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V. 18 N.

3
SET-DEZ 2019
Na fissura entre Laicidade e
ISSN 2447-9047
Democracia no Legislativo
Brasileiro: Um olhar sobre a PEC
99/2011 através do horizonte
Teórico Habermasiano
IN THE CRACK BETWEEN LAICITY AND
DEMOCRACY IN THE BRAZILIAN LEGISLATIVE: A
LOOK AT PEC 99/2011 THROUGH THE HABERMASIAN
THEORETICAL HORIZON

Raique Lucas de Jesus Correia ¹


Marta Gama²
Fernanda Busanello Ferreira³

RESUMO

Mesmo em face do ―processo de


racionalização‖, a ―fé‖ renasce nas sociedades modernas,
angariando novos adeptos e penetrando cada vez mais
nos espaços secularizados. Tal configuração, no mínimo
problemática, suscita uma série de questionamentos e
suspeitas acerca da participação desses grupos na esfera
pública, sobretudo, na instância legislativa, tão logo
http://lattes.cnpq.br/6550456476074 provoca os teóricos sociais a uma reflexão sobre este
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fenômeno latente na sociedade brasileira, conforme
denúncia um movimento global. Ex positis, empenhados
em discutir tais questões no contexto brasileiro, tomando
no plano teórico o pensamento de Jürgen Habermas, o
presente trabalho estatuiu como objeto de pesquisa o
Projeto de Emenda Constitucional nº 99 de 2011 —
http://lattes.cnpq.br/3838400860867
proposto por deputados da Frente Parlamentar
533 Evangélica, com vista à inclusão das entidades religiosas
de âmbito nacional no rol dos legitimados do art. 103 da
Constituição Federal —, de modo a averiguar se a
incursão legislativa pela aprovação da referida PEC, e
mesmo seu teor, violam a laicidade estatal ou, a
contrario sensu, corroboram com as teses habermasianas
de pós-secularização e democracia deliberativa. Ao final,
concluímos que a PEC 99/2011, ao oferecer um novo
http://lattes.cnpq.br/3524030615771
meio para defesa dos direitos fundamentais dos cidadãos
756 religiosos, não só deu um primeiro passo para construção
de uma ―democracia deliberativa‖, como também para
uma sociedade ciente da persistência das religiões e das
contribuições que podem advir deste setor.

Palavras-chave: Sociedade pós-secular. Teoria do Agir


Comunicativo. Jürgen Habermas. Democracia deliberativa.
PEC 99/2011.
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ABSTRACT

Even in the face of the "rationalization process", "faith"


reborns in modern societies, attracting new adepts and
penetrating more and more into the secularized spaces.
Such configuration, at least problematic, evokes a series
of questions and suspicions about the participation of
these groups in the public sphere, above all, in the
legislative instance, and lead social theorists into a
reflection on this phenomenon, which in spite of latent in
the Brazilian society, denounces a global movement. Ex
positis, engaged to discuss such issues in the Brazilian
context, taking theoretically into consideration the
thinking of Jürgen Habermas, the present study
constituted as object of research the Constitutional
Amendment Project (PEC) No. 99 of 2011 — proposed
by deputies of the Evangelical Parliamentary Front,
aiming the inclusion of religious entities of national
scope in the list of those legitimated in art. 103 of the
Federal Constitution — in order to examine whether the
legislative incursion for the approval of the related PEC,
and even its content, violate state secularism or, a
contrario sensu, corroborate with Habermas's post-
secularization and deliberative democracy theses. In the
end, we concluded that PEC 99/2011, by offering a new
way of defending the fundamental rights of religious
citizens, not only took a first step towards the
construction of a "deliberative democracy" but also for a
society aware of the persistence of religions and of the
contributions that can come from this sector.

Keywords: Post-secular society. Theory of Communicative


Action. Jürgen Habermas. Deliberative democracy. PEC
99/2011.

INTRODUÇÃO midiático, político partidário, assistencial,


editorial e comercial (MARIANO, 2004).
A expansão pentecostal no Brasil
No campo político, com grande
ocorre de modo constante já há meio
capacidade de mobilização popular, as
século, o que permitiu que o
igrejas conseguem eleger representantes
pentecostalismo se tornasse o segundo
para o Poder Legislativo e Executivo de
maior grupo religioso do país, estendendo-
diversos municípios e estados, e também
se não só nos planos religioso e
para a Câmara dos Deputados e para o
demográfico, mas também pelos campos
Senado Federal. No Congresso Nacional, a

