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ISBN: 978-85-5702-0085

© 2019. Gláucia Davino. Núcleo Audiovisual (CNPq) – PPG EAHC - Universidade Presbiteriana Mackenzie

Este livro traz textos e artigos enviados pelos participantes do IX Seminário Histórias de Roteiristas: Narrativas difusas em
suportes sensíveis, realizado em setembro de 2018, na Universidade Presbiteriana Mackenzie e resultante das atividades
desenvolvidas em conjunto. O livro é composto por: artigos individuais e/ou coletivos enviados a critério de cada participante
das sessões de trabalhos acadêmicos (GTs e Mesas Temáticas) - e pelos resumos dos projetos audiovisuais, das Sessões das
Rodadas de Projetos. Ao enviarem seus textos, os respectivos autores cederam os direitos para fins dessa publicação. No
entanto, cada autor(a) é plena e totalmente responsável pelos conteúdos intelectuais, assim como pelas opiniões, veracidade dos
dados, das fontes, das imagens, dos direitos a eles vinculados, pelo bom uso da língua, o bom uso das normas acadêmicas de
escrita e demais direitos legais que englobam seus artigos/textos/resumos. Também não refletem o ponto de vista da UPM, dos
membros da organização do evento e nem da editora.
É permitida a reprodução parcial ou total desta obra, desde que citada a fonte.

Capa, editoração e projeto gráfico


Glaucia Davino
Sheila Cristina Silva Aragão Caetano

Logotipo – Arte
Júlia Mussarelli

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

D259 Narrativas Difusas em Suportes Sensíveis (8. : 2018 : São Paulo, SP)
Histórias de Roteiristas: Narrativas Difusas em Suportes Sensíveis [livro
eletrônico] / Glaucia DAVINO (org.) – São Paulo : Corpo Texto, 2019. 629 p.
20 MG : il. ; PDF

Inclui referências bibliográficas.


Realização Gláucia Davino, pelo Centro de Educação, Filosofia e Teologia, Centro
de Comunicação e Letras. Programa de Pós-Graduação em Educação, Arte e
História da Cultura da Universidade Presbiteriana Mackenzie, Grupo de Pesquisa
Núcleo Audiovisual
ISBN 978-85-5702-008-5

1. Roteiros cinematográficos. 2. Roteiros de televisão. 3. Narrativas Audiovisuais.


4. Cinema - Crítica e interpretação. 5. Adaptações para o cinema. I. Davino,
Glaucia Eneida, org. II. Título.
CDD 791
CDU 778.5

-I-
Grupo de Pesquisa NGrupo de Pesquisa NÚCLEO
AUDIOVISUAL (CNPq) – UPM
Líder – Gláucia Davino
Vice-Líder – Fernanda Nardy Bellicieri

Grupo de Pesquisa ARTEMÍDIA VIDEOCLIP


(CNPq) - Instituto de Artes UNESP
Líder – Pelópidas Cypriano de Oliveira Pel
Vice-líder – Letícia Passos AffiniDigite para

LHUDI (Laboratório de Humanidades Digitais) –


UPM
Coordenador: Gláucia Davino e Wilton Azevedo (in
memorian)

REDINAV (Red Ibero Americana de Narrativa


Audiovisuales)
Presidente: Denis Porto Renó

Associação Brasileira de Autores Roteiristas


Coordenador das atividades do evento, 2018: David
Mendes

Site 2018: https://2018roteiristas.wixsite.com/9shr


- II -
COMISSÃO DE HONRA
UNIVERSIDADE PRESBITERIANA MACKENZIE

REITOR
Prof. Dr. Benedito Guimarães Aguiar Neto

VICE-REITOR
Prof. Dr. Marco Tullio de Castro Vasconcelos

PRÓ-REITORA DE GRADUAÇÃO E ASSUNTOS ACADÊMICOS


Profa. Dra. Marili Moreira da Silva Vieira

PRÓ-REITOR DE EXTENSÃO E EDUCAÇÃO CONTINUADA


Prof. Dr Jorge Alexandre Onoda Pessanha

PRÓ-REITOR DE PESQUISA E PÓS-GRADUAÇÃO


Prof. Dr. Paulo Batista Lopes

COORDENADORA GERAL DE PÓS-GRADUAÇÃO STRITO SENSU (CPGS)


Profa. Dra. Maria Cristina Triguero Veloz Teixeira

CHEFE DE GABINETE DA REITORIA


Prof. Dr. Wilson do Amaral Filho

SECRETARIA DOS CONSELHOS SUPERIORES E DE CONTROLE ACADÊMICO


Prof. Dr. Cleverson Pereira de Almeida

COMISSÃO INSTITUCIONAL
UNIVERSIDADE PRESBITERIANA MACKENZIE

PPG EDUCAÇÃO ARTE E HISTÓRIA DA CULTURA - EAHC/ CEFT

Prof. Dr. Mário Sergio Batista


Diretor do CEFT e docente no PPG EAHC

Prof. Dr. Marcelo Martins Bueno


Coordenador e docente no PPG EAHC - CEFT

Prof. Dr. José Cássio Másculo


Coordenador de Atividades Complementares e Extensão CEFT

CENTRO DE COMUNICAÇÃO E LETRAS - CCL


Prof. Dr. Marcos Nepomuceno Duarte
Diretor e Docente do CCL
Profa. Dra. Fernanda Nardy Bellicieri
Coordenadoras de TCC e Pesquisa do CCL
Prof. Dr. Perrotti Pasquale Pietrangelo
Coordenador de Atividades Complementares e Extensão CCL

- III -
COMISSÃO ORGANIZADORA
UNIVERSIDADE PRESBITERIANA MACKENZIE
(por nome, em ordem alfabética)

PPG EDUCAÇÃO ARTE E HISTÓRIA DA CULTURA - EAHC/ CEFT


CENTRO DE COMUNICAÇÃO E LETRAS - CCL

Profa. Dra. Gláucia Davino Presidente da comissão


Linguagens e Tecnocnologias (PPG EAHC) - Comissão de Eventos PPG EAHC

Profa. Dra. Fernanda Bellicieri


Linguagens e Tecnologias (PP CCL)

Prof. Dr. Marcel Mendes


Diretor CEFT

Prof. Dr. Marcelo Martins Bueno


Coordenador PPG EAHC - CEFT

Prof. Dr. Marcos Rizolli


Linguagens e Tecnologias (PPG EAHC)

Mestranda Marina Tavares


Linguagens e Tecnologias (PPG EAHC)

Profa. Dra. Mirian Celeste Ferreira Dias Martins


Formação do Educador para a Interdisciplinaridade (PPG EAHC) - Comissão de Eventos PPG EAHC

Profa. Dra. Rosana Maria Pires Barbato Schwartz


Culturas e Artes na Contemporaneidade (PPG EAHC e PUC) - Comissão de Eventos PPG EAHC

Profa. Dra. Claudia Hardhag


Formação do Educador para a Interdisciplinaridade (PPG EAHC)

COMISSÃO ORGANIZADORA
INSTITUIÇÕES PARCEIRAS
David França Mendes
ROTEIRISTA E DIRETOR
ABRA - Associação Brasileira
de Roteiristas Autores

Dra. Letícia Passos Affini


PPG - MS PROFISSIONAL TV DIGITAL UNESP

Dra. Mônica de Moraes Oliveira


PESQUISADORA EM CIÊNCIAS DA COMUNICAÇÃO VELAME PRODUTORA
Prof. Dr. Paulo Matias de Figueiredo Jr.
UNIVERSIDADE FEDERAL DE CAMPINA GRANDE (PB)
RODADAS DE PROJETOS
Prof. Dr. Pelópidas Cypriano de Oliveira
LIVRE DOCENTE PPG - IA UNESP - LÍDER DO ARTEMÍDIA VIDEOCLIP

- IV -
COMISSÃO CIENTÍFICA E AVALIADORES AD HOC

Adelina Maria Pereira da Silva (UA, Portugal)


Ariane Daniela Cole (UPM - FAU)
Alexandre S. Kieling (UCB)
Alfredo Caminos (UAB, Espanha)
Arlete Santos Petry (UFRN)
Casimiro Alberto Moreira Pinto
Celso Figueiredo (UPM - CCL)
Denise Cristine Paiero (UPM - CCL)
Elen Doppenschmitt (FIAM - FAAM)
Erika Savernini (EBA - UFMG, Minas Gerais)
Fernanda Nardy Bellicieri (UPM - CCL)
Flávia Seligman (UVS, Rio Grande do Sul)
Gláucia E. Davino (UPM - CEFT - PPGEAHC)
Helena Bonito do Couto Pereira (UPM - PPG Letras)
Henny Aguiar Bizarro Rosa Favaro (UPM)
Isabel Orestes da Silveira
João Massarolo (UFSCAR)
José da Silva Ribeiro (UFG e UA, Portugal)
José Estevão Favaro (UPM)
Letícia Passos Affini (UNESP)
Luciana Rodrigues Silva (FAAP - Cinema)
Marcel Mendes (UPM CEFT - PPG EAHC)
Marcelo Bueno (UPM -CEFT - PPG EAHC)
Márcia Perecin Tondato (ESPM)
Marcos Rizolli (UPM - CEFT - PPG EAHC)
Maria do Céu Martins Monteiro Marques (UA, Portugal)
Maria de Fátima Ferreira Nunes (CEMRI - Portugal)
Maria Luiza Guarnieri Atik (UPM - CCL)
Monica de Morais Oliveira (Velame)
Pelópidas Cypriano de Oliveira (IA - UNESP)
Regina Giora (UPM - CEFT - PPG EAHC)
Regina Lara (UPM - CEFT - PPG EAHC)
Rosana Maria Barbato Schwartz (UPM - CEFT - PPG EAHC)

-V-
SUMÁRIO

Prefácio: Histórias Sussurradas XV


Gláucia Davino e Rogério Pereira

Capítulo 1: Táticas Narrativas: Objetividades/Subjetividades 01

Fabular o presente - Isto não é um filme e a


subjetividade como um jogo de espaço/ Fable the
present - This is not a film and subjectivity as a game
of spaces
Márcio Henrique Melo de Andrade ............................................................. 02

Studio Ghibli: A fábrica de sonhos e sua estratégia de


consumo/ Studio Ghibli: dream factory and its
consumption strategy
Lilia Nogueira Calgagno Horta e Raquel Nogueira Calgagno
Horta ..............................................................20

O uso do crossover como estratégia narrativa no


Universo Cinematográfico Marvel: Estudo do Caso da
série Jessica Jones/ The crossover as a narrative
strategy on the Marvel Cinematic Universe: a case
study about Jessica Jones TV series
Laís Souza e Letícia Affini ..............................................................33

Joe Wright e o design da narrativa em Anna Karenina


Joe Wright and the design of narrative in Anna
Karenina
Rogério Pereira dos Santos, Samuel Peregrino Lima e
Marcelo Costa ..............................................................49

- VI -
Capítulo 2: Personagens: Dentro e/ou fora dos filmes 59

Entre ficção e realidade: “House of Cards” e o mundo


real/ Between fiction and reality: “House of Cards” and
the Real world
Giancarlo Casellato Gozzi .............................................................. 60

Formas do ‘cronotopo’ na telenovela brasileira:


exemplos da construção ficcional das categorias
tempo-espaço no realismo fantástico de Dias Gomes e
suas zonas de contato com a vida cotidiana brasileira
/The forms of 'chronotope' in Brazilian television
serial: the production of meanings of time-space forms
in soap operas by Dias Gomes and your relations with
Brazilian daily day life
Daniela Jakubaszko, Joyce Simplicia de Moraes e Lucas
Lunguinho Soares .............................................................. 74

Do impresso ao audiovisual: a minissérie Capitu/


From print to audiovisual: the miniseries Capitu
Maria Luiza Guarnieri Atik ............................................................... 94

Luís Buñuel e Pedro Almodóvar em busca dos


obscuros objetos do desejo e as subjetividades
femininas no cinema/ Luis Buñuel and Pedro
Almodóvar in search of the obscure objects of desire
and the feminine subjectivities in the cinema
Rosângela Canassa ............................................................ 112

- VII -
Capítulo 3: Multiplicidade Narrativa: Análises 119

Tragédia e deleite em conjunto: análise do filme “A


Forma da Água”/ Tragedy and delight together:
analysis of the film “The Shape of Water”
Isabel Orestes Silveira .............................................................120

A jornada do herói digital: a catábase como recurso


narrativo nos vídeo games / A digital hero’s journey:
the katabasis theme as as a narrative resource in video
games
Edmundo Gomes Junior .............................................................128

A poesia digital de Wilton Azevedo: Interpoesia – o


início da escritura expandida / The Digital Poetry of
Wilton Azevedo: Interpoesia - The Beginning of
Expanded Scripture
Maria LúciaWochler Pelaes ............................................................142

Capítulo 4: Contemporâneo Convergente 154

A Nostalgia na Obra de Wes Anderson: A Capacidade


Crítica do Olhar Nostálgico na Contemporaneidade /
Nostalgia in Wes Anderson’s Oeuvre: The Critical
Faculty of Nostalgic Vision in Contemporaneity
João Victor Nobrega ..........................................................155

A opinião pública em lançamentos de conteúdos no


YouTube/ The Public Opinion of Content Releases on
YouTube
Vitor Vaz de Freitas ...........................................................173

- VIII -
Análise Comparativa da Animação Brasileira: Estudo
das Características Estilísticas a Partir da Produção. /
Comparative Analysis of the brazilian animation:
study of the stylistic characteristics from the
production
David Ehrlich ............................................................187

GLOW: O início do Pro-Wrestling Feminino na visão


do Netflix./ GLOW: The start of Women's Pro-
Wrestling in Netflix's vision
Carlos Cesar Domingos do Amaral .............................................................202

Interfaces Gráficas e Narrativas Transmídia em Jogos


Digitais./ Graphic Interfaces and Narratives
Transmedia in Digital Games
Marina Jugue Chinem e Missila Loures CARDOZO .............................................................213

Narrativas convergentes e divergentes/ Convergent


and divergent storytellings
Alexandre S. Kieling e Clarissa Trein. ............................................................227

Capítulo 5 – Relações inerentes: Mídias em sociedade em mídias 246

Fotografias na Rua, Museu de Rua: Memórias


Resgatadas/Photos on the Street, Street Museum:
Memories Rescued.
Capítulo Coordenado pela profa.
Dra. Ingrid Hötte Ambrogi
Cyntia Campelo Schneider, Fernanda Maria Oliveira Araujo
e Márcio André Ferreira Pereira .............................................................247

- IX -
Meia Noite em Paris e a Metáfora da Saudade
Daquilo que não se Viveu: Reflexões sobre a Pós-
Modernidade, Retropia e Cansaço/ Midnight in Paris
and the Metaphor of the Saudade of What Not Lived:
Reflections on Post-Modernity, Retropia and Tiredness
Patricio Dugnani ............................................................. 263

Reverberações biopolíticas em Mar Adentro, de


Alejandro Amenábar / Biopolitical reverberations in
Mar Adentro, by Alejandro Amenábar
Alan dos Santos .............................................................275

Mulher Maravilha e o protagonismo feminino/


Wonder Woman and the feminine protagonism
Matilde Wrublevski e Yuri Garcia .............................................................288

Símbolos, arquétipos e regime de imagens da série


"Supermax" pelas perspectivas de Durand, Campbell
e Vogler/ Symbols, archetypes and image scheme of the
"Supermax" series by the perspectives of Durand,
Campbell and Vogler
Marcio Tadeu dos Santos ............................................................. 300

Capítulo 6: Métodos, Escolhas e Criação 317

Da telenovela à websérie: incursões do SBT em


transmídia infantojuvenil/ From the telenovela to the
web series: SBT incursions into transmedia for children
and teenagers
João Paulo Hergesel e Carolina de Oliveira Silva ............................................................. 318

-X-
Magnólia, de Paul Thomas Anderson: a tragédia
cotidiana e os Mitos/ Magnolia, by Paul Thomas
Anderson: dailytragedy and Myths
Sandra Trabucco Valenzuela .............................................................325

Capítulo 7 – Plataformas mediadoras: Saberes, Valores e Sociedade 333

Construindo o roteiro para podcasts educativos:


relatando uma experiência de produção e uso de
podcasts como recurso de apoio no processo de
ensino-aprendizagem no ensino superior/ The script
for educational podcasts: reporting an experience of
production and use of podcasts as a resource of support
in the teaching-learning process in higher education.
Fred Izumi Utsonomiya, Fernando Luis Cazarotto Berlezzi e
Cristine Fickelscherer de Mattos ............................................................334

A experiência da pré-produção como fator


fundamental para a elaboração de vídeos online de
divulgação científica/ The experience of pre-production
as a fundamental factor for the elaboration of online
videos of scientific dissemination
Ana Beatriz Camargo Tuma ............................................................351

Dialogismo e conhecimento prévio: aspectos


fundamentais para a produção de sentidos
Marlon Muraro ...........................................................358

Educomunicação e linguagem audiovisual:


(des)construção de roteiros no contexto da produção
de videoclipes/ Educommunication and audiovisual
language: (de)construction of scripts in context of video
clips production

Natália Rosa Muniz Sierpinski e


Felipe Gustavo Guimarães Saldanha ............................................................. 371

- XI -
Capítulo 8 Tradicionais parceiros ficcionais do cinema 384

História, Literatura e seus vestígios na adaptação do


livro Memória Impura para um roteiro de longa-
metragem/ History, Literature and its vestiges in the
adaptation of the book Impure Memory for a film
screenplay

Roberto Reiniger e Luiz Vadico. .............................................................385

Entrevista com a vampira: comparando narrativas e


desconstruindo discursos/ Interview with the vampire:
comparing narratives and deconstructing speeches
Natália Rosa Muniz Sierpinski e Marciel Aparecido
Consani. .............................................................401

As possíveis relações dialógicas com o cinema em a


catábase de Orfeu e de Eneias/ The possible dialogical
relations with the cinema in the katabasis of Orpheus
and Aeneas
Elaine Cristina Prado dos Santos. .............................................................417

Adaptações de mídias nas animações japonesas: A


transposição do livro 'O Castelo Animado' (1986), para
o filme 'O Castelo Animado' (2004)/ Media
adaptations in the Japanese animations: The
transposition of the book 'Howl’s Moving Castle'
(1986), for the film 'Howl’s Moving Castle' (2004)
Viktor Danko Perkusich Novaes. ............................................................. 427

O Pessimismo Cósmico de H. P. Lovecraft no Cinema/


H. P. Lovecraft’s Cosmic Pessimism in Cinema
Yuri Garcia ............................................................. 454

- XII -
Capítulo 9 A literatura como inspiração: histórias de roteiros e roteiristas 454
Capítulo organizado pela profa.
Dra. Maria Ignês Carlos Magno

Apresentação/ Presentation ............................................................. 455


Maria Ignês Carlos Magno

República dos assassinos, do romance-reportagem ao


filme: Aguinaldo Silva, escritor-roteirista/ Republic of
the assassins, from the novel-reportage to the film:
Aguinaldo Silva, writer and screenplayer
André Gustavo de Paula Eduardo ..............................................................456

Origens de Orgulho e Paixão: a literatura de Jane


Austen na telenovela brasileira/ Origins of Pride and
Passion: Jane Austen’s literature in Brazilian
telenovela
Camila Souto .............................................................468

As Diversas Faces do Desejo em A Dama da Lotação/


The diverse faces of desire in Lady on the Bus
Lays da Cruz Capeloz .............................................................477

Capítulo 10 O cinema como documento histórico 490

Capítulo organizado pela profa. Dra.


Rosana Maria Barbato Schwartz

Relatos Selvagens: exercício interpretativo do cinema


como documento da história/ Wild Tales:
interpretative exercise of cinema as a document of
history
Rosana M. B. Schwartz ............................................................491

- XIII -
A Literatura de Cordel no Cinema. Uma Análise da
Obra de Ariano Suassuna: O Auto da Compadecida
/The Literature of Cordel in the Cinema. An Analysis of
the Work of Ariano Suassuna: The Auto of
Compassionate
Adriana Maria Gonçalves Chiaradia .............................................................501

A imagem dos negros no cinema: Uma análise do


filme Pantera Negra/ The image of black people in
movies: An analysis of the film Black Panther
Sheila Cristina Silva Aragão Caetano ............................................................. 511

SESSÂO - Rodadas de Projetos 524

1_Sessão de RESUMOS EXPANDIDOS ..............................................................525

2_Sessão de RESUMOS SUBMETIDOS


para participação nas rodadas .............................................................530

MEMÓRIAS – PROGRAMAÇÃO 537

Folder Programação .............................................................538


Palestras .............................................................546
Workshops “Vivências e Experiências” .............................................................547

Site: https://2018roteiristas.wixsite.com/9shr

- XIV -
PREFÁCIO

HISTÓRIAS SUSSURRADAS

Os Seminários Histórias de Roteiristas fazem parte de um campo peculiar,


onde tensões e pulsões expandem, fragmentam e revelam a diversidade do
cenário audiovisual. Cenário este que se soma aos rastros das mudanças, às
efemeridades e às novas proposições criativas.

Na apuração movediça deste campo expandido se busca um ponto de equilíbrio


nem sempre localizado na métrica da equidistância: entre as epistemologias do
universo acadêmico (onde orbitam revisões, análises, reflexões, descobertas e
experimentos sistematizados) e os traços intrínsecos da concepção, produção e
compartilhamento de conteúdos (impulsionados pela atuação profissional,
pelos processos intelectuais e criativos, pelas demandas do fazer multifacetado
e pelos dispositivos audiovisuais).

A 9ª edição dos Seminários se atentou aos suportes da sensibilidade e da


percepção do difuso das narrativas, quando diferentes tons de vozes sussurram
suas histórias.

Neste Seminário, pesquisadores, roteiristas, criadores, profissionais, alunos,


agentes culturais, recém-chegados, professores, experts,
anônimos, estudantes etc. se reuniram num lugar onde todos puderam
ser narradores e narrados, i.e., num cenário em que histórias, de todos os
tipos, brotam espontaneamente.

GLAUCIA DAVINO
ROGÉRIO PEREIRA

- XV -
1
TÁTICAS
NARRATIVAS:
OBJETIVIDADES/
SUBJETIVIDADES
Fabular o presemte - Isto não é um filme e a subjetividade como um jogo de
espaços

Fable the present - This is not a film and subjectivity as a game of spaces

Márcio Henrique Melo de Andrade1

Resumo: Dirigido por Jafar Panahi e Mojtaba Mirtahmasb, Isto não é um filme (In Film
Nist, 2011) é um filme produzido inteiramente no apartamento de Panahi e retrata um dia
na vida do diretor enquanto cumpria prisão domiciliar sentenciada durante o governo de
Mahmoud Ahmadinejad. Ao tomar as bases do filme-diário, Panahi coloca a própria
subjetividade em um jogo de presença como uma estratégia que reverbera a liberdade de
construir mundos possíveis como gesto de imaginação particular e política: como elaborar
a si pode nos ajudar a elaborar o mundo e vice-versa? Ao deslocar uma paisagem íntima
de sua própria residência para torna-la ambiente para um filme que jamais poderia ser
filmado em outras condições, Panahi constrói sua narrativa como um gesto que nos
possibilita criar conexões com estudos relacionados aos conceitos de identidade e
subjetividade (SENNETT, 1999; GIDDENS, 2002; GARCIA-ROZA, 2007), ao
documentário autobiográfico (BERGALA, 1998; RENOV, 2005; LABBÉ, 2012) e ao
filme-diário (BERGALA, 1998; RASCAROLI, 2009). A partir de sua análise, pretende-
se compreender como o cineasta opera as imagens e as proposições imaginativas na sala
de estar do seu apartamento como um jogo que flexibiliza tempos e espaços do cotidiano.
A partir do diálogo da análise dessa obra com esses e outros autores, pretende-se
compreender o ato autobiográfico de Panahi como um gesto heterotópico (FOUCAULT,
2006, 2013) que nos possibilita perceber a autobiografia e a subjetividade no
documentário contemporâneo menos como ficções ligadas à memória e ao individual e
mais em suas dimensões de presença e política.
Palavras-chave: Documentário Autobiográfico; Subjetividade; Heterotopia; Filme-
Diário; Isto não é um filme.

Abstract: Directed by Jafar Panahi and Mojtaba Mirtahmasb, Ihis is not a film (In Film
Nist, 2011) is a film produced entirely in the apartment of Panahi and it recounts a day
in the life of the director while it was under house arrest sentenced during the government
of Mahmoud Ahmadinejad. By taking the basis of the diary film, Panahi places
subjectivity itself in a play of presence as a strategy that reverberates the freedom to
construct possible worlds as a gesture of private and political imagination: how
elaborating oneself can help us to elaborate the world and vice versa? By moving an
intimate landscape of his own residence to make it environment for a film that could never
be filmed under other conditions, Panahi constructs his narrative as a gesture that allows
us to create connections with studies related to the concepts of identity and subjectivity
(SENNETT, (BERGALA, 1998; RENOV, 2005; LABBÉ, 2012) and the diary film
(BERGALA, 1998; RASCAROLI, 2009). From his analysis, we intend to understand how

1
Doutorando em Comunicação (UERJ). Pesquisa desenvolvida com recursos da Fundação de Amparo à Pesquisa do
Estado do Rio de Janeiro - FAPERJ. Marcioh.andrade@gmail.com.
the filmmaker operates the images and the imaginative propositions in the living room of
his apartment as a game that flexibiliza times and spaces of daily life. From the dialogue
of the analysis of this work with these and other authors, we intend to understand the
autobiographical act of Panahi as a heterotopic gesture (FOUCAULT, 2006, 2013) that
allows us to perceive autobiography and subjectivity in contemporary documentary less
as related fictions to the memory and the individual and more in its dimensions of
presence and politics.
Key words: Autobiographic Documentary; Subjectivity; Heterotopia; Film-Journal;
This is not a film.

Da Subjetividade como Lugar de/em Construção

Espaço íntimo de uma casa. Uma câmera posicionada em uma mesa de café da
manhã. Um homem se senta e começa a comer. Enquanto come, faz pausas para conferir
coisas no celular. Essa é a primeira cena de Isto não é um filme (In Film Nist, 2011),
dirigido por Jafar Panahi e Mojtaba Mirtahmasb, filme produzido inteiramente no
apartamento do diretor iraniano Panahi quee retrata um dia na sua vida, enquanto cumpria
prisão domiciliar sentenciada durante o governo de Mahmoud Ahmadinejad. Num
exercício de denúncia, Panahi decide registrar seu dia a dia para, provavelmente, provocar
pressões na comunidade cinematográfica e mobilizar autoridades sobre sua condição
como prisioneiro. Assim como os jardins, parques e salas de estar habitados por crianças
se transformam, por alguns momentos, em altíssimas torres em que princesas precisam
ser resgatadas por um herói dotado das maiores virtudes, a casa de Panahi, dentro do
espaço e do tempo em que o filme acontece, a câmera cria um ambiente de vigilância que,
paradoxalmente, também se compõe como um espaço de liberdade. Nesse espaço de
visibilização da intimidade, o ato autobiográfico perpetrado por Panahi funciona não
somente para narrar um fato que constrói a história de sua existência, mas também como
a composição de uma narrativa do (e no) presente.

Para análise que se almeja realizar para esse filme, propõe-se refletir sobre três
aspectos que, na nossa leitura, parecem atravessar a experiência diante da obra de Panahi
– identidade, autobiografia e diário –, pensados a partir de uma composição fílmica
alinhada ao que Foucault conceitua como heterotopia (FOUCAULT, 2013). Esse conceito
se conecta a uma diversidade de práticas humanas que, conscientemente ou não,
concebem espaços que, de algum modo, apagam, neutralizam, purificam os espaços

3
considerados originais – sendo algo como “contraespaços”. A partir da análise da obra de
Panahi sob esse olhar, compreende-se a heterotopia como uma operação perpetrada pelo
diretor que, a partir da presença de uma câmera, cria no seu cotidiano um espaço familiar
e íntimo uma diversidade de espaços que se flexibilizam, se sobrapõem e se justapõem
em vários momentos. O autobiográfico, nesse sentido, parece menos orientado a um
desejo do sujeito em pensar a formação de sua própria personalidade e, assim, rever suas
relações com experiências emocionais e mais à flexibilização da sua experiência temporal
e espacial naquele ambiente, com o próprio corpo e, talvez, com a própria câmera.

Através de uma trajetória histórico-conceitual em torno das noções de identidade


e subjetividade ao longo dos tempos, desejamos compreender como as condições e
resultados que cercam a realização da obra de Panahi nos possibilitam refletir sobre as
formas que revelam a busca pela construção de uma auto-identidade. Durante muito
tempo, a construção da vida privada e da emergência da noção de personalidade como
forma de se expressar socialmente acontecia a partir de um entranhamento nas dinâmicas
de poder da Igreja e do Estado. Na Modernidade, a percepção de que as atividades
políticas devem ser alheias à influência religiosa terminam privilegiando, de certo modo,
a ideia de que as impressões construídas e causadas pelos sujeitos definiam suas

Cena de Isto não é um filme

4
personalidades e suas relações interpessoais (SENNETT, 1999). Se, por exemplo, no
individualismo ocidental da Europa Medieval, a ideia de fixidez da identidade se
organizava a partir de aspectos de ordem coletiva, tais como status social, linhagem
familiar, gênero etc. (BAUMEISTER, 1986), o contexto contemporâneo da obra do
cineasta coloca a própria subjetividade em um jogo que se flexibiliza a partir da presença
da câmera. Trata-se, então, de um coletivo e um público imaginado (ou pressuposto) a
partir do momento em que a câmera é ligada como uma estratégia que reverbera a
liberdade de construir mundos possíveis como gesto de imaginação particular e política.

A formação do conceito de identidade centrado no sujeito acontece durante a


Idade Moderna, período em que a constituição do eu parece ser pensada como um projeto.
Nesse sentido, as questões existenciais colaboram para que o ser humano comece a se
perceber como habitante de um tempo e um espaço específicos e a existência como
história, trazendo à consciência o que, anteriormente, era compreendido como um
fenômeno genérico (GIDDENS, 2002). Quando filma um plano de sua cozinha enquanto
toma café da manhã como um sujeito encarcerado em sua própria residência, Panahi
reverbera uma relação com a intimidade que se distancia bastante dessas leituras, por cria
um espaço que concebe sua liberdade a partir da imagem, ao mesmo tempo em que se
torna visível ao perpetrador de seu encarceramento. A obra de Panahi emerge em um
contexto em que existe, inclusive, uma superação de uma ideia em torno da subjetividade
pela psicanálise freudiana, que busca o entendimento do sujeito partindo da relação com
o seu próprio corpo e com a sociedade. A partir de seus numerosos estudos, elabora o
conceito de inconsciente, indo de encontro à concepção moderna de sujeito como um ser
racional e identificado plenamente com a consciência. Ao mergulhar na concepção de
uma “verdade do sujeito” – e não de um sujeito submisso a uma noção iluminista de
verdade –, Freud estuda as pulsões e percepções obscuras que compõem cada indivíduo,
abrindo a brecha para a compreensão do mundo como força que não poderia ser
plenamente explicada a partir do regime da razão (GARCIA-ROZA, 2007).

Ao deslocar uma paisagem íntima de sua própria residência para criar um filme
de sua própria condição prisional, Panahi constrói seu filme como um gesto que nos
possibilita criar conexões com a formação de uma ideia de sujeito como “algo que deve
ser criado e sustentado rotineiramente nas atividades reflexivas do indivíduo”
5
(GIDDENS, 2002, p. 54), referenciando aos diários e às autobiografias. Sustentado por
um desejo de se comunicar com um mundo externo, Panahi posiciona sua câmera para
dentro de seu espaço privado para registrar um dia com seu colega de trabalho, Mojtaba
Mirtahmasb. Nesta primeira cena, vemos o diretor telefonando ao amigo por meio de um
dispositivo tecnológico – o telefone celular – que conecta um personagem presente e outro
ausente, aparecendo somente a partir de sua voz:

Panahi: Escute, estou enrolado com um problema. O que você fez com aquela
coisa?
Mirtahmasb: Estou prestes a descobrir mais e tenho tentado falar com uns
contatos. Na verdade, estou esperando o momento certo para começar.
Panahi: Então, ainda não começou?
Mirtahmasb: Tenho me arriscado aqui e ali. Isto é, ainda não comecei a produção
para valer. Apenas trabalhando em algumas coisinhas.
Panahi: Escute. Eu, anh… não posso falar muito ao telefone. Você pode vir até
minha casa?
Mirtahmasb: O que houve? Aconteceu alguma coisa?
Panahi: Não fique preocupado. Apenas venha cá. Tenho umas ideias, que
gostaria de falar com você. Venha aqui e veremos o que pode ser feito.

Nas culturas tradicionais, a ideia de identidade e subjetividade mostrava-se


subjugada por processos institucionalizados que, somente com a concepção das
sociedades modernas e, mais especificamente, com a divisão do trabalho, o indivíduo
começou a se tornar um ponto de ênfase e atenção. Concebidas como celebrações das
realizações de certos sujeitos em comunidades desse gênero, as autobiografias funcionam
tanto como “maneira de singularizar as experiências especiais de tais pessoas em relação
à massa da população” (GIDDENS, 2002; 75) como rememoração da trajetória de vida
de um indivíduo. No caso de Panahi, essa singularização parece vir agregada de uma
intenção de comunicação ativa urgente e objetiva, mas que se constrói como forma de
apontar para as fissuras do sistema. A prisão, no seu caso, possui contornos relacionados
a uma temporalidade mais ralentada e a uma espacialidade que parece sempre apontar
para outro lugar. Panahi, desde a primeira cena, está na prisão, mas parece nunca se sente
totalmente encarcerado, pois seu tempo e seu espaço sempre se colocam mais flexíveis
do que em um cárcere convencional (ou convencionado). O sistema que cria as condições
6
para que a personalidade do cineasta se forme funciona a partir de mitos que preenchem
a lacuna deixada pela constatação do fim da necessidade da crença em uma divindade: “o
sistema de expressão pública se tornou um sistema de representação pessoal; uma figura
pública apresenta aos outros aquilo que sente, e é essa representação de seu sentimento
que suscita a crença” (SENNET, 1999; 42).

A concepção e a relevância da noção de sujeito diante de coletivo se modifica


completamente ao longo das ditas Idades. Por exemplo, na Europa pré-moderna e em
culturas não-modernas, a falta de privacidade vinha a reboque de uma proximidade física
entre os corpos advinda da arquitetura da vida prosaica dos habitantes das cidades.
Analisando o filme de Panahi, pretende-se compreender como o cineasta opera as
imagens e as proposições imaginativas na sala de estar do seu apartamento como um jogo
que flexibiliza tempos e espaços do cotidiano, assim como a própria relação com a
formação e exposição de sua identidade e intimidade. Ao compreender o ato
autobiográfico de Panahi como um gesto heterotópico (FOUCAULT, 2006, 2013),
percebemos o pensamento e a subjetividade implicado nessa obra menos como ficções
ligadas à memória e ao individual e mais em suas dimensões de presença e coletividade.
Se os anseios por uma vida privada também tem fortes conexões com as satisfações
psíquicas que a concepção de laços mais íntimos do sujeito consigo mesmo e com os
outros, a relação que o cineasta cria com o objeto de realizar um filme (mesmo
encarcerado) demarca, mesmo que subliminarmente, um objetivo, uma direção, um
desejo, uma ideia a ser concretizada, mesmo que não saibamos qual, nem como e nem
porquê. Olhar para si mesmo como resultado de um passado e a construção de um porvir
compõe a trajetória de formação do sujeito, que passa a ser menos pensado como a
conjunção de momentos descontínuos conectados a uma relação com a divindade e mais
como construto elaborado pelo próprio sujeito, funcionando como “um meio fundamental
de escapar à escravidão do passado e abrir-se para o futuro” (GIDDENS, 2002; 71).

Nesse caso, a espontaneidade que atravessa o desejo de registrar seu próprio


cotidiano parece se arvorar na ideia de que uma representação de si que cria um pacto de
cumplicidade com o espectador. Nessa representação de si, as operações realizadas por
Panahi parecem compreender que o inconsciente parece ser mais verdadeiro do que o
(aparentemente) construído e, portanto, “ficcional” - mesmo que a veracidade nem se
7
compõe como ideal a ser alcançado nem essa forma de se construir se mostre como um
critério que legitime a validade de uma personalidade (GOFFMANN, 1985). O modo de
compreender as heterotopias, nesse artigo, será desenvolvido de forma distinta dos
cemitérios, das casas de prostituição ou dos manicômios, porém mais conectado à
composição fílmica. Convocados à cumplicidade pelo desejo de ver, a realização fílmica
proposta por Panahi parece se equilibrar entre um jogo aleatório determinado pelas
circunstâncias e uma história a ser organizada “exatamente por aqueles processos ativos
de controle temporal e interação ativa de que depende a integração da narrativa do eu”
(GIDDENS, 2002; 76).

Do Autobiográfico como Lugar do Outro

Em outra cena, a câmera está diante de uma cama, no interior de um quarto e, ao


lado da cama, um aparelho de telefone ou fax. Nessa cena, estamos em um espaço ainda
mais íntimo da casa, em que outra câmera registra os resquícios de um sujeito que acabou
de acordar e se posiciona a capturar uma potência de movimentação dos agentes que a
atravessarão. Assim como na primeira cena, outro telefonema acontece, dessa vez de uma
pessoa claramente identificada como a esposa do diretor a partir de certas intimidades e
nomeações que aparecem – pai, mãe, irmã, filho, bicho de estimação (Igi) etc..

A partir da maneira como filma sua intimidade, o gesto de Panahi nos possibilita
refletir sobre como a emergência do autobiográfico no documentário, para além de um si
que se deseja capturar, também parece prever a necessidade de comunicar algo a um
público que (provavelmente) estará vendo aquelas imagens em alguma outra situação.
Esse tipo de operação aparece atravessada por alguns dos eventos que culminam na
relação entre a emergência de uma consciência sobre a subjetividade no documentário e
a autobiografia:

Primeiro, o filme autobiográfico de vanguarda dos anos 60


pavimentou o caminho para a auto-inscrição no documentário.
Segundo, documentaristas autobiógrafos rejeitam as convenções
realistas do popular cinema direto americano do mesmo período.
Terceiro, a virada reflexiva no cinema internacional influenciou
fortemente experimentações com a autobiografia no
documentário. Quarto, a ascensão do documentário

8
autobiográfico coincide com uma virada mais ampla em direção
às políticas do ‘eu’ (LANE, 2002; 8)2
A constituição histórica dessa solidificação do autobiográfico como forma do
documentário a partir desse movimento mais amplo em torno das políticas de si se
atravessa bastante na forma como Panahi triangula a relação entre seu corpo, a câmera e
a imagem para a construção de seu filme. Por se tratar de uma narrativa autobiográfica
menos memorialista e mais alinhada ao registro do presente, muito mais calcado e
sustentado pelos diálogos e ações, ele parece nos vincular a uma forma narrativa mais
dramática – em comparação aos gêneros épico e lírico, por exemplo. Enquanto todos os
seus parentes se reúnem para as festividades de Ano Novo, Panahi precisa ficar em casa
em sua prisão domiciliar, enquanto aguarda o resultado de sua pena. Seu filho deixou a
câmera ligada em cima da cadeira para que ele pudesse fazer um registro do seu dia a dia
nesse movimento de esperar.

A partir de um contexto em que sua residência se configura, ao mesmo tempo,


como espaço familiar e prisão domiciliar, Panahi propõe ao seu espectador registrar as
fricções entre ambos por meio de um filme, justapondo “em um lugar real vários espaços
que, normalmente, seriam ou deveriam ser incompatíveis” (FOUCAULT, 2013; 24). Da
mesma forma que o espaço teatral convenciona com o público a criação de ambientes
completamente distintos entre si a cada espetáculo, a presença da câmera no filme de
Panahi adiciona ainda outras camadas ao modo de compreender a relação que o diretor
compõe com sua residência ao mesmo tempo que a registra.

2 Original: “First, the autobiographical avant-guarde film of sixties paved the way for self-inscription in documentary.
Second, autobiographical documentarists rejected the realist conventions of the popular American direct cinema of
the same period. Third, the reflexive turn in international cinema strongly influenced experimentation with
autobiography in documentary. Fourth, the rise of autobiographical documentary coincided wuth a larger turn to the
politics of selfhood”
9
Cena de Isto não é um filme

Da forma como se posiciona, a câmera parece, de variadas formas, demarcar um


ponto de fuga, uma abertura, uma saída: na primeira cena, essa saída é uma porta na
cozinha ignorada pelo protagonista; na segunda, é usada pelo protagonista para conduzi-
lo a outro cômodo. A frontalidade da câmera prevê a movimentação dos atores como em
um teatro físico e mantém o espectador estático na maneira como olha a vida do
protagonista, como se não estivesse presente na cena. Contudo, essa relação distanciada
entre o espectador e o espaço registrado pelo diretor se rompe na segunda cena: bips de
término da ligação. Panahi está sentado na cama, vestindo uma calça, de frente para o
aparelho; levanta-se, termina de se vestir, pega os óculos e sai do quarto, mas, ao abrir a
porta, porém, retrocede e caminha até a câmera, pega-a e a leva consigo.

Se, na primeira cena, a passividade da câmera nos evoca uma sensação de


observação da vida alheia como se o fizéssemos por uma fresta, quando esse gesto
denuncia a presença da câmera, está, ao mesmo tempo, anunciando ao espectador o desejo
de comunicar/transmitir os acontecimentos seguintes. Nesse caso, a percepção da
presença da câmera nos aproxima da pessoa do diretor, ao mesmo tempo que humaniza
nossa própria maneira de observá-lo. Isso acontece porque não assumimos mais uma
vigilância distanciada como um panóptico ou uma figura divina que vê tudo e a todos,
mas assumimos a limitação do que podemos ver. Quando Panahi torna esse desejo de
levar a câmera consigo gestualmente mais consciente, ele estabelece com seu espectador
que somente poderemos acompanhar os eventos que ele quiser registrar. Nesse pacto
quase voyeurístico que o cineasta adota conosco, assumimos uma percepção mais humana
em comparação a essas outras formas de olhar e vigiar o outro que citamos anteriormente.
10
Na trajetória do cinema documentário, a guinada em direção à consciência da
subjetividade vem acompanhada de uma série de movimentos históricos e culturais que
problematizam as forças econômicas e sociais que guiaram boa parte da sociedade
ocidental (principalmente, os Estados Unidos) durante os anos 30, 40 e 50. O estilo de
vida consumista, desenvolvimentista e industrial – orientado para grandes eventos – a
Grande Depressão, a Segunda Guerra Mundial, a Guerra do Vietnã – começa a ser
questionado e a oferecer mais espaço para a representação das camadas pessoais e
familiares dos sujeitos. Além disso, muitas das provocações que direcionam esse olhar ao
sujeito advêm dos questionamentos emergentes em movimentos sociais relacionados aos
direitos civis e representantes de minorias. Mulheres, gays e negros – dentre outras
categorias mal ou sub-representadas politica e midiaticamente – começam a criar obras
que constroem pontes entre suas personalidades e sua relação com comunidades que
podem “ser a família, como no caso da ‘etnografia doméstica’, ou membros de uma
comunidade vinculados por memória racial ou afinidade por escolha” (RENOV, 2005;
244).

No caso de Panahi, sua relação com as comunidades com que se comunica aparece
por meio de uma série de atravessamentos temporais e espaciais mediados por variadas
formas de dispositivos – telefone, celular, câmera e o próprio corpo do cineasta. Nessa
sucessão de eventos que parecem unidos basicamente pelo desejo de registro de um
cotidiano, os objetivos e conflitos do protagonista terminam sempre sendo externalizados
e resolvidos a partir da ação e da palavra dentro do espaço físico e diegético – e não em
um espaço extra-diegético. A partir da sua relação com as comunidades a que pertence,
Panahi sobrepõe um espaço familiar em que prepara chá com água quente e alimenta um
iguana às preocupações em torno de sua prisão domiciliar. A partir disso, o cineasta opera
um registro de um cotidiano e de uma vida “criando uma ilusão que denuncia todo o resto
da realidade como ilusão, ou, ao contrário, criando outro espaço real tão perfeito, tão
meticuloso, tão bem disposto quanto o nosso é desordenado, mal posto e desarranjado”
(FOUCAULT, 2013; 28).

Ao carregar em si a potência dos personagens, ambientes e experiências que pode


abrigar, a direção de Panahi ao autobiográfico possibilita desvelar as intenções políticas
que o simples fato de registrar seu encarceramento permite. Ao se insurgir contra um
11
contexto que, por motivações políticas, proíbe ao cineasta a realização de quaisquer
filmagens de seus roteiros, a disposição a esse registro instaura uma crise na relação com
o filme como objeto e com a imagem que se anuncia desde o título. Diante de uma
diversidade de crises representativas que desvelam uma descrença política e nas grandes
narrativas totalizantes, as “declarações públicas de selves privados passaram a ser atos
definidores da vida contemporânea, frequentemente imbuídos de grande urgência”
(RENOV, 2005; 244. Grifo no Original). Diante desse contexto, a emergência de uma
subjetividade cada vez mais consciente e intencional no documentário parece desmontar
certa preocupação com uma noção moderna de objetividade como forma de organização
das narrativas do mundo em um gesto totalizante e unívoco. Se, para uns, esse
direcionamento ao sujeito como fundamenta-se em certo "desaparecimento do horizonte
político, do fim das ideologias, das utopias comunitárias etc., que conduziu a uma espécie
de dobra sobre si" (ROLLET, 1998 in BERGALA, 1998; 12); para outros, pode significar
a concretização de um discurso que imbrica pessoal e coletivo sem anulá-los ou excluí-
los mutuamente.

Ao registrar seus gestos cotidianos como quem filma um diário sem pretensões
narrativas muito objetivas, Panahi cria condições para que essas relações entre pessoal e
coletivo apareçam de forma mais inconsciente e sutil, compondo-se a partir da banalidade
e do humano de seu personagem – ele mesmo. A busca por formas de representar a si
mesmo termina se tornando seminal em uma sociedade em que as estruturas tradicionais
de comunicação e representação simbólica (como a família, mundo do trabalho, as
relações de classe social, a escola etc.) complexificam e desestabilizam as noções de
sujeito e comunidade a partir das mudanças sucessivas e velozes que enfrenta. Além
disso, a transformação, barateamento e consequente popularização dos sistemas de
produção e distribuição cinematográficos, promovido a partir da emergência de novas
ferramentas (como câmeras e filmadoras digitais) que permitiram que se ampliasse o

12
conceito de caméra-stylo3 com pessoas comuns alçadas à condição de cineastas a partir
dos registros de suas próprias vidas (BERGALA, 1998).

Ao representar sua própria figura por meio de uma dobra de si calcada nas ações
do presente, Panahi assume a impossibilidade de uma representação completa ou
mimética do sujeito em seu documentário. Ao transmutar seu espaço familiar e prisional
em ambiente fílmico, a relação que Panahi cria com o espaço parece estar impregnada de
sua relação consigo mesmo. Partindo do princípio de que os espaços que habitamos não
são necessariamente homogêneos, mas carregados de qualidades atribuídas pelas nossas
vivências e devaneios (FOUCAULT, 2006), o cineasta também parece criar um eu
fragmentado, composto como um espaço de fluxo e paradoxo do que propriamente de
coerência e verossimilhança. Se os espaços carregam conjuntos de relações que podem
ser suspensas, neutralizadas e invertidas, o cineasta imbrica espaço e intimidade ao exibir
um conjunto de múltiplas subjetividades que são negociadas e justapostas a partir de uma
dinâmica que emerge do processo criativo na concepção de sua obra. Essa escolha nos
possibilita compreender como as formas que a subjetividade e o autobiográfico assumem
no documentário criam condições para que compreendamos certas possibilidades
temáticas e estéticas que estas intenções podem assumir.

Do Diário como Gesto do Presente

A emergência da subjetividade no documentário se compõe como sintoma de um


intenso estímulo à composição de um sujeito, em uma experiência distinta das
configurações anteriores da sociedade. Contudo, por mais que se caracterize por um gesto
de exposição da vida íntima, a produção autobiográfica documentária não se restringe a
essa ambiência. Pelo contrário, possibilita a emergência de, a partir destes contextos

3 O conceito de caméra-stylo (câmera-caneta) foi desenvolvido pelo realizador e teórico do cinema Alexandre Astruc
e exposto pela primeira vez no artigo Naissance d’une nouvelle avant-garde, publicado na revista L'Écran français,
em março de 1948. O autor descreve uma transformação da concepção do cinema como um meio de expressão
própria, distintas das linguagens artísticas que lhe precederam, investindo no estímulo à figura do cineasta como um
pleno autor de suas obras – assim como o escritor e o romance. Este conceito sustenta forte influência para a
emergência dos teóricos e cineastas responsáveis pela Nouvelle Vague e da intitulada théorie de la politique des
auteurs.
13
micro, questões de ordem coletiva, como diversidade sexual4, temáticas do feminino5,
patologias físicas 6 e psicológicas 7 , regimes ditatoriais 8 e outros tantos. No caso de
Panahi, o autobiográfico se evidencia a partir da escolha do diretor por absorver, à sua
maneira, a lógica do filme-diário. Por se tratar do registro de uma prisão domiciliar no
momento em que o diretor aguarda a decisão do Tribunal de Apelação a respeito de sua
condição, a operação proposta pelo cineasta transparece menos a errância e a
indeterminação das imagens criadas por Jonas Mekas e David Perlov, por exemplo. No
documentário autobiográfico, parece possível acreditar que não se exibe necessariamente
uma autoria, mas se deflagra um dispositivo fílmico que, ao mesmo tempo, constrói e
torna visível uma identidade.

Um dos cenários que influencia nesse anseio pela representação de si datam dos
movimentos que agitaram os anos 60, como a Guerra do Vietnã, a emergência da
contracultura e novas ondas de feminismo e configuração familiar e social. Ao se
tornarem palco para debates intensos tanto nas universidades e faculdades como em
coletivos de cineastas de “vanguarda”, as formas de representar o mundo histórico e as
necessidades de interferir nele provocaram mudanças culturais e influenciaram cineastas
de variados contextos. Nos Estados Unidos, diretores emergentes nos anos 70 e 80 como
Miriam Weinstein 9 , Ed Pincus 10 e Ross McElwee 11 influenciaram outras gerações de
autores formados nos anos seguintes, como Jeff Kreines 12 , Ann Schaetzel 13 e Robb
Moss14. Estes grupos começaram a levar câmeras 16mm para suas residências e a registrar

4 The Roof (2006, Kamal Aljafari)


5 Breaking and Entering (1980, Ann Schaetzel)
6 E Agora? Lembra-me (2014, Joaquim Pinto)
7 Tarnation, 2003; Walk Away Renee, 2011, ambos de Jonathan Caouette.
8 Os dias com ele (2012, Maria Clara Escobar)
9 My Father the Doctor, 1972; Living with Peter, 1973; We Get Married Twice, 1973
10 Diaries: 1971-1976, 1980
11 Backyard, 1984; Sherman’s March, 1986; Time Indefinite, 1994; Six O’Clock News, 1996; Bright Leaves, 2003; In

Paraguay, 2009; Photographic Memory, 2012


12 The plaint of Steve Kreines as Recorded by his younger brother Jeff, 1974
13 Em Breaking and Entering (1980), a diretora, ao contrário da maioria dos documentários autobiográficos, ao invés

de explorar certa nostalgia melancólica e uma ode ao passado, parte da provocação de uma raiva aos seus pais como
forma de reparação de um trauma a partir de um evento que envolveu sua sexualidade – usando como principal
recurso a narração em voice over, que durante certo tempo, teve seu uso diminuído por boa parte dos
documentaristas.
14 The Tourist, 1991; The Same River Twice, 2003

14
o cotidiano de suas próprias famílias de forma a problematizar suas dinâmicas: às vezes,
provocando e capturando debates com familiares; outras, reexaminando materiais de
arquivo como filmes de família, fotografias e histórias contadas em reuniões. No caso de
Panahi, o pessoal e o político se confrontam a partir do desejo de registrar um período de
prisão domiciliar perpetrado justamente pelo desagrado às autoridades iranianas. Nas
eleições presidenciais de 2009, o cineasta declarou apoio ao candidato da oposição, Mir
Hussein Mussavi, e, posteriormente, sua casa foi invadida e sua coleção de filmes –
considerada "obscena – foi apreendida15.

