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Educação Unisinos

E-ISSN: 2177-6210
revistaeduc@unisinos.br
Universidade do Vale do Rio dos Sinos
Brasil

da Silva Caldeira, Maria Carolina


Narrativas sobre velhice e infância: uma análise do filme Up: Altas Aventuras
Educação Unisinos, vol. 19, núm. 3, septiembre-diciembre, 2015, pp. 409-416
Universidade do Vale do Rio dos Sinos
São Leopoldo, Brasil

Disponível em: http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=449644341012

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Educação Unisinos
19(3):409-416, setembro/dezembro 2015
2015 Unisinos - doi: 10.4013/edu.2015.193.11

Narrativas sobre velhice e infância:


uma análise do filme Up: Altas Aventuras

Narratives about old age and childhood:


An analysis of the film Up
Maria Carolina da Silva Caldeira
mariacarolinasilva@hotmail.com

Resumo: Este artigo analisa um artefato cultural que tem produzido narrativas acerca da
infância e da velhice: o filme de animação Up: Altas Aventuras, produzido pelos Estúdios Disney/
Pixar e lançado em 2009. Com base na perspectiva pós-estruturalista dos estudos culturais
e nos estudos foucaultianos, o objetivo do trabalho é analisar que subjetividades infantis e
idosas estão sendo produzidas por meio desse filme. Conclui-se que ali são acionadas diversas
estratégias para produzir subjetividades infantis e idosas que conduzam suas condutas dentro
de certos padrões. Para a velhice, esses padrões incluem a necessidade de atividades, o não
apego ao passado e o cuidado com o corpo. Para a infância, a padronização incide sobre a
necessidade de controlar os impulsos e obedecer às regras colocadas pelos/as mais velhos/as.
Assim, o argumento desenvolvido no trabalho é o de que esse filme estabelece princípios
segundo os quais a população infantil e idosa devem se governar.

Palavras-chave: pedagogia cultural, infância, velhice.

Abstract: This article examines a cultural artifact that has produced narratives about childhood
and old age: the animated movie Up produced by Disney/Pixar Studios and released in
2009. The media artifact produces, thus, subjectivities of children and elderly of a certain
type. Based on a post-structuralist perspective of cultural studies and on Foucault’s studies,
the objective of this work is to analyze which subjectivities of children and elderly are being
produced through this film. It is concluded that several strategies are actuated to produce
subjectivities of children and elderly who will behave according to certain standards. For old
age, these standards include the need for activity, not clinging to the past and care of the body.
For children, the standardization focuses on the need to control their impulses and obey the
rules set by the elders. Thus, the argument developed in this work is that this film establishes
principles according to which children and elderly should govern themselves.

Keywords: cultural pedagogy, childhood, old age.

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distribuição desde que o autor e a fonte originais sejam creditados.
Maria Carolina da Silva Caldeira