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constituição da Frente Parlamentar desconexos da modernidade, trouxe à tona
Evangélica, no ano de 2003, demonstra a o ideal de uma democracia participativa,
força política deste grupo, cuja atuação não ao lado de um arranjo social capaz de
pode mais ser ignorada nas análises reunir num mesmo espaço, através de
políticas do país. (TREVISAN, 2013). processos bilaterais de aprendizagem e
Esse contexto lança a necessidade de cooperação, as duas "faces de Jano",
olhares mais aguçados sobre a questão da proposição inovadora e ao mesmo tempo
laicidade estatal ante a intensa penetração oposta a máxima secular comum de
de setores religiosos no espaço público, depuração da arena pública de quaisquer
sobretudo no que diz respeito à interação influências advindas de setores religiosos.
entre o ―sagrado‖ e o ―profano‖ no âmbito (HABERMAS, 2007; 2013).
institucional, onde decisões fundamentais Ao reconhecer os potenciais de ―bem
irradiam seus efeitos para todos os demais comum‖ e ―humanidade‖ presentes na
setores sociais estruturando formas de semântica religiosa, bem como o ―saber
vida, arranjos políticos, sociais e virtuoso‖ na genealogia da razão, o
econômicos. filósofo da Theorie des kommunikativen
É certo que a complexa relação entre Handelns, cunha na modernidade a figura
religião e política não é um tema recente do pensamento pós-metafísico, isto é, uma
de estudo, seja para a ciência política, seja espécie de ―secularização autoreflexiva‖,
para o constitucionalismo democrático. no sentido de tornar viável a troca de
Nas duas últimas décadas, diversas conhecimentos entre as visões piedosas e
questões — surgimento do terrorismo científicas, mantendo sempre – é verdade –
internacional e de partidos conservadores a fronteira entre ―método‖ e ―revelação‖,
em grandes democracias Ocidentais, rechaçando, contudo, um modelo
ambos de inspiração religiosa, os direitos ―cientificista extremado‖ (HABERMAS,
de minorias (religiosas ou não), aborto, 2007).
casamento civil homoafetivo —, têm Ao lado deste ideal, Habermas nos
trazido à tona o tema da presença, oferece um projeto inclusivo, no qual tenta,
permanência e limites da religião na esfera através da razão comunicativa, levar a
pública para o centro do debate politico, efeito no espaço público os ditames de
gerando como consequência um intenso uma democracia deliberativa, incluindo as
debate acadêmico. vozes periféricas no processo decisório, de
Dito isto, levando em conta modo a criar um direito legítimo, capaz de
abundantes teorias, destaca-se neste meio fortalecer a solidariedade entre os atores do
os escritos do pensador Jürgen Habermas, ―mundo da vida‖ e ao mesmo tempo
que no intento de compreender os pontos
53
frustrar o avanço da ―colonização Declaratória de Constitucionalidade
sistêmica‖. (ADC) em face de leis e atos normativos.
Assim, Habermas com sua respeitosa Com isso, tomando o projeto teórico
atenção às religiões, pretende superar as de Jürgen Habermas como parâmetro
forças que ameaçam a desintegração da crítico, o presente artigo buscou analisar a
vida social, mormente aquelas que, incursão legislativa pela aprovação da PEC
acentuando um individualismo existencial, nº 99/2011, de modo a estabelecer se os
evitam as referências religiosas ao discursos e fundamentações apresentados,
considerá-las incompatíveis com o bem como a modificação pretendida no art.
postulado da neutralidade estatal. 103 da Constituição Federal, violam o
Incongruências e as aporias de um sistema princípio constitucional do Estado laico ou,
político que, como o liberal, relega a a contrario sensu, corroboram com o ideal
religião ao âmbito estritamente privado e habermasiano de sociedade pós-secular e
de um Estado que, como efeito desta democracia deliberativa.
premissa, assegura a liberdade religiosa Ao final, sendo os religiosos uma
mais como uma concessão estatal tolerante parcela volumosa da população brasileira,
do que como um direito inalienável à sob a óptica habermasiana, concluímos que
liberdade de expressão. Num e noutro a PEC 99/2011 não viola a laicidade
caso, parte-se do pressuposto da religião estatal, em verdade ao permitir que as
sem qualquer relevância social ou política. instituições religiosas sejam também
(BRUM, 2015). legítimas para proposição de ADI e ADC,
Empenhados em discutir tais incluem essas vozes no processo de
questões no contexto brasileiro, o Projeto formação da opinião e da vontade
de Emenda Constitucional (PEC) nº normativa do Estado, do qual também elas
99/2011 parece-nos um terreno fértil de fazem parte, de modo a favorecer a
estudo, pois além de ter sido proposto pela construção de uma ordem jurídica de fato
Frente Parlamentar Evangélica, demanda legítima.
por uma alteração constitucional no art. Além disso, se por um lado a PEC
103 da Carta Magna, de modo a incluir no 99/2011 milita em prol da soberania
rol dos legitimados para proposição de popular, por outro permite que grupos
determinadas ações também as entidades religiosos minoritários provoquem a
religiosas de âmbito nacional, pelo que Suprema Corte quando se sentirem
poderão - numa eventual aprovação do ameaçados em seus direitos por decisões
projeto – ajuizar, perante o Supremo endossadas por maiorias religiosas,
Tribunal Federal, Ação Direta de corroborando com isso para
Inconstitucionalidade (ADI) e Ação autodeterminação desses grupos em seus
54
direitos subjetivos. Finalmente, para que Escola de Frankfurt, ou mesmo os estudos
possam propor ADI e ADC as entidades de Weber acerca da ―racionalização‖ -
religiosas terão que comprovar pertinência apresenta características próprias que
temática, e o mérito de eventuais pedidos muitas vezes o distancia destas tradições
terão que passar pelo crivo do Supremo (HADDAD, 1997). Além disso, por ser um
Tribunal Federal. Sendo assim, a PEC autor dialético, uma leitura superficial dos
99/2011 e mesmo seu curso pela instância seus escritos pode confundir um leitor
legislativa, haja vista também que as desavisado, pois muitas ideias do próprio
fundamentações trazidas repousam numa autor tornaram-se obsoletas pela
linguagem ―traduzida‖, não ferem o autocrítica. Assim, a bordo de uma leitura
princípio do Estado laico, ao contrário, complexa, sem saber ao certo aonde
concorrem com as teses habermasianas de atracar, Habermas nos instiga a um trajeto
pós-secularização e democracia misterioso, que como a imensidão do
deliberativa, conforme se demonstará. oceano, intimida, mas que além do
horizonte, conserva um mundo imaculado;
DIREITO, DEMOCRACIA E ―territórios desconhecidos‖ a espera de
SOCIEDADE: NO LIMIAR DAS
novos desbravadores.
TEORIAS HABERMASIANAS
A chave para iniciar este percurso,
Caminhar em solo habermasiano
encontra-se no ―salto paradigmático‖,
parece-nos uma aventura desafiadora. Com
aonde Habermas abandonando a filosofia
uma obra bastante extensa, Habermas,
da consciência1, proclama o paradigma da
atravessou o último milênio como um dos
comunicação (PINTO, 1995). Com isso,
mais importantes filósofos do século e,
muito mais do que uma troca de rótulos
mesmo hoje, no auge dos seus 90 anos,
(HABERMAS, 2003, p. 19), Habermas
continua produzindo e influenciando
busca uma nova teoria crítica da sociedade,
estudiosos no mundo todo, que veem nas
opondo ao conceito de ―razão
suas ideias um componente harmonizador
instrumental‖ (ação racional orientada a
do quebra-cabeça social, como se no fim o
fins)2 a noção de ―razão comunicativa‖
modelo teórico de Habermas fosse de fato
a peça que faltava ou pelo menos a que não 1
―O paradigma da consciência é calcado na idéia
fomos capazes de enxergar. de um pensador solitário que busca entender o
mundo a sua volta, descobrindo as leis gerais que o
O olhar de Habermas sobre a governam, revelando a unidade encoberta sob a
diversidade aparente. Neste modelo há uma relação
modernidade, malgrado o predomínio de de subordinação do objeto frente ao sujeito‖
(PINTO, 1995, p. 78).
alguns elementos de outras construções
2
teóricas - como aquela encabeçada por Ao se filiar criticamente ao pensamento de Weber,
Habermas adota o ―processo de racionalização‖
Adorno e Horkheimer, precursores da como um dos fatores que deram causa a
modernidade (HABERMAS, 2002a). Segundo
55
(ação racional orientada ao entendimento), com o mundo e se relaciona com os seus
em que: pares, ―razão e linguagem se identificam
de tal maneira que a linguagem
o paradigmático não é a
relação de um sujeito solitário [transforma-se no] único meio racional
com algo no mundo objetivo, disponível para [se] conhecer a realidade.‖
que pode ser representado e
manipulado, mas a relação (VELASCO, 2003, p. 171).
intersubjetiva que os sujeitos
capazes de linguagem e ação
Dessa maneira, ao fazermos uso da
estabelecem quando se fala, como explica nosso autor, estaremos
entendem sobre algo. Nesse
processo de entendimento, os sempre nos referindo simultaneamente a
sujeitos, agindo um estado-de-coisas no mundo objetivo
comunicativamente,
movimentam-se por meio da (fatos), no mundo social (normas) e no
linguagem natural, usam
interpretações transmitidas mundo subjetivo (experiências
culturalmente e se referem particulares). Com isso, toda vez que uma
simultaneamente a algo no
mundo objetivo, no mundo proposição é feita, o falante levanta uma
social que compartilham e
cada um a algo em seu próprio pretensão de validade, isto é, a expectativa
mundo subjetivo. de que os ―demais participantes da
(HABERMAS, 1987a, p. 499-
500)3. interação [...] reconheçam a verdade

A linguagem, portanto, é o fio [mundo objetivo], a correção normativa

condutor do pensamento habermasiano. A [mundo social] e a sinceridade [mundo

partir dela - como ficou cristalizado no subjetivo] das suas proposições‖

―giro linguístico‖ - o homem se conecta (SIMIONI, 2006, p. 31). Para tal fim, as
pretensões de validade precisarão ser
Weber, a ―racionalização‖ deve ser entendida do justificadas através do jogo argumentativo,
ponto de vista do ―desencantamento do mundo‖,
isto é, a profanação das imagens de mundo, que só afinal, não se pode prever a aceitação dos
foi possível devido ao progresso das ciências
(CORREIA; GAMA, 2018). Assim, o conceito de demais, se não for possível convencê-los
racionalidade, que se extrai do ―processo de
racionalização‖ e encontra em Adorno e da veracidade, retidão e sinceridade
Horkheimer um melhor delineamento, refere-se ao daquilo que foi proposto. Dessa forma, o
avanço da técnica e do método científico como
formas de explorar o mundo; procura-se atingir um participante de uma interação tem
fim e, para tanto, elege-se os meios mais eficazes
para tal, eliminando-se tanto quanto possível os liberdade para expressar o que quiser da
custos e potencializando ao máximos os benefícios,
independentemente das consequências advindas maneira que julgar mais conveniente, no
desta relação (custo-benefício).
3
O que se observa, portanto, é que enquanto os entanto, o assentimento de suas
indivíduos movidos pela razão estratégica buscam manifestações dependerá obrigatoriamente
induzir, seduzir e enganar os outros com vista à
satisfação do seu plano de ação, os atores que se da articulação que ele faz com as
movem segundo os ditames da razão comunicativa,
procuram o convencimento recíproco através do pretensões de validade, a saber:
jogo argumentativo, por meio do qual ambos
possam se entender sobre algo no mundo e com a pretensão de que a afirmação
isso coordenar as suas ações conforme aquilo que que ele faz é verdadeira (ou
foi deliberado durante a interação. que, de fato, as condições de
56
existência do conteúdo racionalidade, que ele denomina razão
proposicional são satisfeitas
quando não são afirmadas, mas estratégica. Na ação teleológica o
apenas ―mencionadas‖); de indivíduo busca atingir um resultado
que o ato de fala está correto
em relação ao contexto específico, para tanto faz uso de cálculos e
normativo atual (ou que o
próprio contexto normativo em métodos, a fim de alcançar êxito na sua
cumprimento sob o qual o ato busca. O agir estratégico, assim como a
é executado, é legítimo); e de
que a intenção expressa pelo ação teleológica, também está orientado a
orador coincide realmente com
um fim, contudo, pressupõe a participação
o que ele pensa.
(HABERMAS, 1987a, p. 144). de outro agente. Nesta ação, o sucesso de

Na síntese habermasiana, a um ator está condicionado a ―[...]