No momento em que está filmando um telefonema com sua advogada, Panahi está
aguardando um veredito do juiz de apelação em um período próximo ao Ano Novo,
quando o cineasta gostaria de se reunir com sua família para as festividades. Trata-se de
um momento anterior à condenação do cineasta a seis anos de prisão e à sua proibição
definitiva de filmar por 20 anos, visto que a advogada ainda acreditava que a sentença
decretada ao cineasta ainda poderia ser reduzida. Mais do que condicionar a inscrição de
subjetividade na observação do mundo histórico, o autobiográfico na obra de Panahi se
mostra como condição intrínseca para que a obra emerja da forma como estética e
politicamente se constitui. Para além de empregar elementos recorrentes nesse campo do
documentário (como lembranças de família, jornadas de busca sobre o próprio passado e
o próprio ato fílmico), a construção autobiográfica delimita “um espaço, um tempo e uma
voz, para evocar um ‘eu’ forjado na observação da própria história de vida e sua busca
identitária” 16 (LABBÉ, 2012; 16. Tradução do Autor). A partir dessa intenção, pode
assumir uma diversidade de formas e estratégias narrativas que, muitas vezes, atravessam
e borram as tentativas de demarcação entre o autobiográfico, o subjetivo, o performático,
o ensaístico e assim por diante.

15
Notícia disponível em https://oglobo.globo.com/cultura/cineasta-iraniano-vai-julgamento-rejeita-
acusacoes-2925479. Acesso em 21.10.2018
16
Texto Original: “un espacio, un tiempo y uma voz, para evocar un “yo” forjado en la observación de la
propia historia de vida y su búsqueda identitaria” (2012; 16)
15
Diante da dificuldade de criar uma narrativa dos eventos e memórias que
compõem uma existência, alguns cineastas filmam seu cotidiano por vários anos (ou
décadas) e organizam esses fragmentos em obras de variadas formas. Dos cineastas que
experimentaram a forma diário no cinema, destacam-se diretores como Man Ray (Home
Movies, 1923-38), em que registra lugares e eventos cotidianos, e Humphrey Jenning (A
Diary for Timothy, 1946), em que filma os anos finais da Segunda Guerra Mundial em
uma forma diarística endereçada a uma criança recém-nascida. Ao deflagrar as condições
que cercavam tanto a negação à captura das imagens como o desejo que culmina nas
imagens que compõe, explorando afetos, frustrações e reflexões sobre o próprio ato de
filmar. Segundo as autoridades iranianas, Panahi estava sendo julgado pela intenção de
cometer crimes contra a segurança do país e de realizar propaganda contrárias à República
Islâmica. Entre algumas entradas e saídas do cárcere, o cineasta conseguiu a possibilidade
de cumprir pena em prisão domiciliar, mas ainda segue com horários específicos para
chegar em casa e as viagens para o exterior proibidas17.

Cena de Isto não é um filme

17
Notícia disponível em https://veja.abril.com.br/entretenimento/diretor-iraniano-condenado-a-prisao-se-
liberta-em-filme/. Acesso em 21.10.2018
16
Por mais que tivesse sofrido pressões de artistas como Steven Spielberg, Juliette
Binoche e Rakhshan Batietemad, os cineastas iranianos também sofreriam retaliações se
realizassem protestos muito amplos. No seu tempo de espera por uma decisão do Tribunal
de Apelação, o cineasta cria uma obra que registra um tempo fora da ação da prisão: um
filme-diário que, ao se centrar em um intervalo entre momentos, parece construir um
tempo que existe somente dentro da câmera. Dentre os cineastas que experimentaram com
esse formato no ambiente proporcionado pelo cinema dito underground18, um dos mais
proeminentes seria o lituano radicado nos EUA Jonas Mekas19, que desenvolveu uma
forma bastante particular de concebê-lo: “O processo reflexivo durante a produção do
diário escrito, devido à distância de sua composição em relação aos eventos, para Mekas
já se faz implícito na filmagem” (RASCAROLI, 2009, 124)20. A partir dos anos 80, este
formato começa a se esgueirar por outros espaços e se tornando cada vez mais popular21
e diferentes teóricos refletem sobre suas particularidades 22 . Em paralelo aos diários
filmados e dos filmes de família, Bergala (1998) sinaliza para a presença da "autoficção",

18
Deste círculo, pertencem os supracitados cineastas como Carolee Schneemann (Fuses, 1967; Plumb
Line, 1968-71), Stan Brakhage (Window Water Baby Moving, 1959); Marie Menken (Glimpse of the
Garden, 1962; Notebook, 1963), Andrew Noren (The Adventures of the Exquisite Corpse, 1968), Su
Friedrich (Sink or Swin, 1990), Chantal Akerman (News From Home, 1977) e outros como Storm de
Hirsch (Hudson River Diary at Gradiew, 1970), Robert Huot (Diary Film #4, (1973-74) e Howard
Gutterplan (European Diary '78, 1978).
19
Cineastas criador de obras como Walden (1969), Reminiscences of a Voyage to Lithuania (1972), Lost,
Lost, Lost (1975) e As I Was Moving Ahead, Occasionally I Saw Brief Glimpses of Beauty (2001).
20
No Original: “The reflective process at work in the written diary, due to the distance of its composition
from the events, is for Mekas already implicit in the filming”
21
Além do crescente barateamento de custos de produção e do contato com outras obras do gênero, outros
cineastas puderam conceber obras que ampliam e diversificam as possibilidades do diário no cinema
como Joseph Morden (Mémoires d’un juif tropical, 1988); Derek Jarman (Blue, 1993; Glitterbug, 1994);
Wim Wenders (Lightning Over Water, 1980; Tokyo-Ga, 1985); Márta Mészáros (Napló gyermekeimnek
(Diary for My Children, 1984); Napló szerelmeimnek (Diary for My Lovers, 1987); Napló apámnak,
anyámnak (Diary for My Father and Mother, 1990); Kisvilma: Az utolsó napló (Little Vilna: The Last
Diary, 2000); Erik Bullot (Le Calcul du sujet (Calculus of the Subject, 1997-2000); Oh oh oh! (2000 –
2002); La Belle Étoile (Under the Stars, 2004); Vincent Dieutre (Leçons de ténèbres, 2000); Gina Kim
(Gina Kim’s Video Diary, 2002); John Smith [Hotel Diaries Series (2001-07): Frozen War (2001);
Museum Piece (2004); Throwing Stones (2004); BandB (2005); Pyramids/Skunk (2006-07); Dirty
Pictures (2007)].
22
Autores como Russell (1999 apud RASCAROLI, 2009) compreendem o filme-diário como uma das
instâncias do ensaio fílmico e James (1992 apud RASCAROLI, 2009), por sua vez, propõe distinções
entre “film diary” e “diary film”. Para o autor, film diary (que pode ser traduzido como diário fílmico)
caracteriza a prática de filmar a própria vida com propósitos inteiramente pessoais e particulares, já o
diary film caracteriza-se por uma montagem orientada para um olhar público.
17
em que o cineasta, ao invés de registrar sua própria vida durante um certo período, escreve
um roteiro e contrata um ator para interpretar um personagem que corresponde à primeira
pessoa do diretor – casos de François Truffaut 23 , Catherine Breillat 24 e Alejandro
Jodorowsky25, por exemplo – ou ele mesmo o interpreta – caso de Nanni Moretti26, Luc
Moullet27 e Atom Egoyan28.

Ao tomar o autobiográfico como gesto que registra uma espécie de purgatório ou


limbo em que aguarda uma decisão sobre sua prisão, o cineasta se vê atravessado por uma
série de condições que estancam sua movimentação: não pode sair de casa para
comemorar o Ano Novo com sua família, mesmo que ainda não seja uma prisão
definitiva; tem acesso a ligações, comunicativas por celular, telefone e a câmeras de
filmar e fotografar, mas está proibido de realizar filmes. Por mais que reconheça a
impossibilidade do governo iraniano negar as acusações ao cineasta, a motivação da
espera pelo resultado se constitui como objetivo primordial do filme. Se o cineasta não
deseja se resignar e, simplesmente, arrumar sua bagagem para a prisão, o que poderia
fazer com esse período de tempo que mais parece um ‘não-tempo’ em um espaço que,
paradoxalmente, parece atravessado por variados ambientes?

A resposta provavelmente seria: realizar um não-filme. Em sua espécie particular


de diário filmado, a presença corporal do cineasta diante da câmera faz-se atravessada
pela autoficção, essa representação do eu não se configura necessariamente nem como
real nem como ficcional. Pelo contrário, mostra-se como um lugar de trânsito do autor,
narrador e personagem numa mesma “figura”, rompendo com o caráter naturalizado da
autobiografia “numa forma discursiva que ao mesmo tempo exibe o sujeito e o questiona,
ou seja, que expõe a subjetividade e a escritura como processos em construção”
(KLINGER, 2008; 26).

23
Les 400 Coups (1959)
24
Abus de faiblesse (2013)
25
La Danza de la Realidad (2013)
26
Caro Diario (1993)
27
Anatomie d'un rapport (1976)
28
Calendar (1993)
18
No caso de Panahi, a sobreposição de eus se alinhava à justaposição em um só
lugar real de vários espaços e posicionamentos que, aparentemente, seriam incompatíveis,
funcionando a partir de uma ruptura com seu tempo tradicional e da entrada em um ritual.
A câmera, nesse caso, deflagra a condição possível para que um filme aconteça na sala de
estar configurada momentaneamente como espaço de encarceramento e, ao mesmo
tempo, único espaço de liberdade possível ao cineasta. Os botões de ligar e desligar
compõe-se como ritos que alteram as dinâmicas e os comportamentos que transformam
o espaço familiar e prisional de Panahi, criando uma ficção que denuncia os confrontos
entre os papéis que esses espaços e identidades ocupam. Ao compreender o gesto de
Panahi como a elaboração de um espaço heterotópico, percebemos como o cineasta cria
um contrato com seu espectador e delimita um recorte espacial que pode abarcar infinitas
possibilidades de mundos que o (e nos) conduzam para além de sua prisão domiciliar.

Referências bibliográficas

BAUMEISTER, Roy. Identity. Cultural Change and the Struggle for Self. Nova York,
Oxford University Press, 1986.
BERGALA, Alain. Si "je" m'était conté. In: BERGALA, Alain (org..) Je est un film.
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literatura e pintura, música e cinema. Organização de Manoel Barros da Motta. Tradução de Inês
Autran Dourado Barbosa, v. 2, 2006.
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GARCIA-ROZA, Luiz. Freud e o inconsciente. 22ª Ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
2007.
GIDDENS, Anthony. Modernidade e Identidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar ed., 2002.
KLINGER, Diana. Escrita de si como performance. Revista Brasileira de Literatura
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modular el “yo” em el cine de no ficción. Comunicación y Medios, n. 26, p. 12-22, 2012.
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RASCAROLI, Laura. The Personal Camera: Subjective Cinema and Essay Film.
London: Wallflower Press, 2009.
RENOV, Michael. The Subject of Documentary. University of Minnesota Press, 2004.
SENNETT, Richard. O Declínio do Homem Público: as tiranias da intimidade. São Paulo:
Companhia das Letras, 1999.

19
Studio Ghibli: fábrica de sonhos e sua estratégia de consumo

Studio Ghibli: dream factory and its consumption strategy

Lilia Nogueira Calcagno Horta29


Rachel Nogueira Calcagno Horta30

Resumo: Segundo a Associação Japonesa de Animês (AJA), a indústria de animê chega


a faturar de um a dois trilhões de ienes por ano através de seus produtos culturais, sendo
grande parte desse sucesso devido ao consumo de longas-metragens. O relatório anual da
associação de 201731 informa que desde meados dos anos 90, as bilheterias de filmes de
animação foram impulsionadas pelas obras do Studio Ghibli, obtendo registros
imbatíveis. Além disso, o filme A viagem de Chihiro (2001) rendeu ao Japão o único
Oscar da história da animação de longa-metragem em linguagem não-anglo-saxônica.
Nesse sentido, esse artigo visa analisar as estratégias de consumo do estúdio ao longo dos
anos através dos roteiros, conteúdo e estética das obras, bem como parcerias, contratos e
mudanças estruturais, para que no final entenda-se como o estúdio articula suas produções
e estratégias para conseguir permanecer no topo dos rankings de bilheteria. Ademais,
deseja-se compreender se esforços são distribuídos igualmente entre os diretores e
atingindo o público com a mesma intensidade.
Palavras-chave: Studio Ghibli; Estratégias; Consumo
Abstract: According to the AJA, the Japanese Anime Association, the anime industry
gets to bill one to two trillion yen per year through its cultural products and much of this
success is due to the consumption of animated feature films. The association's annual
report for 2017 declare that since mid-1990s, the box office full-length animations were
boosted by Studio Ghibli's works, getting unbeatable records. In addition, the film
Spirited Away (2001) won the only Oscar in the history of animation in non-Anglo-Saxon
language. In this sense, this article aims to analyse the consumption strategies of the
studio over the years through the scripts, contents and aesthetics of the works, as well as
partnerships, contracts and structural changes, so that in the end it can be understood how
the studio articulates its productions and strategies managing to remain at the top of the
box office rankings. In addition, it is desired to comprehend if efforts are equally
distributed among the directors and achieve the public with the same intensity.
Key words: Studio Ghibli; Strategies; Consumption
A onda de insatisfação

29
Mestre em Comunicação e Práticas do Consumo pela ESPM com estudos voltados para a obra de Hayao
Miyazaki, e Studio Ghibli, com enfoque nas representações femininas no campo da comunicação e
consumo e memória. lilia@liliahorta.com.br
30
Mestranda em Administração de Empresas com estudos voltado a recurso e desenvolvimento
empresarial, rachelnchorta@gmail.com
31
file:///Users/user/Downloads/Anime_ind_rptsummary_en%20(1).pdf
20
Muitos historiadores do cinema de animação japonesa, consideram que os primeiros
desenhos animados tenham surgido por volta de 1917 (TSUGATA, 2013). Essas
primeiras animações criadas tinham a duração média de dois a cinco minutos e como
tema contos folclóricos nipônicos ou comédias. A maioria dos diretores, eram cartunistas
e devido à problemas financeiros e o alto custo necessário para produção de animações,
tiveram que retornar a suas profissões após a execução de alguns filmes.

Em 1921, o animador Kitayama, em contra partida, conseguiu produzir uma vasta


quantidade de animes, chegando a montar seu próprio estúdio, o Kitayama Film Studio,
o primeiro estúdio japonês especializado em animação. O animador estabeleceu um
sistema de produção em massa, priorizando a comercialização, pendendo para o lado mais
empreendedor do que o artístico, conseguiu obter mais sucesso no ramo do que os outros
animadores da época.

Em 1956, o estúdio Toei Doga, inspirado por desenhos animados americanos como
Mickey Mouse, Betty Boop, e loga-metragens – que no Japão só começou a chegar a
partir de 1950, com Branca de neve e os sete anões de 1937-, foi o primeiro estúdio de
larga escala voltado à produção não só de desenhos animados em série, mas de longas-
metragens também. Seu primeiro longa, foi o filme Hakujaden – A lenda da serpente
branca de 1958. Por envolver grandes quantias na produção filmes de longa duração que
concorriam com produções de estúdios americanos, o estúdio Toei teve dificuldade em
obter lucro somente produzindo esses tipos de filmes, então, como solução, passaram a
investir em outras áreas, tais como comerciais de TV e series.

O primeiro sucesso japonês em serie foi Astroboy de 1963, criado por Ozamu Tezuka,
cartunista muito respeitado no ramo segundo Sonia Luyten (2012). Tezuka criou novos
princípios para o ramo: as animações deveriam derivar de mangás e revistas em
quadrinhos previamente produzidos; os conteúdos e personagens tinham que ser
complexos, os episódios deveriam ter trinta minutos; minimizando o número de desenhos,
animadores poderiam focar em pequenas produções de orçamentos reduzidos e por último
fazer o enfoque de propagandas nos personagens principais das séries.

O novo sistema e o sucesso de Astro Boy de 1963 impulsionou a indústria de animes,


começando então a desabrochar novas criações, ainda fixadas no âmbito das séries que
21
eram mais rentáveis até meados dos anos setenta, quando ocorreu uma mudança drástica
no cenário da animação nipônica.

Nessa época ocorreu uma onda de insatisfação generalizada de alguns animadores perante
a predominância das series de TV (TSUGATA, 2013). Isso foi devido ao fato de que a
produções em séries eram muito mais baratas de produzir e fortemente influenciadas pelo
gosto dos patrocinadores (CAVALLARO, 2006). Desta forma, alguns diretores passaram
a produzir longas-metragens paralelamente às produções em massa. As produções
massificadas tendiam a ter temas que caíssem no gosto popular, visando obter sucesso e
garantir o lucro que pudesse compensar e amenizar o auto custo das animação longas-
metragens, já essas novas produções independentes, em contrapartida, se caracterizavam
expressões individuais, ou seja, de cada animador.

Um dos filmes mais importantes da época fôra Kaze no Tani no Nausicaä, Nausicaä do
Vale do Vento de 1984, dirigido pelo diretor Hayao Miyazaki. O cenário pós apocalítico
do filme onde os níveis de poluição dos seres humanos chegaram ser irreversíveis
transmitiu uma importante mensagem para uma audiência variada (ODELL; LE BLANC,
2015). Esse filme foi considerado uma animação artística, aclamado por sua originalidade
que destoava de desenhos massificados e esvaziados de conteúdo da época.

Com o sucesso de bilheteria de Nausicaa, o diretor e seu colega de trabalho Isao Takahata,
decidiram fundar o Studio Ghibli em 1985, com o mote a princípio de produzir somente
longas-metragens com temas originais (MIYAZAKI, 1996). As animações deveriam
seguir um padrão realista e de alta qualidade dando ênfase na construção dos personagens.
De maneira complexa, deveriam conter características psicológicas similares dos seres
humanos, expressando sentimentos de forma verossímil, o que seria impossível veicular
na televisão, um meio com grandes restrições tanto em relação ao orçamento quanto ao
cronograma. Os esforços eram voltados para a produção de um único filme, com contendo
e, auxilio de cerca de 70 funcionários para cada trabalho, porém era uma equipe
temporária, que se dissolvia quando a obra se completava. Os filmes se concebiam através
da renda arrecadada de cada sucesso.

22
Personagens, pelúcias e fãs

Em abril de 1988, o estúdio lançou simultaneamente dois filmes, Meu Amigo Totoro,
dirigido por Hayao Miyazaki e Túmulo dos Vagalumes, dirigido por Isao Takahata. Essa
estratégia na época era quase impossível de ser executada, pois sua base de empregados
ainda era provisória e o lucro inconstante, porém apesar de arriscada, a execução de dois
longas-metragens trouxe muitos prêmios ao estúdio. Tonari no Totoro (Meu Amigo
Totoro, 1988) recebeu prêmio de Filme do Ano no japão, a primeira vez que um filme
animado concorreu em igualdade com filmes, e ganhou, elevando assim a animação ao
patamar do cinema. O Túmulo dos Vagalumes (1988) também foi aclamado como filme
literário. Com estes dois, Ghibli tornou-se conhecido no setor cinematográfico japonês.
(CAVALLARO, 2006)

Além disso, Meu Amigo Totoro, segundo o site 32 oficial do Studio Ghibli, produziu
subprodutos inesperados. Stakeholders33 viram no personagem principal uma maneira de
conseguir um lucro potencial ao transformá-lo em bicho de pelúcia. O boneco Totoro,
acabou se tornando um grande sucesso, conseguindo vender durante anos após seu
lançamento e aumentar o canal de marketing do filme.

Um fabricante de brinquedos se apaixonou pelo personagem e decidiu produzi-lo por


vontade própria. Apesar de não haver esforços prévios em relação a produtos derivados
do filme, esse boneco feito de maneira espontânea, permitiu que o estúdio conseguisse
recursos para se tornar autossuficiente, ao compensar o fluxo de caixa e os custos de
produção das animações. O estúdio conseguiu a partir daí angariar uma ampla base de fãs
superando o quadro dos fãs espectadores de animação das produções que circulavam no
mercado. Nasce uma corrente de admiradores satisfeita com o conteúdo dos trabalhos
anteriores, sendo extremamente relevante para o sucesso de bilheteria dos filmes
subsequentes. E desde então a empresa decidiu usar o Totoro como sua marca.

32
http://www.ghibli.jp/
33
Termo utilizado na área de administração para designer às partes interessadas em específico projeto
23
O primeiro mega-sucesso de bilheteria veio um ano após Totoro, 1989, com o filme O
Serviço de Entrega da Kiki. Os 2,64 milhões de pessoas que foram ao cinema fez com
que o filme se tornasse sucesso No. 1 no Japão, não só de animação. (CAVALLARO,
2006)

A estrutura de filmes antes feito sob medida, pagando apenas por célula pintada, sem
garantia de lucros com uma staff provisória, foi modificada. A partir de Kiki, o estudio
decidiu investir em estabilidade, empregando pessoas com salario fixo. Além disso houve
um recrutamento constante de novos empregados, treinamento e esforços para garantir o
desenvolvimento pessoal dentro da empresa.

Nesse sentido, para criar trabalhos de alta qualidade, o estúdio optou se dedicar à
manutenção de bases, fazer uma reorganização interna, e empregar novos funcionários,
melhorando o sistema de treinamento, acarretando claramente em uma mudança de
política, dando início à segunda fase de Ghibli.

Na época, cerca de 80% dos custos de produção de animação eram gastos em mão de
obra, o que significa que, inevitavelmente, o estúdio deveria mover esforços para
estratégias em relação a publicidade e bilheteria a fim de sustentar o grande mecanismo
construído.

Ghibli 2.0 e novas estratégias de consumo

Sempre existiu no estúdio, uma reputação a zelar em relação à precisão das qualidades
estéticas e de conteúdo. O tema deve ser sempre considerado de grande relevância para
contemporaneidade (MIYAZAKI, 1996). Se o conteúdo é vazio, não há sucesso contínuo
com qualquer grande publicidade.

Na década de 90, no Japão, os filmes já não eram o centro do entretenimento. Novamente,


segundo o site oficial do estúdio, em média, calculava-se que o japonês via um filme por
ano. Ser um bom filme não garantia que o consumidor iria vê-lo. Para ter certeza que os
espectadores iriam comparecer às salas de cinema era preciso fazer eventos para a
promoção do filme. Em outras palavras, embora a maioria dos trabalhos de Ghibli
estivessem disponíveis no verão, criava-se um burburinho em todo país, para que no dia
enfático os consumidores fossem para lá.
24
Como o orçamento era limitado, era incompreensível introduzir uma grande quantidade
de dinheiro em despesas de publicidade, por isso optava-se por meios que não custavam
muito, acordos ou até gratuitos.

Uma campanha nacional sempre era realizada logo antes do lançamento. Os diretores e
os próprios produtores, promoviam os filmes nas principais cidades em todo o país.
Porém, as informações tendiam a ser limitadas, era difícil alcançar pequenas províncias.

A divulgações do filme sempre foram focadas em um âmbito local, seus trabalhos do


exterior concentrava-se na apenas no continente asiático, principalmente em Hong Kong
e Taiwan. A falta de interesse em investimentos em mercados estrangeiros era advinha
do alto custo necessário para promoção e circulação das obras, no entanto essa situação
mudou a partir de 1996, quando a Walt Disney Corporation assinou um contrato com o
Estúdio Ghibli, garantindo a distribuição fílmica mundial de vídeos caseiros.

O contrato estipulava que a Disney não cortasse nem um segundo sequer da duração dos
filmes. Conforme Dani Cavallaro (2006), diversas outras companhias tentaram
previamente firmar algum acordo com o estúdio japonês, tais como Fox e Time-Warner,
mas a única que aceitou essa condição foi a Disney, conseguindo por resultado ter o
estúdio como parceiro. Esse acordo acarretou numa exposição bastante expressiva para
as obras de Miyazaki e Takahata, que ainda eram pouco conhecidas fora do país.
(HORTA, 2017)

Depois disso, o filme Princesa Mononoke de 1997, adotou a pintura digital pela primeira
vez e, após a conclusão em 1998, estabeleceu uma seção completa de Computação
Grafica dentro da empresa. O Estúdio Ghibli implantou tecnologia e investiu em novas
técnicas; desde essa época, os projetos passaram a ser editados digitalmente.
(LAMARRE, 2009)

25
Na época, o filme conseguiu arrecadar um total de $144,44634 na semana de abertura e
permaneceu o filme mais vendido da história do japão até a chegada de Titanic (1997).
(NAPIER, 2001)

Após isso, empresas decidiram fazer parcerias com o estúdio em termos de patrocínio,
dentre elas, o produtor do Ghibli, Toshio Suzuki, cita no site da empresa: Nippon
Television e Disney, Mitsubishi Corporation, Dentsu, Hakuhodo Lawson, Yomiuri
Shimbun, Daiichikocho, que foram grande contributo para a bilheteria.

A viagem de Chihiro (2001) foi o primeiro filme a ser feito completamente de forma
digital. O filme foi um grande sucesso, arrecadando, segundo Dani Cavallaro (2006),
cerca de 230 milhões de dólares, além de conseguir inúmeros prêmios nacionais e
internacionais. A película foi a primeira e única animação em língua não inglesa a ganhar
o Oscar de melhor animação em toda a história da premiação. A partir daí, o Estúdio
tornou-se conhecido globalmente.

Fábrica de sonhos: sucesso unilateral

Ao compreender as estratégias de consumo tomadas pelo estúdio ao longo do tempo para


conseguir se manter e alcançar grande números de bilheteria, - como o relatório anual da
associação de 201735 informa que desde meados dos anos 90, as bilheterias de animações
longa-metragem foram impulsionadas pelas obras do estúdio, obtendo registros
imbatíveis - devemos nos atentar se tal distribuição de esforços era aplicada da mesma
maneira e se o consumo dos filmes era recebido com a mesma intensidade entre as obras
de diretores diferentes. Abaixo, está a lista de longas-metragens, criados no estúdio com
respectivos diretores do Ghibli:

1986: O castelo no céu– Hayao Miyazaki

1988: Túmulo dos vagalumes – Isao Takahata

34
https://www.boxofficemojo.com/movies/?id=princessmononoke.htm
35
file:///Users/user/Downloads/Anime_ind_rptsummary_en%20(1).pdf
26
1988: Meu amigo totoro – Hayao Miyazaki

1989: O serviço de entregas da kiki – Hayao Miyazaki

1991: Memórias de ontem – Isao Takahata

1992: Porco Rosso: o último herói romântico – Hayao Miyazaki

1993: Eu posso ouvir o oceano - Tomomi Mochizuki

1994: Pom Poko: a grande batalha dos guaxinins – Isao Takahata

1995: Sussurros do coração - Yoshifumi Kondō

1997: Princesa Mononoke – Hayao Miyazaki

1999: Meus vizinhos os Yamadas - Isao Takahata

2001: A viagem de Chihiro – Hayao Miyazaki

2002: O reino dos gatos - Hiroyuki Morita

2004: O catelo animado – Hayao Miyazaki

2006: Contos de terramar - Gorō Miyazaki

2008: Ponyo uma amizade que veio do mar – Hayao Miyazaki

2010: O mundo dos pequeninos - Hiromasa Yonebayashi

2011: Da colina Kokuriko - Gorō Miyazaki

2013: Vidas ao vento – Hayao Miyazaki

2013: O conto da princesa Kaguya – Isao Takahata

2014: As memórias de Marnie - Hiromasa Yonebayashi

A partir da mesma, percebemos que os diretores fundadores Isao Takahata e Hayao


Miyazaki são os que mais produziram ao longo dos anos, Hayao Miyazaki totalizando
dez e Isao cinco. Além desses diretores, apenas Hiromasa e Gorō dirigiram um total um

27
pouco maior que os demais chegando ao total de dois filmes. Levaremos isso em
consideração para analisarmos os rankings36 de bilheteria abaixo:

FIGURA 1: Bilheteria Internacional (Somente Studio


Ghibli)

Fonte:https://www.boxofficemojo.com/franchises/chart/?view=main&
id=ghibli.htm&sort=gross&order=ASC&p=.htm

36
Legenda: em laranja se encontram os filmes dirigidos por Hayao Miyazaki.
28
FIGURA 2: Bilheteria Doméstica
(Animes)

Fonte:https://www.boxofficemojo.com/genres/chart/?id=anime.htm

Além desses dois rankings das FIGURAS 1 e 2, também vamos analisar a lista37 de
bilheteria internacional de animes com os top 10, o Studio Ghibli conta com seis filmes:
em segundo lugar se encontra A Viagem de Chihiro com $289,096,544, de facturamento,
em terceiro O Castelo Animado com $235,184,110, em quarto lugar Ponyo: Uma
Amizade que Veio do Mar, em sétimo Princesa Mononoke com $159,375,308, oitavo O
Mundo dos Pequeninos com $145,570,827 e em nono Vidas ao Vento com $136,333,220.

A partir desses rankings, podemos observar que a grande maioria dos filmes que possuem
sucesso de bilheteria foram dirigidos por Hayao Miyazaki.

Através da FIGURA 1, observamos que na lista entre os dez filmes Ghibli de maior
bilheteria internacional, cinco pertencem à Miyazaki, sendo assim responsável por 50%
do faturamento desse quadro. Já na FIGURA 2, notamos que o estúdio possui quatro
obras rankeadas, dessas obras três pertencem ao diretor de Chihiro. Por fim, na última

37
https://www.imdb.com/list/ls069880232/?sort=list_order,asc&st_dt=&mode=detail&page=1&ref_=ttls_
vm_dtl
29
lista, vemos que dos seis longas-metragens que o estúdio emplaca, somente o filme O
Mundo dos Pequeninos não foi dirigido por Hayao Miyazaki.

Observando as estéticas dos diretores, podemos notar semelhanças, porém por outro lado,
inúmeras diferenças. O contraste maior se dá entre os principais diretores, já que os outros
não obtiveram trabalhos uma quantidade consistente dentro do estúdio, dificultando
analisar quesitos estéticos consolidados.

Hayao Miyazaki, é fiel a sua estética, visualmente falando, os traços característicos


percorrem todas suas obras. Em contraposição, seu colega Isao Takahata, troca de estilo
gráfico em seus filmes. Miyazaki concentra esforços em sua obra para a transmissão de
uma importante mensagem:

As crianças de hoje estão cercadas por um mundo de alta tecnologia e


cada vez mais perdem de vista suas raízes no meio de tantos produtos
industriais superficiais. Precisamos mostrar as tradições incrivelmente
ricas que temos. Ao inserir designs tradicionais em uma história com a
qual as pessoas modernas podem se relacionar, e por incorporá-los
como um pedaço de um mosaico colorido, o mundo no filme ganha um
novo tipo de persuasão.38 (MIYAZAKI, 2008, p. 199, tradução nossa).
Dessa forma, entendemos que para que haja identificação do espectador com sua
mensagem, ele explora aspectos de inúmeras fontes e culturas: embasando seus enredos
em peças literárias europeias, ao mesmo tempo constrói cenários embasados em períodos
históricos e na própria paisagem do Japão, que coexistem com castelos medievais, objetos
místicos provenientes de culturas hindus, personagens que não agem em conformidade
ao contexto social, histórico e temporal no qual estão inseridos e criaturas mágicas de
antigos cultos religiosos (HORTA, 2017). Já Takahata, em seus filmes para o estúdio,
retrata campos e cidades, que são próprios da cultura nipônica, salientando em sua trama,
pequenos gestos dando enfoque para a transmissão de emoção.

38
Today’s children are surrounded by a high-tech world and increasingly lose sight of their roots in the
midst of so many shallow industrial products. We need to show what incredibly rich traditions we have. By
inserting traditional designs into a story to which modern people can relate, and by embedding them as a
piece of a colorful mosaic, the world in the film gains a new persuasiveness.
30
Essa cornucópia de imagens, criando um mundo mágico e singular e uma trama carregada
de metáforas, faz com que os filmes de Hayao Miyazaki consiga um melhor alcance,
conexão e identificação com quem está assistindo. Essa mistura e hibridismo permite
maior abrangência e diversidade do público consumidor.

Apesar dos esforços contínuos e estratégias de consumo para alavancar o sucesso das
produções, a aderência ao público é vista – com base nas analises dos quadros de ranking
de bilheteria discutidos previamente – de maneira unilateral. Mesmo que na história do
Ghibli tenham havido um total de 21 longas-metragens dirigidos pelo estúdio, com o total
de sete diretores diferentes, a manutenção no topo do ranking tem sido garantida, em
grande maioria por um único diretor.

Nesse sentido, podemos concluir que a imagem onírica e lúdica atrelada à reputação do
estúdio, retratando questões de extrema relevância de posicionamento crítico (NAPIER,
2007) se concentra, nas mão de Hayao Miyazaki, já que por exemplo existem diretores
que podem ser considerados muito mais minimalista, como é o caso de Isao Takahata,
que explora mais sentimentos e emoções. Seu hibridismo se localiza mais na questão
visual, entre artes estéticas e não no próprio conteúdo em sí e na criação de mundos e
conteúdos os esforços para criar uma obra inter-cultural.

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Filmografia
A VIAGEM de Chihiro. Direção de Hayao Miyazaki. Japão: Studio Ghibli, 2001. 125 min.
AS MEMÓRIAS de Marnie. Direção de Hiromasa Yonebayashi. Japão: Studio Ghibli, 2014. 103
min.
CONTOS de terramar. Direção de Gorō Miyazaki. Japão: Studio Ghibli, 2006. 116 min.
DA COLINA Kokuriko. Direção de Gorō Miyazaki. Japão: Studio Ghibli, 2011. 92 min.
EU posso ouvir o oceano. Direção de Tomomi Mochizuki. Japão: Studio Ghibli, 1993. 72 min.
MEMÓRIAS de ontem. Direção de Isao Takahata. Japão: Studio Ghibli, 1991. 118 min.
MEU Amigo Totoro. Direção de Hayao Miyazaki. Japão: Studio Ghibli, 1988. 86 min.
MEUS vizinhos os Yamadas. Direção de Isao Takahata. Japão: Studio Ghibli, 1999. 104 min.
NAUSICAÄ do Vale do Vento. Direção de Hayao Miyazaki. Japão: Studio Ghibli, 1984. 117
min.
O CASTELO Animado. Direção de Hayao Miyazaki. Japão: Studio Ghibli, 2004. 119 min.
O CASTELO no Céu. Direção de Hayao Miyazaki. Japão: Studio Ghibli, 1986. 125 min.
O CONTO da princesa Kaguya. Direção de Isao Takahata. Japão: Studio Ghibli, 2013. 137 min.
O REINO dos gatos. Direção de Hiroyuki Morita. Japão: Studio Ghibli, 2002. 75 min.
O SERVIÇO de Entregas da Kiki. Direção de Hayao Miyazaki. Japão: Studio Ghibli, 1989. 103
min.
POM Poko: a grande batalha dos guaxinins. Direção de Isao Takahata. Japão: Studio Ghibli, 1994.
119 min.
PONYO: Uma Amizade Que Veio de Mar. Direção de Hayao Miyazaki. Japão: Studio Ghibli,
2008. 101 min.
PORCO Rosso: O Último Herói Romântico. Direção de Hayao Miyazaki. Japão: Studio
PRINCESA Mononoke. Direção de Hayao Miyazaki. Japão: Studio Ghibli, 1997. 134 min.
SUSSURROS do coração. Direção de Yoshifumi Kondō. Japão: Studio Ghibli, 1995. 118 min
TÚMULO dos vagalumes. Direção de Isao Takahata. Japão: Studio Ghibli, 1988. 93 min.
VIDAS ao Vento. Direção de Hayao Miyazaki. Japão: Studio Ghibli, 2013. 126 min

32
O uso do crossover como estratégia narrativa no Universo Cinematográfico
Marvel: Estudo do Caso da série Jessica Jones

The crossover as a narrative strategy on the Marvel Cinematic Universe: a


case study about Jessica Jones TV series

Laís, SOUZA39
Letícia, AFFINI 40

Resumo: Os roteiros do Universo Cinematográfico Marvel são elaborados a partir de


uma engenharia narrativa transmidiática. Ao utilizar o recurso, o intuito da Marvel é
fundir componentes de histórias distintas para expandir seu universo. A partir deste
cenário, o artigo propõe-se a estudar a construção narrativa Marvel por meio da utilização
da estratégia crossover. Para isso, determinou-se a pergunta: quantos crossovers
aparecem na primeira e na segunda temporadas da série Jessica Jones? Estabeleceu-se
como metodologia a pesquisa bibliográfica, e aplicou-se o estudo do caso de Robert K.
Yin. Após desconstrução dos 26 (vinte e seis) episódios selecionados, foram encontrados
20 (vinte) crossovers em cada uma das temporadas, totalizando 40 (quarenta) crossovers.
A primeira temporada possui crossovers distribuídos entre 10 (dez) episódios, enquanto
a segunda em 7 (sete) episódios. Conclui-se que essas particularidades ocorrem devido
ao momento narrativo em que cada uma das temporadas está situada na construção do
universo ficcional Marvel; o arco narrativo da primeira temporada acontece antes da série
“Os Defensores”, portanto, havia maior necessidade de conexões narrativas. Já a segunda
temporada aconteceu após “Os Defensores”, no qual o arco narrativo modificou-se,
diminuindo a quantidade das interseções. Contudo, salienta-se a importância da estratégia
crossover, a qual estimula a capacidade cognitiva e incentiva a busca por novas
informações do espectador das obras transmídias complexas e dos produtos Marvel. Ao
detectar as áreas de interseção proporcionadas por ele, o consumidor amplia o
envolvimento com os enredos das obras e, por sua vez, com a marca Marvel.
Palavras-chave: Audiovisual; Narrativa transmídia; Crossover.

Abstract: The scripts of the Marvel Cinematographic Universe are desinged from a
transmida narrative engineering. In using the feature, Marvel's intent is to merge distinct

39 Mestre e Doutoranda em Mídia e Tecnologia pela Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”

(UNESP), FAAC, Bauru. Membro do Grupo de Análise do Audiovisual GrAAu, cadastrado no CNPq. E-mail:
lais.fermino@unesp.br
40 Professora do Programa de Pós-graduação em Mídia e Tecnologia da Universidade Estadual Paulista “Júlio de
Mesquita Filho” (UNESP), FAAC, Bauru. Líder do Grupo de Análise do Audiovisual - GrAAu, cadastrado no CNPq.
E-mail leticia.affini@unesp.br

33
story components to expand its universe. From this scenario, the article proposes to study
the Marvel narrative construction through the use of the crossover strategy. To that end,
the question was asked: How many crossovers appear in the first and second seasons of
the Jessica Jones series? The bibliographical research was established as methodology,
and the study of the case of Robert K. Yin was applied. After deconstruction of the 26
(twenty-six) selected episodes, 20 (twenty) crossovers were found in each of the seasons,
totaling 40 (forty) crossovers. The first season has crossovers distributed between 10
(ten) episodes, while the second, in 7 (seven) episodes. It is concluded that these
particularities occur due to the narrative moment in which each of the seasons is situated
in the construction of the Marvel fictional universe, the narrative arc of the first season
happens before the series "The Defenders", therefore, there was greater need of narrative
connections. The second season happened after "The Defenders", in which the narrative
arc modified, decreasing the amount of the intersections. However, the importance of the
crossover strategy, which stimulates the cognitive capacity and encourages the search
for new information of the spectator of the complex transmissions and Marvel products,
is emphasized. By detecting the areas of intersection provided by it, the consumer extends
the involvement with the plot of the works, and in turn, with the Marvel brand.
Key words: Audiovisual; Transmedia storytelling; Crossover.

I n trod u ção

O presente artigo faz parte do estudo da dissertação de mestrado da autora, de nome:


“EXPANSÃO DA MARCA POR MEIO DO CROSSOVER: Estudo de Caso das séries
Marvel produzidas para a plataforma Netflix”, junto ao programa de pós-graduação de
Mídia e Tecnologia, ofertado pela Universidade Estadual Júlio de Mesquita Filho
(Unesp), campus de Bauru. 41 A pesquisa, finalizada no começo de 2018, conta com a
análise das séries “Demolidor” (1ª e 2ª temporadas), “Jessica Jones” (1ª temporada),
“Luke Cage” (1ª temporada) e “Punho de Ferro” (1ª temporada).

A segunda temporada de “Jessica Jones” não compõe o escopo da dissertação pelo fato
da mesma ter sido lançada após a sua entrega. Desse modo, este artigo continua a

41 Link: https://repositorio.unesp.br/handle/11449/154005?show=full

34
investigação da autora acerca das estratégias narrativas da obra, contribuindo para a sua
expansão.

Assim, é preciso comentar sobre a parceria constituída entre a Marvel e a Netflix, que
começou em 2015, com o lançamento da série “Demolidor”. Um dos intuitos da parceria
é o de colocar, em outros canais de mídia além do cinema, narrativas pertencentes ao
Universo Cinematográfico Marvel, lançado em 2008 com o filme “Homem de Ferro”. A
partir disso, a Marvel vem construindo um universo transmídia audiovisual para contar
suas histórias, fazendo uso não só dos já citados cinema e Netflix, como também da
televisão, de curtas-metragens e de websodes.

Nesse cenário de construção de histórias e personagens, a Netflix ficou responsável por


contar, inicialmente, as histórias de “Demolidor”, “Jessica Jones”, “Luke Cage” e “Punho
de Ferro”. O propósito era introduzir essas quatro personagens, para que todas elas se
encontrassem na série “Os Defensores”. O quadro abaixo expõe a ordem de lançamento
das obras Marvel-Netflix até o momento:

Fonte: As autoras
Quantidade de
Temporada Data de lançamento
Série episódios
Demolidor 1 10 de abril de 2015 13
Jessica Jones 1 20 de novembro de 2015 13
Demolidor 2 18 de março de 2016 13
Luke Cage 1 30 de setembro de 2016 13
Punho de Ferro 1 17 de março de 2017 13
Os Defensores 1 18 de agosto de 2017 8
O Justiceiro 1 17 de novembro de 2017 13
Jessica Jones 2 8 de março de 2017 13
Luke Cage 2 22 de junho de 2018 13
Punho de Ferro 2 7 de setembro de 2018 10
Demolidor 3 19 de outubro de 2018 13
Voltando ao objeto de estudo deste artigo, a série Jessica Jones conta a história de uma
mulher valente, solitária, com problemas de confiança e alcoolismo. Na infância, Jessica
perde os pais e o irmão em um acidente de carro e, após passar um tempo em um hospital,
é adotada e descobre ser dotada de poderes. Já adulta, Jessica mostra-se uma pessoa
arredia e traumatizada por abusos, que culminaram em um Transtorno de Estresse Pós-
Traumático. Nesse cenário de confusão mental, a heroína trabalha como investigadora e
tenta fazer com que seus superpoderes passem despercebidos. Já na segunda temporada,

35
as habilidades de Jessica não são mais segredo e ela busca compreender melhor de onde
estes vieram, resgatando memórias e pessoas de seu passado.

A primeira temporada da série estreou em 20 de novembro de 2015, pela Netflix, com


treze episódios disponibilizados, simultaneamente, na plataforma para todos os lugares
do mundo onde o serviço está presente. Como visto no quadro acima, a primeira
temporada de Jessica Jones foi sucessora de “Demolidor” (atualmente com três
temporadas).

Após a primeira temporada de “Jessica Jones”, foram exibidas a segunda temporada de


“Demolidor”, a primeira temporada de “Luke Cage” e a primeira temporada de “Punho
de Ferro”. Após essas quatro personagens serem apresentadas, todas elas aparecem juntas,
culminando na série “Os Defensores”, colocada no catálogo de exibição da Netflix em 18
de agosto de 2017.

A série seguinte à “Os Defensores” foi “O Justiceiro”, exibida em 17 de novembro de


2017. Tal obra abriu novas abas, a serem exploradas pelo Universo Marvel, na Netflix, e
foi a antecedente à segunda temporada de “Jessica Jones”, lançada em oito de março de
2018. “O Justiceiro” não entrou nesta pesquisa de mestrado pelo fato de a data de seu
lançamento estar próxima à entrega da mesma; embora esteja no mesmo universo, a
proposta de estudo deste artigo é a comparação entre as temporadas de Jessica Jones. Com
isso, a escolha de “Jessica Jones” como objeto de pesquisa deu-se pelo interesse em
investigar a quantidade de conexões narrativas entre a série e as demais obras apontadas,
e com o restante do universo ficcional Marvel fora da Netflix.

É importante atualizar o leitor sobre a parceria entre a Marvel e a Netflix. Foi divulgado
recentemente (outubro de 2018) que as séries “Punho de Ferro” e “Luke Cage” foram
canceladas pela Netflix e não terão uma próxima temporada. O motivo dos cancelamentos
não foi revelado, mas um dos rumores é de que as produções da Marvel sairão da Netflix
em breve e serão disponibilizadas no serviço de streaming da Disney, detentora da marca
Marvel, na plataforma “Disney Play”, com data de lançamento para 2019. Assim, é
possível que as histórias de “Punho de Ferro” e “Luke Cage” continuem a serem exibidas
neste novo canal de streaming.

36
Retomando o presente artigo, busca-se, nesta pesquisa, relacionar a marca Marvel com a
construção de seu universo transmídia, e a identificação dos seus pontos de virada,
utilizando como objeto a trama das temporadas de “Jessica Jones”. Será abordado como
o recurso da estratégia crossover possibilita imersão no universo ficcional Marvel e,
assim, maior assimilação e identificação com a marca.

Metodologia

Para o desenvolvimento deste estudo, estabeleceram-se como metodologia a pesquisa


bibliográfica e a aplicação do estudo de caso. Para a primeira parte, utilizar-se-ão os
conceitos de Henry Jenkins (2008), Jason Mittel (2012), Carlos Scolari e Mar Guerrero-
Pico (2015) e Andrea Semprini (2010). A articulação dos conceitos engloba convergência
midiática, linguagem audiovisual, transmídia, tecnologia, narrativa complexa e marca,
todos cruciais para fomentar a discussão proposta pela presente pesquisa. “A principal
vantagem da pesquisa bibliográfica reside no fato de permitir ao investigador a cobertura
de uma gama de fenômenos muito mais ampla do que aquela que poderia pesquisar
diretamente” (GIL, 2010, p. 30). Portanto, as considerações dos autores pesquisados
colaboram com a construção da obra em questão, a qual busca uma abordagem ampla
sobre os desdobramentos da convergência midiática na sociedade contemporânea.

A segunda parte do trabalho consiste no estudo do caso de Robert K. Yin (2010), sendo
este o método mais adequado para verificar as intersecções propostas pela série, o que
reverbera na expansão e no desenvolvimento da marca Marvel. As categorias do estudo
de caso foram baseadas em David Bordwell (2013), as quais apontam a articulação entre
tempo, espaço e o sistema da lógica narrativa como categorias facilitadoras para a
produção de obras audiovisuais.

Dessa forma, pretende-se, com a aplicação do estudo do caso, proporcionar sugestões e


novas abordagens a respeito da utilização dos crossovers e suas implicações na expansão
do Universo Marvel. A estrutura da metodologia é composta pelas seguintes categorias:
personagem, ação e espaço, as quais colaboram para a desconstrução, a análise da obra e
da estratégia crossover.

Expandindo o conteúdo Marvel: a narrativa transmídia complexa

37
Ao utilizar os dispositivos tecnológicos, o usuário digital detém o poder de transformar
seu papel como consumidor de mídia. A cultura participativa confronta a antiga teoria da
passividade dos indivíduos em relação aos meios de comunicação. O ciberespaço, a rede,
propicia e permite que ele se torne formador de conteúdo ao compartilhar ideias e
experiências.
O poder da participação vem não de destruir a cultura comercial, mas de reescrevê-la,
modificá-la, corrigi-la, expandi-la, adicionando maior diversidade de pontos de vista, e
então circulando-a novamente, de volta às mídias comerciais. Interpretada nestes
termos, a participação torna-se um importante direito político. O surgimento de novas
tecnologias sustenta um impulso democrático para permitir que mais pessoas criem e
circulem mídia. Às vezes a mídia é planejada para responder aos conteúdos dos meios
de massa – positiva ou negativamente – e às vezes a criatividade alternativa chega a
lugares que ninguém na indústria da mídia poderia imaginar (JENKINS, 2008, p. 326).

Dentro dessa perspectiva, o pesquisador Henry Jenkins (2008) constatou a apropriação


dos consumidores em relação às novas ferramentas digitais e produções midiáticas. As
narrativas transmídias configuraram-se através da expansão de seus universos ficcionais
em múltiplas plataformas midiáticas. Assim, cada texto, em uma mídia diferente,
colabora de forma individual e específica para a compreensão do todo. A narrativa

transmídia refere-se à “(...) estética que faz novas exigências aos consumidores e depende
da participação ativa da comunidade de conhecimento” (JENKINS, 2008, p.49). Quando
essas histórias são consumidas no todo, a experiência do indivíduo é mais completa e
profunda.

A transição da narrativa entre os meios de comunicação, principalmente digitais, atribui


aspectos virtualizados à história e propicia um cenário ideal para propagar a narrativa, de
forma onisciente. Na cultura participativa, os acontecimentos são gerados, interpretados,
ressignificados e transmitidos de formas diversas pelos usuários conectados, que
interagem entre si e acumulam as informações em um trabalho colaborativo, no qual cada
participante sustenta a atividade do próximo, corroborando com a inteligência coletiva.
Ademais, para o autor, uma narrativa transmidiática é bem-sucedida ao exibir partes
fragmentadas em diferentes mídias e não redundantes de uma história, evitando a
conclusão rápida do desfecho narrativo pelos espectadores. Este processo é, portanto,
estratégico e instiga o público a consumir mais produtos relacionados ao universo
ficcional.

38
A narrativa transmídia é a arte da criação de um universo. Para viver uma experiência
plena num universo ficcional, os consumidores devem assumir o papel de caçadores e
coletores, perseguindo pedaços da história pelos diferentes canais, comparando suas
observações com as de outros fãs, em grupos de discussão on-line, e colaborando para
assegurar que todos os que investiram tempo e energia tenham uma experiência de
entretenimento mais rica (JENKINS, 2008, p.49).

Para nutrir a atenção dos indivíduos, são lançados materiais complementares à história
central, como quadrinhos, séries e curtas-metragens, satisfazendo a vontade por novas
informações de fãs mais exaltados. O universo continua a ser expandido nesses conteúdos
independentes e oferece inesperados níveis de revelação, experiência e imersão para os
consumidores. Dessa forma, a narrativa transmídia pretende não só criar engajamento
com seu público alvo, mas sustentar um vínculo com o mesmo. Essa relação de mão dupla
preenche os anseios de consumo do espectador e retorna o investimento da empresa.

Esse cenário midiático convergente e transmidiático propicia a ascensão da narrativa


complexa, caracterizada por Jason Mittel como “(...) uma redefinição de formas
episódicas sob a influência da narração em série” (MITTEL, 2012, p.36). Embora sua
pesquisa seja específica sobre as narrativas seriadas da televisão norte-americana, o
modelo complexo pode ser atribuído aos formatos on demand e via streaming, como o
utilizado pela Netflix e as outras plataformas (Amazon, Hulu, HBO).
[...] a complexidade narrativa oferece uma gama de oportunidades criativas e uma
perspectiva de retorno do público que são únicas no meio televisivo. Ela deve ser
estudada e entendida como um passo chave na história das formas narrativas televisivas.
Podemos pensar que a fruição proporcionada por narrativas complexas são mais ricas e
mais multifacetadas do que aquela oferecida pela programação convencional (MITTEL,
2012, p. 31).

Disponibilizar séries de estrutura complexa, oriundas do fluxo televisivo convencional,


no modelo on demand, propicia ao usuário uma nova experiência. Além de já estar
lidando com uma estrutura complexa, o consumidor também se depara com um modelo
de distribuição moderno e arrojado. Portanto, a plataforma Netflix confronta o sistema
televisivo formal, principalmente pelo item distribuição de conteúdo.

O sistema on demand e a distribuição streaming são a evolução dos videocassetes e


gravadores. “E, um dado mais importante no sentido da construção da narrativa, eles (os
usuários) podem rever episódios ou partes deles para analisar momentos complexos”
(MITTEL, 2012, p.35). Ou seja, o consumidor não perde o conteúdo, diferente do modelo
39
tradicional da televisão, no qual este é exibido uma única vez, na íntegra. Notando o
potencial das narrativas complexas, a plataforma preocupou-se em se utilizar dessa
estrutura para as suas produções e séries originais. Ademais, a narrativa complexa
utilizada nos enredos das séries também foi enaltecida devido à interação entre os
consumidores e a Netflix.
As transformações tecnológicas distantes da tela da televisão também impactaram a
narrativa televisiva. A ubiquidade da internet permitiu que os fãs adotassem uma
inteligência coletiva na busca por informações, interpretações e discussões de
narrativas complexas que convidam à participação e ao engajamento (MITTEL, 2012,
p.36).

