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A ESCOLA PENINSULAR DA PAZ: A CONTRIBUIÇÃO

DA VERTENTE PORTUGUESA EM PROL


DA CONSTRUÇÃO DE UM NOVO DIREITO
DAS GENTES PARA O SÉCULO XXI1

Pedro Calafate
Doutor e Mestre em Filosofia pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa (FLUL); Licenciado em História
pela FLUL; Professor Catedrático de Filosofia da FLUL; Diretor do Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa.

Sílvia Maria da Silveira Loureiro


Aluna do Programa de Pós-Graduação em Direito da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro
(Curso de Doutorado); Mestre em Direito pela Universidade de Brasília; Especialista em Direito Processual
pelo Instituto Superior de Administração e Economia da Amazônia/Fundação Getúlio Vargas; Professora
do Curso de Direito da Escola Superior de Ciências Sociais da Universidade do Estado do Amazonas,

INTRODUÇÃO Tais procedimentos eram por eles encarados


como anti-evangélicos e vincadamente contrários
A partir do segundo quartel do século XVI, ao Direito, afrontando a paternidade divina,
perante os relatos da hecatombe associada à à luz da qual todos os homens foram criados
conquista e colonização da América, emergiu nas livres por Deus, e à Sua imagem e semelhança.
principais universidades da Península Ibérica a Assim se fundamentava, na mais nobre raiz, a
consciência de um colapso ético, dando origem a igualdade natural entre os Seus filhos, bem como
uma escola de pensamento que pôs em causa os a irmandade dos homens, no quadro do antigo
pressupostos teológicos, políticos e jurídicos dessa preceito paulino de que “não há distinção entre
ocupação, abrindo-se à fundamentação de direitos judeu e grego”, referido pelo mestre de Segóvia,
naturais universais, inerentes aos seres humanos Domingo de Soto, no seguinte excerto:
e às comunidades por eles formadas, que deste
modo se afirmavam como primeiros fundamentos Cristo não nasceu para castigar os pecados,
da comunidade internacional. mas para conceder o perdão […] e fica claro
que, entre os que habitam a totalidade do orbe,
Os autores desta escola peninsular e
a ninguém exclui, ainda que idólatra, porque,
hispânica,2 portugueses e espanhóis, eram todos
como diz São Paulo, “não há diferença entre
homens de igreja, frades e clérigos, dominicanos
judeu e grego”, nem em Cristo há escravo nem
uns, jesuítas outros, confessores régios, quase livre, senão que oferece o perdão dos pecados a
todos catedráticos de Teologia nas Universidades todos os que se arrependerem, por desmedida
de Coimbra, Évora, Salamanca, Valladolid e que seja a sua mácula […]. E ainda que nos
Alcalá de Henares, teólogos reais no Concílio víssemos constituídos em juízes do orbe, não
de Trento, abades de mosteiros e missionários, deveríamos castigar pecado algum dos infiéis,
crentes sinceros a quem repugnava a ideia ou a senão predicar-lhes o perdão de todos eles e,
simples possibilidade de que o Deus da paz e da em segundo lugar, nunca nos seria concedido
misericórdia incitasse ou permitisse que os cristãos tal poder, pois não tem sentido um poder que
levassem a desolação e a morte àqueles que O não nunca poderia exercer-se.3
adoravam, derramando sangue humano em seu
nome, ocupando territórios alheios, expropriando Assim, no coração da Cristandade e nas suas
os bens das comunidades indígenas e esmagando mais brilhantes instituições de Cultura, no núcleo
as suas soberanias, ainda que embrionárias, em intelectual dos dois impérios católicos que se
territórios que nunca haviam pertencido aos estendiam sobre o mundo dando corpo à primeira
cristãos, mediante práticas de crueldade a que se globalização, um punhado de homens, quase todos
não tinham ainda atrevido os piores tiranos. professores das suas mais prestigiadas universidades

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Revista do Instituto Brasileiro de Direitos Humanos, v. 13, n. 13, 2013.
Pedro Calafate e Sílvia Maria da Silveira Loureiro

ou delas egressos, levantaram a incómoda questão protestantes do século XVII, já conhecera um


da inexistência de fundamentação ética, teológica, momento histórico fundamental de pesquisa
política e jurídica para o que sucedeu e estava a e aplicação no pensamento dos teóricos
suceder nos territórios recém-descobertos. hispânicos. A luta que estes travaram por
Os relatos dos acontecimentos que chegavam um sistema de direito natural válido para
às cátedras desses mestres de Portugal e Espanha, todos os tempos e lugares é, propriamente
tanto orais como escritos, ou as cenas de quotidiana falando, a luta pela invenção de um sistema
violência a que assistiam no decurso de suas de convivência humana, independente dos
costumes ou crenças religiosas particulares
vidas missionárias na América, não encontravam
dos grupos.8
legitimidade no modo como concebiam o direito
divino, o direito natural e o direito das gentes, Notamos, entretanto, que não se trata de um
traduzindo antes o uso ilegítimo da força, no mais sistema alicerçado no puro relativismo cultural, ou
absoluto desrespeito pela tradição doutrinária da no que hoje se chama de multiculturalismo, pois as
guerra justa.4 teses defendidas pelos autores peninsulares desta
Francisco de Vitória, talvez o mais célebre Escola sempre partiram de uma expressa opção
representante desse pensamento peninsular da paz, pela verdade, coincidente com o cristianismo
ao escrever as suas lições sobre os Índios, em 1538- de confissão católica – de que a lei natural era
39, concluiu com clareza que “quando a expedição eminente expressão.9
real se dirigiu às terras dos Índios, nenhum direito Neste enquadramento, deve-se aos teólogos
levava para ocupar as suas províncias”.5 Alguns peninsulares a construção de uma concepção
anos antes, em 1535, Domingo de Soto, confrade ampliada da idéia de comunidade internacional,
de Vitória, ao colocar essa mesma questão, chegou rumo ao reconhecimento de um direito comum
a idêntica e desconcertante conclusão: “Portanto, da humanidade, fundado na razão natural. A
com que direito retemos o império ultramarino experiência do contato civilizacional com os
recentemente descoberto? Na verdade não sei povos do Novo Mundo empurrou os limites do
[…], pois não vejo donde nos venha tal direito”.6 orbis christianus medieval para além da Europa. A
É comum afirmar-se, na esteira de Brian comunidade internacional passou a ser concebida
Tierney, que a idéia de direito natural cresceu de forma universal: o totus orbis vitoriano,
entre os juristas e teólogos cristãos durante a Idade formulado na seguinte passagem da sua lição
Média e que o desenvolvimento posterior dessa sobre o poder civil:
doutrina, no início do mundo moderno, deveu- O orbe inteiro, que de certo modo constitui uma
se quase que totalmente ao trabalho dos teóricos única República, tem poder para promulgar leis
políticos protestantes7. Porém, o pensamento justas e convenientes para todos, como são as
justeológico cristão peninsular dos séculos XVI e leis do Direito das Gentes. Segue-se que pecam
XVII, que pode e deve ser representado como a mortalmente os que violarem o Direito das
ponte entre esses dois mundos, foi repelido pelo Gentes, seja na paz seja na guerra […]. Não é
processo histórico subsequente de secularização lícito a um reino particular não querer ater-se
da doutrina jusnaturalista e pela prevalência do ao direito das gentes, pois foi promulgado pela
positivismo jurídico, ocorrida tanto no plano do autoridade do orbe inteiro.10
direito interno dos Estados como no plano do
Para compreender as relações dos cristãos
Direito Internacional.
com os povos do Novo Mundo, os teólogos
Como detalharemos ao longo do presente peninsulares em análise tiveram que superar as
estudo, todo o esforço destes mestres foi dirigido à antigas concepções medievais sobre o senhorio
invenção de um sistema de convivência humana universal do papa ou do imperador. Renasce, então,
que estabelecesse critérios de universalidade dos um pensamento democrático, em que o orbe
direitos dos homens e das suas comunidades, fundamenta-se nos princípios da racionalidade
independentemente da diversidade de lugares e sociabilidade humanas. A partir dessa base,
religiões e culturas, como assevera José Sebastião formulam-se os preceitos jurídicos acerca da
da Silva Dias: igualdade, liberdade e “domínio”11 dos homens
O direito natural moderno teve o seu berço e dos povos, assim como o estabelecimento do
na Península Ibérica. E teve-o exatamente direito das gentes como produto e garante destes
no quadro da problemática ético-política fundamentos.
gerada pelas Descobertas. Muito antes de Sob tais premissas, buscaremos atender
aprofundado e desenvolvido pelos juristas a dois objetivos principais nas seções em que

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A Escola Peninsular da Paz: A Contribuição da Vertente Portuguesa em Prol da Construção de um Novo Direito das Gentes para o Século XXI

se subdivide este artigo. Preliminarmente debate, convocando uma Junta, em Valladolid,


demonstraremos a forte coesão doutrinária dos em 1550, para ouvir os dois lados da controvérsia,
pensadores luso-espanhóis desse período, marcado representados por duas figuras emblemáticas
pelo renascimento humanista cristão, culminando daquele tempo: Bartolomeu de las Casas e Juan
na formação de uma Escola Peninsular da Paz Ginés de Sepúlveda. O primeiro era um frei
ativa e vibrante durante os séculos XVI e XVII. dominicano, bispo de Chiapas, que defendia que
Em seguida, comprovaremos que o conjunto os indígenas americanos eram homens livres e
da resposta universitária peninsular à questão iguais a qualquer outro súbdito espanhol e, nesta
indígena constitui o elo fundamental para o condição, deveriam ter seu direito de domínio
resgate de princípios estruturantes buscados pelo respeitado. O outro era um humanista franciscano
Direito Internacional dos Direitos Humanos12 que defendia, com base na tradição aristotélica, a
contemporâneo, selecionando, para o alcance escravidão natural dos ameríndios, bem como a
deste segundo propósito, os textos da vertente tese de que os crimes por eles cometidos contra a
universitária portuguesa da Escola Peninsular da lei natural deveriam ser punidos pelos espanhóis.14
Paz, muitos dos quais ainda se encontram inéditos Sublinhamos, entretanto, que esta famosa
e em sua versão manuscrita e latina. disputa representa mais do que um antagonismo
Em análise última, mostraremos que os pessoal entre Las Casas e Sepúlveda. Antes de
justeólogos da Escola Peninsular da Paz não tudo, ela revela o pano de fundo teórico de dois
capitularam perante a força empírica dos fatos, não posicionamentos intelectuais acerca do mesmo
se calaram perante a permissividade do recurso problema prático: como a política colonial no
à guerra, não fecharam o direito das gentes no Novo Mundo deveria ser conduzida pelos reinos
circuito estreito da vontade e interesses dos poderes de Espanha e Portugal?
instituídos. Nessas disputas devemos frisar que os
Se a constatação da experiência evidenciava teólogos eram considerados num plano de saber
o tema clássico do desconcerto do mundo, deveria omnicompreensivo, não apenas pelo estatuto de
submeter-se a ordem empírica ao império da rainha das ciências reconhecido à teologia, mas
consciência jurídica universal, não se limitando também porque as questões indígenas eram mais
a constatar como as coisas são, mas evidenciando adequadamente analisadas à luz das leis natural
a ordem ético-jurídica do dever-ser, e por esta via e divina, tendo sobre elas melhor conhecimento
se definia um jus gentium, despido das facetas os teólogos do que os juristas, cuja formação
privatistas do antigo direito das gentes romano, se circunscrevia privilegiadamente ao direito
disposto a preparar o terreno à afirmação de um positivo.
direito internacional verdadeiramente humanista Como destacou Jesús Cordero Pando, no
e universal.13 momento histórico e no meio intelectual em
que viveu Francisco de Vitória (assim como os
1. A ESCOLA PENINSULAR DA PAZ E A demais autores peninsulares em estudo), era
REFLEXÃO UNIVERSITÁRIA SOBRE dever do teólogo “saber de todos os assuntos
referentes ao comportamento humano, tanto
AS CONDIÇÕES DE LEGITIMIDADE individual como coletivo: a cátedra de Teologia
DA CONQUISTA DA AMÉRICA era a mais importante e a melhor remunerada
Depois das conquistas do México e do Peru, na universidade e se considerava o catedrático
entre 1519 e 1533, a crise de consciência de em Teologia como “sábio universal”. Portanto,
alguns universitários peninsulares sobre a justiça naquele contexto, estava totalmente fora de
das guerras travadas contra os povos nativos da questão separar ou distinguir entre “profissionais”
América se aprofundava cada vez mais. Eram diferentes as funções de filósofo e teólogo.”15
postas questões fundamentais e inéditas que Cordeiro Pando alerta ainda que, para além
estavam na ordem do dia, a saber: É legítimo do caráter omnicompreensivo da teologia, que
o título de ocupação das Índias sob as Bulas de habilitava o teólogo a pronunciar-se sobre qualquer
Alexandre VI? É justa a guerra movida contra os assunto humano, no tempo de Vitória assistiu-se a
Índios? A teoria aristotélica da escravidão natural um recuo crescente do teocentrismo medieval, pois
era aplicável aos “bárbaros” do Novo Mundo? [na] nova concepção teológica, e desde o
Nesse contexto, tal como fez em 1512 o enfoque que lhe dá Vitória, o eixo sobre o qual
seu predecessor, o rei Fernando II de Aragão, gira e o referente universal já é o homem. Se
o imperador Carlos V provocou oficialmente o trata de um enfoque mais antropocêntrico,

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Pedro Calafate e Sílvia Maria da Silveira Loureiro

próprio do humanismo renascentista cristão. discípulos de Francisco de Vitória, caracterizando


