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O bio-horror de palavras: “por mais brutal que a ficção de horror nos possa parecer, creio que há, nela,

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muitos indicativos de que o mito do horror emerge da escuridão que reflete aspectos

David Cronenbeg
particulares da nossa situação bio-existencial” (Ibid, 04). Para o autor, então, esse tipo
de ficção emana diretamente das agonias e exigências de nossa vida física: no horror,
“nossos medos psicológicos”, diz ele, “realizam-se em termos bastante concretos” (Ibid,

por Laura Canépa 06).


A posição defendida por ele provavelmente está longe de dar conta da totalidade das
questões que envolvem o horror artístico, mas certamente dialoga muito bem com o
Tanto pela complexidade quanto pela variedade temática, o conjunto dos filmes de David tipo de horror produzido por Cronenberg. Afinal, é flagrante a relação de seus filmes
Cronenberg pode ser abordado sob diversas perspectivas, que vão da psicanálise aos estudos com o tema dos corpos que, de repente, começam a tornar-se estranhos e a impor
culturais, passando por questões relativas às artes na pós-modernidade e às representações das vontades e comportamentos que fazem os personagens passarem de pretensos donos a
tecnologias da medicina e da comunicação. A proposta deste texto é apresentar apenas uma indefesas vítimas de seus próprios corpos, sujeitos a caprichos e violências de uma nova
dessas perspectivas, apontando o que se considera como um dos eixos principais da obra do natureza que, mesmo quando provocada por intervenção externa, impõe-se de maneira
cineasta canadense. Assim, partindo de um contexto específico dos estudos de cinema – relativo irreversível e, não raro, cruelmente desejável.
às discussões sobre a história do cinema de gênero internacional – quer-se sugerir que o horror, Pensemos, por exemplo, nos três primeiros filmes de horror escritos e dirigidos
entendido não necessariamente como gênero narrativo, mas como uma experiência sensorial por Cronenberg, já mencionados anteriormente. Nos três casos, respectivamente, um
extrema construída pelos recursos audiovisuais, pode ser visto como uma potência organizadora verme criado em laboratório, uma mutação causada pelo uso indevido de células tronco
da obra de Cronenberg. e uma terapia que dá vida (literalmente) a pensamentos violentos colocam comunidades
É claro que se reconhece, de antemão, que nem todos os seus filmes pertencem ao gênero humanas sob a ameaça de indivíduos comuns cujos corpos se veem investidos de novos
narrativo do horror. Por outro lado, é certo que o sentimento de horror se revela em todos eles, poderes. O horror surge simultaneamente para aqueles que percebem em si próprios
de uma forma ou de outra. E talvez um dos motivos que possam explicar essa reincidência nos uma nova natureza e para aqueles que sofrem seus terríveis ataques, numa estranha
remeta ao começo da carreira de Cronenberg – em particular a três de seus primeiros quatro comunhão de medo, abjeção e maravilhamento – sentimentos que, segundo Noel
longas-metragens – que de alguma forma podem ter pautado sua obra posterior, inclusive do Carroll, em Filosofia do horror ou paradoxos do coração (2000), compõem precisamente
ponto de vista comercial: Calafrios (1976), Enraivecida na fúria do sexo (1977) e Os filhos do a equação do horror artístico.
medo (1979). Sucessos de público dentro do Canadá e progressivamente de crítica fora do Nesse sentido, as preocupações de Cronenberg ligam seu trabalho definitivamente
país, esses filmes fizeram de Cronenberg um nome reconhecido mundialmente, tanto como ao horror, pois suas histórias sobre a violência que assombra igualmente monstros e
inventor (possivelmente um dos últimos) dentro do gênero horror quanto como autor original, vítimas foi logo percebida como uma potente renovação, tanto por amantes quanto
dotado de preocupações específicas relativas à posição ocupada pelo corpo humano no contexto por produtores do gênero. E seja porque ele já se interessasse pelo gênero, seja porque
contemporâneo. não teve outra saída, o fato é que a vinculação do começo de sua carreira no longa-
Evidentemente, o fato do horror ser, ao lado da pornografia, um dos gêneros cinematográficos metragem à Cinépix (produtora exploitation canadense), que produziu Calafrios e
que mais obviamente se concentra na experiência do corpo, possivelmente nos ajude a Enraivecida, definiu caminhos que configuraram uma relação muito especial entre
compreender essa dupla posição de Cronnemberg, tanto como representante de um cinema de o desenvolvimento de um gênero e um trabalho bastante particular de autoria
gênero vinculado até mesmo ao circuito de exploração quanto a um projeto autoral em busca cinematográfica.
