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O SUS e o Setor Privado Assistencial: adaptações e contradições

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O SUS e o Setor Privado Assistencial: adaptações e contradições

1. Definição do problema e explicar os processos não lineares que marcaram a


trajetória do SUS.

Entre os problemas para refletir, identificar con- Nessa conjuntura, caracterizada pela crise eco-
tradições bem como discernir e formular estratégias nômica e política e cortes de recursos para a saúde,
políticas sobre a privatização do sistema de saúde torna-se especialmente relevante estabelecer um de-
no Brasil situam-se as próprias acepções sobre SUS bate sobre as relações entre a recessão, a situação de
e acerca do que é público e privado. As relações entre saúde e o SUS. As tarefas para dimensionar possíveis
público e privado costumam ser apreendidas por me- tendências de piora de indicadores e buscar respos-
didas (quantidade de unidades, atividades e recursos tas concretas para reduzir riscos sociais, ambientais e
humanos, financeiros) e nem sempre pelos interesses individuais e atendimento a problemas de saúde tais
e negociações entre agentes e suas decisões políticas. como doenças crônicas, violências, obesidade e ar-
Em meio a tantos números favoráveis ou desfavorá- boviroses, são incontornáveis. No entanto, este texto
veis ao público, ou ao privado, fica difícil separar os enfoca apenas um dos aspectos do sistema de saúde
traços estruturais de um sistema de saúde desigual e no Brasil: a segmentação e estratificação assistencial.
segmentado das conjunturas políticas que os repro- A intenção – ainda que a relevância dos processos
duzem e até ampliam. Quase trinta anos depois da gerais e de longo prazo seja inquestionável –, é jogar
Constituição de 1988, houve avanços, impasses e re- luzes sobre elementos conjunturais contemporâneos,
trocessos e também adaptações na compreensão do e assim evitar a desatenção para as iniciativas em cur-
SUS e do setor privado. so e recursos financeiros e simbólicos concentrados
em determinados agentes sociais.
De um tempo para cá, temos recorrido a figuras
de linguagem, nas quais o SUS, como sujeito de ora- Assim, a equação que orienta a reflexão é a de que
ções localiza-se em espaços conflitantes: “o SUS na os movimentos que afetam a propriedade, finanças
encruzilhada”; “o SUS na mira”. As expressões ora e responsabilidade do setor público são causa e não
alertam para a perda de rumos ou risco iminente de tão somente consequência de determinantes gerais,
derrota, ora, conotam a necessidade de proteger o de desigualdades impostas por um Estado e sociedade
SUS de desvios de caminho e ataques de inimigos. estruturalmente hostis às políticas públicas univer-
São alusões úteis à aproximação da realidade. Certa- sais. As práticas efetivas de agentes envolvidos, suas
mente, as políticas sociais (e a saúde não é exceção) atividades táticas, seus cálculos e especialmente o
estão sendo submetidas a restrições que descaracteri- substrato cognitivo que informa essas ações delimi-
zam completamente a acepção original de Segurida- tam objetivamente o âmbito de alternativas políticas.
de Social da Constituição de 1988. O pressuposto desta breve e necessariamente sinté-
tica reflexão é que as estratégias políticas de forças
No entanto, faltaria sustentação às metáforas so- sociais concorrentes com o SUS público e universal
bre o SUS, caso o tempo seja considerado. Governos foram e têm sido recepcionadas sob o registro do
anteriores também atacaram o SUS. A rigor, a acep- SUS para pobres. A hipótese a ser posteriormente
ção de um SUS como coisa concreta, quase sempre analisada é que sociedade, sempre que perguntada,
uma rede assistencial pública e vigilância sanitária declarou prioridade para a saúde, apoio ao SUS, ao
e epidemiológica, tampouco é aquela aprovada em pagamento de impostos e a alocação de recursos em
1988. Quando se restringe a política de saúde ao que políticas universais. Mas, as coalizões governamen-
“acontece com o SUS” (reduzido ao Ministério e se- tais, os governos, determinados dirigentes governa-
cretarias de Saúde), parte importante dinâmica dos mentais, diante de restrições fiscais e possivelmente
conflitos e interesses setoriais fica oculta. A acep- orientados por uma compreensão equivocada sobre
ção de um jogo limitado a movimentos declarados saúde acataram e implementaram políticas de saúde
de parcela dos agentes públicos dificulta identificar de corte focalizado.