Sem dúvida, o homem é encarado como os teólogos salmantinos pelo dinamismo de seu
criatura de Deus e aberto a Deus, com um pensamento, por sua consciência de unidade e
destino que transcende a história presente; por sua força de expansão, ou seja, um grupo de
mas, sob essa condição, é estudado em si professores universitarios que trabalharam sobre
mesmo e, com todo o realismo, no quadro dos as mesmas fontes e somaram sua própria reflexão
problemas que lhe dizem respeito”. (tradução ao esforço coletivo da Escola.22
livre)16 A primeira geração é composta por teólogos
E prossegue Cordero Pando, acrescentando como Domingo de Soto, Melchor Cano, Diego de
ainda que: Covarrubias e Martín de Azpilcueta, isto é, o círculo
de confrades, colegas de cátedra e discípulos de Vitória
Dentro desta mentalidade, o teólogo está
que escutaram diretamente as suas Relecciones
obrigado a conhecer essa realidade humana, a
na Universidade de Salamanca. A segunda e a
abordar seus problemas, incorporando ao seu
terceira gerações representam o movimento de
tratamento, de forma integradora, a totalidade
expansão do pensamento salmantino em direção
dos saberes a ela referentes: a teología e o
a outras universidades da Espanha, de Portugal e,
direito; mas, sobretudo, o recurso ao raciocínio
mais rigoroso, até esgotar a capacidade de
posteriormente, da América. Particularmente em
argumentar com solidez. Desse modo se Portugal, Luciano Pereña afirma que, através dos
elabora um discurso rigorosamente filosófico. canais universitários, a resposta de Vitória à dúvida
Todavia, como os destinatários diretos de suas indígena se projetou em Évora e Coimbra com as
lições são crentes cristãos, que professam leituras de Luís de Molina e Martinho de Ledesma,
a verdade das doutrinas transmitidas pela estabelecendo-se um verdadeiro diálogo cultural
Bíblia e reconhecem a autoridade da Tradição, entre Évora, Coimbra e Salamanca, tal como existia
inevitavelmente apoia esse ensino em sólida na Espanha entre Salamanca, Valladolid e Alcalá:
base argumentativa, realizando assim um Se nas universidades portuguesas eram
discurso também teológico. (Tradução livre)17 recebidas quase instantaneamente as lições
Alíás, é o próprio Francisco de Vitória quem manuscritas explicadas pelos mestres de
deixa consignado, nos Prólogos de suas lições Salamanca, também chegavam rapidamente
magnas sobre o poder civil (1528) e sobre os nas universidades espanholas os manuscritos
Índios (1538-1539), as razões que o habilitam, de Évora e Coimbra. Se na biblioteca
como teólogo,18 a tratar de assuntos políticos com universitária de Coimbra é possível encontrar
maior autoridade do que os juristas19, sobretudo hoje uma das coleções mais ricas dos mestres
salmantinos, também entre os fundos
no que se refere à questão dos Índios, pois, para
espanhóis, procedentes de colégios maiores
ele, esta questão não devia ser discutida à luz do
de Salamanca, descobrem-se as lições mais
direito positivo europeu, mas sim das leis divinas
importantes de Coimbra. Esta comunicação
e naturais, o que torna o enfoque teológico mais
constante de idéias contribuiu para o
apropriado.20
progresso da Escola e estreitou mais a sua
Indubitavelmente, por conseguinte, o berço unidade doutrinária.23
das reflexões sobre as questões relativas aos títulos
legítimos e ilegitimos da presença dos Hispanos Assim sendo, embora o berço da Escola
na América foi Salamanca e seu pensador Peninsular da Paz seja Salamanca e sua figura
mais ilustre foi Francisco de Vitória. De acordo central seja Francisco de Vitória, as idéias nascidas
com Luciano Pereña, é um fato histórico com no Mosteiro de San Esteban ultrapassaram seus
inquestionável transcendência que as Relecciones muros e cruzaram as fronteiras espanholas,
de Francisco de Vitória (1526-1546) influenciaram espalhando a tese vitoriana em Portugal e na
excepcionalmente a reflexão ética sobre a presença América.
cristã no Novo Mundo. Na visão do citado autor, a Considerando esse vívido intercâmbio
hipótese vitoriana, baseada em uma perspectiva de destacado pelo Professor Luciano Pereña, parece-
direito natural, é a fonte mais dinâmica e o ponto nos de toda a pertinência reunir a vasta reflexão
de referência da Escola de Salamanca.21 destes pensadores dos dois lados da fronteira
Luciano Pereña esclarece, ademais, que a ibérica sob o título de Escola Peninsular da Paz,24
Escola de Salamanca tornou-se um centro de unindo os autores peninsulares dos séculos XVI
irradiação doutrinária, formando três gerações de e XVII cujo eixo teórico principal foi a busca da
paz fundada na justiça, no quadro essencial da

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subordinação da política à ética e do poder das que ensinou na Universidade de Évora entre 1574
armas às regras do direito. e 1583, e Francisco Suárez, natural de Granada e
A Escola Peninsular da Paz, em síntese, reuniu discípulo de Salamanca, que produziu suas obras
uma corrente doutrinária formada por teólogos mais importantes, nesta esfera jurídico-política,
e juristas hispânicos que, utilizando o método como catedrático na Universidade de Coimbra,
escolástico, debateram e aprofundaram temas entre 1594 e 1616.
essenciais para seu tempo, buscando a construção É importante mencionar também os escritos
de uma verdade universal e objetiva assente na dos mestres de Coimbra Martinho de Ledesma
recta razão. As fontes compartilhadas pelos autores (1540-1563) e Antônio de São Domingos (1573-
peninsulares eram aquelas de conhecimento 1593), bem como dos mestres da Universidade
comum pela cultura ocidental cristã, tais como a de Évora, Pedro Simões (1569-1570), Fernão
filosofia greco-romana (principalmente Aristóteles Pérez (1559-1572) e Fernão Rebelo (1586-1596).
e Cícero), o direito romano e suas glosas medievais, Outras figuras que merecem igual destaque são os
os trabalhos dos Doutores da Igreja (sobretudo Santo jesuítas Manuel da Nóbrega e Antônio Vieira, que
Agostinho e São Tomás de Aquino), os documentos executaram o projeto colonial brasileiro inspirados
eclesiásticos e, naturalmente, a Bíblia, justamente pelo pensamento peninsular da época.
considerada como fonte da cultura cristã. É justamente sobre os textos desses autores
Dentre os principais tópicos de preocupação que pretendemos nos debruçar nas seções
comum aos jus-teólogos peninsulares estão: a) as subsequentes, trazendo a público os ecos de textos
relações entre os poderes espiritual e temporal; que, em boa medida, permanecem desconhecidos,
b) a origem popular do poder e a legitimidade porquanto muitos figuram em sua versão original
do direito de resistência contra a tirania; c) as de manuscritos latinos, tendo sido objeto de
condições de legitimidade do império universal; transcrição paleográfica e tradução, no âmbito de
d) o direito da guerra e sua drástica limitação em projeto específico ainda em curso, levado a cabo
função da paz; e) a discussão do domínio sobre pelo Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa,
as terras da América e a ética no processo de tendo como pesquisador responsável o Prof. Pedro
colonização. Calafate.25 Na realidade, se os textos de Suárez e
É nesta última questão que se insere, mais Molina foram já objeto de edição impressa e, em
especificamente, a dúvida sobre a legitimidade da muitos casos de tradução espanhola e portuguesa,
presença hispânica na América, a qual é discutida o mesmo não sucede com os manuscritos latinos
no quadro dos princípios e valores desenvolvidos de Fernão Pérez, Pedro Simões e Antônio de São
na discussão dos temas a) a d) anteriores. Domingos, que aqui são trazidos a público pela
primeira vez.
Contudo, apesar dos laços identitários acima
mencionados, a Escola Peninsular da Paz em Por sua vez, entre as obras impressas,
Portugal foi além da mera repetição das lições muitas permanecem nas suas edições latinas do
salmantinas. Tanto os catedráticos de Évora e século XVI e, portanto, dificilmente acessíveis ao
Coimbra quanto os missionários jesuítas foram leitor de hoje. Referimo-nos a textos de autoria
confrontados com realidades distintas daquelas de Fernão Rebelo, Martín de Azpilcueta e de
vividas na conquista e colonização da América Martinho de Ledesma, cuja tradução portuguesa
espanhola. O ramo lusitano da Escola Peninsular empreendemos também no âmbito deste projeto
da Paz, formado em boa medida por mestres de e de que damos primeiro testemunho público
origem espanhola, testou a hipótese vitoriana, nas nestas páginas da Revista do Instituto Brasileiro
universidades portuguesas, em toda a extensão de Direitos Humanos.
do Império português no Brasil, África e Ásia,
somando suas próprias experiências ao trabalho 2. A PARIDADE NATURAL ENTRE OS HO-
coletivo da Escola, sobretudo no que concerne à MENS E ENTRE OS POVOS
condenação do tráfico negreiro nas duas Guinés,
ou do tráfico de escravos japoneses e chineses. Começaremos por analisar a universalidade
dos fundamentos do poder político nas
Entre as figuras mais conhecidas desta Escola comunidades humanas, traduzida na paridade
que lecionaram nas universidades portuguesas natural entre a “coroa de penas” e a “coroa de ouro”,
contam-se Martín de Azpilcueta, natural da cidade entre o “arco” e o “ceptro”, como estabeleceu o
espanhola de Navarra, que se tornou célebre como Padre Antônio Vieira, em 1694, no seu voto sobre
catedrático na Universidade de Coimbra entre as dúvidas dos moradores de S. Paulo:
1538 e 1552; Luís de Molina, nascido em Cuenca,

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Pedro Calafate e Sílvia Maria da Silveira Loureiro

Assim como o espanhol ou genovês cativo em O poder político, a soberania ou o domínio


Argel é contudo vassalo do seu rei e da sua de jurisdição e propriedade são meios que a
república, assim o não deixa de ser o índio, comunidade tem ao seu dispor para realizar o seu
posto que forçado e cativo, como membro fim. Logo, o poder radica na racionalidade e na
que é do corpo e cabeça política da sua nação, sociabilidade humanas, sem distinção de raça e
importando igualmente para a soberania e credo. A sua origem, ontologicamente falando, é
liberdade, tanto a coroa de penas como a de idêntica para todos os povos.
ouro, e tanto o arco como o ceptro.26 Então, o poder político encontra sua fonte no
Esta eloquente e belíssima afirmação direito natural, comum a todos os povos. Trata-
daquele que foi, porventura, o primeiro grande se de uma idéia de direito objetivo, no sentido
escritor luso-brasileiro era sustentada pelas de ser independente da vontade dos Estados que
teses escolásticas ensinadas nas Universidades integram a comunidade internacional, já que é
peninsulares do século XVI, nomeadamente em radicado na natureza humana, entendendo-se
Coimbra e Évora, por Suárez e Molina, a par dos aqui por natureza um referencial de racionalidade,
mestres já aqui nomeados. ordem, inteligibilidade e universalidade.
Ensinava o professor da Universidade de A natureza é a voz interior da razão, e como
Évora, Luis de Molina, na década de 70 do século a razão identifica o homem, assim também a
XVI: natureza expressa um conteúdo comum a todos.
Neste sentido, veja-se o notável texto de Martín
Não há nada que se oponha a que nas nações
de Azpilcueta nas suas lições na Universidade de
infiéis haja verdadeiros reis que as dominem,
Coimbra, no ano de 1548:
assim como os demais poderes populares
legítimos […]. Portanto, tanto o domínio de Quando os povos não têm a luz e o apoio de
jurisdição como o de propiedade são comuns um imperador, é mister que sejam para si a
a todo o género humano e o seu fundamento sua própria luz, e quem não tem guia e chefe,
não é a fé nem a caridade, porque nascem é o seu próprio chefe e guia. E assim, embora
mediata ou imediatamente da mesma algum povo não tenha chefe nem rei mediante
natureza das coisas.27 providência humana, contudo recebeu da
natureza naturante, que é Deus, o poder de
Nos mesmos termos, ensina o professor
se dirigir, governar e iluminar […] e se se
de Coimbra, Francisco Suárez, no seu curso de
encontrassem alguns homens associados em
Direito, na década de 90 do mesmo século:
comunidade, estes teriam do próprio Deus, de
O poder dos príncipes cristãos, em si mesmo, modo imediato, o poder de se governarem a si
não é de maior nem de distinta natureza que o mesmos e de fazerem as coisas sem as quais
poder dos príncipes pagãos; logo, em si próprio, não poderiam viver em sociedade […], pois a
não tem outra matéria nem outro fim.28 lei imperial não pode suprimir as providências
naturais. Não vai em sentido contrário o
Vieira, Molina e Suárez convergiam na tese
facto de que muitos povos parecem carecer
de que o poder político tem origem em Deus, completamente de jurisdição. Na verdade,
enquanto autor da natureza social do homem. não carecem completamente de jurisdição
Deus é a origem do poder porque quem dá a mas do seu uso.29
essência de uma coisa dá também o que dela
se segue. Ora, ao dar ao homem uma natureza Temos assim que não há distinção de
social, dá-lhe também as faculdades necessárias fundamento ou natureza do poder político ou
para viver em sociedade, ou seja, dá à comunidade das soberanias entre os povos, ficando assim
humana o poder de a si própria se reger. estabelecida uma base comum, um suporte de
Nestes termos, o poder político é constitutivo igualdade entre as comunidades humanas cuja
da essência das comunidades formadas pelos legitimidade assentava na razão natural, dada
homens, podendo dizer-se que a sua origem radica por Deus a todos os homens no momento da
na natureza social e racional dos homens que a criação. Por isso, ensinava Francisco Suárez em
constituem, assumindo-se a comunidade como Coimbra: «Tudo o que foi dito até agora sobre o
uma entidade transpessoal, cuja finalidade é o poder natural que têm os homens para ditar leis
bem comum e não, como mais tarde se firmou civis é universalmente válido para todos os pagãos
na tradição liberal de matriz anglo-saxónica, a e infiéis».30
garantia da propriedade individual.