da diferenciação individual através da representação do corpo como locus privilegiado para a Pois os filmes feitos com a Cinépix, além de trazerem o tema central de Cronenberg
discussão de uma crise muito mais ampla em torno da experiência humana. das ameaças simultaneamente externas e internas dos corpos, já traziam também
Como aqui se pretende explorar questões relativas ao horror na obra de Cronenberg, vale outros tropos específicos que seriam revistos na obra do diretor em variadas versões,
começar por algumas discussões contemporâneas sobre esse gênero, já que elas, sem dúvida, como a presença de personagens ligados ao mundo da ciência e/ou da investigação;
jogam luzes sobre a obra do cineasta canadense. Dentre as diferentes abordagens e acepções as experiências científicas invasivas que levam o corpo a modificações profundas e
do chamado horror artístico que circularam nos últimos 30 anos, período em que as variadas irreversíveis; as corporações misteriosas com propósitos idem; o mundo dominado por
expressões desse gênero ganharam particular atenção dos estudos acadêmicos no âmbito tecnologias da medicina e da comunicação; a sexualidade agressiva e pouco sentimental;
internacional, o pesquisador Jack Morgan, em The biology of horror – Gothic literature and a ameaça contida nas figuras femininas, quase sempre desencadeadoras da instabilidade.
film (2002), apresenta uma interpretação que parece dialogar diretamente com a visão de Em particular sobre a questão da ameaça do feminino, são exemplos emblemáticos
Cronenberg, ainda que a obra do cineasta não seja analisada por ele em específico. Enraivecida na fúria do sexo e Os filhos do medo (já realizado fora da Cinépix), que
Para Morgan, a ficção de horror estaria ligada a um aspecto da vida mental em que nossa abordaram temas depois retomados por Cronenberg nos anos 1980 em obras
constituição fisiológica é mais notadamente sentida, o que faria do gênero horror, na verdade, mundialmente aclamadas como Videodrome – A síndrome do vídeo (1982), A mosca
um “bio-horror” (2002, p. 03). Segundo ele, o horror nasceria de nossa tomada de consciência (1986) e Gêmeos – mórbida semelhança (1988). Porém, nos seus filmes dos anos 1970,
do corpo como um organismo vivo cuja existência, até certo ponto, independe dos desígnios da a centralidade do horror no corpo feminino e o imediatismo das metáforas aponta
mente. Essa existência “independente” do corpo, ligada a experiências extremas e inescapáveis
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de maneira mais direta para uma visão do corpo da mulher como mais sujeito à
como a gravidez e o parto, o sonho e o pesadelo, a morte e a doença, a fome e a defecação etc, manipulação e ao descontrole, algo que será relativizado em suas obras ao longo da
estaria, segundo ele, na fonte primária em que bebe a ficção de horror. década seguinte.
Seguindo em seu raciocínio, Morgan nos lembra de que o sangue exposto, a dor e o Em Enraivecida, uma dupla de médicos trapalhões, ironicamente chamados de
desmembramento, por exemplo, são fatos do cotidiano de nossa vida física, ao mesmo tempo Dr. Keloid (referência aos quelóides, tipos indesejáveis de cicatrizes pós-operatórias) e
em que podem constituir-se como verdadeiros fantasmas em nossa imaginação. Em suas Dr. Cypher (referência às “cifras” financeiras) provocam um imenso estrago ao tentar
salvar Rose (interpretada pela atriz estadunidense Marilyn Chambers, então uma das maiores obtendo retorno significativo fora do circuito de exploitation.