racionalidade, portanto, está inscrita na expectativa de decisões de pelo menos um

capacidade de agir e falar dos sujeitos; nas outro agente que também age com vistas à

pretensões de validade universais realização de seus próprios propósitos‖

justificadas por meio de ―boas razões‖, (HABERMAS, 1987a, p. 122). Ao revés,

conforme escreve o próprio autor: na ação comunicativa,

Nossas considerações podem cada interlocutor suscita uma


ser resumidas dizendo que a pretensão de validade quando
racionalidade pode ser se refere a fatos, normas e
entendida como uma vivências, e existe uma
disposição de sujeitos capazes expectativa que seu
de linguagem e ação. Ela se interlocutor possa, se assim o
manifesta nas formas de quiser, contestar essa
comportamento fundadas em pretensão de validade de uma
boas razões. Isso significa que maneira fundada (begründer),
as emissões ou manifestações isto é, com argumentos. É isso
racionais são acessíveis ao que consiste a racionalidade de
processo objetivo. Isto é válido Habermas: não na faculdade
para todas as manifestações abstrata inerente ao indivíduo
simbólicas que, pelo menos isolado [filosofia da
implicitamente, estão ligadas a consciência], mas um
pretensões de validade (ou procedimento argumentativo
pretensões que têm uma pelo qual dois ou mais sujeitos
relação interna com uma se põem de acordo sobre
pretensão de validade questões relacionadas com a
suscetível a críticas). Qualquer verdade [mundo objetivo], a
exame explícito de pretensões justiça [mundo social] e a
de validade controversas autenticidade [mundo
requer uma forma mais subjetivo]. (FREITAG, 1993,
exigente de comunicação, que p. 59).
satisfaça os próprios
pressupostos da argumentação. Daí a afirmação de que a razão
(HABERMAS, 1987a, p. 42- comunicativa ampliou o conceito de
43).
racionalidade delineado por Weber
Partindo da razão instrumental,
(ARAUJO, 1994). Para Habermas, a crítica
Habermas expõe um terceiro tipo de
de Weber à razão (entendida por ele
57
apenas do ponto de vista da racionalidade conhecimento para entender algo no
instrumental), e mesmo as próprias críticas mundo (cultura), regulam seu
de seus antecessores da Escola de pertencimento aos grupos sociais
Frankfurt, em especial as traçadas por (sociedade) e adquirem a capacidade de
Adorno, Horkheimer e Marcuse, soam em agir e falar, por meio da qual compõe os
certa medida equivocadas, pois deixam seus próprios traços identitários -
fugir aos olhos a racionalidade personalidade- (HABERMAS, 1987b);
comunicativa (PINTO, 1995). Desse ―ele representa aquela parte da vida social
modo, a modernidade segundo Habermas, cotidiana na qual se reflete ‗o óbvio‘
engloba tanto o processo de [idioma, costumes, tradições...], aquilo que
―modernização societária‖, responsável sempre foi, o inquestionado‖ (FREITAG,
pela divisão do sistema nos subsistemas da 1995, p. 141).
economia e da política, regidos segundo Assim, ―mundo da vida‖ e ação
uma razão voltada a fins (razão comunicativa, quase que numa relação
instrumental e razão estratégica), como indissociável, promovem uma verdadeira
também o processo de ―modernização simbiose. De um lado, como a ação
cultural‖, que libertou a razão comunicativa pressupõe a problematização
comunicativa, primeiro pela diferenciação das definições, o ―mundo vivido‖ facilita o
do ―mundo da vida‖ em três esferas consenso, uma vez que os saberes
(ciência, ética e estética), depois pela aproblemáticos comportados em sua
autonomização dessas esferas segundo estrutura funcionam como um ponto de
princípios próprios: verdade, moralidade e partida acessível para o entendimento
expressividade (FREITAG, 1995, p. 142- sobre algo no mundo (HABERMAS,
143). 1987a), muito embora, a sempre
Por esse motivo, a teoria da possibilidade de crítica em relação as
sociedade desenvolvida pelo autor, não só pretensões de validade permita que a ação
concebe a existência de um ―sistema‖, nos comunicativa problematize, inclusive, ―o
seus subsistemas econômico e burocrático, saber não problematizado do ‗mundo
mas também a existência de um ―mundo vivido‘4 [...] com vistas a um consenso
da vida‖, enquanto espaço das tradições e válido a respeito de uma determinada
das experiências intersubjetivamente situação‖ (SIMIONI, 2006, p. 71); de
compartilhadas (HABERMAS, 1987b). outro, o jogo provocado pela ação
O ―mundo da vida‖ é, por assim comunicativa oportuniza a reprodução
dizer, o pano de fundo da ação simbólica (reprodução cultural, integração
comunicativa (ALBAN, 2016). Por meio
4
Expressão sinônima de ―mundo da vida‖.
dele os agentes se abastecem de
58
social e formação da identidade pessoal)
À medida que o sistema
dos elementos estruturais do ―mundo da econômico submete aos seus
vida‖ (cultura, sociedade e personalidade). imperativos o modo de vida
doméstico e o modo de vida
Nas palavras do autor: dos consumidores e
empregados, o consumismo e
o individualismo possessivo e
O mundo da vida estrutura-se
as motivações relacionadas ao
através de tradições culturais,
desempenho e à
de ordens institucionais e de
competitividade adquirem uma
identidades criadas através de
força desmedida. A prática
processos de socialização. Por
comunicativa cotidiana passa
isso, ele não constitui uma
por um processo de
organização à qual os
racionalização unilateral que
indivíduos pertencem como
tem como consequência um
membros, nem uma associação
estilo de vida marcado por um
ao qual se integram, nem uma
utilitarismo centrado na
coletividade composta de
especialização: e essa mudança
membros similares. A prática
para orientações racionais de
comunicativa cotidiana na qual
ação segundo fins, que os
o mundo da vida está centrado
meios de controle sistêmico
alimenta-se de um jogo
induzem, provoca como reação
conjunto resultante da
um hedonismo que se liberta
reprodução cultural, da
daquela pressão que a
integração social e da
racionalidade exerce. Assim
socialização, e esse jogo está
como a esfera da vida privada
por sua vez centrado nessa
é prejudicada pelo sistema
prática. (HABERMAS, 1990,
econômico, a esfera da opinião
p. 100).
pública é prejudicada pelo
sistema administrativo. A
A sociedade é, portanto, ―sistema‖ e burocratização aproveita os
―mundo da vida‖, não existe uma oposição processos espontâneos de
formação da opinião e vontade
entre eles, mas sim um complemento coletiva e os esvazia de
(FREITAG, 1995). Ocorre que uma conteúdo; se expande por um
lado, o espaço para a
distorção no plano estrutural faz com que, manipulação planejada da
lealdade dos indivíduos e, por
de alguma maneira, os elementos próprios outro, facilita a desconexão
do sistema penetrem nas estruturas de das decisões políticas com os
contextos específicos do
reprodução do ―mundo vivido‖, retraindo mundo da vida, formadores de
identidade. (HABERMAS,
os processos voltados à comunicação e ao 1987b, p. 461).
entendimento, em prol do que Habermas
O que se desdobrará alicerçado neste
batiza de ―colonização‖ do mundo da vida
modelo de sociedade, tornará as
pelos meios ―deslinguistizados‖ de
construções teóricas do nosso autor ainda
integração sistêmica (dinheiro e poder), em
mais complexas. Ao não se contentar com
outros termos, a instrumentalização das
o posto de observador, Habermas
relações sociais em virtude da expansão do
desenvolve uma teoria com pretensões
sistema sobre o mundo da vida.
universalistas e emancipatórias, de modo a
(HABERMAS, 1987b). Assim,
combater o fenômeno da ―colonização‖.
59
Por meio de uma teoria discursiva do ―juridificação‖6 já eram tratados pelo
direito, o filósofo de Frankfurt buscará um autor.
novo modelo de democracia, calcado na Mesmo sendo intitulado como um
força legitimadora dos processos que herdeiro da Escola de Frankfurt, Habermas
envolvem a ação comunicativa, conforme promove uma ruptura com os primeiros
será exposto no próximo tópico. teóricos críticos, ao conceder ao fenômeno
jurídico um olhar negado pelos seus
BREVES APONTAMENTOS antecessores, cuja tradição marxista
SOBRE A TEORIA CRÍTICA DO
impunha uma visão do direito enquanto
DIREITO DE JÜRGEN
HABERMAS instrumento de dominação (SOUZA,
2006).
A filosofia do direito, mesmo sendo
Segundo Habermas, desde Hobbes os