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A Escola Peninsular da Paz: A Contribuição da Vertente Portuguesa em Prol da Construção de um Novo Direito das Gentes para o Século XXI

3. A LIBERDADE DE CELEBRAR PACTOS pois não constava de forma clara nos textos
bíblicos uma tal doação ou concessão. Então, só por
CONSTITUTIVOS E TRANSLATIVOS vontade dos homens, expressa de forma clara, livre
DO PODER CIVIL e responsável, poderíamos esperar a constituição
Outro dos princípios fundamentais da de um grande império.
Escola Peninsular da Paz, fortemente estimulado É o que ensinava em Coimbra o Doutor
pela experiência da conquista e colonização Martín de Azpilcueta, em 1548:
da América, ditava que a celebração de pactos Erra a opinião corrente […], na medida em
desiguais não constitui norma aceitável na relação que pensa que por direito divino é necessário
entre os homens e entre os povos nem configura que exista uma única soberania laica sobre o
título legítimo de transmissão do poder civil. mundo inteiro, da mesma maneira que existe
De fato, tendo em vista a fundamentação uma única soberania eclesiástica. Porque em
jusnaturalista do poder político, enunciado primeiro lugar tal não se prova por nenhum
no item supra, ficava claro que este radicava direito divino sobrenaturalmente dado ou
na comunidade que, na base de um pacto ou revelado […]. Em segundo lugar tal não pode
contrato, a poderia transmitir a quem julgasse concluir-se por nenhuma razão natural […].
por bem, para que zelasse pelo bem comum, Igualmente erra um grande número que pensa
sendo também claro que o principal título de que o imperador dos Romanos é senhor e
aquisição do poder civil era o consenso popular, a rei do mundo e da terra porque o imperador
que acrescia a guerra justa, a doação e a legítima Antonino dissera: “Eu sou senhor do mundo”
herança. Suárez entende que, nesse sentido, a […], pois não é de presumir que o imperador
comunidade humana: Antonino de tal modo carecesse de senso
que com aquelas palavras significasse a sua
Porque sendo regida diretamente por Deus convicção de que era senhor da terra inteira,
mediante o direito natural, é livre e dona de si. que, nem mesmo dividida ao meio, jamais se
Esta liberdade não exclui o poder de governar- submeteu nem a ele nem a nenhum dos seus
se a si mesma e de mandar em seus membros, predecessores […].
senão que a inclui. Mas exclui a sujeição a
outro homem enquanto dependa apenas Conquanto que seja verdade que se todas as
do direito natural. Pois a nenhum homem cidades da terra e os governantes delas, aos
Deus outorgou imediatamente semelhante quais interessasse, acordassem em que um
poder, enquanto não seja transladado a um só fosse eleito governante, rei ou imperador
indivíduo por meio de uma instituição e de todos, seria verdadeiro governante, rei
eleição humanas.31 ou imperador aquele a quem a maior parte
escolhesse […], porque é da mesma natureza
Logo, quando o rei adquire o poder de forma
e espécie o poder com que os reis reinam e o
ilegítima (tirano por título de aquisição) ou quando
poder com que a si mesmas se governam as
governa em desfavor do bem comum (tirano por
cidades livres.33
administração), a comunidade pode avocar o poder,
num ato de resistência ativa, transferindo-o ou Por conseguinte, se o poder civil brota da
conferindo-o a quem entender, ou então conservá- necessidade natural de reunião em comunidade,
lo em seu poder, como originariamente, por ser não há ninguém que, por Direito Natural, tenha
a democracia a forma mais natural de exercício o senhorio universal de todo o orbe, consoante a
do poder, no sentido em que não precisa de ser lição de Suárez:
positivamente instituída32. Em todo o orbe não existe uma só república
A partir daqui, a consequência será a da ou um só reino temporal, senão vários e
concepção do império como uma expectativa muitos que não formam entre si um só
jurídica, dependente de um verdadeiro pacto corpo político, pois não foi conveniente que
constitucional. A esta luz, entendiam os juristas houvesse um só monarca, nem (falando em
portugueses e espanhóis desta Escola que o termos mais comuns) um só governo, ou um
imperador não era senhor do mundo, pois nunca só tribunal supremo, político e humano, para
fora eleito por todos os povos da terra, nem sequer todo o universo. Mais ainda, nem moral nem
pela maior parte, e também não conquistara o humanamente tal foi possível.34
poder universal em guerra justa, por se tratar de
Dito isto, trata-se agora de interpretar os
uma hipótese totalmente inverosímil, acrescendo
supostos contratos ou pactos de transmissão
que tampouco se poderia invocar o direito divino,

267
Pedro Calafate e Sílvia Maria da Silveira Loureiro

da soberania entre os povos americanos e os tem poder espiritual ou temporal sobre aqueles que
Espanhóis, no início da colonização da América. estão fora da Igreja, isto é, sobre os infiéis36.
De um modo geral, os mestres de Salamanca, Ao examinar a posição do Papa em relação
Coimbra e Évora negaram de forma muito clara àqueles que estavam fora do grêmio da Igreja,
a validade de tais pactos, considerados desiguais e Luis de Molina trilhava em Évora o mesmo
assimétricos, por neles intervirem a ignorância e pensamento de Vitória em Salamanca, afirmando
o medo. É o que nos diz o Doutor Fernão Pérez no que a infidelidade não é causa legítima para a
seu manuscrito latino sobre a guerra: perda do domínio:
Não constitui título legítimo de aquisição Não tem maior poder o Sumo Pontífice nas
de domínio o acto de subjugar os Índios por, coisas temporais que nas espirituais; é por
persuadidos pelos Espanhóis, responderem que isso que não tem nenhum poder espiritual
lhes apraz serem súbditos do rei de Espanha: sobre os infiéis – pois disse São Paulo na
parece que respondem assim por medo, por Ep. I ad Cor. 5: ‘Porventura, compete-me
a medrosa multidão ver à sua volta homens julgar os que estão fora?’ –pois tem apenas
armados, por serem ignorantes e não saberem o direito de propor-lhes e explicar-lhes o
o que fazem e talvez nem o que os Espanhóis Evangelho, convidando-os a abraçar a Fé, logo
querem deles. Todavia, se sem ignorância e não é tampouco seu senhor temporal; nem,
medo, se fizer escolha de um príncipe cristão, portanto, senhor universal.37
com consentimento do príncipe infiel (se o
tiverem), a escolha não é inválida ou ilícita. Se Se o papa não era senhor do mundo no
o príncipe infiel discordar, essa eleição só pode temporal e no espiritual, consoante entendiam
ser válida se ele for tirano, pois neste caso a os autores peninsulares, três consequências
república pode repudiá-lo.35 imediatas eram deduzidas: primeiramente, o
poder espiritual do papa restringia-se aos cristãos,
Este texto, que pela primeira vez vem a nenhum poder detendo sobre os infiéis do Novo
público, do fundo dos seus quatrocentos e vinte Mundo; em segundo lugar, o poder do papa sobre
cinco anos de idade, estabelece de forma muito os assuntos temporais relativos à predicação
clara um conjunto de regras jurídicas, fundando universal era indireto e exercia-se apenas sobre os
em bases éticas as relações internacionais, na cristãos e sobre os já batizados: para evangelizar
altura baseadas num jus gentium que respeitava a os povos gentios e pagãos poderia preferir, aos
liberdade e dignidade das comunidades humanas demais príncipes cristãos, os reis peninsulares,
e dos indivíduos que as constituíam. Repare-se em ordem à execução desta missão espiritual,
que no final do texto, o professor da Universidade ou seja, tratava-se de um poder indireto sobre as
de Évora afirma que se o príncipe pagão for tirano coisas temporais, sobretudo no que se refere ao
pode ser repudiado pelo seu povo, sendo neste monopólio do comércio, que se exercia sobre os
caso legítima uma translatio imperii, e voltaremos príncipes cristãos, em virtude da obediência que
a esta questão no item 6 infra, porquanto se estes deviam à autoridade espiritual do papa; em
inscreve na tese do direito de resistência ativa terceiro lugar, portanto, a infidelidade não poderia
contra a tirania. ser título legítimo para a guerra justa, escravidão e
desrespeito pelas soberanias indígenas38.
4. O JUS PRAEDICANDI NO QUADRO DO Era neste contexto que se equacionava o
PODER INDIRETO DO PAPA direito de predicar (jus praedicandi) que, na visão
Para os escolásticos peninsulares, as relações dos escolásticos peninsulares, era o único direito
entre os poderes temporal e espiritual obrigavam à que o papa detinha sobre os povos gentios e
definição de esferas distintas de jurisdição. O poder estranhos à Cristandade.
do Sumo Pontífice era somente o espiritual sobre os Este direito-dever de pregar pacificamente
cristãos, possuindo embora poder temporal direto o Evangelho em todas as nações não assentava
sobre os Estados da Igreja. Fora desse âmbito, o diretamente no direito natural, fundado na
Papa, não tendo poder temporal, tinha poder racionalidade humana, mas emanava do preceito
indireto sobre as coisas temporais dos príncipes dado por Cristo aos Apóstolos, expresso no
cristãos, desde que considerado em ordem ao fim Evangelho de S. Mateus “Ide e pregai a todas as
espiritual, como era o caso dos meios temporais nações” (Mt 28,19) e de S. Marcos “Ide por todo
necessários à evangelização, pelos cristãos, dos o mundo, pregai o Evangelho a toda criatura” (Mc
povos do Novo Mundo. Sendo assim, o Papa não 16,15).

268
A Escola Peninsular da Paz: A Contribuição da Vertente Portuguesa em Prol da Construção de um Novo Direito das Gentes para o Século XXI

Nas disputas sobre os problemas americanos, como sendo um documento jurídico normativo
essas teses colidiam frontalmente com a doutrina geral, que fixava uma prática já utilizada desde
defendida pelos teocratas, que fundamentavam a ocupação das Ilhas Canárias e, posteriormente,
a conquista dos territórios indígenas na doação por Colombo na tomada de posse das ilhas que
pontifícia de Alexandre VI aos reis católicos para ia descobrindo em nome da rainha Isabel41. Sua
que estes procedessem a guerra justa contra os fórmula teocrática consistia, como seu próprio
infiéis que não quisessem submeter-se ao senhorio nome indica, em um requerimento formal para
universal do Papa nem prestar vassalagem aos reis que os índios se convertessem à fé católica e se
da Espanha, conforme o texto do “Requerimiento”. submetessem como vassalos dos reis de Espanha,
É necessário esclarecer, como destaca Carlos caso contrário, como castigo, seria justa a guerra
E. Castañeda, que a força desta interpretação das contra eles declarada. Nesse sentido, Isacio
bulas de Alexandre VI derivava de um conceito Fernández afirma que:
medieval, estabelecido muito tempo antes dos O “Requerimento”, portanto, não foi um
reis da Espanha requererem a confirmação ente pedido pelos dominicanos, senão pelos
de seu título de domínio sobre as Índias, já partidários de que continuassem as conquistas.
inquestionavelmente estabelecido pela preempção Foi uma solução engenhosa com a qual se tentou
da primeira descoberta. O citado autor cataloga fazer parecer honestas e legítimas as ações
muitos exemplos, desde 1016, de bulas papais que bélicas; mas de condição utópica, quer dizer,
um texto oficial apto para ser lido na mesa de
garantiram territórios aos reis da cristandade sob
estudo, mas não para ser lido nas ocasiões e
a condição de que eles instruíssem os nativos na lugares que no mesmo documento se mandam.
fé cristã e os convertessem ao cristianismo. Até De fato, na prática, desde o primeiro momento,
a chegada de Colombo na América e a edição da se transformou em uma farsa.42
Bula Inter Caetera, em 1493, nenhum protesto por
parte de outros reis cristãos tinha sido levantado Assim sendo, os teólogos e missionários
até aqueles dias contra a autoridade e o poder do cristãos estavam de acordo quanto ao direito-dever
Papa para fazer tais doações.39 de predicar, afinal, era sob este título que os reis
católicos haviam recebido as doações de Alexandre
O “Requerimiento”, por sua vez, foi
VI. Como afirma Gustavo Gutiérrez, “ao menos
influenciado pela exposição feita por Martin
formalmente, no século XVI, todos estavam
Fernández de Enciso na Junta celebrada no convento
de acordo em relação ao dever de anunciar o
dominicano de San Pablo, de Valladolid, no final
Evangelho nas Índias, convertendo seus habitantes
de Julho de 1513. Enciso era um célebre advogado
ao cristianismo”43. Todavia, as divergências
e cosmógrafo, membro da expedição de Pedrarias,
surgiam quanto a escolha de um dos três caminhos
que fora atrasada por ordem do rei Fernando II
ou métodos a seguir para o cumprimento deste
de Aragão, até que fosse encontrada uma solução
mandato de Cristo.
que legitimasse a ocupação espanhola da América.
Em seu memorial, Enciso fundamentou sua O primeiro caminho, fincado na doutrina
argumentação a favor do prosseguimento das teocrática supra referida, advogava a conquista
expedições de conquista, na bula de doação de por meio das armas como prévia condição para
Alexandre VI e no Velho Testamento. a eficácia da evangelização. O segundo defendia
a realização da ação missionária sob a proteção
Em seu memorial, Enciso sustentava que, do
militar. O terceiro, por fim, renunciava ao emprego
mesmo modo que Deus havia dado aos Judeus a
de qualquer tipo de violência ou uso da força na
Terra Prometida, atribuiu aos Espanhóis o Novo
missão evangelizadora.
Mundo, através do Papa. Por esta razão, tal como
Josué reconquistara Canaã pela força, os Espanhóis O segundo caminho era o mais aceito entre
tinham legitimidade para declarar guerra justa os autores peninsulares, espanhóis e portugueses,
contra os indígenas que não aceitassem a conversão pois, em nome do direito de predicar, a Igreja
depois de requeridos pacificamente. Como razão podia pedir o auxílio do braço armado dos reis
última invocava-se o combate à idolatria dos cristãos, caso tal direito fosse violentamente
povos indígenas americanos, considerada motivo obstruído. Em qualquer caso, este direito-dever
suficiente para mover a guerra, para apoderar-se deveria ser exercido por meios pacíficos, sendo
de seus bens e reduzi-los à servidão, tal qual fizera apenas legítimo o recurso à força quando se
Josué na Terra Prometida.40 tornasse necessário remover obstáculos violentos
ao seu livre exercício, ou seja, se os outros povos
Segundo a lição do teólogo espanhol Isacio
o impedissem pela força e pela guerra. Mesmo
Fernández, podemos definir o “Requerimiento”
assim, desde as lições de Francisco de Vitória em