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A conjectura sobre a cristalização da compreen- constitucional. Não se menciona o direito à saúde e
são do SUS, como SUS para pobres pelas instâncias sim o SUS e a coexistência entre o público e o priva-
empresariais e governamentais será, por enquanto, do para o atendimento.
apenas delineada. Obviamente, seus contornos e des-
dobramentos requerem análises específicas, que es- O SUS constitucional e o
capam ao foco do texto. O ponto de partida adotado
SUS dos gestores
aqui é que a perspectiva de um sistema público de
saúde abrangente e de qualidade ficou de pé. Porém O SUS constitucional tinha um orçamento com-
o projeto de SUS efetivamente universal nunca foi e patível com a missão da universalização do direito
não é consensual, inclusive no segmento que declara à saúde. As duas novas fontes de custeio (Cofins e
o apoiar. CSLL) para a seguridade social somadas as anterio-
res (impostos gerais e contribuição previdenciária) se-
O SUS para pobres riam suficientes para a expansão de direitos sociais.
Mas, a seguridade social jamais foi implementada.
Após a Constituição, o SUS torna-se um termo
Mal a Constituição foi aprovada, a conversa sobre
polissêmico e posteriormente condensa-se como rede
direitos que não cabem no orçamento se disseminou.
pública de serviços. A operação de substituição do
Atualmente, predominam ideias errôneas sobre o
sistema pelos serviços e do universal por assistência
texto constitucional. As principais interpretações in-
para os pobres, para quem não pode pagar, amputou
corretas são: a) o SUS foi promulgado sem o devido
o conceito ampliado de saúde. Não é por acaso que
financiamento; b) houve um conchavo dos sanitaris-
se passou a considerar o SUS equivalente ao sistema
tas com setores conservadores em torno da permissão
suplementar e a se utilizar como se fossem naturais
para a atuação da iniciativa privada.
expressões como SUS-dependentes e que a acepção
de SUS como serviço público para pobres tornou-se
Mas a história é mais interessante do que suas ver-
hegemônica. Para uma parte dos políticos, gestores,
sões estilizadas e está bem documentada. As entidades
técnicos e empresários, as tensões e lutas travadas
da sociedade civil se organizaram em torno de arenas
durante o processo de debates e aprovação do SUS
de negociação especificas nos debates sobre a Consti-
constitucional em torno da democratização da saú-
tuição. Na saúde, os sanitaristas estabeleceram acor-
de encontraram um equilíbrio duradouro e virtuoso
dos com parlamentares progressistas. E o setor pri-
com a segmentação do sistema. Documento da en-
vado buscou apoio junto ao Centrão (parlamentares
tidade empresarial Instituto Coalizão Saúde, criada
que representavam setores sociais mais conservadores,
em 2015 e liderada pelo presidente da maior empresa
maioria na Constituinte, expressando-se em votações
de planos privados de saúde no Brasil, afirma:
importantes, como a da reforma agrária, na qual foi
Sempre na defesa intransigente do Sistema Único preservada a distribuição desigual da terra). A apro-
de Saúde. E com a convicção de que, como de-
vação do SUS foi uma inequívoca conquista, mas sua
termina a nossa Constituição, a coexistência e a
colaboração entre setores público e privado podem viabilidade era reconhecidamente um enorme desafio.
e devem proporcionar um melhor atendimento à
nossa população – desde a prevenção e atenção bá- Havia fragilidades amplamente reconhecidas pe-
sica até o mais sofisticado recurso que a medicina los sanitaristas. A origem da proposta de mudança,
pode oferecer (Coalizão Saúde, 2017).
técnicos e pesquisadores das universidades, implicava
Portanto, sem definir de que SUS estamos falan- mobilização, convencimento e participação dos tra-
do, nos depararemos com realidades supostamente balhadores e suas entidades. No final dos anos 1980,
inesperadas ou ao menos muito distanciadas da- trabalhadores especializados já estavam vinculados
quelas já quase lendárias histórias sobre as disputas a esquemas assistenciais privados e seria imprescin-
quanto ao direito à saúde, que antecederam o texto dível que apoiassem a destinação das contribuições

