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MOISÉS, Massaud. Dicionário de Termos Literários. São Paulo: Cultrix, 1974. (p.

49)

AUTOS

Latim actu(m), realização, execução, ação, ato.


Vinculado aos mistérios e moralidades, e talvez deles proveniente, o auto designa
toda peça breve, de tema religioso ou profano, em circulação durante a Idade Média:
equivaleria a um ato que integrasse espetáculo maior e completo; daí o apelativo que
recebeu: auto.
Ibérico por excelência, o auto remonta aos fins do século XII quando teria sido
elaborado o espécime mais antigo que se conhece, o Auto de los Reyes Magos, de que nos
restam apenas cento e quarenta e sete versos, em cinco cenas que conrespondem a menos
de metade da obra, descobertos em 1785, num códice de princípios do séc. XIII.
Desenvolvido por Juan dei Encina no século XV, o auto chegou a Portugal em 1502,
quando Gil Vicente representou o Monólogo do Vaqueiro ou Auto da Visitação. Ao longo
do século XVI, a voga do auto alcançou o ponto máximo: o próprio Camões, apesar do
estofo clássico de sua cosmovisão, lhe rendeu homenagens em duas peças, Auto de
Filodemo e El-Rei Seleuco. No século XVII, tirante o Auto do Fidalgo Aprendiz (1665), de
Francisco Manuel de Melo, o auto foi aos poucos desaparecendo em Portugal. Na Espanha,
porém, adquiriu feição de autos sacramentales, assim rotulados por glosarem, alegorica-
mente, os dogmas do Catolicismo. Seu mais talentoso cultor foi Calderón de la Barca.
Entre nós, o auto vicentino já era conhecido no século XVI, graças ao Padre José de
Anchieta, que o empregava nos trabalhos de catequese do nativo e educação do colono.
Com o tempo, mesclando-se de ingredientes culturais indígenas e africanos, acabou por
tornar-se manifestação popular e folclórica, em que o enredo propriamente teatral, além de
reduzido ao elementar, vinha acompanhado de danças e cantos. “As mais antigas menções
informam que os autos eram cantados à porta das igrejas, em louvor de Nossa Senhora do
Rosário (quando dirigido por escravos ou libertos), no orago ou na matriz. Depois levavam
o enredo, com as danças e cantos, nas residências de amigos ou na praça pública, num
tablado”. (Luís da Câmara Cascudo, Dicionário de Folclore Brasileiro, 1954, p. 71).
No século XIX, Garrett procurou reavivar o teatro popular com Um Auto de Gil
Vicente (1842), e em nossos dias, algumas peças corno o Auto da Compadecida (1959), de
Ariano Suassuna, e Auto da Barca do Motor Fora da Borda (1966), de Luís de Sttau
Monteiro, fazem crer que não se extinguiu de todo o fascínio da obra vicentina e do próprio
auto.

MOISÉS, Massaud. Dicionário de Termos Literários. 1974. p. 89-94.

COMÉDIA

Grego komedía. (...) Tanto quanto a etimologia da palavra, a gênese da comédia


mergulha em trevas: considera-se, ainda na esteira de Aristóteles, que a comédia resulta dos
cantos fálicos, erguidos em homenagem a Dioniso ou Baco. Ao findar do inverno,
organizavam-se na Grécia festins em louvor da Primavera, encarnada em Baco, deus do
vinho e da inspiração poética: em procissão, conduzindo um enorme fálus, em andor, o
povo entoava cânticos gratulatórios, entremeados de danças e liberações alcoólicas. Com o
tempo, supõe-se que os cantos adquirissem tonalidade jocosa ou mesmo satírica, e
suscitassem movimentos histriônicos, livres e desordenados. Por fim, algum poeta, decerto
inspirando-se na tragédia, resolveu agrupar as manifestações orgiásticas numa peça única,
que, sofrendo sucessivos aprimoramentos, viria a transformar-se na comédia, cuja aparição
oficial se daria em 486 a.C. Aristóteles resume a questão nestes termos: as mutações
experimentadas pela comédia “estão ocultas, pois que delas se não cuidou desde o início: só
passado muito tempo o arconte concedeu o coro da comédia, que outrora era constituído
por voluntários. E também só depois que teve a comédia alguma forma, é que achamos
memória dos que se dizem autores dela. Não se sabe, portanto, quem introduziu máscaras,
prólogo, número de atores e outras coisas semelhantes.”