Introdução altas aventuras, que rompe com essa ída, como dialógica, como inscrita
tradição ao trazer como personagens na superfície do corpo” (Rose, 2001,
Filmes de animação da Dis- principais uma criança e um idoso. p. 140). Com base em Foucault
ney são, de modo geral, artefatos Produzido pelos Estúdios Disney/ (1993), considera-se que a subjetivi-
culturais endereçados às crianças. Pixar e lançado em 2009, nele é con- dade nada tem de essencial: ela é pro-
A articulação entre animações e tada a história de Carl Fredericksen, duzida por diferentes discursos, pelas
crianças é tão forte que, logo que que, após a morte de sua esposa Elle, relações de poder e pelas relações
vemos algum filme do gênero, o as- decide realizar um antigo sonho de que o sujeito estabelece consigo mes-
sociamos a essa faixa etária. Apesar visitar o Paraíso das Cachoeiras, mo e com os outros. Partindo desse
de historicamente terem se construí- uma região pouco explorada da conceito, o objetivo deste trabalho é
do como voltados para esse público, América do Sul. Para isso, ele faz analisar que subjetividades infantis
um fato interessante a se observar é sua casa voar com balões de ar. Por e idosas estão sendo produzidas por
que poucos filmes de animação in- engano, porém, ele acaba levando o meio desse filme. Considera-se que,
cluíam crianças como personagens, menino Russell para sua aventura. A no filme analisado, são acionadas
sobretudo como protagonistas, até partir daí, a trama se desenvolve com diversas estratégias para produzir
meados dos anos 2000. De fato, uma os dois personagens tentando salvar subjetividades infantis e idosas que
breve análise dos filmes da Disney uma ave do Paraíso das Cachoeiras “conduzam suas condutas” (Fou-
lançados entre os anos 1980 e 2000 ameaçada pelo explorador Muntz, cault, 1997)1 dentro de certos pa-
mostra como eles eram essencial- que deseja aprisioná-la e levá-la para drões. Para a velhice, esses padrões
mente adultocêntricos. A Pequena a civilização. incluem a necessidade de atividades
Sereia, A Bela e a Fera, Aladdin, Com base nos Estudos Culturais, e o não apego ao passado. Para a in-
O Rei Leão, Pocahontas, O Corcun- entende-se que esse artefato midiá- fância, a padronização incide sobre a
da de Notre Dame, Hércules e Mulan tico exerce uma pedagogia cultural necessidade de controlar os impulsos
são exemplos de filmes que, apesar que ensina às pessoas modos de ser, e obedecer às regras colocadas pelos/
de endereçados predominantemente estar e fazer considerados adequados as mais velhos/as.
ao público infantil, não incluíam no que se refere à categoria geração. Assim, o argumento desenvolvi-
crianças em suas narrativas. É so- O conceito de pedagogia cultural do no artigo é o de que esse filme es-
mente a partir de meados dos anos estende, alarga e amplia a concep- tabelece princípios segundo os quais
1990, e sobretudo dos anos 2000, ção de educação ao considerar que, a população infantil e idosa deve se
que haverá filmes com protagonistas na sociedade contemporânea, esta governar. O governo, entendido na
infantis. Entre esses se destacam as ocorre em “uma variedade de locais perspectiva foucaultiana, não se re-
animações Toy Story, Procurando sociais, incluindo a escola, mas não fere exclusivamente ao Estado, mas
Nemo, Monstros S.A., Os Incríveis se limitando a ela” (Steinberg, 1997, tem a ver com os modos como cada
e Up: altas aventuras. p. 101-102). Nessa perspectiva, indivíduo deve conduzir sua existên-
Se os filmes não traziam crianças considera-se que os artefatos cul- cia (Foucault, 1997). O filme aqui
como personagens principais, o mes- turais “transmitem uma variedade analisado – ao escolher um idoso e
mo pode ser dito no que se refere às de formas de conhecimento que, uma criança para serem seus perso-
pessoas idosas. Como dito anterior- embora não sejam reconhecidos [sic] nagens principais – ensina como os/
mente, os filmes da Disney são es- como tais, são vitais na formação as espectadores/as dessas duas faixas
sencialmente adultocêntricos. Nesse de identidades e subjetividades” etárias devem se comportar a fim de
sentido, além de excluir crianças de (Silva, 2001, p. 140). Os filmes de conduzirem suas vidas de maneira a
suas narrativas, os filmes excluíam animação, por sua vez, “sob a rubri- viver plenamente e com felicidade.
também as pessoas idosas. Como ca da diversão, do entretenimento Funcionam, portanto, como um pa-
evidência dessa exclusão, destaco e da fuga” (Giroux, 1995, p. 136), drão a ser seguido por eles/as.
o fato de que nos filmes produzidos disponibilizam subjetividades que Para analisar o filme em questão,
até os anos 2000 há apenas uma podem ser assumidas por seus/suas foi utilizada como metodologia a
personagem idosa: a Vovó Fá, do espectadores/as. etnografia da tela, termo utilizado
filme Mulan. Neste trabalho, tomo A subjetividade é entendida nesse por Rial (2005, p. 120) e que “trans-
como objeto de análise o filme Up: trabalho “como socialmente constru- porta para o estudo do texto da mídia
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A “condução de condutas” remete aqui ao conceito foucaltiano de governo, segundo o qual, por meio das relações de poder, as condutas dos seres
humanos são conduzidas para atingir a determinados efeitos.

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procedimentos próprios da pesquisa mundo ocidental contemporâneo, do organismo infantil. A partir do


