Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
3
SET-DEZ 2019
Na fissura entre Laicidade e
ISSN 2447-9047
Democracia no Legislativo
Brasileiro: Um olhar sobre a PEC
99/2011 através do horizonte
Teórico Habermasiano
IN THE CRACK BETWEEN LAICITY AND
DEMOCRACY IN THE BRAZILIAN LEGISLATIVE: A
LOOK AT PEC 99/2011 THROUGH THE HABERMASIAN
THEORETICAL HORIZON
RESUMO
52
constituição da Frente Parlamentar desconexos da modernidade, trouxe à tona
Evangélica, no ano de 2003, demonstra a o ideal de uma democracia participativa,
força política deste grupo, cuja atuação não ao lado de um arranjo social capaz de
pode mais ser ignorada nas análises reunir num mesmo espaço, através de
políticas do país. (TREVISAN, 2013). processos bilaterais de aprendizagem e
Esse contexto lança a necessidade de cooperação, as duas "faces de Jano",
olhares mais aguçados sobre a questão da proposição inovadora e ao mesmo tempo
laicidade estatal ante a intensa penetração oposta a máxima secular comum de
de setores religiosos no espaço público, depuração da arena pública de quaisquer
sobretudo no que diz respeito à interação influências advindas de setores religiosos.
entre o ―sagrado‖ e o ―profano‖ no âmbito (HABERMAS, 2007; 2013).
institucional, onde decisões fundamentais Ao reconhecer os potenciais de ―bem
irradiam seus efeitos para todos os demais comum‖ e ―humanidade‖ presentes na
setores sociais estruturando formas de semântica religiosa, bem como o ―saber
vida, arranjos políticos, sociais e virtuoso‖ na genealogia da razão, o
econômicos. filósofo da Theorie des kommunikativen
É certo que a complexa relação entre Handelns, cunha na modernidade a figura
religião e política não é um tema recente do pensamento pós-metafísico, isto é, uma
de estudo, seja para a ciência política, seja espécie de ―secularização autoreflexiva‖,
para o constitucionalismo democrático. no sentido de tornar viável a troca de
Nas duas últimas décadas, diversas conhecimentos entre as visões piedosas e
questões — surgimento do terrorismo científicas, mantendo sempre – é verdade –
internacional e de partidos conservadores a fronteira entre ―método‖ e ―revelação‖,
em grandes democracias Ocidentais, rechaçando, contudo, um modelo
ambos de inspiração religiosa, os direitos ―cientificista extremado‖ (HABERMAS,
de minorias (religiosas ou não), aborto, 2007).
casamento civil homoafetivo —, têm Ao lado deste ideal, Habermas nos
trazido à tona o tema da presença, oferece um projeto inclusivo, no qual tenta,
permanência e limites da religião na esfera através da razão comunicativa, levar a
pública para o centro do debate politico, efeito no espaço público os ditames de
gerando como consequência um intenso uma democracia deliberativa, incluindo as
debate acadêmico. vozes periféricas no processo decisório, de
Dito isto, levando em conta modo a criar um direito legítimo, capaz de
abundantes teorias, destaca-se neste meio fortalecer a solidariedade entre os atores do
os escritos do pensador Jürgen Habermas, ―mundo da vida‖ e ao mesmo tempo
que no intento de compreender os pontos
53
frustrar o avanço da ―colonização Declaratória de Constitucionalidade
sistêmica‖. (ADC) em face de leis e atos normativos.
Assim, Habermas com sua respeitosa Com isso, tomando o projeto teórico
atenção às religiões, pretende superar as de Jürgen Habermas como parâmetro
forças que ameaçam a desintegração da crítico, o presente artigo buscou analisar a
vida social, mormente aquelas que, incursão legislativa pela aprovação da PEC
acentuando um individualismo existencial, nº 99/2011, de modo a estabelecer se os
evitam as referências religiosas ao discursos e fundamentações apresentados,
considerá-las incompatíveis com o bem como a modificação pretendida no art.
postulado da neutralidade estatal. 103 da Constituição Federal, violam o
Incongruências e as aporias de um sistema princípio constitucional do Estado laico ou,
político que, como o liberal, relega a a contrario sensu, corroboram com o ideal
religião ao âmbito estritamente privado e habermasiano de sociedade pós-secular e
de um Estado que, como efeito desta democracia deliberativa.