Na Grécia, a comédia evoluiu em três fases:
1) comédia antiga, estruturada em quatro partes: prólogo, párodo (caracterizado pelo
irrompimento festivo do coro, trajando máscaras e roupagens de vários tipos), episódios
(cenas dialogadas entre dois atores, permeadas por intervenções do coro), êxodo
(desenlace); ainda ocorria a parábase (interlúdio coral), correspondente à suspensão da
ação e a uma como que chamada dos espectadores à realidade; via de regra, glosavam-se
assuntos políticos ou sociais; dentre seus cultores, sobressaí Aristófanes;
2) comédia mediana, de assunto mitológico ou puramente literário, no início, e de índole
social, mais adiante; caracteriza-se pela ausência do coro; representam-na Antífanes, Alexis
e outros;
3) comédia nova, decorrente da anterior gira em torno das paixões, sobretudo o amor, e dos
costumes; estruturalmente, prima pela economia dos acontecimentos e a simplicidade na
configuração das cenas, pelo emprego absoluto do diálogo; representam-na, entre outros,
Filemon, Apolodoro de Carystos e Menandro, dos quais o último é o mais importante e um
dos mestres da comédia que se desenvolveria em Roma após o seu declínio na Grécia.
Entre os latinos, distinguem-se as seguintes modalidades de comédia: atelanas
(fabulae attelanae), peças populares, burlescas, grosseiras, equivalentes às festas em honra
a Baco; cultivaram-na Pompônio e Nóvio; comédia paliata (comoedia paliata), assim
chamada pela vestimenta (pallium) usada pelos atores, semelhante à dos gregos: seguia o
modelo da comédia nova; comédia togata caracterizada pelo emprego da toga,
indumentária romana, bem como a praetexta, que identifica a comédia praetexta. A
despeito de alguns nomes respeitúveis, como Plauto, Terêncio e outros, a comédia não
alcançou em Roma os níveis atingidos na Grécia (...). A comédia latina compunha-se de
prólogo, diálogo (diverbium} e acompanhamento musical (flauta); ignorava o coro.
(...) No transcurso dos séculos, a comédia sofreu natural metamorfose até chegar a
fisionomia que ostenta modernamente. Em parte por isso e em parte devido a fatores
intrínsecos, a noção de comédia tem sido objeto de longas e discutíveis análises. Para
Aristóteles, define-se como “imitação de homens inferiores; não, todavia, quanto a toda a
espécie de vícios, mas só quanto àquela parte do torpe que é o ridículo. O ridículo é apenas
certo defeito, torpeza anódina e inocente; que bem o demonstra, por exemplo, a máscara
cômica, que, sendo feia e disforme, não tem expressão de dor”. Ao passo que para um
moderno estudioso do assunto, "a comédia não é coextensiva com o ridículo, embora o
ridículo ocupe larga parte da comédia" (Elder Olson, Tragedy and the Theory of Drama,
1966, p. 161).