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estrelas do cinema pornográfico mundial), uma jovem que sofre terríveis mutilações após um O interesse gerado pela história das crianças assassinas saídas das entranhas do ódio de uma
acidente de motocicleta. Ao operarem-na usando um tipo de intervenção genética ainda em fase mãe daria origem finalmente ao primeiro grande sucesso internacional de Cronenberg, Scanners
experimental, eles acabam criando uma mutação que consiste no surgimento de uma vagina – Sua mente pode destruir (1981), lançado dois anos depois, no qual temos as aventuras de um
dentada na axila da mulher, de dentro da qual sai uma espécie de seringa que, ao sugar o sangue grupo de duzentas e trinta e sete pessoas espalhadas pelo mundo cujo “dom”, desenvolvido
das vítimas, espalha uma epidemia de raiva entre a população. O plot bizarro e a presença através de mutação genética, é explodir as cabeças de seus inimigos apenas com o poder da
de uma estrela pornô não permitiam nenhum engano: tratava-se de um filme de exploração, mente, além de outras capacidades telepáticas menos espetaculares. Em Scanners, como em Os
daqueles cujo tema é suficiente para atrair enormes platéias – como, de fato, atraiu. Consta que filhos do medo, temos personagens que dão vida independente a perturbações psicológicas, mas
o filme foi a maior bilheteria da história da Cinépix e da co-produtora governamental Canadian a questão do feminino ganha uma pequena trégua até ser retomada de maneira mais ambígua
Film Develpment Corporation (CFDC), com cerca de sete milhões de espectadores no mundo em Videodrome – a síndrome do vídeo, feito no ano seguinte.
todo (Cf. RODLEY, 2005, xvii). Pensando em termos da tradição do horror, temos nesses filmes uma combinação não
Mas não se tratava apenas de um filme ligeiro destinado a atrair espectadores sedentos por exatamente nova em seu sentido estrutural (afinal, podemos observar várias semelhanças, por
sangue e sexo. Se, por um lado, acompanhamos de maneira aterradora a disseminação da doença exemplo, com o prototípico Frankenstein, tão citado quando se fala nos primeiros filmes de
entre dezenas de personagens, em algo que se aproxima por vezes do filme de zumbi, também Cronenberg), mas certamente diferenciada na forma muitas vezes “fria” como se apresenta,
testemunhamos a deprimente entrega da vítima/vilã à sua nova condição. Não há julgamentos vinculando-se de maneira muito evidente à linguagem cientifica e à naturalidade com que esta
morais, apenas a descida aos infernos de novos corpos que desenvolvem necessidades homicidas se vê utilizada a partir da segunda metade do século XX. Afinal, não apenas as modificações
urgentes. O filme foge do moralismo fácil freqüente no cinema de exploração (em geral físicas causadas por fatores externos que são discutidas, por exemplo, em Frankenstein, mas
usado para justificar produções escandalosas com falsas mensagens redentoras ou denúncias também as ameaças “internas” já estavam presentes em toda a tematização da loucura que
sensacionalistas), mas também evita explicar demais suas metáforas ou aprofundar análises se observa em boa parte das histórias de horror psicológico do final do século XIX e de todo
psicológicas. É como se Cronenberg filmasse as desventuras de Rose e de suas vítimas no calor o século XX. No entanto, nos filmes de Cronenberg aqui mencionados, a psicologia parece
dos acontecimentos, parecendo buscar uma observação “neutra” do fenômeno que acomete suplantada pelo corpo em plena mutação, e esta marca será fundamental para a compreensão
os personagens. Isso dá ao filme um sentido “inaugural” para a obra do cineasta, já que seu da maioria de seus filmes posteriores.
