Você está na página 1de 3

Papéis de exilado

Qual é a verdadeira origem de Pablo Fidalgo Lareo? O nome não diz tudo, mas dá uma pista. Filho de
–, neto de –, sobrinho-neto de –, Pablo expõe a sua filiação em duas das obras ora publicadas, O
Estado Selvagem. Espanha 1939 (2013) e Hás-de Ir à Guerra Que Começa Hoje (2015), e usa esse
material para nos falar de outras coisas. Estes dois textos têm como ponto de partida os avós
Mercedes Fernandez Vasquez e Manuel Lareo Costas, e o tio-avô Giordano Lareo, respetivamente.
As peças fazem parte de uma trilogia, originada com o poema Os Meus Pais: Romeu e Julieta (2013),
editado em Portugal pela Averno. E ainda recentemente o espetáculo Daniel Faria (2017), sobre o
monge e poeta português desaparecido prematuramente, renovava esta dedicação aos
antecedentes, se não familiares, pelo menos artísticos. Nos últimos anos, o autor reconstruiu uma
genealogia pessoal em versão cénica que se estende à história de Espanha, Portugal e América
Latina, para se inscrever nela, ainda que indiretamente, e, nos incluir também nas tragédias coletivas
a que se refere. Isto quanto à origem. Mas qual o destino de Fidalgo? Para onde vai ele? No outro
texto deste livro, não é tanto o passado quanto o futuro que são reconstruídos, como o título, aliás,
desde logo, indica: Só Há Uma Vida e Nela Quero Ter Tempo Para Construir-me e Destruir-me (2014).
Nela, o autor pretende começar do zero o relacionamento com a plateia, renegando as origens.
Assim intercalada, esta peça parece ser um contraponto às outras duas. A mais recente inflete o
movimento da anterior, seduzindo o destinatário das palavras quando antes o atacava. Essa, por sua
vez, contrapõe à solidão dos avós e à exposição das memórias e recordações, entre as quais uma
série de velhas filmagens, um coro de adolescentes e uma lista de reclamações presentes e de
reivindicações para o futuro. As três podem ser admiradas em conjunto.

A mais antiga, O Estado Selvagem, começa com a apresentação da personagem: "O meu nome é
Manuel Lareo Costas." A fala é do avô, mas a voz é a do neto. O procedimento vai repetir-se mais
tarde, noutro texto desta coleção, Hás-de Ir à Guerra. Para quem tenha visto os dois espetáculos, as
falas de um ecoam nas falas do outro. Manuel diz: "Eu era uma criança quando começou a guerra /
(…) E embora eu me alegre por não ter ido à guerra / No fundo eu gostaria de ter ido / Porque
sempre há-de pairar sobre mim a sombra da covardia e da dúvida." Esse desejo e essa sombra
levam-no a equiparar-se a mártires e heróis cujos nomes são pronunciados pelo neto: Giordano
Bruno, Garcia Lorca, o Rei Lear. Tendo cegado de um olho enquanto brincava com o neto, parece
que a cegueira e a necessidade de ver são transmitidas involuntariamente às gerações sucessoras.
"A dor transmitida de uma geração a outra / muitas vezes é a única verdadeira herança que nos
deixam", diz Manuel, passando o pathos de geração em geração. E é ao espelho de uma visita a
Lisboa, onde o poeta se encontrava a viver, que se encerra esta primeira parte do texto, dando
agora a vez à fala da avó de Fidalgo. Depois de se apresentar, como o marido fizera antes, Mercedes
anuncia que a sua fala é uma carta para as netas. Mas agora, a voz é dela mesma, posto que está em
cena a pessoa real. Uma carta para que "possam agarrar-se à sua história e voltar para trás" quando
e se se sentirem perdidas. Uma irmã, nascida e falecida antes dela, tinha tido o mesmo nome de
Mercedes. Um dia, Dolores Ibarruri, a Pasionaria, veio a Vigo. Mercedes foi ver. Dolores ergueu-a
nos braços e disse-lhe: "Tu és o futuro do nosso país". Tantos anos depois, a avó dirige-se agora às
suas sucessoras: "Rahel Maria Ana Clara / Lembrem-se sempre que a vossa avó /Nasceu num país no
qual quando as crianças adoeciam / Morriam como animais / Foi-nos muito difícil sair do
pensamento do pobre/ E agora querem mandar-nos de volta para aquele tempo de miséria". Quase
no fim destas intervenções em tom de despedida, é dito que "quando os pais morrem finalmente
existimos finalmente amamos". A peça seguinte parece querer antecipar a hora de existir e
de amar.
O texto de Só Há Uma Vida é construído para se referir à situação concreta de apresentação do
espetáculo, com uma voz dirigida diretamente ao imaginado público, que é interpelado e
questionado, as suas eventuais respostas antecipadas e calculadas pelo locutor. Escrito para ser feito
por adolescentes, o texto foi depois escolhido para fazer parte de um programa nacional de teatro
juvenil, o Panos, promovido pela Culturgest. O texto é apresentado como sendo uma "carta a partir
do exílio". Logo se torna uma espécie de manifesto, ou pelo menos uma lista de reivindicações,
"questão de vida ou de morte". O autor é o porta-voz da geração menor e esta carta uma peça de
protesto dos adolescentes. Se nas outras peças é reatado um vínculo, através de histórias, com os
antepassados, nesta peça o cordão umbilical é cortado uma e outra vez. Para sobreviver aos pais, "é
preciso apaixonar-se pela sua própria história", e não pela história dos familiares. Vínculo desfeito, o
porta-voz deixa clara a sua condição de estrangeiro: "Sou um exilado." A tragédia do exílio é
retomada em chave contemporânea para retratar os órfãos da integração europeia e da crise
financeira do início do Séc. XXI. Exilados do público e do país. O texto, afinal, revela o sonho de um
novo teatro para um novo espectador, e de um país novo numa europa nova. A peça é também um
desmascaramento das identidades pré-estabelecidas dos espectadores adultos. O porta-voz vai
pedindo, desde o início, que levantem a mão, entre outros, por exemplo, "os que se arrependem de
ter vindo / os que acreditam no sexo sem amor / os que se fecharam num quarto durante dias com o
seu par / para se construírem e destruírem e gritarem e fazerem amor"; uma série de coisas: o que
conta é que o espectador se sinta interpelado e se reveja ou não no exemplo. O pedido é uma
tentativa de mobilização, ainda que de efeito retórico. Contando com a passividade do público, o
desespero do porta-voz de quinze anos acaba por redobrar de sentido quando no fim declara:
"Pagaste o teu bilhete não levantaste a mão e isto é o que há." Uma geração inteira deixada sozinha
em palco.