antropológica”, aliando-os à análise assim como ser criança, jovem, século XVIII, as crianças passam
de aspectos cinematográficos. As- adulto, remete a configurações de a estar envolvidas em processos
sim, para a análise, foram utilizados valores distintos de outros momen- de disciplinarização e controle de
procedimentos da etnografia, como tos históricos de nossa sociedade seus corpos e atos. Não se trata,
“longo período de contato com o e de outras culturas”. Embora não porém, “apenas, de produzir um
campo (neste com a tela), observa- exista uma tradição consolidada de melhor número de crianças, mas de
ção sistemática e variada; registro pesquisas sobre a velhice no campo gerir convenientemente esta época
em caderno de campo; escolha de ce- dos Estudos Culturais2 que se articu- da vida” (Foucault, 2000, p. 199),
nas para análise propriamente dita” lam com a educação, muitas ideias ou seja, não é suficiente garantir
(Balestrin e Soares, 2012, p. 93). usadas para se discutir acerca da in- saúde e bem-estar às crianças, é
Além disso, atentou-se aos aspectos fância podem ser usadas para pensar preciso governá-las dentro de al-
da linguagem cinematográfica, tais a velhice. A primeira delas, como guns parâmetros. Nesse período, o
como a fotografia, a trilha sonora, os apontado anteriormente, refere-se ao importante era a “reorganização das
diferentes tipos de plano, opções de fato de que ambas são construções relações entre crianças e adultos,
montagem, entre outros. sociais, que se modificam com o pais, educadores, era a intensificação
passar do tempo e com a cultura em das relações intrafamiliares, era a
Infância e velhice: que se inserem. criança transformada em problema
definindo conceitos Além disso, infância e velhi- comum para os pais, as instituições
ce – entendidas não como dados educativas, as instâncias de higiene
Os estudos sobre infância são biológicos, mas como construções pública” (Foucault, 2000, p. 232).
relativamente comuns na educação. discursivas – têm se tornado um Cria-se, a partir de então, “uma rede
Afinal, o campo educacional se problema na sociedade ocidental. de poder sobre a infância” (Foucault,
consolidou quando tomou essa etapa Acerca da infância, Foucault (2000, 2000, p. 232), na qual seus corpos,
da vida e os sujeitos que nela se en- p. 198-199) mostrará como, a partir suas condutas, sua moral, sua se-
contram como seu objeto de estudo. do século XVIII, xualidade passaram a ser vigiados,
Como afirma Narodowsky (2001, p. controlados, regulados e, eventual-
21), “a pedagogia obtém na infância ao problema ‘das crianças’ (quer mente, punidos.
seu pretexto irrefutável de interven- dizer de seu número no nascimento Algo semelhante tem acontecido
ção para educar e reeducar na escola, e da relação natalidade-mortalidade) com a velhice a partir de meados
para participar da formação dos seres se acrescenta o da ‘infância’ (isto é,
do século XX. O aumento da ex-
da sobrevivência até a idade adulta,
humanos e dos grupos sociais”. No pectativa de vida tem feito com que
das condições físicas e econômicas
campo dos Estudos Culturais vincu- desta sobrevivência, dos investi- a velhice se transforme em uma
lados à educação há também certa mentos necessários e suficientes para preocupação social (Debert, 2004).
tradição de estudos a respeito da que o período de desenvolvimento se Tal como ocorreu com a infância no
infância. Nesse campo – partindo-se torne útil). século XVIII, a partir do século XX,
de contribuições diversas, como a estratégias diversas são criadas para
de Ariès (1978) – considera-se que Em um momento em que a saúde garantir o governo da velhice. Se a
a infância é uma construção social e e o bem-estar físico da população pedagogia foi a ciência criada para
discursiva. Isso significa afirmar que passam a ser um dos objetivos essen- ensinar sobre a infância, um novo
o modo como nos relacionamos com ciais do poder, a família e a criança campo de saber se erige para ensinar
as crianças, as ideias criadas acerca passam a ser seu alvo e instrumento. sobre a velhice: a gerontologia. Ex-
delas e os saberes produzidos para Nesse sentido, investimentos sobre perts são chamados para falar sobre
lidar com elas variam conforme o os corpos das crianças passam a ser como as pessoas com mais idade
momento histórico e a cultura. engendrados: há uma preocupação devem proceder. Nesse processo,
A velhice também pode ser consi- com os cuidados, os contatos, a hi- “um conjunto de orientações e inter-
derada uma categoria social e histo- giene, a limpeza, a amamentação, o venções, muitas vezes contraditório,
ricamente produzida. Como afirma vestuário e os exercícios físicos para é definido e implementado pelo
Barros (1995, p. 9), “ser velho no assegurar o bom desenvolvimento aparelho de Estado e outras orga-
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2
Embora esses estudos não sejam comuns na educação, outros campos têm se dedicado a estudar a velhice. O exemplo mais forte no Brasil é da
Antropologia que, desde a década de 80, tem realizado pesquisas sobre os/as idosos/as (Barros, 1995).