Nota-se a articulação das ideias de Jason Mittel (2012) com as do autor Henry Jenkins
(2008), apresentadas acima. Ambos pontuam a importância de outras plataformas que
possam instigar e ampliar a participação dos usuários nos universos ficcionais. A
complexidade narrativa de Mittel e a construção de narrativas que se alternam entre as
diversas mídias, a transmídia, proporcionam experiências profundas ao público. A Netflix
entra nesse time de mídias tecnológicas ao promover a disseminação e popularizar a
complexidade ficcional.

Os universos ficcionais, construídos de forma complexa, desencadeiam uma verdadeira


legião de fãs. As narrativas tornam-se um elo comum entres esses indivíduos fanáticos,
que se unem e comprometem-se a seguir fielmente sua obra favorita.
O público tende a aderir a programas complexos de uma forma muito mais apaixonada
e comprometida do que à maior parte da programação da televisão convencional. Usam
estes programas como base para uma cultura de fã fortalecida e podem dar uma resposta
ativa à indústria televisiva (especialmente quando seu programa ameaça ser cancelado)
(MITTEL, 2012, p.36).

Os consumidores das narrativas ficcionais tornam-se verdadeiros especialistas em sua


série favorita. Eles realizam o que Steven Johnson (2005) denomina “ginástica
cognitiva”, uma espécie de exercício mental que os torna cada vez mais condicionados e
aptos a observações e a análises das produções assistidas. Essa prática faz com que o
consumidor investigue os detalhes da obra apreciada e vá fundo no universo apresentado
por ela.

[...] É certo que este ramo do storytelling televisivo encoraja o público a ser mais
engajado ativamente e oferece um espectro mais amplo de recompensas e de fruição
que a maior parte da programação televisiva (MITTEL, 2012, p. 36).

40
A estratégia narrativa, como já visto acima, é o ponto-chave em obras complexas. Ao
dispor seus enredos em diversas mídias, o Universo Marvel desafia a fruição do
consumidor, o qual já está acostumado a receber, em pequenas dosagens, o enredo das
personagens e suas ações. O consumidor espera ansiosamente pelos pontos de virada das
tramas, uma vez que estes são os responsáveis por manter o interesse do espectador na
obra. Essa sensação, no cenário complexo, não é incômoda, mas sim primordial: esgotar
o processo de assimilação e de descobrimento das narrativas não é interessante, uma vez
que os consumidores anseiam pela expectativa de novas narrativas; sendo assim, os
pontos de virada reiteram ou criam uma nova conexão entre consumidor-obra.

Nos programas narrativamente complexos de hoje estas variações nas estratégias de


storytelling são mais comuns e assinaladas de maneira muito mais sutil ou adiadas;
esses programas são construídos sem medo de causar uma confusão temporária no
espectador. [...]. Todos apresentam perspectivas sobre eventos que oscilam entre a
subjetividade da personagem e a realidade diegética, jogando com as fronteiras
ambíguas com o objetivo de conseguir profundidade de personagem, suspense e efeito
cômico (MITTEL, 2012, p.46).

Contudo, o presente estudo atenta-se, ao explorar as formas de contar histórias, às suas


estratégias narrativas e intersecções com os consumidores, aos caminhos que delineiam
as indústrias midiáticas e de entretenimento. Ao adentrar nesse cenário tecnológico
promissor e expandir seu universo ficcional para a Netflix, a Marvel contempla a
exigência do consumidor, sedento por novos enredos, novas experiências e maneiras de
diversão. O consumo da narrativa transmídia complexa permite que outros recursos da
marca sejam questionados, como aqueles relacionados à sua dimensão mercadológica e
simbólica, apresentados no tópico a seguir.

Marca: construindo a Marvel

A existência de um super-herói, seu comportamento, preferencias, roupas e todos os seus


adereços, são produtos comercializados pela marca Marvel. O público apodera-se do
estilo de vida das personagens e torna-se, concomitantemente, um consumidor de mídia
e de mercadorias. Assim, para se diferenciarem no mercado, as marcas otimizam e
direcionam as suas ações de marketing, que devem pautar-se, primordialmente, na criação
de relacionamentos com o seu consumidor.

41
Para o semioticista italiano Andrea Semprini (2010), as marcas, em um contexto pós-
moderno, são constituídas de aspectos semióticos e, por sua vez, simbólicos. Nesse
cenário, o autor comenta que a busca por diferenciação entre as marcas está cada vez mais
competitiva e acirrada.

Em um mercado cada vez mais saturado e diversificado, afora raras exceções, uma
marca não tem nenhuma chance de se impor sozinha, sem o suporte de uma estratégia
de comunicação. Sufocada, afogada em uma oferta excessiva e continuamente
renovada, ela não conseguiria se fazer conhecer, construir sua notoriedade. Mas
sobretudo, uma marca sem comunicação não veicularia nenhuma especificidade, não
saberia qualificar sua presença e justificar sua originalidade, tanto sobre o plano dos
produtos propostos quanto por seu projeto de marca mais geral [...] As marcas
multiplicam sua presença quantitativa, enriquecem sues discursos e diversificam suas
técnicas (SEMPRINI, 2010, p.72).

É nessa busca por diferenciação e tentativa de antecipar os desejos de consumo do público


que a marca apodera-se de aspectos semióticos. Em um contexto contemporâneo, as
marcas desenvolvem projetos e ações fornecedores de aspectos subjetivos e profundos,
não somente relacionados à funcionalidade dos produtos e serviços.

Em uma configuração de mercado pós-material e em um espaço de consumo pós-


moderno, a marca é a entidade que instala e propõe um projeto de sentido a seus
consumidores. O produto ou os serviços são manifestações que permitem exprimir e
introduzir esse projeto de forma concreta na vida dos indivíduos, o produto não é nem
oposto, nem complementar, nem suplementar à marca, ele é sua manifestação
(SEMPRINI, 2010, p.140).
A marca, portanto, trabalha com diversos aspectos para cumprir seu papel semiótico e
manifestar-se perante o público. Essas manifestações são parte de um complexo projeto
de marca, desenvolvido meticulosamente para atrair e fazer sentido para o consumidor.

Assim sendo, entende-se que a Marvel está criando um sistema complexo para manifestar
seu projeto de marca. De forma mais precisa, ela se manifesta através da narrativa
transmídia complexa para divulgar seu projeto de marca. O público obtém uma vasta
gama de material, espalhado em diversas mídias, que compõe o universo ficcional
proposto pela marca.

Por lidar com a adaptação de suas narrativas, originalmente disponibilizadas em revistas


e histórias em quadrinhos, a marca Marvel carrega a responsabilidade da representação
fiel nas telas, e no caso deste estudo, mais especificamente a representação do personagem
Jessica Jones, na Netflix.
42
[...] olhar para o futuro não significa obviamente renegar o passado. Destacar a
dimensão dinâmica e evolutiva da marca permite, igualmente, lembrar que uma marca
se inscreve no tempo e, principalmente, em seu passado. [...] a primeira fonte de
legitimidade e de criatividade para um projeto de marca é seu passado. Uma marca de
prestígio é, antes de tudo, uma marca que sabe perenizar seu projeto e perdurar no
tempo. [...] O devir de uma marca é, então, em primeiro lugar, enraizado em sua história,
em sua capacidade para se adaptar às evoluções do sistema, permanecendo ela mesma,
o que quer dizer fiel, mas com flexibilidade e adaptação a seu projeto original
(SEMPRINI, 2010, p.109).

A empresa é, notoriamente, um exemplo de adaptação às evoluções da sociedade.


Aderindo ao sistema on demand, ela prova sua preocupação em acompanhar o ritmo do
público ao inserir produções originais no catálogo de serviços, que não só aprimoram e
fazem parte do seu projeto de marca, como também auxiliam na construção do Universo
Marvel. Sobre o contrato de marca, Andrea Semprini (2010) pontua:
O contrato de marca é aprovado pelo receptor quando a identidade manifesta e o projeto
de uma marca entram em ressonância com seus próprios projetos, necessidades,
desejos, fantasias e imaginários. O contrato será ainda mais forte se souber dar ao
receptor a impressão de lhe proporcionar um algo mais de sentido já formulada e
claramente identificada enquanto tal, como também traçar um novo horizonte de
sentido no qual o receptor encontra a interpretação de uma busca de significado que ele
sentia, mas que não havia ainda explicitado claramente (SEMPRINI, 2010, p. 163).

Portanto, o formato audiovisual, e no caso do objeto desta pesquisa, a série on demand,


modificou os códigos de identificação com a marca: antes, as histórias em quadrinhos, e,
agora, as produções audiovisuais. Essa mudança proposital, para acompanhar o mercado
e as exigências do consumidor inserido na era da convergência midiática, ampliou não só
as possibilidades mercadológicas, mas abriu novas opções de códigos para a marca ser
reconhecida pelo púbico. Uma vez que o alcance das narrativas seriadas torna-se cada vez
mais comum entre os consumidores da marca, as séries on demand são uma forma de
manifestação do discurso da Marvel.

O crossover no Universo Marvel

Para discutir os resultados da pesquisa é crucial debruçar-se sobre o conceito de


crossover. Esta prática é uma importante ferramenta para conectar enredos e personagens
inseridos em universo transmídia. Também é necessário relembrar que apenas a adesão
do crossover não é suficiente para a construção da narrativa transmídia. Como já discutido
acima, por meio das definições do teórico Henry Jenkins é crucial a inserção de distintas
plataformas e conteúdos para a consolidação de um projeto transmidiático.
No entanto, como o conceito de narrativa transmídia, o crossover está dentro das
mesmas condições de campos semânticos relacionados, como o mashup ou o remix. De

43
acordo com o Dicionário Oxford Inglês, crossover significa literalmente "um ponto ou
lugar de onde cruza de um lugar para outro." Na música, o termo é utilizado para
descrever fusões de estilos de artistas famosos de mais de um gênero musical, enquanto
que no reino da ficção nomeia obras que mostram personagens de dois ou mais mundos
narrativos no contexto da mesma história (GUERRERO-PICO e SCOLARI, 2016,
p.187) 42.

O crossover, portanto, ao mesclar acontecimentos e personagens, no caso da produção


analisada, “Jessica Jones”, amplia a imersão do consumidor dentro do Universo Marvel
em expansão. O cruzamento dos fragmentos, dispersos nas diversas narrativas, amplia a
compreensão do universo ficcional Marvel.

Resultados

O quadro abaixo (baseado no tópico “Metodologia”, explicado acima) foi aplicado


durante as observações da série Jessica Jones, conforme eram detectados os crossovers
em cena, nos 26 (vinte e seis) episódios assistidos. Ao localizar um crossover em cena, a
exibição era pausada para completá-lo.

Quadro 1 – Categorias para análise crossover

Tempo de
Espaço Personagem Ação Crossover Observação
exibição

O que é Elemento de Descrição do


Facilitar a O local Quem está feito, elo entre as elemento
localização onde envolvido na dito ou tramas do crossover
da cena ocorre a cena mostrado Universo
cena em cena Marvel

42 “Sin embargo, al igual que el propio concepto de narrativa transmedia, el crossover se encuentra dentro del
mismo campo semántico que otros términos relacionados, como mashup o el propio remix. Según el Oxford English
Dictionary, crossover significa literalmente “un punto o lugar desde el que se cruza de un lugar a otro”. En música, el
término se utiliza para describir desde fusiones de estilos a artistas presentes en listas de éxitos de más de un género
musical4, mientras que en el ámbito de la ficción nombra a obras que muestran personajes procedentes de dos o más
mundos narrativos en el contexto de una misma historia.”

44
Fonte: Créditos da pesquisadora

Quadro 2 – Exemplo de Desconstrução Jessica Jones 1ª Temporada

Jessica Jones
1ª Temporada
Episódio 1
Tempo
de Espaço Personagem Ação Crossover Observação
exibição

Ser um deles
significa ser
Jessica uma pessoa
segura o com
Jessica Jones carro de poderes,
17’52’’ Gregory heróis, tanto
Rua com as CP como Matt
Gregory mãos, ele se Murdock, de
Spheeris assusta e Demolidor,
diz: “Você como os
é um deles” vistos na
“Batalha de
Nova York”
Fonte: Créditos da pesquisadora

Quadro 3 – Exemplo de Desconstrução Jessica Jones 2ª Temporada

Jessica Jones
2ª Temporada
Episódio 2
Tempo
de Espaço Personagem Ação Crossover Observação
exibição

Ser um deles
Ao notar significa ser uma
a força de pessoa com poderes,
Jessica Jones Jessica, heróis, como Matt
04’12’’ um Murdock/Demolidor,
Bar Homem do homem CP Punho de Ferro,
bar diz “Você Luke Cage, e os
é um vistos na “Batalha de
deles” Nova York”, ou
“Incidente”

37’20’’ Max Tattum Trish diz “Metro-General” é


Trailer
a Max CE um Hospital, o qual
de Max
que aparece também nas
45
precisa da séries “Punho de
Trish
influência Ferro”,
Walker
de Max “Demolidor”, e
para “Luke Cage”
acessar os
dados do
“Metro-
General”
Fonte: Créditos da pesquisadora

Quadro 4 - Crossovers totais em “Jessica Jones - 1ª e 2 Temporada”


Jessica Jones – 1ª Temporada 20
Jessica Jones – 2ª Temporada 20
Total 40

Fonte: Créditos da pesquisadora

Discussão
Observou-se, durante a análise das obras, a possibilidade de ampliar os tipos de
crossovers além da clássica definição de crossover de personagem (CP), conceituado por
Mar Guerrero-Pico e Carlos Scolari (2016). Desse modo, estabeleceram-se mais três
categorias: crossover de espaço, (CE) crossover de ação (CA) e crossover de objeto (CO).
Uma vez que a definição dos autores foi aprimorada, as novas categorias foram incluídas
na desconstrução e análise das obras. Desse modo, na coluna “Crossover”, identificam-
se siglas diferentes (CP e CE).
A escolha dos episódios para o quadro de demonstração foi feita de modo aleatório,
apenas para ilustrar como foram feitas as análises. Reitera-se que este artigo é uma
extensão da dissertação de mestrado da autora. Na pesquisa completa estão contidas as
desconstruções das outras séries: “Demolidor” (1ª e 2ª temporadas), “Luke Cage” (1ª
temporada) e “Punho de Ferro” (1ª temporada). Assim, para melhor compreensão das
tabelas, das categorias estabelecidas e a relação entre elas, é recomendado o acesso ao
estudo, para a visualização dos enredos e narrativas componentes do universo ficcional
Marvel.
No entanto, é possível traçar considerações particulares da série “Jessica Jones”, e o uso
da estratégia crossover, e estabelecer uma relação com a utilização do recurso com os
chamados pontos de virada, os quais criam ou ampliam o elo de interesse dos espectadores
46
na trama. Assim, nota-se que a utilização dos crossovers desperta o interesse do
consumidor, devido ao recurso estar associado diretamente ao universo ficcional Marvel.
Ao notar a existência de um personagem, objeto, espaço ou ação em comum com outras
obras do Universo Cinematográfico Marvel o espectador percebe a magnitude do
universo em construção, uma vez que ele não está limitado somente a uma narrativa
distinta, mas sim a uma vasta rede de conexões, distribuídas por outras obras, que
proporcionam tantos outros pontos de virada.
A quantidade de crossovers, na primeira e na segunda temporadas de Jessica Jones, foi
igual: cada temporada possui 20 (vinte) crossovers, totalizando 40 (quarenta) crossovers.
Na primeira temporada não foram detectados crossovers em três dos treze episódios; já
na segunda temporada, o número de episódios sem crossovers dobrou e saltou para seis
episódios sem crossovers.
Sobre a primeira temporada de Jessica Jones, é importante reiterar que ela é a segunda
obra do Universo Marvel na Netflix (precedente a ela, houve “Demolidor”). Assim, esta
obra inicia o processo de ligação e a utilização dos crossovers entre as séries na
plataforma. Outra observação é a introdução da personagem Luke Cage na trama da
primeira temporada. Ao inserir Luke na trama, o público compreende a possibilidade de
explorar outras personagens e situações dentro de um mesmo universo. Assim, a
quantidade de crossovers está melhor distribuída ao longo da temporada.

No entanto, a segunda temporada foi exibida após o encontro de Jessica, Luke Cage,
Demolidor e Punho de Ferro na série “Os Defensores”. Desse modo, interpreta-se que,
até a série “Os Defensores”, havia maior necessidade de intersecções e crossovers, afim
de fazer com que o público notasse, com mais afinco, o elo entre as narrativas e com o
restante do universo Marvel. Assim, a segunda temporada, por possuir uma finalidade
diferente da primeira (a já comentada acima, de apresentar a personagem e vinculá-la ao
resto do Universo Marvel na Netflix), expõe uma quantidade igual de crossovers, não
superior, como era esperado. Ou seja, conclui-se que a utilização dos crossovers está
diretamente ligada aos arcos narrativos de todo o Universo Cinematográfico Marvel. Fora
da Netflix, as obras apresentadas no cinema e na televisão, estão mudando seus arcos,
refletindo também nas produções para a Netflix.

47
Contudo, é crucial debruçar-se sobre a importância da estratégia crossover, a qual
estimula a capacidade cognitiva e incentiva a busca do consumidor das obras Marvel por
novas informações. Esse espectador é desafiado a cada instante, tendo que concentrar sua
atenção à narrativa. Ademais, o indivíduo que capta mais informações torna-se
especialista nas produções Marvel.
Com a percepção de todas essas possibilidades crossovers, considera-se que o
consumidor dos produtos Marvel está apto a detectar as áreas de intersecção e ampliar,
de modo exponencial, a compreensão do universo ficcional. Por fim, o público envolve-
se com as obras e, consequentemente, com a marca, sendo motivado a consumi-la, de
forma excessiva. A análise, não só das duas temporadas de “Jessica Jones”, mas das obras
já examinadas para a dissertação de mestrado da autora, permite compreender o momento
narrativo das mesmas dentro do universo Marvel. Os recursos estratégicos são formulados
a partir do que já foi, do que está sendo e do que será apresentado, demonstrando unidade
e coerência ficcional. Todos esses recursos proporcionam destaque ao produto
audiovisual, uma das táticas mais eficazes dos projetos narrativos do século XXI.

Referências bibliográficas
BORDWELL, D; THOMPSON, K. A arte do cinema: uma introdução. São Paulo: EDUSP,
2013.
GUERRERO-PICO, M. y SCOLARI, C.A. (2016). Narrativas transmedia y contenidos
generados por los usuarios: el caso de los crossovers. Cuadernos.info, (38), 183-200. doi:
10.7764/cdi.38.760.
JENKINS, H. Cultura da Convergência. São Paulo: Ed. Aleph, 2008.
MITTEL, J. Complexidade narrativa na televisão americana contemporânea. MATRIez, Ano
5 – nº 2 jan./jun. 2012. São Paulo, p. 29-52
SEMPRINI, A. A marca pós-moderna: Poder e Fragilidade da Marca na Sociedade
Contemporânea. 2. Ed. – São Paulo: Estação das Letras e Cores, 2010.
YIN, R. Estudo de caso: planejamento e métodos. 4. ed. Porto Alegre: Bookman, 2010.

48
Joe Wright e o design da narrativa em Anna Karenina
Joe Wright and the design of narrative in Anna Karenina

Rogério Pereira dos Santos43

Resumo: A produção cinematográfica Anna Karenina (Reino Unido, 2012)


apresentou a intersecção entre o romance de Liev Tolstói, a linguagem cinematográfica e
a encenação teatral. Por intermédio dessa chave criativa, o diretor inglês Joe Wright
propôs um hibridismo dialético entre apresentação-representação próprio do teatro e não
exatamente inédito no cinema, mas que atua de maneira a evidenciar a ideia de ilusão
aparente. Os bastidores da filmagem, a mistura entre as locações externas e as coxias de
um teatro, os longos movimentos de câmeras em planos-sequências e a profundidade de
campo fazem certa referência à Arca Russa (Russian Ark, Alemanha, Canadá, Dinamarca,
Finlândia, Japão, Rússia, 2002), de Aleksandr Sokurov, e contribuem para uma ilusão
fílmica incompleta. Tal experimento formal sobre as propriedades da mise-en-scène ou
dentro dos processos digitais de manipulação da imagem exigem do diretor um design
cênico-narrativo: texto e cena em contínua convergência à serviço da trama e pelos quais
os sistemas de significação são tecidos estrategicamente. Portanto, direção de arte,
direção e atuação assumem uma narratividade que busca estabelecer um jogo com a
plateia. Este talvez seja o ponto central da operação criativa de Joe Wright em Anna
Karenina: um revelar-esconder repleto de informações subliminares, um ser-parecer
meticulosamente pensado, tal como na “metáfora do espelho” do filósofo Immanuel Kant.
Palavras-chave: Design; Narrativa; Ilusão Aparente; Joe Wright; Anna Karenina

Abstract: Anna Karenina (United Kingdom, 2012) presents the intersection between Leo
Tolstoy's novel, cinematographic language and stage play. Through this creative key, the
English director Joe Wright proposed a dialectical hybridism between presentation-
representation of the theater (not exactly new in the cinema), and acts in a way to expose
the idea of apparent illusion. The backstage of the footage, the mixture between outer
locations and theater backstages, the long takes with depth of field (that refer to the
Russian Ark - Russian Ark, Germany, Canada, Denmark, Finland, Japan , Russia, 2002,
by Aleksandr Sokurov) contribute to an incomplete filmic illusion. Such a formal
experiment on the properties of mise-en-scène or within the digital processes of image
manipulation demands of the director a scenic-narrative design: text and scene in
continuous convergence at the service of the plot and by which systems of signification
are strategically woven. Therefore, production design, direction and performance assume
a narrativity that seeks to establish a game with the audience. This may be the focus of

43 Doutorando e mestre em Educação, Arte e História da Cultura pela Universidade Presbiteriana Mackenzie

(PPGEAHC-UPM), bacharel em Artes Plásticas pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo
(ECA-USP) e graduando em Letras Modernas pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade
de São Paulo (FFLCH-USP). E-mail: gerodesign@gmail.com
49
Joe Wright's creative operation on Anna Karenina: a revealing hiding, something like a
field betwin being and seem, as the Immanuel Kant's "metaphor of the mirror".
Key words: Design; Narrative; Apparent Illusion; Joe Wright; Anna Karenina

O design da narrativa
Muitas vezes, ao nos depararmos com o fenômeno audiovisual, seja na penumbra de uma
sessão de cinema, em frente à tela do computador ou ainda durante o acesso de pequenos
dispositivos eletrônicos, somos tomados por uma ideia de visualidade que, mesmo sendo
percebida como veículo subordinado à narrativa e à construção de sentidos, é, ela mesma,
potência produtora da narração. Tomemos como exemplo o plano-sequência dos
momentos iniciais de A última tempestade (Prospero’s Books, França, Holanda, Itália,
Japão, Reino Unido, 1991), de Peter Greenaway: Próspero caminha pelo palácio de seu
exílio. Um séquito de cortesãos, habitantes de alcovas entreabertas, acompanha seu
caminhar, outros anônimos, alheios, dançam, comem e bebem entre os arcos quase
infinitos do palácio. A câmera segue em travelling. O cenário expõe-se em artificialidades
e estímulos visuais. Sobreposições de imagens controem a simultaneidade de ações. Um
pequeno navio em miniatura naufraga sob forte tempestade, ou melhor, sob o jato de urina
de Ariel. Próspero desaparece através do fade de seu próprio manto. Toda a ideia desta
simples unidade dramática caminha no sentido de um projeto cênico-narrativo que pulsa
a despeito da grande trama instituída pelo roteiro. Se descolada do corpo do filme, essa
unidade nos fala de um homem num eterno vagar por entre espectros, num ambiente
mítico, passagens em arcos e efeitos bruxuleantes, como Virgílio de A divina comédia,
de Dante Alighieri. Vista por este ângulo, poderia-se dizer que a narrativa é atravessada
pela direção de arte num processo de elaboração de inferências. Ainda que instituída pelo
roteirista e conduzida pelo diretor, a narrativa encontraria na direção de arte espaços de
autonomia de significados, ou seja, a direção de arte irrompe em subjetividades.
Pensemos na mesma sequência fílmica a partir do roteiro, ainda que dirigida em
travelling, como pensou Peter Greenaway, mas onde a visualidade exuberante (dos
diretores de arte Ben van Os e Jan Roelfs) fosse substituída por um minimalismo extremo
ou por uma contemporaneidade, por assim dizer, realista. Em que sentido caminharia a
nossa personagem? Talvez a cena nos falasse de um homem em dissonância com seu

50
tempo ou perdido em pensamentos. Talvez nos falasse de perda ou solidão, como uma
imagem de Edward Hopper. Nada haveria de mítico. Muito haveria de humano.
Em certa medida, um projeto de direção de arte, uma vez cristalizado na obra filmica com
a finalização da montagem, imprime sobre a retina sua singularidade carregada de
narratividade (já enunciada em sua concepção inicial). Ela faz ecoar livres associações,
como mínimos curtos-circuitos ou significantes pontos de luz na história a ser contada.
Ela é o design da narrativa. Um sobreacorde proposto à percepção da trama e suas
imagens em movimento.

A ÚLTIMA Tempestade. Direção: Peter Greenaway. Produção: Masato Hara, Kees Kasander,
Katsufumi Nakamura, Yoshinobu Namano, Denis Wigman, Roland Wigman. França, Holanda,
Itália, Japão, Reino Unido: Allarts, Cinéa, Caméra One, Penta Film et al, 1991. 1 bobina
cinematográfica (124min), son., color., 35mm.

A história original de Stefan Zweig para O grande Hotel Budapeste (The Grand Budapest
Hotel, Alemanha, Estados Unidos, 2014), roteirizada e dirigida por Wes Anderson,
encontrou na produção fílmica caminhos, de certo modo, similares aos de A última
tempestade para narrar as aventuras de Gustave H, o famoso concierge do lendário hotel
situado na fictícia República de Zubrowka, no Período Entreguerras. A direção de arte
(de Adam Stockhausen e Anna Pinnock), com seu uso recorrente de maquetes,
traquitanas, miniaturas e elementos cênicos elaborados, confere uma ideia de fantástico
às peripécias de Monsieur Gustave H – e por isso mais propícia ao desenrolar da narrativa
onde a passagem dos anos é marcada pelo uso cada vez menos expressivo dos espaços,
como se a era de ouro do Grande Hotel (e da República de Zubrowka) fosse, de fato, mais
dourada em outros tempos do que nos atuais. Nessa medida, a direção de arte também
51
habita o cerne da construção das representações – um dado fortemente embrenhado com
a ideia do cinematográfico que organiza narrativas e elabora, no seio da cultura, sua
própria representação de sociedade.

O GRANDE Hotel Budapeste. Direção: Wes Anderson. Produção: Wes Anderson, Eli Bush,
Molly Cooper, Jeremy Dawson et al. Alemanha, Estados Unidos: Fox Searchlight Pictures,
Indian Paintbrush, Studio Babelsberg, American Empirical Pictures et al, 2014. 1 bobina
cinematográfica (99min), son., color., p&b, 35mm.

Mas nem só de elementos fantásticos ou oníricos respira o design da narrativa. Quando o


diretor Florian Henckel von Donnersmarck levou à tela A vida dos outros (Das Leben
der Anderen, Alemanha, 2006) – e nos apresentou a história de Gerd Wiesler, oficial da
polícia secreta da Alemanha Oriental, em sua intensa vigilância a um dramaturgo
perseguido pelo ministro da Cultura –, Donnersmarck deixou aos cuidados de Christiane
Rothe a constituição de um ambiente opressor, caracterizado pela perda das liberdades na
Berlim Oriental de 1984.
O que se vê na direção de arte de Rothe são ambientes preenchidos por densidades
atmosféricas massacrantes para além da mera apropriação das locações. Remetem a
cenografias desnudas, como em certos espetáculos da também alemã Pina Bausch, ou
ainda a espaços brutalizados, desprovidos de calor. O que se configura na direção de arte
de A vida dos outros é o que deliberadamente se ausenta.

52
A VIDA dos outros. Direção: Florian Henckel von Donnersmarck. Produção: Quirin Berg,
Claudia Gladziejewski, Dirk Hamm, Florian Henckel von Donnersmarck et al. Alemanha:
Wiedemann & Berg Filmproduktion, Bayerischer Rundfunk (BR), Arte, Creado Film, 2006. 1
bobina cinematográfica (137min), son., color., 35mm.

Poderia-se, então, admitir um certo protagonismo à direção de arte? Parece-me que sim.
A questão central deste ensaio é exatamente buscar compreender as operações criativas
que compõem a tessitura narrativa do fenômeno audiovisual pelo viés da direção de arte,
suas contribuições, não apenas estéticas, mas também críticas (próprias da linguagem da
arte) e tentar mapear as distensões causadas por sua operação semântica em um caso
específico: Anna Karenia (Reino Unido, 2012), de Joe Wright . E talvez, durante este
deslizar de páginas, alguns teóricos poderiam lançar luz ao processo, como novos
Virgílios e Beatrizes.

Articulações narrativas da direção de arte


Falei há pouco de sobreacordes e curtos-circuitos no seio da narrativa criados pela direção
de arte. Este entendimento surge do confronto com a linguagem textual que, muitas vezes,
embora não sempre, é determinante demais em sua ordenação. A linguagem visual, por
outro lado, busca escapar de certos aspectos binários por explorar, em sua constituição,
outros modos de sentir. A linguagem visual, portanto, permite o atravessamento narrativo
por intermédio de outras chaves. Se a linguagem textual reside no campo das associações,
a linguagem visual ocupa o lugar das percepções.

53
Este domínio, associado aos aparelhos e à materialidade produzidos pela direção de arte,
conduz a camadas interpretativas subjacentes ao plano geral da linguagem
cinematográfica que ordena o fenômeno fílmico. Mas seria possível falar de uma sintaxe
da direção de arte? Em termos. O professor Gamba Junior, em seu livro Design de
histórias – o trágico e o projetual no estudo da narrativa, defende que:
Há grande embate diante de novos sistemas produtivos que pleiteiam
uma nova linguagem em oposição a apenas um gênero. É o caso das
histórias em quadrinhos, em relação à literatura, ou da animação em
relação ao cinema, indicando uma pertinência nesse nível de
classificação para a produção de referencial crítico próprio. (GAMBA
JR., 2013; 37)
De uma forma ou de outra, a direção de arte, mesmo que ligada à outras linguagens, como
a teatral ou a cinematográfica, encontra caminhos para gerar elementos perceptíveis,
reconhecíveis e até certo ponto compartilháveis, daí sua contribuição para a narrativa por
intermédio do design (já que todo objeto ou imagem produzidos carregam uma memória
e uma historicidade).
A direção de arte está ligada aos modos de ver, ao repertório das sensibilidades de cada
criador e de cada espectador. Sua atuação é, portanto, mais nebulosa. Qual o sentido
semântico que buscavam Adam Stockhausen e Anna Pinnock ao construir maquetes para
O grande Hotel Budapeste em detrimento dos inúmeros recursos digitais disponíveis?
Evocar reminiscências de infâncias esquecidas? Provocar ruídos poéticos na fluidez do
filme? Cada um fará a sua leitura através das articulações narrativas que a direção de arte
oferece, mas com base em seus próprios referenciais. Em suma, ela atua nos processos de
criação de significados e no âmago da cultura: o que traz à memória de cada espectador
o caminhar do Próspero entre os elementos cenográficos de A última tempestade?
Sobre esse aspecto, é preciso relembrar a ideia dos “códigos de reconhecimento”
defendida por Umberto Eco (e retomadas por Ciro Cardoso em Narrativa, sentido,
história). Segundo o filósofo e semiólogo italiano, a ideia de iconicidade residiria na
transcendência, por intermédio de artifícios gráficos (portanto visuais), das propriedades
culturais do objeto. Dessa forma, os códigos de reconhecimento surgiriam como “modos
de representação que remetem ao que se sabe – não ao que se vê, mas ao que se aprendeu
a ver” (CARDOSO, 1997; 213).

54
A direção de arte parte desse mesmo ponto: do que se aprendeu a ver. Sua materialidade
física ou mesmo de sua potencialidade digital – ambas aliadas a referenciais culturais que
nascem ainda no cerne do projeto –, ajudam a conduzir histórias feitas de hibridismos.
Este caráter híbrido, complexo e expressivo, feito de tantas matérias significantes é o que
constitui a ideia do cinematográfico.
Seu estudo requer igualmente um hibridismo teórico-metodológico além da semiótica da
imagem, onde design, história, teoria do cinema, assim como a iconologia e a filmologia
– espaços de representação expressivos das formas simbólicas da sociedade – levariam
em conta “as estruturas ocultas do sentido, (...) as ligações da arte com a cultura”
(CARDOSO, 1997; 209). Assim, pelo hibridismo em processo se poderia desvendar
paulatinamente a atuação da direção de arte. Seu discurso imagético é linguagem em
trânsito e irradia, em sua fluidez e em sua articulação de elementos, simultaneidades de
sentidos para o coração da narrativa.
Anna Karenina e a ilusão aparente
A ideia de abordar o design da narrativa surge a partir de um olhar voltado para a
filmografia de Joe Wright. O diretor inglês, formado no dia a dia do teatro de marionetes,
nas aulas de pintura e na produção de TV, sempre apoiou-se nas características visuais da
mise-en-scène como dispositivos de criação e experimentação.
Em Anna Karenina (Reino Unido, 2012), Wright realiza a confluência entre a narrativa
do romance de Liev Tolstói, os elementos da linguagem cinematográfica e a prática da
encenação teatral. Essa chave criativa já havia sido testada em diferentes produções como,
por exemplo, O Mahabharata (The Mahabharata, Austrália, Bélgica, Dinamarca,
Estados Unidos, França, Finlândia, Holanda, Irlanda, Islândia, Japão, Noruega, Portugal,
Reino Unido, Suécia, 1989) do também inglês Peter Brook.
No entanto, O Mahabharata apoia-se na ideia de um teatro filmado, “onde o espectador
aceita mais docilmente a natureza artificial da cena” (SANTOS, 2017; 112), enquanto
Anna Karenina propõe a fuidez entre as linguagens e cria um ruído entre o que se dá na
tela e a expectativa da realidade fílmica.

55
ANNA Karenina. Direção: Joe Wright. Produção: Tim Bevan, Eric Fellner, Paul Webster et al.
Reino Unido: Universal Pictures, Focus Features, Working Title Films, 2012. 1 bobina
cinematográfica (129min), son., color., 35mm.
A história de Liev Tolstói surge aqui carregada de hibridismo. As coxias de um teatro e
os equipamentos de filmagens surgem em dinâmicos movimentos de câmeras e planos-
sequências, a profundidade de campo faz referência à história do cinema – nos remete a
Cidadão Kane (Citizen Kane, Estados Unidos, 1941), de Orson Welles, ou a Arca Russa
(Russian Ark, Alemanha, Canadá, Dinamarca, Finlândia, Japão, Rússia, 2002), de
Aleksandr Sokurov. Mas o que, em termos narrativos, empreende a operação estética de
Joe Wright e do diretor de arte Niall Moroney? Roland Barthes nos dá algumas pistas:
Compreender uma narrativa não é somente seguir o esvaziamento da
história, é também reconhecer nela estágios, projetar os encadeamentos
horizontais do fio narrativo sobre um eixo explicitamente vertical, ler
uma narrativa não é somente passar de uma palavra a outra, é também
passar de um nível para outro. (BARTHES, 2003; 27)
Este entendimento do cruzamento dos eixos narrativos pode ser transposto para o nível
da visualidade e, no caso de Anna Karenina, da direção de arte como elemento principal
da mise-en-scène de Joe Wright. Agora, é preciso igualmente retomar da linguagem
literária as articulações de Tolstói na escrita de seu romance. O tradutor Rubens
Figueiredo, na apresentação da obra para a editora Cosac Naify, revela:
Assim, não admira que Anna Kariênina esteja estruturado com base em
pares e em paralelismos. Aliás, seu título, nos primeiros rascunhos, era
Dois casamentos ou Dois casais: o adúltero e o legítimo. No
desdobramento do romance, em sua versão definitiva, esse díptico se
articula a outras séries de contrastes: a cidade e o campo; as “duas
capitais” da Rússia (Moscou e São Petersburgo); a alta sociedade e a vida
dos mujiques; o intelectual e o homem prático, e assim por diante. Tolstói
mostrou-se, de fato, satisfeito com a arquitetura do romance. Disse ele:
56
“suas arcadas estão unidas de tal modo que não se percebe onde está a
pedra angular. A coesão da estrutura não tem por base a trama, nem as
relações entre as personagens, mas sim uma coesão interna”. (...) Em
vez de desenvolver uma temática central e se ater a ela, o livro se
organiza no paralelismo de várias linhas. Em vez de entrelaçar essas
linhas, apenas as justapõe. (FIGUEIREDO, 2013; 8)
Justaposição como eixo narrativo. Justaposição como artifício de linguagens da mise-en-
scène. Assim, Wright e Moroney fazem Anna Karenina (uma mulher adúltera em conflito
com as normas da sociedade czarista) percorrer entre penumbras os estreitos caminhos
das coxias de um teatro... que apontam para a vida como representação. A sensação de
deslocamento causada no espectador apenas alinha-se com uma vida deslocada de Anna,
como apresenta-se igualmente deslocada as espectativas de Liévin (o outro protagonista
do livro). “Na soma de tudo, a tônica de Anna Kariênina é uma crise que se generaliza”
(FIGUEIREDO, 2013; 10). A narrativa segue circunscrita pelo design do espaço cênico
como o microcosmo que reflete o próprio Estado Russo. A mansão dos Karenin é
projetada no centro do palco e traz conotações de uma vida exposta a olhares. A
artificialidade cenográfica leva às artificialidades das relações, o estranhamento no uso
das liguagens remete aos estranhamentos das personagens.

ANNA Karenina. Direção: Joe Wright. Produção: Tim Bevan, Eric Fellner, Paul Webster et al.
Reino Unido: Universal Pictures, Focus Features, Working Title Films, 2012. 1 bobina
cinematográfica (129min), son., color., 35mm.

Wright pratica, dessa forma, uma espécie de ilusão aparente, pois transita entre linguagens
para conduzir a história. Distancia-se da ideia de transparência cinematográfica que tende
ao realismo, pois “os planos-sequências de Anna Karenina, que descortinam o set e abrem

57
visão para o espectador acompanhar a encenação, expõem as figuras de estilo
cinematográfico” (SANTOS, 2017; 115).
Vê-se nas projeções fílmicas atores-personagens os quais percorrem
ambientes híbridos, erguidos sobre falsidades matéricas e conjurados em
convergências espaço-temporais. É a ambiguidade entre ser e parecer.
(...) A construção apoiada no fake ou pautada no hibridismo teatro-
cinema-literatura permite ao espectador a observação cautelosa,
reflexiva, sobre a narrativa e sobre a elaboração fílmica. (SANTOS,
2017; 116)

Nesse sentido que a ilusão aparente, compreendida pela ação da mise-en-scène (e da


direção de arte) revelada no filme de Joe Wright aproxima-se do pensamento kantiano
sobre a “metáfora do espelho”. Para o filósofo Immanuel Kant, defende Marcio Girotti:
[Mesmo que tomemos] consciência de que a imagem atrás do espelho
não é um objeto real, isto não muda a existência de tal objeto. (...) Ou
seja, a ilusão de perceber um objeto atrás do espelho não cessa, mas nem
por isso somos enganados por ela” (GIROTTI, 2014; 4)
A visualidade de Anna Karenina estabelece, em cada unidade dramática, um novo código
de entendimento dos conflitos da personagem-título e de sua relação com seu tempo. Não
por intermédio da reconstrução fidedigna do Rússia do século XIX, mas, diferentemente,
pela experimentação poética a partir de um projeto de design cênico-narrativo que
contribui para a construção de sentidos e a estruturação dos discursos.
Referências bibliográficas
BARTHES, Roland. O neutro. São Paulo: Martins Fontes, 2003.
CARDOSO, Ciro Flamarion. Narrativa, sentido, história. Campinas: Papirus, 1997.
GAMBA JUNIOR, Nilton Gonçalves. Design de histórias – o trágico e o projetual no estudo
da narrativa. Rio de Janeiro: Rio Book’s, 2013.
GIROTTI, Marcio Tadeu. “A metáfora do espelho e a ilusão transcendental na obra kantiana:
Sonhos de um visionário e Crítica da razão pura”. Anais do Seminário dos Estudantes de
Pós-Graduação em Filosofia da UFSCar, 2014. Disponível em:
http://www.ufscar.br/~semppgfil/wp-content/uploads/2012/05/28-Marcio-Tadeu-Girotti.pdf
Acesso em: 11/12/2018.
SANTOS, Rogério Pereira dos. Reverberação, contaminação e reconstrução: a poética de
Michel Gondry em A espuma dos dias. Dissertação de mestrado. São Paulo: Universidade
Presbiteriana Mackenzie, 2017.
FIGUEIREDO, Rubens. “Duas famílias em uma só” in TOLSTÓI, Liev. Anna Kariênina. São
Paulo: Cosac Naify, 2013.

58
e/
ou
Entre ficção e realidade: “House of Cards” e o mundo real1

Between fiction and reality: “House of Cards” and the Real world

Giancarlo Casellato Gozzi2

Resumo: Este artigo pretende investigar as relações entre a série televisiva "House of
Cards" (Beau Willimon, Netflix, 2013-) e o "mundo real" do qual comenta e no qual
participa, analisando tanto como elementos extradiegéticos são trazidos para dentro do
mundo ficcional, quanto como a série é apropriada pelo seu público para comentar sobre
sua própria conjuntura. Para enfatizarem a contemporaneidade de seu retrato político e o
tornarem verossímil e familiar aos espectadores, os escritores da série aludem a episódios
políticos e personalidades reais, ao mesmo tempo em que fundam suas reviravoltas
rocambolescas em sóbrios procedimentos parlamentares. Eficazes, essas estratégias
fornecem conteúdos a internautas e jornalistas que comentam o noticiário político,
demonstrando a via de mão dupla entre um mundo ficcional fundado em elementos do
mundo real e a participação dessa mesma ficção na definição dos rumos dessa realidade.
Em particular, será analisado o uso de elementos do conteúdo diegético para o comentário
da crise política brasileira recente (com ênfase nos eventos relacionados ao impeachment
da ex-Presidente Dilma Rousseff em 2016 e o início do governo de Michel Temer). Ao
mesmo tempo que isso ocorria, a Netflix, ciente do potencial comercial dessa relação,
investe em ações de marketing no Brasil que aludam a essa similaridade entre realidade
brasileira e ficção americana.

Palavras-chave: House of Cards; comentário político; crise política brasileira.

Abstract: The purpose of this article is to investigate the relations between the television
series “House of Cards” (Beau Willimon, Netflix, 2013-) and the “real world” that it
comments on and in which it participates, analyzing how extradiegetic elements are
brought into the fictional world, as well as how the show is appropriated by its public to
comment on its own context. To emphasize the contemporaneity of its political portrait
and to make it plausible and familiar to the spectators, the writers of the show allude to
political episodes and real personalities, at the same time that they base their absurd
turning points in sober parliamentary procedures. Effective, these strategies provide
content to netizens and journalists that comment on the political news, demonstrating the
reciprocity between a fictional world based on real world elements and the role of this

1
Este artigo é parte de minha dissertação de mestrado, financiada pela FAPESP, a quem agradeço. Nº do
processo: 2016/04344-4. Para mais, ver: GOZZI, Giancarlo Casellato. As Vantagens da Amoralidade:
Melodrama, comentário político e interação com o público em “House of Cards”. 2018. Dissertação
(Mestrado em Ciências) – Escola de Comunicações e Artes, Universidade de São Paulo, São Paulo.
2
Mestrando no Programa de Pós-Graduação em Meios e Processos Audiovisuais da Escola de
Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo. E-mail para contato: giancarlo.gozzi@usp.br.
60
same fiction in the course of this reality. In particular, it will be analyzed the use of
diegetic elements to comment on the recent Brazilian political crisis (with emphasis in
events related to the impeachment of former President Dilma Rousseff in 2016 and the
beginning of the Michel Temer administration). At the same time that these events
developed, Netflix, conscious of the commercial potential of this relation, invests in
marketing in Brazil that alludes to this similarity between Brazilian reality and American
fiction.

Key words: House of Cards; political commentary; Brazilian political crisis.

“House of Cards” é uma série estadunidense distribuída pela empresa de


streaming online Netflix, criada por Beau Willimon e lançada em 1 de Fevereiro de 2013,
com a disponibilização da primeira temporada na íntegra com seus 13 episódios no acervo
do site. Uma adaptação norte-americana de uma minissérie homônima britânica, gira em
torno da vida política do Deputado Frank Underwood (Kevin Spacey) e sua esposa Claire
(Robin Wright) em Washington. Membro da liderança do Partido Democrático na
Câmara dos Deputados há décadas, o protagonista é traído pelo Presidente que tinha
acabado de ajudar a eleger. Ele então decide não só se vingar dessa traição, mas
eventualmente tomar o lugar do Presidente eleito, usando para tal um leque bastante
amplo de meios.
Na época de seu lançamento, diversas críticas apontavam como a representação
da série do cenário político contemporâneo ressoava com a realidade, seja em pontos
específicos da conjuntura3, seja em relação a um cenário mais abstrato de “como as coisas
funcionam”.4
Tal relação entre ficção seriada e realidade retratada teria chego ao ponto da série
conseguir “prever” o cenário político futuro, algo muito especulado pela eleição de
Donald Trump. As constantes comparações entre pontos da trama da quinta temporada e

3
Ver, por exemplo, a crítica de Alexis Coe no “The Atlantic” da primeira temporada:
https://www.theatlantic.com/entertainment/archive/2013/02/the-very-real-history-behind-the-crazy-
politics-of-house-of-cards/273370/. Acessado em: 16/07/2018.
4
Uma interessante análise se encontra na crítica de Ari Melber, também no “The Atlantic”:
https://www.theatlantic.com/entertainment/archive/2013/02/the-terrible-true-insight-of-house-of-cards-
bad-people-run-dc/273063/.Acessado em: 16/07/2018.
61
ações da nascente administração Trump5 chegaram ao ponto de Robin Wright brincar, em
entrevista, que Trump se inspirava na própria série. 6 Essa aparente inversão, aonde o
mundo diegético passa a influenciar o extradiegético, é melhor exemplificada em uma
imagem da terceira temporada: em seu terceiro episódio, quando o Presidente russo
Viktor Petrov vai visitar o Presidente Underwood na Casa Branca, os dois tiram fotos
para a imprensa no Salão Oval. A imagem de Underwood estendendo a mão para Petrov,
que a olha pausadamente antes de cumprimentá-la, é estranhamente similar a uma
imagem tirada de Trump, já Presidente, estendendo a mão para Vladimir Putin.7
A série, porém, além de estabelecer essa dinâmica relação com a conjuntura
política de seu país de produção, consegue estabelecer também algo similar em outros
contextos. Um exemplo notável é no Brasil, aonde a série passou a ser usada por seus
telespectadores brasileiros como comparativo para a crise política que se consagrou no
país após a reeleição de Dilma Rousseff em 2014. O mais comum exemplo foi a constante
comparação feita entre Frank Underwood e o ex-deputado federal Eduardo Cunha,
iniciada de forma sutil e genérica ao igualar a habilidade que os dois teriam de manipular
Congressos, como em um vídeo da TV Estadão aonde descrevem o poder de Cunha com
a música da série tocando ao fundo.8 A comparação se torna tão corriqueira, sendo feita
inclusive pela imprensa internacional, 9 que entrevistadores perguntam dela para tanto
Cunha quanto Spacey, o ator achando tal comparação “interessante”, mas o político
reclamando de ser comparado com um “corrupto, assassino, e homossexual”.10

5
Seja listando as comparações: https://www.vanityfair.com/hollywood/2017/05/house-of-cards-season-5-
trump; ou em questionários estilo “Quem disse isso?”: https://www.theguardian.com/tv-and-
radio/2017/may/29/who-said-it-donald-trump-or-frank-underwood. Acessados em: 16/07/2018.
6
Ver: https://veja.abril.com.br/entretenimento/trump-rouba-nossas-ideias-brinca-atriz-de-house-of-cards/.
Acessado em: 16/07/2018.
7
Ver: http://www.consumidormoderno.com.br/2017/07/07/trump-e-putin-esta-mexendo-com-os-fas-de-
house-of-cards/. Acessado em: 16/07/2018.
8
Assista em: https://www.facebook.com/estadao/videos/1276089245739468/. Acessado em: 16/07/2018.
9
https://www.washingtonpost.com/world/the_americas/brazilian-oppositon-leader-eduardo-cunha-has-
his-sights-on-the-presidency/2015/05/28/37efa0c6-03d7-11e5-93f4-
f24d4af7f97d_story.html?utm_term=.0be533a690c5. Acessado em: 16/07/2018.
10
Para a entrevista de Spacey, ver: https://emais.estadao.com.br/noticias/tv,kevin-spacey-comenta-
comparacao-entre-frank-underwood-e-eduardo-cunha,70001697455; para a afirmação de Cunha, ver:
https://www.cartacapital.com.br/politica/house-of-cards-e-a-politica-brasileira-667.html. Acessados em:
16/07/2018.
62
O objetivo deste artigo, assim, consiste em analisar esta relação, compreendendo
como que elementos extradiegéticos entram na diegese da série e como que essa diegese,
por sua vez, influencia seu tempo histórico. Ao fim, quero abordar como que o conteúdo
político da série consegue extrapolar o seu próprio contexto sócio-político, usando como
exemplo de análise a apropriação do conteúdo da série para comentário político do Brasil
contemporâneo.
Paralelos entre história e estória: a série e sua conjuntura

No intuito de tornar sua trama verossímil e familiar ao espectador, a série se utiliza


de variadas estratégias, a começar pela presença, dentro da diegese, de repórteres e
âncoras de telejornais reais. Ao longo de suas cinco temporadas, diversos repórteres de
uma variedade de canais de telejornalismo aparecem em episódios comentando o
desenvolvimento da trama e discutindo as ações dos personagens em seus próprios
programas de televisão.11 Assim, a comparação entre o mundo diegético e o mundo real
é facilitada por essa presença ficcional de personalidades reais, se encenando.
Essa estratégia de familiarização encontra eco em declarações que o criador da
série, Beau Willimon, dá em uma entrevista com o documentarista Alex Gibney no Paley
Center for Media, em Nova York. 12 Nela, Willimon afirma que a “suspensão do
descrédito” da ficção13 necessita de autenticidade, devendo se sobrepor ao mundo real.
Tal relação não é marcada por um paralelismo estrito entre o real e o ficcional, mas por
uma autenticidade de “como as coisas funcionam”.
Desde seu lançamento, a série é acusada de hiperbolizar as intrigas políticas de
Washington, sendo “implausível” que diversas ações de Frank ocorressem na vida real.14