premissa, assegura a liberdade religiosa Ao final, sendo os religiosos uma
mais como uma concessão estatal tolerante parcela volumosa da população brasileira,
do que como um direito inalienável à sob a óptica habermasiana, concluímos que
liberdade de expressão. Num e noutro a PEC 99/2011 não viola a laicidade
caso, parte-se do pressuposto da religião estatal, em verdade ao permitir que as
sem qualquer relevância social ou política. instituições religiosas sejam também
(BRUM, 2015). legítimas para proposição de ADI e ADC,
Empenhados em discutir tais incluem essas vozes no processo de
questões no contexto brasileiro, o Projeto formação da opinião e da vontade
de Emenda Constitucional (PEC) nº normativa do Estado, do qual também elas
99/2011 parece-nos um terreno fértil de fazem parte, de modo a favorecer a
estudo, pois além de ter sido proposto pela construção de uma ordem jurídica de fato
Frente Parlamentar Evangélica, demanda legítima.
por uma alteração constitucional no art. Além disso, se por um lado a PEC
103 da Carta Magna, de modo a incluir no 99/2011 milita em prol da soberania
rol dos legitimados para proposição de popular, por outro permite que grupos
determinadas ações também as entidades religiosos minoritários provoquem a
religiosas de âmbito nacional, pelo que Suprema Corte quando se sentirem
poderão - numa eventual aprovação do ameaçados em seus direitos por decisões
projeto – ajuizar, perante o Supremo endossadas por maiorias religiosas,
Tribunal Federal, Ação Direta de corroborando com isso para
Inconstitucionalidade (ADI) e Ação autodeterminação desses grupos em seus
54
direitos subjetivos. Finalmente, para que Escola de Frankfurt, ou mesmo os estudos
possam propor ADI e ADC as entidades de Weber acerca da ―racionalização‖ -
religiosas terão que comprovar pertinência apresenta características próprias que
temática, e o mérito de eventuais pedidos muitas vezes o distancia destas tradições
terão que passar pelo crivo do Supremo (HADDAD, 1997). Além disso, por ser um
Tribunal Federal. Sendo assim, a PEC autor dialético, uma leitura superficial dos
99/2011 e mesmo seu curso pela instância seus escritos pode confundir um leitor
legislativa, haja vista também que as desavisado, pois muitas ideias do próprio
fundamentações trazidas repousam numa autor tornaram-se obsoletas pela
linguagem ―traduzida‖, não ferem o autocrítica. Assim, a bordo de uma leitura
princípio do Estado laico, ao contrário, complexa, sem saber ao certo aonde
concorrem com as teses habermasianas de atracar, Habermas nos instiga a um trajeto
pós-secularização e democracia misterioso, que como a imensidão do
deliberativa, conforme se demonstará. oceano, intimida, mas que além do
horizonte, conserva um mundo imaculado;
DIREITO, DEMOCRACIA E ―territórios desconhecidos‖ a espera de
SOCIEDADE: NO LIMIAR DAS
novos desbravadores.
TEORIAS HABERMASIANAS
A chave para iniciar este percurso,
Caminhar em solo habermasiano
encontra-se no ―salto paradigmático‖,
parece-nos uma aventura desafiadora. Com
aonde Habermas abandonando a filosofia
uma obra bastante extensa, Habermas,
da consciência1, proclama o paradigma da
atravessou o último milênio como um dos
comunicação (PINTO, 1995). Com isso,
mais importantes filósofos do século e,
muito mais do que uma troca de rótulos
mesmo hoje, no auge dos seus 90 anos,
(HABERMAS, 2003, p. 19), Habermas
continua produzindo e influenciando
busca uma nova teoria crítica da sociedade,
estudiosos no mundo todo, que veem nas
opondo ao conceito de ―razão
suas ideias um componente harmonizador
instrumental‖ (ação racional orientada a
do quebra-cabeça social, como se no fim o
fins)2 a noção de ―razão comunicativa‖
modelo teórico de Habermas fosse de fato
a peça que faltava ou pelo menos a que não 1
―O paradigma da consciência é calcado na idéia
fomos capazes de enxergar. de um pensador solitário que busca entender o
mundo a sua volta, descobrindo as leis gerais que o
O olhar de Habermas sobre a governam, revelando a unidade encoberta sob a
diversidade aparente. Neste modelo há uma relação
modernidade, malgrado o predomínio de de subordinação do objeto frente ao sujeito‖
(PINTO, 1995, p. 78).
