para o fazer no seu quotidiano. 5
Na perspetiva de Schutz os construtos das Ciências Sociais são de segundo nível, ou seja, são criados a partir dos construtos construídos pelos sujeitos sociais (nessa
aceção são construtos de construtos).

Neste contexto, o autor defende que a ação primordial da metodologia da Ciências Sociais é identificar os princípios gerais através dos quais os atores sociais
organizam as suas vivências diariamente. Nesta sequência, é com base nas perceções e no conhecimento comuns que o investigador social constrói uma versão mais
formal da realidade.

Reconhece-se então a existência de várias realidades, sendo a ciência apenas uma delas, construída com recurso aos princípios pelos quais se pauta a estruturação da
realidade quotidiana e, simultaneamente, por um conjunto de outros pressupostos.

Um dos principais problemas da investigação em Ciências Sociais consiste no facto do seu universo de estudo residir nas versões presentes no campo de estudo ou
nas que são elaboradas em conjunto ou em oposição pelos atores no âmbito da interação que estabelecem.

O conhecimento científico engloba assim vários processos de construção da realidade, designadamente os de natureza subjetiva desenvolvidos diariamente pelos
sujeitos estudados e os de carater cientifico levados a efeito pelos investigadores no tratamento, interpretação e apresentação dos dados. As experiências quotidianas
são transformadas em conhecimento pelos atores envolvidos na investigação e os relatos dessas experiências são traduzidos em texto pelos investigadores.
A construção da realidade no texto: a mimética
A mimética é a transformação da realidade em mundo simbólico, e nesse sentido, a representação das relações sociais ou naturais em textos. A mimética resulta do ato de criar
um mundo simbólico que integra elementos práticos e teóricos, sendo encarada também como um princípio geral que ilustra a compreensão que fazemos da realidade e do texto.

No âmbito da investigação qualitativa identificamos os elementos miméticos nos seguintes domínios:

Transformação da experiência em narrativa pelos sujeitos estudados

Elaboração de textos baseados na interpretação dessas narrativas pelos investigadores

Divulgação dessas interpretações

Neste contexto, ler e compreender textos constitui um processo ativo de construção da realidade no qual estão envolvidos o autor do texto mas igualmente aqueles que o leem e
interpretam.

Segundo Ricoeur, numa Ciência Social baseada em textos distinguem-se três formas de mimética:

• As interpretações de senso comum e as científicas são baseadas numa pré-conceção da atividade humana e dos acontecimentos naturais e sociais. A mimética 1 “ é esta pré-
conceção da natureza da ação humana, da sua semântica, do seu simbolismo, da sua temporalidade” (Flick,2005:34)

• A transformação ou tradução dos ambientes naturais ou sociais em textos é um processo construtivo que se posiciona entre o momento anterior e o momento posterior ao
texto, correspondendo à configuração da ação, a mimética 2.

• O processo de compreensão e interpretação do texto consubstancia a mimética 3, a qual designa o cruzamento entre o universo do texto e o do seu destinatário.

De acordo com o autor, no quadro das Ciências Sociais, a mimética resulta do entrosamento da construção e da interpretação da experiência, processo que se consuma nos atos
de elaboração, interpretação e compreensão dos textos.
Metodologia das Ciências Sociais
Métodos Qualitativos
Tema 3 – Construção e Compreensão do texto

Bibliografia
FlicK, Uwe (2005), Métodos Qualitativos na Investigação Científica, Lisboa, Monitor

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