uma área da filosofia, pela peculiaridade
direitos subjetivos ganharam força como
do seu objeto, tem sido um campo de
paradigma do direito moderno. De acordo
juristas e não de filósofos. Essa percepção
com esta concepção do direito — a mesma
de uma filosofia do direito de juristas
tomada por Kant em suas reflexões — as
nasce do pouco contato que o filósofo de
normas jurídicas concedem aos indivíduos
formação geral tem em relação às matérias
liberdades subjetivas, cuja violação por
específicas do campo jurídico, o que
terceiros importa o uso da coerção como
dificulta o trato dessas questões de maneira
meio de defesa, ainda que o agente
profunda pela filosofia generalista,
violador seja o próprio Estado. Dessa
condicionando uma teoria do direito mais
maneira, ―no modo de validade do direito,
ligada às engrenagens jurídicas, àqueles
a facticidade da imposição do direito pelo
que sendo juristas se arvoram ao campo da
Estado interliga-se com a força de um
filosofia (MASCARO, 2016).
processo de normatização do direito, que
Neste sentido, Habermas parece
tem a pretensão de ser racional, por
seguir o caminho inverso, malgrado seja
6
verdade que uma teoria do direito só tenha Um dos principais efeitos da colonização do
mundo da vida, naquele processo de
passado ao centro de suas reflexões mais instrumentalização das relações sociais, reflete-se,
sobretudo, no aumento crescente da positivação
tardiamente com a publicação de Faktizität jurídica, quer dizer: temas que antes eram tratados
de maneira informal, agora passam por um
und Geltung (1992)5, em a Teoria do Agir processo intenso de codificação (ou juridificação)
Comunicativo (1981) temas como a (HABERMAS, 1987b). Assim, na perspectiva
adotada por Habermas em Theorie des
kommunikativen Handelns, o direito era visto como
um propulsor da ―colonização sistêmica‖, algo que
veio a ser abandonado pelo autor na década de 90
com a publicação de ―Facticidade e Validade‖,
quando então o direito passou a ser concebido na
forma de um mediador entre ―sistema‖ e ―mundo
5
Traduzido para o português sob o título ―Direito e da vida‖.
Democracia: Entre Facticidade e Validade‖.
60
garantir a liberdade e fundar a atores do ―mundo da vida‖ para a
legitimidade‖ (HABERMAS, 2003, p. 48). linguagem dos atores do ―sistema‖ e vice-
Daí a formulação kantiana de legalidade, versa, o que viabiliza sua posição na
segundo a qual o direito se funda em leis qualidade de intermediário entre ambos os
de coerção e liberdade, pois ―de si mesmo polos.
[...] está ligado à autorização para o uso da Assim, como a colonização fragiliza
coerção; no entanto esse uso só se justifica a solidariedade, o direito — devido a sua
quando ‗elimina empecilhos à liberdade‘, dialogicidade entre o ―sistema‖ e o
portanto, quando se opõe a abusos na ―mundo da vida‖ — assume um papel
liberdade de cada um‖ (HABERMAS, fundamental: por um lado deve garantir a
2003, p. 49), o que Habermas reconstrói e solidariedade social; por outro, coibir o
esboça na forma de uma tensão entre avanço da ―colonização sistêmica‖
facticidade (coerção) e validade (HABERMAS, 2003, p. 62, 107-108). Nas
(legitimidade) no direito. sociedades pós-convencionais, aonde a
Com isso, numa sociedade dividida ética já não desempenha mais uma função
entre ―mundo da vida‖ e ―sistema‖, o unificadora, tendo em vista a pluralidade
direito funciona como uma ―correia‖ entre de visões, o risco constante de dissenso só
as engrenagens: pelo lado dos sujeitos que pode ser então evitado por meio da
orientam-se segundo a racionalidade regularização jurídica dos processos de
estratégica, a lei é vista como um fato entendimento entre os cidadãos
social e, como tal, extrai desses sujeitos (HABERMAS, 2003).
uma conduta conforme a norma por um Para tanto, sem aquele respaldo
critério impositivo; já pelo lado dos religioso e metafísico das sociedades
sujeitos que orientam-se segundo a tradicionais, ―O direito coercitivo, talhado
racionalidade comunicativa, a lei é conforme o comportamento legal, só
respeitada, não pela sua facticidade, mas consegue garantir sua força integradora se
por ter reconhecida sua legitimidade. Ou a totalidade dos destinatários singulares
seja, do ponto de vista habermasiano, ―o das normas jurídicas puder considerar-se
direito tem uma dupla cara, de um lado, a autora racional dessas normas‖
positividade que pode ser imputada pela (HABERMAS, 2003, p. 54). Em outros
coação e, de outro, a legitimidade obtida a termos, o direito precisa ser legítimo, e
partir dos procedimentos democráticos, para que alcance esse status, depende
que permite ao cidadão dar seu livre obrigatoriamente do processo democrático.
consentimento à lei.‖ (DURÃO, 2015, p. Nas palavras do autor:
29). Essa nova opção, propicia ao direito a
capacidade de traduzir a linguagem dos
61
Uma ordem jurídica não pode ―democracia deliberativa‖, como veremos
limitar-se apenas a garantir
que toda pessoa seja a seguir.
reconhecida em seus direitos
por todas as demais pessoas; o
reconhecimento recíproco dos APORTES DE UMA
direitos de cada um por todos DEMOCRACIA DELIBERATIVA
os outros devem apoiar-se,
além disso em leis legítimas A substituição da razão prática pela
que garantam a cada um
liberdades iguais, de modo que razão comunicativa emana sobre todo
"a liberdade do árbitro de cada emaranhado teórico tecido por Habermas.
um possa manter-se junto com
a liberdade todos". As leis Fio a fio, o autor inaugura uma nova teoria
morais preenchem esta
condição per se; no caso das da democracia, fundada a sombra de uma
regras do direito positivo, no teoria do discurso (HABERMAS, 1989).
entanto essa condição precisa
ser preenchida pelo legislador Para Habermas, o discurso é um
político. No sistema jurídico, o
procedimento formal, que permite aos
processo de legislação
constitui, pois, o lugar atores um consenso livre de coações,
propriamente dito da
integração social. Por isso, alcançado apenas pelo melhor argumento.
temos que supor que os Uma vez que os participantes podem
participantes do processo de
legislação saem do papel de subverter o jogo comunicativo,
sujeitos privados do direito e
assume, através de seu papel transformando a busca pelo consenso
de cidadãos, a perspectiva de numa disputa erística, isto é, numa
membros de uma comunidade
jurídica livremente associada, competição (imposição) argumentativa e
na qual um acordo sobre os
princípios normativos de não numa busca cooperativa, o discurso
regulamentação da garante as condições ideais para o pleno
convivência já está assegurado
através da tradição ou pode ser exercício da ação comunicativa, conforme
conseguido através do
entendimento segundo regras
esclarece o próprio autor:
reconhecidas normativamente.
(HABERMAS, 2003, p. 52- Na argumentação [...] a atitude
53). orientada para o sucesso dos
competidores vê-se incluída
O que se depreende desta conjectura, numa forma de comunicação
que prossegue com outros
portanto, é uma diferenciação entre meios o agir orientado para o
autonomia pública e autonomia privada, entendimento mútuo. Na
argumentação, o oponente e o
que se manifesta não somente no nível da proponente disputam uma
norma jurídica na oposição entre competição com argumentos
para convencer um ao outro,
facticidade e validade, mas também no isto é, para chegar a um
consenso. Essa estrutura
interior do parlamento, durante o processo dialética de papéis prevê
legiferante, o que Habermas tentará formas erísticas para busca
cooperativa da verdade. Para o
reconciliar sob a forma de uma fim da produção do consenso,
ela pode valer-se do conflito
62
entre os competidores o princípio da universalização (U),
orientados para o sucesso, na
medida em que os argumentos segundo o qual as normas só podem
não funcionem como meios do pretender validade ―se as consequências e
influenciamento recíproco - no
Discurso, é apenas de uma efeitos colaterais, que previsivelmente
maneira ―isenta de coações‖,
isto é, internamente, que a resultam de uma obediência geral da regra
coação do melhor argumento controversa para a satisfação dos interesses
se comunica às convicções.
(HABERMAS, 1989, p. 194- de cada indivíduo, [puderem] ser aceitos
195).
sem coação por todos‖ (HABERMAS,