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nizações privadas” (Debert, 2004, ção ainda na infância) e Russel, o os meninos que simbolizavam isso.
p. 13) para ensinar como os/as ido- menino escoteiro que é levado para Parece haver neste filme um deslo-
sos/as devem conduzir suas vidas. o Paraíso das Cachoeiras, já com camento em termos de gênero, já
Ensina-se também de que forma as Carl idoso. Carl e Elle são bastante que tradicionalmente as meninas
pessoas que estão em outras faixas diferentes no início do filme. Elle são narradas como mais tranquilas
etárias devem se cuidar para viver a é uma menina agitada, animada e e menos agitadas. Como afirma Fe-
velhice de forma satisfatória. aventureira. Escondida sozinha em lipe (2000, p. 120), “a atuação das
Aliado a isso, assiste-se à emer- uma casa abandonada, ela sonha em mulheres deveria se dar sempre ‘nos
gência de novos termos para se refe- viajar pelo mundo, desbravando seus bastidores’”. No filme, porém, Elle
rir às pessoas nessa fase da vida. Em mistérios. Ela é também uma menina não apenas é agitada, mas é também
vez de velhos ou velhotes, eles/as cheia de energia: fala sem parar, guia aquela que conduz a ação no início
passam a ser identificados como Carl pela casa, tem um livro no qual da trama. Diferente de outras meni-
idosos/as ou como pertencentes à pretende colecionar todas as aven- nas narradas em filmes de animação,
terceira idade3. Esses termos trazem turas que viverá. Carl, por sua vez, nas quais as mulheres são sempre
as marcas de um discurso sobre a é calado, quieto e parece estar ao recatadas e submissas aos homens
velhice que diferencia aqueles/as mesmo tempo encantado e assustado (Sabat, 2003), Elle invade o quarto
que envelheceram (e que ficaram de- com aquela garota que não para de de Carl à noite e propõe que os dois
pendentes, fracos, senis daqueles/as falar. A menina parece estar inserida viajem juntos para o Paraíso das
que estão entrando em outra etapa naquele conjunto de discursos sobre Cachoeiras.
da vida que não trazem marcas ne- a infância que tem caracterizado os/ Outro deslocamento referente
gativas, mas que apresentam novas as infantis como tendo “uma dose a gênero refere-se ao fato de que
possibilidades. É para se garantir de anarquismo e uma pitada de um menino também é apresentado
como pertencente ao segundo grupo hiperatividade” (Kincheloe, 1997, como tagarela. Embora Elle seja
que devem se voltar os esforços de p. 80). Esses/as infantis agitados/as extremamente falante e Carl seja
todos/as. e cheios/as de energia são, muitas caracterizado por ela como “muito
A mídia tem sido uma das princi- vezes, nomeados/as como portado- caladão”, Russell é o oposto de
pais divulgadoras do discurso sobre res/as de Déficit de Atenção e Hi- Carl. O menino fala sem parar, de
como viver adequadamente as etapas peratividade (Bujes, 2006, p. 225). tal maneira que, em certo momento,
nomeadas como velhice e infância. Eles/as são caracterizados/as como Carl – já velho – sugere:
Em diversos programas, crianças e portadores/as de “uma doença”, um
Carl: Escuta, vamos brincar de uma
idosos são inseridos em relações de distúrbio, algo que foge da norma.
coisa, vamos brincar de quem fica
poder que pretendem ensinar-lhes Falar da infância associando-a a quieto mais tempo.
como “conduzir suas condutas”. agitação, energia e hiperatividade é Russell: Legal, minha mãe adora
O filme aqui analisado é um dos algo comum em filmes de animação. brincar disso.
elementos desse conjunto de arte- Essa narrativa está presente em fil-
fatos midiáticos que tem produzido mes como Toy Story, Monstros S.A., Diferentemente do que ocorre
discursos a esse respeito. Insere-se, Procurando Nemo e Os Incríveis com Elle, falar demais aqui é con-
portanto, nessa rede de poder que (Silva, 2010). De modo geral, essa siderado algo negativo. Desde sua
hoje não atinge somente as crianças, agitação é caracterizada como algo primeira cena, Russell fala muito.
mas se estende para outras etapas negativo, que precisa ser modificado Isso causa impaciência em Carl,
da vida. ou punido. Os/as infantis precisam que chega a desligar seu aparelho de
aprender a controlar sua agitação a surdez em certo momento do filme
“Vamos brincar de ficar fim de se tornarem adultos/as bem para não continuar escutando a “ta-
quietos?”: os limites para comportados/as e mais felizes. garelice” do menino. Cabe ressaltar
a infância agitada Cabe destacar que há uma dife- que Carl não tem impaciência com
rença entre Up e os filmes anteriores. Elle. Talvez falar demais para as
Três crianças estão presentes no Em Up é uma menina que sintetiza meninas seja mais tolerável do que
filme aqui analisado: Carl e Elle a agitação e a energia, enquanto na para os meninos. Associar a infância
412 (apresentados no início da anima- maioria dos filmes anteriores eram à agitação e à falta de controle da

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Para uma discussão detalhada a respeito da emergência desses termos, sugere-se a leitura do trabalho de Peixoto (1995).