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previdenciárias para um fundo comum e também in- movimento municipalista. Certamente, a ação polí-
tegrassem as fileiras de combate ao modelo privati- tica do movimento municipalista ampliou as bases
zante que se pretendia superar. Analogamente, estava políticas do sistema, contudo, o protagonismo de
estabelecida a urgência de buscar apoio para o projeto prefeitos e secretários de Saúde acompanhou-se pela
da Reforma Sanitária entre os profissionais de saúde. ênfase nas dimensões administrativo-institucionais
da rede de serviços. O subfinanciamento, o teor emi-
O desenrolar dos acontecimentos implicou a re- nentemente contencionista e descentralizador da im-
visão de tais expectativas. Mudanças no cenário in- plementação do SUS conduzida por gestores, bem
ternacional e a inclinação conservadora do governo como a retomada das posições relevantes de influên-
Sarney impuseram imensas dificuldades à implemen- cia de hospitais privados aliados a empresas de pla-
tação do SUS. É preciso recordar que os três ministros nos de saúde no Congresso Nacional e junto ao Po-
progressistas da Previdência na Nova Republica, der Executivo resultaram em esforços notáveis para
Waldir Pires (que cunhou a expressão “a Previdência a ampliação do acesso. Mas tais esforços não se dire-
é viável”), Raphael de Almeida Magalhães e Renato cionaram à compreensão e à tradução operacional do
Archer tiveram mandatos curtos (entre 1985 e 1988) conceito ampliado de saúde. O Brasil é o único país
e foram sucedidos por Jader Barbalho. Hesio Cordei- da América do Sul que possui um sistema universal
ro permaneceu na presidência do Inamps entre 1985 de saúde. No entanto, não é a nação do continente
e 1988 e foi substituído por um médico, que havia que gasta mais recursos com saúde pública. Existe
participado da gestão de Jarbas Passarinho, conterrâ- uma contradição estrutural: apesar do sistema uni-
neo e ligado à família presidencial. versal, os gastos com saúde são menores do que os de
países vizinhos e as despesas privadas são maiores do
Em 1989, o documento Adult Health in Brazil: ad- que as públicas.
justing to new challanges, do Banco Mundial, afirmava
que seria impossível financiar com recursos públicos a SUS, ampliação e restrição do acesso
saúde para todos, avançando propostas sobre a confi-
guração público-privada mais adequada para o Brasil: Entre 2003 e 2013, houve significativa ampliação
os pobres teriam melhores serviços de saúde se o “se- do acesso da população a cuidados de saúde: a pro-
tor público imitasse o setor industrial brasileiro mo- porção de pessoas que se consultaram com médicos
derno contratando serviços das empresas de planos de aumentou de 54,7%, em 1998, para 71,2%, em 2013.
saúde”. Collor de Mello, cujo mandato teve início em Em 2014, mais de 90% dos que declararam ser hiper-
1990, seguiu os preceitos do tripé: desestatização, des- tensos ou diabéticos e 88% dos portadores de doença
regulamentação e liberalização de preços e salários. pulmonar obstrutiva crônica obtiveram os remédios
Seu discurso de posse explicitou sua concepção sobre prescritos. As estratégias para expansão de cobertu-
a natureza assistencialista das políticas sociais: ras, especialmente investimentos na atenção básica
O Estado deve ser apto, permanentemente apto
foram positivos. O número de equipes de saúde da fa-
a garantir o acesso das pessoas de baixa renda a mília aumentou de 4.114, em 1999, para 40.048, em
determinados bens vitais. Deve prover o acesso à 2016. Atualmente, estão localizadas em 4.995 muni-
moradia, à alimentação, à saúde, à educação e ao cípios e são potencialmente responsáveis pela cober-
transporte coletivo a quantos dele dependam (...)
tura de 116 milhões de pessoas. Existem evidências
(Collor de Mello, 1990).
sobre a atenção propiciada pelas equipes de saúde
Após a Constituição o projeto de implementar o da família e redução na taxa de mortalidade infantil
SUS constitucional foi dramaticamente restringido pós-neonatal (amplamente atribuível à redução no
pela redução dos recursos para a saúde (para pa- número de mortes por doença diarreica e por infec-
tamares menores do que as despesas, em 1987). O ções do aparelho respiratório). E, ainda, diminuição
SUS, especialmente o financiamento para as ações de internações hospitalares potencialmente evitáveis.
da rede pública de saúde, encontrou apoiadores no Além de ações ambulatoriais básicas, o SUS realiza,