alguns elementos de outras construções
2
teóricas - como aquela encabeçada por Ao se filiar criticamente ao pensamento de Weber,
Habermas adota o ―processo de racionalização‖
Adorno e Horkheimer, precursores da como um dos fatores que deram causa a
modernidade (HABERMAS, 2002a). Segundo
55
(ação racional orientada ao entendimento), com o mundo e se relaciona com os seus
em que: pares, ―razão e linguagem se identificam
de tal maneira que a linguagem
o paradigmático não é a
relação de um sujeito solitário [transforma-se no] único meio racional
com algo no mundo objetivo, disponível para [se] conhecer a realidade.‖
que pode ser representado e
manipulado, mas a relação (VELASCO, 2003, p. 171).
intersubjetiva que os sujeitos
capazes de linguagem e ação
Dessa maneira, ao fazermos uso da
estabelecem quando se fala, como explica nosso autor, estaremos
entendem sobre algo. Nesse
processo de entendimento, os sempre nos referindo simultaneamente a
sujeitos, agindo um estado-de-coisas no mundo objetivo
comunicativamente,
movimentam-se por meio da (fatos), no mundo social (normas) e no
linguagem natural, usam
interpretações transmitidas mundo subjetivo (experiências
culturalmente e se referem particulares). Com isso, toda vez que uma
simultaneamente a algo no
mundo objetivo, no mundo proposição é feita, o falante levanta uma
social que compartilham e
cada um a algo em seu próprio pretensão de validade, isto é, a expectativa
mundo subjetivo. de que os ―demais participantes da
(HABERMAS, 1987a, p. 499-
500)3. interação [...] reconheçam a verdade
―giro linguístico‖ - o homem se conecta (SIMIONI, 2006, p. 31). Para tal fim, as
pretensões de validade precisarão ser
Weber, a ―racionalização‖ deve ser entendida do justificadas através do jogo argumentativo,
ponto de vista do ―desencantamento do mundo‖,
isto é, a profanação das imagens de mundo, que só afinal, não se pode prever a aceitação dos
foi possível devido ao progresso das ciências
(CORREIA; GAMA, 2018). Assim, o conceito de demais, se não for possível convencê-los
racionalidade, que se extrai do ―processo de
racionalização‖ e encontra em Adorno e da veracidade, retidão e sinceridade
Horkheimer um melhor delineamento, refere-se ao daquilo que foi proposto. Dessa forma, o
avanço da técnica e do método científico como
formas de explorar o mundo; procura-se atingir um participante de uma interação tem
fim e, para tanto, elege-se os meios mais eficazes
para tal, eliminando-se tanto quanto possível os liberdade para expressar o que quiser da
custos e potencializando ao máximos os benefícios,
independentemente das consequências advindas maneira que julgar mais conveniente, no
desta relação (custo-benefício).
3
O que se observa, portanto, é que enquanto os entanto, o assentimento de suas
indivíduos movidos pela razão estratégica buscam manifestações dependerá obrigatoriamente
induzir, seduzir e enganar os outros com vista à
satisfação do seu plano de ação, os atores que se da articulação que ele faz com as
movem segundo os ditames da razão comunicativa,
procuram o convencimento recíproco através do pretensões de validade, a saber:
jogo argumentativo, por meio do qual ambos
possam se entender sobre algo no mundo e com a pretensão de que a afirmação
isso coordenar as suas ações conforme aquilo que que ele faz é verdadeira (ou
foi deliberado durante a interação. que, de fato, as condições de
56
existência do conteúdo racionalidade, que ele denomina razão
proposicional são satisfeitas
quando não são afirmadas, mas estratégica. Na ação teleológica o
apenas ―mencionadas‖); de indivíduo busca atingir um resultado
que o ato de fala está correto
em relação ao contexto específico, para tanto faz uso de cálculos e
normativo atual (ou que o
próprio contexto normativo em métodos, a fim de alcançar êxito na sua
cumprimento sob o qual o ato busca. O agir estratégico, assim como a
é executado, é legítimo); e de
que a intenção expressa pelo ação teleológica, também está orientado a
orador coincide realmente com
um fim, contudo, pressupõe a participação
o que ele pensa.