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fala é algo constante e que remonta auxilia a segunda no seu processo de lá seria negar sua vida e abrir mão
à antiguidade clássica. Platão, por resgatar a importância da vida serão de todo o seu passado. Essa repre-
exemplo, afirmava que “as crianças discutidos a seguir. sentação do asilo como “a concreção
são seres impetuosos, incapazes de dramática da solidão e do desprezo
ficarem quietos com o corpo e com Do passado ao presente a que os velhos são relegados em
a voz, sempre pulando e gritando na pelas mãos da criança: a nossa sociedade: verdadeiros deser-
desordem, sem o ritmo e a harmonia velhice em Up tos de solidão” (Debert, 2004, p. 99)
próprias do homem adulto” (Kohan, parece estar presente no filme Up.
2003, p. 42). Falar das crianças como Na sociedade ocidental, a infân- O asilo aparece nesse filme como
seres incapazes de se controlar e, por cia e a velhice aparecem como dois o local para o qual um velho, sem
esse motivo, inferiores aos adultos é momentos completamente distintos nenhum/a parente vivo e que está
algo recorrente no discurso moderno da vida humana. A primeira marca causando problemas na sociedade,
acerca da infância e tem servido o início e traz consigo todas as deveria ser enviado, a fim de não
de motivo para que estratégias di- representações que se construíram gerar mais danos. Tal como acon-
ferentes de controle sejam criadas sobre começos: alegria, inocência, tece com a escola no que se refere
para garantir o governo dessa etapa múltiplas possibilidades. Já a se- à infância, o asilo seria o espaço de
da vida. gunda marca a finitude, evidencia confinamento no qual os/as velhos/
No filme analisado, a brincadeira a fragilidade humana, determina o as aprenderiam como se comportar
aparece como a estratégia para con- fim de uma jornada. Essas ideias e como viver adequadamente sem
trole da infância. O comportamento acerca do que seja cada uma dessas atrapalhar a vida dos mais novos.
de falar demais faz com que Russell etapas permeiam a narrativa de Up. Seria um espaço de exercício de
já esteja habituado a “brincar de ficar Contudo, o vínculo que se estabelece poder sobre a velhice, trazendo para
quieto”. Ao usar esse artifício, Carl entre infância e velhice tem o obje- essa etapa da vida as instituições
está acionando uma das técnicas tivo de articular essas duas fases, disciplinares que desde a moderni-
que mais têm sido divulgadas pelo mostrando que a velhice pode ser dade têm sido usadas para o controle
discurso pedagógico sobre como também a etapa de novos começos daqueles/as que não vivem como a
educar os/as infantis: a brincadeira. e não necessariamente do fim. sociedade deseja (Foucault, 1999).
Apontada por autores/as do campo A aventura do filme começa Porém, o exercício de poder não se
educacional (Kishimoto, 1996) e quando, depois da morte de Elle, dá sem resistência. Aqui podemos
por legislações educacionais (como Carl se envolve em um incidente ver Carl resistindo a esse local para
o Referencial Curricular Nacio- com o funcionário de uma empresa o qual seria enviado e, de forma cria-
nal para a Educação Infantil e as que deseja comprar o terreno onde tiva, tentando dar outro significado
Diretrizes Curriculares Nacionais a casa dele está. Carl se irrita com para sua vida. Os balões que levam a
para a Educação Infantil) como o o funcionário que havia quebrado sua casa servem como um elemento
meio pelo qual as crianças apren- a caixa de correio construída pelo que procura libertar o idoso de uma
dem, a brincadeira tem servido na casal há vários anos, dá uma ben- vida de clausura e solidão.
contemporaneidade para controlar galada nesse personagem e acaba Ao escapar da instituição disci-
os impulsos infantis, para ensinar- sendo levado a uma audiência. Nela, plinar, contudo, Carl é inserido em
-lhes conteúdos pedagógicos e para sugere-se que Carl vá para um asilo. outras relações de poder. Se no asilo
garantir seu governo. O filme mostra Assim, na manhã seguinte, dois ele estaria sob a influência do poder
a importância dessa estratégia no enfermeiros – que tratam Carl com disciplinar, nas novas aventuras que
controle da infância. uma linguagem bastante semelhante vivencia, o idoso será convidado a
A agitação não é, porém, o único à utilizada pelos/as adultos/as com realizar técnicas de si de maneira a
enunciado sobre a infância presente crianças – vão até a casa do idoso construir uma nova subjetividade.
no filme. As crianças são também para que ele seja levado para o As técnicas de si, segundo Foucault
apresentadas como aquelas que asilo. Carl aparentemente aceita a (1993, p. 207), permitem aos indi-
podem ajudar os/as idosos/as a re- idéia, mas logo vemos que ele não víduos “operarem um certo número
encontrarem seu lugar no mundo, objetivava ir para esse lugar quando de operações sobre os seus corpos,
a vincularem-se novamente com o ele faz com que sua casa voe, levada sobre as suas almas, sobre o seu
presente e a resgatarem o seu “lado por balões de gás. próprio pensamento, sobre a sua 413
bom”. A articulação entre infância O asilo aparece aqui como um própria conduta, e isso de tal maneira
e velhice e o modo como a primeira lugar não desejado. Para Carl, ir para a transformaram-se a eles próprios”.