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entre outras atividades, transplantes, e fornece medi- tetos orçamentários e de uma oferta constituída ma-
camentos caros para as pessoas vivendo com HIV/ joritariamente por prestadores privados, que só aten-
Aids e portadores de doenças raras. dem clientelas dos planos de saúde. A oferta pública
(privada contratada) predomina na terapia renal subs-
A oferta de leitos hospitalares da rede de serviços titutiva (considerando estabelecimentos cadastrados e
do SUS é abrangente e diversificada, inclusive para que podem ser identificados pela especialidade), em
pediatria, obstetrícia e oncologia. No entanto, o aces- 2016. No entanto, os estabelecimentos de radiotera-
so e uso de determinados serviços especializados pela pia registrados estão voltados às demandas privadas.
rede SUS são racionados, em função da existência de

Tabela 1: Estabelecimentos de saúde selecionados segundo procedimento no CNES, Brasil 2017

Fonte: DataSUS, CNES, 2017.


Elaboração própria

Algumas especialidades, como o atendimen- especialidades estratégicas como oftalmolo-


to para queimados em hospitais e transplantes, gia, gastroenterologia e otorrinolaringologia é
são praticamente exclusividade da rede SUS. eminentemente direcionada ao atendimento de
Contudo, a oferta de leitos cirúrgicos para clientelas privadas (Tabela 2).

Tabela 2: Número de leitos (SUS e Planos Privados) segundo especialidades selecionadas, Brasil, 2016

Fonte: DataSUS, CNES, 2017.


Elaboração própria

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O SUS e o Setor Privado Assistencial: adaptações e contradições

Observa-se, ainda, insuficiência para a deman- e os adjetivos alta e média frequentemente não con-
da pública de equipamentos de ressonância nuclear tribuem para o desvelamento dos enclaves corpo-
magnética e tomografia computadorizada (27% em rativistas e empresariais subjacentes às lacunas e
2005 e em 2016 e 32% e 30%, respectivamente), ex- distribuição da oferta pública. Houve ampliação
posta nos gráficos 1 e 2. Paradoxalmente, 30% de do acesso a determinadas ações ambulatoriais e
clientes de planos de saúde possuem acesso potencial hospitalares, mas não para todas. Simultaneamen-
a 70% de equipamentos para exames de imagem de te, observa-se o predomínio da oferta da rede SUS
maior custo. A oferta de leitos de CTI também é de- em especialidades associadas a realização de pro-
sequilibrada, mas as proporções mostram-se um pou- cedimentos caras, mas também não para todas.
co mais favoráveis ao SUS (aproximadamente 40% a Consequentemente, o gargalo do SUS não é, como
50%) no final do período (gráfico 3). se diz por aí, a alta e média complexidade e sim as po-
líticas de divisão público-privada de procedimen-
Essa especialização da rede SUS não admite in- tos, ações e valores de remuneração orientada por
terpretações simplificadas, e o termo complexidade interesses particulares.