A propósito, a ideia de consenso na 1989, p. 116); e, b) o princípio do discurso

caracterização habermasiana não se (D), que no fim resume a própria Ética do

confunde com a vontade da maioria e Discurso, segundo o qual: ―só podem

muito menos com a vontade de minorias reclamar validez as normas que encontrem

privilegiadas. O consenso refere-se à (ou possam encontrar) o assentimento de

unanimidade quanto às regras e todos os concernidos enquanto

procedimentos que irão orientar a participantes de um Discurso prático

discussão, não o resultado da interação, [racional]‖ (HABERMAS 1989, p. 116).

mas o processo que levará a esse resultado Isto por que:

precisa ser aceito por todos, para que então


A ética do discurso não dá
o consenso em torno do melhor argumento nenhuma orientação
conteudística, mas sim, um
seja possível (SIMIONI, 2016, p. 88). procedimento rico de
Ademais, ―o princípio da ética do discurso pressupostos, que deve
garantir a imparcialidade da
refere-se a um procedimento, a saber, o formação do juízo. O discurso
prático é um processo, não
resgate discursivo de pretensões de validez
para a produção de normas
normativas; nessa medida, a ética do justificadas, mas para o exame
da validade de normas
discurso pode ser corretamente consideradas hipoteticamente.
caracterizada como formal‖ (HABERMAS, 1989, p. 148-
149).
(HABERMAS, 1989, p. 126). Assim, a
Nessa primeira fase, Habermas então
teoria do discurso — pela própria
concebe uma complementariedade entre
substituição da razão prática pela razão
Direito e Moral, aonde a moral funciona
comunicativa — não diz ao indivíduo o que
como uma instância corretiva, que
fazer, mas como chegar a essa conclusão a
fundamenta o Direito para além do seu
partir de um procedimento discursivo
formalismo (legalidade)7.
(HABERMAS, 1989), que só pode ser
alcançada na base de ―condições ideias de 7
Essa primeira tentativa de Habermas em conciliar
discurso‖, enunciada por Habermas com uma teoria do direito com o Agir Comunicativo,
está presente no texto Tanner Lectures, cujo
suporte em dois princípios orientadores: a) aprofundamento poderia ser objeto de outro artigo,
63
Numa sociedade complexa, contudo, membros do direito que se
reconhecem mutuamente como
―onde o direito tem que prestar a difícil membros iguais e livres de
função social de mediação dos conflitos, uma associação estabelecida
livremente. (HABERMAS,
não há como fundamentar o direito em um 2003, p. 145).
procedimento discursivo exterior a própria Dessa forma, ao lançar as bases do
gênese do direito‖ (SIMIONI, 2016, p. que batizou ―democracia deliberativa‖,
115). Ou seja, nesta nova e refinada fase Habermas contrapõe dois modelos
do pensamento habermasiano, direito e políticos (liberal e republicano), por onde
moral deixam uma relação de articula um crossing-over entre soberania
complementariedade, por uma relação de popular e direitos subjetivos, eixo, afinal,
co-originalidade, aonde não existe uma de sua proposição teórica. Segundo o
hierarquia da moral sobre o direito, mas autor, há de se observar no âmbito do
uma co-dependência. Moral e direito, republicanismo e também do liberalismo,
portanto, nascem num mesmo momento e aspectos positivos e negativos, cujo
num mesmo processo, como fluxos da ligamento dos primeiros, encerraria na
relação circular entre autonomia privada e superação dos últimos (HABERMAS,
autonomia pública. 2002b).
Habermas então pugna pela Deste modo, enquanto que na
institucionalização do princípio do política liberal, o aparelho normativo do
discurso (D), como forma de garantir um Estado institui liberdades individuais,
ambiente ideal para o processo de dando, portanto, ênfase aos direitos
formação normativa. Assim, humanos em face da autonomia pública, o
que evita, por exemplo, o perigo de
o princípio da democracia
destina-se a amarrar um maiorias tirânicas violarem os direitos das
procedimento de normatização
legítima do direito. Ele minorias, tal perspectiva centra a
significa, com efeito, que performance política no ente estatal,
somente podem pretender
validade legítima as leis desprezando a participação popular e, com
jurídicas capazes de encontrar
isso, a autodeterminação dos cidadãos. No
o assentimento de todos os
parceiros do direito, num modelo republicano, a contrario, o que se
processo jurídico de
normatização discursiva. O coloca em segundo plano naquele, torna-se
princípio da democracia
prima ratio neste, ao liberar o potencial
explica, noutros termos, o
sentido performativo da prática comunicativo dos cidadãos, a partir de um
de autodeterminação de
processo coletivo de formação da vontade

mas fugindo ao nosso objetivo atual - haja vista o


e opinião pública, à guisa de um
abandono desta tese pelo nosso autor - nos autoentendimento e auto-organização,
reservamos a esse breve apontamento sobre o tema.