(HABERMAS, 1987a, p. 144). de outro agente. Nesta ação, o sucesso de
capacidade de agir e falar dos sujeitos; nas outro agente que também age com vistas à
muito menos com a vontade de minorias reclamar validez as normas que encontrem
64
permanecendo alheio, contudo, à Assim, moral e direito defluem de um
normatização jurídica, numa dependência mesmo rio: ao tempo que os autores do
da virtude dos cidadãos em prol do bem direito são também destinatários, o
comum, mostrando-se, nesse sentido, por exercício da autonomia privada (como
demais idealista. (HABERMAS, 2002b). destinatários) possibilita a autonomia
Traçada tais considerações, parece pública (como autores) e vice-versa.
haver prima facie uma dissonância entre Dessa sorte, por meio de um
direitos humanos e soberania popular, pois procedimento discursivo
a opção de um inviabilizaria o outro, institucionalizado, o projeto teórico
levando, em todo caso, ao impasse. habermasiano, permite a convivência
Buscando uma alternativa nesta fenda, harmoniosa entre as liberdades individuais
Habermas oferece-nos uma síntese entre os (autonomia privada), como expressão da
dois modelos retro citados, aonde ―as participação livre dos atores no jogo
autonomias privada e pública pressupõe-se argumentativo, e a ―soberania popular‖
reciprocamente‖ (HABERMAS, 2001, p. (autonomia pública), como expressão do
149). consenso que surge entorno do melhor
Mas, afinal, o que isso quer dizer? argumento.
Como Habermas rejeita a tese da
8
existência de direitos naturais , ele concebe RELIGIÃO E ESPAÇO PÚBLICO:
NOS TRILHOS DE UMA
os direitos subjetivos como fruto do
―SOCIEDADE PÓS-SECULAR‖
próprio processo democrático, que só pode
Partindo das tensões que contornam
legitimar-se com a garantia dos direitos
a modernidade, Habermas converge seu
individuais. (HABERMAS, 2004).
arcabouço teórico num projeto unificador.
Com isso, não existe autonomia
Se sua especialidade é transformar
privada sem autonomia pública e nem
conflitos em paisagens, o horizonte de uma
autonomia pública sem autonomia privada;
―sociedade pós-secular‖ só pode então
―não há direito privado legítimo que não
fundar-se numa fissura.
tenha sido criado publicamente. Como
Após a virada do milênio, o avanço
também não há direito público legítimo
crescente das religiões e sua politização em
que não tenha sido criado com a
escala global atraíram os olhos de
participação de todos os indivíduos
Habermas a uma nova reflexão acerca do
privados‖ (SIMIONI, 2016, p. 146).
mundo contemporâneo. Numa era aonde
8
Em síntese, direitos naturais podem ser
concebidos como aqueles outorgados aos homens
duas tendências contrárias buscam
pela sua própria natureza, em outros termos, demarcar os seus espaços — de um lado a
direitos que antecedem a própria existência do
Estado. proliferação de imagens de mundo
65
naturalista (ciência) e, de outro, a ascensão (HABERMAS, 2013, p. 5), como se a
cada vez mais latente de religiosos as derrocada de uma fosse sinônimo de
instâncias de poder (HABERMAS, 2007, sucesso da outra e vice-versa.
p. 7) —, ―a ‗secularização‘ continua a ser Assim, o que Habermas batiza de
dominada por sentimentos ambivalentes‖ ―sociedade pós-secular‖ é uma tentativa de
(HABERMAS, 2013, p. 3-4), o que recompor os desgastes sofridos pela
Habermas cunha na forma de uma modernidade, através de uma
modernidade com ―cabeça de Jano‖ ―reconciliação‖ entre ―fé‖ e ―saber‖. Numa
(HABERMAS, 2013, p. 3). sociedade, em que a religião persiste
Para bem compreender este cenário, mesmo em face da resistência científica, o
antes é necessário aferir com certa nitidez ―pensamento pós-metafísico‖ já não pode
o que foi o ―processo de secularização‖ e descartar as formas religiosas de vida e
como esse movimento suscitou enxergar o mundo unicamente pela óptica
importantes mudanças e conflitos no da razão.