Gráfico 1: Número de equipamentos de ressonância nuclear magnética (Planos privados, SUS e % SUS), Brasil 2005 a 2016

Gráfico 2: Número de equipamentos de tomografia computadorizada (Planos privados, SUS e % SUS), Brasil 2005 a 2016

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Gráfico 3: Número leitos de CTI (Planos privados, SUS e % SUS), Brasil 2005 a 2016

O setor privado: expansão das despesas do setor privado assumem proporções maio-
res do que as demandas. Ou seja, o senso comum so-
bases financeiras e políticas
bre mercados do tamanho dos bolsos dos indivíduos
Definições e dimensionamentos equivocados so- e seu desdobramento relativo à virtude do privado
bre o setor privado, especialmente quando mobili- para desonerar o SUS não resiste às evidências.
zados para afirmar o público contraposto ao merca-
do também contribuem para a apreensão difusa do O Brasil possui o segundo maior mercado de
termo SUS. Não são poucos os gestores, técnicos e planos privados de saúde do mundo. Porém, o ta-
agora até mesmo sanitaristas que se valem da dico- manho e peso do mercado e público dependem de
tomia SUS e saúde suplementar para explicar o siste- métricas que se usadas ao gosto do freguês poderão
ma de saúde no Brasil. Consequentemente, não são sugerir ora o predomínio do público, ora o do priva-
poucas as explicações sobre os problemas da saúde do, sem que se responda à necessidade de identificar
baseadas na existência de dois subsistemas, que por e explicar os fluxos publico-privados e a acumula-
sua vez hiperinflacionaram a difusão de proposi- ção de recursos financeiros e políticos. Uma análise
ções de articulação e integração entre o público e mais realista permite observar a existência de um
o privado. Essas acepções seriam inócuas não fosse nexo causal entre políticas públicas das coalizões
embasarem a falsa suposição de que existe um equi- nucleadas pelo PSDB e PT a expansão do setor pri-
líbrio, que as proporções entre a demanda pagante vado. Foram muitas as iniciativas mobilizadas para
correspondem à oferta disponível e às despesas. Na alavancar o mercado de planos privados de saúde.
realidade, a oferta e as despesas para o SUS são me- O quadro 1 relaciona alguns dos incentivos estraté-
nores do que as demandas. Inversamente a oferta e as gicos à oferta e demanda.

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O SUS e o Setor Privado Assistencial: adaptações e contradições

Quadro 1: Legislação selecionada*


Relacionada com o apoio à oferta e demanda de serviços e planos e seguros privados de saúde no período
pós-Constituição de 1988

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Os estímulos governamentais ao setor priva- (com valores corrigidos), no período 2001 a 2016
do especializado na comercialização de planos e foi significativamente superior ao PIB e à inflação,
seguros de saúde associados ao aumento da for- e manteve-se estável mesmo quando houve queda
malização dos empregos e renda contribuíram do número de clientes. O descolamento das recei-
para a expansão do mercado e aprofundamento tas da base concreta de clientes tem sido conside-
da fragmentação e segmentação do sistema de rado um sinal de inserção de grupos econômicos
saúde. Observa-se no gráfico 4 que o crescimen- do setor de planos e seguros no regime de domi-
to das receitas das empresas de planos de saúde nância financeira.

Gráfico 4: Variação do número de clientes, receitas de empresas de planos (corrigidas IPC-A 2016), PIB real e
inflação – Brasil 2001 a 2016

Assim, as repercussões da magnitude do volume de 1988, mas também às dificuldades de crescimento,


de recursos financeiros mobilizado pelas empresas de como se não tivessem se tornado adultos. Em outras
planos e seguros não se restringem às dimensões eco- ocasiões, se recorre à luta de Davi (os aguerridos sa-
nômicas, a financeirização implica atuação ativa de nitaristas) contra Golias (os capitalistas que atuam no
grupos de interesse na definição das políticas públicas. setor). Porém, tanto a versão que se apoia na dimen-
são temporal, quanto a que embute uma avaliação de
correlação ficcional de forças deixam de lado o papel
2. Menos que soluções: sugestões dos governos e do debate político.

