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David Cronenbeg
particulares da nossa situação bio-existencial” (Ibid, 04). Para o autor, então, esse tipo
de ficção emana diretamente das agonias e exigências de nossa vida física: no horror,
“nossos medos psicológicos”, diz ele, “realizam-se em termos bastante concretos” (Ibid,
de maneira mais direta para uma visão do corpo da mulher como mais sujeito à
como a gravidez e o parto, o sonho e o pesadelo, a morte e a doença, a fome e a defecação etc, manipulação e ao descontrole, algo que será relativizado em suas obras ao longo da
estaria, segundo ele, na fonte primária em que bebe a ficção de horror. década seguinte.
Seguindo em seu raciocínio, Morgan nos lembra de que o sangue exposto, a dor e o Em Enraivecida, uma dupla de médicos trapalhões, ironicamente chamados de
desmembramento, por exemplo, são fatos do cotidiano de nossa vida física, ao mesmo tempo Dr. Keloid (referência aos quelóides, tipos indesejáveis de cicatrizes pós-operatórias) e
em que podem constituir-se como verdadeiros fantasmas em nossa imaginação. Em suas Dr. Cypher (referência às “cifras” financeiras) provocam um imenso estrago ao tentar
salvar Rose (interpretada pela atriz estadunidense Marilyn Chambers, então uma das maiores obtendo retorno significativo fora do circuito de exploitation.
Produzido ainda com apoio do CFDC, Os filhos do medo teve um orçamento mais robusto Porém, como descreve Judith Hallberstan (1995, p. 3), uma diferença crucial entre o
e maiores ambições artísticas, aproveitando a fama internacional já obtida pelo diretor, a ponto horror romântico do século XIX e o horror que se desenvolveu ao longo do século XX, é que o
de seu nome aparecer em primeiro lugar nos créditos iniciais Na verdade, a obra adaptava as primeiro funcionava, retoricamente, como uma metáfora da ambígua subjetividade moderna,
questões desenvolvidas anteriormente por Cronenberg ao modelo do horror mais tradicional, e desequilibrando os “lados de dentro e de fora” do ser humano, seus aspectos masculinos e
possivelmente essa adequação aos cânones do gênero também se deu por motivos comerciais, já femininos, as dicotomias entre o corpo e o espírito, o nativo e o forasteiro, o burguês e o
que os produtores lançaram o filme em mais de quatrocentas salas somente nos Estados Unidos, aristocrático, etc, fazendo uso de excessos “ornamentais” e de uma variedade de significados
que o transformaram em uma fonte inesgotável de novas
David Cronenberg e o
cinema bio-tecnológico
XX, segundo a autora (Ibid, p. 4) pode ser identificado
como uma espécie de “frenesi do visível”, não se tratando
mais de um recurso retórico da modernidade, mas de uma
experiência cada vez mais sensorial e também pautada
na nova subjetividade da vida moderna urbana, com seu por Ivana Bentes
estímulos, acidentes e automatismos.
E é aqui que se percebe a diferença de Cronenberg em
relação às preocupações mais freqüentes no romantismo O projeto estético de uma nova sexualidade nos filmes de Cronenberg em especial em Crash e eXistenZ.
analisado por Morgan. O canadense raramente parece Erotização e fetichização do maquínico. Corpo, Cinema e próteses tecnológicas. O Cinema biotecnológico.
interessado em discutir em profundidade os sentimentos
de seus personagens, ao contrário do que percebe em A relação do cinema contemporâneo com as novas tecnologia e esse superinvestimento do corpo
obras românticas como Frankenstein. Há, em seus filmes, é indissociável de um quadro científico e cultural que passa pelos mais diferentes saberes: informática,
uma racionalidade quase cientifica e uma entrega às neurociências, cibernética, design, com uma valorização das ciências do vivo, com metáforas e imagens
circunstâncias que acaba por centralizar o horror físico de vindas da biologia, da indústria e da informática.
maneira muito mais intensa do que Morgan atribui à ficção A biologia como campo de problematização do vivo traz conceitos decisivos, como os de auto-
gótica/romântica. Pois o horror, para Cronenberg, está organização, morfogênese (gênese da forma), o modelo das redes neurais. Estes conceitos, trabalhados
precisamente na percepção dos corpos como o verdadeiro no campo da arte e do cinema, produzem novos efeitos e discursos.