transcurso da história. Sobre isso, Habermas parte do pressuposto de
Habermas oferece-nos duas interpretações que a semântica religiosa guarda instintos
distintas: a secularização na perspectiva de moralidade, de ―humanidade‖ e de
jurídica de transferência compulsória dos ―bem comum‖ que interessam a uma
bens da Igreja para o Estado; e a sociedade egocêntrica e tecnicista
secularização na perspectiva sociológica de (HABERMAS, 2007), deixando claro que
substituição das imagens religiosas de vida existe no saber religioso potenciais
pelas imagens de mundo racionalizadas conteúdos de verdade, que não podem ser
(HABERMAS, 2013). Assim, a depender desprezados ou mesmo taxados como
do enfoque adotado, a secularização tanto irracionais. A propósito, sobre isso,
pode representar o progresso de uma defendendo os postulados de Hegel, afirma
modernidade desencantada (enfoque o autor que:
sociológico), quanto à ruína de uma
as grandes religiões constituem
modernidade desamparada (enfoque parte integrante da própria
jurídico) (HABERMAS, 2013). Em todo história da razão. Já que o
pensamento pós-metafísico
caso, como salienta Habermas, ambas não poderia chegar a uma
compreensão adequada de si
cometem o mesmo erro: ―elas consideram mesmo caso não incluísse na
a secularização um jogo de soma zero própria genealogia as tradições
metafísicas e religiosas. De
entre, de um lado, as forças produtivas da acordo com tal premissa, seria
irracional colocar de lado essas
ciência e da técnica, liberadas pelo
tradições ―fortes‖ por
capitalismo e, de outro, os poderes considerá-las um resíduo
arcaico. [...] Até o presente, as
conservadores da religião e da Igreja‖ tradições religiosas
66
conseguiram articular a Com essa postura, Habermas milita
consciência daquilo que falta.
Elas mantêm viva a pelo diálogo entre cidadãos religiosos e
sensibilidade para o que lhes não religiosos, a fim de permitir a troca de
falhou. Elas preservam na
memória dimensões de nosso conhecimentos entre visões de mundo
convívio pessoal e social, nas
quais os progressos da distintas, porém, capazes de influenciarem-
racionalização social e cultural se mutuamente. Para tanto, a laicidade no
provocaram danos
irreparáveis. Que razão as contexto do Estado Democrático de Direito
impediria de continuar
precisa ser entendida do ponto de vista da
mantendo potenciais
semânticos cifrados capazes de neutralidade estatal, isto quer dizer, que
desenvolver força inspiradora
– depois de vertidas em nem uma visão religiosa, nem uma visão
verdades profanas e discursos
secularizada, gozam de prerrogativas na
fundamentadores?
(HABERMAS, 2007, p. 13- esfera pública (HABERMAS, 2007).
14).
Dessa maneira, o Estado se mantém leigo
Assim, Habermas concebe na forma acerca das cosmovisões abrangentes, de
do ―pensamento pós-metafísico‖ um modo a garantir ―a plena e igual
processo de autorreflexão entre ―fé‖ e participação de todos os cidadãos,
―saber‖, rompendo com uma visão independentemente de suas idéias amplas
totalitária de mundo, seja aquela sobre a realidade‖ (ZABATIEIRO, 2008,
empreendida por um radicalismo religioso p. 145). A laicidade, portanto, tomando as
de imposição da fé como verdade absoluta, considerações habermasianas, não se funda
ou mesmo aquela fruto de uma exclusivamente na separação entre Estado
―racionalização desenfreada‖ que insiste e Igreja, ela é mais ampla e importa na
no combate a qualquer forma piedosa de separação entre Estado e visões de mundo,
vida. Na síntese habermasiana, o quaisquer que sejam.
pensamento pós-metafísico significa, Essa formulação abre a agenda
portanto, pública para que também os religiosos
possam participar do processo
uma dupla atitude perante a
religião, porquanto ele é democrático. Contudo, essa participação
agnóstico e está, ao mesmo
tempo, disposto a aprender. não se dá de maneira ilimitada, já que o
Ele insiste na diferença entre próprio autor se encarrega de estabelecer
certezas de fé e pretensões de
validade contestáveis em algumas regras de funcionamento, que por
público; abstém-se, porém, de
adotar uma presunção
sinal acabam criando alguns pontos de
racionalista, a qual levaria a fragilidade na sua proposta.
pretender decidir por si mesmo
sobre o que é racional e o que Como o Poder Público deve
não é nas doutrinas religiosas. permanecer neutro em relação às visões de
(HABERMAS, 2007, p. 162).
mundo, as decisões estatais não podem
67
fundar-se em argumentos próprios de aparecer como argumentos acessíveis em
algum seguimento de fé, motivo pelo qual, geral‖ (HABERMAS, 2007, p. 149-150).