É de crer, portanto, que a comédia há de ter por base a freqüência e predominância
de alguns componentes, sem embargo de poderem também comparecer no âmbito da
tragédia, mas de forma secundária. Primeiro que tudo, a comédia procura aproximar-se da
vida real, de modo a detectar-lhe certos aspectos, precisamente os que provocam o riso Na
rotina da vida diária, o riso desponta sempre que algo de inesperado ocorra, quebrando as
nossas expectativas consagradas. Por exemplo: uma pessoa que, escorregando e caindo,
desfaz por momentos a normalidade da postura, da vestimenta, etc. O riso deflagra em
razão da incongruência ou da ruptura, ainda que breve, das regras estabelecidas pelo uso. A
comédia explora justamente esses instantes, em que o imprevisto da ação gera o ridículo ou
a surpresa espontânea. (...) a comédia repugna o passado histórico ou o tempo infinito,
muito embora possa descobrir no presente símbolos ou protótipos de ações humanas
permanentes. Á primeira vista, o ridículo não pressupõe intenção moralizaste por parte do
comediógrafo. (...) Todavia, a comédia “séria” traz implícita a crença ou a esperança de
uma sociedade sem ridículos, uma sociedade que se aprimoraria à medida que, pelo riso,
tomassem consciência de suas falhas institucionais.
Conforme a fonte que desencadeia o riso, a comédia pode classificar-se em vários
tipos, dos quais ressaltam os seguintes: comédia de costumes, que visa a criticar os hábitos
e costumes de uma sociedade em determinada época; comédia de personagem quando a
ênfase recai num tipo, ou seja, personagem representativa de uma tendência perene do ser
humano; comédia-“ballet”, consiste numa comédia de costumes ou de personagem
entremeada de cenas de dança cômica; comédia lacrimejante, quando emprega as lágrimas
para lacrimejar o auditório; comédia de capa e espada, de origem espanhola, cultivada
notadamente no século XVI, recebeu o apelativo de os cavaleiros do tempo usarem a capa e
a espada; gira em torno das intrigas amrosas.

NOVELA

NOVELA - Italiano novella; Latim novella(m); nova(m), nova. Francês nouvelle, Alemão
Novelle ou Erzählung, Inglês short-story.
O vocábulo “novela” designa uma forma literária ainda não plenamente
configurada, em grande parte devido ao critério que continua a ser empregado por alguns
estudiosos. No geral, adotam uma distinção mecânica, baseada no número de páginas ou de
palavras: a novela conteria de cem a duzentas páginas, ou mais de vinte mil palavras, ou
seja, “situa-se a meio caminho entre o romance e o conto, menos extensa que o primeiro,
mais longa que o segundo. (...) De qualquer modo, um breve romance anedótico” (Jean
Suberville, Théorie de l'art et des genres litteraires, 7.a ed., 1964, p. 449). A experiência
diária revela que o critério quantitativo falha em geral: por exemplo, Os Mistérios de Paris
(1842-1843, 10 vols.), de Eugène Sue, é muitíssimo mais extenso que Teresa Raquin
(1867), de Zola, mas nem por isso aquela obra se classifica de romance e esta, de novela.
Ora, pelo critério qualitativo, atento à estrutura da obra, a questão se resolve sem deixar
margem a duvidas, nem minimizar certos aspectos das duas obras.
Não obstante alguns textos possam considerar-se embrião da novela, como a
História Verdadeira, de Luciano, o Asno, atribuído ao mesmo ou a Lúcio de Patras, a
Ciropédia, de Xenofonte, a História Eubéia, de Dionísio Crisóstomo, Etiópia ou Teágenes
e Caricléia, de Heliodoro, Satyricon, de Petrônio, Asno de Ouro, de Apuleio, Dáfnis e Clói,
atribuída a Longus, etc., o seu aparecimento deu-se na Idade Média em conseqüência da
prosificação das canções de gesta. A novela de cavalaria tornou-se, assim, a primeira
manifestação no gênero: La Quête du Graal, escrita no século XII, por um certo Gautier
Map, originou um ciclo e uma linhagem que perdurou até o século XVII, uma vez que o D.
