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Animais humanos e não humanos: confrontos e elos poéticos

Keily Martins Francisco (UNIR)


Heloísa Helena Siqueira Correia (orientadora)

Nós e o outro: questionamentos e paradoxos

Pensar, escrever e falar de nós mesmos é uma tarefa muito difícil, mesmo
convivendo com nossas angústias, questionamentos, medos e aflições, raramente nos
sentimos confortáveis para falar do que se passa conosco. Se é tão difícil falar do que nós
conhecemos(ou julgamos conhecer), imagina falar do outro, esse outro que nos é tão
diferente.
O outro nos assusta, desperta o que há de melhor e o que há de pior em nós, ele nos
faz pensar e questionar coisas que julgávamos respondidas e isso pode ser desesperador.
Ele nos obriga a sair de nós mesmos e atravessar a fronteira das certezas e a questionar
perguntas já respondidas: quem somos nós? Quem é o outro? O que nos aproxima? O que
nos distancia?
Não bastando ter essas dúvidas, elas são agora multiplicadas e agora esse outro já
não é um ser humano (esse outro humano já é por si só tão complexo), mas esse outro agora
é um animal. O que fazer? O que pensar: o que julgamos saber sobre eles? Esse saber é
baseado somente no animal ou é apenas um reflexo de nós mesmos? Como questiona um
poema de Paulo Leminski:
Você, vendo os outros.
pensa que sou eu?
Ou tudo que teu olho vê
Você pensa que é você?

O que vemos nesse outro: ele mesmo ou um reflexo de nós? O que há no outro que
tanto nos assusta? Estar diante do diferente atormenta? O que é o animal? Quando olhamos
para ele o que vemos? O que queremos ver? Como pensar/escrever esse outro que nos
parece tão distante? Como ser fiel a ele e não atravessar as fronteiras que nos separam?
Adentrar o universo do outro é algo que nos obriga a abandonar conceitos prontos,
nos obriga a sair de nós mesmos e abraçar novas possibilidades porque esse contato, esse
pensar só vale a pena se estivermos dispostos a olhar para esse outro com novos olhos e
aprender, com ele, como ser mais humano.

O fio das missangas: o humano adentrando o universo do outro

Os animais habitam a água, a terra e o ar, partilham conosco o planeta, seus recursos
e os mais diversos tipos de experiências. O que sabemos sobre eles? O que nos une? O que
nos separa? O que eles despertam em nós? Por que partilhamos afeto com cães e gatos e ao
mesmo tempo temos pavor de baratas e ratos?
A coletânea de contos O fio das missangas (2009) contém 29 pequenas histórias,
dentre todas elas foram selecionadas: O peixe e o homem e O dono do cão do homem que
têm em comum a relação do homem e o animal.
Trata-se de duas pequenas histórias narradas em primeira pessoa por um narrador
que Norman Friedman no texto O ponto de vista na ficção: o desenvolvimento de um
conceito crítico (2002) chama de narrador-protagonista, que segundo o estudioso, “[limita a
narrativa] a seus próprios pensamentos, sentimentos e percepções. [...] O ângulo de visão da
narrativa é fixo.” (FRIEDMAN, 2003, p. 177). As narrativas relatam a experiência que
esses dois personagens vivenciaram com diferentes animais: um peixe e um cão.
Pensar, escrever e questionar sobre o animal é uma tarefa que nos desafia já que
esses despertam o que há de melhor e o que há de pior em nós, segundo Maria Esther
Maciel no livro Literatura e animalidade (2016):
Os animais, sob o olhar humano, são signos vivos daquilo que sempre
escapa a nossa compreensão. Radicalmente outros, mas também nossos
semelhantes, distantes e próximos de nós, eles nos fascinam ao mesmo
tempo que nos assombram e desafiam nossa razão. (MACIEL, 2016, p. 13)

Os contos de Mia Couto selecionados apresentam personagens não humanas e


humanas em relação de amizade, de partilha do ambiente e do próprio ser, colocando
questões inusitadas para os leitores de literatura, questões essas que serão exploradas ao
longo desse artigo.