Parcela significativa de profissionais de saúde Ainda que o potencial explicativo de analogias


e entidades da sociedade civil que apoiaram os go- entre projetos e construções sociais com ciclos bio-
vernos do PT adotaram discurso defensivo sobre os lógicos de vida ou em uma estrutura imutável seja
obstáculos ao SUS. Por vezes, recorre-se a metáfo- baixo, as equivalências são tentadoras e absolvem.
ras sobre o Sistema Único de Saúde e a democracia Além disso, enaltecem o passado de árduas lutas por
no Brasil, associando-os a infância ou adolescência, direitos sociais. E se não for relevante compreender
remetendo-os, em termos temporais, à Constituição o presente, as afirmações sobre a existência de um

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O SUS e o Setor Privado Assistencial: adaptações e contradições

processo de conquistas ainda imaturo, em constru- anti-centrão e certamente galvanizou apoios de se-
ção, dão bem para o gasto. Abstrair o presente faci- tores progressistas do então PMDB, em função das
lita emitir avaliações otimistas ou pessimistas, mais repetidas crises do setor privado, naquele momento
afeitas às profecias sobre o destino inexoravelmente acusado de fraudes e inimigo de uma saúde digna. O
grandioso de um país de riquezas mis ou sempre fa- segundo feixe de circunstâncias refere-se à atuação
dado ao fracasso. dos sanitaristas tanto por dentro dos fóruns do movi-
mento social, quanto no âmbito do Poder Legislati-
Portanto, retomar a ambiguidade do termo Esta- vo. A maturação de um projeto de Reforma Sanitária
do, como regulador que assegura a reprodução e acu- envolveu esforços teóricos e gerou novas formas de
mulação e como detentor de instituições estatais ati- inserção de instituições de ensino e pesquisa na vida
vas e autônomas que deveriam transcender interesses política do país, a mais notável foi a convocação de
parciais de grupos específicos e se organizar em torno uma conferência de saúde com participação popular,
de objetivos gerais poderá contribuir para reencontrar em 1986.
o fio da meada. Nesse sentido, as sugestões conver-
gem para o fortalecimento das instituições públicas, Havia divergências entre o PT e o então PCB em
suas burocracias e geração de atividades voltadas às torno da estatização, tensão que por sua vez tinha
políticas universais ou seja do fechamento de canais como substrato a compreensão sobre o processo de
de ações governamentais de suporte a privatização. ruptura com o capitalismo. Para uns, o núcleo das
transformações da Reforma Sanitária consistia na
3. Agentes do processo ou a necessidade de travar a batalha por consciência da
serem envolvidos no processo determinação social sobre o processo saúde-doença.
Assim, tratava-se de gramscianamente realizar mudan-
ças radicais na consciência e práticas. Para outros, a
Com o passar do tempo, diversas interpretações
concepção de reforma e não ruptura parecia inade-
sobre a história do SUS ganharam status de verdade.
quada às condições concretas do país e sua inserção
Entre as inúmeras versões que circulam, especial-
periférica. Em termos práticos, uma das vias propos-
mente no movimento social, situam-se duas anta-
tas para a reforma, a via congressual, a Assembleia
gônicas. Uma delas atribui o SUS a um processo de
Nacional Constituinte, afigurava-se como uma alter-
conquista dos movimentos sociais, uma articulação
nativa por cima.
por baixo. E outra, a um processo de negociação du-
rante os debates com vistas à Constituição de 1988.
Tais polêmicas merecedoras de maior aprofunda-
Como, a principal força política que formulou o
mento, no entanto, parecem ter ficado em um passa-
SUS, o antigo PCB, perdeu potência social, até mes-
do remoto. Durante o processo de implementação do
mo para resgatar seus acertos e erros nas lutas pela
SUS, a proximidade com o chamado centrão das coa-
redemocratização, a tendência entre os militantes de
lizões governamentais atravessou barreiras setoriais.
esquerda, que não participaram diretamente das lutas
Talvez, ainda que com as devidas desculpas pela sim-
pela legitimação do direito à saúde é a de adotarem,
plificação, se possa admitir como hipótese que após
mesmo que por vezes de forma pouco clara, a versão
a derrota das forças conservadoras e privatizantes na
do conchavo.
saúde no processo de debates da Constituição, houve
uma reacomodação das forças políticas dinamizada
Contudo, a ideia de que houve um toma lá dá cá
pela presença de técnicos do movimento sanitário em
protagonizado por sanitaristas que propunham uma
destacados cargos de gestão do SUS e a permanente
reforma radical obscurece dois fenômenos relevantes
articulação por fora, especialmente nos ministérios da
à análise das condições concretas das disputas polí-
área econômica, partidos políticos e Congresso Na-
ticas na saúde. O primeiro é a correlação de forças
cional de políticas pró-privatizantes.
setorial. O SUS foi apoiado pelos parlamentares