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Cabe registrar que, após a morte de cia das novelas de formação na passou e que culminou com a cons-
Elle, Carl havia se tornado recluso, “constituição do herói através das trução de uma nova subjetividade.
não convivia mais com as pessoas experiências de uma viagem, que, ao É possível perceber no filme a
e estava extremamente apegado ao se voltar sobre si mesmo, conforma divulgação de um modo correto de
passado. sua sensibilidade e seu caráter, sua viver a velhice. Ser velho nesse filme
Para construir outra subjetivi- maneira de ser e de interpretar o significa viver o passado, mas sem
dade, Carl passará por uma série mundo”. É isso que ocorre com Carl. se apegar a ele, sendo capaz de cons-
de situações nas quais Russell tem Na viagem empreendida ao lado de truir novas aventuras. A construção
um papel fundamental. Ele, com a Russell, ele repensa o seu modo de de uma nova subjetividade idosa
energia que caracteriza a infância, viver e compreende que desapegar- tem sido amplamente divulgada na
será o responsável por tirar o velho -se do passado é fundamental. sociedade contemporânea, e encon-
do seu lugar de apego ao passado e Russell aparece como uma es- tra na “mídia o palco central para
trazê-lo de volta ao presente. O ape- pécie de guia, que mostra ao velho a criação e divulgação das novas
go do idoso por seu passado vivido como ele deve conduzir sua existên- imagens” (Debert, 2004, p. 209).
ao lado de Elle é representado pelo cia. Foucault (1993, p. 208) mostra Em comerciais, novelas, revistas e
modo como ele cuida das coisas que como o guia, ao apresentar “um reportagens de jornal, a tendência
pertenceram aos dois. A casa em código universal de conduta para contemporânea é rever os estereóti-
que viveram é a síntese da vida que a totalidade da sua vida”, é funda- pos associados ao envelhecimento. A
construíram juntos. Essa casa “traz mental no processo de construção de ideia de um processo de perdas tem
as marcas do passado vivido, [é uma] subjetividades. Russell transforma- sido substituída pela consideração de
casa-testemunho de outros tempos, -se em um guia de Carl dando a ele que os estágios mais avançados da
tempos da família e da juventude” o exemplo de como se comportar. vida são “momentos propícios para
(Ferreira, 1995, p. 207). Por isso, O garoto não teme os perigos e usa novas conquistas, guiadas pela busca
ao realizar sua viagem, Carl a leva de todo o seu altruísmo para auxiliar do prazer e da satisfação pessoal”
consigo, já que ela é a representação outro ser em perigo. Ao ver o que (Debert, 2004, p. 14). Up se insere,
do passado vivido com Elle. o garoto havia sido capaz de fazer, assim, em uma cadeia discursiva
A princípio, a posição de sujeito Carl percebe que não pode agir de que tem enunciado um novo modo
idoso ocupada por Carl é a de um outra maneira. Nota-se aqui outro de viver a velhice.
sujeito apegado ao seu passado, que sentido articulado à infância: ela é O modo adequado de viver
não deseja relacionar-se novamente bondosa, altruísta e pode salvar as essa etapa da vida fica evidente
com as pessoas e que tem como pessoas que não estão sabendo como no confronto entre Muntz e Carl.
último objetivo da vida levar a casa conduzir sua existência. O primeiro é o vilão do filme, tam-
construída com Elle para o Paraíso Também é fundamental nesse bém idoso e que vive apegado à ideia
das Cachoeiras, lugar que sua esposa processo de construção de uma de capturar a Narceja para provar
havia desejado conhecer durante nova subjetividade uma mensagem que não era um farsante, como
toda a vida. No entanto, ao realizar deixada por Elle em seu antigo livro havia sido acusado em seu passado.
sua viagem, Carl acaba levando de aventuras. Nele, a esposa havia Carl, por sua vez, aparece como um
Russell. Durante a viagem, os dois colado várias imagens dela ao lado modelo a ser seguido por outros/
conhecem um pássaro (Narceja) que de Carl, mostrando que a vida dos as idosos/as que possam assistir ao
corria um sério risco no lugar em dois foi uma grande aventura e que filme, pois consegue construir uma
que se encontrava. Russel deseja ele deveria continuar a preencher as nova subjetividade, desapegando-se
ardentemente salvar a Narceja, mas páginas daquele livro com as novas do passado. Esse modo adequado
Carl está interessado somente em histórias que viveria. A partir desse de viver a velhice também pode ser
chegar ao Paraíso. Assim, em certo momento, Carl decide ir atrás de percebido no final do filme, quando
momento, ele deixa que o menino vá Russell e, para isso, precisa jogar uma série de fotografias mostra Carl
sozinho atrás do explorador Muntz fora todos os móveis e lembranças e Russell realizando uma série de
que havia pegado a Narceja. de sua antiga casa. Desapegar-se da atividades: pescaria, visita ao museu,
A metáfora da viagem é am- casa e despojar-se de tudo que nela piquenique na montanha, visita a um
plamente utilizada nas narrativas havia é a materialização da nova asilo, tocar em uma banda, usar o
414 modernas para falar do processo de subjetividade construída por ele. É o computador, jogar bingo... A velhice
mudança de um indivíduo. Larrosa desapego dessa casa que mostrará o deixa de ser, assim, o momento de
(1998, p. 65) destaca a importân- processo de mudança pelo qual Carl reviver o passado e passa a ser o