―sem uma tradução bem-sucedida, o Com isso, Habermas procura superar a
conteúdo das vozes religiosas não assimetria entre as cargas depositadas em
conseguiria entrar de forma alguma, nas cada grupo de cidadãos, de modo a
agendas e negociações das instituições equalizar a participação desses atores no
estatais, o que impediria de ‗influenciar‘ o jogo democrático.
processo político ulterior‖ (HABERMAS, Recuperando os institutos morais e
2007, p. 150). de ―bem comum‖, salvaguardados nas
Dessa forma, Habermas cria uma cosmovisões religiosas, Habermas rechaça
sobrecarga para o cidadão crente, que uma ―secularização aniquiladora‖ e propõe
precisará sempre traduzir os seus discursos um modelo político capaz de incluir todas
9
para uma linguagem secular , caso queira as vozes no debate público, ainda que essas
influir no processo deliberativo. Essa vozes se posicionem em lados avessos. Por
exigência, no fim, põe em cheque a própria mais que seu projeto seja alvo de críticas
neutralidade do Estado, pois a adoção da — o que para o autor não é um problema,
linguagem secular como uma linguagem ao contrário permite o fluxo dialético do
universal, aponta em certa medida para qual é sectário — as possibilidades abertas
uma superioridade entre as visões por sua ―teoria da religião‖, permitem
(ZABATEIRO, 2008). pensarmos o mundo para além do
Em sua defesa, Habermas argumenta horizonte visível. Uns o acusarão de
que ―tal trabalho de tradução tem de ser utópico, preferimos, no entanto,
entendido, ―como uma tarefa cooperativa sonhador... Sabendo, é claro, que sendo o
da qual participam igualmente cidadãos sonho próprio de todos nós, ―não existe
não-religiosos‖ (HABERMAS, 2007, p. nenhuma realidade, sem que antes se tenha
149). Além disso, se por um lado os não- sonhado com ela‖10.
religiosos devem destinar esforços como
auxiliares na tradução dos discursos dos O CRESCIMENTO RELIGIOSO
NO CENÁRIO POLÍTICO
seus concidadãos crentes, por outro ―os
NACIONAL E A AMPLIAÇÃO
cidadãos seculares se abrem a um possível DO ROL DOS LEGITIMADOS DO
conteúdo de verdade de contribuições ARTIGO 103: NA POROROCA
religiosas e entram em diálogos nos quais BRASILEIRA, UMA ANÁLISE
as razões religiosas podem, eventualmente,
10
Frase atribuída a Teotônio Vilela, político e um
dos principais líderes da redemocratização. Em sua
9
Segundo Habermas, uma ―linguagem acessível a homenagem, Milton Nascimento e Fernando Brant
todos‖. compuseram a canção ―Menestrel das Alagoas‖.
68
HABERMASIANA DA PEC que visa eliminar uma norma
99/2011 inconstitucional do sistema , não existe,12
71
ou qualquer outra inferência. Em particular, a atribuição de
(BRASIL, 2011). legitimidade ao Conselho
Federal da Ordem dos
Os pareces aprovados na CCJC e na Advogados do Brasil, aos
partidos políticos com
Comissão Especial, atentam para representação no Congresso
importância das entidades religiosas para Nacional e às confederações
sindicais e entidades de classe
vida nacional, reconhecendo não só sua de âmbito nacional
democratizou sensivelmente o
influência, como também a sensibilidade acesso à jurisdição
desses grupos para determinados assuntos, constitucional, criando um
amplo canal para que as
inclusive na qualidade de pressupostos aspirações da sociedade civil
fossem levadas à discussão e
interpretativos às normas jurídicas
decididas pela mais alta corte
(BRASIL, 2011, ANDRADA, 2011). Na de justiça do País. Numa
importante inovação, o
CCJC, o relator dep. Bonifácio de Constituinte originário
Andrada, apenas salientou que não haveria reconheceu o valor dessas
organizações não estatais
necessidade de se distinguir grupos como veículo de expressão dos
anseios do povo brasileiro para
religiosos para fundamentar as razões da fazer respeitar o texto da
proposta, ―pois o que se pretende Constituição Cidadã.