Quixote, malgrado o seu intuito satírico, é uma novela de cavalaria. Para o fim da Idade
Média, o Amadis de Gaula, fonte de uma série de novelas ao longo do século XVI, revela a
presença de ingredientes passionais e psicológicos que alteram o quadro bélico em que se
movia a matéria cavaleiresca. Dá-se o nascimento das novelas sentimentais, como Cárcere
de Amor e Tratado de Arnalte e Lucinda, de Diego de San Pedro, O Servo Livre de Amor,
de Juan Rodríguez del Padrón, História dos Amores de Peregrino e Ginebra, de Hernando
Díaz, Selva de Aventuras, de Jerônimo de Contreras; e das novelas bucólicas, como a
Arcádia, de Sannazzaro, O Pastor de Fílida, de Luís Galvéz de Montalvo, Diana, de Jorge
de Montemor.
Com a Renascença, surge a novela picaresca, iniciada por El Lazarillo de Tormes,
de autor desconhecido. E nos séculos XVII e XVIII, a novela continua a ser cultivada, já
agora de mistura com alguns ingredientes de romance, cujo aparecimento se dá nessa
altura.
Instalado o Romantismo, a novela tornou-se um dos entretenimentos mais caros à
Burguesia, por ventura em razão de oferecer-lhe alimento à imaginação e preencher-lhe as
largas horas de ócio. Assim se explica a voga das narrativas em folhetim, que cruzou todo o
século XIX e permaneceu até bem recentemente. Mesmo os escritores mais exigentes não
ficaram imunes ao fascínio exercido pela novela. E, quase sem exceção, caldearam em suas
obras recursos narrativos peculiares à novela.
Em vernáculo, as coisas se passam de modo semelhante. Após as obras de
Bernardim Ribeiro, Jorge de Montemor e Francisco Rodrigues Lobo, no século XVII
aparecem as novelas sentimentais de Gaspar Pires Rebelo (Infortúnios Trágicos da
Constante Florinda, 1625-1633; Novelas Exemplares, 1650) e de Gerardo Escobar,
pseudônimo do Fr. Antônio Escobar (Doze Novelas, 1674). No século XVIII: Frei Lucas de
Santa Catarina (Serão Político, 1704), Teresa Margarida da Silva e Orta (Aventuras de
Diófanes, 1752), Pe. Teodoro de Almeida (O Feliz Independente da Fortuna e do Mundo,
1779). Durante o Romantismo, além de Camilo, outros escritores também cultivaram a
novela, como Garrett, Herculano, Arnaldo Gama e outros. No Brasil, são de citar, nos
séculos coloniais: Pe. Alexandre de Gusmão (História do Predestinado Peregrino e seu
Irmão Precito, 1682), Nuno Marques Pereira (Compêndio Narrativo do Peregrino da
América, 1728). No Romantismo: Lucas José de Alvarenga (Statira e Zoroastes, 1826),
Justiniano José da Rocha (Os Assassínios Misteriosos ou A Paixão dos Diamantes, 1839),
J. M. Pereira da Silva (Jerônimo Corte-Real, 1840), Joaquim Norberto de Sousa e Silva (As
duas órfãs, 1841), Antônio Gonçalves Teixeira e Sousa (O Filho do Pescador, 1843) e
outros. E em nossos dias a novela continua presente, na obra dum Alves Redol, Aquilino
Ribeiro, Jorge Amado, José Lins do Rego, Érico Veríssimo e outros. Como se vê, a novela
permanece, inclusive nas suas configurações audiovisuais: a novela de rádio e televisão, e
os filmes de cow-boy.
Do prisma da estrutura, a novela apresenta um quadro típico, a começar da ação:
essencialmente multívoca, polivalente, isto é, ostenta pluralidade dramática. Constitui-se de
uma série de unidades ou células dramáticas encadeadas e portadoras de começo, meio e
fim. De onde semelhar uma fieira de contos enlaçados. Todavia, cada unidade não é
autônoma: a sua fisionomia própria resulta de participar de um conjunto, de tal forma que,
separada dela, não tem razão de ser. Por outro lado, a retirada de uma das parcelas acabaria
comprometendo a progressão em que se inscreve.