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Narrativas sobre velhice e infância: uma análise do filme Up: Altas Aventuras

tempo de aprender novas coisas e falar sobre como esses dois grupos FELIPE, J. 2000. Infância, gênero e sexuali-
viver novas aventuras. devem se comportar: as crianças de- dade. Educação & Realidade, 25(1):115-
131.
vem ser reguladas para controlarem
FERREIRA, M.L. 1995. Memória e velhice:
Infância e velhice: seus impulsos e potencializarem do lugar da lembrança. In: M. BAR-
começos e fins? sua bondade. Já os/as idosos/as ROS, Velhice ou terceira idade? Estudos
devem desapegar-se do passado e antropológicos sobre identidade, memória
A inclusão de personagens infan- viver o presente de forma intensa. e política. Rio de Janeiro, Fundação Getu-
tis e idosos em filmes de animação, Nos dois casos, é possível perceber lio Vargas, p. 207-227.
como ressaltado anteriormente, é como essas duas faixas etárias são FOUCAULT, M. 1993. Verdade e subjetivi-
algo recente. Certamente esse é um dade. Revista de Comunicação e Lingua-
inseridas em relações de poder e
fenômeno relacionado à criação gem, 19:203-223.
controle que visam ao seu governo. FOUCAULT, M. 1997. Resumo dos Cursos
de novos mercados de consumo. O filme ensina como eles/as devem do Collège de France. Rio de Janeiro,
Crianças e idosos constituem hoje se comportar para viver adequada- Zahar, 134 p.
um poderoso mercado consumidor, mente essas duas etapas da vida. É FOUCAULT, M. 1999. Vigiar e punir.
que movimenta quantias vultosas de claro que não há qualquer garantia Petrópolis, Vozes, 262 p.
dinheiro e apresenta demandas de de que crianças e idosos/as passem FOUCAULT, M. 2000. Microfísica do poder.
lazer mais amplas do que o público Rio de Janeiro, Graal, 295 p.
a viver da maneira indicada pelo
adulto (Barros, 1995). Para garantir a GIROUX, H. 1995. Memória e pedagogia
filme após assistir a ele. Entretanto, no maravilhoso mundo da Disney. In:
presença desses públicos nas salas de não podemos negar a importância T.T. da SILVA, Alienígenas na sala de
exibição e posteriormente na compra fundamental que a mídia tem na aula: uma introdução aos Estudos Cul-
de produtos relacionados ao filme, contemporaneidade na condução turais em Educação. Petrópolis, Vozes,
são criadas novas posições para dos modos de vida e na construção p. 132-158.
serem ocupadas por esses sujeitos. de subjetividades. KINCHELOE, J. 1997. McDonald’s, poder e
O filme opera com um modo de criança: Ronald McDonald faz tudo por
endereçamento que visa a alcançar você. In: L. SILVA, Identidade social
Referências e a construção do conhecimento. Porto
públicos mais amplos.
Alegre, Secretaria Municipal de Educa-
O conceito de modo de endere- ARIÈS, P. 1978. História social da criança
ção, p. 69-87.
çamento (Ellsworth, 2001) pode ser e da família. Rio de Janeiro, Guanabara, KISHIMOTO, T. 1996. Jogo, brinquedo,
sintetizado em duas questões: quem 279 p. brincadeira e a educação. São Paulo,
um filme pensa que é o seu público BALESTRIN, P.; SOARES, R. 2012. “Etno- Cortez, 183 p.
grafia da tela”: uma aposta metodológica.
e quem ele deseja que esse público KOHAN, W. 2003. Infância: entre educação
In: M. PARAÍSO; D. MEYER (org.), e filosofia. Belo Horizonte, Autêntica,