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Os partidos políticos, os pública vigora o completo desrespeito à relevância pú-
políticos e as burocracias blica das ações de saúde. Por exemplo o CADE (Con-
selho de Defesa da Concorrência) aprova a aquisição
A presença ativa de empresários da saúde e seus de empresas por grupos que vendem serviços para se-
representantes junto a partidos e coalizões políticas cretarias estaduais e municipais de Saúde.
que governam o país não é vista com maus olhos.
Pelo contrário, o atendimento de políticos de diversas Os empresários da saúde
origens e vinculações partidárias em hospitais parti-
culares paulistas e a presença em festas de proprie- A atuação dos empresários da saúde, antes pre-
tários bilionários de negócios setoriais foi registrada dominantemente articulada em torno de agendas
em colunas sociais. A exibição de intimidade, parece bastante particularizadas foi substancialmente mo-
expressar, ora admiração pelo empreender bem su- dificada. A criação da entidade Instituto Coalizão
cedido, misturada com o assentimento ou resignação Saúde (ICOS), em 2014, durante as eleições para a
com um sistema de saúde clivado pelo atendimento Presidência da República, representou um marco
a pobre e ricos, ora preconceitos e incompreensão na articulação de grupos econômicos das indústrias
sobre os sistemas universais. Partidos e lideranças (equipamentos, medicamentos) com aqueles que atu-
políticas terminam por corroborar o senso comum am precipuamente na assistência médica-hospitalar.
sobre a capacidade de estratégias individualizadas A explicitação da liderança de São Paulo (a entida-
responderem a problemas de saúde que são coletivos. de é coordenada pelo ex-superintendente do hospital
Consequentemente, no âmbito da política também Albert Einstein, atual presidente da maior empresa
prevalece o ideário sobre a eficiência do privado em de planos de saúde, e por um professor da USP, ex-
relação ao público e a inversão das relações causais, -secretário de Saúde da cidade de São Paulo) afirma
segundo a qual os sistemas universais são determina- inequivocamente um centro para a “medicina de
dos pela igualdade social e, portanto, não se consti- qualidade” no país. Na agenda do ICOS, construída
tuem como vetor de redução de desigualdades. mediante a contratação de uma empresa internacio-
nal de consultoria, encontram-se expressões como
No âmbito técnico-burocrático setorial, também “setor privado parceiro do SUS”, “a participação da
observa-se que a compreensão do SUS como aten- iniciativa privada na saúde, de forma complementar
ção básica para pobres foi incorporada, inclusive nos ao poder público, é uma prática vencedora”, “inte-
textos legais como portarias do Ministério da Saúde gração público-privada”.
que passam a localizar ações focalizadas como o Pro-
grama Rede Cegonha, entre outras, nos “municípios As entidades patronais de hospitais privados au-
do Programa Brasil Sem Miséria”. A universalização todenominados de excelência também avançaram
(igualdade) também deixou de parametrizar as políti- proposições para a ampliação dos espaços políticos
cas de regulação do acesso entre clientes de planos e de intervenção do setor privado. Em 2015, a Asso-
as demais pessoas pela iniciativa da ANS de incluir a ciação Nacional de Hospitais privados apresentou,
obrigatoriedade de cobertura de medicamentos anti- entre outras, as seguintes aspirações: “ampliar a par-
neoplásicos orais. A partir de 2013, a relação dos me- ticipação do setor privado na formulação e implan-
dicamentos para clientes de planos passou a ser mais tação das políticas nacionais de Saúde e incentivar o
ampla do que a recomendada para o SUS. Duas po- investimento privado na área da saúde e desenvolver
líticas públicas explicitamente diferenciadas, segundo um plano de ação público-privado para a informati-
capacidade direta ou indireta de pagamento e não zação, integração e interoperabilidade dos sistemas
critérios clínicos. Em outras instâncias da burocracia de informação”.