A pluralidade dramática segue-se outra característica importante da novela: a
sucessividade. Com efeito, as células dramáticas Se dispõem linearmente, uma após outra.
Entretanto, não se trata de uma sucessividade rigorosa, visto que as células não formam
compartimentos estanques: o novelista não esgota o conteúdo de uma unidade antes de
passar à seguinte. Via de regra, deixa uma semente de drama, que virá a constituir os
episódios subseqüentes. Assim, nas novelas de cavalaria, observa-se o entrelaçamento
sistemático e complexo das “aventuras”: os cavaleiros, por morte ou temporário
afastamento, cedem lugar a outros, que vão protagonizar as suas “aventuras”, os quais, por
sua vez, são substituídos por terceiros, e assim por diante. A novela vai-se formando,
portanto, da agregação de unidades dramáticas permanentemente abertas.
O tempo da narrativa acompanha essa estrutura linear: não havendo restrição
cronológica, o novelista pode fazer uso arbitrário do tempo da ação. Mas, embora possa
observar o transcurso vital das personagens desde o seu nascimento, concentra-se nos
momentos em que se processa cada “aventura” e reduz o passado a umas breves notações.
Tempo histórico, marcado pelo relógio ou as convenções sociais, que impõe aos
eventos uma ordenação horizontal segundo uma rígida causalidade. Sempre no presente,
assume especial importância, na medida em que o novelista dele se utiliza para produzir os
efeitos de surpresa na mente do leitor e criar a ilusão de expectativas novas. De onde uma
paradoxal sensação de intemporalidade.
O espaço vincula-se estreitamente ao tempo. A sucessão ininterrupta de peripécias
confere à narrativa um dinamismo semelhante à câmara rápida do cinema mudo. Por outro
lado, a pluralidade dramática pressupõe a pluralidade espacial; é da novela a tendência ao
deslocamento contínuo das personagens. E o narrador se sente livre para o fazer, sem
qualquer respeito às leis da verossimilhança: num breve lapso de tempo, faz que a
personagem se transfira para lugares remotos e por vezes inacessíveis. Entretanto, somente
interessam os pontos geográficos onde vai passar-se algum episódio ou cena relevante para
o conjunto da ação. Por suas origens, a novela caracteriza-se por desenrolar-se numa
geografia fictícia, mero cenário para a fabulação, que constitui o principal foco de interesse
do narrador. Na verdade, a novela se identifica pelo predomínio da ação. Marcantemente
ativa, antianalítica, não se detém nos transes psicológicos das personagens e das situações
em que se envolvem.
De onde a estrutura da novela ser, à semelhança do conto, objetiva, plástica,
horizontal. Por certo, os dados da observação formam o substrato, mas sofrem o
caldeamento da fantasia mais liberta: a verdade imaginativa sobrepõe-se à observada, de
modo que o esforço criador do novelista se concentra na multiplicação de episódios, sem
preocupar-se com a sua plausibilidade. A imaginação tudo justifica, porque inventa as
próprias leis por que se auto-rege. E mercê da importância da ação, a narrativa flui num
único plano, o histórico; não há dimensões invisíveis para o narrador, nem espessura do
real: tudo se vê e se conhece. Oferece-se, assim, uma imagem deformada da realidade, mas
consegue-se a estereotipia desejada pelo leitor de novelas.