seja. Parte-se do pressuposto de que,
Metodologias pós-críticas de pesquisas 263 p.
para o/a espectador/a identificar-se em Educação. Belo Horizonte, Mazza LAROSSA, J. 1998. Pedagogia profana:
com um filme e “entrar” na histó- Edições, p. 89-111. danças, piruetas e mascarados. Belo
ria, é importante que ele ocupe, ao BARROS, M. 1995. Apresentação. In: M. Horizonte, Autêntica, 208 p.
menos temporariamente, os lugares BARROS, Velhice ou terceira idade? NARODOWSKY, M. 2001. Infância e poder:
disponibilizados pelo filme. Assim, Estudos antropológicos sobre identidade, conformação da pedagogia moderna.
ao incluir personagens crianças e memória e política. Rio de Janeiro, Funda- Bragança Paulista, Editora da Universi-
ção Getulio Vargas, p. 2-9. dade São Francisco, 192 p.
idosos, os filmes criam um lugar
BUJES, M.I. 2006. Outras infâncias? In: PEIXOTO, C. 1995. Entre o estigma e a
para que as pessoas dessas faixas
L.H. SOMMER; M.I. BUJES, Educação compaixão e os termos classificatórios:
etárias se incluam. No caso de Up, e cultura contemporânea: articulações, velho, velhote, idoso, terceira idade. In:
com relação à primeira pergunta, provocações e transgressões em novas M. BARROS, Velhice ou terceira idade?
pode-se ver que as crianças são paisagens. Canoas, Editora da Ulbra, p. Estudos antropológicos sobre identidade,
consideradas como seres incapazes 217-232. memória e política. Rio de Janeiro, Funda-
de se controlar e que falam demais, DEBERT, G. 2004. A reinvenção da velhice: ção Getulio Vargas, p. 69-84.
mas que, ao mesmo tempo, possuem socialização e processos de reprivatiza- RIAL, C. 2005. Estudos de Mídia. In: M.
ção do envelhecimento. São Paulo, Edi- GROSSI (org.), Movimentos sociais,
a bondade dentro do seu coração.
tora da Universidade de São Paulo, 266 p. educação e sexualidades. Rio de Janeiro,
Quanto à velhice, pode-se considerar
ELLSWORTH, E. 2001. Modos de endereça- Garamond, p. 107-136.
que o filme afirma que os/as idosos/
as são apegados/as ao seu passado.
mento: uma coisa de cinema, uma coisa de
educação também. In: T.T. SILVA, Nunca
ROSE, N. 2001. Inventando nossos eus.
In: T.T. SILVA, Nunca fomos humanos:
415
É necessário, porém, que o filme fomos humanos: nos rastros do sujeito. nos rastros do sujeito. Belo Horizonte,
apresente certas estratégias para Belo Horizonte, Autêntica, p. 7-76. Autêntica, p. 139-204.

volume 19, número 3, setembro • dezembro 2015


Maria Carolina da Silva Caldeira

SABAT, R. 2003. Filmes infantis e a produção sas sobre currículos e culturas. Curitiba, social e a construção do conhecimento.
performativa da heterossexualidade. Editora CRV, p. 117-130. Porto Alegre, Secretaria Municipal de
Porto Alegre, RS. Tese de Doutorado. SILVA, T.T. 2001. Documentos de identidade: Educação, p. 98-145.
Universidade Federal do Rio Grande do uma introdução às teorias do currículo.
Sul, 183 p. Belo Horizonte, Autêntica, 154 p.
SILVA, M. 2010. O currículo dos filmes de STEINBERG, S. 1997. Kindercultura: a con-
animação: poder, governo e subjetividade strução da infância pelas grandes corpo- Submetido: 24/01/2014
dos/as infantis. In: M. PARAÍSO, Pesqui- rações. In: L.H. SILVA et al., Identidade Aceito: 15/07/2015

Maria Carolina da Silva Caldeira


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