longa anterior, Calafrios, tinha um caráter satírico e (anti)moralista muito mais evidente do Evidentemente, suas idéias estão em franco diálogo tanto com discussões da medicina
que o estranhamento que encontramos em Enraivecida e que veremos nos filmes posteriores. moderna e suas técnicas de engenharia genética e clonagem, quanto com as preocupações
E, nesse momento de inauguração da obra, é no corpo da mulher que se concentra a fonte da que envolvem tecnologias de comunicação como a realidade virtual. Este segundo aspecto,
ameaça, representada por uma espécie de monstro hermafrodita surgido em seu corpo através aliás, revela um elemento bastante específico da obra de Cronenberg, que é seu contato com a
da intervenção irresponsável masculina. Escola de Toronto e o pensamento de Marshal McLuhan, teórico canadense que via os meios de
Já em Os filhos do medo, o pavor do corpo feminino é muito mais evidente, e há motivos comunicação como extensões físicas do homem – tema muito freqüente na obra de Cronenberg
contingenciais para isso. Nesse filme, temos uma história remotamente autobiográfica em que e central em filmes de diferentes fases como Videodrome (1982), eXistenZ (1999) e, se quisermos,
Cronenberg retrata a separação de um casal que entra em crise a partir de uma perturbadora de maneira metafórica, em Os filhos do medo, no qual o que deveria ser a palavra oralizada se
doença mental que acomete a mulher. Ela é Nola Cavereth (interpretada por Samantha Eggar), transforma numa entidade materializada e teleguiada por desejos humanos assassinos.
que, inconformada com o fim do relacionamento e com as dificuldades de cuidar da filha Esse diálogo estabelecido por Cronenberg simultaneamente com questões de seu tempo
pequena, submete-se a uma terapia intensiva comandada pelo polêmico psiquiatra Hal Raglan e com a tradição horrorífica de dois séculos joga de modo bem específico com a discussão
(Oliver Reed). proposta por Jack Morgan. Afinal, o escritor nos lembra de que a natureza da nossa percepção
O problema é que o tratamento do Dr. Raglan tem por objetivo gerar, a partir de técnicas e conceitualização do mundo é centrada no corpo, num cruzamento muito particular de
do piscodrama, o que ele chama de psicoplasma, ou seja, uma expressão física dos terrores cultura e natureza. Para legitimar seu raciocínio, ele acrescenta: “órgãos como o olho e o
psicológicos. Mas Nola desenvolve essa capacidade de maneira muito mais extensa do que ouvido envolviam o que Coleridge [Samuel Taylor Coleridge, 1772-1834, um dos ideólogos
Raglan poderia imaginar: seu corpo cria um novo órgão reprodutor externo, um imenso útero do romantismo literário inglês] chamava de imaginação primária”, ou seja, “são órgãos ativos
capaz de parir, por geração espontânea, dezenas de crianças deformadas cujo único objetivo e inteligentes, e não apenas receptores do material que depois será processado pelas faculdades
é perpetrar a vingança da mãe contra seus pais abusivos, seu ex-marido interessado apenas racionais”. (2002, p. 02).
em proteger a filha, o médico que tentará controlá-los e todos os outros que se colocarem De fato, a corrente de pensamento discutida por Coleridge no começo do século XIX está
no caminho. O horror relativo ao parto e ao poder da maternidade neste filme é evidente, na origem do horror gótico inglês tratado por Morgan como gótico. E este, como se sabe, esteve
sobretudo quando nos dá a oportunidade de ver o nascimento dos monstros de Nola em todos vinculado diretamente às idéias românticas que recolocaram as questões do espírito na vida
os detalhes, sob o olhar horrorizado do marido Frank. E, ao percebermos em Nola um enorme física, redescobrindo o corpo e a natureza, discutindo as possibilidades da irracionalidade e da
orgulho por seus novos poderes, vemos que há uma tomada de partido contra a personagem liberdade dos instintos. Esse movimento, que em muitos sentidos questionava a racionalidade
feminina, diferentemente do filme anterior. De certa forma, em Os filhos do medo, parece haver iluminista, fazia a defesa da sensibilidade física e mesmo da exploração do grotesco e da feiúra
uma “purgação” do feminino na obra de Cronenberg. como motivos estéticos legítimos, e seu legado para a ficção de horror até hoje é inegável.