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O SUS e o Setor Privado Assistencial: adaptações e contradições

Sindicatos de trabalhadores As forças progressistas que atuam na Saú-


e conselhos de Saúde de não podem continuar ignorando ou
consentindo passivamente a privatização
As centrais sindicais de trabalhadores apoiaram da saúde. Encontrar um espaço de inter-
e apoiam o SUS, mas suas bases demandam planos venção para a desprivatização requer reco-
privados de saúde. Não é raro que um sindicalista nhecer que as articulações entre o público e
pronuncie que os planos privados são benéficos ao o privado estendem-se desde a atuação de
SUS, por diminuírem a fila nas instituições públicas. profissionais de saúde em ambos os seto-
Há aqueles que inclusive individualizam o raciocínio res até o uso de fundos públicos e privados
ao dizer: “assim deixo meu lugar na fila para alguém nacionais e internacionais. No entanto, os
pobre”. Embora os conflitos entre o empregador que processos em curso que viabilizam a cria-
paga em parte ou totalmente o plano privado e as de- ção de novos mercados não têm sido detec-
missões por doença do titular ou de seus familiares tados pelas forças políticas progressistas. A
existam, o assunto não adquire visibilidade. privatização recente foi sendo implementa-
da praticamente sem oposição parlamentar
Os conselhos de Saúde tampouco se dedicam ao e dos movimentos sociais. Mesmo quando
debate sobre a privatização realizada pelos grandes foi possível antepor barreiras a ações priva-
grupos econômicos. Os representantes das entidades tizantes, como no caso da anistia às multas
sindicais de profissionais de saúde que os integram das empresas de planos de saúde, os lobbies
tendem a valorizar as demandas trabalhistas decor- privados lograram encontrar uma alternati-
rentes da contratação precarizada de servidores. Os va administrativa para aprovar seu pleito.
processos aquisição-fusão, abertura e valorização de
capitais, preços de monopólio e presença dos repre- É necessário debater com técnicos dos mi-
sentantes empresarias nos núcleos decisórios gover- nistérios da área econômica, da Justiça,
namentais são pouco ou nada debatidos pelas entida- bem como com Ministério Público e Poder
des de participação social. Judiciário, os problemas da saúde e do sis-
tema de saúde para apresentar e testar alter-
4. Estratégicas políticas nativas de redução do uso do fundo público
para a privatização. Deduções e isenções
fiscais, filantrópicos-privados, pagamento
O enfrentamento da privatização requer a
de planos caros para servidores públicos,
produção de conhecimentos aprofunda-
pagamento de taxas elevadas de adminis-
dos e atualizados sobre o setor privado
tração para terceirizações e corrupção são
da saúde. Os esforços para a compreen-
gritantes contradições.
são dos processos recentes de inserção do
setor no padrão de dominância financeira
As portas giratórias precisam ser identifi-
e seus desdobramentos econômicos, so-
cadas e, quando possível, controladas ou
ciais, culturais e políticos são incipientes,
fechadas. Não se trata de criminalizar e de-
é preciso priorizar a temática dos grandes
nunciar conflitos de interesses e constatar
grupos econômicos na saúde e desenvolver
que a influência do setor privado na saúde
estudos específicos sobre as inter-relações
é muito extensa e intensa.
entre público e privado, sobre os fluxos de
acumulação de capital e poder. A recusa
peremptória de generalizações do tipo o
problema é o velho patrimonialismo é essencial
para a definição de perguntas de pesquisa.

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