64
permanecendo alheio, contudo, à Assim, moral e direito defluem de um
normatização jurídica, numa dependência mesmo rio: ao tempo que os autores do
da virtude dos cidadãos em prol do bem direito são também destinatários, o
comum, mostrando-se, nesse sentido, por exercício da autonomia privada (como
demais idealista. (HABERMAS, 2002b). destinatários) possibilita a autonomia
Traçada tais considerações, parece pública (como autores) e vice-versa.
haver prima facie uma dissonância entre Dessa sorte, por meio de um
direitos humanos e soberania popular, pois procedimento discursivo
a opção de um inviabilizaria o outro, institucionalizado, o projeto teórico
levando, em todo caso, ao impasse. habermasiano, permite a convivência
Buscando uma alternativa nesta fenda, harmoniosa entre as liberdades individuais
Habermas oferece-nos uma síntese entre os (autonomia privada), como expressão da
dois modelos retro citados, aonde ―as participação livre dos atores no jogo
autonomias privada e pública pressupõe-se argumentativo, e a ―soberania popular‖
reciprocamente‖ (HABERMAS, 2001, p. (autonomia pública), como expressão do
149). consenso que surge entorno do melhor
Mas, afinal, o que isso quer dizer? argumento.
Como Habermas rejeita a tese da
8
existência de direitos naturais , ele concebe RELIGIÃO E ESPAÇO PÚBLICO:
NOS TRILHOS DE UMA
os direitos subjetivos como fruto do
―SOCIEDADE PÓS-SECULAR‖
próprio processo democrático, que só pode
Partindo das tensões que contornam
legitimar-se com a garantia dos direitos
a modernidade, Habermas converge seu
individuais. (HABERMAS, 2004).
arcabouço teórico num projeto unificador.
Com isso, não existe autonomia
Se sua especialidade é transformar
privada sem autonomia pública e nem
conflitos em paisagens, o horizonte de uma
autonomia pública sem autonomia privada;
―sociedade pós-secular‖ só pode então
―não há direito privado legítimo que não
fundar-se numa fissura.
tenha sido criado publicamente. Como
Após a virada do milênio, o avanço
também não há direito público legítimo
crescente das religiões e sua politização em
que não tenha sido criado com a
escala global atraíram os olhos de
participação de todos os indivíduos
Habermas a uma nova reflexão acerca do
privados‖ (SIMIONI, 2016, p. 146).
mundo contemporâneo. Numa era aonde
8
Em síntese, direitos naturais podem ser
concebidos como aqueles outorgados aos homens
duas tendências contrárias buscam
pela sua própria natureza, em outros termos, demarcar os seus espaços — de um lado a
direitos que antecedem a própria existência do
Estado. proliferação de imagens de mundo
65
naturalista (ciência) e, de outro, a ascensão (HABERMAS, 2013, p. 5), como se a
cada vez mais latente de religiosos as derrocada de uma fosse sinônimo de
instâncias de poder (HABERMAS, 2007, sucesso da outra e vice-versa.
p. 7) —, ―a ‗secularização‘ continua a ser Assim, o que Habermas batiza de
dominada por sentimentos ambivalentes‖ ―sociedade pós-secular‖ é uma tentativa de
(HABERMAS, 2013, p. 3-4), o que recompor os desgastes sofridos pela
Habermas cunha na forma de uma modernidade, através de uma
modernidade com ―cabeça de Jano‖ ―reconciliação‖ entre ―fé‖ e ―saber‖. Numa
(HABERMAS, 2013, p. 3). sociedade, em que a religião persiste
Para bem compreender este cenário, mesmo em face da resistência científica, o
antes é necessário aferir com certa nitidez ―pensamento pós-metafísico‖ já não pode
o que foi o ―processo de secularização‖ e descartar as formas religiosas de vida e
como esse movimento suscitou enxergar o mundo unicamente pela óptica
importantes mudanças e conflitos no da razão.
transcurso da história. Sobre isso, Habermas parte do pressuposto de
Habermas oferece-nos duas interpretações que a semântica religiosa guarda instintos
distintas: a secularização na perspectiva de moralidade, de ―humanidade‖ e de
jurídica de transferência compulsória dos ―bem comum‖ que interessam a uma
bens da Igreja para o Estado; e a sociedade egocêntrica e tecnicista
secularização na perspectiva sociológica de (HABERMAS, 2007), deixando claro que
substituição das imagens religiosas de vida existe no saber religioso potenciais
pelas imagens de mundo racionalizadas conteúdos de verdade, que não podem ser
(HABERMAS, 2013). Assim, a depender desprezados ou mesmo taxados como
do enfoque adotado, a secularização tanto irracionais. A propósito, sobre isso,
pode representar o progresso de uma defendendo os postulados de Hegel, afirma
modernidade desencantada (enfoque o autor que:
sociológico), quanto à ruína de uma
as grandes religiões constituem
modernidade desamparada (enfoque parte integrante da própria
jurídico) (HABERMAS, 2013). Em todo história da razão. Já que o
pensamento pós-metafísico
caso, como salienta Habermas, ambas não poderia chegar a uma
compreensão adequada de si
cometem o mesmo erro: ―elas consideram mesmo caso não incluísse na
a secularização um jogo de soma zero própria genealogia as tradições
metafísicas e religiosas. De
entre, de um lado, as forças produtivas da acordo com tal premissa, seria
irracional colocar de lado essas
ciência e da técnica, liberadas pelo
tradições ―fortes‖ por
capitalismo e, de outro, os poderes considerá-las um resíduo
arcaico. [...] Até o presente, as
conservadores da religião e da Igreja‖ tradições religiosas
66
conseguiram articular a Com essa postura, Habermas milita
consciência daquilo que falta.
Elas mantêm viva a pelo diálogo entre cidadãos religiosos e
sensibilidade para o que lhes não religiosos, a fim de permitir a troca de
falhou. Elas preservam na
memória dimensões de nosso conhecimentos entre visões de mundo
convívio pessoal e social, nas
quais os progressos da distintas, porém, capazes de influenciarem-
racionalização social e cultural se mutuamente. Para tanto, a laicidade no
provocaram danos
irreparáveis. Que razão as contexto do Estado Democrático de Direito
impediria de continuar
precisa ser entendida do ponto de vista da
mantendo potenciais
semânticos cifrados capazes de neutralidade estatal, isto quer dizer, que
desenvolver força inspiradora
– depois de vertidas em nem uma visão religiosa, nem uma visão
verdades profanas e discursos
secularizada, gozam de prerrogativas na
fundamentadores?
(HABERMAS, 2007, p. 13- esfera pública (HABERMAS, 2007).
14).
Dessa maneira, o Estado se mantém leigo
Assim, Habermas concebe na forma acerca das cosmovisões abrangentes, de
do ―pensamento pós-metafísico‖ um modo a garantir ―a plena e igual
processo de autorreflexão entre ―fé‖ e participação de todos os cidadãos,
―saber‖, rompendo com uma visão independentemente de suas idéias amplas
totalitária de mundo, seja aquela sobre a realidade‖ (ZABATIEIRO, 2008,
empreendida por um radicalismo religioso p. 145). A laicidade, portanto, tomando as
de imposição da fé como verdade absoluta, considerações habermasianas, não se funda
ou mesmo aquela fruto de uma exclusivamente na separação entre Estado
―racionalização desenfreada‖ que insiste e Igreja, ela é mais ampla e importa na
no combate a qualquer forma piedosa de separação entre Estado e visões de mundo,
vida. Na síntese habermasiana, o quaisquer que sejam.
pensamento pós-metafísico significa, Essa formulação abre a agenda
portanto, pública para que também os religiosos
possam participar do processo
uma dupla atitude perante a
religião, porquanto ele é democrático. Contudo, essa participação
agnóstico e está, ao mesmo
tempo, disposto a aprender. não se dá de maneira ilimitada, já que o
Ele insiste na diferença entre próprio autor se encarrega de estabelecer
certezas de fé e pretensões de
validade contestáveis em algumas regras de funcionamento, que por
público; abstém-se, porém, de
adotar uma presunção
sinal acabam criando alguns pontos de
racionalista, a qual levaria a fragilidade na sua proposta.
pretender decidir por si mesmo
sobre o que é racional e o que Como o Poder Público deve
não é nas doutrinas religiosas. permanecer neutro em relação às visões de
(HABERMAS, 2007, p. 162).
mundo, as decisões estatais não podem
67
fundar-se em argumentos próprios de aparecer como argumentos acessíveis em
algum seguimento de fé, motivo pelo qual, geral‖ (HABERMAS, 2007, p. 149-150).
―sem uma tradução bem-sucedida, o Com isso, Habermas procura superar a
conteúdo das vozes religiosas não assimetria entre as cargas depositadas em
conseguiria entrar de forma alguma, nas cada grupo de cidadãos, de modo a
agendas e negociações das instituições equalizar a participação desses atores no
estatais, o que impediria de ‗influenciar‘ o jogo democrático.
processo político ulterior‖ (HABERMAS, Recuperando os institutos morais e
2007, p. 150). de ―bem comum‖, salvaguardados nas
Dessa forma, Habermas cria uma cosmovisões religiosas, Habermas rechaça
sobrecarga para o cidadão crente, que uma ―secularização aniquiladora‖ e propõe
precisará sempre traduzir os seus discursos um modelo político capaz de incluir todas
9
para uma linguagem secular , caso queira as vozes no debate público, ainda que essas
influir no processo deliberativo. Essa vozes se posicionem em lados avessos. Por
exigência, no fim, põe em cheque a própria mais que seu projeto seja alvo de críticas
neutralidade do Estado, pois a adoção da — o que para o autor não é um problema,
linguagem secular como uma linguagem ao contrário permite o fluxo dialético do
universal, aponta em certa medida para qual é sectário — as possibilidades abertas
uma superioridade entre as visões por sua ―teoria da religião‖, permitem
(ZABATEIRO, 2008). pensarmos o mundo para além do
Em sua defesa, Habermas argumenta horizonte visível. Uns o acusarão de
que ―tal trabalho de tradução tem de ser utópico, preferimos, no entanto,
entendido, ―como uma tarefa cooperativa sonhador... Sabendo, é claro, que sendo o
da qual participam igualmente cidadãos sonho próprio de todos nós, ―não existe
não-religiosos‖ (HABERMAS, 2007, p. nenhuma realidade, sem que antes se tenha
149). Além disso, se por um lado os não- sonhado com ela‖10.
religiosos devem destinar esforços como
auxiliares na tradução dos discursos dos O CRESCIMENTO RELIGIOSO
NO CENÁRIO POLÍTICO
seus concidadãos crentes, por outro ―os
NACIONAL E A AMPLIAÇÃO
cidadãos seculares se abrem a um possível DO ROL DOS LEGITIMADOS DO
conteúdo de verdade de contribuições ARTIGO 103: NA POROROCA
religiosas e entram em diálogos nos quais BRASILEIRA, UMA ANÁLISE
as razões religiosas podem, eventualmente,
10
Frase atribuída a Teotônio Vilela, político e um
dos principais líderes da redemocratização. Em sua
9
Segundo Habermas, uma ―linguagem acessível a homenagem, Milton Nascimento e Fernando Brant
todos‖. compuseram a canção ―Menestrel das Alagoas‖.