269
Pedro Calafate e Sílvia Maria da Silveira Loureiro

Salamanca, alertava-se para o recurso abusivo ao de tão graves consequências. Assim, Frei Antônio
jus praedicandi nas guerras de conquista: de São Domingos afastava, nas suas lições de
Coimbra, o elemento confessional das regras
Se os Índios impedirem pela força os
que deveriam presidir à relação entre os povos e
Espanhóis de pregarem livremente o
Evangelho […] podem os cristãos declarar-
as nações, remetendo-as para a esfera estrita da
lhes guerra. […]. Mas nem tudo o que é lícito racionalidade humana, como faria mais tarde
é conveniente, pois pode ocorrer que tais Hugo Grócio. Neste sentido antecipa muito do
guerras, extermínios e saques sejam ainda que está em Grócio, ao mesmo tempo que supera
maior obstáculo à conversão dos Índios […] e Vitória, Suárez e os demais autores desta Escola.
temo que tenhamos ido além do que o direito O texto de Antônio de São Domingos inicia-
e a moral permitiam.44 se, como era característica do método escolástico,
pela referência aos posicionamentos em contrário,
Seguindo essa linha de argumentação,
nomeadamente os de Francisco de Victória,
os escritos de Pedro Simões, que permanecem
fundador da Escola:
inéditos, adicionam ainda que o jus praedicandi
não legitima a ocupação das terras indígenas e Diz-se que se os bárbaros embaraçam os
nem a destituição de suas autoridades pelo uso pregadores do Evangelho proibindo-os de
da força: pregarem entre eles, esta é uma justa causa para
fazer-se-lhes guerra, pois podemos, através da
Se os bárbaros, tanto os príncipes como a força e das armas, compeli-los a que permitam
população, impedem os Hispanos de anunciar que livremente se pregue o Evangelho. Victoria
livremente o Evangelho, os Hispanos podem e os restantes defendem esta opinião e provam
pregá-lo mesmo contra a vontade daqueles isto porque Cristo nos deu o poder de pregar
[…]. E, se for necessário, podem declarar a o Evangelho: Mt 28. 19.: “Ide e ensinai todas
guerra por esta causa […]. Idêntica resolução as gentes” etc; e Mc 16. 15.:”Ide por todo o
se aplica se os bárbaros que permitem a mundo, pregai o Evangelho a toda a criatura”
predicação impedirem a conversão, matando etc. Logo, se alguém quiser privar-nos do nosso
ou punindo de outra maneira aqueles que direito, temos motivo de justa guerra contra
se convertem à fé […]. Sobre esta questão, esses, respeitando-se aquilo que deve respeitar-
admite-se que antes de entrar em guerra se. E isto se confirma porque aqui se trata
por esta causa, deve apresentar-se a razão do proveito deles mesmos; logo, podemos ir
que permite provar aos bárbaros que nós empós disto, mesmo contra a vontade deles.
temos o direito para lhes pregar o Evangelho, E prova-se, em último lugar, porque de outro
para que não se revoltem; em seguida, deve modo eles já ficariam sem remédio.
agir-se com a máxima moderação nesta
guerra. De facto, não será permitido ocupar E a seguir, o autor expõe seu posicionamento:
imediatamente as suas terras nem destituir Todavia, e salva melhor opinião, esta causa
os seus príncipes.45 não parece suficientemente justa, e prova-se
Em que pese a prevalência do segundo porque o Senhor quer que o Evangelho seja
caminho de evangelização, uma importante voz pregado com mansidão, e não pela força das
se posicionou claramente em sentido contrário. armas, como provámos atrás. Em segundo
Trata-se de Antônio de São Domingos, professor lugar, porque eles teriam em relação a nós um
da Universidade de Coimbra entre os anos justo motivo de escândalo, porquanto não
de 1573-93, cuja obra permanece totalmente podemos provar-lhes que Cristo pôde conceder
inédita, manuscrita e em latim. A Antônio de este direito. E, em relação aos argumentos,
São Domingos se deve a oposição clara à tão nego que o Senhor tenha dado mediante
invocada legitimidade da guerra contra os povos aquelas palavras um tal poder, e unicamente
que obstruissem pela força o dever de predicar o ordenou aos apóstolos que pregassem pelo
Evangelho. mundo inteiro; que isto poderia fazer-se,
deixou à virtude divina fazê-lo e assim se fez,
O seu argumento é de peso: na verdade, não como diz S. Paulo: a vós se prega o Evangelho
era possível demonstrar, no estrito plano da razão tal como no mundo inteiro se encontra.46
natural, a legitimidade de tal direito. E se era no
plano da razão natural que se estabelecia a nossa Em síntese, era uníssono o jus praedicandi,
primeira relação com os outros povos, não era todavia, para os autores peninsulares em estudo,
aceitável que em nome de um direito estabelecido havia certas limitações ao recurso à guerra para
com base noutro plano se iniciasse uma guerra remover a resistência oposta pelos gentios.

270
A Escola Peninsular da Paz: A Contribuição da Vertente Portuguesa em Prol da Construção de um Novo Direito das Gentes para o Século XXI

Muitos defendiam o uso de armas apenas como do professor da Universidade de Évora, Pedro
meio de defesa da agressão ao direito-dever Simões, intitulado Annotationes in materiam de
de predicar. Já quanto a Frei Antônio de São bello, datado de 1575
Domingos, levou às últimas consequências a Não constitui causa justa para combater uma
Escola peninsular da Paz47. nação o facto de ser bárbara, rude e mais
apta para ser dirigida do que para se dirigir,
5. A RUDEZA DOS POVOS NÃO LHES […] porque os bárbaros não renunciam à
TOLHE NEM A LIBERDADE E NEM O liberdade nem ao domínio das suas coisas,
nem são servos por título legal ou civil, como
DOMÍNIO são os escravos. Contudo, diz-se que eles
Partindo dos princípios jusnaturalista participam da mesma natureza de um servo,
e democrático até aqui expostos, uma das isto é, são mais aptos para obedecer e servir
formas de os contornar, subvertendo a noção do que para mandar; mas mesmo assim
de igualdade e universalidade entre os homens permanece o princípio de que são verdadeiros
e entre comunidades por eles formadas, era a de senhores das suas coisas.48
evidenciar a rudeza de alguns povos, afastando-os Tenhamos presente que nesta época a
o mais possível do plano de racionalidade em que escravatura era uma realidade admitida pela
se baseava a legitimidade das soberanias, ainda que generalidade dos juristas e teólogos. Aristóteles
embrionárias. dividira-a em natural e legal. Os mestres
Nestes casos, invocavam os defensores peninsulares afastaram-se da noção de escravatura
da conquista para a (nossa) civilização, as teses natural ou, pelo menos tentaram interpretá-la em
aristotélicas sobre a escravatura natural, expressas termos que a eliminavam, mas não se afastaram
no Livro I da Política, de modo a legitimar a da noção de escravatura legal, cujos principais
escravatura a que haviam sido submetidos os títulos emergiam do direito bélico, ou da alienação
povos africanos e americanos, considerados voluntária da liberdade em caso de necessidade
amentes, isto é, desprovidos de princípios básicos extrema.
de racionalidade, impedindo-os tanto do exercício Ainda assim, acerca da alienação voluntária
individual da liberdade como do domínio de em caso de necessidade extrema, notamos
jurisdição e propiedade. que o Padre Manuel da Nóbrega em polêmica
Se a natureza e a racionalidade impunham estabelecida com o Padre Quirício Caxa, elaborou
um plano de universalidade e igualdade, tratava-se um estudo aprofundado, na segunda metade
então de lhes retirar essa mesma universalidade, do século XVI, que pode ser considerado, nas
estabelecendo distinções hierarquicas e palavras de Serafim Leite, como “o primeiro
qualitativas, de modo a fazer imperar as aspirações trabalho jurídico-moral escrito no Brasil em favor
de domínio, subvertendo a igualdade de direitos da liberdade humana em geral e dos Índios em
naturais entre os homens, ou como era expressão particular”, defendendo que na costa brasileira
de Martín de Azpilcueta aqui citada, subvertendo era muito improvável a ocorrência de situações de
as “providências naturais” pelas “leis imperiais”. necessidade extrema, como a fome e a miséria, a
É importante sublinhar que os autores da ponto de legitimarem a venda de escravos:
Escola Peninsular da Paz, sendo escolásticos de [...] que todos os que nesta Bahia e por toda
filiação tomista, eram, por definição, também a costa dizem vender os pais (se pai algum
aristotélicos, na medida em que Aristóteles fora vendeu filho verdadeiro), desde o ano de 60,
por eles eleito como mais universal e consistente em que esta desaventura mais reinou, até
em todos os domínios da filosofia. Então, este de 67, mui poucos podem ser escravos,
qualquer tentativa de distanciamento perante porque é notório a todos poucas vezes terem
os textos de Aristóteles revestia-se de extremo fomes, nem necessidade extrema, para
melindre, exigindo sempre um aturado esforço venderem seus filhos; em todo este tempo
de fundamentação, de modo a não afrontar nem me satisfaz dizer que a necessidade do
directamente o aristotelismo escolástico. resgate, com que fazem seus mantimentos,
É por isso interessante verificarmos o esforço é grande, pois esse podem eles haver sem
empreendido por estes professores e missionários venderem os filhos, como sempre houveram,
para porem em causa a tese aristotélica da com servir certo tempo, ou suas criações ou
escravatura natural. Vejamos alguns textos por de seus mantimentos, e por grande necessidade
mais significativos, começando pelo manuscrito que tenham, raramente chega em extrema,
como seria necessário para a venda valer.49

271
Pedro Calafate e Sílvia Maria da Silveira Loureiro

Outrossim, quanto ao título de escravidão de maneira alguma estamos perante causa


derivado do direito bélico, Fernão Rebelo, professor suficiente para legitimar a escravatura.”52
da Universidade de Évora, coloca-o em termos
Em última análise, todos entendiam que
claros no plano do direito das gentes, aplicável, por
seria proveitosa aos povos estranhos à cristandade
conseguinte, reciprocamente, entre todos os povos:
a adopção dos valores culturais cristãos. Mas
Os cristãos tomados pelos infiéis que fazem coisa bem diferente era a aceitação do princípio
guerra justa tornar-se-ão verdadeiros escravos da conversão forçada e involuntária. Neste caso,
destes: é que, se os infiéis fazendo guerra era invocado o príncípio ensinado por S. Paulo, o
injusta se tornam escravos dos cristãos pelo príncipe dos Apóstolos, de que não é moralmente
Direito das Gentes, que deve ser comum a aceitável que se faça o mal para obter o bem. Assim
todos, igualmente os cristãos se tornarão ensinava também o Doutor Fernão Pérez na síntese
escravos dos infiéis que fazem justa guerra. ainda manuscrita das suas lições de Évora:
Todavia, se a guerra for injusta por parte
dos que tomam os prisioneiros, a escravidão Francisco de Victoria coloca a dificuldade de
também será sempre injusta.50 saber se é lícito subjugar aqueles bárbaros
que vivem sem governantes e comunidade
Dito isto, não se negava um padrão universal política ao modo dos animais selvagens,
de cultura e civilização, identificado com os tal como em algumas partes se encontram
valores das sociedades cristãs, como era apanágio alguns africanos, indígenas do Brasil e
de clérigos católicos do século XVI. O que se outros. Mas só por esse título de que são
negava, e já não era pouco, era a tese de que as excessivamente bárbaros de forma alguma é
diferenças no grau de desenvolvimento cultural, lícito combatê-los e subjugá-los, porque, se
a existência de práticas contrárias à lei natural não cometem injustiça contra nós, não há
como o canibalismo, a poligamia ou o incesto, a motivo para termos direito para atacá-los ou,
persistência da idolatria considerada como ofensa através da força ou medo, obrigá-los a serem
ao Deus dos cristãos, bem como outras diferenças súbditos de um príncipe cristão, e embora
assinaláveis no domínio cultural pudessem ser lhes fosse proveitosa a sujeição, não cumpre
invocadas para ferir a universalidade dos direitos todavia que se “faça o mal para que venha o
naturais dos povos e dos homens, esmagando bem” (Rm 3, 8).53
as soberanias indígenas e subvertendo a ordem Vejamos agora outra vertente da mesma
internacional. questão: o esforço do professor Martinho de
Pedro Simões, no seu manuscrito latino, Ledesma, da Universidade de Coimbra, para,
é claro, a este respeito: aceita a tese da rudeza sem pôr em causa Aristóteles, interpretar a sua
dos chamados bárbaros brasileiros e entende-a tese sobre a escravatura natural em termos que a
como um fato indesmentível, mas nega que tornavam praticamente inócua:
tal rudeza lhes tolha a liberdade natural ou o
[...] isso que Aristóteles diz deve ser
direito ao domínio de jurisdição e propriedade.51
entendido somente a respeito daqueles que
O argumento da conquista para a civilização
vivem à maneira das feras, não respeitando
e da melhor conveniência em servir do que em
nenhuns pactos entre os povos. […] Esses tais
dirigir não é aceito pelos autores que estamos a
podem ser submetidos pela força e coagidos a
acompanhar, como é o caso também de Luís de
obedecer a alguma ordem, não, porém, todos
Molina, nas suas lições na Universidade de Évora: os homens que são rudes e agrestes.54
Nem sequer cumpre discutir se é justa causa de
Até porque, diziam estes autores, nas
guerra submeter uma nação por ser bárbara ou
sociedades europeias também havia homens rudes
incivilizada e mais própria para ser governada
e agrestes que, se aceitássemos a interpretação
por outros e educada nos bons costumes do
literal de Aristóteles, deveriam ser também
que para reger-se a si mesma. Mesmo quando
submetidos à escravatura, e o que não é válido nas
não faltem autores que afirmam ser esta razão
relações entre os europeus também não é válido
suficiente para submeter todos os Brasileiros
nas relações destes com outros povos e outros
e os demais habitantes do Novo Mundo,
assim como os Africanos, reduzindo-os à homens, pois estamos a falar de um verdadeiro
escravatura, sendo que, como escravos, todos direito válido para toda a humanidade.
os seus bens passariam para os seus senhores, Em suma, as diferenças culturais não
sendo privados das suas terras. Como já referi, tolhem os direitos dos homens e dos povos.
Havia, repetimos, uma opção pela verdade e uma