espaço do mistério. E ele vai mais adiante: em seus filmes, Podemos falar da aparição, nos anos 90, de ready mades biológicos, objetos/seres híbridos
o horror não está apenas na vulnerabilidade dos corpos produzidos por uma “arte evolucionária” que toma a evolução biológica e as proposições da bio-
mortais representados, mas também nas conseqüências tecnologia como questões a serem trabalhadas pelo cinema, na produção não apenas de novas imagens
horroríficas de uma cultura organizada em torno da e imaginários, mais ainda de novas estéticas. A própria imagem digital ganha hoje características do
separação entre corpo e mente, que parece dar aos seres ser vivo, com a produção da imagem por metamorfoses, anamorfoses, com programas capazes de se
humanos uma falsa impressão de controle – impressão esta “auto-organizar”, evoluir e se individualizar, produzindo imagens “vivas”.
que, pelo menos na visão trazida por suas obras, não pode Se, hoje, podemos falar de um desenvolvimento pós-biológico do vivo (clones, próteses,
acabar bem. implantes), que co-evolui com a tecnologia, podemos falar também de uma co-evolução da arte com
as tecnologias emergentes na produção de uma bio-estética, uma estetização do vivo.
Referências A problematização do maquínico e do vivo pela arte contemporânea é sintomática de uma
CARROLL, Nöel. A Filosofia do Horror ou Paradoxos do passagem do modelo industrial e mecânico para os modelos biotecnológicos. Evolutionary Art
Coração. Campinas: Papirus Editora, 1999. Imaginaire, de Steven Rook, cria, por exemplo, uma árvore genealógica de uma imagem digital.
HALLBERSTAN, Judith. Skin Shows: Gothic Horror and the Imagens que são criadas, nascem, crescem, se reproduzem (por clonagem ou mutações), envelhecem
Technology of Monsters. Durham:
e morrem segundo uma lógica genética e o mapa de seu DNA. Um darwinismo estético que começa
Duke Univesrtity Press, 1995.
MORGAN, Jack. The Biology of Horror: Gothic Literature and
numa sopa primordial feita de equações matemáticas que darão origem a diferentes padrões de formas
Film. Southern Illinoys Press, 2002. e cores. A imagem ganha características do vivo da mesma forma que o vivo torna-se objeto estético.
RODLEY, Chris. Cronenberg on Cronenberg. Londres: Faber Algo de similar acontece hoje quando o corpo-prótese torna-se o suporte da arte ou persongem
& Faber, 2005. do cinema, quando se faz uma utilização técnica e estética das suas funções (movimentos dos olhos,
batimentos cardíacos, pulsão dos orgãos, pressão arterial, fluxos) ou quando o corpo torna-se um
Laura Cánepa é doutora em Multimeios pela Unicamp objeto híbrido, como nos filmes de David Cronenberg (Videodrome, A Mosca, Gêmeos, Crash e
(2008), mestre em Ciências da Comunicação pela eXistenZ ) afetado por implantes, funcionando com componetes sintéticos, próteses, quando a
ECA-USP e graduada em Jornalismo pela URFGS .
tecnologia é implantada na carne, produzindo um “corpo amplificado” (upgradado pela tecnologia).
Atualmente, é professora do Mestrado em Comunicação
da Universidade Anhembi Morumbi e membro do Conselho O que a biotecnologia coloca em questão é a própria definição do que é humano.
Deliberativo da SOCINE. Tem vários artigos publicados Em Crash, de David Cronenberg, essa nova interface do cinema, está relacionada com a
sobre filmes de horror e mantém o blog Medo de Quê? possibilidade de experimentar uma nova sexualidade e subjetividade, maquínica, atravessada pelo
(http://www.horrorbrasileiro.blogspot.com), com dados de trágico e pelo fetiche.
sua pesquisa sobre o horror no cinema brasileiro. No filme, a busca dos personagens por um novo erotismo e uma erotização da cidade e das
máquinas, passa pela modificação e moldagem dos corpos e do olhar. Crash explora a pulsão escópica
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e a erotização do olho, que se deleita passeando pela superfície metálica de carros (novos e usados,
saídos da loja ou destruídos em acidentes que expõem suas ferragens e engrenagens).
Explora também a superfície perfurada, costurada, lisa e estriada dos corpos: cicatrizes médicas,
tatuagens, perfurações, aberturas genitais em contraste com os corpos lisos e as superfícies sedosas e
reluzentes da pele jovem ou de máquinas e próteses metálicas.
A relação entre sangue, aço e sexo (corpos contorcidos entre ferragens, corpos sustentados por