Hás-de Ir à Guerra é uma história familiar que se revela uma história de exílio, ambas por escrever.
"A história de Espanha é um espaço em branco" -- começa por dizer o próprio Pablo, numa fala na
forma de carta, escrita em Mar del Plata, último lugar onde viveu o antepassado que inspira este
trabalho. Pablo passa então a voz ao ator (Cláudio da Silva) que vai encarnar Giordano Lareo, o tio-
avô de Pablo, republicano tornado origamista na Argentina, país onde se exilou depois de ter sido
preso e de lhe terem morto um irmão na Galiza nativa. Os espectadores também têm um papel:
"vocês são as moscas, estamos de acordo em relação a isso? / As que não estão dispostas a fazer
nada por mim / As que jamais me esconderiam em casa / As que nunca me ajudariam a fugir".
Giordano foi batizado com esse primeiro nome em homenagem a outro Giordano, Bruno, o
astrónomo "queimado pela Inquisição em Roma". A fala tem a forma de testamento, adianta a
personagem: "Esta cidade onde escrevo o meu testamento chama-se Mar del Plata." Neste
testamento em vida, fictício e feito ao vivo, há um outro texto escrito, uma carta dirigida à filha,
onde a herança não é mais que uma invetiva para sobreviver ao exílio: "Hás-de reconstruir a figura
do teu pai / de superar os teus pais." Os espaços em branco e as folhas de papel tornadas animais
pela arte do origami são metáforas da condição indizível do exilado. No final, cabe ao ator
identificar-se perante a plateia e identificar-se com a condição de Giordano, tal como Pablo já havia
feito. Filho de retornados, nascido em Angola em 1974, na atual cidade do Huambo, antiga Nova
Lisboa, Cláudio anuncia-se como um exilado em Portugal e despede-se quase de imediato,
convidando os espectadores para recolherem um dos passarinhos de papel com que foi ocupando o
palco ao longo do espetáculo: "Continuará a estar escuro / Mas o céu austral brilhará sobre as
vossas cabeças / Começará o tempo dos murmúrios / Tenham cuidado / Cada um pegará no seu
pássaro de papel / Cada um deles contém o testemunho de um exilado / Para conseguirem ler o que
esse exilado escreveu / Terão de desdobrar o que eu dobrei."
Qual é a verdadeira história de Pablo Fidalgo Lareo? Nascido em Vigo em 1984, tendo vivido em
Madrid e em Lisboa, é um poeta entre pátrias, tentando renascer em cada novo texto, fazendo
dobrar para dentro de cada obra o seu próprio passado. Manifesto, reivindicação, testamento, carta,
a cena lírica de Fidalgo é um teatro de documentos pessoais e intransmissíveis, apresentado ao
público para reclamar direitos de múltipla cidadania: daqueles países, dessas famílias e deste teatro.

Você também pode gostar