O peixe e o homem: o que os une?


Jossinaldo é um sujeito muito particular, enjeitado por muitos e evitado pelos
vizinhos por um simples ofício “[...] levava um peixe para passear pela trela. No extremo
da fita de couro estava amarrado, pela cauda, um gordo peixe.” (COUTO, 2009, p. 95).
O narrador do conto “O peixe e o homem” relata como um dia desses ele fora
surpreendido pelo vizinho o esperando na porta de sua casa com trela na mão. Como o
narrador reagiu? “me arrepiei” (COUTO, 2009, p. 95) e após um momento de hesitação, ele
tenta fugir, mas Jossinaldo o surpreende com estranho pedido: substituí-lo no passeio com
o peixe, pois estava se sentindo doente e não podia deixar o animal órfão.
O que fazer? Como recusar tal pedido? Por eu Jossinaldo levava aquele peixe para
passear pela trela? O que tanto assusta o narrador? O que aquele peixe despertava nele?
Segundo Maria Esther Maciel no livro Literatura e animalidade (2016):
O saber que os homens julgam possuir sobre os outros viventes se aloja,
portanto, nos limites do conhecimento racional, no enquadramento
específico de uma percepção instituída, servindo, inclusive, para justificar
os processos de marginalização e coisificação desses seres. (MACIEL,
2016, p. 30)

Que saber o narrador julgava ter daquele animal? Por que ele temia a aproximação?
Por que Jossinaldo era tão marginalizado por seus vizinhos? Cada morador daquele bairro
tinha uma suposição para o estranho comportamento de Jossinaldo, o tio do narrador
acreditava que "[...] o vizinho havia sido um pescador e, agora, arrependido, aplicava
graças nesse peixe doméstico. A culpa de tanto anzol lhe espetava a alma e ele se redimia,
penitente. "(COUTO, 2009, p.96). Seria culpa o que Jossinaldo sentia? Essa era explicação
para tal ato?
O avô do narrador tinha outra explicação, segundo ele:
Não ouvíamos falar do sermão de Santo António que deixara o auditório
das praças e se deslocara para o mar, lançando palavra sobre os seres de
guelra e escama. Pois Jossinaldo descobrira que havia sido o inverso: um
certo peixe havia pregado aos homens e lhes espalhara a moral sem lições.
(COUTO, 2009, p.96).

Segundo a personagem, o peixe do lago era o sermonista. Há ainda nessa explicação


uma importante crítica ao animal humano que atribui aos peixes suas características
negativa:
Adjetivavam a peixaria: os mandantes do crime são chamados de
"tubarões". Os poderosos da indecência são "peixe graúdo". Os pobres
executantes são o "peixe miúdo". [Ao que ele acrescenta] e afinal, onde
não há crime é lá dentro das águas, lá é que há a tal de propalada
transferência. (COUTO, 2009, p. 96).

Muitas vezes, é preciso atravessar a fronteira da dúvida, do medo, do receio e


encarar esse outro com seus mistérios e paradoxos. Após um momento de hesitação, o
narrador se permite conhecer Jossinaldo e seu diferente ofício, segundo ele:

Minha sabedoria é ignorar as minhas originais certezas. O que interessa


não é a língua materna, mas aquela que falamos mesmo antes de nascer.
Por isso, me dei licença de escutar Jossinaldo. E fui saindo de casa,
caminhando ao mesmo passo do afamado vizinho, lado a lado. Na rua me
olharam, surpresos. Então eu autorizava a companhia do proscrito, no
pleno da via pública? (COUTO, 2009, p. 97).

Quando "ignora suas originais certezas", o narrador se abre para esse outro e suas
particularidades. Ele acompanha Jossinaldo pelo parque e esse vai ensinando seu ofício.
Há um momento em que o narrador é surpreendido pelo peixe "o bicho veio à superfície da
água e me olhou com olhos, até me custa escrever, com olhos de gente." (COUTO, 2009, p.
97). Esse ato causa espanto no narrador, mas ele não recua diante de seu novo ofício.

Derrida

O dono do cão do homem: afinal, o melhor amigo do cão é o homem?