272
A Escola Peninsular da Paz: A Contribuição da Vertente Portuguesa em Prol da Construção de um Novo Direito das Gentes para o Século XXI

correspondente hierarquia de valores, identificada limites insuperáveis por quaisquer decisões


com o que se entendia serem os conteúdos arbitrárias dos Estados, e que esses limites eram
superiores do espírito, mas se havia povos que válidos mesmo contra a vontade das vítimas, que
estavam distantes deste padrão, não tinham os não tinham o direito de aceitarem ser submetidas
cristãos por isso o direito de os escravizar ou de os a tais práticas, por constituírem um atentado não
subjugar. A atitude correta neste domínio radicava, apenas a elas, mas a toda a Humanidade. Como
como sugeriu Francisco de Vitória, na edificação e escreveu o mestre de Salamanca e discípulo de
na educação, identificada com o jus praedicandi, Vitória, Juan de la Peña, nestes casos «o sangue
desde que exercido por meios pacíficos, como dos inocentes é o melhor grito de ajuda.»57
vimos no item 4 supra. Este era um dos argumentos frequentemente
utilizados pelos Conquistadores da América,
6. OS DIREITOS DA PESSOA HUMANA para justificarem a ocupação, mas os teóricos da
PRIMAM SOBRE O ARBÍTRIO DOS Escola Peninsular da Paz precaviam-se deixando
bem claro que tal intervenção armada tinha
ESTADOS E A “RAZÃO DA HUMANI- apenas como fim impedir e travar essas práticas
DADE” PRIMA SOBRE A RAZÃO DE e nunca a ocupação indiscriminada dos territórios
ESTADO55 NAS RELAÇÕES INTERNA- indígenas.
CIONAIS Havia, portanto, na Humanidade valores
genuínos que eram objeto de proteção internacional
Como em qualquer ordem jurídica ou e que, por isso, configuravam responsabilidade de
domínio ético, havia obviamente limitações a este todos, pelo que a pessoa humana transformava-
princípio de respeito pela diferença, uma linha se, como diz Luciano Pereña «no primeiro
vermelha definida pela cultura ético-jurídica fundamento da comunidade internacional».58
destes professores e missionários portugueses
Foi Francisco de Vitória um dos primeiros,
e espanhóis, a qual definia, segundo Francisco
senão mesmo o primeiro, a definir este princípio
de Vitória,56 o único caso de crimes contra a
de responsabilidade internacional a respeito dos
natureza em que os povos americanos poderiam
direitos humanos, mas foi seguido e secundado
ser submetidos pela força, configurando a noção
por quase todos os mestres desta escola de
de crime contra o género humano.
pensamento peninsular. Vejamos o texto exemplar
Falava Francisco de Vitória dos sacrifícios de Luís de Molina, nas lições de Évora:
humanos praticados na América por algumas
comunidades indígenas, tanto mais que eram É lícito impedir que os infiéis e quaisquer
exercidos mediante requintes de inumana outros homens cometam pecados que
crueldade, sem culpa das suas vítimas. Tratava- suponham injúria aos inocentes. E se não
quiserem abster-se destes crimes, será lícito
se, portanto, de violação insuportável dos
declarar-lhes guerra por esta causa, nos
direitos dos inocentes. No mesmo plano, os
termos do direito bélico, sem necessidade de
autores peninsulares referiam-se à morte de
autorização do papa. É o caso do sacrifício
inocentes para serem devorados nas cerimônias
de inocentes, ou o dar-lhes morte para se
de canibalismo. Esclarecemos que não se trata
alimentarem das suas carnes, ou o assassínio
nesta questão de uma contradição em relação
e opressão através de leis tirânicas.
ao repúdio do uso da força contra a comissão
de crimes contra natureza, discutida no item 5 Devemos impedi-lo de qualquer modo que
supra, mas, sim, de repelir a morte de inocentes, seja, pois qualquer homem pode, por direito
em condições consideradas crime insuportável e natural, e sobretudo os príncipes, defender os
inadmissível contra o direito à vida. inocentes da tirania e da opressão […]. E não
Ao rejeitarem estas práticas, considerando-a importa que os mesmos bárbaros súbditos
causa justa de guerra com vista ao seu desejem estes costumes e sacrifícios, não
impedimento, entendiam os mestres peninsulares querendo que os estrangeiros façam guerra
que havia limites inultrapassáveis no poder das por esta causa, pois qualquer um pode livrar
autoridades instituídas sobre os seus súbditos, outro da morte, mesmo contra a sua vontade,
que havia direitos dos indivíduos que estavam incluindo o que procura matar-se a si mesmo,
acima do arbítrio dos Estados, determinando como é notório.
a existência, para cada ser humano, de uma Observe-se, não obstante, que esta guerra não
personalidade jurídica internacional, definindo se declara para recuperar algo nosso, nem para

273
Pedro Calafate e Sílvia Maria da Silveira Loureiro

vingar injúrias próprias, mas para defender Ainda no que diz respeito a este título,
os inocentes enquanto pertencem ao género admite-se que aqueles que combatem nesta
humano, não sendo lícito a quem declara a guerra em defesa dos inocentes não podem
guerra apoderar-se dos bens do adversário.59 usurpar para si todos os bens dos bárbaros,
porque eles não lutam para recuperar as suas
A última parte do texto de Molina constitui
coisas nem para vingar a própria injúria.61
um verdadeiro entrave aos objetivos de domínio
ilegítimo com base no argumento da defesa dos Frei Antônio de São Domingos, por fim,
direitos humanos. Não menos notável é o texto enfatiza dentre os demais argumentos já deduzidos
de outro mestre da Universidade de Évora, Fernão em favor da defesa dos inocentes, a condição de
Pérez, que pelo seu significado e por permanecer próximo, isto é, de homens.
ainda inédito, aqui transcrevemos: Se os infiéis oprimem os inocentes, quer
É contra o Direito Natural matar inocentes, sacrificando-os quer matando-os, devem
quer indígenas quer estrangeiros, ou para primeiro ser admoestados a absterem-se
comê-los ou para sacrificá-los aos ídolos. Pelo de fazerem isto e, se não o quiserem fazer,
que, se se objetar que todos estes bárbaros podem ser reduzidos pelas armas só por
consentem voluntária e livremente naquele este motivo. Isto prova-se com Sir 17. 14.:
ritual, e não se pratica injustiça contra quem “Deus impôs a cada um deveres para com o
anui, responde-se […] que eles não têm por próximo”, e com Pr 24.11.: “Tira do perigo
si direito para poderem entregar-se a si ou os aqueles que são levados à morte” etc. Ora,
seus à morte. Em segundo lugar, responde- aqueles homens padecem inocentemente;
se que eles praticam uma gravíssima injúria logo, se comodamente podemos fazê-lo,
contra todo o género humano e, enquanto somos obrigados a libertá-los.62
agressores da humanidade, podem ser
Tanto em Molina como em Pérez, tanto em
castigados, mesmo pelas armas, por todos
Simões como em Antônio de São Domingos, na
nós, pois fazemos parte do género humano.60
sequência das lições de Francisco de Vitória, a
Pedro Simões, no seu manuscrito sobre agressão aos direitos naturais de um indivíduo,
a guerra, acrescenta ainda o argumento sobre mesmo praticado pelos “Estados”, constitui
a natureza tirânica da prática dos sacrifícios uma agressão intolerável a toda a Humanidade,
humanos e da morte tirânica de inocentes configurando a tirania e legitimando o direito de
defendendo que: resistência, seja dos próprios seja dos estrangeiros,
enquanto membros do género humano,
O quinto título <de guerra justa> radica
prevalecendo sempre a Razão da Humanidade,
na tirania dos senhores dos bárbaros e nas
leis tirânicas para injúria dos inocentes
mesmo contra a vontade das vítimas e dos
como o sacrifício de homens inocentes ou o injustiçados.
assassínio de homens isentos de culpa, a fim Realçamos, no entanto, que estes autores se
de se alimentarem das suas carnes. Em defesa acautelaram quanto à possibilidade de substituir
dos inocentes, os Hispanos podem proibir a tirania pela tirania. Não se tratava de combater
aos bárbaros aquele costume hediondo, o terror com o terror, mas de impedir um crime
por meio das armas e da guerra. Aliás, são nos estritos limites do direito ou da consciência
obrigados a isto, porque Deus mandou a jurídica universal, usando a força apenas quando,
cada um ajudar o seu próximo. Ora se os depois de admoestados e devidamente requeridos,
bárbaros recusassem desistir daquela injúria os autores do crime persistirem no seu acto63,
feita aos inocentes, os Hispanos poderiam agredindo a humanidade e configurando o que
demandar todos os direitos de guerra, depor hoje, com toda a propriedade, chamaríamos
os príncipes e criar outros, se assim fosse “terrorismo de Estado”.
necessário para a libertação dos inocentes. Um dos casos mais paradigmáticos a este
Mas se alguém objectar que todos os bárbaros respeito foi o do jesuíta José de Acosta, missionário
querem ter estas leis e sacrifícios, responda-se no Peru e no México, no século XVI, que conhecia
que, neste caso, não têm o direito de entregar- bem os intoleráveis abusos associados à invocação
se a si nem os seus filhos à morte injusta deste título jurídico de guerra:
[…], da mesma maneira que aquele que se Segundo penso, todos estarão de acordo que
quer degolar ou atirar-se ao mar pode sem defender um inocente, sobretudo se estiver
injúria ser impedido e atado. em questão a sua morte, (pois mesmo que ele

274
A Escola Peninsular da Paz: A Contribuição da Vertente Portuguesa em Prol da Construção de um Novo Direito das Gentes para o Século XXI

se cale [e aceite] será a própria natureza que outro lado, a prevalência da “razão da humanidade”
nos é a todos comum a gritar) é tarefa que é nas relações internacionais.
exigida a todo aquele que esteja em posição Julgamos que estas teses podem ser
capaz de prestar auxílio. Resulta pois que a consideradas como preparando, em boa medida,
defesa dos inocentes é causa de guerra justa o tema de garantia coletiva de direitos, no quadro
contra os bárbaros homicidas64 […] Mas esta de normas imperativas de direito internacional (o
tese, ainda que subtilmente discutida, se for jus cogens)67 que, na falta de instituições que as
confrontada com a realidade [da conquista do supervisionassem, não podiam deixar de remeter,
México e do Peru], revela falta de adequação.
nesta época, para a recta razão, identificada com a
Porque por um lado, deve prestar-se auxílio
razão da humanidade.
<aos inocentes> com o menor dano do
agressor e, portanto, não será lícito despojar Em última análise, estava em causa a
os bárbaros do domínio ou da vida sempre que consciência universal, bem como a própria condição
possam ser reprimidos por meio do temor ou de existência da comunidade internacional como
com alguma sujeição; por outro lado é absurdo modernamente a conhecemos, pois, como escreve
querer defender alguém, e causar-lhe uma Antônio A. Cançado Trindade, em seu estudo
mortandade ainda maior com essa defesa. E sobre a Humanização do Direito Internacional, o
consta por infinidade de testemunhos que conceito de comunidade internacional pressupõe
morreram muito mais índios nestas guerras o reconhecimento “de interesses comuns e
que lhes movemos do que com a tirania dos superiores, e de deveres emanados diretamente do
bárbaros. Que quantidade de sacrifícios e direito internacional (o direito das gentes) que a
carnificina de índios não foram cometidos todos vinculam, – os Estados, os povos e os seres
por causa dos estragos provocados pela espada humanos.”68
dos espanhóis?65
A questão do repúdio da tirania era válida,
7. O CUMPRIMENTO DE ORDENS SUPE-
como vimos em Acosta, no plano da relação RIORES NÃO ESCUSA OS SOLDADOS
de um indivíduo com os poderes nacionais DE CULPA POR CRIMES CONTRA O
instituídos, mas também podia ser invocada
na relação de cada Estado com a comunidade
GÉNERO HUMANO.
internacional, no sentido em que os interesses Outro princípio jurídico fundamental fixado
particulares de um Estado não constituíam causa pelos mestres hispânicos do renascimento foi o da
legítima de guerra se a mesma fosse prejudicial não aceitação do argumento de que ao cumprirem
à Humanidade. Apresentava-se, nestes termos, ordens superiores os soldados se isentam de culpa
uma clara subalternização da “razão de Estado” de crimes contra o género humano, pois a ninguém
sobre a “razão da humanidade”. era lícito agir contra a consciência clara da justiça.
Com efeito, ao replicar a tese vitoriana Nos termos do direito bélico, era fundamental
acerca da universalidade e autoridade de todo o que o combatente, mesmo o de mais baixo posto,
orbe, o Doutor Martinho de Ledesma, professor examinasse, em caso de dúvida, as causas da
em Coimbra, assegurava, em 1560, que: guerra, e caso concluísse que a mesma era injusta,
Sendo uma república parte de todo o orbe estava proibido de combater, tanto no foro externo
e, maximamente, sendo uma província dos como no foro interno da consciência.
cristãos parte de toda a república cristã, se a É o que ensina o Doutor Fernão Pérez na
guerra for útil a uma república ou reino em Universidade de Évora, no seu manuscrito sobre a
detrimento e com prejuízo de todo o orbe ou guerra de 1588:
da Cristandade, eu considero que por isso Podem ser tão claros os indícios da injustiça
mesmo ela é injusta.66 de uma guerra que, de acordo com a usança
Em suma, a autoridade universal do orbe humana, se segue que deve presumir-se a
impunha limitações não só a atuação arbitrária certeza da injustiça da guerra, e que no foro
dos tiranos, em defesa do direito dos inocentes, exterior os soldados, mesmo os de mais baixa
mas também proibia que o interesse particular graduação, não devem ser escusados, como
de um Estado se sobrepusesse, injustamente, ao tão-pouco no foro íntimo ou sacramental, se
interesse de todo o orbe, evidenciando-se assim, a ignorância da injustiça, depois de conhecida
por um lado a proeminência da dignidade das toda a situação, tiver sido totalmente
vítimas de violações de direitos humanos e, por grosseira,69