11
As personalidades jornalísticas são de variados canais abertos e a cabo, como George Stephanopoulos
da ABC, Rachel Maddow e Chuck Todd da MSNBC, e Jake Tapper da CNN. Não necessitam ser
somente jornalistas, contudo, já que apresentadores de talk shows como Bill Maher e Stephen Colbert
também estão presentes na série.
12
A entrevista, feita entre Beau Willimon e Alex Gibney, organizada por um mediador e aberta ao
público, ocorreu em 11 de Maio de 2015, no Paley Center for Media em Nova York. Ela não se encontra
disponível online, sendo possível de ser assistida somente na biblioteca do centro. Agradeço a Ron
Simon, seu diretor, por ter disponibilizado o acesso ao acervo.
13
Willimon aqui faz uso da expressão utilizada por Samuel Taylor Coleridge para caracterizar o acordo
que se estabelece entre o leitor e a obra de ficção. Ver: COLERIDGE, Samuel Taylor. Biographia
literaria, 1817.
14
Ver, por exemplo, as críticas de Alyssa Rosenberg: https://thinkprogress.org/netflixs-house-of-cards-
thinks-it-s-tough-but-it-goes-easy-on-washington-2513a8d3d6e/; Seth Masket:
https://www.washingtonpost.com/news/monkey-cage/wp/2015/03/08/house-of-cards-is-the-worst-show-
63
Contudo, apesar de parecerem politicamente inviáveis, tais ações ainda são balizadas em
reais situações e regras parlamentares: desde sua primeira temporada a série conta com
Jay Carson entre seus produtores, um consultor político que trabalhou para diversos
políticos democratas (incluindo Bill e Hillary Clinton) e cujo trabalho é justamente
fundamentar a ação dramática em reais procedimentos parlamentares (por mais obscuros
que eles possam ser). Essa fundamentação é reforçada pela experiência que Beau
Willimon teve em eleições democratas no passado, nas campanhas para Senado de Chuck
Schumer em 1998 e Hillary Clinton em 2000, e nas campanhas para Presidência de Bill
Bradley em 2000 e Howard Dean em 2004.15
Um exemplo extremo ocorre no terceiro episódio da segunda temporada, em que
Frank, enquanto Vice-Presidente (e portanto Presidente do Senado americano), manda
policiais legislativos carregarem à força senadores republicanos para dentro do plenário.
O ato, por mais tirânico que possa parecer, é na realidade um procedimento
regulamentado dessa Casa Legislativa.16
Assim, para a repórter e escritora Alexis Coe, apesar de “House of Cards” não
apresentar a mais apurada representação de Washington, um “número decente de seus
mais bizarros momentos são desconfortavelmente similares à vida real”,17 enumerando
diversas situações da primeira temporada da série que possuem sua contraparte real. Esse
uso de cenas passadas em cenas ficcionais proporciona essa familiarização do espectador
da série com seu mundo diegético, além de seu fundamento em procedimentos
parlamentares existentes. Ele também vai antecipar a “futurologia” da série na terceira
temporada, aonde o aperto de mão entre Underwood e Petrov antecipa em dois anos o
aperto de mão entre Trump e Putin.
Completando tais procedimentos de familiarização e reconhecimento, “House of
Cards” transforma tópicos da discussão nacional americana em conteúdo diegético. De

about-american-politics-ever/?noredirect=on&utm_term=.2c3e65628e41; e Jon Altshul:


https://decider.com/2015/03/03/the-5-most-politically-implausible-developments-in-house-of-cards-
season-3/. Acessados em: 17/07/2018.
15
Tal experiência foi possibilitada pelo mesmo Jay Carson, amigo de Willimon desde que graduaram
juntos na Columbia University. Ver:
https://www.college.columbia.edu/cct/archive/may_jun09/alumni_profiles2. Acessado em: 17/07/2018.
16
Ver: https://www.rollcall.com/news/house-of-cards-or-senate-of-cards . Acessado em: 17/07/2018.
17
https://www.theatlantic.com/entertainment/archive/2013/02/the-very-real-history-behind-the-crazy-
politics-of-house-of-cards/273370/. Acessado em: 16/07/2018.
64
forma crescente ao longo das temporadas, a série transpõe sua conjuntura histórica para
seu mundo ficcional na forma tanto de personagens e eventos quanto de temas que
norteiam as temporadas. Primeiramente, a própria estrutura da série segue a cronologia
eleitoral de sua produção: ela se inicia em 2013 com um Presidente sendo empossado (no
mesmo ano que Barack Obama é empossado para seu segundo mandato), passa por
eleições legislativas na sua segunda temporada (também, no mesmo ano que as eleições
legislativas americanas de 2014), e retrata uma eleição presidencial entre sua quarta e
quinta temporadas (novamente, espelhando a eleição presidencial em que Donald Trump
concorre em 2016 e é empossado em 2017). Por mais que o seu formato de distribuição
impossibilite uma simultaneidade destes eventos, já que cada temporada é lançada de uma
vez em um dia e continua disponível no acervo da Netflix, a série ainda segue a cronologia
do calendário político oficial dos Estados Unidos.
Além disso, ela retrata, dentro de seu mundo diegético, eventos políticos que
ocorreram antes ou ao longo de sua produção: a ambiciosa reforma educacional do
Presidente Walker se assemelha assim com a reforma do sistema de saúde americano
sancionada pelo Presidente Barack Obama em 2010;18 as tensões entre os Estados Unidos
e a China em meio a uma troca de acusações de manipulação cambial e guerra comercial,
estimuladas por Frank Underwood na segunda temporada, são um retrato das mesmas
tensões que ocorrem entre os dois países desde meados da administração Obama; 19 e as
tensões entre Underwood e Petrov na terceira temporada, um reflexo da relação tensa
entre Obama e o Presidente russo Vladimir Putin, após a anexação da Criméia pela
Rússia.20
Inclusive, deve-se pontuar particularmente como o Presidente russo ficcional
Viktor Petrov é assemelhado ao de fato Presidente russo Vladimir Putin, para além de
suas iniciais. No terceiro episódio da terceira temporada, quando o personagem é

18
Ver: https://pt.wikipedia.org/wiki/Patient_Protection_and_Affordable_Care_Act. Acessado em:
17/07/2018.
19
Apesar de Obama ter tido momentos de tensão com o Presidente chinês Xi Jinping, elas parecem
atualmente pouca coisa se comparada à guerra comercial entre as duas nações após a eleição de Donald
Trump. Ver: https://www.theguardian.com/business/2009/jan/23/china-us-dollar-yuan;
https://www.reuters.com/article/us-ukraine-crisis-obama/obama-russia-doesnt-make-anything-west-must-
be-firm-with-china-idUSKBN0G30Q920140803; https://money.cnn.com/2018/07/06/news/economy/us-
china-trade-war-tariffs/index.html. Acessados em: 17/07/2018.
20
Ver: https://www.bbc.com/news/world-us-canada-26411969. Acessado em: 17/07/2018.
65
apresentado pela primeira vez, é mencionada a sua propensão a demonstrações de
virilidade, assim como Putin com suas montagens fotográficas sem camisa – Underwood,
por exemplo, presenteia Petrov com uma prancha de surfe, pois o líder russo surfaria no
Mar Negro. Os dois tiveram um histórico com a KGB – Putin de fato atuou como agente
na Alemanha Oriental, Petrov teria sido soldado no Afeganistão. Compartilham também
tendências autoritárias, com Putin eliminando sua oposição e invadindo a Ucrânia, Petrov
sabotando a missão de paz da ONU e chantageando Frank. E, acima de tudo, o ator que
interpreta Petrov, Lars Mikkelsen, é bastante similar a Putin, apesar de Mikkelsen ser 22
centímetros mais alto que o Presidente russo.21

“House of Cards” como agente político

Entretanto, não é apenas com a sua própria conjuntura nacional que House of
Cards se relaciona, e nem é somente na chave da similaridade/representação que se dão
aqui as relações entre ficção e “mundo real”. A diegese da série, além de representar o
ambiente extradiegético que a cerca, também o influencia, extrapolando inclusive o
contexto sócio-político que lhe dá sentido. Esse descolamento do universo diegético é
particularmente observado na figura do protagonista da série, Frank Underwood, em parte
por causa de seu uso constante do aparte dramático, momento em que ele quebra com a
quarta parede e se dirige a seus espectadores.
Há uma condição liminar neste apartes, por conta de sua forma épica (trazendo a
primeiro plano a condição ficcional e narrativa do que vemos na tela) e função lírica (na
medida em que é usado para desenvolver e aprofundar o ponto de vista do personagem).
Portanto, enquanto a função dramática de seus apartes prende Underwood ao universo
diegético, esse uso de um recurso que quebra com o fluxo narrativo, mesmo que
momentaneamente, possibilita sua serialização enquanto figura, particularmente na sua
sobrevida enquanto meme de internet.22É esse status duplo de personagem de uma série

21
Uma detalhada comparação entre Petrov e Putin se encontra em:
https://themoscowtimes.com/articles/putin-vs-petrov-fact-and-fiction-in-house-of-cards-44541. Acessado
em: 18/07/2018.
22
Não que figuras seriais necessitem de tais características formais para se tornarem memes. Para uma
maior discussão sobre a função dramática dos apartes dentro da série, ver: GOZZI, Giancarlo Casellato.
“Entre o Clássico e o Moderno: o uso de apartes em ‘House of Cards’” In: I Congresso TeleVisões, 2017,
Niterói, RJ. Anais (on-line).
66
e figura serial que abre espaço para a apropriação de Underwood em contextos sócio-
políticos diferentes ao que lhe dá sentido.23 E, como veremos, essa apropriação não é
negligenciada pela Netflix, que usará disso para a promoção da série e, juntamente, de
sua marca.
Esse procedimento é analisado por Paolo Demuru em artigo aonde, a partir da
semiótica greimasiana, ele irá explorar a interdiscursividade entre seriados televisivos e
o jornalismo político contemporâneo, e quanto que ela contribui para uma noção de
“mundo real” (DEMURU, 2017, p. 100). Para tal, ele irá usar como estudo de caso
justamente a relação entre House of Cards e a cobertura jornalística da crise político-
institucional que levou ao impeachment de Dilma Rousseff em 2016.
Para abordar a importância que a série teve na cobertura do impeachment, Demuru
se utiliza das abordagens greimasianas de Franciscu Sedda (2016) e Cristina Demaria
(2015) sobre dramas políticos televisivos, para os autores particularmente importantes no
cenário televisivo contemporâneo por não só representarem processos políticos, mas
também porque, ao realizarem esta representação, instruem seus telespectadores e os
fazem refletir sobre o campo da política, influenciando sua realidade. Nesse sentido, o
universo do seriado teria se alastrado “nas tramas da vida política e do discurso
jornalístico brasileiro [...] como um frame [DEMARIA, 2015]”, como “uma moldura e
uma lente para a interpretação e a apreensão do atual cenário político do país”
(DEMURU, 2017, p. 109). Bons exemplos seriam a já mencionada comparação entre
Eduardo Cunha e Frank Underwood, citada no início do capítulo, expressões como
“House of Cunha”24, e diversos títulos que comparam as semelhanças entre a série e a
realidade brasileira.25
Contudo, três exemplos descritos por Demuru seriam, de acordo com o autor,
essenciais para se entender de que forma o discurso da série é apropriado pela cobertura
jornalística para a compreensão do contexto brasileiro recente. O primeiro, uma

23
Para uma maior discussão sobre os termos, ver DENSON, Shane. “Marvel Comics’ Frankenstein: A Case
Study in the Media of Serial Figures”. In: American Studies. Heidelberg: Universitätsverlag WINTER, v.
56, n. 4, 2011, p. 546.
24
Ver: https://istoe.com.br/352400_HOUSE+OF+CUNHA/. Acessado em: 24/07/2018.
25
Ver, por exemplo: https://www.dn.pt/mundo/interior/as-semelhancas-entre-house-of-cards-e-a-politica-
brasileira-5083894.html; https://www.cartacapital.com.br/politica/house-of-cards-e-a-politica-brasileira-
667.html. Acessados em: 24/07/2018.
67
“reportagem-resumo de 12 minutos” no Jornal da GloboNews de 31 de Agosto de 2016,
dia em que o Senado brasileiro sancionou o afastamento de Dilma Rousseff, após
aprovação na Câmara dos Deputados meses antes (DEMURU, 2017, p. 110).26 O início
da reportagem segue a estrutura de rever “a trama dos episódios anteriores”, como a de
uma série televisiva. Essa estrutura é reafirmada com a vinheta de entrada logo depois,
que faz referência à outra série da Netflix, Stranger Things (Matt e Ross Duffer, Netflix,
2016-). Finalmente, ao longo da reportagem inteira prevaleceriam “citações e alusões aos
arranjos narrativos e figurativos de House of Cards”, como nas cenas aonde os edifícios
monumentais de Brasília são mostrados em time-lapse, como na vinheta de abertura da
série (idem, p. 111).
Outro exemplo ímpar para Demuru seria a capa da edição de 13 de Abril de 2017
do jornal Metro de São Paulo, cuja “configuração plástico-figurativa reproduz aquela” da
Netflix, aonde um personagem é destacado em uma imagem no centro da página, e abaixo
“uma série de fotogramas de outros vídeos ‘adicionados recentemente’ nos quais o
usuário/leitor é convidado a clicar” (DEMURU, 2017, p. 111) . O título da reportagem,
“Delaflix: Brazilian Horror Story”, é ao mesmo tempo uma referência à plataforma de
streaming e à série antológica American Horror Story (Ryan Murphy; Brad Falchuk, FX,
2011-), que apesar de distribuída pela FX está disponível no acervo do serviço de
streaming (idem, idem).
Por último, o terceiro exemplo aludido por Demuru, já não tão direto na sua
referencialidade, seriam as “diversas edições do Jornal Nacional da Rede Globo
dedicadas, em maior parte, aos eventos que marcaram o percurso rumo ao impeachment
de Dilma” (DEMURU, 2017, p. 111). Nelas, a narrativa dos eventos políticos assumiria
uma estrutura melodramática, na individuação de sujeitos heróis, o exemplo mais
evidente sendo a figura do juiz Sérgio Moro, e “vilões” como Eduardo Cunha, mas,
particularmente, a ex-Presidente Dilma Rousseff, o ex-Presidente Luiz Inácio Lula da
Silva, e em geral qualquer pessoa vinculada ou simpatizante ao Partido dos Trabalhadores
(idem, idem).

26
Assista em: http://g1.globo.com/globo-news/jornal-globo-news/videos/t/videos/v/globonews-mostra-
um-pouco-da-politica-no-brasil-nos-ultimos-meses/5274627/. Acessado em: 25/07/2018.
68
Dessa forma, para Demuru, o discurso jornalístico brasileiro teria traduzido e
absorvido “o mundo de House of Cards e, em geral, da ficção seriada da era Netflix de
três formas distintas”: ao incorporar “configurações e traços plásticos, rítmicos e
figurativos típicos da linguagem televisiva”; ao reproduzir “estruturas narrativas clássicas
da cultura ocidental”; e ao construir uma cobertura marcadamente serial, constituída “de
tramas, acontecimentos e clímax que se alastram, muitas vezes sem se resolverem,
capítulo após capítulo” (idem, p. 112). O uso generalizado dessas formas de absorção do
mundo serial teria levado assim à construção de uma “realidade novelesca-serial”, criada
e roteirizada pelo discurso jornalístico, e apreendida e consumida pelo público
(DEMURU, 2017, p. 113).
É importante ressaltar que essa não é uma via de mão única: se o discurso dos
grandes meios de comunicação brasileiros absorveu elementos estéticos, recursos formais
e temáticas do seriado americano, houve também uma grande produção de memes por
parte de ativistas e usuários de redes sociais brasileiros, que “utilizam o enredo e os
personagens da série para ironizar sobre as peripécias dos protagonistas da política
nacional contadas pela mídia” (idem, idem).27
Também não passou despercebido pela Netflix essa absorção da série, que vai
fazer de sua estratégia de promoção da quarta temporada, lançada um mês antes da
votação do impeachment na Câmara dos Deputados (e, portanto, no olho do furacão), a
“ancoragem ao contexto político-institucional local” (idem, p. 109). Destaca-se o fato da
empresa ter encomendado, para revistas como Veja e a Carta Capital e jornais como O
Povo, Zero Hora e Gazeta do Povo, uma “série de capas e reportagens fictícias [...] sobre
a trajetória política de Frank Underwood e suas intenções em relação à política externa
estadunidense”, publicadas em seus perfis nas redes sociais em 4 de Março de 2016 (idem,
idem).
A empresa de streaming irá além, comentando episódios específicos da conjuntura
política brasileira por meio dos perfis nas redes sociais da série, em particular seu Twitter,
essa forma quase instantânea de produção de comentário. Em 16 de Março de 2016, dia

27
Ver, nesse sentido, AQUINO BITTENCOURT, Maria Clara; GONZATTI, Christian. “House of
memes: midiatização do ativismo e transformações no jornalismo a partir de uma (ciber)cultura pop”. In:
Revista Geminis. São Carlos, v. 7, n. 1, p. 101-116, 2016.
69
em que o juiz Sérgio Moro divulgou conversas privadas do ex-Presidente Lula com a
então Presidente Dilma Rousseff,28 o perfil oficial da série no Twitter postou um gif de
Frank Underwood rindo e a legenda, em inglês: “assistindo à cobertura jornalística
brasileira de hoje”.29
O exemplo mais notório ocorreu no dia 17 de Maio de 2017, quando foi revelado
que o então CEO da JBS, Joesley Batista, havia gravado o Presidente Michel Temer
supostamente negociando o pagamento de propina para garantir o silêncio do ex-deputado
Eduardo Cunha.30 Na ocasião, o perfil oficial da série no Twitter tweetou: “Tá difícil
competir.”31 Em português, e publicando no meio da tarde quase que imediatamente após
a divulgação da notícia (o tweet foi feito às 16:56 do dia 17), o perfil oficial da série
comentava diretamente a ebulição política no Brasil, ressaltando o caráter quase ficcional
dessas tramas reais.32 O comentário levou “House of Cards” a figurar entre os tópicos
mais comentados no Twitter brasileiro, 33 demonstrando a eficácia dessa forma de
engajamento com o real – ainda mais considerando que o Brasil possui o terceiro maior
número de assinantes do serviço de streaming, atrás dos EUA e do Reino Unido.34
Finalmente, na ocasião do lançamento da quinta temporada, no fim de Maio de
2017, a empresa lança no Facebook um vídeo com Michael Kelly, ator que faz Doug
Stamper, o fiel escudeiro de Underwood, dizendo aos brasileiros que eles não sabem “de
onde as pessoas podem tirar inspiração”, e que ficassem “atentos”.35

28
http://g1.globo.com/pr/parana/noticia/2016/03/pf-libera-documento-que-mostra-ligacao-entre-lula-e-
dilma.html. Acessado em: 25/07/2018.
29
Veja o tweet em: https://twitter.com/HouseofCards/status/710244596844986368/photo/1. Acessado
em: 25/07/2018.
30
http://g1.globo.com/jornal-nacional/noticia/2017/05/dono-da-jbs-grava-conversa-com-michel-temer-
diz-o-globo.html. Acessado em: 25/07/2018.
31
Veja o tweet em: https://twitter.com/houseofcards/status/864992970994368512. Acessado em:
25/07/2018.
32
O caráter surreal das reviravoltas políticas deste dia 17 levou a edição do dia do Jornal Nacional a
marcar recorde de audiência, superando a das teleficções veiculadas no mesmo dia. Ver:
https://www.otvfoco.com.br/edicao-historica-do-jornal-nacional-tem-maior-audiencia-desde-2016-
confira-os-consolidados-desta-quinta-feira-180517/. Acessado em: 10/08/2018.
33
https://jovemnerd.com.br/nerdbunker/twitter-oficial-de-house-of-cards-brinca-com-polemica-do-
governo-brasileiro/. Acessado em: 25/07/2018.
34
Ver: https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2017/02/1858978-brasil-e-o-sexto-mercado-de-tv-pela-
internet.shtml. Acessado em: 10/08/2018.
35
Assista ao vídeo em: https://www.facebook.com/HouseofCardsBrasil/videos/1091128297687010/.
Acessado em: 25/07/2018.
70
Percebe-se dessa forma que a interação de “House of Cards” com a realidade
brasileira não é unidirecional, mas uma aonde a apropriação do mundo da série pelo
jornalismo brasileiro, a apropriação irônica pelo público geral por meio da produção de
memes, e o comentário direto sobre a conjuntura brasileira pelos perfis oficiais da série
andam lado a lado. O que impera, para Demuru, é a “primazia das correlações entre os
termos”:

Capítulo após capítulo, declaração após declaração, meme após


meme, a série-novela da crise política brasileira mostrou
exatamente isso: a compenetração profunda e recíproca tanto
entre discursos de gêneros diversos (ficção seriada televisiva e
jornalismo político) quanto, e principalmente, entre mundo
“real” e mundo “ficcional”, em particular aquele de House of
Cards.36

Chegando à conclusão do artigo de Demuru, e apesar de concordar com suas


observações e análises quanto às interações entre ficção seriada e universo político
brasileiro, fico contudo com uma dúvida: e a telenovela? O papel que Demuru identifica
com a série americana de fornecer “uma moldura e uma lente para a interpretação e a
apreensão” da conjuntura política brasileira (opus cit.) foi realizado por relativo longo
período de tempo pelas telenovelas brasileiras, que até meados dos anos 1990 eram “o
lócus privilegiado de tramas contemporâneas” (HAMBURGER, 2005, p. 151). A novela
“Rei do Gado”37, em particular, foi central para a “pretensão pedagógica” das “novelas
de intervenção”, terceira fase do desenvolvimento do gênero telenovelístico no Brasil,
incorporando “a luta contemporânea pela reforma agrária” e ganhando as capas,
editoriais, e páginas políticas dos principais jornais diários (idem, p. 135).
Demuru não só ignora essa importância que as novelas tiveram, como só irá citar
sua existência na chave negativa, apontando que os aspectos novelescos seriam de um
melodrama simplificador que a cobertura jornalística teria absorvido, contraditoriamente,
de House of Cards e séries “da era Netflix” em geral. Esse desprezo pela importância da

36
DEMURU, Paolo. “Ficção seriada televisiva, jornalismo político e construção do real: hipóteses a partir
de Greimas”. In: Significação. São Paulo: v. 44, n. 48, 2017, p. 114.
37
Escrita por Benedito Ruy Barbosa e indo ao ar na Rede Globo entre Junho de 1996 e Fevereiro de 1997
no horário nobre das oito.
71
telenovela no Brasil aponta para o preconceito em torno do gênero, visto com
desconfiança nos estudos televisivos por sua suposta simplicidade e pertencimento à
“cultura de massas”. Quando Demuru afirma que as edições do Jornal Nacional sobre a
crise absorveram a estrutura melodramática do seriado, omite que não só o jornalismo
brasileiro já se utilizava de elementos do melodrama para a construção de sua visão de
mundo, mas que o jornalismo ocidental em geral absorveu o modo melodramático como
modelo de explicação de mundo (ver WILLIAMS, 2014, capítulo 1). Sua completa e
instigante investigação das correlações entre o discurso jornalístico brasileiro e o mundo
de “House of Cards” peca pelo afã de apontar essa correlação como uma novidade; não é
a imbricação dos mundos “real” e “ficcional” que é a novidade aqui, mas a
transnacionalidade da mesma.
O que parece ser o caso é que, com o desenvolvimento histórico da novela, aonde
se afasta do comentário político explícito para as chamadas “novelas de intervenção” 38,
esse espaço vago vai sendo povoado por elementos ficcionais de seriados televisivos
americanos, que começam a povoar o dial brasileiro com a entrada no país da televisão a
cabo (em particular, nas grandes cidades e entre a classe média), e posteriormente com a
popularização do serviço de streaming Netflix. Essa crescente competição, primeiro de
seriados televisivos americanos transmitidos em canais a cabo brasileiros e depois com a
entrada de um serviço marcado justamente pelo caráter transnacional de sua distribuição,
faz com que as telenovelas percam a sua universalidade entre as classe sociais brasileiras,
com as mais altas migrando para um repertório ficcional fundamentalmente
estadunidense.39
O tom cínico e supostamente desiludido da série casaria bem com a tônica do
telejornalismo brasileiro sobre a crise do governo Dilma, que salvo raras exceções pinta
um cenário de terra arrasada desde o início das investigações da Operação Lava-Jato e,
como bem aponta Demuru, apresenta muitas vezes “uma das partes do jogo na contenda

38
Que, se lidava com problemas propriamente políticos em “Rei do Gado”, vai no caminho do
comentário de problemas sociais específicos, como câncer de mama, violência urbana, ou tráfico humano,
procedimento cujo maior expoente são as novelas de Glória Perez . Ver: HAMBURGER, Esther Império.
O Brasil antenado.: A sociedade da novela. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2005, p.131-5.
39
Salvo exceções, como o fenômeno que foi “Avenida Brasil”, novela de 2012 escrita por João Emanuel
Carneiro.
72
(a da ex-presidente e seu partido), como um sujeito movido exclusivamente pela cobiça
e pela sede de poder” (DEMURU, 2017, p. 112, ênfases minhas).
Ou seja, a comparação por parte do discurso jornalístico entre o contexto político
brasileiro e elementos de “House of Cards” envolveria um procedimento duplo: de um
lado, apresentar o viés dos veículos de mídia com relação aos eventos reais a partir de um
repertório midiático partilhado pela classe média brasileira, e do outro identificar com
Underwood e o polo do “Mal” da série os vilões da vez (sejam eles Eduardo Cunha, Dilma
ou Lula).

Referências bibliográficas

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midiatização do ativismo e transformações no jornalismo a partir de uma (ciber)cultura pop”. In:
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In: American Studies. Heidelberg: Universitätsverlag WINTER, v. 56, n. 4, 2011, p. 531-553.

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. “Entre o Clássico e o Moderno: o uso de apartes em ‘House of


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https://congressotelevisoes.com.br/. Acessado em: 22/10/2018.

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SEDDA, Franciscu. “La fatíca della fática. Interazioni mediali, questioni semiopolitiche”. In:
Intexto. Porto Alegre, n. 37, p. 152-175, 2016.

73
Formas do ‘cronotopo’ na telenovela brasileira: exemplos da construção ficcional
das categorias tempo-espaço no realismo fantástico de Dias Gomes e suas zonas de
contato com a vida cotidiana brasileira

The forms of 'chronotope' in Brazilian television serial: the production of meanings of time-
space forms in soap operas by Dias Gomes and your relations with Brazilian daily day life

Daniela Jakubaszko1
Joyce Simplicia de Moraes2
Lucas Lunguinho Soares3

Resumo: Esta pesquisa tem o objetivo de analisar, a partir do estudo das formas do ‘cronotopo’
empreendido por M. Bakhtin (1993; 2006), a produção de sentidos de quatro telenovelas
representantes do realismo fantástico de Dias Gomes (O Bem Amado, Saramandaia, Roque
Santeiro, O Fim do Mundo). A preocupação central, a exemplo de Bakhtin, é a de perceber
como se articulam na ficção as categorias de tempo-espaço (ficcionais e históricas) e a imagem
dos variados tipos de cidadãos brasileiros ali representados, de forma a consolidar para além de
seu tempo histórico de produção, as narrativas e conflitos que emergem a partir dessa
articulação. Supomos a existência das seguintes formas cronotópicas: Cronotopo do AI-5 (O
Bem Amado e Saramandaia); Cronotopo das “Diretas Já” (Roque Santeiro) e Cronotopo da
“Nova Ordem Mundial” (O Fim do Mundo).
Palavras-chave: Comunicação; Telenovela Brasileira; Dias Gomes; Dialogismo; Cronotopo.

Abstract: this research aims to analyze, from the study of the forms of 'chronotope' undertaken
by M. Bakhtin (1993, 2006) the production of meanings of four telenovelas representing the
fantastic realism of Dias Gomes (O Bem Amado, Saramandaia, Roque Santeiro, The End of the
World). The central concern, like Bakhtin's, is to realize how the categories of time-space
(fictional and historical) are articulated in fiction and the image of the various types of Brazilian
citizens represented there, so as to consolidate beyond their time history of production, the
narratives and conflicts that emerge from this articulation. We assume the existence of the
following chronotopic forms: Chronotope of the AI-5 (Beloved and Saramandaia); Chronotope
of the "Diretas Já" (Roque Santeiro) and Chronotope of the "New World Order" (The End of the
World).
Key words: Communication; Brazilian telenovela; Dias Gomes; Dialogism; Chronotope.

1 Doutora em Ciências da Comunicação (PPGCOM ECA USP) é professora da Escola de Comunicação da Universidade
Municipal de São Caetano do Sul (USCS). Membro do grupo de pesquisas GELiDis (ECA/USP) e do Grupo de Pesquisa
Memórias do ABC do Laboratório Hipermídias de Comunicações Culturais (USCS).
2 Graduanda em Rádio, TV e Internet na USCS- Universidade Municipal de São Caetano do Sul, desenvolveu dois anos de

pesquisa de Iniciação Científica com financiamento CNPq-PIBIC.


3 Graduando em Rádio, TV e Internet na USCS- Universidade Municipal de São Caetano do Sul, desenvolveu pesquisa de

Iniciação Científica como voluntário AACC – Atividades Acadêmicas Curriculares Complementares.


74
Introdução
Este artigo apresenta resultados de uma pesquisa em desenvolvimento4 cujo objetivo é
analisar, a partir do estudo das formas do ‘cronotopo’ empreendido por M. Bakhtin (1993;
2006), a produção de sentidos de quatro telenovelas representantes do realismo fantástico de
Dias Gomes (O Bem Amado, Saramandaia, Roque Santeiro, O Fim do Mundo).
A preocupação central, a exemplo de Bakhtin, é a de perceber como se articulam na
ficção as categorias de tempo-espaço (ficcionais e históricas) e a imagem dos variados tipos de
cidadãos brasileiros ali representados, de forma a consolidar, para além de seu tempo histórico
de produção, narrativas e conflitos capazes de carregar memória enquanto gênero
teledramatúrgico e enquanto leitura que propõem do país, representando um imaginário de
brasilidades que permanece gerando sentido e dialogando com as situações sociais e políticas
do presente. Por ser um elo na cadeia discursiva, além de transmitir significado, contribui para
gerar novos sentidos, e enquanto documento de época registra e dá forma às transformações
socioculturais. Um dos roteiristas mais importantes no trabalho de forjar o estilo do gênero no
país, Dias Gomes e suas telenovelas se tornaram referência para os universos e profissionais
que orbitam a criação, produção e estudo de ficção nacional e da história da TV no Brasil.
Ao estudar as novelas de Dias Gomes, assistir aos capítulos disponíveis na Internet ou
rever isoladamente algumas de suas cenas, identifica-se e reconhece-se a cultura brasileira, o
regional e o nacional, aprende-se sobre a história da TV e sobre as representações que o
melodrama faz do modus operandi nas relações políticas no país. A leitura feita no presente é
capaz, ainda, de perceber que os vínculos entre história e (des)democracia5 no Brasil, ali
representados, são ecos de um passado ainda mais remoto, que se repetem no presente de Dias
Gomes e agora batem novamente à porta da gente brasileira.
Supomos a existência de três formas cronotópicas no realismo mágico de Dias Gomes
para refletir, refratar e modelizar em suas telenovelas, a partir das suas lentes e filtros de

4 A pesquisa se denomina “Formas do ‘cronotopo’ na telenovela brasileira: um estudo da construção ficcional das categorias
tempo-espaço no realismo fantástico de Dias Gomes e suas zonas de contato com a vida cotidiana brasileira”. Submetida para
financiamento. Três pesquisas de IC contribuíram para o levantamento de dados. “A importância do espaço para a produção
de sentidos na ficção televisiva: um estudo sobre criação e caracterização de bases cenográficas na telenovela brasileira” e
“Roque Santeiro, O Bem Amado e Saramandaia: um estudo sobre a importância do espaço na produção e articulação de
sentidos nas narrativas das telenovelas de Dias Gomes”. A primeira já concluída e a segunda em andamento, ambas realizadas
pela aluna de RTVI da Escola de Comunicação da USCS, Joyce Simplicia de Moraes e orientadas pela profa. Dra. Daniela
Jakubaszko, com financiamento CNPq-PIBIC. A terceira é realizada pelo aluno, do mesmo curso, Lucas Lunguinho Soares,
intitulada “A construção de personagens na ficção televisiva de Dias Gomes: um estudo sobre a criação e caracterização de
personagens nas novelas O Bem Amado, Saramandaia e Roque Santeiro de Dias Gomes”.
5 Parafraseando o Mestre. Uma das características do realismo mágico de Gomes é a invenção de palavras por meio da troca

de prefixações e sufixações. Cf. exemplo: [http://gshow.globo.com/novelas/saramandaia/Fique-por-


dentro/noticia/2013/06/fique-por-dentro-do-dicionario-de-saramandaia.html] Acessado em 05.05.2018.
75
intelectual comunista brasileiro (SACRAMENTO, 2015), o presente histórico em que vivia:
Cronotopo do AI-5 (O Bem Amado e Saramandaia); Cronotopo das “Diretas Já” (Roque
Santeiro) e Cronotopo da “Nova Ordem Mundial” (O Fim do Mundo). É preciso pressupor um
cronotopo anterior a estes, um tempo-espaço histórico em que se fermentaram as condições
sociais, econômicas, técnicas, intelectuais e artísticas que transformaram o gênero no País
durante o cronotopo do AI-5. Para narrar este tempo-espaço supomos o “cronotopo da
contracultura”, representado pela telenovela Beto Rockfeller.
Como muito difundido na literatura sobre ficção televisiva, Beto Rockfeller representou
modernização em todos os aspectos da linguagem teledramatúrgica, além de mostrar
influências do cinema nacional6. E, de forma bastante explícita, às vésperas e adentro do AI-5,
porque se inicia em 4 de novembro de 1968 e termina em 30 de novembro de 1969, a telenovela
ostenta vínculos com a contracultura, com as aspirações democráticas da época
(JAKUBASZKO, 2002; 2018). Era o clímax de um contexto cultural de efervescência
intelectual e artística. O momento histórico pré-68 contribui decisivamente para conformar um
fazer brasileiro para a telenovela quando recebe as influências do teatro e do cinema nacionais
(MOTTER, 2000-2001; JAKUBASZKO, 2018; BRANDÃO, 2005; 2009).
Às vésperas do AI-5 houve, então, um salto de qualidade no modo de se fazer telenovela.
Mas logo a Excelsior e a Tupi seriam extintas. A partir do cronotopo do AI-5, a TV Globo
passaria a dominar o mercado e a audiência. De acordo com Sacramento (2015; 256), a TV
Globo “vinculou sua marca a esses nomes, garantindo a produção de trabalhos mais
qualificados e a adesão de um público culturalmente mais distinto na tentativa de legitimar a
TV como um meio artístico de excelência”.
De forma geral, cada autor desenvolve um estilo próprio ao tratar os temas de interesse
social que circulam nas telenovelas, criando um universo temático de preferência. Dias Gomes
recorre nos temas sobre política, coronelismo, falência das instituições, corrupção, questão
agrária, entre outros. Também focaliza separação e desquite, por tratarem-se de temas
importantes no momento em que suas histórias foram ao ar (MOTTER, 2003; JAKUBASZKO,
2008). Outra característica marcante da obra de Dias Gomes é trazer elementos do realismo
fantástico literário e do teatro popular para as telenovelas.

6 É certo que não se podem investir todos os méritos em uma única produção: o contexto histórico da formação da TV em
tempos de transição e consolidação do estado de exceção era de ampla movimentação intelectual e artística, até que chegasse
o corte em 1968 com o AI-5 (JAKUBASZKO, 2018).
76
Alfredo Dias Gomes nasceu em Salvador na Bahia no dia 19 de outubro de 1922. Já
desde seu início de carreira gostava de trazer os seus princípios básicos de filosofia de vida: a
integridade e dignidade do homem, a busca por um mundo mais justo e o respeito à natureza.
As temáticas sociais marcam a obra do autor desde quando estreou na dramaturgia aos
19 anos, tratando de temas que poucos ousavam falar. Casou-se com a novelista Janete Clair
em 1950, um dos mais importantes nomes da dramaturgia brasileira. Dias Gomes escreveu a
peça “O Pagador de Promessas” que atravessou fronteiras sendo encenada em vários países.
Com sua adaptação para o cinema tornou-se o primeiro filme brasileiro a receber a Palma de
Ouro no Festival de Cannes, até hoje o único.
Na TV obteve grande êxito e ganhou diversos espectadores com muitos de seus roteiros
que escrevia sem colaboradores. Entre eles: Assim na Terra Como no Céu, Verão Vermelho,
Bandeira 2, Roque Santeiro, O Espigão, Saramandaia e O Bem Amado. Com os dois últimos
títulos, o autor, segundo a mídia na época e os pesquisadores de ficção televisiva, alcançou “um
patamar único” renovando assim a linguagem da telenovela.
Na década de 80, no horário nobre, Roque Santeiro foi a trama campeã de audiência.
Assim, Dias Gomes, entre muitos outros escritores da dramaturgia de televisão, é um dos nomes
notáveis que figurou nas fichas técnicas das telenovelas e por isso se destacou em termos de
inovação na construção do gênero. Sua participação foi fundamental para a constituição de uma
linguagem televisiva própria, bem como para a construção do prestígio da emissora. A
telenovela O Bem Amado inaugurou, inclusive, o tão aclamado “padrão Globo de qualidade”,
além de ter marcado o início das transmissões em cores pela emissora.
Saramandaia, de 1976, manteve-se tão viva na memória dos telespectadores que ganhou
um remake em 2013. O Bem Amado, em 2011, ganhou versão para minissérie e para o cinema,
com direção de Guel Arraes. Roque Santeiro teve sua primeira produção proibida pelo governo
militar em 1975, mas foi ao ar com nova produção em 1985-86 e reprisou no Canal Viva em
2011. Roque Santeiro foi também um marco no que se refere à comercialização da trilha sonora
e alguns pesquisadores veem contribuições da narrativa para o debate social que impulsionou
o movimento das ‘Diretas Já’ no país (HAMBURGER, 2005). Além da influência interna, tais
telenovelas foram as primeiras a serem exportadas e provocaram impactos para além da nação,
ainda que construídas de forma a tratar das questões sociais brasileiras – isso não impediu um
impacto global (HAMBURGER, 2005).
Com a criação de cidades fictícias, sem tempo nem espaço definidos, de um lugar
pitoresco, como Bole-Bole, Asa Branca, Sucupira ou Tabacópolis, construía metáforas do país.
77
Apesar de muito particulares, e até fantásticos, os personagens e seus conflitos se tornam muito
próximos das experiências cotidianas de seu público e da forma como enxergam o mundo e o
tempo histórico vivido. De alguma forma, as histórias de Dias Gomes tornaram-se clássicos da
TV no Brasil, agradando diferentes públicos, dos mais eruditos aos mais populares, gerando
inúmeras ressonâncias dialógicas até a atualidade e impactos duradouros sobre a cultura
midiática, identidade nacional, cultural e política no Brasil. Seu estudo é indispensável.

1. O estudo das formas do cronotopo no audiovisual


O cronotopo, que significa a articulação ‘tempo-espaço’, é um conceito cunhado por
Bakhtin (1993; 2006) para desenvolver seus estudos sobre as formas típicas de representação e
organização do tempo e do espaço na literatura, mais precisamente, no romance e seus
subgêneros. O autor encontra no gênero do romance europeu uma relativa estabilidade
tipológica dos cronotopos, o que nos permite tentar sua aplicação para os estudos de ficção
audiovisual, já que é possível afirmar a importância fundamental das categorias de tempo-
espaço para as narrativas, ainda que elas se desenvolvam conforme as especificidades do gênero
que estiver em estudo.
Tanto na ficção literária quanto na audiovisual, o cronotopo expressa o vínculo
indissolúvel que costura as categorias tempo e espaço no tecido narrativo, formando uma trama
que permite e apoia a progressão das ações, a transformação das situações, personagens e
conflitos. Muitos são os fios que ligam o mundo imaginado por um roteirista com o mundo
vivido por ele e pelos espectadores. Na tessitura da vida, a obra, e na obra a vida.
Cronotopos são pontes de sentido que se formam entre presente, passado e futuro; entre
sujeitos e alteridades, entre outras dimensões e mundos imaginados. Quando as formas
cronotópicas estão bem trabalhadas num enredo permitem processos dialógicos em múltiplos
níveis, e cada vez mais camadas de sentido emergem da ficção, costurando ficção, tempo
histórico e imaginário. Nesse cruzamento e articulação de sinais espaço-temporais, “os índices
de tempo transparecem no espaço, e o espaço reveste-se de sentido e é medido com o tempo”
(BAKHTIN, 1993; 211). Nosso objetivo com esta pesquisa é buscar por estes índices espaço-
temporais nas telenovelas para compreender algumas formas cronotópicas típicas deste gênero
audiovisual.
A categoria espacial é ampla: não se refere apenas aos ambientes e lugares nos quais as
personagens circulam, mas a todo e qualquer objeto que estiver visível no espaço. Espaço é
tudo o que se faz visível no discurso, na tela; assim como cada descrição de cena, cada imagem
78
evocada pelas palavras no romance conta para o estudo do cronotopo. Assim, tudo o que
preenche o espaço se torna espaço a ser analisado.
O espaço denuncia, caracteriza e propõe uma leitura da temporalidade. Mesmo que o
tempo da narrativa seja predominantemente subjetivo, alguma construção espacial mínima é
indispensável para ancorar a realidade do personagem enquanto pessoa no mundo criado e para
sustentar sua verossimilhança. As narrativas dependem das bases cenográficas para se
desenvolver e ganhar verossimilhança. Mesmo o realismo mágico, por exemplo, depende dessa
ancoragem espacial. De acordo com Motter,
(...) qualquer telenovela, por mais que queira fugir do chamado realismo,
encontrará nessa base cenográfica um estrato realista e, ainda que se busque o
fantástico, ele só existirá acima desse patamar, dessa base. (...). Portanto, é
sobre essa base “real” que se irá construir tanto a história absurda quanto a
realista. Mas, a razão de ser da base é funcionar como uma ancoragem para o
cotidiano que irá se estruturar a partir dela. Um cotidiano que, diferentemente
do cinema ou do teatro, terá que se estender por seis meses, (...) tem que haver
um lugar e lugares para estabelecer os pontos de apoio para as personagens.
(MOTTER, 2003; 166-167).

As “constituições fixas”, o “estrato realista” ou, ainda, a “base de estruturação do


cotidiano ficcional” são termos cunhados por Motter (2003) para definir um “algo” que
permanece inalterado: enquanto as personagens e suas histórias se transformam., o cenário
permanece o mesmo. Esse “algo” é a base que sustenta a vida cotidiana da personagem. Seus
hábitos e modos de ver o mundo estão corporificados em seus objetos e caracterização cênica,
tornando-se uma força de identificação entre personagem e telespectador, entre ficção e
cotidiano. Vale lembrar, também, mesmo que se tratem de lugares simbólicos, metafóricos,
fantásticos, as pontes de sentido com o tempo histórico de produção são inevitáveis.
Mais que preencher a cena, o mundo exterior serve como ambiente para a personagem.
Nele é que as ações ganham ritmo e concretude. A personagem ganha verossimilhança quando
organicamente entrelaçada com o dado no mundo. Segundo Bakhtin,
(...) o mundo é um horizonte da minha consciência atuante, operante. (...)
Todos os objetos representados na obra têm e devem ter, indubitavelmente,
uma relação essencial com a personagem (...) todos os objetos estão
correlacionados com a imagem externa da personagem, com suas fronteiras
tanto internas quanto externas (fronteiras do corpo e fronteiras da alma).
(BAKHTIN, 2006; 89-90).

As personagens vivem as mesmas datas comemorativas que vão marcando a


circularidade de práticas culturais locais e globais: natal, réveillon, carnaval, copa do mundo,
eleições. Nas práticas cotidianas consomem produtos e marcas como os espectadores, recebem

79
indicações de eventos culturais e artísticos, tomam partido em campanhas nacionais7, previnem-
se contra a dengue, discutem problemas afetivos em rede nacional, questionam estereótipos e
preconceitos de gênero8. Que elementos e signos do ‘mundo exterior’ à telenovela são
recolhidos e constroem ambiente para os personagens? A construção desta representação é
também uma leitura e interpretação do ambiente sociocultural brasileiro, a exemplo do que
observa Bakhtin: “a assimilação do cronotopo real e histórico na literatura fluiu complexa e
intermitentemente” (BAKHTIN, 1993; 212). A temporalidade dá contornos às personagens de
ficção, tanto quanto o gênero ajuda a definir os contornos e limites da construção da
representação do tempo histórico.
Xavier (2000), ao afirmar o melodrama como gênero hegêmonico na esfera do
espetáculo, desde sua origem no teatro popular francês no início do século XIX até as
contemporâneas superproduções midiáticas, televisivas ou cinematográficas, busca
compreender os sentidos da eficácia do gênero no cinema. Canonicamente,

(...) ao melodrama estaria reservada a organização de um mundo mais simples,


em que os projetos humanos parecem ter a vocação de chegar a termo e o
sucesso é produto do mérito e ajuda da Providência, ao passo que o fracasso
resulta de uma conspiração exterior que isenta o sujeito de culpa e o
transforma em vítima radical. Esta terceira via da imaginação traria, portanto,
as simplificações de quem não suporta ambiguidades nem a carga de ironia
contida na experiência social (XAVIER, 2000;81).

Simplificando a narrativa e suas reflexões filosóficas, o gênero transmite em termos


privados as inseguranças da esfera social. Nas telenovelas, os temas representados estão
moldados nos limites do senso comum (JAKUBASZKO, 2004). Se na ficção a temporalidade
é o tempo histórico em que a ação acontece - o tempo do mundo exterior representado -, tal
representação do tempo histórico na telenovela está modelada nos limites do gênero, dado por
suas formas cronotópicas, afinal “pode-se dizer francamente que o gênero e as variedades de
gênero são determinadas justamente pelo cronotopo” (BAKHTIN, 1993; 212).

Cronotopos não apenas organizam espaço e tempo dentro de um texto, que


depois gozam de uma existência fixa, transcendental e trans-histórica; eles o
organizam dentro do processo histórico em que não há dois momentos que
possam ser idênticos. (BEATON, 2015; 100).

7 São exemplares: em Manoel Carlos, as campanhas para Doação de Medula e uma manifestação para “O Brasil sem armas”
às vésperas do Estatuto do Desarmamento em Mulheres Apaixonadas (2003); em Glória Perez, as campanhas de sensibilização
e atenção às crianças desaparecidas em Explode Coração (1995-1996), dependência química em O Clone (2002).
8 Vale lembrar que com relação às questões étnicas e raciais ainda há muito o que trabalhar para a construção de representações

mais dignas e ampliação de representatividade já também reproduzem estereótipos e preconceitos, ou mesmo quando silenciam,
contribuindo para perpetuar e fortalecer padrões negativos de representação.
80
Nesse sentido, o fantástico em Dias Gomes encontrou maior liberdade na construção
metafórica para fazer a crítica do real vivido pelo espectador por meio de suas representações
mágicas e da carnavalização e/ou tratamento irônico dos lugares de poder da esfera oficial e
pessoas que os ocupam, já que ao mesmo tempo encontrava uma brecha tanto para explorar o
gênero de maneira inédita quanto para fugir da censura.
Além disso, algumas telenovelas, por se tornarem referência na história do gênero no
Brasil, como é o caso das novelas de Dias Gomes, alcançam elas mesmas um poder de síntese
sobre a nação e a identidade do brasileiro, tornando-se referência na representação e crítica da
sociedade e do modus operandi da política no Brasil, do coronelismo, do provincianismo, da
hipocrisia, corrupção e falência das instituições, entre outras (MOTTER, 2000;
JAKUBASZKO, 2010; SACRAMENTO, 2015).
O cronotopo mostra, ainda, ‘zonas de contato’ com o espaço-tempo do espectador,
sujeito histórico e dos processos históricos representados na obra artística. É o “cronotopo como
intersecção não repetível de um mundo ficcional com um dado lugar e tempo na história
humana” (BEATON, 2015, p. 101).
Se já estudamos a telenovela como documento de época e lugar de memória coletiva,
para observar os vínculos entre ficção e vida sociocultural brasileira (MOTTER, 2000-2001;
JAKUBASZKO, 2004) estudando as formas do cronotopo e suas zonas de contato na ficção
televisiva podemos podemos aprofundar o conhecimento do gênero e seus vínculos com o
presente histórico, a audiência, e os modos típicos que as telenovelas fantásticas de Dias Gomes
constroem para narrar a cultura brasileira e continuar produzindo ressonâncias dialógicas.
Apresentamos a seguir, alguns exemplos de realização das formas cronotópicas
desenvolvidas no realismo fantástico de Dias Gomes e suas zonas de contato, tanto com o
passado quanto com o presente histórico. A pesquisa está em andamento, mas já é possível
apresentar resultados que evidenciam diálogos com o contexto de produção e os processos
históricos brasileiros.

2. O cronotopo do AI-5
Dias Gomes, como um dos expoentes da construção da linguagem televisiva brasileira,
viveu o período que fez a transição de uma expressão mais teatral para uma linguagem mais
coloquial (KEHL, 2005), atualizando o mirabolante e grotesco na telenovela (SACRAMENTO,
2014). A forma como Gomes retratava o cotidiano e o banal, por meio de alegorias e da inversão
81
de hierarquias sociais, alçou a representação da realidade brasileira ao protagonismo na
telenovela. Assim conseguia corresponder às expectativas por uma modernização da televisão
ao mesmo tempo que criava narrativas de inversão e crítica a essa mesma modernização e
progresso social, ao trabalhar com o grotesco, o fantástico e o cômico popular para expressar e
modelizar a identidade nacional.
Em seus estudos, Bakhtin desenvolve sua teoria sobre o poder da carnavalização e sua
aproximação com o povo. Segundo ele é uma grandiosa cosmovisão, responsável pela
libertação do homem de suas próprias convenções (BAKHTIN, 1999). Tais convenções são
marcadas pelo medo, pelos dogmas sociais, religiosos, éticos ou políticos estabelecidos, que
tendem a estabelecer uma existência social.
Novelas como O Bem Amado (1973) e Saramandaia (1976) coexistiram com a realidade
densa e censurada que os anos de chumbo e o conservadorismo exacerbado refletiam no Brasil
da época. O aprofundamento das questões que permeiam as personagens apresentará uma visão
da brasilidade da época em que as novelas foram exibidas. Como sabido, no início da década
de 70 o Brasil passa pelo fenômeno do Milagre Econômico. A Rede Globo se expande com o
regime devido aos investimentos do governo em infraestrutura de telecomunicação para o meio.
A emissora se sobressai como modelo padrão de qualidade de indústria cultural ao compactuar
com os interesses do Regime e estabelecer uma comunicação homogênea e nacional.

2.1. O Bem Amado


Em 1973 estreia na Rede Globo a primeira telenovela brasileira a cores, O Bem-Amado,
adaptação do texto de Dias Gomes, O Bem-Amado ou Os Mistérios do Amor e da Morte. A
história era carregada de críticas à situação política da época. Na fictícia cidade baiana de
Sucupira, o prefeito Odorico Paraguaçu tem como plataforma de governo a construção do
cemitério do município. Gomes apropria-se das tensões e contrastes entre as oligarquias rurais
e a modernidade urbana que se expandia na época. Exibida durante o governo Médici, a
produção foi ao ar sob a mordaça da censura, recebendo vigilância, cortes e direcionamentos
em todos os capítulos.
A trama, desenvolvida dentro de 176 capítulos, conta a trajetória do prefeito da cidade
de Sucupira, Odorico Paraguaçu (Paulo Gracindo), que ao inaugurar um novo cemitério na
cidade, se encontra na posição de líder de um projeto que não vinga: ninguém na cidade morre,
impossibilitando a abertura do cemitério. A construção da narrativa se dá através dos planos
que o prefeito traça para conseguir um corpo que possa enterrar, mas afogamentos ou tentativas
82
de suicídio nunca dão resultados. É então que o mesmo recorre ao cangaceiro, filho da terra,
Zeca Diabo (Lima Duarte), um matador redimido, que não quer mais matar ninguém. A ironia
dramática se faz no desfecho tragicômico: o prefeito morre e inaugura o cemitério.
A trama se divide entre a cidade de Salvador, e a fictícia cidade de Sucupira,
contrastando os dois ambientes prevalecentes da ditadura militar: a modernização perante o
tradicionalismo rural. Dias Gomes aproveita desta ambientação para desenvolver sua posição
crítica: ao analisar as cenas de O Bem-Amado é possível identificar pujantes críticas a elementos
tradicionais, que resistiam na política e na organização social brasileira.
Esta contraposição entre as duas estruturas vigentes permite ao O Bem-Amado romper
com a estrutura melodramática já estabelecida no padrão televisivo, ao não seguir uma linha
maniqueísta, mas expressar a militância partidária do autor, permitindo o início de uma
construção de personagens mais complexa e esférica. Esta construção é feita sem desconsiderar
as particularidades estereotipadas do público que se é representado.
Os personagens que habitavam Sucupira seguiam a tipologia popular,
refletindo estereótipos, tendências, comportamentos e características comuns
a modos de vida de diversas regiões interioranas do país do início de 1970,
tais como: o prefeito/coronel, as solteironas, os demais representantes das
famílias oligárquicas, o vigário, o dono da venda, o cangaceiro e o funcionário
público (DIAS, 2009; 39).