Portanto, “em esquema, a novela não passa duma sucessão de cenas dialogadas e
cenas de movimento (estas mais raras) grudadas por trechos narrativos mais ou menos
sóbrios e abstratos, exposições, observações psicológicas e morais, cartas, digressões,
expansões líricas. O processo da narração é sucessivo, aditivo; a novela pode dizer-se um
relato linear, cujo ritmo é determinado pelos próprios eventos, que constam dos
‘apontamentos’ verdadeiros ou fictícios de que o novelista fala de quando em quando: o
‘cronista’ obedece a Cronos” (Jacinto do Prado Coelho, Introdução ao Estudo da Novela
Camiliana, 1946, p. 525). Ou, por outros termos, “atitude de quem narra uma história
acontecida, predomínio da ação sobre a observação dos meios e dos caracteres, seleção
estrita dos momentos de crise (e daí o fato de retratos fisionômicos, descrições e diálogos
só aparecerem, de modo geral, nesses momentos), predomínio das situações humanas
excepcionais, patéticas ou grotescas, sobre a análise dos fenômenos psíquicos normais,
ritmo rápido, exposição sucessiva, linear dos acontecimentos, intervenção constante e direta
do subjetivismo do autor, quer em frases líricas, em divagações morais e no tom de
conversa com o leitor, quer na eloqüência ornada da própria linguagem essas várias
características definem, a meu ver, o gênero ‘novela’” (id., ib., p. 554).
No tocante à linguagem, a novela caracteriza-se pelo emprego de metáforas diretas,
despojadas, que levam imediatamente ao ponto colimado pelo narrador. Desprezados os
subentendidos, as segundas intenções, o mistério, quando se ergue, patenteia-se claramente
ao leitor. O diálogo, malgrado o alargamento da perspectiva horizontal, prevalece entre os
recursos expressivos. Logo a seguir, a narração, cuja função ultrapassa a mera síntese do
passado das personagens: influi na fabulação resumindo cenas e situações que, dilatadas,
poderiam alongar em demasia o fio narrativo e retardar-lhe o desfecho. Por outro lado,
constituem saídas permanentemente abertas à imaginação do novelista, que pode utilizá- las
à vontade.
Quanto à descrição, tende a surgir com alguma freqüência, determinada pelo próprio
ritmo da narrativa. Quer como pormenores físicos das personagens, quer como retratação
da natureza, comparece com uma força que o conto ignora. Não chega, porém, a atingir a
relevância do diálogo e da narração: funciona mais como pano de fundo, ou pretexto, da
ação. A sua constância está na razão direta da narração: tende a aumentar quando esta
aumenta, e a diminuir quando o movimento narrativo amortece. Via de regra, a natureza
obedece a padrões convencionais, que lhe conferem estaticidade e teatralidade: objeto sem
vida, constitui mero cenário ou extensão da personagem. A descrição psicológica, por isso
mesmo, está ausente: visto que o novelista trabalha com estereótipos mentais, torna-se
desnecessário realizar incursões no seu mundo interior.
Quanto à dissertação, tende a omitir-se. Entretanto, modalidades há de novelas que a
incluíram como dado permanente e indispensável: a novela de cavalaria, a novela
sentimental quinhentista, a novela romântica. Com efeito, a Crônica do Imperador
Clarimundo (1520), de João de Barros, decerto por destinar-se à edificação do futuro D.
João III, apresenta, no fim de cada capítulo uma sentença moral. E o Memorial das Proezas
da Segunda Távola Redonda (1567), de Jorge Ferreira de Vasconcelos, contém um
autêntico doutrinal pedagógico endereçado a D. Sebastião e à fidalguia que o cercava. Na
ficção de Camilo Castelo Branco se insinuam freqüentes extrapolações de caráter
discursivo, por meio das quais o prosador comenta o procedimento das personagens e
enuncia a moralidade que considera útil à Burguesia coeva. E tanto o fazia conscientemente
que no quarto parágrafo do capítulo final de Carlota Ângela (1858), fazendo praça de
modéstia, recorda que outro ficcionista poderia, com “tantas e excelentes (...) achegas” ao
seu dispor, arquitetar “história a um tempo distrativo e doutrinal”. Todavia, a dissertação
não constitui expediente congenial à novela: a ação, prevalecendo na sua estrutura, relega a
segundo plano os demais ingredientes narrativos.