275
Pedro Calafate e Sílvia Maria da Silveira Loureiro

E mais adiante, remata: Logo, no caso do soldado o centro da decisão


não radica pura e simplesmente no príncipe ou no
Todos, quer súbditos quer não súbditos, por
soberano, transformando-se a sua consciência em
maior diligência que primeiro se faça e boa-fé
com que começarem a combater, são obrigados
parte ativa, tendo em vista o direito natural e as
a desistir da guerra logo que tiverem a certeza normas objetivas e universais da justiça, firmada
de que a guerra é injusta.70 na recta razão.
Consoante afirma Cançado Trindade,
Acrescenta Antônio de São Domingos o
argumento sobre a dúvida da justiça ou injustiça Em nossos dias, ninguém ousaria negar a
da guerra em que se combate, assim solucionando ilegalidade objetiva de práticas sistemáticas de
esta questão: torturas, de execuções sumárias e extra-legais
e de desaparecimento forçado de pessoas, -
Embora não seja de plena certeza que a guerra práticas estas que representam crimes de lesa-
é injusta, mas mesmo assim existam muitos humanidade, - condenadas pela consciência
indícios assaz notórios acerca disto, nem jurídica universal, a par da aplicação de tratados.
neste caso podem os soldados seguir o seu rei. Ninguém ousaria tampouco negar que os atos
Prova-se porque também então agem contra de genocídio, o trabalho escravo, as práticas
a consciência, porque, durante o tempo de tortura e dos desaparecimentos forçados de
em que esses indícios se manifestam, não pessoas, as execuções sumárias e extra-legais, e
podem conceber que o rei tem guerra justa. a denegação persistente das mais elementares
Em segundo lugar, argui-se que a ignorância garantias do devido processo legal, afrontam a
crassa a ninguém desobriga de pecado; ora, consciência jurídica universal, e efetivamente
aqueles soldados lavram nesta ignorância; colidem com as normas peremptórias do jus
logo, não estão desculpados. Prova-se a menor cogens. Toda esta evolução doutrinária aponta
porque, durante o tempo em que duram esses na direção da consagração de obrigações erga
indícios, eles estão obrigados a informarem- omnes de proteção do ser humano em todas e
se sobre a justiça da guerra.71 quaisquer circunstâncias.73
O essencial a ter presente é a idéia de que a Diante dessas precisas constatações,
condição de um soldado não é idêntica à de um sobretudo após a II Guerra Mundial74, retornam
carrasco que executa a sentença de um verdadeiro aos nossos dias as lições dos autores peninsulares,
juíz sobre um verdadeiro réu, pois ainda na esteira na medida em que o Tratado de Roma constitutivo
da lição de Fernão Pérez: do Tribunal Penal Internacional veda a invocação,
Objeta-se em sentido contrário, porque o nas alegações de defesa, do cumprimento de ordens
soldado súbdito não é menos agente da superiores para a impunidade em caso de crimes
justiça do que o carrasco, e o rei que declara de genocídio e de crimes contra a humanidade,
guerra não é menos juiz do que o pretor que praticados contra seres humanos inocentes75.
pronuncia a sentença de matar […]. Parece-
me que esta argumentação causa embaraços 8. O JUS COMMUNICATIONIS E O JUS
aos varões sábios por não prestarem atenção AMICITIAE: O DIREITO AO COMÉR-
desde os fundamentos ao motivo da diferença.
É que, de facto, o carrasco é obrigado a CIO LIVRE E À LIVRE CIRCULAÇÃO
executar a sentença pronunciada de acordo DAS PESSOAS
com alegações e provas, porque, quer a
sentença seja justa por parte do réu, quer não, Num primeiro momento, antes das
é proferida de acordo com alegações e provas polémicas seiscentistas sobre o mare liberum
por um verdadeiro juiz contra um verdadeiro e o mare clausum, entre os títulos legítimos de
súbdito, visto que nem o réu é vassalo do juiz guerra estava a obstrução ao direito de viajar e
nem quem pronuncia a sentença é juiz como de estabelecer relações comerciais, bem como
consequência da justiça da própria causa, mas a obstrução violenta ao direito da Igreja enviar
a função vem-lhe de outra pessoa, ou seja, da embaixadores que pregassem pacificamente
nomeação do rei, que pôde também existir o Evangelho. Deste último já tratamos no
antes daquela causa. Ora, na verdade, nem item 4, razão pela qual nos ocuparemos do jus
o príncipe que declara a guerra contra um communicationis, do jus commercii e do jus
príncipe adversário é juiz dele, nem o príncipe amicitiae nesta seção.
adversário se torna seu súbdito.72 O jus communicationis fora firmemente
estabelecido por Francisco de Vitória na sua Relectio

276
A Escola Peninsular da Paz: A Contribuição da Vertente Portuguesa em Prol da Construção de um Novo Direito das Gentes para o Século XXI

de Indis, considerando que era de direito natural honesto sustento, incorporando naturalmente
a possibilidade de qualquer homem se estabelecer custos e riscos de transporte, armazenamento,
ou viajar por qualquer lugar da terra, desde que perdas anteriores, transformação introduzida nos
não prejudicasse os seus naturais. Não se tratava produtos, estabelecimentos etc., razão por que se
portanto de um direito de passagem destruidor, nem entendia a atividade comercial, nas palavras do
de um direito ao comércio predador, explorando os filósofo português do renascimento João Sobrinho,
legítimos recursos dos povos. como: “um certo hábito na vontade, regulado pela
Nesse sentido, considerava Francisco de inteligência, mediante a qual alguém troca uma
Vitória que assim como era legítimo aos Espanhóis coisa por outra sem fraude usurária, guardando
estabelecerem-se ou residirem em França se tal não sempre a condição de se observar a igualdade de
prejudicasse os Franceses, também era legítimo valor nas coisas trocadas, conforme a recta razão.”77
aos Espanhóis estabelecerem-se e residirem na No fundo, o direito de peregrinar, o direito
América, na condição de daí não advir nenhum de residir em qualquer lugar da terra e o direito de
prejuízo aos Índios, ou seja, na condição de tais estabelecer relações de comércio justo com todos os
práticas serem conduzidas no quadro do jus povos, radicava no mais basilar preceito da moral
amicitiae. cristã, o princípio mais universal da lei natural, que
Para bem se entender este preceito, teremos o próprio Vitória cita no seu texto: “Não faças aos
de nos distanciar de interpretações anacrónicas outros o que não gostarias que te fizessem a ti”.78
do conceito de comércio que, longe de ser o É na lição de Antônio de São Domingos
atual, ancorava-se em sólidos princípios éticos, que vemos estes preceitos vitorianos novamente
no quadro mais vasto da justiça comutativa, expostos e claramente posicionados no quadro do
no mesmo sentido em que o conceito cristão direito natural e das gentes:
e católico de propriedade acentuava a ideia de
Segue-se que, sempre que os infiéis nos
responsabilidade social, não podendo exceder-se
impedem ou negam algo que consta do Direito
em detrimento do bem comum. das Gentes, podemos justamente declarar-
Francisco de Vitória entendia o direito de lhes guerra. Por exemplo, faz parte do Direito
viajar e a liberdade de comércio não no quadro das Gentes poder qualquer pessoa viajar
da assimetria entre os lobos e as ovelhas, mas no por terra alheia e negociar entre quaisquer
contexto da sua afirmação basilar: “Não é lobo o povos, e também se quer ser cidadão em
homem para o homem, senão homem!”.76 Trata-se alguma cidade, contanto isto se faça sem
portanto de uma comunicação e de um comércio qualquer dano ou simulação, e desde que os
no quadro de um conceito de natureza humana mesmos não sejam inimigos, porque faz parte
distinto daquele desenvolvido pelos filósofos do Direito Natural evitarmos os inimigos.
ingleses, que como Thomas Hobbes proclamaram Finalmente, que a nós se conceda o que se
exactamente o contrário, reabilitando a frase de concede a outros estrangeiros. Logo, se os
Plauto, segundo a qual o homem é lobo do homem. infiéis nos negam isto, estão de facto a inferir-
Deve ter-se presente que na cultura cristã, nos [vº] uma injustiça e, por consequência,
de que estes mestres peninsulares eram herdeiros, podemos reduzi-los pelas armas, desde que,
sempre existiu uma forte desconfiança perante a depois de expostos os motivos, eles não
atividade comercial, marcada pelo episódio bíblico queiram concordar. E prova-se de acordo com
em que Cristo expulsou os mercadores do templo. o princípio: “é licito repelir a violência com
Não se partia daí para a sua condenação absoluta, a violência.” Ora, eles cometem violência
contra nós, negando o que nos é concedido por
mas para a necessidade de uma regulamentação
Direito Natural e das Gentes. Logo, podemos
ética que impedisse a cobiça e a acumulação do lucro,
repelir essa violência com a violência.79
baseada na fraude e no engano. O ius commercii
de que falavam Vitória e os mestres peninsulares Pedro Simões segue a mesma linha
desta Escola, não admitia a usura, o encarecimento argumentativa, acrescentando:
injustificado dos produtos, ou a exploração
Os Hispanos que são proibidos pelos bárbaros
impiedosa do próximo, pois quem seguisse apenas a
<de se dedicarem ao comércio legítimo>
sede do lucro e da riqueza, estimulada pela avareza,
não podem mover imediatamente uma
não encontraria nunca satisfação plena. Não era guerra ofensiva, porque os bárbaros, ao
esse o modelo de homem seguido por esta Escola. verem homens estrangeiros armados e mais
O acréscimo do preço relativamente ao valor que poderosos, com razão podem ter medo, e em
o comerciante pagou, deveria ter em vista o seu consequência no princípio poderiam sem

277
Pedro Calafate e Sílvia Maria da Silveira Loureiro

culpa proibir os Hispanos de tal comércio. migratórios e do desenvolvimento do direito dos


Portanto, os Hispanos deverão agir de acordo refugiados e deslocados internos.82
com esta norma: em primeiro lugar impeçam Por essa razão, ainda de acordo com a
a revolta mediante argumentos, mostrem que fundamentação do voto referido, o juiz Cançado
não vieram com ânimo de prejudicar os Índios Trindade sublinhava que, para enfrentar os
e mostrem ainda que os bens supraditos são de problemas que afetam nos dias atuais os imigrantes
todos, conforme o Direito das Gentes. Contra indocumentados, deve-se ter presente o valoroso
si próprios cometeriam injúria os bárbaros, legado dos fundadores do direito internacional,
negando-se a pactuar e tomando as armas
os quais, como expusemos ao longo deste artigo,
contra os Hispanos. Poderiam então estes
concebiam a aplicação universal do direito das
defender-se e fazer tudo aquilo que julgarem
gentes para a todos os seres humanos. A societas
necessário para a sua defesa. Mas depois de
gentium era a expressão da unidade fundamental
alcançada a vitória não os poderão matar ou
do gênero humano, formando uma verdadeira
apoderar-se dos seus bens, porque tal guerra é
societas ac communicatio, porquanto nenhum
apenas defensiva, e os bárbaros são indefensos
Estado era autosuficiente. Em suma, o direito das
e têm medo com razão.80
gentes era pensado como um direito acima dos
Assim, mais uma vez sublinhamos que Estados, para atender as necessidades humanas,83
devemos entender esta atividade comercial no e não como um mero direito interestados.
contexto de um conceito de homem e de felicidade Neste contexto dificilmente se resiste a recuar
que não se esgotam na acumulação da riqueza. A ao saber dos clássicos que souberam enunciar os
riqueza é entendida como uma condição prática anseios perenes dos seres humanos, lembrando a
de valor inestimável, mas não é o fim da vida chegada de Eneias à Itália e a súplica ao rei do
humana. Por isso, o que triunfa sobre estes dois Lácio para que lhe concedesse, aos deuses e aos
direitos de comunicação e comércio é a regra do seus, uma morada e abrigo:
amor que as criaturas naturalmente se devem,
razão por que diz Francisco de Vitória que “os Uma pequena e simples morada
príncipes [dos Índios] por direito natural, estão Para os pátrios deuses vos rogamos;
obrigados a amar os Espanhóis. Não lhes será, O mar e o ar patentes para todos;
pois, lícito impedir que os Espanhóis procurem E para nós, praia inócua onde vivamos.84
o seu bem-estar, desde que isso lhes não cause
dano”,81 sendo-lhes lícito, à luz do direito natural REFLEXÕES FINAIS
e das gentes, residir e comerciar com os Índios, na
Ao fim do presente trabalho, após a exposição
condição expressa de isso não causarem prejuízo
feita ao longo das seções anteriores sobre o
ou dano aos naturais dessas terras.
pensamento dos mestres da Escola Peninsular
Recentemente, em seu Voto Concurrente da Paz, compartilhamos da opinião de Giuseppe
na emblemática Opinião Consultiva emitida Tosi, segundo a qual:
pela Corte Interamericana de Direitos Humanos
acerca da Condição Jurídica e Direitos dos Os estudos que se dedicam à reconstrução da
Migrantes Indocumentados, Cançado Trindade evolução histórica das doutrinas dos direitos
faz um alerta no sentido de que não deve passar do homem evidenciam uma genealogia quase
desapercebido o fato histórico segundo o qual o ‘canônica’, que se inicia com a Magna Charta
jus communicationis e a liberdade de movimento, Libertatum, passa pelo Bill of Rights da
Revolução Gloriosa, para chegar à Declaração
propugnados desde os séculos XVI e XVII como
do Estado da Revolução Francesa. No
verdadeiros pilares da comunidade internacional,
entanto tais reconstruções passam ao largo
perduraram por muito tempo. Somente em
de um momento decisivo deste percurso que
época histórica bem mais recente, passaram a
mereceria uma maior atenção, devido à sua
manifestar-se restrições a esses direitos por meio
importância histórica.85
do controle fronteiriço estatal quanto ao ingresso
de estrangeiros. Com efeito, prossegue o ilustre De fato, se alguns trabalhos acadêmicos são
magistrado afirmando em seu voto que somente devotados ao estudo do pensamento hispânico
na segunda metade do século XIX, quando a seiscentista cristão, na verdade, dedicam-se a
imigração penetrou em definitivo na esfera do um ou alguns de seus autores, com destaque para
direito interno, a liberdade de movimentação Francisco de Vitória, Bartolomé de Las Casas e
transfronteiriça passou a sofrer restrições Francisco Suárez, dentre outros representantes
sucessivas e sistemáticas a par dos grandes fluxos da segunda escolástica hispânica. Mas a escolha