O personagem Zeca Diabo (Lima Duarte), por exemplo, como assassino de aluguel
representava o cangaço, mas não gerava medo porque tornou-se uma vítima da exploração e
marginalização consequentes do ambiente político da qual foi inserido. Vale lembrar que a
tradição rural esteve por muito tempo associada ao atraso nacional.
Além da questão principal da trama sobre a falta de “defuntos” para a inauguração do
cemitério, as cenas evidenciam os favoritismos, trocas políticas e outras práticas típicas de uma
sociedade corrupta. Quando uma série de infortúnios enfraquece o prefeito politicamente, ele
tenta de todas as maneiras manter o controle sobre a cidade. Assim, manda instalar um
microfone na sacristia a fim de descobrir todos os segredos de seus inimigos. Surge o escândalo
Sucupiragate9:

9 Sucupiragate é uma referência ao escândalo político que ocorreu em 1972 com o presidente Richard Nixon no edifício de
Watergate, após o episódio o edifício ficou mundialmente reconhecido como um símbolo da corrupção e abuso de poder. A
partir da prisão de alguns homens que estariam supostamente invadindo o escritório dos Democratas para instalar microfones
às vésperas das eleições presidenciais, uma investigação feita por funcionários do The Washington Post e também pelo FBI e
outros órgãos competentes acabaram ligando o escândalo a diversos assessores ligados ao presidente, isso culminou na sua
renúncia em 1974. O ano de 1973 ficou marcado por estas investigações que foi sendo deflagrada aos poucos e inundando as
páginas de jornais. A fim de incorporar mais um escândalo político para a narrativa, Dias atribuiu à Odorico o escândalo
denunciando mais um abuso de poder do prefeito coronel.
83
É um escândalo político, porém, que joga por terra todos os planos do prefeito.
Trata-se do “Sucupiragate”, em que Odorico é acusado de espionagem por
mandar instalar um microfone no confessionário da igreja para descobrir os
segredos de seus inimigos. Com a armação, ele também tem acesso às histórias
picantes e tragicômicas dos moradores. O crime, descoberto pelo padre,
estampa a primeira página do jornal local, com a manchete: “Espionagem no
confessionário”. As gravações se tornam públicas, e a crise é inevitável
(Memória Globo, O Bem-Amado, Trama Principal).

Em diversas tentativas de conseguir apoio popular o prefeito abusa descaradamente do


poder, mas para denunciá-lo ele tem o jornal A trombeta que é de propriedade de um de seus
inimigos Neco Pedreira. O jornalista é seu rival e dono do jornal que denuncia suas mais
variadas falcatruas, revelando à população que tipo de político autoritário e manipulador ele
realmente é. A população fica ciente de que, além das escutas que ele instalou no
confessionário, o prefeito mantém um caso com as três Cajazeiras, suas aliadas, e é a partir daí
que vemos o seu impeachment ser protocolado e ganhar grande relevância. E, por fim, além
dessa, outra ação desenvolvida vem do próprio prefeito, que, contrariado pelo jornal atenta
contra a liberdade de imprensa, em uma das publicações do jornal o prefeito manda fechar e
destruir o local. A realidade é que o prefeito faz o que for preciso para preservar sua imagem e
manter o controle da cidade tentando saber sobre tudo o que acontece.
As caracterizações dos espaços e personagens são também alegorias a evidenciar
percepções carnavalescas do mundo. Trata-se da realidade sem total compromisso com a
mesma, explorando o lúdico e o grotesco, a quebra e inversão de hierarquias, o feio, a falta de
respeito com a propriedade privada. Observa-se então, que dentro do contexto histórico a qual
está inserida O Bem-Amado quebra os paradigmas estabelecidos pelo melodrama convencional,
aproveitando-se, dentro dos limites impostos pela ditadura e sua censura, para criticar, divertir,
criar reflexão e identificação junto à audiência que sofria com as mesmas mordaças em sua vida
cotidiana.

2.2. Saramandaia
Saramandaia é uma telenovela escrita inicialmente por Dias Gomes em 1976 e foi
veiculada no mesmo contexto histórico de O Bem Amado, por isso aqui vamos discorrer apenas
sobre as ressonâncias dialógicas e vínculos da história original com a nova versão. O remake
talvez possamos situar num ‘cronotopo do impeachement’ ou ‘do golpe’. O realismo fantástico
da trama dava margem para o autor trabalhar questões temáticas do horizonte social do cidadão

84
comum por meio da metáfora dos moradores da cidade, o que não poderia ser feito de forma
explícita na versão original por conta da ditadura.
Inspirado no realismo fantástico, Dias Gomes apresentou um painel de
personagens exóticos para, por meio da ficção, abordar questões políticas,
culturais e socioeconômicas, transformando a cidade fictícia da novela em um
microcosmo do Brasil. O coronel Zico Rosado põe formigas pelo nariz; Dona
Redonda (Wilza Carla) explode de tanto comer; a sensual Marcina (Sônia
Braga) provoca queimaduras com o calor do corpo; o professor Aristóbulo
Camargo (Ary Fontoura) se transforma em lobisomem nas noites de quinta-
feira. Além disso, sob a aparente corcunda, o pacato João Gibão esconde um
par de asas (Memória Globo, Saramandaia- 1° versão, Trama principal, 2013).

Na nova versão não haveria mais sentido usar a mesma simbologia que Dias usou
anteriormente, pois o momento não era o mesmo. Em 2013 segundo Ricardo Linhares ainda
estávamos vivendo sob uma ditadura, mas a “ditadura da intolerância”, e não mais aquela
ditadura instaurada pelo golpe de 1964,
‘Um dos temas que vou tocar nessa novela é o do respeito ao outro, às pessoas
que fogem das normas e aos padrões. Com isso eu uso os personagens que têm
traços de realismo mágico, como o Gibão, que esconde que tem asas, o
Aristóbulo (Gabriel Braga Nunes), que vira lobisomem e a Dona Redonda
(Vera Holtz), que pode explodir de tanto comer. Enfim, com esses
personagens que fogem ao que o espectador acredita que é o normal - porque
o normal não existe, cada pessoa é especial e normal ao seu próprio jeito -
pretendo discutir a intolerância ao outro. (Entrevista de Ricardo Linhares
concedida ao GShow 07/07/2013).

A história trata da disputa política e ideológica entre duas famílias (Rosado e Vilar) que
envolveu uma cidade inteira, tanto a primeira quanto a segunda versão da história se passam na
cidade fictícia de Bole Bole, também um microcosmo do Brasil. Desde sua fundação a cidade
traz na política local os mesmos nomes corruptos da família Rosado que perdeu o poder
recentemente e para acabar de vez com o passado corrupto uma liderança contrária aos
conservadores começa a ser articulada, “Saramandaia Já”. Isso ocorreu após João Gibão
(Sérgio Guizé) colocar em aprovação na Câmara uma votação de um plebiscito para mudar o
nome da cidade de Bole Bole para Saramandaia que segundo ele significa "Um lugar onde
todos podem ser o que quiser”. A partir disso a cidade se divide entre mudancistas e
tradicionalistas. Durante todo o tempo dramático observamos muitas disputas e enfrentamentos
e tudo isso é enfatizado pelos blogs e ações transmidiáticas que trazem um clima ainda mais
polarizado para a trama.
O ano de 2013 ficou marcado como o ‘Ano das Manifestações de Junho’, em total
sincronicidade com o início de Saramandaia: o ano do cidadão comum também foi de

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polarizações e culminou em diversos protestos que foram cooptados para um suposto combate
à corrupção no país, e mais tarde corroboraram para a derrubada da presidenta Dilma em 2016.
A trama está diretamente ligada às pautas nacionais, e globais, e o autor apresentou uma
juventude revolucionária em busca de mudanças na política de sua cidade ao inovar o cenário
político local; o clima polarizado da novela era sentido para além da história.
O espaço público representado proporcionou aos personagens o direito à “primavera
saramandista”, além de também ser possível o partido político fazer, no primeiro capítulo,
manifestações para disseminar a ideia do plebiscito em prol da mudança do nome da cidade.10
As cores eram marcadamente fortes e coloridas, a edição era rápida e com pulos de cena, dando
um ritmo maior em conjunto com a trilha, a cenografia ainda ajudou a ligar o espaço ao nordeste
com o ritmo do frevo e alguns símbolos como o guarda-sol e também os famosos bonecos de
Olinda. A cenografia foi pensada para atrelar o movimento a uma aura de anseios de juventude
e a signos de brasilidade.
Outro elemento da atualidade que marca o diálogo do remake com o presente histórico
da política nacional é o vídeo que mostra Zico Rosado oferecendo suborno para Cazuza, em
busca de apoio político o coronel pede para o vereador “guardar o dinheiro na cueca” remetendo
aos escândalos que se tornaram comuns na política brasileira.
As duas versões estão repletas de zonas de contato com o momento histórico no qual
foram exibidas. A segunda versão trata mais das questões políticas que rodeavam a realidade
do telespectador, apesar disso, sobre os processos iniciados em 2013 ainda pairam dúvidas se
houve uma inversão de sentidos na adaptação, já que durante os telejornais as críticas recaíam
sobre o PT, partido historicamente progressista, como se fossem eles os opressores do momento
histórico. Para quem nascia politicamente naquele momento poderia parecer que a juventude
de direita era a renovação. Neste ano de 2018, às vésperas da eleição presidencial ainda estamos
vivendo ressonâncias daquele período.

3. Asa Branca de Roque Santeiro e o cronotopo das “Diretas Já”


A história da telenovela Roque Santeiro conecta os cronotopos da contracultura, do AI-
5, das “Diretas já” e traz prenúncios do cronotopo da nova ordem mundial. O título é uma
adaptação da peça O Berço do Herói escrita em 1963 censurada pela primeira vez em 1965 e
uma segunda vez em 1975, até que a conjuntura política do ano de 1984 mais as manifestações

10Desta maneira, da mesma forma que a minissérie Anos Rebeldes ficou conhecida por incentivar o movimento dos caras
pintadas contra Collor, Saramandaia ajudou a atribuir ao movimento saramandista a imagem de jovens revolucionários.
86
pelas “Diretas Já” forçam a abertura e o fim do regime11 permitindo a exibição da novela. Em
24 de junho de 1985 vai ao ar o mito de Roque Santeiro. A telenovela conta a história de Roque:
um santeiro que, em algum lugar no interior do nordeste brasileiro, teria morrido ao defender a
cidade de perigosos bandidos.
Logo se espalham notícias de visões e milagres. Asa Branca começa a atrair visitantes.
O progresso do lugarejo passa a se apoiar no mito nascente e prospera. Uma viúva inventada
para o herói, embora tivesse tido alguma intimidade com o suposto falecido, divide o poder
local com o fazendeiro de gado da região, também viúvo, de quem é amante; e em conluio com
o padre, o prefeito da cidade, e o comerciante Zé das Medalhas. A verdade descoberta pelo
grupo passa a ser segredo: Roque havia fugido do confronto com o dinheiro do resgate do
sequestro do padre. A história começa 20 anos depois, quando a cidade é prospera e Roque
retorna para acabar com o sossego do grupo.
Roque Santeiro, à luz do conceito bakhtiniano de carnavalização, afirma os aspectos já
recorrentes nas obras anteriores: o autor nega o mito do herói e brinca numa festa de inversões
em que o grande mocinho é, na verdade, um covarde fujão, e seu vilão que deseja salvar a
cidade, ainda que usando de meios violentos para proteger seus interesses diretos.
Dentre os signos que permitem o reconhecimento do telespectador com a cidade e com
a identidade nacional estão os elementos folclóricos e da cultura popular como a presença da
literatura de cordel12, de Jeremias, cego cantador de histórias, a lenda do lobisomem, recontada
na história de Astromar (Rui Rezende), e na praça estão também as marcas do colonialismo e
da predominância da igreja católica: a Igreja Matriz de Padre Hipólito (Paulo Gracindo) e do
núcleo dramático que representa a hipocrisia e alimenta a fúria das carolas pelas meninas da
boate; as duas facções se confrontam em plena praça. Os signos da religiosidade também estão
presentes nas barraquinhas em dia de feira que comercializa os santinhos de barros, medalinhas
e souvenirs. O sino, as missas, os diálogos dentro e fora da igreja, a maior parte da rotina da
população de Asa Branca está regida pelo tempo da religião.

11 Boas referências para consulta sobre o período são o Museu virtual ‘Memorial da Democracia’
[http://memorialdademocracia.com.br/card/diretas-ja] e o site Memória Globo [http://memoriaglobo.globo.com/erros/diretas-
ja.htm] Acesso em 01.05.2018.

12Na edição do dia 11 de agosto de 2011 o Vídeo show exibiu uma pequena reportagem que relembrou o pioneirismo de Roque
Santeiro na exploração de um tema brasileiro popular: a Literatura de Cordel. Disponível em
https://globoplay.globo.com/v/1593556/ acessado em 23/04/2017.
87
Na praça e em seus arredores estão também os gritos de liberdade pichados nos muros.
No primeiro capítulo vemos com destaque na parede: “Diretas Já”. No capítulo 25 aparece uma
homenagem ao partido do autor “PCdoB” (MORAES e JAKUBASZKO, 2017). Assim como
também rondam o local os anseios da transgressão à normas, na boate sexus. E a pousada em
que circulam os turistas e, agora, uma equipe de filmagem para produzir a história de Roque
Santeiro para o cinema. Roberto Mathias (Fábio Júnior), cineasta, chega em Asa Branca com
moletom escrito “USA for África”, fazendo referência ao projeto “We are The World”13 .
A desmistificação do mito ocorre quando Roque Santeiro se revela vivo, e volta a
cidade, colocando em risco a estrutura do local, toda criada em torno de um mito. É descoberto
que o homem na verdade fugiu, levando consigo o dinheiro do resgate, roubando a cidade e o
bandido. As situações decorrentes desta revelação, são criadas dentro da ironia e da inversão de
papéis. Dias Gomes, brinca com a caricatura das personagens, e o comportamento social
brasileiro pertencente nelas:
Roque [Santeiro] é um mural sobre a realidade brasileira, ou seja, a minha
visão dessa realidade. Nele estão vários elementos da nossa sociedade, o
misticismo exacerbado, a mentira, a grande falta de caráter nacional. [...] Está
também presente a contradição da Igreja Católica, que se caracteriza a si
mesma como Igreja dos pobres, mas se encontra aliado às cúpulas, aos
poderosos. (GOMES, 2012; 141).

Esta constante inversão de valores, onde as pessoas não são o que demonstram e
resguardam muito do que sentem, criam um valor de amoralidade, e segundo o próprio autor:
“Ao vê-los o público reconhece a si próprio ou ao vizinho” (GOMES, 2012; 144). Em Roque
Santeiro, as habitações e aspectos de direção e caracterização cênica das personagens (figurino,
tilha sonora, bordões, iluminação, etc.), servem, simultaneamente, à encarnação estética da
personalidade dos proprietários, à corporificação das marcas de época e ao reforço de heranças
históricas.
A casa da Viúva Porcina (Regina Duarte) ostenta rosa e dourado, é a representação da
sedução como o poder feminino por excelência que revela a personalidade da personagem.
Ambos ficaram marcados por uma categoria emergente na época: “os novos ricos”. Tudo no
espaço e na atuação dos atores confirmavam o rótulo. Os ambientes em que circulam o prefeito
Florindo Abelha (Ary Fontoura), as tarefas do gabinete da prefeitura que realiza no seu salão
de beleza, a mistura dos assuntos pessoais e sociais denunciam as confusões, vícios, pequenas

13Em 1985, 45 artistas se juntaram para arrecadar fundos para o combate à fome no continente africano. Michael Jackson e
Steve Wonder lideram grandes estrelas na gravação do compacto que influenciou projetos semelhantes de artistas latino
americanos. No Brasil a música “Chega de Mágoa” tratava da seca no sertão nordestino.
88
corrupções e transgressões entre o patrimônio e agentes públicos e privados no Brasil. O
nepotismo é um deles já que sua filha é a secretária. Todos esses lugares, incluindo-se a Praça
Roque Santeiro, trazem signos, elementos e interações que reafirmam heranças do período
colonial (MORAES e JAKUBASZKO, 2017).
Com uma vasta construção de personagens, alinhados a um corpo cênico habilidoso,
Roque Santeiro marcou a memória coletiva com sua cosmovisão rica do imaginário brasileiro,
uma representação carnavalesca, rica e crítica. A narrativa e suas formas cronotópicas
colocavam em questão que tipo de abertura política e inovação se pode esperar com o fim da
ditadura se há apenas troca de máscaras e a estrutura de poder continua a mesma, regida pelos
mesmos atores? O final em diálogo com o filme Casa Blanca pode sugerir que entre uma
história de heroísmo e a segurança do poder econômico local, o país tenderá a escolher a
segurança.

4. O Fim do Mundo e o cronotopo da Nova Ordem Mundial


O Fim do Mundo de Dias Gomes, em 1996, trabalha com os medos do final dos tempos,
das profecias, das conspirações e do juízo final, que se amplificam às vésperas da virada do
milênio. Nem a tecnologia escapou do imaginário das promessas escatológicas: o apocalipse
informático era anunciado pelo ‘bug do milênio’. Os acontecimentos dramáticos da época, as
ameaças nucleares, as mudanças climáticas, as guerras e o comportamento autodestrutivo da
espécie, podem ser interpretados pelo senso comum como sinais do fim dos tempos e alimentam
os medos e as crenças milenaristas (CARRIÈRE et al, 1999). Compreendendo que a passagem
do milênio e que o fim são antes uma ruptura do que uma extinção, Dias Gomes intensifica sua
proposta carnavalesca para o gênero telenovela em O Fim do Mundo, criando, por meio do
grotesco e de imagens escatológicas, uma metáfora para a transição do Welfare State para o
neoliberalismo. Assim, associa o fim do mundo ao potencial destrutivo da globalização e do
capitalismo neoliberais para o indivíduo e para as instituições democráticas. Na última
entrevista que concedeu ao Roda Viva, Dias Gomes afirma que “a censura da empresa é ainda
pior [que a do Estado] porque contra ela você não pode fazer nada” 14. Ele, que havia aprendido
a camuflar suas críticas sociais na ficção por meio do realismo fantástico para escapar da
censura, agora utilizava a mesma estratégia para fazer a crítica da virada neoliberal que
acontecia no Brasil do presidente Fernando Henrique Cardoso e sua adesão ao Consenso de

14 Roda Viva, TV Cultura, 12/06/1995. A citação está nos 25 minutos da entrevista. Disponível em <
https://www.youtube.com/watch?v=y9MydY702io>. Acesso em 18.10.2018.
89
Washington e à Alca. Nesta entrevista para o programa Roda Viva, Dias Gomes fala também
do “entreato” que é o fim do milênio e da crise de criatividade na arte e na dramaturgia.
Tabacópolis não se compromete com regionalismos, nos deixando confusos com as
indicações geográficas, mas aproxima-se de São Paulo no sotaque paulista das personagens.
Não se trata de mais uma cidade fictícia no interior da Bahia ou do Nordeste, provavelmente,
embora a atividade tabageira se concentre no sul do país e a de charutos na Bahia. A indefinição
é proposital para alcançar a representação de todos e de nenhum estado brasileiro. Ainda que
dinâmicas e marcas da herança colonial e do coronelismo se façam presentes, notamos algumas
diferenças e deslocamentos. Nos espaços e mobílias predomina o estilo pós-colonial misturados
a ecos das décadas de 30 e 40, de inspiração noir, todos visivelmente decadentes, modernos por
fora e antigos por dentro, provavelmente como o autor via o país.
A pequena cidade vive da produção do tabaco e do turismo pela lenda da afrodisíaca
“gruta do amor”, procurada por casais e homens com sintomas de impotência. O esoterismo e
misticismo da cidade representados por Joãozinho de Dagmar (Paulo Betti) e Mãe Dagmar
(Marilu Bueno) ganham força com fenômenos sobrenaturais como tempestades e raios, chuva
de fezes, sinos que tocam do além e outros eventos estranhos que reafirmam as premonições de
Joãozinho sobre a proximidade do fim do mundo. Começam as falsas notícias – que hoje
chamaríamos de fake news – a se espalhar. Agora, diferentemente das tramas anteriores, o dono
do jornal Tonico Laranjeira (Otávio Augusto) não age como o herói a denunciar o abuso de
poder dos empresários e coronéis locais, mas alia-se a eles, ou os chantageia. Segue a mesma
lógica do poder e do lucro. Nesse contexto, a notícia falsa é, na opinião de Toninho, um ótimo
negócio, já que é duplamente lucrativa, pois assim ele tem duas notícias para publicar: “a falsa
e o desmentido”.
A Tribuna, o hospital psiquiátrico, a boate, a delegacia, a igreja, a fábrica de charutos,
as repartições públicas são cenários da decadência, inclusive a atividade tabagista começa a
perder poder e força no presente histórico da novela e a sugestão de que fumar provoca
impotência, sintoma que vários homens de Tabacópolis desenvolvem, é uma marca desta
decadência. As inundações que a cidade sofre por sete dias marcam o caos em que a cidade
mergulha. Com a aproximação do fim do mundo o caos vai crescendo e na véspera do dia
anunciado eclode a loucura e o desgoverno na cidade. As pessoas entram em pânico e liberam
suas fantasias, repressões, desejos. Entram em cena o sexo, o amor, o estupro, a bebida, a morte
por assassinato, os jogos, a soltura dos loucos e dos presos da cidade. É o ápice da
carnavalização:
90
(…) vemos o caos do meio ambiente contaminar progressivamente o ambiente
social. O individualismo, apenas disfarçado na vida cotidiana da cidade,
irrompe com força ao se romperem os fios que atam cada indivíduo ao grupo.
Livres da coerção explodem as paixões, liberando os desejos represados que
serão plenamente satisfeitos na festa instaurada pelo caos. O espaço entre a
espera e o fim é o da subversão, da quebra de normas, regras e protocolos.
Cada um tenta tirar o máximo da situação e o que predomina é a liberação.
(MOTTER, 2003; 107).
O dia seguinte existe e as consequências terão de ser assumidas, os desatinos esquecidos
ou enfrentados. Não ocorre sequer uma ruptura significativa depois dos abalos, o fim do mundo
não trouxe a revolução, nem mudanças substanciais. Tudo será reconstruído para a reprodução
do antigo com cara de modern: “há apenas um abalo que modifica temporariamente os
comportamentos e uma reacomodação para que a antiga ordem volte a reinar soberana”.
(MOTTER, 2003; 111).

Considerações finais
Cada época se caracteriza por um horizonte social específico, que pode ser lido a partir
das formas como o tempo atua no espaço das narrativas que o ser humano produz.

Pesquisas mostram o quanto as histórias narradas nas telenovelas, suas temáticas e


características estéticas, se entrelaçam com o momento de sua produção (MOTTER, 2003;
JAKUBASZKO, 2004; HAMBURGUER, 2005; LOPES at all., 2008; 2009). A telenovela
participa das agendas global, nacional e local. São mais de 50 anos participando do cotidiano
de um número expressivo de espectadores. Neste entrelaçamento de espaço-tempos, a
telenovela brasileira é um documento de época, ‘lugar de memória coletiva’ (MOTTER, 2003;
JAKUBASZKO, 2004) e ao longo de sua existência se tornou uma das formas privilegiadas
que a nossa sociedade encontrou para representar e narrar diferentes tempos históricos.
Dias Gomes é conhecido por sua veia crítica. Nas telenovelas apresentadas as cidades
fictícias se constroem como locais simbólicos que representam diferentes momentos do mesmo
Brasil. Percebendo a telenovela como gênero discursivo, observamos nas tramas do realismo
fantástico de Dias Gomes, por meio de imagens, diálogos e situações, a representação de um
Brasil que transita entre o rural e urbano, o tradicional e o moderno, a ditadura e a democracia,
embora imperando ainda o coronelismo, mesmo em contexto de neoliberalismo e globalização.
As situações tratadas nos colocavam em solo nacional.
A partir desta pesquisa tem sido possível reconhecer os diferentes pontos que afirmam
a importância da constituição cenográfica para uma trama de ficção. Em conjunto com o

91
contexto que encontramos nossas ficções brasileiras o cenário passa a ser constituição
fundamental para situar um povo e suas angústias. Além disso, em conjunto com o conceito de
cronotopo foi possível entender que a telenovela é um gênero cuja transformação está em curso,
seu devir depende das articulações com o presente histórico e com as novas linguagens.
Em síntese, a investigação do cotidiano da telenovela nos permitiu observar melhor os
pontos que fortalecem a relação da ficção como um gênero que narra e representa a sociedade
brasileira. No caso do estudo de tramas do roteirista Dias Gomes, percebemos também o
potencial de lugar de memória coletiva da ficção televisiva ao identificar a recorrência de signos
que fazem menção ao momento político da ditadura militar de forma a compor metáforas
críticas da realidade nacional. Não apenas referentes ao momento histórico, mas também a
traços diversos da cultura brasileira, a ponto de continuarem produzindo sentido com o contexto
histórico atual no remake de Saramandaia. As telenovelas de Dias Gomes se afirmam como
referência na história do gênero telenovela brasileira e como referência de narrativa de ficção
capaz de produzir sentidos duradouros e ressonâncias diversas para a audiência a partir das
articulações entre ação, personagem e espacialidade e suas articulações e zonas de contato com
seu tempo histórico de produção e de releituras.
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Julho de 2000.

93
Do impresso ao audiovisual: a minissérie Capitu
Profa. Dra. Maria Luiza Guarnieri Atik
Universidade Presbiteriana Mackenzie (UPM)
mlatik@mackenzie.br

Resumo
As relações entre a literatura e outras mídias tem sido foco de muitos estudos sobre
adaptações cinematográficas e televisuais. Luiz Fernando Carvalho, responsável pelo
criação e direção da minissérie Capitu, veiculada pela Rede Globo de 09 a 13 de
dezembro de 2008, inova mais uma vez a linguagem televisiva, criando um produto
diferenciado em sua releitura do romance Dom Casmurro, de Machado de Assis, ao
utilizar-se de uma linguagem híbrida, na qual os procedimentos do discurso
cinematográfico (tempo, cenário, figurinos, diferentes ângulos da câmera, luz, som)
amalgamam-se aos elementos constitutivos da linguagem teatral (cenário, palco,
representação, etc.). Examinar essa linguagem híbrida da minissérie, enquanto um
artefato estético audiovisual, é o foco do trabalho em questão, que tem como
fundamentação teórica os estudos sobre as adaptações da literatura para a mídia
audiovisual.

Palavras-chave: Dom Casmurro; Capitu; transposição audiovisual; cinema; teatro

A minissérie Capitu não poderia existir sem que Machado de Assis tivesse escrito
um dos seus principais romances, Dom Casmurro (1899). Produzida justamente em
homenagem ao centenário escritor, na forma de uma “adaptação” ou “transposição” do
texto literário para a mídia televisiva, a minissérie foi exibida em cinco capítulos pela
Rede Globo, em dezembro de 2008. Foi escrita por Euclydes Marinho com a colaboração
de Luís Alberto de Abreu, Daniel Piza e Edna Palatnik, tendo como roteirista final e
diretor geral Luiz Fernando Carvalho.
A minissérie está inserida no “Projeto Quadrante”, que previa a execução de
quatro microsséries baseadas em clássicos da literatura brasileira. A primeira realização
do “Projeto Quadrante” foi a adaptação da obra de Ariano Suassuna, Romance da Pedra
do Reino e o príncipe do sangue do vai-e-volta, com roteiro assinado por Luiz Fernando
Carvalho, Braulio Tavares e Luís Alberto de Abreu. Duas outras produções, depois da
minissérie Capitu, estavam previstas: Dois irmãos, de Milton Hatoun e Dançar Tango
em Porto Alegre, de autoria de Sérgio Faraco, mas o “Projeto Quadrante” está, por
enquanto, paralisado.
O “Projeto Quadrante” é uma forma de pensar a brasilidade, de criar um painel da
sociedade brasileira. Nas palavras de Luiz Fernando Carvalho,

94
Trata-se de uma tentativa de um modelo de comunicação, mas também
de educação, onde a ética e a estética andam juntas. Eu proponho,
através da transposição de textos literários, uma pequena reflexão sobre
o nosso país1.

O presente trabalho se propõe analisar aspectos da construção narrativa da


minissérie Capitu, que traz em seu cerne inovações na teledramaturgia, utilizando-se de
uma linguagem híbrida, na qual os procedimentos do discurso cinematográfico
amalgamam-se aos elementos constitutivos da linguagem teatral. Para tanto, baseando-
nos nos estudos sobre adaptações cinematográficas e sobre processos de transposições
intermidiáticas, examinaremos alguns procedimentos utilizados por Luiz Fernando
Carvalho na construção de um artefato estético audiovisual, que reforça, por sua vez, o
caráter atemporal e universal da obra machadiana, reafirmando sua modernidade, bem
como busca atingir um dos principais objetivos do diretor, ou seja, “a educação pelos
sentidos”2.
Distanciando-se das produções que sempre repetem o mesmo modelo, e levando
em conta a crescente popularidade dos discursos imagéticos, nas quais se enquadram as
produções televisivas e cinematográficas, Luiz Fernando Carvalho inova em sua
transposição do livro para a narração televisiva, mantendo-se, contudo, atento à instância
narrativa da obra machadiana.
Narrar é tecer, é tramar. E há muitos modos tecer uma mesma fábula. A distinção
entre fábula e syuzhet (trama) foi herdada, como se sabe, dos formalistas russos. Segundo
Tomachevski,

[...]. Chama-se fábula o conjunto de elementos ligados entre si que nos são
comunicados no decorrer da obra. Ela poderia ser exposta de uma maneira
pragmática, de acordo com a ordem natural, a saber, a ordem cronológica
e causal dos acontecimentos, independentemente da maneira pela qual
estão dispostos e introduzidos na obra.
A fábula opõe-se à trama que é constituída pelos mesmos acontecimentos,
mas que respeita sua ordem de aparição na obra e a sequência das
informações que se nos destinam (TOMACHEVSKI 1973, p. 173).

1
Disponível em http://quadrante.globo.com/. Acesso em 01/09/2018.

2
Disponível em http://quadrante.globo.com/. Acesso em 01/09/2018.

95
E, em nota de rodapé, Tomachevski, acrescenta, que na realidade, “a fábula é o
que se passou; a trama é como o leitor toma conhecimento dele” (Idem, p.173).
Ismail Xavier, em seu artigo “Do texto ao filme: a trama, a cena e a construção do
olhar no cinema”, retoma a distinção entre fábula e trama proposta por Tomachevski. Para
ele, diante de qualquer discurso narrativo pode-se falar em fábula e em trama. “Uma única
história pode ser contada de vários modos; ou seja, uma única fábula pode ser construída
por meio de inúmeras tramas, com formas distintas de dispor os dados, de organizar o
tempo” (XAVIER, 2003, pp. 64-65).
Quanto ao ato de narrar, Xavier destaca:
Quem narra escolhe o momento em que uma informação é dada e por
meio de que canal isso é feito. Há uma ordem das coisas no espaço e no
tempo vivido pelas personagens, e há o que vem antes e o que vem
depois ao nosso olhar de espectadores, seja na tela, no palco ou no texto.
Em todas essas formas de expressão, fato de estar presente o ato de
narrar permite o uso de categorias comuns na descrição dos elementos
que organizam as obras em aspectos essenciais. A narrativa é uma
forma do discurso que pode ser examinada num grau de generalidade
que permite descrever o mundo narrado (esse espaço-tempo imaginário
em que vivem as personagens) ou falar sobre muitas coisas que ocorrem
no próprio ofício da narração sem que seja necessário considerar as
particularidades de cada meio material (a comunicação oral, o texto
escrito, o filme, a peça de teatro, os quadrinhos, a novela de TV)
(XAVIER, 2003, p. 64).

Em “Transescritura e midiática narrativa. Questões de Intermidialidade”, André


Gaudreault e Philippe Marion tem como objetivo demonstrar como se processa o trânsito
de uma mídia para outra. Para tanto, retomam a distinção entre fábula e syuzhet (trama)
de Tomachevski, propondo, contudo, uma indagação inicial: “seria possível a história
(fábula) existir desvinculada de toda e qualquer mídia?” (GAUDREAULT; MARION.
2012, p.112).
Para Gaudreault e Marion, uma ficção é o resultado de três tipos de intervenção
criativa:
(1) uma intervenção em termos de invenção, o famoso inventio da
retórica clássica, que gera os diversos elementos da história sendo
contada; (2) uma intervenção que tem a ver com a organização, tendo
ligação com a estruturação da história, que pode ser identificada com a
dispositio da retórica clássica; e finalmente (3) uma intervenção no
nível da expressão, por meio de uma mídia, dos elementos narrativos já
“inventados” e “ordenados”. [...] (GAUDREAULT; MARION. 2012,
p.118).

96
Do ponto de vista de Gaudreault e Marion, se pretendermos apreender a gênese
da estrutura de uma narrativa midiatizada não podemos permanecer “no nível de uma
sequência lógica simples, articulando-a como inventio, dispositio e a estruturação
midiático-expressiva”. Cada mídia combina e multiplica materiais de expressão (escrita,
imagem, música, gestos, ritmo, movimentos); cada mídia possui sua própria “energética
comunicativa” (GAUDREAULT; MARION. 2012, p.120).
Assim sendo, qualquer processo de adaptação deve levar em conta a violência
impetrada contra a fábula e a syuzhet do texto-fonte, pois, de certa forma, a nova trama
envolve não apenas a formatação da história, mas, sobretudo, a sua sujeição a uma mídia
específica.
Os recursos de cada modalidade de arte são diferentes. As artes narrativas são
moldadas pelas mídias que lhe servem como veículo e até mesmo as definem. Tratando-
se de adaptações de uma mídia para outra, nos deparamos com cotejos assentados no que
há de semelhanças ou divergências entre o romance e o filme, entre o romance e as
narrativas audiovisuais. Machado de Assis, em Dom Casmurro inventou um personagem
que narra as suas experiências, falando em 1ª pessoa e cuja voz se sobrepõe ao longo do
romance. Luiz Fernando Carvalho, ao recriar a obra machadiana, transpõe para a
minissérie o narrador Dom Casmurro na figura física de um homem idoso, caracterizado
em um corpo decrépito, e cuja voz se manifesta ao longo de todas as sequências, unindo
na tela duas temporalidades distintas: o presente e o passado.
A união das duas temporalidades ocorre nas cenas iniciais da minissérie, com a
focalização de um trem atual que se alterna com imagens, em branco e preto, de um trem
a vapor.

Figura 1 Figura 2
Globo Marcas DVD’S 2009

97
Segundo Becker, a mudança “não é textual, mas sim imagística”, como ocorre em
túnel do tempo. As personagens não estão caracterizadas “como pessoas do século XIX”,
suas roupas nos remetem ao mundo contemporâneo, “em oposição à personagem Dom
Casmurro e ao seu interlocutor, ambos trajados à moda antiga – usam paletó e chapéu”
(jan./jun., 2013, p.26).
[...] essa dupla referencialidade, pode ser compreendida como uma
alusão à contemporaneidade das discussões temáticas da obra Dom
Casmurro. Isto é, os pensamentos, as sensações e até mesmo o destino
de Bento Santiago podem não estar presos a um passado, tampouco
especificamente ao século XIX. Portanto, compreendo essa escolha
estética como um recurso para demonstrar a modernidade do autor e de
sua obra (BECKER. jan./jun., 2013, p.27).

O anacronismo temporal seria uma das escolhas estéticas do diretor, pois a trama
ficcional de Capitu é construída sobre os pilares da intertextualidade, da paratextualidade
e da hipertextualidade. Como bem assinala Mungioli, na minissérie Capitu, foram
utilizados intensamente elementos paratextuais, intertextuais e hipertextuais, entre os
quais destacam-se aqueles específicos
(1) do teatro (cenografia, maquiagem, figurino, iluminação), (2) do
romance machadiano (diálogos precisos, ironia fina por meio de um
narrador intruso que interpela o telespectador, personagens
complexas), (3) do cinema mudo (legendas, placas indicando os nomes
dos capítulos correspondentes a um novo capítulo do livro) a narração
e a música típicas dos antigos filmes mudos, (4) da ópera (a mise-en-
scène, as cenas gravadas em teatro com grandes espaços, a
interpretação dos atores (MUNGIOLI, jan./jun. de 2013, p.106).

Gérard Genette propõe cinco tipos de relações transtextuais, definido


transtextualidade, como tudo que coloca o texto “em relação, manifesta ou secreta, com
outros textos” (2010, p.9). Quanto ao segundo tipo de relação transtextual, a
paratextualidade, destaca que se constitui pela relação do texto com seu paratexto, ou seja,
com o conjunto de produções que acompanham uma obra literária, cuja existência tem o
objetivo de garantir sua recepção e seu consumo (idem, p.11). São os seguintes os
exemplos de paratextos: títulos, subtítulos, prefácios, posfácios, prólogos, epígrafes,
notas de rodapé, notas marginais, capa, orelha, ilustrações, etc.
Em se tratando de uma produção audiovisual como a minissérie, o paratexto
principal é a sua vinheta de abertura. Na minissérie Capitu, a vinheta de abertura foi
desenvolvida pela produtora Lobo e Vetor Zero, com a supervisão do departamento

98
de Videografics da Rede Globode Televisão. A autorreferencialidade é o primeiro aspecto
que chama a nossa atenção na vinheta que exibe os créditos de abertura:
papéis amassados, recortados e velozmente sobrepostos tomam a tela,
evidenciando a textura do próprio papel, sobre a qual estão estampadas
imagens, fotos dos personagens da trama, à medida que transcorrem os
nomes dos atores e do diretor (BULHÕES, 2012, p. 61)

A principal fonte de inspiração visual para a criação da vinheta foram as obras do


pintor francês Jacques Villeglé, que em meados do século XIX, desenvolveu uma técnica
conhecida como “de-colagem”. Apropriando-se de cartazes das ruas, rasgados ou
amassados, Villeglé usava-os para criar superfícies pictóricas abstratas, sobrepondo, em
várias camadas, os fragmentos sobre a tela. O mesmo processo pode-se observar na
criação da vinheta de Capitu, cujas imagens sobrepostas enfatizam a materialidade da
tipografia, do texto impresso, das palavras e, concomitantemente, expressam mensagens
subliminares.

Figura 3 Figura 4

Figura 5 Figura 6

Figura 7 Figura 8
http://vetorzero.com.br/project/capitu-abertura/

99
A figura 8 faz uma referência explícita a própria obra de Machado de Assis, na
qual se materializam as reminiscências do narrador ao fato narrativo que desencadeia a
problemática da adolescência de Bentinho (a ida ao seminário, momento em que começa
a sua vida como uma ópera) e da maturidade (dúvidas em relação ao comportamento de
Capitu). Entre outras ocorrências, a grafia de Otelo invertida faz menção a tragédia de
Shakespeare, que remete tanto ao conteúdo narrativo do romance, quanto à teatralidade
na construção do discurso audiovisual, atuando como um expediente correlato ao modo
machadiano de narrar.
Reproduzimos abaixo a cena canônica e basilar para o enredo da obra machadiana,
pois é o fato narrativo que desencadeia as incertezas da adolescência de Bentinho.
Dirigindo-se ao leitor, Dom Casmurro diz:

Agora é que eu ia começar a minha ópera. “A vida uma ópera”, dizia-


me um velho tenor italiano que aqui viveu e morreu [...].
[...]
- A vida é uma ópera e uma grande ópera. O tenor e o barítono lutam
pelo soprano, em presença do baixo e dos comprimários, quando não
são o soprano e o contralto que lutam pelo tenor, em presença do mesmo
baixo e dos mesmos comprimários. Há coros numerosos, muitos
bailados, e a orquestração é excelente...
[...]
Eu, leitor amigo, aceito a teoria do meu velho Marcolini, não só pela
verossimilhança, que é muita vez toda a verdade, mas porque a minha
vida se casa bem à definição (ASSIS, 1968, p. 33-36).

A referência explícita ao texto teatral na obra machadiana é transposta na recriação


da minissérie, como mencionamos anteriormente. A trama é construída aos olhos do
espectador no espaço teatral. Os elementos teatrais como palco, cenários, cortinas,
figurinos, iluminação, sonoplastia, encenações, performances dos atores são retomados e
recriados na trama narrativa do discurso imagético.

[...] a primeira cena no interior do teatro (disco1:4’:50”) inicia com duas


grandes cortinas vermelhas abrindo-se, em um movimento que anuncia
o espetáculo. Ali, no palco, encontramos a personagem Dom Casmurro
em um mezanino. Está iniciada a encenação de sua memória, a
reconstrução do tempo passado no tempo presente, como em uma
espiral (BECKER, 2013, p.25)

100
Figura 9
Globo Marcas DVD’S 2009

As cortinas abrem-se e fecham-se a cada rememoração de um fato do passado de


Dom Casmurro. As sequências das cenas do discurso imagético reordenam as
reminiscências do discurso literário, pela narrativa da voz off do narrador corporificado,
pelos diálogos das personagens, pelos movimentos da câmera e pela construção do
próprio cenário diante dos nossos olhos.
Ao definir o conceito de hipertextualidade, Gérard Genette destaca que a
transformação séria, ou a transposição, é a mais importante de todas as práticas
hipertextuais, devido à sua importância histórica, ao acabamento estético de certas obras
que dela resultam ou ainda, pela variedade e amplitude dos procedimentos envolvidos
nesse processo de transposição.
Segundo Genette, os procedimentos transformacionais. que uma transposição pode
operar, podem ser formais ou temáticos. Dentre os procedimentos formais por ele
analisados, destacamos a transmodalização intermodal, pois foi usado como maior
frequência na adaptação do romance para a minissérie.
A transmodalização intermodal consiste numa transformação no modo de
representação de uma obra de ficção, ou seja, a passagem do modo narrativo ao dramático
(ou dramatização), ou a passagem inversa, do modo dramático ao narrativo (ou
narrativização), sendo o primeiro processo o mais recorrente e importante como prática
cultural (GENETTE, 2010, p. 117).
No processo de dramatização, o diretor potencializa os elementos constitutivos do
teatro, ao mesmo tempo em que rompe como o realismo cinematográfico, que busca
engendrar, sobretudo, uma ilusão de realidade. No entanto, constata-se nesse processo
também uma relação dialógica entre a estética teatral e a cinematográfica, pois as duas
artes trabalham com atores e com encenação.

101
Desde as primeiras cenas da minissérie, a imagem do narrador corporificada é
enfocada de diferentes ângulos da câmera. Além da própria encenação teatral exagerada
do ator, a figura do narrador Dom Casmurro é focalizada em contraplongé, cuja imagem
aos olhos do espectador surge de baixo para cima; em plongé, cujo ângulo da câmera é
de cima para baixo, revelando momentos da fragilidade do narrador diante dos fatos
narrados. O close ou plano fechado é utilizado frequentemente em inúmeras sequências,
concentrando a nossa atenção na figura do narrador e, sobretudo, no seu discurso
enunciativo. Quando se trata do plano do rosto do narrador, o ponto de vista não é de um
outro personagem, e sim do espectador por intermédio da câmera. Segundo, Marcel
Martin, é no close do rosto humano “que se manifesta melhor o poder de significação
psicológico e dramático do filme” (1990, p. 39). Para Martin, André Malraux em Esquisse
d’une psychologie du cinema, encontrou “uma fórmula feliz para caracterizar o efeito do
primeiro plano sobre o espectador de cinema”, ou seja, ‘um ator de teatro é uma cabeça
pequena numa grande sala; um ator de cinema, uma cabeça grande numa sala pequena’”
(1990, p. 39), como podemos observar na figura 10, em que o rosto de Dom Casmurro
preenche todo o enquadramento da tela:

Figura 10
Disponível em: https://plus.google.com/102138623115256690290/posts/hPqFUHsxk7x
Acesso: agosto de 2018Na

Bordwell e Thompson, ao analisarem os diferentes planos de filmagem, destacam


que os enquadramentos podem afetar a imagem por meio
(1) do tamanho e da forma do quadro, (2) da maneira como o quadro
define o espaço dentro e fora do campo, (3) da maneira como o
enquadramento impõe a distância, o ângulo e a altura do ponto de vista
da imagem e (4) da maneira como o enquadramento pode se deslocar
interagindo com a mise-en-scène (2013, p.299).

102
Na minissérie Capitu, os enquadramentos das cenas permitem apreender a
construção teatral e cinematográfica do espaço de forma concomitante, que não é a do
senso comum atribuída ao mundo real, pois ao mesmo tempo em que temos em primeiro
plano Dom Casmurro narrando suas memórias, a encenação de suas reminiscências são
representadas em segundo plano, em um espaço teatral, como ocorre nas cenas abaixo:

Figura 11 (29’:33”) Figura12 (29’:46”)


(Capítulo 3 – “O contra-regra”) Globo Marcas DVD’S 2009

No primeiro enquadramento (Figura 11), a imagem do jovem conquistador montado


em um alazão branco desloca-se em segundo plano, destacando-se em primeiro plano o
narrador “casmurro”. No enquadramento seguinte (Figura12), as memórias do narrador
adolescente presentificam-se: o cavaleiro continua deslocando-se em segundo plano e a
imagem do jovem Betinho corporifica-se em plano médio. A integração de diferentes
planos em uma mesma tomada de cena (plano-sequência) recria visualmente narrativa
machadiana:
[...] Montava um belo cavalo alazão, firme na sela, rédea na mão
esquerda, à direita à cinta, botas de verniz e postura esbeltas [...].
Ora, o dandy do cavalo baio não passou como os outros; era a trombeta
do juízo final e soou a tempo; assim faz o Destino, que é seu próprio
contra-regra. O cavaleiro não se contentou de ir andando, mas voltou a
cabeça para o nosso lado, o lado de Capitu, e olhou para Capitu, e
Capitu para ele; [...]. Tal foi o segundo dente de ciúme que me mordeu
[...]. (1968, p.128-129).

Para o narrador o destino “não é só o dramaturgo, é também o seu próprio contra-


regra, isto é, designa a entrada dos personagens em cena, dá-lhe as cartas e outros objetos”
(ASSIS, 1968, p.128). Poderíamos, talvez, afirmar que o contra-regra na narrativa
audiovisual seria o próprio narrador. Ele escolhe as reminiscências que serão encenadas
no palco, o ângulo de filmagem, ou ainda, as próprias lentes da câmera, muitas vezes
levemente desfocadas, e emolduradas como se fossem um quadro. Lentes que assumem
também a função de estilizar o seu conflito interior.
103
Capitu é um constructo ao mesmo tempo teatral e fílmico. Em Capitu, de forma
implícita, há uma aproximação entre o dramaturgo e o roteirista, pois o roteiro e a peça
são escrituras abertas à espera de uma recriação.
Observa-se, ainda, que discursividade narrativa se mantém na forma imagética, pela
disposição e duração dos planos, pelos ângulos de filmagem, pela coreografia dos corpos
dos atores, Entretanto, o processo de adaptação do texto literário para a minissérie gera
uma cadeia de referências a outras mídias (fotografia, dança, música) e a interpretação de
significados e valores histórico-culturais.
Pavis, ao conceituar a “dança-teatro”, destaca que o seu objetivo primordial é o de
fazer com que
coexistam cinese e mimese; ela confronta a ficção de uma personagem
construída, encarnada e imitada pelo ator, com a fricção de um
dançarino, que vale por sua faculdade de inflamar a si próprio e aos
outros através de suas proezas técnicas, de seu desempenho esportivo e
cinestésico (1999, p.83).

Na minissérie Capítu, no capítulo intitulado “Um seminarista”, a performance


dançante do personagem Escobar parece ser verossímil ao seu temperamento descrito por
Bentinho, e ao mesmo tempo exagerada, pelos movimentos bruscos e audaciosos. No
texto machadiano, à guisa de comparação, destacamos o seguinte fragmento relevante,
quando a caracterização de Escobar:

[...] Era um rapaz esbelto, olhos claros, um pouco fugitivos, como as


mãos, como os pés, como a fala, como tudo [...]. Não fitava de rosto,
não falava claro, nem seguido; as mãos não apertavam as outras, nem
se deixava apertar delas, porque os dedos, sendo delgados e curtos,
quando a gente cuidava tê-los entre os seus, já não tinha nada. O mesmo
digo dos pés, que tão depressa estavam aqui como lá [...] (ASSIS, 1968,
p.105).

Da descrição de Escobar, segue-se a narração de como os laços de amizade se


tornaram efetivos entre Escobar e Bentinho. Na adaptação do romance, o discurso
narrativo ganha uma nova ambientação. A sequência da cena ocorre em um espaço
fechado, cujo plano geral focaliza jovens seminaristas ao redor de uma mesa. Escobar
salta em cima da mesa e encaminha-se em direção a Bentinho. Cortes bruscos e rápidos
focalizam alternadamente Bentinho e Escobar. Os movimentos de Escobar vão se
intensificando, tornam-se audaciosos ao pisar nas mãos dos seminaristas. Ao aproximar-
se de Bentinho, pisa em uma de suas mãos e ajoelha-se. Atônito e atordoado, Bentinho

104
ergue uma das mãos em direção a Escobar, e recebe um aperto de mão. Sela-se a
intimidade entre eles, mas se apreende, claramente, a imagem de um Bentinho submisso,
seduzido pelo caráter dominador de Escobar. Na cena, os diálogos são suprimidos, mas
as personagens e o próprio espectador são fisicamente afetados pelo nível expressivo do
corpo do ator e da representação.
Corrobora para a criação de atmosfera correspondente à situação dramática da cena
em questão, o suporte musical. Há um anacronismo entre o texto machadiano e a canção
escolhida para a performance de Escobar. Trata-se do rock heavy netal “Iron Man”, da
banda britânica Black Sabbath, lançado em 1971. O ritmo frenético da guitarra Tony
Iommi, marcam o ritmo dos movimentos bruscos e audaciosos do dançarino Escobar,
bem como seu temperamento ágil, sagaz e “fugitivo”.
Assim como o cineasta escolheu a melhor imagem dentre os vários planos, também
escolheu as canções ou os sons que melhor serviriam ao seu propósito. Buscando criar
um diálogo maior com o público, a trilha sonora de Capitu “mescla imagens e sons do
passado a outros do presente” (PINATI, 2014, p. 146). E embora a minissérie preserve os
figurinos da época, a mistura de composições musicais extraídas de culturas diferentes,
estabelece um diálogo entre o século XIX e o século XXI, ressaltando o caráter atemporal
do audiovisual,
A trilha sonora contou com composições musicais originais de Tim Rescala, com
músicas clássicas, músicas populares nacionais e internacionais. A minissérie é embalada
pelos sons dos compositores norte-americanos Jimi Hendrix e Janis Joplin; pela canção
Cheek to Cheekde, escrita por Irving Berlin para o filme Top Hat, de 1935; pela
canção Elephant Gun, da banda americana Beirut, de Zach Condon, que é o tema dos
protagonistas da minissérie, Bentinho e Capitu; por Diabo, hit da banda Manacá, e que
fez especialmente para a série, uma releitura da música Quem sabe, de Carlos Gomes e
pela canção Juízo Final, de Nelson Cavaquinho e Elcio Soares, entre outras. A obra de
Machado de Assis é, pois, transposta para o audiovisual sob a ótica de uma ópera-rock.
Traço de modernidade que caracteriza a releitura do romance machadiano feita por Luiz
Fernando Carvalho.
Os figurinos, por sua vez, criados por Beth Filipecki, foram inspirados nos recursos
visuais do teatro. O desenho das roupas e a escolha das cores foram escolhidos para
valorizar os elementos que dessem o tom e o ritmo do teatro operístico. Segundo a
figurinista, as formas arredondadas das roupas “facilitou a fusão das diferentes épocas.
Não havia uma simetria perfeita ou padrões da época inabaláveis. A intenção foi provocar

105
o espectador com vestimentas que ganhavam formas pelo movimento dos atores e da
câmera”3.
Os figurinos de Capitu, na juventude, são claros, coloridos, “com colagens de
folhas, flores e coisas que encontra no chão” e que representam bem a sua personalidade
alegra, vivaz. “As espumas das ondas do mar de seu olhar de ressaca estavam
representadas na anágua da saia, que tinha várias camadas de tecidos luminosos e
transparentes”4. Como podemos observar na cena abaixo, em que os personagens
encenam uma retórica singular de um casal de namorados.

Figura 13 - Bentinho e Capitu 5

Na vida adulta, as roupas de Capitu ganham cores quentes, que realçam a sua
feminilidade, o poder de sedução e os olhos oblíquos de cigana. Figurinos que contrastam
com o da maioria das demais personagens, femininas e masculinas, quase todos bastante
sóbrios e pretos, com poucos detalhes em branco nas golas ou punhos, como podemos
observar nas roupas do narrador Dom Casmurro, de sua mãe, tios e do próprio agregado
João Dias. Os figurinos são cuidadosamente orquestrados uns com os outros em suas
cores e texturas no mise-en-scène cuidadosamente planejado pelo diretor.