Entidades da sociedade civil
democraticamente é estender a todas as podem agora participar
diretamente nos processos de
entidades religiosas prerrogativas de
construção do sentido da
participar do processo decisivo de Carta de 1988, o que
robustece a força normativa
manutenção da ordem jurídica no país de seu texto e consolida a
tendo em vista os interesses morais de expressão da vontade
soberana do povo brasileiro
todas as crenças‖ (ANDRADA, 2011). (grifo nosso). (BRASIL,
2011).
Na comissão especial, o parecer
aprovado atentou quanto à supremacia da Outro efeito provocado por essa
72
mais o espaço público formal para modelo francês, aonde a separação entre
participação dos atores sociais, o que Estado e religião se dá de maneira mais
corrobora para legitimação das decisões agressiva, impedindo inclusive objetos de
públicas, bem como a criação de uma rede cunho religiosa em escolas públicas; ii)
circular, aonde os atores individuais modelo de separação atenuada, ou de
participando do processo deliberativo sobriedade, ou modelo americano, aonde
(autonomia privada), viabilizam a há uma maior abertura do Estado para os
construção de uma autonomia pública; e, setores religiosos; e iii) modelo do Estado
ii) a necessidade de permitir que as ateu, que repele todo resquício de
minorias tenham condições de defender os religiosidade (BRASIL, 2011). Com essa
seus direitos subjetivos, em face de uma divisão, o relator enquadra a democracia
ditadura da maioria. brasileira próxima ao modelo americano,
Durante a Audiência Pública, uma vez que a ―noção de religiosidade está
convocada em virtude da PEC 99/2011, o profundamente impregnada no
ministro Ives Gandra Filho, criticou a ideia ordenamento constitucional...‖ (BRASIL,
de um estado laicista, isto é, no entender 2011), como a defesa a liberdade de
do ministro, uma configuração social que crença, a tutela de locais litúrgicos, a
exorta todas as formas de vida religiosas à garantia da assistência religiosa em
esfera íntima dos indivíduos, excluindo-as entidades prisionais, entre outros
do debate político e de qualquer relevância (BRASIL, 2011). Assim, ―ignorar a
externa. Interessante o apontamento do importância, a presença, a atuação e a
ministro de que o STF expressa um influência dos movimentos religiosos da
preconceito contra as contribuições sociedade é, na verdade, não levar em
religiosas, dando sempre primazia a conta um dos elementos decisivos e
14
argumentos científicos . primordiais para a vida do cidadão‖.
Nesta senda, em consonância com a (BRASIL, 2011).