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A Escola Peninsular da Paz: A Contribuição da Vertente Portuguesa em Prol da Construção de um Novo Direito das Gentes para o Século XXI

que celebrizou tão justamente esses mestres competência reservada dos Estados, incorporados
pode e deve ser alargada e complementada, em em textos constitucionais positivados, o Direito
vários planos. Internacional, que vinha sendo gestado como
Primeiramente, aqueles estudos autorais um sistema jurídico universal, foi reduzido
tendem por vezes a isolar o pensamento do mestre à regulamentação das relações entre Estados
escolhido relativamente ao conjunto de escritores concebidos como entes abstratos e dotados de
que na mesma época e lugar debatiam os mesmos vontade. Como resultado, o Direito Internacional
temas, com fundamento em um acervo de fontes (antigo direito das gentes) foi desumanizado, pois,
comuns de conhecimento. Em segundo lugar, por como afirma Cançado Trindade:
consequência, não é dado o mesmo valor a muitos Três séculos de um ordenamento internacional
pensadores de idêntica importância acadêmica, cristalizado, a partir dos tratados de paz de
como Domingo de Soto, Melchor Cano, Diego Westphália (1648), com base na coordenação
de Covarrubias, Martin de Azpilcueta e Luís de de Estados-nações independentes, na
Molina, apenas para citar alguns exemplos, Em justaposição de soberanias absolutas, levaram à
terceiro lugar, enfim, outro grupo de autores é exclusão daquele ordenamento dos indivíduos
completamente esquecido, relegado para o fundo como sujeitos de direitos. Três séculos de um
dos arquivos das bibliotecas como é o caso de ordenamento internacional marcado pelo
Pedro Simões, Fernão Rebelo, Fernão Pérez e predomínio de soberanias estatais e exclusão
Antônio de São Domingos, soterrados por três dos indivíduos foram incapazes de evitar as
séculos de iluminismo, liberalismo e positivismo violações maciças dos direitos humanos,
jurídico, permanecendo os seus textos na versão perpetradas em todas as regiões do mundo,
original manuscrita e latina. e as sucessivas atrocidades de nosso século,
Com o intuito de contribuir para um mais inclusive as contemporâneas.86
alargado conhecimento desta tradição filosófico- Somente no final da Segunda Guerra Mundial,
jurídica, o presente artigo demonstrou, na sua no marco da Declaração Universal dos Direitos
seção preliminar, a existência de uma corrente Humanos de 1948, a sociedade internacional,
doutrinária de origem peninsular, espanhola e impactada pela experiência da aniquilação do
portuguesa, durante os séculos XVI e XVII, que
ser humano sob o primado da lei, retomou o
desenvolveu suas bases teóricas através de fontes
processo de universalização e humanização do
comuns.
Direito Internacional, razão pela qual a redenção
Pela coesão de temáticas debatidas e fontes dos textos justeológicos peninsulares significa,
de reflexão, Pedro Calafate, co-autor deste artigo, em análise última, o substrato para pensarmos
mobilizou na Universidade de Lisboa uma um novo direito das gentes, no qual prevaleça a
vasta equipe de investigadores luso-brasileiros, ética sobre a política, a justiça sobre a força e o ser
composta por juristas, filósofos, teólogos, humano sobre o Estado.
paleógrafos e latinistas, que tem permitido alargar
Terminamos, pois, com as palavras de um
o âmbito do que designou como Escola Peninsular
dos mestres brasileiros que mais tem chamado a
da Paz, promovendo, desse modo, o resgate
atenção para a importância da tradição filosófica
dos textos da vertente portuguesa há muito
e jurídica aqui estudada: “Parece-me de todo
esquecidos. Retoma-se, através desse trabalho
apropriado resgatar os ensinamentos de um
ainda em curso, no qual participa também a
direito impessoal que é o mesmo para todos –
co-autora deste artigo conjunto, uma sublime
não obstante as disparidades de poder – e que
tradição humanista interrompida por um longo
situa a solidariedade acima da soberania, e que
ciclo, marcado pela separação entre as questões
submete os diferendos ao juízo da recta ractio. O
morais e o Direito, nos mesmos termos em que
renascimento – que sustento firmemente – em
se dinamiza a cooperação entre a Universidade do
nossos tempos, desses ensinamentos clássicos,
Estado do Amazonas e a Universidade de Lisboa.
que ademais propugnam uma ampla concepção da
Como é sabido, neste longo trajeto histórico, personalidade jurídica internacional (incluindo os
entre o Medievo e a segunda metade do século seres humanos e a humanidade como um todo),
XX, essa tradição humanista, que teve seu ápice pode certamente ajudar-nos a enfrentar mais
durante o renascimento cristão nos séculos adequadamente os problemas com que se defronta
XVI e XVII, esfacelou-se, pouco a pouco, dando o Direito Internacional contemporâneo, movendo
origem a ramificações do Direito, distintas e rumo a um novo jus gentium do século XXI, o
incomunicáveis. Enquanto os direitos naturais Direito Internacional para a humanidade.”87
subjetivos do Homem passaram a ser matéria de

279
Pedro Calafate e Sílvia Maria da Silveira Loureiro

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280
A Escola Peninsular da Paz: A Contribuição da Vertente Portuguesa em Prol da Construção de um Novo Direito das Gentes para o Século XXI

NOTAS

1. Este artigo foi elaborado no âmbito do projeto 11. O termo “domínio” tinha uma dupla acepção
Corpus Lusitanorum de Pace: A Contribuição de jurisdição e propriedade.
das Universidades Portuguesas para a Escola 12. Para Antônio Augusto Cançado Trindade, o
Peninsular da Paz (séculos XVI e XVII) - FCT: Direito Internacional dos Direitos Humanos
PTDC/FIL – ETI/119182/2010CFUL/Centro pode ser compreendido “como um ramo
de Filosofia da Universidade de Lisboa (CFUL)/ autônomo da ciência jurídica contemporânea,
Investigador Responsável (IR): Pedro Calafate. dotado de especificidade própria. Trata-se
2. Observamos que nos séculos XV e XVI os essencialmente de um direito de proteção,
habitantes da Península Ibérica costumavam marcado por uma lógica-própria, e voltado à
se autodenominar como hispânicos. Cfr.: salvaguarda dos direitos dos seres humanos
WEFFORT, F. C. Espada, Cobiça e Fé. 2012. e não dos Estados. Neste propósito se mostra
Os. 19-20. constituído por um corpus juris dotado de uma
3. SOTO, Domingo de, Relectio an liceat multiplicidade de instrumentos internacionais
ciuitates infidelium seu gentilium expugnare de proteção, de natureza e efeitos jurídicos
ob idololatriam, Salmanticae, 1555, f. 420r, variáveis (tratados e resoluções), operando
excerto traduzido por Pedro Calafate. nos âmbitos tanto global (Nações Unidas)
como regional. Tal corpus juris abriga, no
4. À luz dessa tradição, escreve São Tomás de plano substantivo, um conjunto de normas
Aquino, no Artigo 1 da Questão 40, na Segunda que requerem uma interpretação, de modo a
Seção da Segunda Parte da Suma Teológica: lograr a realização do objeto e propósito dos
“para uma guerra ser justa, são necessárias três instrumentos de proteção que as consagram,
condições, a saber: a autoridade do príncipe, e, no plano operacional, uma série de
sob cuja ordem deve se fazer a guerra; uma mecanismos (essencialmente, de petições
causa justa e uma reta intenção naqueles que ou denúncias, relatórios e investigações) de
fazem a guerra.” supervisão ou controle que lhe são próprios.
5. VITÓRIA, Francisco de, Relectio de Indis, A conformação deste novo e vasto corpus juris
Salamanca, 1539, I, 2, 9, excerto traduzido por vem atender uma das grandes preocupações
Miguel Sena Monteiro. de nossos tempos: assegurar a proteção do ser
humano, nos planos nacional e internacional,
6. SOTO, Domingo de, Relectio de dominio,
em toda e qualquer circunstância”.
Salmanticae, 1535, tradução Pedro Calafate,
(CANÇADO TRINDADE, A. A.Tratado de
p. 34.
Direito Internacional dos Direitos Humanos.
7. TIERNEY, Brian. The Idea of Natural Rights: Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 1997. V.
studies on natural rights, natural law and 1, pp. 20-21. Ver também v. 3. pp. 406-407.)
Church law 1150-1625. Atlanta: Emory
13. Esta é a idéia de um novo direito das gentes
University Press, 1997, p. 316.
defendida por Antônio Augusto Cançado
8. DIAS, José Sebastião da Silva. Os Trindade em suas inúmeras intervenções
Descobrimentos e a Problemática Cultural do como jurista e magistrado, ao invocar
Século XVI, Presença, Lisboa, 1982, p. 172. as bases teóricas dos pais fundadores do
9. Segundo a tradição tomista, seguida pelos direito internacional para fundamentar a
pensadores da Escola Peninsular da Paz, a universalidade e racionalidade do Direito
lei natural é a “participação da lei eterna na Internacional dos Direitos Humanos, que vem
criatura racional”, ou seja, a impressão da luz sendo construído como ramo autônomo desde
de Deus no coração dos homens, que permite a segunda metade do século XX, impulsionado
a distinção entre o bem e o mal. Nesse sentido pela consciência jurídica universal perante as
confira a Questão 91, Artigo 2 e a Questão 94, atrocidades cometidas na II Guerra Mundial.
Artigo 5 da Primeira Seção da Segunda Parte da 14. Para uma análise detalhada deste debate
Suma Teológica. consulte-se as obras de Lewis Hanke: All
10. VITÓRIA, Francisco de, Relectio de potestate Mankind is One: a study of the disputation
civili, Salmanticae, 1528, p. 21, tradução nossa. between Bartolomé de las Casas and Juan
Ginés de Sepúlveda in 1550 on the intelllectual

281
Pedro Calafate e Sílvia Maria da Silveira Loureiro

and religious capacity of the American Indians más, advertiremos cómo el enfoque teológico
(1974) e Aristotle and the American Indians: a se traduce, en concreto, en un necesario
study in race prejudice (1970). planteamiento o dimensión ética de la política,
15. VITÓRIA, Francisco de. Sobre El Poder Civil. en el sentido de que ésta es cuestionada por la
Estudo preliminar, tradução e notas de Jesús ética.” (VITÓRIA, Francisco de. ob. cit. p. 31).
Cordero Pando. Salamanca. Editorial San 21. PEREÑA, L. ‘La Escuela de Salamanca’, in:
Esteban, 2009, pp. 21-22 (tradução nossa) PEREÑA, L. ed. La Etica em la Conquista de
16. VITÓRIA, Francisco de. Sobre El Poder Civil, América: Francisco de Vitória y la Escuela de
ob. cit., pp. 22-23. (tradução nossa). Salamanca. Madrid: CSIC, 1984, p. 307.

17. VITÓRIA, Francisco de. Sobre El Poder Civil, 22. PEREÑA, L. ‘La Escuela de Salamanca’, in: ob.
ob. cit. p. 23. (tradução nossa). cit., p. 308.

18. Na lição sobre o poder civil, disse Vitória: “El 23. PEREÑA, L. ‘La Escuela de Salamanca’, in: ob.
oficio y cometido del teólogo abarca tanto que cit., pp. 312-313.
ningún argumento, ninguna controversia, 24. Esse termo foi cunhado pelo Professor Dr.
ningún asunto parecen quedar fuera de la Pedro José Calafate Villa Simões no âmbito
profesión y objeto de atención del teólogo. do projeto de pesquisa Corpus Lusitanorum
Ésta tal vez sea la causa, como del orador decía de Pace: A Contribuição das Universidades
Cicerón, de que sea tan grande -por no decir Portuguesas para a Escola Peninsular da
mayor– la escasez de buenos y sólidos teólogos, Paz (séculos XVI e XVII) - FCT: PTDC/FIL –
dado que hay tan pocos varones preclaros y ETI/119182/2010CFUL/Centro de Filosofia da
excelentes en todo género de disciplinas y en Universidade de Lisboa (CFUL), atualmente
todas las artes. Pues, ciertamente, la teología em curso, sob sua coordenação científica, com
es la primera de todas las disciplinas y estudios o financiamento da Fundação para a Ciência
del mundo, aquélla a la que los griegos e Tecnologia do Ministério da Educação e
llamaban Tratado de Dios. Por lo cual no debe Ciência de Portugal, no qual participa como
parecer nada extraño que no haya muchos investigadora a co-autora deste artigo.
del todo competentes en materia tan difícil.” 25. Os manuscritos aqui citados foram transcritos
(VITÓRIA, Francisco de. ob. cit., p. 55). e traduzidos do latim para o português no
19. Na lição sobre os Índios, ao introduzir o âmbito do projeto Corpus Lusitanorum de
problema, Vitória afirma: “E n s e g u n d o Pace: A Contribuição das Universidades
l u g a r , he de observar que esta discusión Portuguesas para a Escola Peninsular da
no pertenece a los juristas, al menos Paz (séculos XVI e XVII) - FCT: PTDC/FIL –
exclusivamente. Porque aquellos bárbaros ETI/119182/2010CFUL/Centro de Filosofia da
no están sometidos, como diré enseguida, al Universidade de Lisboa (CFUL)/ Investigador
derecho positivo, y por tanto sus cosas no deben Responsável (IR): Pedro Calafate.
ser examinadas por las leyes humanas, sino 26. VIEIRA, Antônio, Voto sobre as Dúvidas dos
por las divinas, en las cuales los juristas no son Moradores de S. Paulo acerca da Administração
bastante competentes para poder definir por sí dos Índios (1694). in: Antônio Sergio e Hernâni
mismos semejantes cuestiones.” ((VITÓRIA, Cidade (org.). Obras Escolhidas do Pe. Antônio
Francisco de. Relectio de Indis: o libertad de los Vieira. Lisboa: v. III, pp. 341-342.
indios. Coleção Corpus Hispanorum de Pace.
Madrid: Consejo Superior de Investigaciones 27. MOLINA, Luís de. De Justitia et Jure, livro I,
Cientificas, 1967, pp. XIII-XIV. v. V., p. 13.). tradução de Manuel Fraga Iribarne, Madrid,
1946, p. 408.
20. Em termos atuais, Jesús Cordero Pando
afirma: “No hay una filosofía política sin que 28. SUÁREZ, Francisco, De Legibus, Liv. III, v, 1.,
detrás, por presencia o por ausencia, se halle XII, 9.
una Teología Política. Tal vez sea significativo 29. AZPILCUETA, Martín de, Relectio C. Nouit
remitirse hoy a los variados fundamentalismos de iudiciis, Coinimbricae, 1548, p. 74, excerto
o incluso a la “Teología de la liberación” de traduzido por Antônio Guimarães Pinto.
los pueblos. Tal vez pudiera “forzarse” en este
30. SUÁREZ, Francisco, De Legibus, Liv. III, v, 1,
sentido la resistencia de Vitoria a aceptar, sin
excerto traduzido por Pedro Calafate.
más, la dicotomía entre “cosas teologales”
y “asuntos de gobernación”, que le exigía el 31. SUÁREZ, Francisco. Defensio Fidei III:
Emperador. Si queremos avanzar un poco Principatus Politicus o La soberania popular,
V, II, Coleção Corpus Hispanorum de Pace.