3
Fonte:
< http://memoriaglobo.globo.com/programas/entretenimento/minisseries/capitu/producao.htm>.

4
Fonte:
< http://memoriaglobo.globo.com/programas/entretenimento/minisseries/capitu/producao.htm>.

5
Fonte:
http://mainamorena.blogspot.com/2008/12/capitu.html

106
Figura 14 - Capitu e Bentinho

Figura 15 - Bentinho e sua família6

Um outro aspecto que merece ser mencionado na construção imagética da


minissérie é o exagero estético, tanto da maquiagem, quanto do tom circense. Como
salienta Becker,
Um desses exageros encontramos no capítulo “Uma ponta de Iago”
(disco1: 1h 33’:55”) no qual vemos Dom Casmurro chorando e
lágrimas sendo esguichadas de seus olhos, em seguida, ele mostra seu
coração de plástico, e retira-o, oferecendo-o ao leitor (2013, p. 37).

A encenação faz referência à técnica dos palhaços teatrais. O ator Michel


Melamed, para representar Bentinho na minissérie, teve aulas de clown com Rodolfo Vaz,
que faz parte do grupo teatral Galpão, companhia que teve origem no teatro popular e que

6
Disponível em:

107
desenvolve pesquisas com vários elementos cênicos, principalmente, com a linguagem
circense.
Por um lado, o rosto branco, quase fantasmagórico do ator Malamed, que
representa Dom Casmurro na minissérie, remete-nos ao uso das máscaras pelos atores do
teatro antigo ou da Commedia dell’art; por outro lado, o exagero estético da maquiagem
intensifica a caricatura da “casmurrice” do narrador-personagem do romance
machadiano.
Retomando as questões que apontamos no início deste trabalho – como se dá a
construção da trama na minissérie e como se realiza esse fazer na transposição do
romance para a linguagem audiovisual - pensamos que o exposto examina, de certa
forma, essa linguagem híbrida que surge do amalgama de procedimentos próprios do
discurso cinematográfico e de elementos constitutivos da linguagem visual, para criar um
artefato estético com inúmeras possibilidades de leitura. Do exposto, pode-se concluir
que a minissérie Capitu, de Luís Fernando Carvalho anuncia novos rumos para a
teledramaturgia brasileira, ao deslocar, sobretudo, as fronteiras entre as artes. E o
espectador embalado, ora pelo prazer estético, ora pelo fascínio enigmático da fábula, é
impactado por um constructo singular, ao mesmo tempo teatral e fílmico.

Referências Bibliográficas:
ASSIS, Machado de. Dom Casmurro. 6ª edição. São Paulo: Cultrix, 1968.
ATIK, Maria Luiza Guarnieri. “O discurso em intertexto: literatura e outras artes”. In:
Textualidade e discursividade na linguística e na literatura. Org. Elisa Guimarães. São
Paulo Ed. Universidade Presbiteriana Mackenzie, 2010.
ATIK, Maria Luiza Guarnieri. “Leituras de uma tragédia andaluza”. In: Perspectivas de
la ficionalidad. Tomo I, ALTAMIRANDA, Daniel; SMITH, Esther (copiladores).
Buenos Aires: Editorial Docência, 2006.
BECKER, Caroline V. “Capitu: uma estética deliberadamente falsa”. In: Leitura Maceió,
nº51, p 15-41, jan./jun., 2013.
BORDWELL, David. TROMPSON, KRISTIN. A arte do cinema. Uma introdução.
Campinas, SP: Editora da Unicamp; São Paulo: Editora da USP, 2013.
BULHÕES, Marcelo. “Para além da ‘fidelidade’ na adaptação audiovisual: o caso da
minissérie televisiva Capitu”. In: Galaxia (São Paulo, Online), n. 23, p. 59-71, jun. 2012.
Acesso: agosto de 2018. Disponível em: http://memoriaglobo.globo.com
https://revistas.pucsp.br/index.php/galaxia/article/viewFile/8326/7500

108
CAPITU. A partir do romance Dom Casmurro de Machado de Assis. Escrito por
Euclydes Marinho. Colaboração Daniel Piza, Edna Palatnik, Luís Alberto de Abreu.
Texto final e direção geral de Luiz Fernando Carvalho. Distrito Industrial Manaus:
Sistema Globo de Gravações Audiovisuais LTDA, 2009. 2 DVD'S, widescreen, color.
Produzido por Globo Marcas DVD e Som Livre.
GAUDREAULT. André; MARION, Philippe. “Transescritura e midiática narrativa.
Questões de Intermidialidade”. In: Intermidialidade e Estudos Interartes. Desafios da arte
contemporânea. Org. Thaïs Flores Nogueira Diniz. Belo Horizonte: Rd. UFMG, 2012.
GENETTE, Gérard. Palimpsesto, a literatura de segunda mão. Trad. de extratos por C.
Braga, E.V.C Vieira, L. Guimarães, M.A. R. Coutinho, M.M. Arruda, M. Vieira. Belo
Horizonte: Edições Viva Voz, 2010.
MEMÓRIA Globo. Disponível em: http://memoriaglobo.globo.com
MUNGIOLI, Maria Cristina P. “Entre o ético e o estético: o carnavalesco e o cronotopo
na construção do narrador da minissérie Capitu”. In: Líbero – São Paulo – v. 16, n. 31,
p. 105-114, jan./jun. de 2013.
PAVIS, Patrice. Dicionário de teatro. São Paulo: Perspectiva, 1999.
PINATI, Flávia G. A. Capitu: uma transposição metaficcional. São Paulo: Cultura
Acadêmica, 2014.
TOMACHEVSKI, B. “Temática”. In: Teoria da literatura. Formalistas russos. Trad.
Ana Maria R. Filipouski; Maria Aparecida Pereira; Regina L. Zilberman; Antônio Carlos
Hohlferld. Porto Alegre: Ed. Globo, 1973.
XAVIER, Ismail. “Do texto ao filme: a trama, a cena e a construção do olhar no cinema”.
In: PELLEGRINI, Tânia [et al]. Literatura, Cinema e televisão. São Paulo: Ed. Senac São
Paulo; Instituto Itaú Cultural, 2003.

Ficha Técnica

Roteiro: Euclydes Marinho


Colaboração: Daniel Piza, Luís Alberto de Abreu e Edna Palatnik
Texto final: Luiz Fernando Carvalho
Direção-geral e de núcleo: Luiz Fernando Carvalho
Período de exibição: 09/12/2008 – 13/12/2008
Nº de capítulos: 5

Elenco:
Alan Scarpari – Ezequiel Santiago
Alby Ramos – Pai do Manduca
Antônio Karnewale – José Dias

109
Beatriz Souza – Capituzinha, filha de Sancha e Escobar
Bellatrix – Sancha
César Cardadeiro – Bento Santiago jovem
Charles Fricks – Pádua
Eduardo Pires – Jovem poeta
Eliane Giardini – Dona Glória
Emílio Pitta – Padre Cabral
Fabrício Reis – Ezequiel Santiago
Flávia Carrancho
Gabriela Luiz - Escrava
Izabela Bicalho - Fortunata
Jacy Marques - Escrava
Juliana Nasciutti
Kallanda Caetana
Leo Villas Boas
Letícia Persiles – Capitu jovem
Maria Fernanda Cândido – Capitu adulta
Michel Melamed – Bento Santiago adulto/ Dom Casmurro
Paula Sofia
Paulo José – Vigário da paróquia
Pierre Baitelli – Escobar
Renata Nascimento
Rita Elmôr – Prima Justina
Sandro Christopher – Tio Cosme
Stella Maria Rodrigues
Thelmo Fernandes – Gurgel
Vitor Ribeiro – Dândi do cavalo-alazão
Wladimir Pinheiro

110
Luís Buñuel e Pedro Almodóvar em busca dos obscuros objetos do desejo e as
subjetividades femininas no cinema
Luis Buñuel and Pedro Almodóvar in search of the obscure objects of desire
and the feminine subjectivities in the cinema
Rosângela Canassa 1

Resumo: Os cineastas Luis Buñuel e Pedro Almodóvar: a intertextualidade e o filme


dentro do filme, a palestra têm a finalidade de demonstrar que, tanto nas narrativas de
Buñuel como de Almodóvar, ambos diretores buscam pelos obscuros objetos do desejo
com suas mulheres inacessíveis. A pedra angular da racionalidade humana perde o seu
poder nos filmes dos dois diretores. O filme Abraços Partidos (Almodóvar, 2009) evoca
A Bela da Tarde de Buñuel (1967) e traz um elemento intertextual referente ao passado
de Lena (Penélope Cruz) como uma prostituta de luxo, que é semelhante à de Séverine
(Catherine Deneuve). Além disso, Almodóvar apresenta a sua estética pop e surrealista
numa verdadeira alucinação ao combinar em sua produção cinematográfica a construção
da sua forma narrativa e com a anexação de intertextos em Abraços Partidos.
Palavras-chave: Almodóvar; Buñuel; obscuros desejos; filme.

Abstract: The filmmakers Luis Buñuel and Pedro Almodóvar: the intertextuality and
the film within the film, the purpose of the talk is to demonstrate that, both in the
narratives of Luis Buñuel and Pedro Almodóvar, both directors seek the obscure
objects of desire with their inaccessible women. The movie Broken Embraces
(Almodóvar,2009) evokes Buñuel's Belle de Jour (1967) and brings an intertextual
element relating to Lena's past as a luxury prostitute, which is similar to that of
Séverine (Catherine Deneuve). In addition, Almodóvar presents his pop and surrealist
aesthetic in a true hallucination by combining in his cinematographic production the.
construction of his narrative form and with the annexation of intertexts in Broken
Embraces.
Key words: Almodóvar; Buñuel; obscure desires; movie.

Pedro Almodóvar (1949) após os anos de 1980, a sua estética cinematográfica


foi se consolidando com a junção de vários elementos como as construções
melodramáticas em suas narrativas, o enfoque nas personagens femininas e a influência
pelos movimentos da contracultura da Pop Art e da Movida Madrileña na Espanha, que

1Graduada em Psicologia Clínica (Univ. São Marcos), Mestre em Artes Visuais junto ao Programa de Pós-
Graduação do Instituto de Artes/UNESP e doutorado na área de Educação, Artes e História da Cultura na
Universidade Presbiteriana Mackenzie. Integrante do LABDIC-Laboratório de Pesquisa em Identidade e Diversidade
Cultural do Instituto de Artes da UNESP. Atua como psicóloga clínica - São Paulo. E-mail rocanassa@uol.com.br

111
exerceram um efeito profundo no cinema do diretor espanhol como no filme Abraços
Partidos (2009). O diretor constrói o filme a partir da justaposição da comédia e do
melodrama num jogo de estilos.
O ciúme doentio do milionário e produtor de Las Chicas y Maletas, o filme
dentro filme, provocou a morte da própria esposa e como dizem os surrealistas l’amour
fou instala um ponto de vista crítico e traz à luz uma realidade na forma do sarcasmo e
do grotesco. Ernesto Martel (José Luis Gómez) ao descobrir a vida dupla de sua mulher
e a existencia do amante encomenda a morte de Lena (Penélope Cruz). A paródia fica
por conta da moça contratada por Ernesto como leitora labial e insere o riso, o cômico,
que se mistura ao melodrama.
A experiência do amor interditado causado pela morte da heroína serve de
mote para o diretor desenvolver o tema do amor impossível e como esse sentimento se
expressa em suas personagens. A dor de seus personagens não é transformadora, na
medida em que o desejo arbitra as suas vidas, numa existência livre de limites. O gozo é
o princípio e o fim. E o trinfo da morte e da dor andam de mãos dadas em um mundo
imaginado. Esse amor louco se manifesta de forma egoísta e violenta, cuja experiência é
explosiva, desmesurada, que pode aquecer, mas também pode destruir.
Segundo Strauss em entrevista com Almodóvar ele escreve: “Estar ligado ao
Outro, o encontro a dois, uma fusão simultaneamente amorosa e amniótica (...), é o
âmago da questão que todas as personagens de Almodóvar carregam na indiferença, no
prazer ou na dor”. (Strauss, 2008, p. 11)
O triângulo amoroso formados pelos três personagens Elena, Mateo
Blanco/Harry Cain (Lluis Homar) e Ernesto Martel é uma síntese do amor bandido, do
amor louco, que levou-os a desenvolver comportamentos extremos como a violência, a
impetuosidade, que impulsionam a ação anti-heroica dos personagens masculinos. Essa
condição do l´amour fou é fundamental nos roteiros dos dois diretores ao colocarem o
homem à mercê de suas paixões e alude a ideia surrealista do amor.
O que realmente importa é o desejo concreto e egoísta, que movimenta os
personagens e traduz uma mensagem única: o amor acima de tudo nos roteiros de
Almodóvar. A leitmotiv nos roteiros são os sentimentos frustrados, que interferem na
percepção do mundo de cada personagem e que combina com a mensagem da estética
surrealista: “(...) é onde triunfa o incondicionado desejo erótico na sua declamada

112
provocação. O recalcamento emerge, flutua; o objeto do desejo revela-se, impudico,
chocante, imoral, na ausência de qualquer controle”. (Uzzani, 2011, p. 145)
A realidade do objeto amado é revelada como a obscura do impossível e reflete
nos gestos frustrados e desesperados das personagens tanto de Almodóvar como do
cineasta espanhol Luis Buñuel Portolés (1900-1983), que lhe servem como metáforas
das paixões humanas e na agressividade gratuita que o homem reconhece a sua natureza
mais profunda. Nos filmes de Almodóvar e de Buñuel não existe o amor sereno,
equilibrado, o que vale é a exaltação da paixão, não como sintoma da fraqueza humana,
mas sim de vida.
O êxtase do erotismo é vivido por meio de fantasias e convulsões onde o prazer
ainda é possível e sem levar em conta o moralismo e as regras sociais. O que os dois
diretores pretendem não é de extirpar os sentimentos amorosos nas experiências de cada
personagem, mas mostrar que as paixões e os desejos são as forças anárquicas, que
compõem a realidade em cada filme e que governam os personagens.
A pedra angular da racionalidade humana perde o seu poder nos filmes dos
dois diretores, mas eles não poderiam ser diferentes. Eles são sobreviventes do contexto
histórico e cultural de seu país e substituem o herói pelo anti-herói, que busca o obscuro
objeto do desejo em suas fantasias como um Dom Quixote moderno. Eles introduzem
no cinema o ‘não visível’ como o universo onírico e do inconsciente, que não obedece a
lógica da narrativa linear e com as rupturas. As visões provocantes não tem nenhum
compromisso com a coerência ou com a realidade.
As figuras femininas de Buñuel são apresentadas como mulheres idealizadas
(as virgens) ou são do tipo femme fatale como sugere o crítido Ado Kyrou. A mulher
buñuelana é como um vírus e como se ela fosse tanto como vítima tanto como portadora
do mal, que nos leva de encontro com o perfil da mulher bela e inocente, que ao mesmo
tempo esconde o seu lado fatal como a personagem do filme Viridiana:
Um nome, Viridiana. Tudo começou, sem dúvida, dessas cinco
sílabas, porque todo o filme está condensado nessa admirável
conjunção de vírus e diana (...). O vírus instalou-se na mulher que
poderia ter sido a caçadora; faz dela uma vítima. O vírus de Buñuel, e
a mulher sublime e pronta a tudo dinamitar à sua passagem é aquela
eterna vítimas de múltiplas fisionomias, que, de filme para filme, de
Susana a Alucinado, atrai o vírus por sua feminilidade; por sua força
também, porque as vítimas são frequentemente mais fortes que seus
carrascos. (Kyrou, 1953, p. 52-53)

113
As mulheres de Buñuel desestabilizam o ambiente equilibrado em que vivem,
mas este equilíbrio é com base no sistema patriarcal. E até o mais convencional filme de
Buñuel revela uma justaposição entre o desejo inconsistente e a moral e os bons
costumes sinalizando a existência de uma fina camada nas relações sociais e acaba
denunciando a hipocrisia de uma sociedade patriarcal.
Segundo E. Ann Kaplan, a mulher submissa no cinema clássico reflete as
necessidades do sistema patriarcal:
A estrutura cinematográfica do cinema clássico hollywoodiano está
repleta desta ideologia e que sustenta as estruturas sociais. A forma
pela qual o filme clássico produz significados em relação às
personagens femininas cristaliza estereótipos, que funcionam como
uma forma de opressão feminina sem considera-la como um ser social
e sexual. (Kaplan, 1995, p. 85)
A autora justifica que são as estruturas patriarcais que implementam os pilares
e que definem os limites da mulher do cinema. A mulher que se submete à Lei Paterna é
a que é moralmente admirável. A resistência, quase que por definição, quando vista do
ponto de vista masculino, exige que a mulher se torne maléfica. Dessa forma, quando a
personagem feminina extrapola o seu papel social ela é classificada como má, fria ou
louca. E essa existência insubmissa do feminino ao controle do patriarcado só termina
quando a personagem é morta ou é internada em hospital psiquiátrico, como se ela fosse
louca como nos filmes americanos.
Buñuel apresenta a intimidade de sua personagem por meio de seus sonhos e para
captar os seus mais recônditos segredos como no filme A bela da tarde (1967 ). O diretor
ao sobrepor as imagens do real com as do universo onírico de Séverine (Catarine
Deneuve), ele reconstrói as fantasias da personagem e provoca um efeito desconcertante
ao abolir a fronteira entre o real e o sonho introduzindo o universo delirante da
personagem. Num dos sonhos da bela da tarde ela está sendo maltratada pelo marido e
surge amarrada em um tronco de árvore, onde é humilhada com palavras grotescas e
atiram nela fezes de animais no rosto e no corpo. As imagens dos excrementos parecem
resumir a cobiça incontrolável, que reside nos delírios dos personagens masculinos deste
filme de possuir Séverine tornando-se em um pesadelo para a personagem.
O cineasta Joseph-Marie Lo Duca fundador do Museu Internacional de Cinema
de Roma citado por Ismail Xavier, a fonte do erotismo no cinema abarcava o mundo dos
sonhos. O cinema está próximo do sonho, cujas imagens acromáticas são como as do

114
filme, o que em parte explica a intensidade erótica no cinema em cores, que de algum
modo escapa às regras do mundo onírico. (Xavier, 2003, p. 265)
Segundo Xavier, o essencial está no onirismo do cinema, que faz com que o
espectador se identifique com aquele que sonha. A analogia entre cinema e sonhos para
os surrealistas é que ocorre a irresistível transgressão das proibições, que o espectador
está acostumado a lidar. No cinema surrealista a ênfase é no senso de irrealidade nas
imagens, bem como, na busca do potencial criativo do inconsciente e justapor as
imagens do real com as do imaginário.
Segundo Buñuel citado por Carrière: “Todo o filme parece dizer que não há
diferença, que a vida imaginária é tão real quanto a outra, e que a vida que tomamos
como real pode a qualquer momento se tornar inverossímil (...)” (Carrière, 2006, p. 89).
O figurino da belle de jour encobre os seus desejos mais obscuros, que talvez a
personagem não consiga perceber, segundo Fogg:
Contrastando com o seu papel de prostituta no filme A Bela da Tarde
(1967), de Luis Buñuel, a atriz francesa Catherine Deneuve usa roupas
de aparente circunspecção, apesar de o roteiro incluir dominação,
sadomasoquismo e servidão. A sexualidade é velada, não explícita, e é
apenas sugerida pelo guarda-roupa da atriz, criado por Yves S.
Laurent (...). (Fogg, 2015, p. 195)
O espectador vai poder desvelar e explorar os caminhos secretos do personagem
em cena, pela roupa que veste e que são a ponte de ligação entre o ator e o olho do
espectador. As linhas, formas, cores e significados têm a função de ligar o ator e público
e que manifesta as características da personagem, como por exemplo, o seu nível
social.
Em Abraços Partidos, ocorre uma alusão ao filme de Buñuel A bela da tarde
(1967). O passado de Lena como prostituta eventual e com o codinome de Séverine,
alude a personagem de Catherine Deneuve. Lena quando surge nas filmagens de Chicas
y Maletas numa cadeira de rodas com roupa preta e com óculos escuros, após ser
agredida pelo marido evoca Pierre (Jean Sorel), marido de Séverine. Os jogos
intertextuais no filme de Almodóvar compreendem o filme dentro do filme, a
autocitação e com as incorporações da metalinguagem, que refere-se ao ato da
comunicação quando faz uso da linguagem para falar de si mesmo, ou seja, o objetivo
da autorreflexão é o de buscar na própria linguagem novos assuntos ou simplesmente
realizar uma homenagem ao seu próprio cinema.

115
Nos seus filmes produzidos a partir da década de 1990 ele adota a técnica do filme
dentro filme, as releituras, a citação e a metalinguagem, características do cinema pós-
moderno:
O procedimento do “filme dentro do filme” não é novo e sua
multiplicação é comum na filmografia de Almodóvar. Não se trata
tanto de citar para homenagear e sim provocar uma reflexão sobre o
próprio filme. (…) O cinema contemporâneo também contempla a
autorreferêncialidade, a releitura, o segundo grau, a paródia, a
homenagem, a citação, a reinterpretação, a reciclagem, o humor são
práticas correntes. (Lipovetsky, 2009, p. 68-126)
Nesse quadro de referências, as citações e as releituras de obras de arte também
são utilizadas pelo diretor que implanta no filme como a obra do artista surrealista René
Magritte Os Amantes (1928). A citação da obra do artista surrealista na cena em que
Lena e Ernesto passam os dias em Ibiza, que fica no quarto do hotel provoca uma
sensação de sufocamento da personagem em relação ao marido quando se beijam sob os
lençóis. A obra magrittiana funciona como uma metáfora da situação da protagonista,
que após seis intercursos sexuais com o marido remete a sua fala resgatada pela leitora
de lábios: “tive que aguentar aquele filho da puta 48 horas em cima de mim”.
Almodóvar dedica-se a criar deste modo imagens enigmáticas e sua reinserção no
filme, ao sistematizar a citação para fazer dela o modelo de todo conteúdo de Abraços
Partidos. O seu trabalho exige uma reescrita a visto que se trata de converter elementos
separados e descontínuos num todo contínuo e coerente: “Reescrever, realizar um texto
a partir de seus fragmentos, é arranjá-los ou associá-lo, fazer as ligações ou as
transições, que se impõem entre os elementos presentes. Toda a escritura é colagem e
glosa, citação e comentário” (Samoyault, 2008, p. 34).
O recurso metalinguístico é inserido como parte fundamental na estrutura de
Abraços Partidos como Chicas y Maletas, bem como, alguns trechos do spin-off do
curta-metragem A vereadora antropófaga (Almodóvar, 2009) tudo no mesmo filme. A
vereadora com seus bolinhos e o uso da cocaína, funcionam como uma espécie de
paródia de Mulheres à beira de um ataque de nervos (1988).
O remake do filme de 1988 é uma reinterpretação da sua ‘obra antiga’ e que
abriga uma manifestação de liberdade no seu estilo próprio e por meio do empréstimo
informal de autocitação o diretor reverencia a releitura, a reinterpretação e a reciclagem
para aproveitar e desenvolver o seu próprio movimento narrativo por meio de um outro
filme, num olhar nostálgico dirigido ao passado.
116
O diretor inspirado se apóia no argumento do filme precedente, atualizando-o as
suas formas visuais com com a estética da pop art nos cenários e as cores fortes nos
figurinos de Abraços Partidos e evoca também os tempos de La Movida ao criar
personagens e situações em tons da comédia aliada aos excessos do melodrama.
Segundo Peter W. Evans:
O diretor confia na habilidade do espectador de reconhecer
referências, conduzindo-o a uma espécie de prazeroso teste da história
do cinema à medida que o filme se desenrola. Em níveis mais
profundos, entretanto, a colagem de referências do filme reforça o
tema pós-modernista de Almodóvar sobre a natureza provisória e
artificial do significado. (Evans, 1999, p. 23)
Conforme explica o professor de estudos hispânicos da Universidade de Londres,
Peter W. Evans, a colagem de referências de filmes emanam do estudo de um outro
elemento chave para a escrita da narrativa, as imagens são como metáforas. O diálogo
com Mulheres à beira de um ataque de nervos alcança a implementação de uma nova
eloquência no filme do diretor.
Além disso, as letras das canções também são metáforas, porque formam uma
síntese da natureza passional da personagem, cuja singularidade do timbre de voz no seu
monólogo perpassa a eternidade dos silêncios de Ivan e atravessa o seu corpo, que sofre
a exacerbação e a intensidade em cena e o jogo de máscara do amante. (Canassa, 2018,
p. 43)
O filme é repleto de citações do próprio universo cinematográfico de Almodóvar
como uma estratégia de autocitação, seja na ênfase de falar sobre as suas próprias
personagens, seja na explicitação dos códigos da metalinguagem. Em cada produção
cinematográfica aumenta o desafio na construção da forma narrativa e também a
anexação de novos intertextos. Portanto, as obras literárias, as pinturas, o teatro, a
dança, os spots publicitários, cada elemento intertextual aproveitado e inserido no filme,
se constitui como um exercício de teoria e pesquisa prática com as imagens e seus
intertextos, que forma a poética almodovariana
Considerações finais
Almodóvar envolve o pastiche no seu estilo de fazer cinema como a homenagem
aos temas e figuras retiradas dos seus próprios filmes, que refletem a sua originalidade
com o uso da câmera. A busca de uma linguagem própria vai formando-se a partir de
uma liberdade criadora e inventiva.

117
Em Abraços Partidos ao revisitar A bela da tarde de Buñuel junto com a técnica
do filme dentro filme, o diretor traça com a estratégia da fluidez na tela na forma de
intertextos e é, de fato, o próprio cinema torna-se uma de suas maiores inspirações. Os
temas surgem num misto de reflexões existenciais emoldurados pelas personagens
construídas e centradas na mulher e em seus relacionamentos, bem como, na luta com
seus deslocamentos do campo para a cidade em busca de trabalho e condições melhores
de vida.
Imunes a uma condenação moral, o diretor traduz um feminino numa realidade
anti-heroica, que perpassa pelos assuntos e pelas situações do cotidiano e contribuiem
para “o nascer da mulher”, sem reduzi-la à sua beleza e aparência, considerando que a
imagem da mulher no cinema foi sempre estereotipada. O universo feminino em Abraços
Partidos contém muitas história como de Lena, de Pepa, de Pinas, de Judites e de
Séverines, sonhadoras e corajosas, porque elas não tem medo de sofrer por amor e
vivenciam os seus desejos secretos na tela almodovariana.
Referências bibliográficas:
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reinvenção do melodrama hollywoodiano. Tese de doutorado.
CARRIÈRE, Jean-Claude. A linguagem secreta do cinema. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 2006.
EVANS, Peter William. Mulheres à beira de um ataque de nervos. Rio de Janeiro:
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FOGG, Marnie. Vestidos Eterno: 100 modelos e referências que mudaram a história
da moda. São Paulo: Publifolha, 2015.
KAPLAN, E. Ann. A mulher e o cinema: os dois lados da câmera. Rio de Janeiro: Ed.
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KYROU, Ado. Le Surrealism au Cinema. Paris: Ed. Arcanes, 1953.
SAMAYAULT, Tiphaine. A intertextualidade. São Paulo: Editora Hucitec, 2008.
STRAUSS, Frédéric. Conversas com Almodóvar. Rio de Janeiro: Zahar, 2008.
UZZANI, Giovanna. Pocket Visual Encyclopedia: Surrealismo. São Paulo: Editora
Scala, 2011.

FichaS técnicaS dos filmes:


1.Título: Abraços Partidos
Direção: Pedro Almodóvar; Ano: 2009; País: Espanha; Elenco: Penélope Cruz (Lena),
Lluis Homar (Mateo Blanco/Harry Caine), Blanca Portilho (Judit), Lola Dueñas
(secretária), Angela Molina (mãe de Lena), Carmen Madi (amiga de Lena), Rossy de
Palma (Julieta) e

2. Título: Belle de Jour - A Bela da Tarde.


Diretor: Luis Buñuel e o roteirista Jean-Claude Carrière.
Ano: 1967; País: França ;Elenco: Catherine Deneuve, Jean Sorel, Michel Piccoli,
Geneviève Page, Pierre Clémenti, Françoise Fabian e Macha Meril.

118
TRAGÉDIA E DELEITE EM CONJUNTO: ANÁLISE DO FILME “A FORMA DA
ÁGUA” – UM ENSAIO
Isabel Orestes Silveira
Resumo
O objeto de investigação desta pesquisa será o filme “A forma da água” que ganhou quatro
Oscar no ano de 2018 (melhor filme, melhor diretor – Guilhermo del Toro, melhor trilha sonora
original e melhor direção de arte). A intenção será observar os elementos simbólicos que se
tornam pano de fundo significativos na narrativa, e provocam uma grande força comunicativa e
artística, pois somam elementos variados e contraditórios que se desdobram e possibilitam ao
receptor interpretar seu significado. Por isso, a problemática intenta questionar: quais elementos
subjetivos, são possíveis de ser extraídos dos diálogos e imagens, para além do aspecto que visa
o entretenimento? A hipótese que se aventa é de que para além da fantasia do tipo contos de fadas,
o romance traz à luz, assuntos profundos como política, religião, relacionamentos, preconceitos,
quebra de paradigmas, sexualidade, amor e ódio, o bem e o mal, vida e morte, perdas, a ética, a
moral e outras tantas questões relativas ao Ser humano. A metodologia de Estudo de Caso com
abordagem qualitativa, utilizou técnica de pesquisa não-estruturada, exploratória, baseada em
amostras retiradas da observação fílmica. A intenção foi recortar aspectos ao decompor o filme
para em seguida estabelecer relações e interpretações com as conotações simbólicas propostas
pelas diferentes linguagens: imagética, verbal, gestual, sonora, dentre outras.
Palavras chave: Imagens, Símbolos, Subjetividades, Preconceito, Aceitação

Introdução
O narrador inicia o filme dando um tom juvenil a trama pelo fato, de fazer parecer
que é um conto de fadas sobre um “príncipe” ou, da “princesa sem voz”. Ao término do
filme o narrador volta a questionar se o casal viveu ou não, felizes para sempre e conclui
afirmando seu ponto de vista, dizendo que sim. O filme porem traz uma mensagem para
adultos e os aspectos simbólicos que envolvem o enredo permite inúmeras interpretações.
Trata-se do filme “A forma da água” que ganhou quatro Oscar no ano de 2018: melhor
filme, melhor diretor – Guilhermo del Toro, melhor trilha sonora original e melhor
direção de arte.
Mais do que uma fantasia do tipo contos de fadas, o romance traz à luz, assuntos
profundos como política, religião, relacionamentos, preconceitos, quebra de paradigmas,
sexualidade, amor e ódio, o bem e o mal, vida e morte, perdas, a ética, a moral e outras
tantas questões relativas ao Ser humano.
O objetivo desta reflexão é discorrer sobre algumas temáticas simbólicas que se
tornam pano de fundo significativo para além do entretenimento pois, somam elementos
variados e contraditórios, plenos de temáticas que se desdobram e apontam para as
atitudes éticas e morais.
Pretende-se ainda enfatizar e valorizar a força comunicativa e artística que o
cinema evoca.

120
A abordagem prevê uma metodologia qualitativa, isto significa que se trata de
uma investigação de caráter "[...] não-estruturada, exploratória, baseada em pequenas
amostras, que proporciona insights e compreensão do contexto do problema [...]".
(MALHOTRA, 2001, p. 155). Optou-se pelo Estudo de Caso na tentativa de fazer a
análise do objeto (filme “A Forma da Água”) através da observação atenta e de análise
no âmbito descritivo.
1 - Sinopse de alguns personagens e suas muitas histórias
Gilles, é um artista solitário, pintor e desenhista e faz anúncios publicitários para
sobreviver após haver perdido o emprego. É um homem de meia idade homossexual e
flerta com um barman que o despreza após saber do interesse de Gilles por ele.
Experimenta a rejeição e o complexo por estar envelhecendo e ser calvo. É um grande
amigo de Elisa e seu vizinho de porta.

Figura 1: Gilles com o barman. Disponível em: Figura 2: Elisa Espósito. Disponível em:
http://portalwhiz.com/pontocego-a-forma-da-agua/. http://portalwhiz.com/pontocego-a-forma-da- agua/.
Acesso em 12/06/2018 Acesso em 12/06/2018

Elisa Espósito é uma mulher jovem e órfã. Vítima de violência na infância. O


agressor cortou sua garganta e a deixou muda, com cicatrizes no pescoço. Ela foi
encontrada, abandonada num rio. Vive num pequeno espaço, um loft sem muitos móveis,
mas a cena destaca o fato de não haver cama. Ela dorme em um sofá e após o despertar
faz do banho, na banheira, seu lugar de relaxamento e prazer. A personagem segue sua
rotina entediante de forma metódica: acorda, cozinha ovos, liga o timer em formato de
ovo na hora do banho para não perder a hora, se masturba, veste-se, escova seus sapatos,
prepara seu lanche e o do vizinho Gilles. Vai ao apartamento do amigo, conversa e se
distrai com por causa da programação que passa na TV. Vai ao ponto de ônibus, chega
sempre atrasada no trabalho e bate o cartão com a ajuda de Zelda que a espera para a
rotina de limpeza do laboratório do Governo.

121
Figura 3: Zelda. Disponível em: Figura 4: Coronel Strickland e o Dr.Hoffstetler. Disponível
http://the-shape-of-water.wikia.com/wiki/File:121893.jpg em:
Acesso em 12/06/2018. http://screencrush.com/michael-stuhlbarg-the-shape-of-water-
interview/Acesso em 12/06/2018.

Zelda Delilah é a melhor amiga de Elisa, uma mulher falante de meia idade, negra
e casada com um homem calado e sem iniciativa. No trabalho, em parceria com a Elisa,
ela consegue traduzir as linguagens de sinais da amiga e a defende do bullying de outros
colegas. A maioria dos seus comentários são pejorativos em relação aos homens e com
uma linguagem ressentida reclama do marido. Se irrita com a limpeza do banheiro
masculino e argumenta que os homens “fazem sujeira”. Zelda deixa transparecer seu
discurso ressentido quando se refere ao universo masculino afirmando: “todos são
traidores”.
Os três amigos: Gilles, Elisa e Zelda experimentam o preconceito, e a necessidade
de serem amados.
Em oposição ao vínculo afetivo dos amigos, surge o Coronel Richard Strickland,
o qual é responsável pela segurança do laboratório do governo. Trata-se de um homem
ambicioso que foi transferido para a cidade de Baltimore após capturar um ser híbrido das
águas da América do Sul. É racista no trato com Zelda e desenvolve um sentimento de
cobiça por Elisa, especialmente pelo fato de ver nela uma mulher sem voz.
Richard Strickland manifesta uma grande satisfação ao torturar a criatura hibrida
e passa a odiá-lo ainda mais, após o fato, deste haver reagido e decepado dois de seus
dedos. Após a cirurgia de reimplante, seus dedos mínimo e anelar são repostos. Consegue
de seu superior a autorização para matar a criatura visto que não obteve avanço nas
pesquisas que tentava compreender e conhecer a espécie.
Dimitre esconde sua identidade como sendo o Dr. Hoffsetler, um cientista e espião
que atualiza os russos sobre as descobertas Americanas e sobre a espécie que fora
encontrada. Ele desenvolve um verdadeiro sentimento de proteção pela criatura,
especialmente após descobrir que ela é inteligente e que se comunica. Ele colabora com
os planos de Elisa em soltar e salvar o cativo e sobre isso afirma: “Não quero uma coisa
linda e complexa destruída”.
122
O filme apresenta a criatura anfíbia como habitante das águas, mas que consegue
ficar fora dela por menor tempo. É considerado um Deus e venerado pelos nativos da
Amazônia e foi capturado para estudo e como possibilidade de ser enviado em nave
espacial após os russos terem encaminhado um cachorro como cobaia, na corrida espacial.
Permanece sendo torturado com choques e presos em correntes e desenvolve uma
comunicação visual, gestual e afetiva com a Elisa.

Figura 5: Elisa e a criatura. Disponível em:


http://screencrush.com/michael-stuhlbarg-the-shape-of-water-interview/Acesso em 12/06/2018.

Outros personagens sustentam diferentes contextos, é o caso do General Frank


Hoyt que exibe pela patente que possui, sua forma de poder e, determina a morte da
criatura, dando plenos poderes ao General Richard Strickland.
No lar, Strickland evidencia os papéis sociais e a cultura de uma época – década
de 60. O filho consulta o pai para os deveres da escola. A mulher desempenha as tarefas
domésticas, serve e satisfaz sexualmente o marido. Embora submissa, a esposa impõe
sugestões como a compra de um carro, dita a cor e a marca. Ela lhe sugere um carro
Cadillac, signo de status e ele acata.
A esposa exerce o pequeno poder no ambiente doméstico, porém no ato sexual,
ele a quer calada ao ponto da voz da mulher o incomodar e em uma cena íntima, ele coloca
sobre suas mãos em sua boca, para que se cale.

Figura 6 e7: A família: Disponível em:


http://paogeekeijo.com.br/criacutetica-ndash-a-forma-da-aacutegua.html.
Acesso em: 19/05/2018.
2 - Símbolos e analogias
É interessante como o filme envolve elementos simbólicos no enredo. Um dos
exemplos são as cores.

123
O verde encharca a tela logo na primeira cena que é tomada pela água e faz flutuar
todas as peças e os móveis da protagonista. Trata-se de parecer um sonho, mas ao toque
do despertador, Elisa acorda e a cor verde invade propositadamente e progressivamente
todo o filme, estando presente na camisola, no roupão, nos azulejos, na banheira, no
ônibus, nos carros, nos uniformes, no laboratório, no sabonete líquido, na água da
banheira, nas tortas de limão, na lanchonete, e em vários outros detalhes nada disfarçados.
Se o leitor não assistir ao filme poderá pensar que há nisso, um tédio ou uma saturação
da cor. Ao contrário, há uma harmonia cromática do verde que se mistura com o marrom
do assoalho e com o mobiliário. Outras cores contrastantes como branco e preto, luz e
sombra, o azul petróleo e ainda os cinzas, reforçam o clima dramático das diferentes
cenas.
Se o verde é a linguagem que representa o progresso e o futuro, o azul petróleo do
Cadillac, carro comprado pelo Coronel Strickland, é signo de status e coloca dúvida no
receptor da imagem, se tudo em cena era azul petróleo o tempo todo ou não. O contraste
do verde reforça o vermelho que simbolicamente representa um duplo: paixão e morte.
Gilles, desenha e pinta cartazes publicitários para campanhas de alimentos e
destaca o tom vermelho da gelatina, todavia ao mostrar a proposta, a ideia criativa deste
é rejeitada e o comentário do diretor de arte que o assiste, solicita que ele refaça a arte e
reforce a cor verde.
O vermelho aparece no sangue deixado nas portas, nas cadeiras, nas paredes e no
chão. Aparece no telefone, no sapato, no casaco e no acessório de cabelo de Elisa.
O vermelho do sangue da espécie, aparece no bastão do tirano que o tortura,
aparece na pia, na roupa do algoz e encharca o piso do laboratório quando o dedo de
Strickland é arrancado.
Como toda cor possui um duplo, o vermelho pode significar paixão para a Elisa,
que aparece com um acessório vermelho no cabelo, com um casaco e sapatos da mesma
cor, após seu envolvimento físico com a espécie; mas também, o vermelho pode
representar o perigo, a morte quer seja para ela, ou para o Coronel Richard Strickland,
cujo telefone destaca o vermelho da cena.

124
Figura 8: Elisa e Zelda, sendo intimada pelo Coronel Richard Strickland. Disponível em:
http://paogeekeijo.com.br/criacutetica-ndash-a-forma-da-aacutegua.html. Acesso em: 19/05/2018.

Verde e vermelho, duas cores primárias que exercem contrastes e que apontam
para outras séries de oposições binárias: amor e ódio, som e silêncio, humano e animal,
verdade e mentira, vida e morte. Signos de uma sociedade que se apresenta
contextualizada com os fenômenos culturais cartesianos e carente de envolvimentos
interativos com outros tipos de sociedade e com as várias linguagens, as quais
possibilitam novas significações.
Os signos imagéticos da cena conferem inúmeras possibilidades de interpretação
para questões sociais e de gênero. O ovo, símbolo de vida, aparece em vários momentos.
O cinema, como espaço cultural é local da habitação dos que são rejeitados e lugar de
salvação para a criatura que ali é trazida. O cinema torna-se símbolo de acolhimento,
descanso, entretenimento e situações dramáticas.
No cinema, um dos espaços físicos em que acontecem os dramas do enredo, a
“Forma” devora o gato de estimação de Gilles. Assustado pela indignação e repreensão,
a criatura arranha o braço de Gilles e sai fugindo. Sua marca, de mão encharcadas de
sangue, fica espalhada dentro e fora do cinema.
Se no passado ancestral as pinturas nas paredes das cavernas e os registros gráficos
eram signos do desejo humano de possuir e de permanecer no tempo, a criatura também
deseja viver e possuir a mulher amada.
As mãos, ora torturam, ora afagam, ora trocam caricias. As mãos limpam,
decepam e são decepadas. As mãos encharcadas de sangue aparecem na parede remetendo
a pintura rupestre.
As mãos da criatura, também fazem analogia a divindade. Na cena em que Gilles
perdoa a criatura, impõe sua mão sobre a cabeça dele, numa intenção de abençoá-lo. É do
humano que sai a benção do perdão, mas é da criatura que toca, que provem a cura.
Humano de divino, divino e humano em comunhão.

125
Figura 9: Gilles perdoa a criatura e a criatura o cura.
Disponível em: http://cinepop.com.br/critica-3-a-forma-da-agua-o-amor-entre-os-diferentes-168124. Acesso em 19/05/2018.

Ouras partes do corpo também ganham significado, como por exemplo, os pés
indicam ação, e movimentam-se ora em gestos de dança sugerindo alegria ou gozo, outras
vezes aparecem nos sapatos pretos e vermelhos. É na cena final, com um pé descalço, que
Elisa ressuscita como um ser híbrido: metade mulher, metade peixe.
As analogias simbólicas em oposição seguem nos gestos e palavras. Outras
referências interessantes acontecem nos diálogos do Coronel Richard Strickland por
exemplo. Por várias vezes, esse deixa transparecer seu preconceito com relação a cor de
pele de Zeuda e faz referência ao seu nome como Dalila, personagem bíblica que traiu
Sanção. Sugere assim, que ela delate quem sequestrou a criatura.
A temporalidade é outro elemento significativo da narrativa, pois intervém no
modo como os protagonistas exercem o trabalho rotineiro. O relógio aparece pontuando
as horas e mobilizam as experiências e ações que se dispersam no cotidiano.
Quando se pensa na intensidade da vida, no fluxo da história, no cotidiano, no
comportamento e nas ações humanas, valorizam-se intensamente o instante, as horas, os
dias, a duração, o tempo, enfim. Todavia, constata-se que o tempo foi e ainda é
compreendido de várias maneiras. Pode ser entendido como fenômeno, mensurado em
antes e depois, ou também dado a priori. Com efeito, percebe-se, no senso comum, o
tempo imerso no cotidiano pelo uso da linguagem e também da sensibilidade.
Daí que o entendimento mais habitual sobre o tempo acontece na realização e no
cumprimento das tarefas estabelecidas e nas questões imediatas que surgem no presente.
É sempre o tempo para fazer-se algo.
Na vida de Elisa, assiste-se ao passar das horas e dos dias, na alternância entre dia
e noite. Conta-se e mede-se o tempo nos parâmetros do relógio e do calendário, e é ele

126
percebido como uma sucessão linear de instantes sequenciais. O tempo que aparece é o
cronológico, é o da continuidade. Sente-se o tempo histórico na alternância de
mecanismos da urgência, do curto prazo, quando a protagonista está sempre em atraso
para o cumprimento do dever, mas também percebe-se o acelerar do tempo exposto pela
impaciência do perigo que se aventa. O ser hibrido será morto e precisa ser salvo. Nessa
ação de sequestro, o animal tem pouco tempo de vida, pois não sobrevive por muito tempo
fora da agua salgada.
Com o avanço do tempo, o ser hibrido aproxima-se da morte e Elisa ganha
consciência de que ele está caminhando para um fim. A finitude anuncia-se de maneira
impiedosa por isso, vários personagens entram em ação para cuidar da possibilidade de
libertação da espécie. Há nisto, uma esperança, todavia o inevitável acontece. Na tentativa
de vingança, o Coronel Richard Strickland atira contra a espécie e Elisa é atingida. Ao
caírem ambos no mar, a espécie beija Elisa e as cicatrizes na garganta dela se abrem como
guelras. Agora ela respira embaixo d’agua.
A cena termina evocando o renascimento numa outra vida após a morte. Como
forma concreta da existência finita, a eternidade oferece-se ao apetite primordial do ser
humano como retorno à vida.
Considerações finais
Problematizou-se nessa reflexão, alguns dos elementos subjetivos extraídos dos
diálogos e das imagens fílmicas. Ao decompor algumas das cenas do filme foi possível
estabelecer relações e interpretações sobre possíveis analogias acerca dos personagens,
das cenas cromáticas, dos diálogos e dos gestos.
Vale destacar o registro do nome do cinema: Orfeu e, propositalmente, inclui a
cena bíblica do filme de Rute. Personagem de uma mulher judia, simples e que se torna
rainha da Pérsia, não obstante ter sido ameaçada por um tirano. O mito de Orfeu narra a
história de um jovem músico casado com a bela ninfa Eurídice, que, morreu picada por
uma serpente ao tentar fugir de Aristeu. Orfeu, desceu, desesperado até o Inferno na
tentativa de conseguiu resgatar sua esposa; entretanto deveria ir a frente e não olhar para
trás. Orfeu não resistiu, e para certificar-se de que a esposa estava atrás, olhou e perde-a
para sempre. O cinema, como Orfeu, de igual modo remete o espectador aos inúmeros
sentimentos que transitam entre a razão e a emoção.
Neste curto espaço, a linguagem cinematográfica se mostra uma fonte rica para a
pesquisa que não se fecha, ao contrário se abre e se desdobra para outras novas
possibilidades investigativas.

127
A jornada do herói digital: a catábase como recurso narrativo nos video games

A digital hero’s journey: the katabasis theme as as a narrative resource in


video games

Edmundo Gomes Junior1

Resumo: Este artigo tem como objetivo apresentar uma análise das estruturas narrativas
dos jogos God of War, Castlevania: Lords of Shadow e Dante’s Inferno, no que concerne
a manifestação da catábase, conceito trabalhado por R. M. Rosado Fernandes no volume
XLV da revista HVMANITAS (1993), inspirado na obra de Xenofonte. Foi detectado que
na maioria dos jogos há alterações dos mitos ou do conceito original do protagonista das
obras inspiraram os games, como em Dante’s Inferno, por exemplo, onde o protagonista
deixa de ser um poeta como no poema épico e é transformado num cavaleiro das cruzadas.
Tais mudanças trazem o questionamento se o jogo, mesmo como assumidamente
entretenimento de massa, serve como objeto estético de análise e como instrumento de
acesso ao texto original. As plataformas digitais ainda são incógnitas nos círculos
acadêmicos, sobretudo em termos epistemológicos, porém sua indústria mobiliza bilhões,
tornando-se nos últimos anos a indústria de entretenimento mais lucrativa. A análise da
estrutura narrativa dos jogos eletrônicos demonstra, porém, que mesmo sob a forma mais
moderna de se roteirizar uma estória, os heróis dos videogames ainda seguem a estrutura
da jornada do herói, descrita por Joseph Campbell em O poder do mito e o sistema de
objetos modais identificados por A. J. Greimas. Dentre os jogos analisados, podemos
notar que a catábase, isto é, a descida ao mundo inferior, torna-se um ponto fundamental
da narrativa lúdica, seja para a obtenção do objeto modal, ou para o precedente da
anábase, em que o herói sai do inferno fortalecido.
Palavras-chave: jornada do herói; catábase; videogames; God of War; mito

Abstract: This article aims to present an analysis of the narrative structures of the games
God of War, Castlevania: Lords of Shadow and Dante's Inferno, concerning the
manifestation of the katabasis theme, concept worked by R.M. Rosado Fernandes in
HVMANITAS (1993), inspired by the work of Xenophon. It was detected that in most
games there are alterations of the myths or the original concept of the protagonist of the
works inspired the games, as in Dante's Inferno, for example, whereas the poet in the epic
poem is replaced by a templar knight. Such changes bring into question whether the game,
even assumed as mass entertainment, serves as an aesthetic object of analysis and as an
instrument of access to the original text. Digital platforms are still unknown in academic
circles, especially in epistemological terms, but their industry mobilizes billions, making
it the most lucrative entertainment industry in recent years. Analysis of the narrative
structure of electronic games, however, shows that even in the most modern way of

1 Doutorando em Letras pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Mestre em Letras pela Universidade Presbiteriana
Mackenzie. Professor na Faculdade São Bernardo. E-mail: egomesjr@hotmail.com

128
scripting a story, video game heroes still follow the structure of Joseph Campbell’s The
Power of Myth hero’s journey, as well as the system of modal objects identified by A.J.
Greimas. Among the analyzed games, we can note that the katabasis theme, that is to say,
the descent to the underworld, becomes a fundamental point of the playful narrative,
either for the obtaining of the modal object, or for the precedent of anabasis, in which the
strengthened hero leaves hell.
Key words: hero’s jorney; katabasis; video games; God of War; myths

Uma odisseia digital

Desde o lançamento do Odyssey em 1972, os videogames têm apresentando constante


evolução não somente quanto à qualidade gráfica, mas também quanto à preocupação
com a narrativa. Com a maior capacidade de armazenamento dos CDs e posteriormente
aos discos rígidos dos consoles, foi possível criar histórias mais envolventes e complexas.

Por coincidência ou não, o nome do primeiro aparelho de videogame remete à principal


objetivo da grande maioria dos jogos: à Odisseia clássica, às viagens de Ulisses e a
estrutura da jornada do herói.

Também chamada de monomito por Joseph Campbell (1997), a jornada do herói


apresenta uma estrutura narrativa reconhecida e reproduzida em diversos suportes desde
sua primeira publicação em 1948.

Campbell estabelece dezoito estágios dentro dessas narrativas cíclicas, e dentre essas
etapas iremos analisar como o caminho de provas está presente nos videogames. Nos
jogos analisados, Dante's Inferno (2010), Castlevania: Lords of Shadows (2010) e a
antologia God of War (2005-2010), produzidos para o console Playstation, é possível
perceber o quanto a descida ao inferno e a subida das profundezas têm papel fundamental
na estruturas dos jogos.

God of War conta a história de Kratos, um guerreiro espartano que descobre ter sido
manipulado por Ares, o deus da guerra do título. A fim de descobrir fatos de seu passado,
o protagonista percorre a Grécia antiga enfrentando criaturas mitológicas, tais como
medusas, minotauros e harpias. Assim como na tragédia edipiana, o herói investiga as
mortes em sua família para descobrir quem fora o assassino. Em busca de vingança contra
Ares, Kratos o enfrenta e após matá-lo assume o manto de deus da guerra. Com o sucesso
do primeiro jogo, duas sequências foram produzidas em 2007 e 2013, além de 4 outros
129
games cujos acontecimentos se passam antes do primeiro, as chamadas prequelas. Em
2018 uma nova versão do jogo é lançada, porém o mundo mítico nórdico dá lugar ao
grego. A estrutura desses jogos, porém, permanece a mesma: em todos os jogos da série
o herói enfrenta monstros e viaja aos mundo inferiores a fim de adquirir armas mais
poderosas.

Castlevania: Lords of Shadow continua a história iniciada em 1986 no jogo Akumajō


Dracula dos consoles de videogame de 8 bits de processamento da Nintendo. A série de
31 jogos consiste na incessante luta da família Belmont contra o conde Drácula, sempre
o último vilão a ser combatido nos antigos jogos da série. Gabriel, o protagonista de
Lords of Shadow, é neto de Simon Belmont, o herói do primeiro Castlevania, e ao invés
de enfrentar Drácula no final do jogo, confronta Satanás no inferno.

Dos jogos que analisaremos, Dante’s Inferno (2010) é o que mais se aproxima da
descrição literária do inferno feita por Dante Alighieri (1265-1321) em A Divina
Comédia. No jogo produzido pela Eletronic Arts, o poeta florentino é substituído por um
cavaleiro das Cruzadas, movimento militar cristão situado entre os séculos XI e XIII. Os
desenvolvedores do jogo se aproveitaram da configuração do inferno do poema épico
italiano para desenvolver as fases do jogo, assim como das criaturas a serem enfrentadas.