68
HABERMASIANA DA PEC que visa eliminar uma norma
99/2011 inconstitucional do sistema , não existe,12

portanto, nem partes, nem lide, como num


Proposta pelo então Deputado
processo ordinário, motivo pelo qual sua
Federal João Campos com apoio da Frente
propositura não pode ser feita de maneira
Parlamentar Evangélica, a PEC 99/2011
irrestrita, pelo que se editou o art. 103 da
inicialmente foi concebida nos seguintes
Constituição Federal de 1988, com o rol de
termos: ―Acrescenta ao art. 103, da
legitimados universais e especiais.
Constituição Federal, o inc. X, que dispõe
Com a Constituição de 1988, o
sobre a capacidade postulatória das
monopólio do Procurador-Geral da
Associações Religiosas para propor ação
República cedeu a uma ampliação
de inconstitucionalidade e ação
significativa do rol de legitimados, levando
declaratória de constitucionalidade de leis
inclusive a divisão entre legitimados
ou atos normativos, perante a Constituição
universais e legitimados especiais.
Federal‖ (BRASIL, 2011).
Consoante Luís Roberto Barroso, são
Em que pese o constitucionalismo
legitimados universais ―aqueles cujo papel
brasileiro11, o controle concentrado de
institucional autoriza a defesa da
constitucionalidade, de influência
Constituição em qualquer hipótese‖
kelseniana, foi adotado pela primeira vez
(BARROSO, 2012, p. 130); e legitimados
no Brasil em 1965, através da Emenda
especiais ― os órgãos e entidades cuja
Constitucional n. 16 deste mesmo ano,
atuação é restrita às questões que
cabendo ao Procurador-Geral da República
repercutem diretamente sobre sua esfera
à legitimidade para propositura de ―ação
genérica‖ (BARROSO, 2012, p. 42). Em 12
Acresce-se a essa afirmação, a existência no
direito pátrio da Ação Declaratório de
regra, o controle de constitucionalidade Constitucionalidade (ADC), que visa declarar a
concentrado é exercido por via direta, isto compatibilidade de uma lei ou ato normativo
federal com a Carta Magna, eliminando incertezas
é, pela propositura de uma ação autônoma jurídicas conflitantes e estabelecendo uma
orientação uniforme da matéria (BARROSO, 2012,
p. 153-154). Ainda no campo das ações diretas,
desde a Constituição de 1988 existe a figura da
11
Este modelo foi desenvolvido na Europa em Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão
contraposição ao controle difuso americano. (ADO), que visa guardar o ―[...] ordenamento
Enquanto que no sistema difuso, qualquer juiz no constitucional, afetado [por uma] lacuna normativa
exercício de suas funções jurisdicionais pode ou pela existência de um ato normativo reputado
determinar a inconstitucionalidade de uma norma insatisfatório ou insuficiente‖ (BARROSO, 2012,
em face da Lei Maior, ―no sistema concentrado, o p. 163), em ambos os casos a ADO tem como
controle de constitucionalidade é exercido por um finalidade dar eficácia a norma constitucional em
único órgão ou por um número limitado de órgãos face de uma omissão normativa. Finalmente, sem
criados especificamente para esse fim ou tendo qualquer pretensão de aprofundamento sobre o
nessa atividade sua função principal‖ (BARROSO, tema, mas a título informativo, existem ainda duas
2012, p. 42). No Brasil, ambos os modelos hipóteses especiais de controle concentrado, a
coexistem, assim tanto o Supremo Tribunal Federal Arguição de Descumprimento de Preceito
(STF) pode avaliar a inconstitucionalidade de leis Fundamental (ADPF) e a Ação Direta Interventiva
por meio do controle concentrado, como também os (BARROSO, 2012, p. 210).
juízes e tribunais inferiores pela via difusa.
69
jurídica ou de seus filiados e em relação às protestante na esfera legislativa, em suma,
quais possam atuar com representatividade pelos movimentos sociais e grupos
adequada‖ (BARROSO, 2012, p. 130). minoritários (inclusive religiosos), que
A década de 80, sem dúvida, atentos às pautas defendidas pelos
inaugurou um novo momento na história evangélicos, temiam (e ainda temem) pelo
do Brasil, seja pelas lutas sociais travadas ―retrocesso‖ em alguns setores caros a
durante esse período, seja por uma nova esses grupos, como o casamento
fase no direito brasileiro agora à sombra de homoafetivo (que é hoje sustentado por
uma Constituição Cidadã. Esse novo força de uma articulação jurídica e não
tempo que passo a passo se modelava, política), aborto, et cetera. Do ponto de
trazia consigo não só jovens entusiastas vista constitucional, saltam aos olhos dos
com os destinos da nação, mas uma série estudiosos do direito, os efeitos dessa
de mudanças estruturais, cujas atuação massiva sobre o princípio da
consequências sequer sondavam o laicidade estatal, que hora ou outra é
imaginário social. Comecemos pelo invocado como premissa para questionar
crescimento demográfico dos evangélicos, essa frenética movimentação religiosa nos
em suma, os pentecostais, que logo neste espaços decisórios.
período iniciaram um acentuado e Assim, em busca de respostas,
―inusitado ativismo político‖ (TREVISAN, encontramos na PEC 99/2011 um
2013, p. 33). excelente ponto de partida, já que conjuga
Esse crescimento vertiginoso os dois grandes fenômenos que
possibilitou que, em 2003, surgisse a mencionamos até aqui: de um lado, o
Frente Parlamentar Evangélica, enfim fenômeno do avanço religioso, que na
congregando num mesmo bloco os figura da FPE transparece o ímpeto dos
parlamentares desta orientação religiosa, religiosos em participar cada vez mais da
malgrado seja verdade a presença de vida política nacional; de outro, o
alguns católicos nas legislaturas mais fenômeno jurídico, já que o teor da PEC
recentes. Um fato curioso é que a despeito demanda por uma alteração no art. 103/CF
de sua criação no ano de 2003, somente em e, com isso, o aumento de legitimados para
2015 a FPE foi registrada oficialmente no propositura de ADI e ADC.
Congresso Nacional, quando então atingiu Para tanto, optamos por um marco
o número mínimo de filiados exigidos para teórico que oferecesse não só um norte
que pudesse haver sua institucionalização. para análise da participação religiosa em
Evidentemente, a presença desses instâncias públicas, mas também um
parlamentares, desde o início, levantou parâmetro político a nível geral, in casu, os
uma onda de suspeitas sobre a atuação conceitos de ―sociedade pós-secular‖ e
70
―democracia deliberativa‖ oferecidos todas as Constituições da República...‖
Habermas. (BRASIL, 2011).
Sendo nosso objetivo analisar a PEC Citam, neste momento, a importância
99/2011 de acordo com os postulados dos movimentos evangélicos na
habermasianos, apresentaremos abaixo os estabilização de princípios constitucionais,
resultados e discussões da análise que ressaltando a importância da constituição
fizemos da peça inicial, dos pareceres como um ―instrumento de garantia
aprovados na Comissão Especial e na individual e de limitação do poder do
Comissão de Constituição, Justiça e Estado...‖ (BRASIL, 2011), inclusive no
Cidadania (CCJC) da Câmara dos tocante a liberdade de culto e na
Deputados13 e da Audiência Pública consolidação da ―autonomia privada de
convocada para discussão PEC, organização das confissões religiosas‖
confrontando os argumentos e (BRASIL, 2011).
fundamentações oferecidos pelos Como justificativa à modificação
deputados e outros participantes com os pretendida, o receio de violações por parte
conceitos e pressupostos teóricos do órgão legiferante de direitos
sedimentados na obra de Jürgen Habermas. fundamentais garantidos aos religiosos foi
posto como principal argumento a se
RESULTADOS E DISCUSSÃO conferir às entidades religiosas de âmbito
nacional capacidade postulatória para
A construção argumentativa traçada
posição de ADI e ADC em face de lei ou
pelos deputados propõe uma análise
ato normativo (BRASIL, 2011), o que
histórica e jurídica da questão. Iniciam
segundo os proponentes,
lembrando da transição entre o Estado
confessional do Império e o Estado laico Não poderia ser de outro
modo, visto que cada
do sistema republicano. Sobre isso,
segmento religioso se rege por
recorrem ao Decreto 119-A, de 7 de valores e normas próprias, o
que nos seus contornos
janeiro de 1890, redigido por Rui Barbosa determinam a subordinação a
ainda durante o Governo Provisório, que uma crença espiritual, que
dado a singularidade que
de acordo com os proponentes, criou os assume acabam por distinguir
os diversos credos e formas de
alicerces necessários para o culto, tornando implícito ao
desenvolvimento da liberdade religiosa direito e liberdade de culto,
portanto, a especial autonomia
―que iria permear de forma progressiva de se determinar segundo os
preceitos de sua fé ou como
13
Até a conclusão desta pesquisa a PEC não seja o de cada segmento se
chegou a ir para votação em plenário. Por esse autoorganizar, sem a
motivo, consideramos apenas as discussões e intromissão do Poder Público
pareceres aprovados nestas duas comissões.