282
A Escola Peninsular da Paz: A Contribuição da Vertente Portuguesa em Prol da Construção de um Novo Direito das Gentes para o Século XXI

Madrid: Consejo Superior de Investigación vos receber, nem escutar as vossas palavras,
Científica, 1965. p. 25. saindo daquela casa ou cidade, sacudi o pó dos
32. Cfr. CALAFATE, Pedro. Da Origem Popular do vossos pés” (Mt 10:14) e “Eis que vos envio
Poder ao Direito de Resistência, Lisboa, Esfera como ovelhas ao meio de lobos; portanto, sede
do Caos, 2012. prudentes como as serpentes e inofensivos
como as pombas” (Mt 10:16). Lê-se o mesmo
33. AZPILCUETA, Martín de. Relectio C. Nouit de em Lc 10; 3 e 11.
iudiciis, Coinimbricae, 1548, excerto traduzido
por Antônio Guimarães Pinto, p. 98. 48. SIMÕES, Pedro, Annotationes in materiam de
bello, ob. cit. quaestio i, f. 306v, transcrição
34 SUÁREZ, Francisco de. Defensio fidei, ob. cit. paleográfica deste excerto de Joana Serafim
VI, 10-11, excerto traduzido por Pedro Calafate. e tradução de Marina Costa Castanho e Ana
35 PÉREZ, Fernão, De bello, ms. 3299 da Biblioteca Maria Tarrío (no prelo).
Nacional de Portugal (BNP), Conimbricae, 49. Polémica de Manuel da Nóbrega com Quirício
1588, transcrição paleográfica de Filipa Roldão, Caxa sobre a escravidão dos indígenas da
tradução de Antônio Guimarães Pinto f. 231v costa brasileira in: Serafim Leite. História da
(edição no prelo) Companhia de Jesus no Brasil. T. II. Século
36. VITORIA, Francisco de. Relectio de Indis, ob. XVI: A Obra. Lisboa/Rio de Janeiro: Editora
cit. pp. 43-54. Portugalia/Civilização Brasileira, 1938. p.
202-203.
37. MOLINA, Luís de. De Iustitia et Iure. Libro
Primero de la Justitia. Madrid: 1946, p. 435 50. REBELO, Fernando, Opus de obligationibus
justitiae, religionis et caritatis, Lugudni, 1608,
38. CALAFATE, Pedro. Ob. cit., p. 193.
quaestio IX, p. 67, excerto traduzido por
39. CASTAÑEDA. C. E. “Spanish Medieval Antônio Guimarães Pinto.
Institutions in Overseas Administration:
51. SIMÕES, Pedro. Anotationes in materiam de
the prevalence of medieval concepts. In: The
bello, ob. cit. quaestio I, f. 306v (no prelo).
American. Ano 1954. v. 11. n. 02, p. 117.
52. MOLINA, Luís de. De Justitia et Jure, ob. cit.
40. HANKE, Lewis. The Spanish Struggle
tomoI, livro III, disp. CV, excerto traduzido por
for Justice in the Conquest of America,
Pedro Calafate.
Philadelphia University of Pensilvania Press:
1959, pp. 30-32. 53. PÉREZ, Fernão. De Bello, ob. cit., f. 230,
excerto transcrito por Filipa Roldão e traduzido
41. FERNÁNDEZ, Isacio Pérez. El Derecho
por Antônio Guimarães Pinto (no prelo).
Hispano-Indiano: dinâmica social de su proceso
histórico constituyente. Salamanca: Editorial 54. LEDESMA, Martinho de. Secvnda Qvartae,
San Esteban, 2001, p. 130. Conimbricae, 1560, excerto traduzido por
Leonel Ribeiro dos Santos, f. 225v.
42. FERNÁNDEZ, Isacio Pérez. Ob. Cit. p. 131.
(tradução nossa). 55. A expressão “razão de Humanidade” em
contraponto à «razão de Estado», no contexto
43. GUTIÉRRES, Gustavo. Em Busca dos Pobres
da proteção internacional dos direitos
de Jesus Cristo: o pensamento de Bartolomeu
humanos, deve-se ao Prof. Antônio Augusto
de Las Casas. S. Paulo: Paulus, 1995. p. 126.
Cançado Trindade, nomeadamente em sua
44. VITÓRIA, Francisco de. De Indis ob. cit., I, 3, obra A Humanização do Direito Internacional,
11-12, excerto traduzido por Pedro Calafate. Belo Horizonte, 2006, p. 127.
45. SIMÕES, Pedro, Annotationes in materiam 56. “É este o único caso em que os Índios podem
de bello, 1575, ms. Da Biblioteca Nacional de ser castigados por crimes contra a natureza”,
Portugal (BNP) 3858 transcrição do manuscrito diz Francisco de Vitória, in: Relectio de Indis, I,
de Joana Serafim, tradução de Marina Castanho 3, pp. 14-15.
e revisão científica de Ana Maria Tarrío.
57. Juan de la Peña, De Bello contra Insulanos,
quaestio I, f. 305 (no prelo).
Coleção Corpus Hispanorum de Pace, dir.
46. SÃO DOMINGOS, Antônio de, De bello, ms Liciano Pereña, vol. IX, Madrid, 1982, I, 2, 14.
5552 da Biblioteca Nacional de Portugal (BNP),
58. L. Pereña, “Estudio Preliminar” à edição de
excerto traduzido por Antônio Guimarães
Juan de la Peña, in: De Bello Contra Insulanos:
Pinto, fol. 67vº-68 (no prelo).
intervención de España en América., Coleção
47. Como fundamentos, invocavam, por exemplo, Corpus Hispanorum de Pace, , Madrid: Consejo
o Evangelho de São Mateus: “E, se ninguém

283
Pedro Calafate e Sílvia Maria da Silveira Loureiro

Superior de Investigaciones Científicas – CSIC, existente que estiver em conflito com essa
1982, v. IX, p. 74. norma torna-se nulo e extingue-se.”
59. MOLINA, Luis de, de iustitia et iure, Cuencae, 68. CANÇADO TRINDADE, A.A., A
1591, tomo I, liv. III, disp. C, excerto traduzido Humanização do Direito Internacional, Belo
por Pedro Calafate. Horizonte, 2006, p. 405.
60. PÉREZ, Fernão, De Bello,.ob. cit. f. 228 , 69. PÉREZ, Fernão. De Bello, ob. cit., f. 236,
excerto transcrito por Filipa Roldão e traduzido excerto transcrito por Filipa Roldão e traduzido
por Antônio Guimarães Pinto (no prelo) por Antônio Guimarães Pinto (no prelo).
61. SIMÕES, Pedro. Annotationes in materiam 70. PÉREZ, Fernão. De Bello, ob. cit., f. 237v.,
de bello,, ob. cit., quaestio I, f. 305v, excerto excerto transcrito por Filipa Roldão e traduzido
transcrito por Joana Serafim e traduzido por por Antônio Guimarães Pinto (no prelo).
Ana Maria Tarrío e Marina Costa Castanho (no 71. SÃO DOMINGOS, Antônio de. De Bello, ob.
prelo) cit., f. 68, excerto transcrito por Filipa Roldão
62. SÃO DOMINGOS, Antônio de. De Bello, ob. e traduzido por Antônio Guimarães Pinto (no
cit.,f. 68vº, excerto transcrito por Filipa Roldão prelo).
e traduzido por Antônio Guimarães Pinto 72. PÉREZ, Fernão. De Bello, ob. cit., f. 237,
63. Para uma discussão contemporânea sobre o excerto transcrito por Filipa Roldão e traduzido
combate ao terror com o terror, Veja se o voto por Antônio Guimarães Pinto (no prelo).
Arrazoado do juiz Antônio Augusto Cançado 73. CANÇADO TRINDADE, A. A. Tratado de
Trindade, da Corte Interamericana de Direitos Direito Internacional dos Direitos Humanos,
Humanos, no Caso do “Masacre de Mapiripán” ob. cit. v. 3. P.479.
vs. Colômbia. Mérito, Reparações e Custas.
Sentença de 15 de setembro de 2005. Serie C 74. Para um panorama histórico detalhado acerca
No. 134. Pars. 45 e 46, do qual transcrevemos da invocação de ordens superiores como
a seguinte passagem: “Não se combate o terror excludente de responsabilidade internacional
com o terror, senão no marco do Direito. Os que criminal, confira: CASSESE. Antonio.
acodem ao uso da força bruta se embrutecem International Criminal Law. 2 ed. NOVA
eles mesmos, criando uma espiral de violência York: Oxford University Press. 2008, pp. 270 e
generalizada que termina por vitimar os seguintes.
inocentes, inclusive crianças.” (par. 46). 75. Artigo 33 (Decisão Hierárquica e Disposições
64. ACOSTA, José de. De Procuranda Indorum Legais): 1. Quem tiver cometido um crime da
Salute, 1588, Salmanticae, II, VI, 1, excerto competência do Tribunal, em cumprimento
traduzido por Pedro Calafate de uma decisão emanada de um Governo ou
de um superior hierárquico, quer seja militar
65. ACOSTA, José de. ob. cit., II, VI, 2-3, excerto ou civil, não será isento de responsabilidade
traduzido por Pedro Calafate. criminal, a menos que: a) Estivesse obrigado
66. LEDESMA, Martinho de, Secvnda Qvartae, por lei a obedecer a decisões emanadas do
ob. cit. f. 316r-v, excerto traduzido por Leonel Governo ou superior hierárquico em questão; b)
Ribeiro dos Santos. Não tivesse conhecimento de que a decisão era
67. Dispõe o artigo 53 da Convenção de Viena de ilegal; e c) A decisão não fosse manifestamente
1969 sobre o Direito dos Tratados: “É nulo um ilegal. 2. Para os efeitos do presente artigo,
tratado que, no momento de sua conclusão, qualquer decisão de cometer genocídio ou
conflite com uma norma imperativa de Direito crimes contra a humanidade será considerada
Internacional geral. Para os fins da presente como manifestamente ilegal.
Convenção, uma norma imperativa de Direito 76. VITÓRIA, Francisco de, Relectio de Indis, ob.
Internacional geral é uma norma aceita e cit., I 3, 2-3.
reconhecida pela comunidade internacional dos 77. SOBRINHO, João, Tractatus Perutilans de
Estados como um todo, como norma da qual Iustitia Commutativa et Arte Campsoria
nenhuma derrogação é permitida e que só pode seu Cambiis ac Aelaerum Ludo, Paris, 1496,
ser modificada por norma ulterior de Direito edição portuguesa: Mozes Amzalak, Frei João
Internacional geral da mesma natureza.” Sobrinho e as Doutrinas Económicas na Idade
Já o artigo 64 da mesma Convenção dispõe: Média, Lisboa, 1945, p. 179.
“Se sobrevier uma nova norma imperativa de 78. VITÓRIA, Francisco de, Relectio de Indis, ob.
Direito Internacional geral, qualquer tratado cit., I 3, 2-3.

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A Escola Peninsular da Paz: A Contribuição da Vertente Portuguesa em Prol da Construção de um Novo Direito das Gentes para o Século XXI

79. SÃO DOMINGOS, Antônio de. De Bello, Migrantes Indocumentados, supra nota 72,
ob. cit, fol. 67vº, excerto transcrito por Filipa par. 11.
Roldão e traduzido por Antônio Guimarães 84. Virgílio, Eneida, liv. 7, versos 229 e 230,
Pinto. traduzidos por Miguel Pinto de Meneses.
80 SIMÕES, Pedro. Anotationis in materiam 85. TOSI, Giuseppe. Raízes Teológicas dos Direitos
de bello, ob. cit., quaestio I, f. 304v, excerto Subjetivos Modernos: conceito de dominium
transcrito por Joana Serafim e traduzido por no debate sobre a questão indígena no século
Ana Maria Tarrío e Marina Costa Castanho. XVI (2005). Disponível em: http://www.ies.
81. VITÓRIA, Francisco de, Relectio de Indis, ob. ufpb.br. Acessado em 21 de julho de 2013.
cit., I 3, 2-3. 86. CANÇADO TRINDADE, A. A. Tratado de
82. CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS Direito Internacional dos Direitos Humanos,
HUMANOS. Condição Jurídica e Direitos dos ob. cit. v. 3, pp. 485-486.
Migrantes Indocumentados. Opinião Consultiva 87. CANÇADO TRINDADE, A.A, A Humanização
OC-18/03 de 17 de setembro de 2003. Série do Direito Internacional, ob. cit., p. 16.
A No.18. Voto Concurrente do Juiz Antônio
Augusto Cançado Trindade, pars. 12 e 35.
83. CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS
HUMANOS. Condição Jurídica e Direitos dos

285

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