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Produzido ainda com apoio do CFDC, Os filhos do medo teve um orçamento mais robusto Porém, como descreve Judith Hallberstan (1995, p. 3), uma diferença crucial entre o
e maiores ambições artísticas, aproveitando a fama internacional já obtida pelo diretor, a ponto horror romântico do século XIX e o horror que se desenvolveu ao longo do século XX, é que o
de seu nome aparecer em primeiro lugar nos créditos iniciais Na verdade, a obra adaptava as primeiro funcionava, retoricamente, como uma metáfora da ambígua subjetividade moderna,
questões desenvolvidas anteriormente por Cronenberg ao modelo do horror mais tradicional, e desequilibrando os “lados de dentro e de fora” do ser humano, seus aspectos masculinos e
possivelmente essa adequação aos cânones do gênero também se deu por motivos comerciais, já femininos, as dicotomias entre o corpo e o espírito, o nativo e o forasteiro, o burguês e o
que os produtores lançaram o filme em mais de quatrocentas salas somente nos Estados Unidos, aristocrático, etc, fazendo uso de excessos “ornamentais” e de uma variedade de significados
que o transformaram em uma fonte inesgotável de novas
David Cronenberg e o

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interpretações. Já o que se verificou ao longo do século

cinema bio-tecnológico
XX, segundo a autora (Ibid, p. 4) pode ser identificado
como uma espécie de “frenesi do visível”, não se tratando
mais de um recurso retórico da modernidade, mas de uma
experiência cada vez mais sensorial e também pautada
na nova subjetividade da vida moderna urbana, com seu por Ivana Bentes
estímulos, acidentes e automatismos.
E é aqui que se percebe a diferença de Cronenberg em
relação às preocupações mais freqüentes no romantismo O projeto estético de uma nova sexualidade nos filmes de Cronenberg em especial em Crash e eXistenZ.
analisado por Morgan. O canadense raramente parece Erotização e fetichização do maquínico. Corpo, Cinema e próteses tecnológicas. O Cinema biotecnológico.
interessado em discutir em profundidade os sentimentos
de seus personagens, ao contrário do que percebe em A relação do cinema contemporâneo com as novas tecnologia e esse superinvestimento do corpo
obras românticas como Frankenstein. Há, em seus filmes, é indissociável de um quadro científico e cultural que passa pelos mais diferentes saberes: informática,
uma racionalidade quase cientifica e uma entrega às neurociências, cibernética, design, com uma valorização das ciências do vivo, com metáforas e imagens
circunstâncias que acaba por centralizar o horror físico de vindas da biologia, da indústria e da informática.
maneira muito mais intensa do que Morgan atribui à ficção A biologia como campo de problematização do vivo traz conceitos decisivos, como os de auto-
gótica/romântica. Pois o horror, para Cronenberg, está organização, morfogênese (gênese da forma), o modelo das redes neurais. Estes conceitos, trabalhados
precisamente na percepção dos corpos como o verdadeiro no campo da arte e do cinema, produzem novos efeitos e discursos.
espaço do mistério. E ele vai mais adiante: em seus filmes, Podemos falar da aparição, nos anos 90, de ready mades biológicos, objetos/seres híbridos
o horror não está apenas na vulnerabilidade dos corpos produzidos por uma “arte evolucionária” que toma a evolução biológica e as proposições da bio-
mortais representados, mas também nas conseqüências tecnologia como questões a serem trabalhadas pelo cinema, na produção não apenas de novas imagens
horroríficas de uma cultura organizada em torno da e imaginários, mais ainda de novas estéticas. A própria imagem digital ganha hoje características do
separação entre corpo e mente, que parece dar aos seres ser vivo, com a produção da imagem por metamorfoses, anamorfoses, com programas capazes de se
humanos uma falsa impressão de controle – impressão esta “auto-organizar”, evoluir e se individualizar, produzindo imagens “vivas”.
que, pelo menos na visão trazida por suas obras, não pode Se, hoje, podemos falar de um desenvolvimento pós-biológico do vivo (clones, próteses,
acabar bem. implantes), que co-evolui com a tecnologia, podemos falar também de uma co-evolução da arte com
as tecnologias emergentes na produção de uma bio-estética, uma estetização do vivo.