71
ou qualquer outra inferência. Em particular, a atribuição de
(BRASIL, 2011). legitimidade ao Conselho
Federal da Ordem dos
Os pareces aprovados na CCJC e na Advogados do Brasil, aos
partidos políticos com
Comissão Especial, atentam para representação no Congresso
importância das entidades religiosas para Nacional e às confederações
sindicais e entidades de classe
vida nacional, reconhecendo não só sua de âmbito nacional
democratizou sensivelmente o
influência, como também a sensibilidade acesso à jurisdição
desses grupos para determinados assuntos, constitucional, criando um
amplo canal para que as
inclusive na qualidade de pressupostos aspirações da sociedade civil
fossem levadas à discussão e
interpretativos às normas jurídicas
decididas pela mais alta corte
(BRASIL, 2011, ANDRADA, 2011). Na de justiça do País. Numa
importante inovação, o
CCJC, o relator dep. Bonifácio de Constituinte originário
Andrada, apenas salientou que não haveria reconheceu o valor dessas
organizações não estatais
necessidade de se distinguir grupos como veículo de expressão dos
anseios do povo brasileiro para
religiosos para fundamentar as razões da fazer respeitar o texto da
proposta, ―pois o que se pretende Constituição Cidadã.
Entidades da sociedade civil
democraticamente é estender a todas as podem agora participar
diretamente nos processos de
entidades religiosas prerrogativas de
construção do sentido da
participar do processo decisivo de Carta de 1988, o que
robustece a força normativa
manutenção da ordem jurídica no país de seu texto e consolida a
tendo em vista os interesses morais de expressão da vontade
soberana do povo brasileiro
todas as crenças‖ (ANDRADA, 2011). (grifo nosso). (BRASIL,
2011).
Na comissão especial, o parecer
aprovado atentou quanto à supremacia da Outro efeito provocado por essa

Constituição e a importância do controle guinada no rol dos legitimados foi à

de constitucionalidade para efetivação consolidação do STF como instância

daquele princípio. Nesta senda, se prima contramajoritária, posto que os partidos de

facie, cabia apenas ao Procurador-Geral da oposição, não tendo força no Congresso

República a faculdade de propor ações em Nacional para obstar determinados

sede de controle abstrato, a Carta Política projetos, passaram a recorrer a Suprema

de 1988 tornou-se o paradigma da abertura Corte, informando com isso a magnitude

deste rol a outros entes, inclusive na da mudança provocada com o texto

democratização quanto à penetração dos constitucional de 1988 na defesa dos

anseios sociais na agenda do STF. direitos das minorias. (BRASIL, 2011).

(BRASIL, 2011). Nas palavras do relator: Percebe-se nestes levantamentos,


portanto: i) a tentativa de abrir cada vez

72
mais o espaço público formal para modelo francês, aonde a separação entre
participação dos atores sociais, o que Estado e religião se dá de maneira mais
corrobora para legitimação das decisões agressiva, impedindo inclusive objetos de
públicas, bem como a criação de uma rede cunho religiosa em escolas públicas; ii)
circular, aonde os atores individuais modelo de separação atenuada, ou de
participando do processo deliberativo sobriedade, ou modelo americano, aonde
(autonomia privada), viabilizam a há uma maior abertura do Estado para os
construção de uma autonomia pública; e, setores religiosos; e iii) modelo do Estado
ii) a necessidade de permitir que as ateu, que repele todo resquício de
minorias tenham condições de defender os religiosidade (BRASIL, 2011). Com essa
seus direitos subjetivos, em face de uma divisão, o relator enquadra a democracia
ditadura da maioria. brasileira próxima ao modelo americano,
Durante a Audiência Pública, uma vez que a ―noção de religiosidade está
convocada em virtude da PEC 99/2011, o profundamente impregnada no
ministro Ives Gandra Filho, criticou a ideia ordenamento constitucional...‖ (BRASIL,
de um estado laicista, isto é, no entender 2011), como a defesa a liberdade de
do ministro, uma configuração social que crença, a tutela de locais litúrgicos, a
exorta todas as formas de vida religiosas à garantia da assistência religiosa em
esfera íntima dos indivíduos, excluindo-as entidades prisionais, entre outros
do debate político e de qualquer relevância (BRASIL, 2011). Assim, ―ignorar a
externa. Interessante o apontamento do importância, a presença, a atuação e a
ministro de que o STF expressa um influência dos movimentos religiosos da
preconceito contra as contribuições sociedade é, na verdade, não levar em
religiosas, dando sempre primazia a conta um dos elementos decisivos e
14
argumentos científicos . primordiais para a vida do cidadão‖.
Nesta senda, em consonância com a (BRASIL, 2011).
fala do ministro, o relator dep. Bonifácio Ao conceber a neutralidade estatal
de Andrada, na Comissão Especial, como um paradigma da laicidade,
procedeu a uma classificação entre três Habermas não veda as portas do
modelos de laicidade: i) modelo de parlamento para a participação religiosa,
separação absoluta, ou de vigilância, ou ao contrário, reconhece a importância
desses cidadãos para o processo
14
Sobre isso ver: CORREIA, Raique Lucas de democrático, apenas impõe pela
Jesus; GAMA, Marta. ―As duas faces de Jano‖: o
eclesiástico e o secular na ADPF 54 à luz da apresentação de argumentos racionais na
filosofia de Jürgen Habermas. Diálogos Possíveis,
v. 17, n. 1, 2018. defesa de suas teses, haja vista que o
Estado não pode fundar-se em razões
73
propriamente religiosas. O que se percebe, andam juntas como siameses. Dessa sorte,
portanto, é que os deputados cumpriram para que haja ―soberania popular‖ num
com esse requisito, pois buscaram uma Estado Democrático de Direito, os
explicação histórica e ao mesmo tempo cidadãos precisam ter as suas liberdades
jurídica em favor da PEC 99/2011, individuais garantidas, precisam poder se
atentando inclusive para outras autodeterminar-se, logo a PEC 99/2011
considerações transversais da obra de surge como um amplificador da garantia
Habermas, como a defesa dos potenciais desses direitos subjetivos de participação,
conteúdos de verdade que existe na ao considerar, que o os agentes estatais no
semântica religiosa e a necessidade de exercício de suas funções legislativas,
comportar também os círculos religiosos eventualmente podem violar questões
no processo deliberativo. inerentes à liberdade religiosa ou de culto,
pelo que se faz necessário, permitir que as
entidades religiosas promovam ações, para
o controle dessas leis ou atos normativos,
―na defesa racional e tolerante (grifo
CONCLUSÃO
nosso) dos direitos primordiais conferidos

A PEC 99/2011 pugna pela a todos os cidadãos indistintamente e

ampliação do rol de legitimados do art. coletivamente aos membros de um

103, isso quer dizer, uma maior abertura determinado segmento religioso,

do espaço público para outras vozes além observados o caráter nacional de sua

daquelas já estabelecidas. estrutura‖ (BRASIL, 2011).

Os religiosos representam hoje a É verdade, que a PEC ainda não foi

maior parcela da população brasileira. submetida ao crivo do plenário para que

Segundo dados do Censo 2010, divulgado encontre uma discussão argumentativa

pelo IBGE, mais de 90% da população mais profícua, contudo, não se pode

brasileira se declara religiosa. Ou seja, não afirmar que seu teor viola a laicidade

há como imaginar um cenário democrático estatal ou direitos subjetivos dos não-

sem a participação dessas pessoas no crentes, afinal, ela não visa excluir o

processo deliberativo, do contrário, espaço, mas ampliar para que nele ressoem

eliminaríamos qualquer possibilidade de mais vozes, inclusive a de grupos

um projeto democrático legítimo e religiosos minoritários, como os espíritas e

inclusivo, nos moldes desenhados por adeptos de religiões de matriz africana.

Habermas. Além disso, é preciso salientar que a

Numa ―democracia deliberativa‖, PEC 99/2011 considera as entidades

autonomia privada e autonomia pública religiosas de âmbito nacional como


74
legitimados especiais, ou seja, para que
possam se valer da prerrogativa atribuída,
as entidades religiosas precisarão
comprovar pertinência temática, isto limita
o exercício dessas instituições a leis que
eventualmente venham prejudicar direitos
fundamentais dos crentes, como a
liberdade de culto ou a liberdade religiosa.
Não obstante, as vozes desses grupos
já viam sendo ―contempladas‖ pelo
Supremo Tribunal Federal em outras
ocasiões, como em audiências públicas e
em alguns casos através do instituto do
REFERÊNCIAS
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―interesse‖ do STF em aferir as ALBAN, Rafaela. Uma releitura da
culpabilidade penal a partir da concepção
contribuições argumentativas desses habermasiana. Boletim Conteúdo Jurídico,
setores para o julgamento de casos v. 532, 2016.
relevantes. Vislumbramos, portanto, que a ARAUJO, Luiz Bernardo Leite. Weber e
PEC 99/2011, contempla os pressupostos Habermas: religião e razão
moderna. Síntese: Revista de Filosofia, v.
estabelecidos por Habermas, ao: i) 21, n. 64, 1994.
reconhecer a importância e permanência
ANDRADA, Bonifácio de. Câmara dos
das religiões nas sociedades secularizadas; Deputados. Comissão de Constituição e
ii) admitir a existência de possíveis Justiça e de Cidadania. Proposta De
Emenda À Constituição Nº 99, De 2011.
contribuições de ordem moral advindas do Parecer. Disponível
saber religioso; iii) viabilizar a defesa da em: https://www.camara.leg.br/proposicoe
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Editor: Professor Doutor José Euclimar Xavier Menezes

Centro Universitário Social da Bahia (UNISBA)

Avenida Oceânica 2717, CEP – 40170-010


Ondina, Salvador – Bahia.

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Telefone: 71- 4009-2840

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