Como em toda narrativa, o conflito e sua resolução são essenciais para o enredo, e poucos
cenários são tão ricos em forças de oposição quanto os mundos inferiores, sejam eles
chamados de inferno, na crença judaico-cristã, hel, na mitologia nórdica, Tártaro ou
Hades na greco-romana. Apesar das diferentes crenças, a função desses reinos permanece
praticamente a mesma: o destino das almas após a morte. Para os gregos e os nórdicos,
entretanto, apenas aqueles que morrem em batalha são poupados desse final, sendo
recompensados em Valhala e nos Campos Elísios, respectivamente, por certo como
motivação para guerreiros, não muito diferente da promessa de setenta e duas virgens do
paraíso islâmico.

As nomenclaturas também parecem conflitantes, visto que Hades é o nome do deus


grego e o mesmo nome também é atribuído a seu reino. Na apropriação romana o esse
deus é chamado de Plutão, e na Ilíada o Tártaro é um nível inferior onde os titãs, seres
anteriores aos deuses, são aprisionados. Em A Divina Comédia, publicada entre 1304 e
130
1321, Dante Alighieri integra os reinos: Plutão é destronado e é um prisioneiro entre o
quarto e quinto círculos do inferno, descrito nos Canto VI e VII (2003, p. 59). Lúcifer
passa a ocupar um papel contraditório: ao mesmo tempo que se acredita que ele reina, ele
também é prisioneiro no círculo mais profundo.

Os infernos dos três jogos são distintos pela contextualização temporal de cada narrativa.
Apesar de tempos e espaços ficcionais, eles apresentam indícios históricos que
possibilitam situá-los cronologicamente, mesmo que em um tempo mítico. Em God of
War, o jogador explora as ruas de Esparta, Atena e o mar Egeu, dentre outros cenários, o
que permite inferir um tempo mítico pré-cristianismo. Já Castlevania tem desde sua
primeira versão para o Nintendo 8 bits como principal vilão o Conde Drácula, criado no
romance de Bram Stoker (1897) e inspirado no personagem histórico Vlad, o empalador,
que acredita-se ter vivido entre 1431 e 1476. Dante’s Inferno também se situa após o
advento do cristianismo. Tanto Simon em Castlevania quanto Dante usam cruzes e outros
artefatos religiosos como armas.

Ricoeur elabora uma análise dos mitos e como situá-lo dentro e fora da história. O autor
prefere chamar de tempo dos símbolos e não o tempo dos mitos pois

[...] o mito deve ser subordinado ao símbolo. [...] é uma forma de


narração: ele narra os acontecimentos do começo e do fim num tempo
fundamental - naquele tempo - [...] os símbolos envolvidos na confissão
do mal pareceram-me repartir-se em três níveis significantes: nível
simbólico primário da mancha, do pecado, da culpa; nível mítico das
grandes narrações de queda ou de exílio; nível dos dogmatismos
mitológicos da gnose e do pecado original. (1988, p. 29).
Sendo assim, para Ricoeur o ser humano é visto como o perpetuador do mal, e um desses
símbolos se manifesta pelas narrações de queda, como nos enredos dos jogos analisados,
e para o autor não é possível situar o mundo mítico historicamente, pois ele antecede não
somente à história, mas também ao próprio homem e ao pecado original. Por essa razão,
apenas podemos identificar o tempo em que as histórias dos jogos acontecem pelos
indícios apresentados no espaço, tornando-os inseparáveis, como define Bakhtin no
conceito de cronotopo:

No cronotopo artístico-literário ocorre a fusão dos indícios espaciais e


temporais num todo compreensivo e concreto. Aqui o tempo condensa-
se, comprime-se, torna-se artisticamente visível; o próprio espaço
intensifica-se, penetra no movimento do tempo, do enredo e da história.
131
Os índices do tempo transparecem no espaço, e o espaço reveste-se de
sentido e é medido com o tempo (1998, p.211).
Dessa forma, é possível saber qual o nível de deslocamento que as personagens terão em
suas estórias, assim como a duração do enredo, através da estipulação do tempo em que
ele se desenvolverá. No caso dos videogames, o espaço é fundamental para o
desenvolvimento do enredo, visto que é particularmente a mudança de espaços que
possibilita a continuação dos jogos.

Dadas as limitações tecnológicas dos anos 1970, os primeiros jogos do Odissey


apresentavam apenas um cenário, como Pong, que simulava uma partida de tênis com
apenas um quadrado e 3 barras na tela. Em 1982 surgem os principais jogos da segunda
geração de videogames, tendo como principal representante o sistema Atari. Os jogos
passaram a ter cenários extensos, como em Pitfall, em que o jogador percorre uma floresta
cheia de perigos, e são lançadas as adaptações de filmes, geralmente de longas de ação
como Star Wars e Indiana Jones, porém nem sempre bem-sucedidos, como E.T.,
considerado um dos piores jogos já produzidos (como retratado no documentário Atari:
Game Over, 2014), ou de narrativas duvidosas para uma aventura, como a adaptação do
filme Porky`s, comédia dos anos 80 que abusava de nudez e humor depreciativo.

Os jogos baseados em obras literárias são mais raros, mas o resgate da donzela em perigo
é uma recorrência desde o lançamento do Nintendo 8 bits, em 1985, em que no jogo Super
Mario Bros a personagem principal resgatava uma princesa, cuja fórmula foi repetida
dezenas de vezes nas seis gerações de jogos posteriores, inclusive nos jogos que
analisamos: no final do primeiro God of War, Kratos salva a alma de sua esposa; em
Castlevania: Lords of Shadow Gabriel encontra a alma de Marie após matar Lúcifer, e
em Dante’s Inferno, Dante também resgata a alma de Beatrice do anjo caído. Esse final
fora fortemente criticado por diversos autores, dentre eles Peter Likarish (2014, p. 170) e
Teodolinda Barolini (2010 p. 79), pois para eles este desfecho distorce por demais a
interpretação da obra, pois é Beatriz que salva Dante no poema original, e não o contrário.

Tracy L. Dietz (1998, p. 434) faz um estudo sobre a presença da donzela em perigo nos
33 jogos para os sistemas Nintendo e Sega Genesis. A autora classifica como o tipo mais
comum de representação feminina nos jogos eletrônicos a ausência total dessas
personagens. A segunda representação mais comum é de fato a donzela em perigo,
132
identificada em 21% dos jogos analisados. Considerando que os jogos analisados pela
autora deram origem a sequências ou novas versões para os consoles posteriores, essa
parcela de jogos pode aumentar. Assim como na crítica de Likarish sobre a erotização de
Beatriz, Dietz também ressalta a grande maioria de personagens femininas como objetos
sexuais, caracterizadas principalmente pelos seios fartos (DIETZ, 1998, p.435).

Percebemos que por se tratar do mundo dos mortos, as personagens femininas resgatadas
nos jogos por nós escolhidos estão além da salvação de seus corpos, porém todas precisam
das personagens masculinas para a salvação de suas almas. Diferentemente do mito de
Orfeu, a opção de levá-las de volta para o mundo dos vivos não é dada aos protagonistas,
entretanto a catábase continua comum entre os mito, e as narrativas modernas, como .

Embora não possa considerar-se o termo grego katábasis «acção de


descer, descida», como expressão de técnica literária, a verdade é que
as «descidas», subentende-se aos infernos, eram um tópos da literatura
antiga, que daí transitou para as literaturas modernas. O seu contrário,
anábasis, «subida», foi consagrado pela obra de Xenofonte na
«Retirada dos Dez Mil», mas nunca assumiu o carácter infinitizante da
«catábase», que significa toda e qualquer descida às regiões
subterrâneas, ao passo que «anábase» significa tão-somente a subida
das tropas de mercenários gregos pelas montanhas da Arménia depois
da derrota infligida a Ciro pelas tropas de seu irmão Antaxerxes.
(FERNANDES, 1993, p. 347)
A catábase, isso é, a descida ao mundo inferior a fim de obter a anagnorisis, isto é, o
conhecimento supremo, está presente, além na história de Orfeu, nos mitos de Hércules,
Ulisses, e Enéias, assim como no medievo, com a descida de Dante aos Infernos. Nas
narrativas modernas, pode ser identificada no encontro de Luke Skywalker com Yoda em
uma caverna no pântano em O Império Contra-ataca (1980), um dos filmes da saga Star
Wars citados por Joseph Campbell em suas reflexões sobre a jornada do herói (1991).
Esta mudança de planos serve, também para Bakhtin, como catalisador de um potencial
para o herói:

O “alto” e o “baixo” possuem aí um sentido absoluta e rigorosamente


topográfico. O “alto” é o céu; o “baixo” é a terra; a terra é o princípio
de absorção (o túmulo, o ventre) e, ao mesmo tempo, de nascimento e
ressurreição (o seio materno). Este é o valor topográfico do alto e do
baixo no seu aspecto cósmico [...] Quando se degrada, amortalha-se e
semeia-se simultaneamente, mata-se e dá-se a vida em seguida, mais e
melhor. [...] A degradação cava o túmulo corporal para dar lugar a um
novo nascimento. E por isso não tem somente um valor destrutivo,
133
negativo, mas também um positivo, regenerador: é ambivalente, ao
mesmo tempo negação e afirmação. [...] o baixo é sempre o começo".
(BAKHTIN, 1987, p. 19)
Consoante com essa descrição de Bakhtin da dinâmica da carnavalização e do
grotesco, além do movimento de decadência das personagens para os mundos inferiores,
há o renascimento dos heróis após enfrentarem a provação suprema, apresentando
desdobramentos na estruturação da narrativa que possibilitam continuações para os jogos:
Kratos se torna o novo deus da guerra após derrotar Ares em God of War, Gabriel se torna
um vampiro e assume o nome de Drácula em Castlevania: Lords of Shadow, logo
ironicamente ambos se tornam o que mais repugnavam. Dante não se transforma no
inimigo supremo, porém também se livra da mortalidade como Kratos e Gabriel: no final
de Dante’s Inferno o cavaleiro é puxado por Beatriz, a tela é tomada por um brilho branco,
representando a sublimação, e Dante sai de um gruta, para se deparar com um monte,
certamente o Purgatório.

A três possibilidades de vida eterna nos jogos são descritas por Fernandes, assim como
suas extrapolações de interpretação:

Essa infinitização é aproveitada para os mais diferentes fins, desde o


visitar o que se perdera para sempre, ao encontro com a morte pura e
simples, ao desejo de sair da morte para a vida eterna e imortalidade da
alma, desde o deixar a liberdade, o que equivale à morte, e encontrá-la
de novo. Várias feições de uma «descida», caldeadas pela visão
contemporânea e pela adaptação às circunstâncias actuais, não sem que
contudo restem sinais explícitos da antiga origem. (1993, p.355)
Ao sair da gruta Dante retira a cruz que cobre todo seu dorso. Ao cair no chão, o tecido
se torna uma serpente, e uma risada maligna pode ser ouvida, remetendo ao ciclo do mal
sendo perpetuado.

Para Bakhtin (1987, p. 268) a saída da gruta é um processo de renovação, e tanto na


apresentação das personagens quanto no espaço em que elas são encontradas percebemos
a presença do grotesco, contrastando com suas virtudes. Os heróis, mesmo que
imperfeitos, têm suas qualidades exaltadas nas profundezas: quanto maiores as trevas,
mais destacados são os focos de luz.

Bakhtin desenvolve as concepções sobre o grotesco, considerando as origens folclóricas


e ambivalentes deste conceito, dando-lhes significado não somente quanto à carga do

134
ridículo, da aberração, ou etimologicamente “do que vem das grutas”, mas também da
renovação. Isso se dá pelo processo de carnavalização, onde as máscaras são um dos
elementos essenciais:

[...] É preciso um elemento a mais, vindo de uma outra esfera da vida


corrente, a do espírito e das ideias. A sua [a da festa] sanção deve
emanar não do mundo dos meios e condições indispensáveis, mas
daquele dos fins superiores da existência humana, isto é, do mundo dos
ideais. (BAKHTIN, 1987, p. 8-10.)
Dessa forma, assim como no carnaval existe um conjunto de regras que são apenas
aceitáveis nesse período, a ficção também é detentora de convenções próprias que provêm
infinitas possibilidades de criação, seja na obra literária, cinematográfica, teatral ou em
qualquer outro suporte em que as narrativas se tornem necessárias para a existência de
um produto estético. No video game, o jogador aceita que uma poção instantaneamente
restaure sua saúde, que asas coladas ao corpo permitam voar, que tempo e espaço se
dilatem ou se compressem de forma que em uma aventura de seis horas centenas de
quilômetros sejam percorridos. O carnavalesco se torna uma necessidade para que a
aventura aconteça, e a fidelidade à história, à obra literária e ao mito seria um estanque
à eficácia da obra como objeto de entretenimento. Os heróis são aceitos dentro destas
convenções, e mesmo modernos, apresentam releituras dos mitos.

Campbell prevê essa revisitação dos mitos, afirmando que ela serve como caminho para
explicar dramas humanos:

As literaturas grega e latina e a Bíblia costumavam fazer parte da educação de


toda gente. Tendo sido suprimidas, toda uma tradição de informação mitológica
do Ocidente se perdeu. Muitas histórias se conservavam, de hábito, na mente das
pessoas. Quando a história está em sua mente, você percebe sua relevância para
com aquilo que esteja acontecendo em sua vida. Isso dá perspectiva ao que lhe
está acontecendo. Com a perda disso, perdemos efetivamente algo, porque não
possuímos nada semelhante para pôr no lugar. Esses bocados de informação,
provenientes dos tempos antigos, que têm a ver com os temas que sempre deram
sustentação à vida humana, que construíram civilizações e enformaram religiões
através dos séculos, têm a ver com os profundos problemas interiores, com os
profundos mistérios, com os profundos limiares da travessia, e se você não souber
o que dizem os sinais ao longo do caminho, terá de produzi-los por sua conta.
(CAMPBELL, 1991, p. 15).
Dessa forma, a familiaridade com a religião, mitos e lendas tornam os jogos mais
atraentes para o público, possibilitando uma rápida identificação do que pode ser esperado
do produto estético. Apesar das surpresas nas narrativas serem bem vindas, na indústria
135
de entretenimento modelos de previsibilidade são desejados, visto que geralmente o
consumidor seleciona filmes e jogos pelos gêneros aos quais eles pertencem, tais como
terror e aventura, em termos mais simples. Busca-se uma identificação com jogador e
personagens, de tal forma que em alguns jogos é possível até mesmo customizar a
aparência da personagem, o chamado avatar. Os jogadores se projetam para essa
representação de tal forma que quando a falham em algum ponto da partida dizem: “Eu
morri!”.

Essas personagens, entretanto, não se mostram completas no início do jogo. Suas origens
raramente são reveladas de maneira cronológica, a fim de levar o jogador à ação o mais
rápido possível, de tal forma que até mesmo os flashbacks são possíveis. Acontece um
esvaziamento do protagonista, de forma que, no primeiro contato com o jogador, apenas
essa casca seja revelada; a narrativa, como diz Bakhtin, arranca seus véus, revelando
novas facetas e preenchendo a personagem com novas características, seguindo a função
transformadora da jornada do herói (1997, p. 27). A jornada se inicia quando o herói perde
controle de sua própria vida, “deslocada do seu curso habitual” (Bakhtin, 1997, p. 126)
pelo chamado à aventura (Campbell, 1997), e a jornada do herói digital é mantida em
uma estrutura fixa de fases ou missões, separadas por inimigos mais fortes entre uma e
outra.

Novas armas são conquistadas derrotando vilões, até a conquista de uma arma definitiva
a fim de derrotar o inimigo final. Essa concepção de um objeto de poder também é
tradicional na literatura e cinema, e dialoga com o conceito greimasiano de objeto-valor
(GREIMAS & GONTANILLE, 1991), que após conseguir obtê-lo o herói tem uma
tomada de consciência e se sente capaz de cumprir seu objetivo final. Esse objeto pode
ser um sabre de luz, uma vara de condão, uma espada mágica, como as clássicas Excalibur
e Vorpal, das novelas de cavalaria e poemas de Lewis Carroll, respectivamente, ou a
espada de Zeus em God of War; pode até mesmo ser uma máscara como em Castlevania:
Lords of Shadows. Por fazerem parte da composição visual dos heróis, visto que o uso de
uma espada ou de uma metralhadora causaria anacronismos, mesmo em um tempo mítico,
as armas e artefatos nos jogos são fundamentais na concepção das personagens.

136
Em “A Personagem no Teatro”, ensaio presente em A Personagem de Ficção, organizado
por Antônio Candido, Décio de Almeida Prado explica que “entendidas como
individualidades, [as personagens] foram inteiramente substituídas, durante séculos, por
máscaras arquétipos cômicos tradicionais” (CANDIDO, 1968, p. 93). De fato, a palavra
personagem deriva do estrusco phersu e do grego prósopon, que significam máscara.
Assim como no teatro, as personagens na literatura e no cinema também são representadas
de forma reduzida: seria impossível contar em sua totalidade a história de vida de alguém,
seus anseios, suas vontades. O que é mostrado, portanto, são as máscaras.

A fim de completar essas personagens, apesar de o jogador tentar sobreviver por todo o
jogo, a morte do protagonista é uma estratégia de roteiro para dar maior dramaticidade
ao final: Kratos morre junto com Zeus no final de God of War 3, Dante é morto no plano
terreno enquanto lutava no inferno e não pode retornar ao mundo dos vivos, e Gabriel se
torna um morto-vivo.

O viés de completude na morte também é explorado por Bakhtin: “Enquanto o homem


está vivo, vive pelo fato de ainda não se ter rematado nem dito a sua última palavra.”
(2011, p. 61). É preciso, porém, que a morte da personagem estabeleça uma relação
funcional com o restante da obra, ou como Émile Durkheim (2000) poderia classificar,
o suicídio altruísta. A função da morte não só se limita a uma perspectiva de sacrifício,
numa discursividade de um ideal romântico, mas também, como Bakhtin também defende
(1997a, p. 35), uma forma de acabamento do herói e da obra em que ele está inserido.

Em O poder do mito (1991, p. 104-136), Joseph Campbell faz uma análise sobre o
sacrifício de herói clássicos e modernos, afirmando que é por meio dele que há a bem-
aventurança, porém o sujeito contemporâneo, influenciado pelo Cristianismo e por novas
posturas filosóficas, não mais vê a morte biológica como a única solução:

O Novo Testamento ensina a morrer para si mesmo, literalmente,


sofrendo a dor da morte para o mundo e seus valores. [...]. Você morre
para a vida em curso, a fim de ingressar em outra, de alguma espécie.
[...] Você não precisa morrer literalmente, fisicamente. Tudo o que tem
a fazer é morrer espiritualmente e renascer para um modo de vida mais
aberto (Ibid., p. 127).
Podemos identificar, também no discurso de Campbell, a intertextualidade na citação ao
texto bíblico. Campbell também se baseia em Jung, que atribuiu alguns mitos a situações
137
simbólicas (JUNG, 2008, p. 58). Considerando os mitos e as grandes obras ocidentais
anteriores ao Iluminismo, percebemos que o homem na ficção de fato é representado
como um realizador das vontades divinas, desde os textos clássicos provindos da tradição
oral.

A evolução do gênero literário épico permitiu também que a narrativa servisse como
instrumento de criação estética assumidamente ficcional, podendo, desta forma,
apresentar representações de novos mundos, e nada mais oportuno para os jogos do que
histórias de heróis. O jogador embarca com a personagem para em busca de sua
identidade, e atribui ao avatar suas próprias características, inclusive de sua
personalidade, visto que além da customização das personagens o jogador pode em alguns
jogos tomar decisões quanto ao rumo da história que possibilitam diferentes finais. Em
Dante’s Inferno o jogador encontra os condenados do poema clássico, como Átila,
Electra, Poncius Pilatos, Tirésias, Francesca e Paolo, dentre outros, e com uma escolha
de botões após ler suas histórias pode decidir se irá perdoá-los ou puni-los. Conhecer as
personagens históricas pode influenciar nas decisões dos jogadores, visto que absolver
Átila, o Huno, e Poncius Pilatos, personagens conhecidos por sua crueldade, pode ser
mais difícil do que condenar Francesca e Paolo, condenados por se amarem. Sendo assim,
o trajeto de vida do jogador também influencia o trajeto das personagens ficcionais.

Campbell faz uma relação entre a jornada e a construção da personalidade:

[...] o herói abandona o ambiente familiar, [...] e chega a um limiar, a


margem de um lago, ou do mar, digamos, onde um monstro do abismo
vem ao seu encontro. [...] Numa história do tipo daquela de Jonas, o
herói é engolido e levado ao abismo, para depois ressuscitar; é uma
variante do tema da morte e ressurreição. A personalidade consciente
entra em contato com uma carga de energia inconsciente que ela não é
capaz de controlar, precisando então passar por toda uma série de
provações e revelações de uma jornada de terror no mar noturno,
enquanto aprende a lidar com esse poder sombrio, para finalmente
emergir, rumo a uma nova vida. (CAMPBELL, 1991, p.160)
Vemos que para Campbell a barriga da baleia funciona como a catábase, onde através da
digestão uma nova energia é criada:

A história de Jonas na barriga da baleia é um exemplo de tema mítico


praticamente universal: o herói é engolido por um peixe e volta, depois,
transformado. [...] É uma descida às trevas. Psicologicamente, a baleia
representa o poder de vida contido no inconsciente. Metaforicamente, a
138
água é o inconsciente, e a criatura na água é a vida ou energia do
inconsciente, que dominou a personalidade consciente e precisa ser
desempossada, superada e controlada. (CAMPBELL, 1991, P. 160)
Além do inferno, grandes organismos são um cenário muito rico e comum nos jogos
eletrônicos. Em God of War 3, a metáfora do ventre da baleia de Campbell e o princípio
de absorção da terra como túmulo e ventre de Bakhtin (1987, p. 19) dialogam: Kratos
percorre o corpo de Gaia, a Mãe-Terra. Menos relacionado com a maternidade, porém
mais relacionado com a catábase está o nível mais profundo de God of War 2, em que se
transita dentro do corpo do titã Atlas, que o fornece a arma e o poder principal para
progredir no jogo. Em Castlevania: Curse of Darkness (2005), o castelo onde os vilões
mais fortes estão é formado de carne e entranhas, e o estágio da gula em Dante’s Inferno
é um estômago gigante.

Para Georg Lukács, “o cenário possui uma significação autônoma, enquanto elemento
destinado a completar o ambiente.” Ele possui um conteúdo simbólico que revela traços
das relações sociais e elementos dramáticos que revelam os aspectos das personagens
(LUKÁCS, 2000, p. 49). O ventre da baleia e o plano mais profundo dos infernos
apresentam partes importantes da transformação do herói, pois é no fundo da gruta que
ele encontra o conhecimento supremo, ou materializado em uma arma ou em um novo
poder adquirido. O isolamento do mundo exterior permite uma autorreflexão, e a
personagem passa a conhecer a si mesma.

O espaço, como afirma Barthes, relaciona-se com outros elementos narrativos, não apenas
de maneira funcional, mas também semântica, ou seja, da ordem dos sentidos gerados
pelo espaço: “Os índices implicam uma atividade de deciframento: trata-se para o leitor
de aprender a conhecer um caráter, uma atmosfera” (BARTHES, 1976, p. 34). É preciso
descer até a profundeza, até os reinos mais sombrios para que se possa buscar a luz.

Considerações finais

A jornada do herói tem por anos servido como inspiração para as mais diversas narrativas
nos mais diversos suportes. No presente artigo verificamos como os modelos de
previsibilidade garantem a sobrevivência do mercado de videogames, e os mundos
subterrâneos garantem o conflito com o desconhecido hostil, que ao mesmo tempo é
familiar.
139
O mundo subterrâneo propicia o encontro com a verdade, seja pelo testemunho das almas,
seja pelo encontro com as divindades destronadas que lá habitam. Como uma semente
plantada, é explorado o potencial de transformação do herói, exacerbado pela obtenção
do objeto modal encontrado nas profundezas.

Apesar de as novas tecnologias em videogames possibilitarem os jogos em mundos


abertos, em que o jogador tem uma ilusão de livre arbítrio na escolha de missões, em
muitos momentos dos jogos ele precisará seguir o roteiro estipulado para completar a
história da personagem. A catábase raramente se aplica a esta configuração, pois serviria
como uma restrição à suposta liberdade do jogador de transitar pelo mundo.

Enquanto os grandes estúdios desenvolvem jogos cuja duração excede dias, pequenas
empresas independentes desenvolvem os chamados jogos indies, que buscam maior
simplicidade na operação de jogo, com narrativa linear e sem presunção de
superproduções.

A retomada de jogos de side-scrollling, isto é, aqueles que a personagem se move da


esquerda para a direita, ou de cima para baixo, e vice-versa, manifesta o desejo de uma
volta às origens dos primeiros jogos de narrativa linear. Novos espaços surgem a cada
geração de consoles, mas a luta contra o mal ainda é, felizmente, o cenário mais
interessante.

Referências bibliográficas

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<http://www.dominiopublico.gov.br/ download/texto/eb00002a.pdf>. Acesso em Out. de 2018.

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BAKHTIN, Mikhail. A cultura na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François


Rabelais. Brasília: Hucitec, 1987.

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BAROLINI, Teodolinda. An Ivy League Professor Weighs. In: Expert View. Entertainment
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140
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DIETZ, Tracy L. An examination of violence and gender role portrayals in video games:
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FERNANDES, R. M. R. Catábase ou descida aos infernos. Alguns exemplos literários. In:


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GREIMAS, A. J.; GONTANILLE, J.. Semiótica das paixões. São Paulo: Ática, 1991.

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RICOEUR, Paul. O conflito das interpretações: ensaios de hermenêutica. Porto: Rés, 1988.

STAR WARS – Episódio V: O império contra-ataca. Direção: George Lucas. Estados Unidos:
Produção Lucasfilm: 1980. 1 DVD (124 min).

141
A Poesia Digital De Wilton Azevedo:
Interpoesia – O início da Escritura Expandida

Maria Lúcia Wochler Pelaes¹

Resumo: Este artigo apresenta um estudo sobre a poesia digital desenvolvida pelo Profº. Dr.
Wilton Azevedo, no âmbito do Laboratório de Humanidades Digitais -LHUDI- da Universidade
Presbiteriana Mackenzie, o qual encontra a sua relevância na utilização de infraestrutura
tecnológica, na capacitação teórica-reflexiva e na produção em equipe dentro do Programa de
Pós-Graduação Stricto Sensu em Educação, Arte e História da Cultura. A poesia digital
estabelece uma nova relação entre os códigos através de registros sonoros, verbais, visuais e
performáticos, proporcionando o desdobramento de imagens e palavras não-lineares e
interdisciplinares, desmaterializando o fazer poético, que apresenta índices semióticos
resultantes da articulação da linguagem em meios de ambiência numa interdependência mútua
entre leitor, poeta e poesia. A Interpoesia de Wilton registra uma obra de características
poéticas, criada em ambiência digital através do uso de dispositivos tecnológicos que objetiva a
ampliação de um código digital como um meio eficaz de produção de conhecimento dentro da
proposta de Humanidades Digitais. O trabalho de Wilton propõe um novo olhar sobre a
ambiência digital no que tange a sua exploração, enquanto plataforma tecnológica relevante
para a criação digital poética, assim como para o registro de acervos históricos e recriação de
ambientes humanos presentes e passados, de tal forma que a sua importância reside na
compreensão e difusão da ambiência digital.

Palavras-chave: Wilton Azevedo. Poética Digital. Humanidades Digitais. Ambiência Digital.


Laboratório Digital.

Abstract: This article presents a study on digital poetry developed by Prof º. Dr. Wilton
Azevedo, within the Digital Humanities Laboratory - LHUDI - of the Universidade
Presbiteriana Mackenzie, which finds its relevance in the use of technological infrastructure, in
the theoretical-reflexive training and in team production within the Stricto Postgraduate
Program Sensu in Education, Art and History of Culture. Digital poetry establishes a new
relationship between codes through sound, verbal, visual and performative registers, providing
the unfolding of non-linear and interdisciplinary images and words, dematerializing poetic
making, which presents semiotic indexes resulting from the articulation of language in media of
ambience in a mutual interdependence between reader, poet and poetry. The Wilton Interpoesia
records a work of poetic characteristics, created in a digital environment through the use of
technological devices that aims at the expansion of a digital code as an effective means of
producing knowledge within the proposal of Digital Humanities. The work of Wilton proposes a
new look at the digital environment regarding its exploitation, as a technological platform
relevant to digital poetic creation, as well as for the registration of historical collections and
recreation of present and past human environments, in such a way that its importance lies in the
understanding and diffusion of the digital environment.

Keywords: Wilton Azevedo. Digital Poetics. Digital Humanities. Digital Ambience. Digital
Laboratory.
_______________________________________________________________
1. Pós-Doutoranda em Educação pela Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo FE-USP. Doutora em
Educação, Arte e História da Cultura pela Universidade Presbiteriana Mackenzie- UPM. Mestre em Educação pela
Universidade São Francisco - USF. Graduada em Pedagogia. Graduada em Artes pela Fundação Armando Álvares
Penteado- FAAP. Docente e Coordenadora de cursos de graduação e pós-graduação. Atua no ensino há 22 anos.
Pesquisadora, Fotógrafa e Artista Plástica. E-mail: wpelaes@uol.com.br

1 Introdução
142
A poesia digital apresenta-se como um conteúdo estético que tem como fundamento o
desenvolvimento da Arte Digital, a partir da exploração dos meios digitais e
dispositivos tecnológicos característicos da ambiência digital. Um dos objetivos deste
estudo consiste na reflexão sobre a obra de Wilton Azevedo (vide figura 01), a partir do
seu trabalho relacionado à criação de obras digitais, especialmente, a Interpoesia,
entendida como uma escritura, que revela um código que pode ser interpretado como
ruído, uma ruptura que produz poesia dentro da ambiência digital, onde o espaço e o
tempo são discursos literários e poéticos.

Figura 01: Foto de Wilton Azevedo.


Fonte: Azevedo, 2013.

Wilton Azevedo (São Paulo- SP, 1956- São Paulo- SP, 2016) foi designer gráfico,
ilustrador, desenhista, programador visual e professor universitário. Sua formação
consistia em: Graduação em Comunicação pela Escola Superior de Propaganda e
Marketing - ESPM em 1980. Mestrado e Doutorado em Linguagem, Comunicação e
Semiótica pela PUC/SP e Pós- Doutorado pela Universidade de Paris, Laboratoire de
Paragraphe, Paris – França.
Foi autor de livros, CD- ROM, entre demais obras, tais como: O Que É Design, pela
Editora Brasiliense, e Os Signos do Design, pela Global Editora. Em 1998 organizou,
editou e foi responsável pelo design gráfico do CD-ROM Interpoesia: poesia hipermídia
interativa, com poesias de sua autoria e Philadelfo Meneses (1960 - 2000). Foi professor

143
do Programa de Pós-graduação Stricto-sensu em Educação, Arte e História da Cultura
da Universidade Presbiteriana Mackenzie. Vide figura 02.

Figura 02: Foto de Wilton Azevedo.


Fonte: Foto Rita Varlesi, 2014.

2 A Interpoesia
A Interpoesia é caracterizada como um código em trânsito, errático e rizomático.
Baseada na construção da poesia digital visual e sonora, a Interpoesia revela-se numa
identidade transitória que se comporta a partir de diferentes referências e que transita
num sistema de redes, identificando imagens que se desdobram em outras, na
articulação de pensamentos em teias. Sua sonoridade se dá, alimentada pelo conceito de
rede. São sons que se articulam às imagens digitais, produzindo uma poesia visual e
fonográfica, na perspectiva do usuário.
Desta forma, a cultura digital gera autonomia, através do pensamento abdutivo,
enquanto um processo caótico, errático e que insurge em um tempo e um espaço
sígnicos. Nessa trajetória de ruptura e inovação há a constituição de signos caógicos, de
tal forma que uma tela de computador bidimensional produz imagens tridimensionais.
A semiótica de Peirce (PEIRCE, 1977, p. 220) propõe a ideia de uma tríade
epistemológica, através da qual o pensamento do ser humano é divido em: indução,
dedução e abdução. Este último desconsidera, segundo Azevedo (2009, p. 102-103), a
cisão entre “[...] erro e acerto, estranhamento e mesmice, abstrato e figurativo”
(AZEVEDO, 2009, p. 103).
Conforme Pelaes e Azevedo (PELAES; AZEVEDO, 2016), cada linguagem tem sua
gramatologia própria, de tal forma que dois algarismos que fundamentam a linguagem
binária do computador, possibilitam infinitas conexões e interpretações. E cada

144
significado gera uma nova leitura, dentro dos sistemas que são códigos que fomentam a
construção de conteúdos não lineares e, portanto, interdisciplinares.
No campo do referente indicial deste estudo, a Interpoesia pode ser caracterizada como
uma “parataxe”, isto é, uma sintaxe não linear dos códigos, tal que a linguagem poética
presente na ambiência digital torna-se um escritura expandida nesse espaço sígnico, de
tal maneira que as imagens geradas na tela do computador “[...] provocaram a tentativa
de recuperar descritivamente o real, o referente, pois o signo não é neutro nem inocente
[...]” (CHALHUB, 2001, p. 13). São digressões da composição poética que permitem a
invenção de um novo “estado da arte” onde as percepções do fruidor criam uma nova
representação da obra vista.
A poesia digital apresenta uma linguagem poética não-linear e que é capaz de produzir
uma nova noção de ritmo, de narrativa e de discurso, de tal forma que: “O pensamento
por imagem não é ilógico, mas alógico. Tem a forma de mosaico, sem relevo com
vários níveis de uma sintaxe” (DEBRAY, 1993, p. 319).
Há um processo de desmaterialização da imagem poética dentro da ambiência digital.
Um “[...] efeito de realidade que é a aptidão da imagem para não parecer como tal. [...]
Uma entidade virtual é efetivamente percebida por um sujeito, mas sem realidade física
correspondente” (DEBRAY, 1993, p. 274- 278).
Desta forma, a poesia digital, frente à diversidade que caracteriza a ambiência digital,
torna-se uma escritura expandida, pois marca um processo que se manifesta em
diferentes direções e que contempla um saber poético intersígnico, cujo o espaço torna-
se cada vez mais interativo e mutável, configurando-se como um fenômeno semiótico
enquanto um instrumento de produção da cultura digital.

3 Humanidades Digitais
Neste sentido, as Humanidades Digitais consistem numa proposta que pode ser
caracterizada segundo algumas características:
a. Espaço: Exploração de dados georeferenciados nas humanidades;
b. Mundos Virtuais: Recriação e exploração de ambientes humanos presentes e
passados;
c. Edição e Preservação Digital: Edições críticas eletrônicas e preservação do
patrimônio;

145
d. Visualização: Construção de interpretações visuais de dados das
humanidades;
e. Ferramentas: Apresentação e discussão de softwares aplicados às
humanidades.

O que são humanidades digitais?


Humanidades Digitais podem ser definidas como uma área que se caracteriza como uma
“transdisciplina” que incorpora os métodos, os dispositivos e as perspectivas heurísticas
das ciências humanas e sociais, ao mesmo tempo em que mobiliza as ferramentas e
perspectivas singulares abertas pela tecnologia digital, conforme o Manifesto das
Humanidades Digitais (cf. referências Humanidades Digitais), composto por ocasião do
ThatCamp 2010. O’Donell (cf. referências Humanidades Digitais), por exemplo, define
“Humanidades Digitais” como uma “atividade interdisciplinar que transfere para os
meios digitais o trabalho tradicional com textos, objetos culturais e outros dados, com
isso estendendo radicalmente seus usos potenciais”.
Existem hoje no mundo 114 centros de pesquisa agrupados sob a denominação
“Humanidades Digitais”, espalhados em 24 países, e envolvendo investimentos da
ordem de 40 milhões de dólares (segundo dados do Centro de Humanidades Digitais do
University College, cf. referências Humanidades Digitais).
Também o número de publicações voltadas às Humanidades Digitais aumentou
exponencialmente na última década, em particular entre 2009 e 2011 – como se pode
examinar, por exemplo, na listagem agrupada pela Universidade de Nova Iorque. A
importância das novas tecnologias se consolida pela possibilidade da digitalização estar
a serviço da manutenção dos acervos da história, produzindo uma nova cultura, a
cultura digital.
As humanidades digitais apresentam um dado nível de relações humanas que presumem
uma representação, uma simulação e uma imersão nos códigos e demandas
contemporâneas. O labirinto digital muda o percurso do outro de passivo e reativo para
interativo, possibilitando uma nova identidade.

4 A Linguagem Digital
O signo fundamental da computação baseia-se na linguagem binária e permite o
desenvolvimento de novas metodologias digitais, sendo capaz de gerar novas leituras e
146
novas literaturas. A Web, por sua vez, é um espaço coletivo e público. Envolve uma
formulação comunitária. Acaba por se constituir numa comunidade eletiva, mesmo que
virtual. Para Deleuze (DELEUZE,1985), somos deserto e estamos povoados por tribos,
por multidões... que se deslocam como nômades dentro de nós. De algum modo, há
uma poética dos afetos, do virtual que nos habita e nos consome, numa inadequação da
razão.
Quanto à linguagem digital, ela baseia-se numa relação que transcende à dualidade do
sujeito e objeto ou de um emissor e um suposto receptor. Mas caminha baseada numa
alteridade de signos e de sujeitos, em enunciados definidos por suas tonalidades
dialógicas. “As tonalidades dialógicas preenchem um enunciado e devemos levá-las em
conta se quisermos compreender até o fim o estilo do enunciado” (BAKHTIN, 2000, p.
317).
A escritura digital cria um modelo de alfabeto digital, através da criação de signos
específicos da ambiência. A linguagem, desta forma, acontece como um dispositivo
ideológico, tal qual a máquina fotográfica, enquanto possibilidade de articulação
sígnica.
Para Bakhtin (2000, p. 333), o teor do objeto do sentido garante a expressividade do
enunciado, de tal forma que se diferenciam duas instâncias de comunicação, numa
complexa dependência entre dois autores: aquele que cria a obra e o sujeito que a recria
na condição de espectador, que pratica o ato de cognição e juízo. “O acontecimento na
vida do texto, seu ser autêntico, sempre sucede na fronteira de duas consciências, de
dois sujeitos” (BAKHTIN, 2000, p. 333).
Para Bakhtin (BAKHTIN, 2000, p. 333), o estenograma do pensamento humano, isto é,
o discurso realizado por códigos na composição de signos, é tecido na relação texto-
contexto, de tal forma que sua singularidade filia-se à subjetividade das consciências
envolvidas com o ato de seleção de cada signo. Desta forma, o signo é um fenômeno
que encontra a sua origem seminal na palavra grega sinie que significa sinal. Da mesma
forma a imagem encontra a sua origem nos códigos advindos da tecnologia, palavra que
contém a techne e a logos, conceito e matéria. A técnica que presume a apropriação do
conceito e, desta forma, da matéria.
A técnica que fundamenta a linguagem digital é a tecnologia da informação e que tem
como um relevante objetivo a criação de um memorial humano, em ambiência digital. A
urgência da memória nos alude à questão da angústia do precário, relativa à condição
147
humana, quanto a sua finitude. Para Debray (DEBRAY,1993) os aparatos tecnológicos
surgem para eternizar o humano, na angústia do precário.
O nascimento da imagem está envolvido com a morte. Mas se a imagem
arcaica jorra dos túmulos é por recusar o nada e para prolongar a vida. As
artes plásticas representam um terror domesticado. Por conseguinte, quanto
mais apagada da vida social estiver a morte, menos viva será a imagem e
menos vital nossa necessidade de imagem (DEBRAY, 1993, p. 20).
A imagem e o registro de eventos passados e atuais, funcionam como uma garantia para
a eternidade das memórias, das histórias e das culturas, de tal forma que a consciência
sobre a não eternidade é pré-histórica.
A própria memória é história e ao mesmo tempo cultura. Le Golf (LE GOLF, 1999, p.
423), refere-se à memória “como propriedade de conservar certas informações”, ligada
às funções psíquicas, através das quais o homem pode “atualizar impressões ou
informações passadas”. Desta forma, o acervo digital atua como aparato de memória,
moderno, uma ciência auxiliar da história, “uma nova epigrafia” (LE GOLF, 1999,
p.431).
Le Golf (LE GOLF, 1999) comenta a grande importância da memória funerária, como
as estelas sacerdotais ou reais egípcias, nas quais existe a presença de uma “narrativa
histórica” que funciona como um arquivo mnemônico dos acontecimentos significativos
da época, assim como a importância dos documentos arquivados nos mais diferentes
suportes (osso, estofo, pele, papiro, pergaminho, papel, entre outros). E com isso a
criação de “instituições de memória”, como arquivos, bibliotecas e museus, permitindo
registros da “memória real”, onde estão narrados feitos que estabelecem “a fronteira
onde a memória se torna história” (LE GOLF, 1999, p.432-434).
A transformação ocorrida nos processos de “memória artificial”, para Le Golf, consiste
na passagem da oralidade à escrita e o aparecimento de “processos mnemotécnicos”,
permitindo a memorização palavra por palavra, que segundo Goody (apud LE GOLF,
1999), trata-se de uma operação efetuada numa certa ordem e que permite
“descontextualizar” e “recontextualizar” um dado verbal, segundo uma “recodificação
linguística” (LE GOLF, 1999, p.435-436).
As relações digitais baseiam-se em códigos específicos, criando um outro nível de
relação conceitual, onde a relação emissor-receptor desaparece, gerando um indivíduo
reativo e interativo que estabelece-se através da comunicação digital, por meio da
alteridade nos veículos digitais.

148
Para Pelaes e Azevedo (PELAES; AZEVEDO, 2016), a leitura das escrituras digitais
provoca igualmente uma comunicação reativa, porém através de um pensar particular
num tempo interior, mas que se projeta nas dimensões e correlações de rede. São
negociações de sentidos e trajetórias percorridas na ambiência, propondo um novo
paradigma conceitual de leitura e escritura poéticas.
Temos uma nova identidade terrena, que a partir de um novo criptograma, comunica-se
em ambientes digitais como o Face e o WhatsApp. Há uma ambição cronotópica, dentro
de um tempo e de um espaço absolutamente virtuais, mas que são referentes de
realidade.
Esta questão é ainda mais contundente quando se leva em conta as novas
formas de subjetividade e identidade que são cultivadas pela cibercultura. O
cibernauta se apresenta como um ser multifacetado e rodeado por
ambiguidades criadas pelos seus vários modos de se deixar ver e construir
identidades nos diferentes ambientes da rede. São multiplicidades com as
quais a pessoa encena e brinca no palco ubíquo das subjetividades
(SANTAELLA, 2013, p. 85- 86, apud CAMARGO, 2015, p. 3).

O homem contemporâneo tem sua identidade digital a partir de uma plataforma de


discussão onde as relações de causa e efeito são questionadas, pois as características da
vida de cada indivíduo não são fatores determinantes da sua “poesis”.
O acervo, dentro do conceito de humanidades digitais, é um registro civilizatório que
acontece através da experiência coletiva da produção de textos digitais e poéticos,
através de trabalhos artísticos on line.
A concepção de site nos conduz à reflexão de que a credibilidade de um código está
diretamente ligada a sua perenidade e durabilidade dos seus conteúdos. Por esta razão,
indagamos se ainda não dispomos de meios para garantir a sua perenidade?
Os próprios códigos digitais revogam inúmeros paradigmas fundados numa forma de
cognição e de conhecimento lineares, transgredindo as formas e criando relações de
pensamento e linguagem que atuam numa dinâmica transversal e em rede, presumindo
conexões e mais conexões que apontam para um infinito de possibilidades.
Há uma integração e ao mesmo tempo uma polarização entre o público e o privado, o
cronológico e a flexibilidade dos tempos cronológico e biológico, de tal forma que as
relações do indivíduo com o mundo e consigo mesmo criaram um fenômeno
contemporâneo e interdisciplinar passível de estudos nas mais diferentes dimensões.
Essas relações são dinâmicas e constituem um telos, uma finalidade.
A digitalização de textos e arquivos baseia-se num código que apresenta uma nova
sintaxe, uma “parasintaxe”, baseada numa semântica pragmática e na ausência do
149
sujeito. Propõe um raciocínio semiótico sobre os códigos fundado num esquema
diacrônico. A ideia central é a alteridade resultante da inter-relação do eu e do outro,
revendo os modelos paradigmáticos de conhecimento: fragmentados, isolados,
hierárquicos e piramidais (MORIN, 2001).
A ambiência digital tem uma grande potencialidade no processo educativo, pois pode
colocar em evidência a multidimensionalidade e a complexidade humanas, através da
hominização que considera a unidualidade, a complexidade cultural, a unidade
(singularidade) e a diversidade, dentro da complexidade dialógica humana (MORIN,
2001).

5 A Poesia Hipermídia Interativa (Interpoesia – O início da escritura expandida –


AZEVEDO, 2009- anotações)
Segundo Azevedo (2009), a poética é subversiva, porque subverte o olhar, as formas, os
sons, as imagens... ousando criar algo novo, provocando uma estética interativa que
objetiva mudar o percurso do outro.
O que é poético é a expansão dos signos. Fazer poesia digital é construir ambientes –
ambiência- que em mudança constante, subvertem as fórmulas e criam e se recriam a
partir de novas e inovadoras referências.
Deste conceito nasceu a Poesia Hipermídia Interativa, possibilitando uma produção
poética no meio digital, que provocou sucessivas mudanças que envolvem uma nova
leitura cognitiva, mudando a natureza de sua sintaxe, para uma parasintaxe.
Há, desta forma, uma salto na cognição comunicativa e interativa, de analógica para
digital, propondo narrativas e registros produzidos pela tecnologia, que podem ser
verbais, sonoros, imagéticos e em forma de escritura expandida, permitindo a
disseminação do conhecimento poético.
Hoje usamos o termo navegar no sistema hipermidiático, pois podemos adentrar num
labirinto narrativo, para executar a ação do clicar. “Trata-se de uma nova etapa em que
códigos matriciais isolados (verbal, visual e sonoro), passem, a partir de softwares
atuais, a explorar novas formas de se fazer perceber como linguagem” (AZEVEDO,
2009, p. 13).
A miscigenação de linguagens, num processo de simbiose, tornou os meios digitais um
lugar possível para a manifestação de uma nova cultura de ambiência. Há uma
possibilidade de flutuação e um viajar num “espaço de sentido” que “[...] muda o

150
referencial de arbitrariedade deste ‘vir a ser’ histórico como forma de registro”
(MANGUEL, 1997, apud AZEVEDO, 2009, p. 16- 34).
“Os acessos são paratáticos, não-lineares e temporalizados pelo movimento do nosso
olhar, dentro de uma nova relação matricial” (AZEVEDO, 2009, p. 42).
A migração virtual por uma escritura em trânsito cria uma projeção histórica para as
linguagens dos suportes digitais através de conteúdos simbólicos em telas imaginéticas.
“O corpo-imagem não apenas lê, mas se apropria em forma de imersão, explorando
estes espaços” (LOFFER, 1994, apud AZEVEDO, 2009, p. 51).

6 A poesia digital DeZenLeio: uma narrativa poética inspirada nas imagens da


antiga Maternidade São Paulo.
A obra DeZenLeio apresenta-se como um vídeo-performance, criado a partir dos
registros fotográficos da antiga Maternidade São Paulo, numa trama poética tecida com
imagens animadas em ambiência digital, acrescidas de uma prosa de autoria do Wilton
Azevedo, professor do Laboratório de Humanidades Digitais e coordenador do projeto.
Essa experiência poética nasceu das inquietações de Wilton Azevedo, como resultado
de uma das suas produções artísticas dentro de uma narrativa poética- digital, que é
apresentada no vídeo-performance, como segue na figura 03.

Figura 03: Imagem do DeZenLeio.


Fonte: Foto Alan Azevedo -2015.

Para Azevedo (AZEVEDO, 2009, p. 105): “A poesia digital [...] retoma a ritualização
da linguagem [...]”. De tal forma que “[...] a enunciação não está no discurso, a narrativa
não conta histórias. O que é poético é a expansão dos signos. Fazer poesia digital é
construir ambientes- ambiência- em mutação constante”. Para o autor, essa ação
consolida-se como uma experiência que transcende à rima verbal e à imagem,
caracterizando-se como um objeto poético que apresenta um ritmo sonoro e plástico,
que poderá ser harmônico ou não, dentro da ambiência digital.
151
O vídeo-performance é disponibilizado no YouTube através do endereço eletrônico
https://www.youtube.com/watch?v=aaXAd0zoodc&feature=share. O objetivo foi a
socialização da obra na Web para internautas extra-pares e interessados em produções
de arte digital.
No dia 20 de junho de 2015, às 18h, o LHUDI (Laboratório de Humanidades Digitais),
a convite da Visualfarm, apresentou no Anhangabaú durante a Virada Cultural de 2015,
a obra De Zen Leio, disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=GlbiJen6tRY&t=93s, como é possível verificar nas
figuras 04 e 05.

Figuras 04 e 05: Imagens do DeZenLeio projetadas nas paredes dos prédios do Anhangabaú.
Fonte: Fotos de Simone Mina.

7 Considerações Finais
Verificou-se, a partir da produção de Wilton Azevedo, que a ambiência digital
caracteriza um “onde”, no qual a fronteira é questionada como tal, constituindo um
espaço de tensão e flexibilidade que possibilita a criação de um projeto que objetiva o
apagamento da linha divisória entre os diversos arquivamentos e as diversas línguas e
culturas. Desta forma, através da linguagem digital, abrimos esse campo de diálogo
ilimitado entre pessoas, culturas e processos, viajando através dos diversos tempos e
espaços possíveis, em busca de linguagens poéticas que aparentemente ressurgem
através de códigos construídos na bidimensionalidade escultórica de nossas telas.
Pode-se concluir que a poética digital desenvolvida a partir das criações e revelações de
Azevedo, é, em sua essência, poesia em trânsito, porque subverte o olhar e o entorno
espacial, imagético e sonoro, criando novas formas de interação, resultantes das
trajetórias dos sujeitos que as experimenta. Assim, construir espaços na linguagem
virtual, experimentando as narrativas da poesia digital, permite ao poeta dialogar com o
contemporâneo.