Referências A problematização do maquínico e do vivo pela arte contemporânea é sintomática de uma
CARROLL, Nöel. A Filosofia do Horror ou Paradoxos do passagem do modelo industrial e mecânico para os modelos biotecnológicos. Evolutionary Art
Coração. Campinas: Papirus Editora, 1999. Imaginaire, de Steven Rook, cria, por exemplo, uma árvore genealógica de uma imagem digital.
HALLBERSTAN, Judith. Skin Shows: Gothic Horror and the Imagens que são criadas, nascem, crescem, se reproduzem (por clonagem ou mutações), envelhecem
Technology of Monsters. Durham:
e morrem segundo uma lógica genética e o mapa de seu DNA. Um darwinismo estético que começa
Duke Univesrtity Press, 1995.
MORGAN, Jack. The Biology of Horror: Gothic Literature and
numa sopa primordial feita de equações matemáticas que darão origem a diferentes padrões de formas
Film. Southern Illinoys Press, 2002. e cores. A imagem ganha características do vivo da mesma forma que o vivo torna-se objeto estético.
RODLEY, Chris. Cronenberg on Cronenberg. Londres: Faber Algo de similar acontece hoje quando o corpo-prótese torna-se o suporte da arte ou persongem
& Faber, 2005. do cinema, quando se faz uma utilização técnica e estética das suas funções (movimentos dos olhos,
batimentos cardíacos, pulsão dos orgãos, pressão arterial, fluxos) ou quando o corpo torna-se um
Laura Cánepa é doutora em Multimeios pela Unicamp objeto híbrido, como nos filmes de David Cronenberg (Videodrome, A Mosca, Gêmeos, Crash e
(2008), mestre em Ciências da Comunicação pela eXistenZ ) afetado por implantes, funcionando com componetes sintéticos, próteses, quando a
ECA-USP e graduada em Jornalismo pela URFGS .
tecnologia é implantada na carne, produzindo um “corpo amplificado” (upgradado pela tecnologia).
Atualmente, é professora do Mestrado em Comunicação
da Universidade Anhembi Morumbi e membro do Conselho O que a biotecnologia coloca em questão é a própria definição do que é humano.
Deliberativo da SOCINE. Tem vários artigos publicados Em Crash, de David Cronenberg, essa nova interface do cinema, está relacionada com a
sobre filmes de horror e mantém o blog Medo de Quê? possibilidade de experimentar uma nova sexualidade e subjetividade, maquínica, atravessada pelo
(http://www.horrorbrasileiro.blogspot.com), com dados de trágico e pelo fetiche.
sua pesquisa sobre o horror no cinema brasileiro. No filme, a busca dos personagens por um novo erotismo e uma erotização da cidade e das
máquinas, passa pela modificação e moldagem dos corpos e do olhar. Crash explora a pulsão escópica
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e a erotização do olho, que se deleita passeando pela superfície metálica de carros (novos e usados,
saídos da loja ou destruídos em acidentes que expõem suas ferragens e engrenagens).
Explora também a superfície perfurada, costurada, lisa e estriada dos corpos: cicatrizes médicas,
tatuagens, perfurações, aberturas genitais em contraste com os corpos lisos e as superfícies sedosas e
reluzentes da pele jovem ou de máquinas e próteses metálicas.
A relação entre sangue, aço e sexo (corpos contorcidos entre ferragens, corpos sustentados por

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