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Pensar, escrever e falar de nós mesmos é uma tarefa muito difícil, mesmo
convivendo com nossas angústias, questionamentos, medos e aflições, raramente nos
sentimos confortáveis para falar do que se passa conosco. Se é tão difícil falar do que nós
conhecemos(ou julgamos conhecer), imagina falar do outro, esse outro que nos é tão
diferente.
O outro nos assusta, desperta o que há de melhor e o que há de pior em nós, ele nos
faz pensar e questionar coisas que julgávamos respondidas e isso pode ser desesperador.
Ele nos obriga a sair de nós mesmos e atravessar a fronteira das certezas e a questionar
perguntas já respondidas: quem somos nós? Quem é o outro? O que nos aproxima? O que
nos distancia?
Não bastando ter essas dúvidas, elas são agora multiplicadas e agora esse outro já
não é um ser humano (esse outro humano já é por si só tão complexo), mas esse outro agora
é um animal. O que fazer? O que pensar: o que julgamos saber sobre eles? Esse saber é
baseado somente no animal ou é apenas um reflexo de nós mesmos? Como questiona um
poema de Paulo Leminski:
Você, vendo os outros.
pensa que sou eu?
Ou tudo que teu olho vê
Você pensa que é você?
O que vemos nesse outro: ele mesmo ou um reflexo de nós? O que há no outro que
tanto nos assusta? Estar diante do diferente atormenta? O que é o animal? Quando olhamos
para ele o que vemos? O que queremos ver? Como pensar/escrever esse outro que nos
parece tão distante? Como ser fiel a ele e não atravessar as fronteiras que nos separam?
Adentrar o universo do outro é algo que nos obriga a abandonar conceitos prontos,
nos obriga a sair de nós mesmos e abraçar novas possibilidades porque esse contato, esse
pensar só vale a pena se estivermos dispostos a olhar para esse outro com novos olhos e
aprender, com ele, como ser mais humano.
Os animais habitam a água, a terra e o ar, partilham conosco o planeta, seus recursos
e os mais diversos tipos de experiências. O que sabemos sobre eles? O que nos une? O que
nos separa? O que eles despertam em nós? Por que partilhamos afeto com cães e gatos e ao
mesmo tempo temos pavor de baratas e ratos?
A coletânea de contos O fio das missangas (2009) contém 29 pequenas histórias,
dentre todas elas foram selecionadas: O peixe e o homem e O dono do cão do homem que
têm em comum a relação do homem e o animal.
Trata-se de duas pequenas histórias narradas em primeira pessoa por um narrador
que Norman Friedman no texto O ponto de vista na ficção: o desenvolvimento de um
conceito crítico (2002) chama de narrador-protagonista, que segundo o estudioso, “[limita a
narrativa] a seus próprios pensamentos, sentimentos e percepções. [...] O ângulo de visão da
narrativa é fixo.” (FRIEDMAN, 2003, p. 177). As narrativas relatam a experiência que
esses dois personagens vivenciaram com diferentes animais: um peixe e um cão.
Pensar, escrever e questionar sobre o animal é uma tarefa que nos desafia já que
esses despertam o que há de melhor e o que há de pior em nós, segundo Maria Esther
Maciel no livro Literatura e animalidade (2016):
Os animais, sob o olhar humano, são signos vivos daquilo que sempre
escapa a nossa compreensão. Radicalmente outros, mas também nossos
semelhantes, distantes e próximos de nós, eles nos fascinam ao mesmo
tempo que nos assombram e desafiam nossa razão. (MACIEL, 2016, p. 13)
Que saber o narrador julgava ter daquele animal? Por que ele temia a aproximação?
Por que Jossinaldo era tão marginalizado por seus vizinhos? Cada morador daquele bairro
tinha uma suposição para o estranho comportamento de Jossinaldo, o tio do narrador
acreditava que "[...] o vizinho havia sido um pescador e, agora, arrependido, aplicava
graças nesse peixe doméstico. A culpa de tanto anzol lhe espetava a alma e ele se redimia,
penitente. "(COUTO, 2009, p.96). Seria culpa o que Jossinaldo sentia? Essa era explicação
para tal ato?
O avô do narrador tinha outra explicação, segundo ele:
Não ouvíamos falar do sermão de Santo António que deixara o auditório
das praças e se deslocara para o mar, lançando palavra sobre os seres de
guelra e escama. Pois Jossinaldo descobrira que havia sido o inverso: um
certo peixe havia pregado aos homens e lhes espalhara a moral sem lições.
(COUTO, 2009, p.96).
Quando "ignora suas originais certezas", o narrador se abre para esse outro e suas
particularidades. Ele acompanha Jossinaldo pelo parque e esse vai ensinando seu ofício.
Há um momento em que o narrador é surpreendido pelo peixe "o bicho veio à superfície da
água e me olhou com olhos, até me custa escrever, com olhos de gente." (COUTO, 2009, p.
97). Esse ato causa espanto no narrador, mas ele não recua diante de seu novo ofício.
Derrida
A relação que o homem costuma ter com o cão costumo ser de amizade,
O tema de "O dono do cão do homem" é a relação entre um homem e seu cão,
quem domina e quem é dominado, situação essa invertida na narrativa. Na relação entre
humano e animal, quem costuma dominar? O homem, mas no texto em análise isso é
invertido. Qual é o propósito disso? O que isso causa no leitor? O que o narrador sente
sendo dominado por seu cão? O que o cão sente sendo dominado pelo humano? O animal é
sujeito? Ele também sente a dominação?
A professora e pesquisadora Maria Esther Maciel no livro Literatura e animalidade
(2016) cita as reflexões de Michael de Montaigne, segundo ela: "para o autor, é muita
presunção do homem pensar que pode assegurar a sua própria supremacia em relação aos
outros animais ao distribuir as faculdades físicas, emocionais e intelectuais que bem
entende a eles." (MACIEL, 2016, p. 29). O que o humano julga que o animal pensa/sente?
Como ele sente a dominação?
Referências:
CORTÁZAR, Julio. Alguns aspectos do conto. In: ________ Valise de Cronópio. São
Paulo: Perspectiva, 1974, p. 147-163.
COUTO, Mia. O fio das missangas: contos. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.