fala do ministro, o relator dep. Bonifácio Ao conceber a neutralidade estatal
de Andrada, na Comissão Especial, como um paradigma da laicidade,
procedeu a uma classificação entre três Habermas não veda as portas do
modelos de laicidade: i) modelo de parlamento para a participação religiosa,
separação absoluta, ou de vigilância, ou ao contrário, reconhece a importância
desses cidadãos para o processo
14
Sobre isso ver: CORREIA, Raique Lucas de democrático, apenas impõe pela
Jesus; GAMA, Marta. ―As duas faces de Jano‖: o
eclesiástico e o secular na ADPF 54 à luz da apresentação de argumentos racionais na
filosofia de Jürgen Habermas. Diálogos Possíveis,
v. 17, n. 1, 2018. defesa de suas teses, haja vista que o
Estado não pode fundar-se em razões
73
propriamente religiosas. O que se percebe, andam juntas como siameses. Dessa sorte,
portanto, é que os deputados cumpriram para que haja ―soberania popular‖ num
com esse requisito, pois buscaram uma Estado Democrático de Direito, os
explicação histórica e ao mesmo tempo cidadãos precisam ter as suas liberdades
jurídica em favor da PEC 99/2011, individuais garantidas, precisam poder se
atentando inclusive para outras autodeterminar-se, logo a PEC 99/2011
considerações transversais da obra de surge como um amplificador da garantia
Habermas, como a defesa dos potenciais desses direitos subjetivos de participação,
conteúdos de verdade que existe na ao considerar, que o os agentes estatais no
semântica religiosa e a necessidade de exercício de suas funções legislativas,
comportar também os círculos religiosos eventualmente podem violar questões
no processo deliberativo. inerentes à liberdade religiosa ou de culto,
pelo que se faz necessário, permitir que as
entidades religiosas promovam ações, para
o controle dessas leis ou atos normativos,
―na defesa racional e tolerante (grifo
CONCLUSÃO
nosso) dos direitos primordiais conferidos
103, isso quer dizer, uma maior abertura determinado segmento religioso,
do espaço público para outras vozes além observados o caráter nacional de sua
pelo IBGE, mais de 90% da população mais profícua, contudo, não se pode
brasileira se declara religiosa. Ou seja, não afirmar que seu teor viola a laicidade
sem a participação dessas pessoas no crentes, afinal, ela não visa excluir o
processo deliberativo, do contrário, espaço, mas ampliar para que nele ressoem
75
BARROSO, Luís Roberto. O controle de HABERMAS, Jürgen. A constelação pós-
constitucionalidade no direito brasileiro: nacional: ensaios políticos. São Paulo:
exposição sistemática da doutrina e análise Littera Mundi, 2001.
crítica da jurisprudência. 6. ed. São Paulo:
Saraiva, 2012. ______. A inclusão do outro. Estudos de
teoria política. São Paulo: Edições Loyola,
BRASIL. Câmara dos Deputados. Evento: 2002b.
Comissão Especial destinada a proferir
parecer à Proposta de Emenda à ______. Consciência Moral e Agir
Constituição nº 99-A, de 2011 [...]. Comunicativo. Trad. Guido Antônio de
Disponível Almeida. Rio de Janeiro: Tempo
em: http://imagem.camara.gov.br/internet/a Brasileiro, 1989.
udio/Resultado.asp?txtCodigo=54201.
Acesso em: 13 fev. 2019. ______. Direito e Democracia: entre
facticidade e validade. Trad. Flávio Beno
BRASIL. Câmara dos Deputados. Proposta Siebeneichler. 2ª ed. Rio de Janeiro:
de Emenda à Constituição - PEC 99/2011. Tempo Brasileiro, 2003, v. I.
Disponível
em: https://www.camara.leg.br/proposicoe ______. Entre Naturalismo e Religião.
sWeb/fichadetramitacao?idProposicao=52 Trad. Flávio Beno Siebeneichler. Rio de
4259. Acesso em: 13 fev. 2019. Janeiro: Tempo Brasileiro, 2007.
BRASIL. Câmara dos Deputados. Proposta ______. Fé e Saber. São Paulo: Editora
de Emenda à Constituição. Nº ??/2011. Unesp, 2013.
Disponível
em: https://www.camara.leg.br/proposicoe ______. O discurso filosófico da
sWeb/prop_mostrarintegra;jsessionid=6E4 modernidade: doze lições. São Paulo:
E9FD9568DB51A083985C39777A837.pr Martins Fontes, 2002a.
oposicoesWebExterno2?codteor=931483&
filename=PEC+99/2011. Acesso em: 13 ______. Pensamento pós-metafísico:
fev. 2019. estudos filosóficos. Rio de Janeiro: Tempo
Brasileiro, 1990.
BRUM, Henrique. Habermas: Teoria da
Democracia e religião na esfera ______. Teoria de la Acción Comunicativa
pública. Ítaca, n. 29, 2015. I: Racionalidad de la acción y
racionalización social. Madrid: Taurus,
CORREIA, Raique Lucas de Jesus; 1987a.
GAMA, Marta. ―As duas faces de Jano‖: o
eclesiástico e o secular na ADPF 54 à luz ______. Teoria de la Acción Comunicativa
da filosofia de Jürgen Habermas. Diálogos II: Crítica de la razón funcionalista.
Possíveis, v. 17, n. 1, 2018. Madrid: Taurus, 1987b.
E-mail: dialogos@unisba.edu.br
Telefone: 71- 4009-2840
77