No tocante às personagens, a novela exibe o seguinte quadro: em razão do número
de células encadeadas, as personagens centrais tornam-se numerosas. Aumenta, ainda, o
índice de personagens coadjuvantes, pelas mesmas razões. De onde algumas delas
funcionarem apenas como espaço humano ou social: aparecem, atuam um breve momento e
desaparecem para nunca mais. Gera-se, assim, um círculo vicioso, na medida em que o
recrudescimento da população no interior da novela decorre da multiplicação de células
dramáticas, e por sua vez estas se desenvolvem a partir de personagens que aguardam a sua
hora de entrar em cena. No geral, trata-se de personagens estereotipadas, seja qual for a
função desempenhada. Daí que muito raramente uma novela dê origem a heróis que
“vivem” fora das suas coordenadas. Quais títeres, obedecem ao comando do escritor e a
circunstâncias artificiais criadas à sua volta. Em suma: personagens planas, bidimensionais,
carentes de profundidade, estáticas, monolíticas. E podem ser substituídas, regra geral, sem
comprometer o todo da obra, uma vez que o novelista está voltado precipuamente para o
enredo.
De onde o ritmo acelerado da novela, que obriga o prosador a concentrar-se de
modo particular nos processos de aglutinação das células dramáticas. E que podem ser de
dois tipos: 1) ou as personagens mantém-se ao longo da novela, servindo de elo de ligação
entre as suas várias unidades e de elemento catalisador para as peripécias que se sucedem;
2) ou vão sendo substituídas a cada episódio: a passagem de uma célula a outra dá-se pelo
acaso ou pela morte do protagonista da fração dramática, e pela conseqüente substituição
por uma personagem anteriormente colocada em segundo plano. D. Quixote exemplifica o
primeiro procedimento, as novelas de cavalaria, o segundo.
Quanto ao começo da novela, há de atrair imediatamente o leitor para o cenário do
primeiro episódio: nota-se que as novelas aborrecem as demoradas preparações, por certo
para atender ao leitor, ávido de ingressar de chofre na correnteza episódica. Alcançado o
seu desiderato, o novelista se concentra na armação dos episódios, que se vão enlaçando
num crescendo que culmina na derradeira célula. Entretanto, o “destino” da novela não se
encontra no epílogo, e sim em cada célula. Vale dizer: as células não se acumulam para um
desfecho determinado ou para solucionar um drama que se avoluma progressivamente; não
existem para, mas por si, na medida em que cumprem uma trajetória própria, posto que
enquadra num universo ficcional de que não podem escapar.
Na verdade, a novela constrói-se por justaposição, pois cada célula retoma,
parcialmente, o andamento dramático que compõe a totalidade da narrativa: o tonus
dramático, ao invés de ascender em espiral, como no romance, descreve uma curva senóide:
cada célula evolui como que dentro de um círculo fechado, obediente a um esquema
ternário (início-clímax-epílogo). Claro, a sua temperatura dramática não se exaure de todo,
e de certo modo se transfere para a célula posterior, e mesmo para a totalidade da obra.
Assim, a carga dramática da novela vai avultando paulatinamente, à proporção que
os episódios se sucedem, até o epílogo: este, contém uma dramaticidade própria, à
semelhança de todas as células, e uma que resulta do acúmulo das tensões no curso dos
episódios. Ocorre também que certos “mistérios” sabiamente dispersos pela narrativa
apenas se desvendam nas páginas derradeiras. E o leitor, preso a cada fração dramática,
anseia por chegar ao fim da história para conhecer o desenlace dos nós que lhe espicaçam a
curiosidade. O novelista procede de tal modo que, não obstante atenda as aspirações do
leitor, deixa algumas aberturas finais na direção de novas aventuras. Assim se explica que
Cervantes pudesse escrever uma segunda parte do D. Quixote para não ser espoliado por
Avellaneda: fosse um romance, jamais poderia tê-lo feito. Mesmo numa novela como O
Tempo e o Vento, que rastreia a história duma cidade e duma família gaúcha desde o século
XVIII até os nossos dias, seria possível continuar a narrativa: bastava seguir os
acontecimentos que se vão desenrolando após a última linha.