O segundo conto selecionado da obra O fio das missangas (2009) apresenta a


curiosa relação de um homem com seu cão, ele começa seu relato da seguinte forma:
"conto-vos como fui traído não pela minha amada, mas pelo meu cão. Deixado assim sem
palavra, sem consolo." (COUTO, 2009, p. 103). A partir de então a personagem começa a
contar seu drama pessoal envolvendo seu animal de estimação, começa se comparando ao
mesmo:
Sou um qualquer da vulgar raça humana, sem comprovado pedigree e, se
tiver cabimento em jornal, será nas páginas de anúncios desclassificados.
Já o meu cão, ao contrário, é de apurada raça, classe comprovada em
certificado de nascença. O bicho é bastante congênito, cheio de
hereditariedade. Retriever, filho de retriever, neto de bisneto. Na pura
linha dos ancestrais, como os reis em descendência genealógica.
(COUTO, 2009, p. 103).
No conto, enquanto o humano não tem nenhum pedigree, o cão é de uma linhagem
puríssima de retriever. É possível observar a superioridade que o cão possui com relação ao
homem. Segundo Dominique Lestel no artigo "A animalidade, o humano e as comunidades
híbridas" presente no livro Pensar/escrever o animal: ensaios de zoopoética e biopolítica
(2011) organizado por Maria Esther Maciel:
[O animal] é uma criatura híbrida com a qual o humano mantém uma
multiplicidade extraordinária de relações, desde as mais superficiais até as
mais complexas, e que o envolve no mais profundo do seu ser e com o
que ele acredita ser. (LESTEL in MACIEL, 2011, p. 24).

A relação que o homem costuma ter com o cão costumo ser de amizade,

A dominação: o que pensa/sente um ser dominado?

Julio Cortázar no ensaio "Alguns aspectos do conto" presente no livro Valise de


Cronópio (1974) argumenta sobre certas constantes que os bons contos costumam ter, são
eles: significação, tensão e intensidade. Cortázar argumenta ainda sobre a importância da
escolha de um tema, segundo o contista e crítico:
[No conto] há tema, repito, e esse tema vai se tornar conto. Antes que isto
ocorra, que podemos dizer do tema em si? Por que este tema e não outro?
Que razões levam, consciente ou inconscientemente, o contista a escolher
um determinado tema? (CORTAZAR, 1974, p. 154).

O tema de "O dono do cão do homem" é a relação entre um homem e seu cão,
quem domina e quem é dominado, situação essa invertida na narrativa. Na relação entre
humano e animal, quem costuma dominar? O homem, mas no texto em análise isso é
invertido. Qual é o propósito disso? O que isso causa no leitor? O que o narrador sente
sendo dominado por seu cão? O que o cão sente sendo dominado pelo humano? O animal é
sujeito? Ele também sente a dominação?
A professora e pesquisadora Maria Esther Maciel no livro Literatura e animalidade
(2016) cita as reflexões de Michael de Montaigne, segundo ela: "para o autor, é muita
presunção do homem pensar que pode assegurar a sua própria supremacia em relação aos
outros animais ao distribuir as faculdades físicas, emocionais e intelectuais que bem
entende a eles." (MACIEL, 2016, p. 29). O que o humano julga que o animal pensa/sente?
Como ele sente a dominação?
Referências:
CORTÁZAR, Julio. Alguns aspectos do conto. In: ________ Valise de Cronópio. São
Paulo: Perspectiva, 1974, p. 147-163.

COUTO, Mia. O fio das missangas: contos. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

FRIEDMAN, Norman. O ponto de vista na ficção: o desenvolvimento de um conceito


crítico Tradução de Fábio Fonseca de Melo. In: REVISTA USP, São Paulo, nº 53, p. 166-
182, março/maio 2002.

MACIEL, Maria Esther. Literatura e animalidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,


2016.

LESTEL, Dominique. A animalidade, o humano e as comunidades híbridas. in: MACIEL,


Maria Esther. Pensar/escrever o animal: ensaios de zoopoética e biopolítica.
Florianópolis: Editora da UFSC, 2011.

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