Por outro lado, o epílogo da novela articula-se estreitamente à sua macroestrutura:
evoluindo numa linha horizontal, a novela exemplifica à perfeição o que se poderia chamar
de obra “fechada”, na medida em que as células dramáticas parecem bastar-se a si próprias,
não estabelecem com a vida senão vínculos indiretos. Portanto, essencialmente “fechada”.
Todavia, mostra-se estruturalmente “aberta”: colocado o ponto final na sucessão de
episódios, outros poderiam ser acrescentados, bastando chamar à cena acontecimentos
posteriores, ou personagens secundárias, cuja existência não se completara no correr da
fabulação.
Quanto ao ponto de vista ou foco narrativo, a linearidade da novela impõe-no:
escritor onisciente. Por vezes, entrelaça-se com outro, em que a personagem é o narrador.
Em qualquer dos casos, o novelista funciona como um demiurgo, que tudo enxerga e tudo
conhece.
A novela, assim entendida, apresenta os seguintes tipos: novela de cavalaria, novela
sentimental e bucólica, novela picaresca, novela histórica, novela policial e de mistério.
Quanto às novelas de cavalaria, nasceram na Idade Média, em conseqüência da prosificação
das canções de gesta. As novelas sentimentais e bucólicas remontam a Dáfnis e Clói
(século III a.C.), mas só foram continuadas no século XIV, graças a Boccaccio (Ninfale
d'Ameto, 1341 ou 1342). Entretanto, o seu fastígio deu-se no século XVI, com a Arcádia
(1504), de Sannazzaro, seguida de Diana (1542), de Jorge de Montemor, Aminta (1581) e
Pastor Fido (1585), a Galatéia (1584), de Cervantes, a Arcádia (1590), de Philip Sidney,
etc. No século XVII, esse gênero de novela perdeu o seu caráter bucólico e acentuou o
aspecto sentimental: o campesino permaneceu como cenário, tão-somente. Vastas novelas
sentimentais se produzem nessa época, como a Astréia (1610-1627), de Honoré d'Urfé,
Polexandre (1619-1627), de Gomberville, Cléopatre (1647), Faramond (1661), Cassandre
(1642-1645), de La Calprenède. A novela picaresca iniciou-se, como vimos, pela Vida de
Lazarillo de Tormes y de sus fortunas y adversidades, de autor anônimo, e atingiu o ápice
no século XVII, com Guzmán de Alfarache (1599), de Mateo Aleman, Rinconete y
Cortadillo (1613), de Cervantes, La Vida del Buscón (1628), de Quevedo, etc. Da Espanha,
a novela picaresca foi levada à França, Inglaterra, Portugal, etc. A novela histórica, que se
caracteriza pela recriação do passado remoto ou recente por meio de documentos verídicos,
principiou com Waverley (1814), de Walter Scott, e atravessou o século XIX, com O
Último dos Moicanos (1826), de James Fenimore Cooper, Henry Esmond (1852), de
William Thackeray, Os Três Mosqueteiros (1844), de Alexandre Dumas, Guerra e Paz
(1862-1869), de Tolstoi, etc. Em vernáculo, também foi apreciada: Eurico, o Presbítero
(1843), O Monge de Cister (1848), de Alexandre Herculano, O Arco de Santana (1845-
1850), de Garrett, As Minas de Prata (1862-1865), de Alencar, As Mulheres de Mantilha
(1870), de Macedo, etc.
A mais recente caracterização da novela é a policial ou de mistério, iniciada por The
Murders in the Rue Morgue (1841), de Edgar Allan Poe, e da qual nasceu a ficção policial
propriamente dita, elaborada por um Ellery Queen, Agatha Christie, e outros, e a novela de
terror ou novela gótica, principiada pelo Castelo de Otranto (1764), de Horace Walpole.

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