152
O processo de produção dentro do conceito de Humanidades Digitais, proporciona uma
imersão em diferentes áreas, através de uma plataforma interdisciplinar, que visa a
construção de novas formas de conhecimento no ambiente virtual, através de uma
abordagem metodológica que propõe um novo olhar sobre a ambiência digital no que
tange a sua exploração, enquanto plataforma tecnológica relevante para a criação digital
poética, assim como para o registro de acervos históricos e recriação de ambientes
humanos presentes e passados, de tal forma que a sua importância reside na
compreensão e difusão da ambiência digital.
Referências
AZEVEDO, Wilton. Interpoesia: o início da escritura expandida. 2009. Tese (Pós-
Doutorado). Universidade de Paris, Laboratoire de Paragraphe, Paris – França.
BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. 3. ed. São Paulo: Martins Fontes,
2000.
CAMARGO, Eduardo. A persona estendida e a internet das coisas. Publicado em: 28
fev. 2015. Disponível em: <https://transobjeto.wordpress.com/2015/02/28/
apersonaestendidaeainternetdascoisas/> Acesso em: 18 abr. 2015.
CHALHUB, Samira. Funções da linguagem. 10. ed. São Paulo; Ática, 2001.
COSTA, Lígia M. da. A poética de Aristóteles: mímese e verossimilhança. São Paulo:
Ática, 2006.
DEBRAY, Régis. Vida e morte da imagem: uma história do olhar no ocidente.
Petrópolis-RJ: Vozes, 1993.
DELEUZE, Gilles. Cinema 1: a imagem- movimento. São Paulo: Brasiliense, 1985.
HUMANIDADES Digitais. Disponível em: <http://humanidadesdigitais.org>
Acesso em: 10 maio 2018.
LE GOLF. Memória e História. São Paulo: Papirus, 1999.
MORIN, Edgar. Os sete saberes necessários à educação do futuro. 4. ed. São Paulo:
Cortez; Brasília, DF: UNESCO, 2001.
O VÍDEO-performance De Zen Leio. Disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=aaXAd0zoodc&feature=share>.
PELAES, Maria Lúcia Wochler; AZEVEDO, Wilton Luiz de. Artigo: A Criação de um
vídeo-performance – O DeZenLeio- A Virtude do Passado: uma Produção do
Laboratório de Humanidades Digitais do Mackenzie – LHUDI (p. 138). In: RENÓ,
Denis Porto et al (Orgs.). Ficção e documentário: memória e transformação social.
Rosário- Argentina: UNR Editora. Editorial de La Universidad Nacional de Rosário,
2016 (Livro digital). 694p. Disponível em: < https://drive.google.com/…/0B0p-
tvqLOAUdZXlBZjhncnBSSUk/view> ISBN: 978-987-702-195-0
PIERCE, Charles Sanders. Semiótica. São Paulo: Perspectiva, 1977.
VIRADA Cultural. Obra De Zen Leio. Disponível em:
<https://www.youtube.com/watch?v=GlbiJen6tRY&t=93s>.
153
A Nostalgia na Obra de Wes Anderson: A Capacidade Crítica do Olhar
Nostálgico na Contemporaneidade

Nostalgia in Wes Anderson’s Oeuvre: The Critical Faculty of Nostalgic Vision


in Contemporaneity

João Victor Nobrega1

Resumo: Em meio à dissolução das narrativas e a fragmentação das certezas que se


assiste na contemporaneidade, a produção estética de nossa época se vê obrigada a
reciclar elementos do passado e exagerar seu invólucro, como observa Omar Calabrese
em A Idade Neobarroca (1989). A estética artesanal e nostálgica de Wes Anderson
enquadra-se especialmente nessas tendências, tendo alcançado sua expressão máxima
no filme O Grande Hotel Budapeste (2014), cujas estratégias estéticas e narrativas serão
analisadas no presente artigo. O filme em questão retoma o entre-guerras para narrar um
mundo que foi acachapado pelas Guerras Mundiais, cujas tristes heranças chegam até
nós. Para lançar luz sobre o cineasta, lançaremos mão de Walter Benjamin que, através
das figuras do cronista e do colecionador e da criança, ressignifica a nostalgia e o
sentimento da perda como postura potencialmente crítica em relação ao mundo.
Buscaremos desvendar essa potencialidade crítica no cinema de Wes Anderson.
Palavras-chave: Contemporaneidade; nostalgia; neobarroco; Wes Anderson

Abstract: Whereas the dissolution of narratives and the fragmentation of certainties to


which we watch in contemporaneity, the aesthetic production of our age found itself
obligated to recycle old imagery from the past and exaggerate its casing, as observes
Omar Clabrese in Neo Baroque: A Sign Of The Times (1989). Wes Anderson’s
nostalgic and handcrafted aesthetics is a full expression of these bents, achieving its
maximum expression in The Grand Budapest Hotel (2014), which is going to be
analyzed in its narratives and aesthetics aspects during the article. This movie
recaptures the between-wars period to tell about a world that was wrecked by the two
World Wars, which the sad heritages reach us. Intending to clarify Anderson’s cinema,
we will resort to Walter Benjamin who, through the figures of the chronist, the child and
the collector, resignifies nostalgia and the sentiment of loss as a potentially critical
posture towards the world. We shall try to unveil this critical faculty in Wes Anderson’s
cinema.
Key words: Contemporaneity; nostalgia; neo baroque; Wes Anderson

1
João Victor Nobrega é graduado em Cinema pela FACOM/FAAP, tendo realizado o presente
artigo através do programa de iniciação científica da faculdade, sob orientação da professora doutora
Moira Toledo. João também roteirizou e dirigiu três curtas-metragens e trabalha com crítica de cinema.

155
Introdução

Frequentemente acusa-se Wes Anderson de ser meramente um cineasta da forma e da


nostalgia. Ele seria apenas um "esteta obsessivo" que habita uma infância artificial,
reconstruída pelo seu cinema excêntrico. O que este artigo busca demonstrar é que o
cinema de Anderson é capaz de, através de sua narrativa e de sua estética, tecer um
conteúdo profundo que adquire, inclusive, dimensões políticas. Para tanto, gostaríamos
de lançar mão do filósofo alemão Walter Benjamin que reinterpreta a nostalgia através
de uma sensibilidade fragmentária – com fortes ecos na contemporaneidade - atribuindo
à nostalgia uma dimensão política importante. Veremos isso aplicado especialmente ao
filme O Grande Hotel Budapeste (2014).

O Gosto Neobarroco

Muitos nomes se têm dado à contemporaneidade, mas parece ser consensual entre os
estudiosos que nossa época é marcada por uma instabilidade epistêmica advinda da
fragmentação das grandes certezas intelectuais e religiosas que o humano um dia
cultivou, isto é, da profanação de todas as crenças e do esvaziamento dos significados
antes dados (CONNOR, 2000; 33). Vendo nessa instabilidade um eco à cisão que o
homem barroco começou a viver entre religiosidade e secularidade, o semiólogo Omar
Calabrese lançou, em 1989, o livro A Idade Neobarroca, que busca traçar, em linhas
gerais, o gosto estético (isto é, certa predileção por determinadas manifestações
sensíveis em detrimento de outras, sobretudo no campo da arte e da comunicação) do
que à época se chamava de Pós-Modernidade. Parece-nos útil partir de algumas das
categorias relativas à manifestação de tal gosto expostas neste livro para fazer uma
apreciação mais geral sobre as estratégias estéticas e narrativas empreendidas por Wes
Anderson em seus filmes.

Repetição, Excesso, Excentricidade, Detalhe e Fragmento:

Dentre as características dos produtos neobarrocos levantadas por Calabrese, a repetição


parece ser a primeira a manifestar-se na obra de Wes Anderson. O excesso de produtos
estéticos já realizados (excesso de informação) em nosso tempo parece impedir a
produção do novo, não há nada que não esteja previsto, de maneira que só é possível
156
testemunhar a recorrência do já visto ad infinitum. Entretanto este elemento
aparentemente negativo apresenta uma poética própria, que consiste na remodelação do
já dado.

Significativamente, Anderson, como alguns outros cineastas contemporâneos (pode-se


citar Jeunet, Tarantino e Lynch), busca criar um universo muito próprio regido por
regras intrínsecas. Anderson, em particular, cria uma miniaturização do mundo que
conhecemos sob uma aura infantil, orquestrado por coreografias teatrais. Isto somado a
seu rigor formal excessivo e suas paletas de cores constantes e gritantes por todo o
filme, resulta em um conjunto de elementos de linguagem tão proeminentes e
recorrentes na obra do cineasta, que formam uma estrutura de mise-en-scène facilmente
reconhecível, precisamente pela repetição. O que existe são pequenas variações que se
conformam às necessidades de cada narrativa. Entretanto, mesmos as narrativas
correspondem a uma mesma estrutura: personagens excêntricos em busca de
autoafirmação que acabam por se envolver em uma aventura farsesca e mirabolante. A
estrutura farsesca empresta à narrativa um ritmo sempre crescente, de maneira que a
necessidade da surpresa, que gera as variações necessárias para manter o interesse, é
fornecida por sucessivas reviravoltas.

O prazer da recepção neobarroca está diretamente ligado ao deleite do reconhecimento


de estruturas já conhecidas, fenômeno particularmente observável nas crianças e que
testemunha a constatação continuamente renovada do entendimento de uma significação
num mundo onde tudo já foi significado e, portanto, onde o significado foi praticamente
abolido. O outro lado desta saturação de significado é precisamente o tédio, a repetição
gera prazer até determinado ponto. Ultrapassando este ponto, faz-se necessário criar
estruturas mínimas de diferenciação que mantenham o reconhecível, mas que gerem a
novidade. As pequenas variações e surpresas contidas no percurso servem como limite
para a distinção entre uma mensagem e outra. A convergência do gosto pela repetição
com a necessidade do ritmo frenético demanda certo virtuosismo narrativo, que
evidentemente tem equivalentes estéticos. Aqui, Anderson subverte os usuais efeitos
especiais digitalmente criados e utiliza-se das complexas coreografias capturadas em
longos takes de maneira teatral, além de recorrer a técnicas artesanais de animação e
miniaturas, fazendo uma espécie de apologia das tecnologias analógicas, que usadas em

157
prol de narrativas farsescas, à maneira dos velhos contos infantis, aponta a uma busca
por tradição que será examinada detidamente em seção posterior. Ora, esta necessidade
de virtuosismo faz parte do gosto pelos limiares, pelos limites e pelos excessos.
Retomemos uma breve diferença delineada por Calabrese:

Tomemos a terminação latina limen: significa umbral, por exemplo, o


de uma porta, e define perfeitamente a oposição entre interno e
externo, aberto e fechado. (...). Entretanto, mais clara é a imagem de
excesso, do latim ex-cedere, ir mais além, o excesso manifesta a
superação de um limite visto como caminho de saída para um sistema
fechado. (CALABRESE, 2005; 66, tradução nossa)

A partir desta diferenciação feita entre excesso e limite, Calabrese demonstra como o
gosto neobarroco torna difusa a separação entre os dois termos:

O gosto neobarroco parece promover um procedimento duplo ou


misto (...). Por exemplo: usa o limite fazendo-o parecer excesso,
porque as saídas das fronteiras ocorrem apenas no plano formal; ou
bem, usa o excesso, mas nomeia-o como limite, para fazer aceitável a
revolução apenas no plano do conteúdo; ou, enfim, faz indistinguível e
confusa uma operação no limite e por excesso. (CALABRESE, 2005;
83, tradução nossa).

Isto parece se aplicar perfeitamente a Anderson. Como se viu, o autor norte-americano


trabalha com situações limite em sua própria linguagem, sendo ela mesma como uma
embalagem para seus filmes, enaltecendo pelo exagero sua unicidade, tentando
funcionar como assinatura de si mesma. Esta situação, entretanto, parece não ultrapassar
o umbral: está trabalhando no limite do visualmente agradável, mas não cai no
visualmente arriscado. De maneira semelhante, a noção de tempo nos filmes de
Anderson é levada ao limite do reconhecimento. As épocas se chocam, por em exemplo
em Os Excêntricos Tenenbaums, os anos 1960, 1980, e 2000 parecem convergir nas
cenas. Em O Grande Hotel Budapeste as datas bem definidas se chocam com a
linguagem hiper-real tipicamente contemporânea, numa técnica bem ao gosto do
pastiche pós-moderno. O limite do reconhecimento das épocas está dado, não superado.
Em Calabrese podemos encontrar ainda outro exemplo que ilustra a recursividade do
excesso:
158
Tomemos como exemplo Keith Haring. Certas obras suas são
acumulações excessivas de cor e de incrustações de verniz, mas não é
o gesto informal – político – de algum distante parente da Action
Painting (...). O que desapareceu em tais experiências é talvez,
justamente o referencialismo das temáticas representadas, a
importância do conteúdo. O resultado é: uma busca substancialmente
decorativa (...). O excesso de que se fala torna-se, deste modo, de
excesso representado em, também, excesso de representação, isto é,
uma espécie de inchaço no âmbito da forma. (CALABRESE, 2005;
78, tradução nossa).

O trecho poderia referir-se diretamente ao cinema de Wes Anderson (figuras 1 e 2). De


fato, as cores de seu cinema são gritantes, e com frequência acusa-se o diretor de ser um
mero esteta com obsessões mirabolantes, como padrões e motivos que se espalham
pelos cenários (evocando novamente o tema da repetição). No entanto, o autor utiliza o
excesso de cores como referência aos livros infantis e ao mundo fantástico neles
contidos, criando a aura infantil que é característica de seu universo, ultrapassando o
que seria um mero gesto esteticista. Aqui, a forma enuncia um conteúdo.

Figura 1: Untitled No. 10, Keith Hering, 1988

Figura 2: O Grande Hotel Budapeste (2014), Wes Anderson

Fonte: Haring Foundation Fonte: Paper Magazine (2013)

O gesto de exceder, ou de pelo menos chegar ao limiar, está ligado a outro elemento
mais específico: a excentricidade. Etimologicamente, “excêntrico” significa estar fora

159
do centro, e, portanto, mais próximo das bordas, ou seja, dos limites. Os personagens de
Anderson parecem estar fora do centro de seus mundos precisamente por serem
manifestações de dois deslocamentos distintos, ou, às vezes, de ambos
simultaneamente: um deslocamento no tempo e outro no núcleo familiar. Sem exceção,
os protagonistas de Anderson são personagens tentando se encaixar, por cultivarem
maneiras antigas, ou por precisarem provar algum valor ante a família, ou ainda sendo
desgarrados de suas famílias originais, num comportamento tipicamente adolescente
que em geral é incapaz abandonar suas características inatas, como se estivessem
fadados à autenticidade, por exemplo: Max Fischer, de Rushmore (1998), que se sente
impelido a provar sua capacidade como produtor teatral, apesar de seu fracasso escolar;
ou o Senhor Raposo, de O Fantástico Senhor Raposo (2009), que luta por manter o
equilíbrio entre sua civilidade, seu núcleo familiar, e seu ímpeto animal de roubar
galinhas, ao qual não renuncia.

Muitos dos personagens acabam por encontrarem-se num núcleo familiar alternativo e
marginal (equipe de cinema, trupe teatral, amor proibido, etc). O realojamento de seus
personagens em núcleos alternativos coincide com seus planos excessivamente
centralizados, que justamente por esse excesso, acabam por trabalhar no limite, na
excentricidade. A instabilidade sistêmica da Idade Neobarroca parece estar submetida
constantemente a uma tentativa de restauração em Anderson, e isto gera uma tensão
cujo efeito principal é um paradoxo. Esta simetria absoluta, que é também elemento de
virtuosismo, possui precedente muito significativo na era barroca. Recorramos a Walter
Benjamin (1984) em Origem do Drama Barroco Alemão, que destina parte desta obra à
figura do príncipe. Segundo Benjamin, o príncipe é a figura que sintetiza as tensões do
homem barroco, isto é, as tensões entre a religião e a secularização. O príncipe é
governante das criaturas de Deus, mas ele mesmo é criatura. Assim, no processo de
secularização, o príncipe se torna figura divinizada, redentora, pois substitui o papel de
regente da humanidade, até então concentrado na figura de Deus. Há um trecho em que
o autor dá especial atenção ao drama barroco espanhol bastante elucidativo:

Pois o drama espanhol (...) consegue resolver os conflitos resultantes de


um estado de Criação destituído de graça, cuja representação em
miniatura é a corte de um monarca que detém, em sua forma
secularizada, o poder de redimir. (BENJAMIN, 1984; 104)
160
Este poder de remissão é o poder de manter a ordem no Estado e de organizar a vida dos
homens que perderam uma de suas primeiras grandes certezas: Deus. Entretanto, o
príncipe em si vive um deslocamento quando tem consciência de sua condição de
criatura, mas mantém a ilusão de sua natureza divina perante si e perante os governados.
Embora se tenha em mente com mais frequência o caráter descentralizado e
desestabilizado da arte barroca - e neobarroca -, examinaremos o movimento contrário
na arquitetura. A arquitetura barroca, em sua opulência e exagero, procurava manifestar
a grandiosidade do soberano. Tomemos o Palácio de Versalhes (figura 3), sua
construção é o atestado de poder de Luís XIV, vingando-se da Paris que expulsara sua
família durante revoltas popualres, ao transferir a sede real para Versalhes, uma cidade
até então secundária. Mas mais do que isso, Luís XIV mandou construir um
microcosmo para a nobreza, uma cidade autossuficiente, em que o modelo de jardim
axial (assentado na simetria arquitetônica), com rebuscadas formas decorativas,
afirmava a máxima capacidade criadora do humano, equiparando-a à de Deus.

Figura 3: Fotografia por satélite do Castelo de Versalhes

Fonte: Telegraph

Anderson restaura a ordem em seu mundo, como o príncipe restaura a ordem em seu
reino. O excesso de centralização e a simetria presentes em todos os quadros de
Anderson demonstram-se, então, não menos barrocos que suas outras características,
como se tenderia a pensar se recorrêssemos apenas à pintura. Quando Calabrese fala de
um procedimento misto na operação do excesso, parece ser justamente disto que ele está
falando, o excesso aparece aqui sob o signo da harmonia. A tentativa é de retomar o
controle de um self que está demasiadamente aberto em sua constituição, é necessário

161
achar algum fechamento no interior deste sistema radicalmente aberto para não incorrer
em total instabilidade (CONNOR, 2000; 43). O cinema de Anderson tenta remontar sua
identidade, assim como reafirmar sua capacidade de controle, de modo que mesmo seus
planos são constituídos de modo a enunciar “estou aqui agora”. Talvez o elemento mais
proeminente desta auto enunciação seja o uso do detalhe, desde a câmera que investiga
espaços e ações, até os closes nos documentos. Segundo Calabrese existe uma espécie
de oposição entre fragmento e detalhe. O fragmento existe como ocultação do todo, ele
é a parte desgarrada, fruto de uma ruptura, de uma fratura. O detalhe é um recorte do
objeto, mas está sempre remetendo ao todo, ele não é fruto de uma ruptura, mas de um
direcionamento do olhar. O ato de detalhar pressupõe que o objeto detalhado possui um
estado anterior, isto é, detalhar é um ato que chama atenção sobre a própria construção
do discurso. Vejamos a seguinte consideração que faz Calabrese:

[...] quando vamos ao cinema, ou assistimos à televisão, vemos o uso


do zoom: a aparição de um espaço de enunciação e de um sujeito
manifestado por um olhar, em processo de aproximação, é evidente;
algo similar ocorre quando, nestes mesmos casos, utiliza-se a câmera
lenta: também aqui, de improviso, percebemos a introdução de um
sujeito-olhar que diminui a velocidade da visão e, além disso, nos
damos conta da existência de um tempo da enunciação.
(CALABRESE, 1989; 88, tradução nossa).

Não à toa Anderson utiliza-se destes dois efeitos de maneira insistente, investigando
seus espaços aconchegantes, ou diminuindo a velocidade de suas cenas, não só como
recurso estilístico, mas também como expressão de sua emotividade esperançosa, mas
profundamente melancólica. Tomemos dois exemplos destes recursos: o zoom de
Anderson é na verdade um movimento que revela e oculta seu mundo miniatural, como
ao final da abertura de Moonrise Kingdom (2012) em que um zoom out nos revela a casa
de bonecas em que mora Suzy, e a idílica ilha na qual ela está inserida. Já o final de A
Vida Marinha com Steve Zissou (2007) mostra o velho Zissou, figura inspirada no
documentarista Jacques Cousteau, olhando com desesperança para a câmera e
carregando um menino em seus ombros. Mesmo que o epílogo, em que se vê a equipe
de cinema de Zissou caminhando junta, reforce a noção de uma “segunda família”, a
perda, e mais, a morte, sintetizada na sequência anterior na figura do tubarão-jaguar

162
(criatura das profundezas do oceano que assassinou o melhor amigo de Steve)
apresenta-se como o grande espetáculo do oceano. O final mostra ter um profundo
significado sobre a fatalidade da vida: o jovem é sustentado pela melancolia
irremediável do velho, algo que nos é apresentada na velocidade reduzida dos
momentos tristes. Aqui se pode manifestar a transformação do mundo fraturado numa
evidenciação minuciosa, detalhada, da experiência da perda.

A partir destes exemplos, é possível dizer que Anderson guarda uma relação bastante
peculiar com o uso do detalhe e do fragmento. Com este último ele guarda relação quase
poética, o cineasta usa-o como matéria-prima, ele recolhe os fragmentos de um mundo
fraturado (o moderno/contemporâneo) para que estes constituam sua obra. Já o primeiro
é a parte de sua produção e possui cunho muito mais técnico, Anderson como que
reconstitui as figuras originais fragmentadas, miniaturiza-as, e as investiga em seus mais
particulares detalhes e recantos. Esta postura é responsável por evocar a figura mais
importante do cinema de Anderson e que, no entanto, nunca é explicitamente retratada:
o colecionador, a quem se dedicará uma seção exclusiva.

O Processo de Miniaturização

A miniaturização é uma forma de construction en abîme (literalmente, construção em


abismo). O termo vem da heráldica, que era a arte descrever brasões, e se referia a um
brasão de armas que continha inscrito em si, uma versão menor dele mesmo.
Transportado por André Gide para o reino da construção artística, o termo passou a
referir-se também a intertextualidade em geral. De acordo com Iampolski:

Lucien Dallenbach notou a similaridade entre a construção em abismo


e o fenômeno que Claude Lévi-Strauss nomeou "modelo em pequena
escala" [le reduit model]. O que Claude Lévi-Strauss tinha em mente
era a reprodução de um objeto existente numa escala menor, como por
exemplo na pintura. Esta mudança de proporção possui consequências
semânticas: dá à cópia um aspecto artesanal, e confere ao produtor a
experiência de manipular um objeto, compensando "a renúncia às
dimensões sensoriais do objeto na aquisição de dimensões de
inteligibilidade. (IAMPOLSKI, 1998; 36-37, tradução nossa)

163
Passar das dimensões sensoriais às dimensões inteligíveis é passar da percepção do
objeto como volume e textura para a compreensão abstrata do objeto enquanto
representação. Assim como as figuras no brasão, o texto (aqui entendido como qualquer
forma de representação) que cita outro texto guarda com o citado alguma semelhança,
embora se tenha estruturado a mensagem em cada um deles de modo diferente. O citado
aparece necessariamente em escala reduzida, pois é fragmento de um texto maior. Deste
modo, o diferente aparece como igual e o igual como diferente, assim como o sonho faz
surgir os aspectos inconscientes do Eu sob a forma do Outro:

Repetição aqui imita a repetição compulsiva gerada por um trauma


reprimido pelo inconsciente. Essas repetições não apenas reproduzem
certo significado: elas apontam para a presença de certo núcleo
semântico cuja significância é consistentemente representada como
outro, diferente, misterioso. A repetição então, atesta e nega
simultaneamente que o significado é unívoco. (IAMPOLSKI, 1998;
38, tradução nossa)

Wes Anderson não quer recriar, como um Lynch, o insólito dos sonhos, mas ainda
assim confere algo de onírico a seu universo. O onírico de Anderson está contido em
seus interiores e exteriores. Mas, e agora vemos mais uma semelhança com o sonho, os
exteriores do cineasta são sempre o interior, pois seu universo é o da coleção, cujo
trauma é o da perda do mundo do objeto salvo. Tudo no mundo andersoniano está
dissimulado. O espaço e o tempo de Anderson estão à parte do mundo. Por isso o
processo de citações de Anderson é ainda qualitativamente diferente do de outros
cineastas. Tarantino, por exemplo, põe a claro as citações em seus filmes, elas são um
dos principais atrativos de sua obra, pois ele retira o mote e a linguagem de seus filmes
dos elementos citados: quadrinhos, mangás, westerns. Neste caso, reconhecer ou não o
elemento citado depende exclusivamente da posse do repertório evocado pelo autor.
Wes Anderson dissimula suas citações até o limite do não reconhecimento. Seu
procedimento artesanal é recriação quase integral do texto citado. Pode-se ver isto na
citação a músicas folclóricas em seus filmes, que se inspiram em temas originais da
cultura popular, mas utilizam-se da estrutura e dos arranjos destas combinados com
elementos do jazz e do rock dos anos 60 (aqui se retoma a indefinição do tempo
retratado). Toda a trilha sonora de O Grande Hotel Budapeste é releitura de temas de
164
danças russas, e parte da trilha de O Fantástico Senhor Raposo é baseada em canções
típicas do sul dos Estados Unidos, por exemplo. Existem, é claro, exceções para este
ocultamento, como a referência explícita a Jacques Cousteau em A Vida Marinha (...), a
adaptação do conto de Roald Dahl em O Fantástico (...), ou a inspiração denunciada em
Stefan Zweig em O Grande Hotel (...).

O tipo de citação dissimulada que a miniatura permite, faz com que Anderson possa
tecer comentários bastante específicos. Em O Fantástico (...), as raposas são muito mais
humanos miniaturizados do que propriamente raposas. De maneira similar, as crianças
de Wes parecem, em geral, adultos miniaturizados. A citação do elemento humano no
animal, e do elemento adulto na infância, visa desvendar uma semelhança entre os dois
polos: a arrogância do adulto quer dissimular sua imaturidade de criança, e a civilidade
do humano quer dissimular seus impulsos animais. Ao miniaturizar o mundo, Anderson
transforma seus filmes num tubo de ensaio em que pode examinar os ridículos e as
tragédias, grandes e pequenas, de seus personagens.

A Tessitura da Narrativa

Walter Benjamin construiu uma das mais importantes críticas à noção clássica de
progresso, que via a história como uma contínua evolução rumo ao auge do
desenvolvimento. Benjamin opõe a essa visão a noção de história aberta, e disso decorre
que o progresso não está dado, mas tem de ser construído a cada instante, e essa
construção só poderá ser feita sobre os escombros do passado e se mantiver com relação
a ele, uma postura tanto nostálgica como crítica. Assim, Benjamin procura, em suas
Teses Sobre O Conceito de História (1987a; 222), romper com o historicismo e sua total
identificação com o objeto estudado, sua absoluta empatia pela grande narrativa
histórica dos vencedores, vista como a história do progresso humano. Para reconstituir a
História, sem fazer distinção entre vencedores e derrotados, grandes e pequenos,
Benjamin, na Tese 3, busca a forma de contar do cronista, que remonta à grande
tradição oral das sociedades pré-modernas.

A opção por analisar O Grande Hotel Budapeste deve-se ao fato de que o diálogo entre
Benjamin e Anderson se dá de forma mais plena nesta obra. Como se viu, a estética de
Anderson faz uma grande apologia aos ofícios, ao artesanato e à arte de contar histórias,

165
resgatando o modo de organização das sociedades tradicionais. A partir destes traços,
discorreremos sobre a tessitura da narrativa de O Grande Hotel Budapeste.

O filme recorre a diversos prelúdios: primeiro uma moça empunha o livro que conta a
história do hotel enquanto presta homenagem à memória do autor, depois conhecemos o
autor do livro já envelhecido (em 1985), daí vamos ao autor ainda jovem, hospedado no
hotel e vindo a conhecer a história do lugar (em 1964). É só a partir daí que podemos
acessar a trama principal (em 1932): Zero Moustafa é um refugiado que, originário de
um país árabe no qual se travava uma guerra civil, foi conseguir a vida na Europa e
ingressa como mensageiro n’O Grande Hotel Budapeste, onde conhece seu tutor, o
concierge M. Gustave. M. Gustave, homem cheio de trejeitos aristocráticos, que procura
zelar pelo decoro (mas sempre incorre na grosseria, soltando palavrões e comparando
mulheres a cortes de carne), envolve-se com suas hóspedes de idade, e quando uma
delas morre, Madame Desgoffe Und Traxis, ele acaba por herdar o quadro mais valioso
que a velha detinha. Em meio à disputa por herança travada pela vasta família da
falecida, Zero e Gustave decidem roubar o quadro. O roubo faz com que a polícia passe
a investigar Gustave, além de desencadear a ira dos filhos da idosa, que, liderados pelo
irmão fascista, passam a perseguir Gustave e seu discípulo. Essa riqueza de detalhes
introdutórios (a estratégia estética do detalhe neobarroco passa aqui dominar a
narrativa) reforça a ideia de não diferenciação entre importância e irrelevância, entre os
grandes e os pequenos: a narrativa principal se dá pela capacidade de tecer os pequenos
detalhes, as casualidades. Isto fica bastante evidente na seguinte sequência: Zero,
apressado, traz um jornal à M. Gustave, cujo olhar recai sobre as letras garrafais da
manchete que anuncia a iminência de guerra. Mas a manchete é desinteressante, e o
concierge segue sua busca até que encontra uma nota sobre a morte de Madame
Desgoffe und Taxis. Somos convidados a rir da história dos grandes. O riso, no entanto,
é melancólico e irônico, pois a tragédia histórica se segue a tragédia cotidiana.
Benjamin esclarece a origem deste modo artesanal de narrar:

A narrativa, que durante muito tempo floresceu num meio artesão - no


campo, no mar, na cidade -, é ela própria, num certo sentido, uma
forma artesanal de comunicação. Ela não está interessada em
transmitir o "puro em si" da coisa narrada como uma informação ou

166
um relatório. Ela mergulha a coisa na vida do narrador para em
seguida retirá-la dele. (BENJAMIN, 1987a; 205).

As circunstâncias em que o narrador veio a conhecer o que narra são então de extrema
importância. Deste modo, narrar é recriar a cada vez que se conta, tecendo, a partir do
fio encontrado, uma narrativa que será continuada pelo próximo que o encontrar. Um
texto leva sempre a outro, num movimento especular. É aqui que reconhecemos a
abertura da narrativa tradicional. Ela é em si uma obra aberta, destinada a que outros a
teçam. Esta é também a natureza da consciência contemporânea, com uma diferença
principal; as antigas narrativas consistiam um único grande fio a ser tecido, a
consciência aqui referida conhece apenas os estilhaços deste grande fio original. À bem
da verdade, Wes Anderson apenas simula o tecer narrativo, mas esta simulação surge
como restituição à memória do espectador um como era antes, pela própria forma como
nos apresenta sua história.O gesto de tecer, o gesto artesanal de Anderson, penetra a
produção de seus filmes, assim como sua concepção de família é quase sempre a que se
teria de uma companhia, uma confraria.

Em The Grand Budapest Hotel, A Sociedade das Chaves Cruzadas é uma companhia
com caráter de sociedade secreta, formada pelos concierges de diversos hotéis na
Europa, que detém os segredos e tradições do ofício hoteleiro. Esta postura artesanal
impacta diretamente a dinâmica de filmagem. Wes Anderson criou, ao longo do tempo,
uma companhia de profissionais com quem trabalha de maneira recorrente, e que cresce
a cada filme, sendo que quase todos estão no filme aqui analisado. A tentativa é
novamente a da companhia de artesãos. Mas segundo Benjamin (1987a; 114), em
Experiência e Pobreza, o processo de secularização da sociedade sequestrou nossa
capacidade de narrar, de transmitir o que se sabia de geração em geração. As guerras
aceleraram ainda mais este processo, o horror de suas frentes de batalha era tamanho
que os combatentes voltavam a suas terras natais em estado de choque, incapazes de
passar adiante esta experiência, este alerta a seus descendentes. É aqui que se separam a
experiência vivida (Erlebnisse), aquela subjetiva que cada um guarda para si, da
experiência autêntica, compartilhada, transmissível (Erfarhung).

A pergunta a ser feita agora é: o que significa todo este empreendimento de Anderson
em evidenciar uma tessitura da narrativa, ou seja, em apresentá-la enquanto é tecida? É

167
a defesa da manutenção da experiência autêntica (Erfarhung), mesmo no mundo
contemporâneo. O filme nos resgata o esfacelamento desta experiência, recorrendo às
datas de intensificação dos processos de secularização: 1985 (o último período da
década que manifesta o fim da oposição entre as narrativas capitalista e socialista); 1964
(auge da efervescência cultural que culminaria com os protestos de 1968); 1932 (a
década espremida entre as duas Guerras Mundiais, o período de maior efervescência
cultural e contestação da Europa). Se encararmos o autor do livro como sendo o próprio
cineasta, veremos que sua reivindicação está dada no caráter do escritor. No mar de
incomunicáveis do hotel em sua época decadente, somente ele possui a curiosidade
infantil de revolver a história daquele lugar. A "síndrome do escriba" que o leva a se
refugiar no hotel nada mais era do que o bloqueio criativo decorrente da
intransmissibilidade de experiências contra a qual o autor se volta, e que a viagem ajuda
a combater:

Se os camponeses e os marujos foram os primeiros mestres da arte de


narrar, foram os artífices que a aperfeiçoaram. Nos sistema corporativo
associava-se o saber das terras distantes, trazidos pelos migrantes, com
o saber do passado, recolhido pelo trabalhador sedentário.
(BENJAMIN, 1987a; 199).

Evidenciar a capacidade de recontar a História e de fabular sobre ela, isto é, recriá-la


como faz o narrador, é reivindicar a autenticidade da experiência, é manifestar que um
legado nos foi passado, e que é possível reconstituí-lo mesmo a partir dos fragmentos. O
cinema de Anderson adquire um caráter político. Quando o cineasta nos fala sobre o
passado, ele fala algo sobre seu próprio tempo. Ele reconhece no que se foi a face do
agora.

Conclusão: Estética da Criança Colecionadora

O Grande Hotel Budapeste é um filme que possui dois grandes eixos de inspiração. O
primeiro são os filmes dos cineastas alemães, que foram para Hollywood, fugidos da
guerra (como Fritz Lang e Lubitsch); o segundo são os livros de Stefan Zweig. Zweig
foi um escritor vienense muito popular em sua época, cuja obra foi relegada ao
esquecimento. O autor foi um judeu, contemporâneo de Benjamin, Tomas Mann, e
Freud (tendo sido amigo destes dois últimos). Sua obra mais famosa é O Mundo Que Vi
168
(1941), uma espécie de inventário daquela Viena que ele considerava, numa perspectiva
bastante romântica, a capital mais cosmopolita e igualitária da Europa, e que ele viu
desaparecer por conta das atrocidades da II Guerra, tal como M. Gustave vê seu mundo
civilizado desaparecer. Zweig, incapaz de superar seus tramumas, suicida-se junto de
sua esposa ao passo que Gustave é morto pelos oficiais fascistas.

Como se pode ver, o filme inteiro é fundado na experiência da perda. Mas não só. Wes
Anderson desenvolveu uma estética e uma narratividade que se fundam na experiência
da perda. É a estética do colecionador. Da criança colecionadora. Mais uma vez
Benjamin, que também morreu tentando fugir da guerra, lança luzes sobre o cinema de
Anderson. Significativo é o fato de que Zweig, Benjamin e Anderson possuem algo em
comum: a coleção de livros. Mas há uma diferença fundamental entre o modo como
Zweig e Benjamin encararam suas coleções, Zweig via nos objetos colecionados a
manifestação daquele mundo cosmopolita, civilizado, que a guerra destruiu; Benjamin,
em seu pensamento dialético, orientado por sua máxima "Nunca houve um monumento
da cultura que não fosse também monumento da barbárie." (1987a; 225), via no objeto a
tensão entre um mundo que se dizia civilizado, mas que continha em si as pulsões da
violência e da destruição, donde advinha que o autor concebesse a História como
acumulação de tragédias. Zweig e Benjamin guardam, porém, a explícita sensação da
perda e da nostalgia. Essas sensações, porém, não precisam ser paralisantes.

Anderson, por sua vez, acaba adotando uma terceira postura enquanto colecionador. A
maior parte de seus personagens sofre uma ou mais perdas decisivas: Steve Zissou
perde um amigo e seu possível filho; Sam, de Moonrise Kingdom, é órfão; Max Fischer
não tem mãe; os irmãos Tenenbaum, de Royal Tenembaums, perdem o núcleo de
segurança de suas vidas promissoras quando seus pais se separam; o próprio M. Gustave
vê seu mundo pretensiosamente civilizado ser acachapado pela barbárie fascista. É
verdade, porém, que há uma apatia intrínseca a estas perdas.

Os personagens que Anderson coleciona parecem esvaziados de emoção, são arrastados


pela narrativa, quase privados de sua dimensão psicológica. Isto atesta a
contemporaneidade dos personagens do cineasta, a experiência da perda dessas figuras é
anterior a qualquer perda concreta: não há um mundo que viram sumir, o mundo já não
estava lá quando vieram à Terra, como Zero Moustafa diz ao final do filme: o mundo de
169
Gustave sumiu muito antes dele, mas ele sustentou a ilusão com tremenda graça. A
perda que esses personagens sofreram é justamente essa perda de referencial (que a
maior parte deles se desgarrado dos pais é a concretização desta). É essa experiência
que Anderson reclama poder transmitir de forma integral, experiência vivida que pelo
colecionismo torna-se autêntica. "Bem-aventurado o homem privado!" (BENJAMIN,
1987b; 235). O que o autor alemão quer ressaltar aqui é que o colecionismo, atividade
que só se pode dar no âmbito do privado, abre as portas para o coletivo. O colecionador
de dentro de seu quarto remonta ao mundo passado, a dimensão histórico-cultural do
objeto adquirido. Para Benjamin, a especificidade do colecionador é sua capacidade de
despir o objeto de seu aspecto utilitarista, a posse do objeto pelo colecionador se dá
muito mais pelo prazer de ver manifesto no que adquire a dimensão histórico-cultural
do objeto do que pela função que este virá a realizar. Ele toma a parte como significação
do todo: o passado é expresso no objeto presente, no objeto sintetizam-se a semelhança
entre o que já foi, o mundo originário do objeto, e o que está sendo, o mundo onde o
objeto permanece como reminiscência, em abertura ao que virá. A grande narrativa da
humanidade vira miniatura. O cronista encontra o colecionador.

“O cronista que narra os acontecimentos, sem distinguir entre os


grandes e os pequenos, leva em conta a verdade de que nada do que
um dia aconteceu pode ser considerado perdido para a história. Sem
dúvida, somente a humanidade redimida poderá apropriar-se
totalmente do seu passado. Isso quer dizer: somente para a
humanidade redimida o passado é citável" (BENJAMIN, 1987a; 223)

Importante lembrar que Zweig escreveu um livro chamado Momentos Decisivos da


Humanidade: Cinco Miniaturas Históricas (1927), espécie de catalogação de feitos da
humanidade. A identificação do autor com a noção de progresso combatida por
Benjamin impediu-o de empreender completamente a tarefa redentora do cronista, mas
revela outro traço primordial do colecionador. O colecionador é aquele que mantém a
ilusão da ordem na desordem total do mundo, pela catalogação, pela organização em
semelhantes. Ironicamente, para o colecionador de livros, o único saber certo é "o ano
de publicação" e "o formato dos livros", diz Benjamin citando Anatole France (1987b;
228). O colecionismo coincide com o caos da lembrança, e cria um cosmos apenas seu,
no qual ele reconhece a face do mundo. Está dada a necessidade do autor em organizar
170
o pessimismo, se a História da humanidade é acumulação de tragédias, e elas estão
manifestas nos documentos, faz-se necessário organizá-las para redimi-las.

Wes Anderson não só nos apresenta elementos deslocados no tempo, como chega à
minúcia de construí-los à mão para poder colecioná-los. A artificialidade deste mundo
reconstituído se deve ao fato de que se deve perpetuar pela imitação do que ainda resta
de um mundo em extinção, pois seu próprio gesto imitador - e artesanal - é imitação de
um mundo extinto. Este é um mundo completamente do cineasta, ocupado por tipos só
seus, catalogados segundo sua vontade e ordem, mas a necessidade de ordem só reforça
a ausência constante dela. O plano simétrico é o equivalente composicional desta (des)
ordem. O modo da redescoberta do colecionador/cronista coincide com aquele da
criança que manipula o mundo velho, tanto no sentido de mundo do passado como de
mundo dos adultos, segundo a perspectiva do jogo, da brincadeira, do "sempre de
novo". Estamos diante daquela poética da repetição:

Não se trata apenas de assenhorear-se de experiências terríveis e


primordiais pelo amortecimento gradual, pela inovação maliciosa,
pela paródia; trata-se também de saborear do modo mais intenso, as
mesmas vitórias e triunfos. O adulto (...) goza duplamente sua
felicidade quando narra sua experiência. A criança recria essa
experiência, começa tudo sempre de novo, desde o início.
(BENJAMIN, 2009; 101)

Assim a criança também mostra sua face recriadora, originária, ela reinventa a partida
anterior na partida que está jogando, no confluir daquelas semelhanças que servem de
mote não apenas da catalogação de objetos, mas da atividade colecionista de ver a face
do velho no novo, a semelhança no diferente. A criança que não esgota sua decisão de
caçar borboletas o faz, pois o fim último de sua caça é dispor quantas borboletas puder
em sua caixa de colecionadora, que é de onde Wes Anderson conta suas histórias: "não
que elas [as coisas] estejam vivas dentro dele [o colecionador]; é ele que vive dentro
delas". (BENJAMIN, 1987b; 235). Não à toa, a atmosfera reconstituída pelo cineasta
diz respeito aos brinquedos, à confeitaria, ao universo colorido dos livros infanto-
juvenis. Artesão e criança se encontram no universo do lúdico. O peso tradicional que o
artesão confere ao brinquedo e ao livro, e que o confeiteiro lega ao doce, chega à
criança (que por estar em formação é, ao menos parcialmente, ignorante quanto ao
171
conhecimento dos adultos e suas convenções) completamente despidos de significação.
São elas que lhes determinarão os significados e seus verdadeiros sabores. E Anderson é
tanto o artesão quanto a criança que coleciona: a artesania alimenta o colecionismo.

Se a contemporaneidade é mesmo o reino da repetição dos significados antes


construídos, e por isso permite o mero jogo com os signos de um mundo fraturado, é
preciso lembrar que este jogo implica por vezes um olhar crítico sobre este mesmo
mundo, como se tentou demonstrar aqui. Anderson se reconhece como um homem de
seu tempo e imbui seu olhar nostálgico de autoironia e pessimismo ao apontar a
decadência do projeto moderno miniaturizado nos estágios do Grande Hotel, que
luxuoso e imponente na década de trinta, torna-se decadente e dispendioso nos anos
1960. O autor do livro coroa esta certeza quando diz a respeito do hotel: "Era mesmo
uma ruína encantada". E assim Wes Anderson transmite a autêntica e compartilhada
experiência da perda, que talvez seja a chave para o resgate do perdido e para a
reconstrução de uma experiência autêntica.

Referências bibliográficas e Filmografia:


BENJAMIN, Walter. Obras Escolhidas: Magia e Ténica, Arte e Pólítica, Volume I. São Paulo:
Brasiliense, 1987a
BENJAMIN, Walter. Obras Escolhidas: Rua de Mão Única, Volume II. São Paulo: Brasiliense,
1987b
BENJAMIN, Walter. Reflexões Sobre A Criança, O Brinquedo e A Educação. São Paulo: Duas
Cidades/Editora 34: 2009
BENJAMIN. Walter. Origem do Drama Barroco Alemão. São Paulo: Brasiliense, 1984
CONNOR, Steve. Cultura pós-moderna, Introdução às Teorias do Contemporâneo. São Paulo:
Edições Loyola, 2000
IAMPOLSKI, Mikhail. The Memory of Tiresias: Intertuaxtility and Film. Berkeley: University
of California Press, 1998
CALABRESE, Omar. La Era Neobarroca. Madrid: Cátedra, 2005
Filmografia
Grande Hotel Budapeste, O (The Grand Budapest Hotel, Wes Anderson, 2014)
Excêntricos Tenenbaums, Os (The Royal Tenenbaums, Wes Anderson, 2001)
Fantástico Senhor Raposo, O (The Fantastic Mr. Fox, Wes Anderson, 2009)
Moonrise Kingdom (Wes Anderson, 2012)
Rushmore (Wes Anderson, 1998)
Vida Marina com Steve Zissou, A (The Life Aquatic with Steve Zissou, Wes Anderson, 2004)

172
A opinião pública em lançamentos de conteúdos no YouTube

The Public Opinion of Content Releases on YouTube

Vitor Vaz de Freitas 1

Resumo: Este trabalho tem como intuito analisar as respostas instantâneas dos
consumidores de conteúdo audiovisual produzido por influenciadores e distribuído nas
redes sociais; bem como impacto de tais respostas para estes influenciadores.O artigo
ainda busca apontar as estratégias de marketing e os riscos de se negligenciar a relevância
da opinião de diferentes targets sobre a obra. Para estudar será utilizado o videoclipe “Me
Solta” do cantor Nego do Borel, um produto que trouxe uma homogeneidade nos
argumentos expostos nas plataformas digitais formando a opinião predominantemente
pública.
Palavras-chave: Influência pública; Redes Sociais; Marketing; VideoClipe.

Abstract: This work aims to analyze the instant responses of consumers of


audiovisual content produced by influencers and distributed in social networks in; as well
as impact of such responses to these influencers. The article also seeks to point out
marketing strategies and the risks of neglecting the relevance of the opinion of different
targets on the work. To study will be used the video clip "Me Solta" by Nego do Borel, a
product that brought a homogeneity in the arguments displayed on the digital platforms
forming the predominantly public opinion.

Key words: Public Influence; Social Media; Marketing; Video clip.

Subtítulos: Nego do Borel “Me Solta”.

.O audiovisual e as redes de informação online

A partir da ascensão da internet e do alto índice de uso da mesma, plataformas de


relacionamento, em convergência, torna-se verdadeiras ferramentas de marketing e
comunicação em rede. A função de compartilhamento de mídia audiovisual através dos
computadores trouxe uma nova visão para a comercialização e divulgação de produtos.
O marco pode ser considerado o nascimento do YouTube, que transformou o streaming
de vídeo em uma operação simples, mostrando que a web poderia tornar-se um meio de

1 Estudante de bacharelado em Publicidade e Propaganda, Universidade Presbiteriana Mackenzie. Estuda o


impacto social das opiniões em redes públicas. vitorvazdf@gmail.com

173
distribuição do vídeo narrativo, com novas possibilidades de formatos de entretenimento,
segundo Michael Wolff, em seu livro Televisão é a Nova Televisão.
No dia 23 de abril de 2005 foi publicado o primeiro vídeo no site YouTube, nomeado
“Me at the Zoo”, um vídeo teste publicado por Jawed Karim, um dos três
desenvolvedores da plataforma que tinha como intuito compartilhar vídeos nas redes. Em
novembro deste mesmo ano foi a plataforma foi oficializada. Por conta dos incríveis
números de engajamento entre os usuários nesta nova invenção, o Google sugeriu a
compra da mesma para continuar a desenvolver e alcançar novos públicos. O uso do
YouTube, segundo Michael Wolff, poderia ser visto como “um novo exemplo de
comportamento humano”.
Logo percebeu-se a importância da plataforma no mercado digital, estando seu grande
diferencial na isenção de cobrança na veiculação dos produtos. Esse novo paradigma deu
oportunidade para os produtores de baixo orçamento, ou aspirantes a criadores de
conteúdo divulgarem os resultados de suas invenções, postando de modo público, a fim
de atingir, engajar e prospectar espectadores. Trazendo uma nova concorrência na era
digital, no qual a qualidade era desejada, porém poderia ser facilmente combatida por
conteúdos de maior interesse para determinado público. A possibilidade da procura por
assuntos de interesse pessoal ou de um grupo social gerou a demanda de uma nova oferta
para o mercado audiovisual: os produtos de nicho.
Esse mesmo grupo de nicho passou a ser consumidor e influenciador, sendo responsável
por grande parte da publicidade e promoção dos produtos audiovisuais e marcas operando
com audiovisual em plataforma digital. O conceito “do boca a boca” transformou-se em
viralização e talvez, nunca tenha tido tanta força.
Em 5 anos, o YouTube já era um espaço de trocas tornando-se referência em vídeos. A
cada dia surgia um canal diferente, com propostas semelhantes aos programas de TV e
rádio. Já as marcas estabelecidas no mercado, não deixaram de fora o novo meio para
disponibilizar seus trabalhos e não perder o público, assim como almejar alcançar novos.
Em função dessa mudança de comportamento de consumo de vídeos, as mídias
tradicionais passaram a adaptar seus conteúdos à linguagem e plataformas digitais, com
intuito de preservarem o público. Segundo o site BlastingNews, a empresa Alexa
constatou que atualmente o YouTube é o maior site de tráfego no Brasil, perdendo apenas
para o Google.

174
Opinião pública online
A internet junto das plataformas de interação pública possibilitou a segmentação, o
engajamento e a troca de opiniões entre usuários gerando uma teia entre as redes sociais,
mostrando certa convergência entre as plataformas e uma oportunidade para os produtores
de conteúdo. O que era conteúdo de impacto em uma plataforma, poderia ser facilmente
traduzido para outra e ser usado como objeto complementar para divulgação, gerando
resposta espontânea. Tais respostas, em rede, passam a operar, de fato, como dados e,
analisados em cruzamento, podem detectar perfis em redes sociais e verificar os
argumentos mais aceitos ou refutados, o que pode se configurar essencial para maior
aceitação, melhor alcance de público.
A opinião, que antes era privada, sendo exposta raramente em uma conversa e esquecida
dias depois, agora pode ser compartilhada publicamente tornando-se parte de uma base
de dados junto com a necessidade social de pertencimento em grupos os argumentos rasos
eram disparados entre as redes, o termo raso é usado por conta da diversa quantidade de
informações e assuntos mundiais divididos por segundos. Possibilitando a troca de
argumentos entre amigos e familiares, que mesmo distantes, partilham de um pensamento
em comum. Afirmando socialmente que houve a possibilidade de uma maior interação
entre os usuários e uma maior necessidade da exposição da opinião junto a uma pressão
social de pertencimento. Reforçando a junção dos signos e argumentos em comum entre
pessoas do mesmo ciclo. Traçando a possibilidade do desenho de públicos distintos de
opiniões, com características em comum. Sendo elas demográficas e psicográficas. Um
comentário, vídeo, posicionamento online tem, mesmo sem a intenção, um público alvo
de dispersão predeterminado.
A falsa impressão de que há uma máscara ao criar um perfil em redes sociais e que
palavras publicadas nas mesmas não surtem o mesmo efeito negativo ao ser impactada de
forma presencial, usuários tornaram-se mais livres a exporem sua opinião como resposta
sem filtros sociais. O que seria considerado antiético em uma sociedade da fala, na
internet os chamados bons costumes são facilmente alterados.
Para proveito desta interação por meio das redes sociais, os produtores de conteúdos
audiovisuais tinham disponíveis ferramentas para o estudo de aceitação de novos
produtos ou se haveria a possibilidade da ampliação e direção para novos grupos. Além

175
da interação direta com os consumidores, criando relacionamentos para conquistar o
público e os cuidados online dos grupos de stakeholders que podem ser impactados com
a informação.
Estudo de caso
Considerando-se a opinião pública nas redes sociais, que muitas vezes se encontra
homogeneizada entre os nichos de consumo, a importância do estudo do público alvo para
um produtor de conteúdo, bem como a relevância de seu produto para este público, será
utilizado um estudo de caso ilustrativo com o intuito de relacionar, de forma prática, tais
conceitos: O vídeoclipe de Nego do Borel intitulado “Me Solta” produzido pela
Kondzilla. Que foi escolhido justamente por demonstrar muitas respostas instantâneas
junto com um volume alto de reações negativas nas redes sociais no ano de 2018.
Leno Maycon, conhecido popularmente como Nego do Borel, iniciou sua carreira em
2012, com o estilo de funk ostentação, lançando a música “Os Caras do Momento”. A
fim de estabelecer sua marca no mercado musical, lançou em 2014 seu primeiro álbum
“Ele Mesmo”. Já em 2015 foi chamado para fazer participação na Telenovela
“Malhação”, conquistando o público jovem espectador da mesma. Após sua aparição e
reconhecimento, desenvolveu estratégias de parcerias com cantores do cenário pop
brasileiro como Anitta e Wesley Safadão com a música “Esquema”. A fim continuar
visível na mídia, que opera em reforço à ideia do alto descarte entre artistas do gênero.

Konrad Cunha Dantas, Kondizilla, é roteirista e diretor, dele surgiu a produtora de


produtos audiovisuais chamada Kondzilla Filmes, que em seu canal no YouTube, se
autodenomina a maior produtora de conteúdo audiovisual da música eletrônica de
periferia do Brasil. Especializado em videoclipes com audiência de mais de 1 bilhão de
visualizações por mês no YouTube. De acordo com o portal oficial Net, o canal é o mais
visualizado e tem o maior número de inscritos no Brasil, e, em âmbito mundial, se
encontra na quarta posição como a numeração de inscritos e a sétima em média de
visualizações. Os dados foram obtidos via plataforma Social Blade¹. Trazendo uma nova
perspectiva ao poder do audiovisual na música. Mostrando a visibilidade do funk no país
e a oportunidade de crescimento mundial com cerca de 20 produções por mês publicadas
no YouTube.

176
O videoclipe

O enredo do videoclipe trata de elementos presentes na cultura do Nego do Borel:


danças, diversidade, alegria e diversão. Percebe-se que o artista manifesta sua percepção
a situação atual de sua carreira, voltando às suas raízes como uma forma de protesto aos
momentos em que tentaram o moldar para se encaixar no mercado. Se desprendendo
das regras impostas, trazendo o discurso visual de que com a música, todos merecem se
divertir, sem a intercepção de alguém.

Imagem: Cenas do videoclipe Me Solta do Nego do Borel.

Fonte: Canal Kondzilla YouTube.

O vídeo recebe a personagem “Nega da Borelia”, criada pelo próprio cantor,


representando de maneira caricata e estereotipada o homossexual, negro, de origens da
favela, bem humorado, que de maneira escandalosa chama a atenção de quem passa.
Uma cena de destaque e bastante comentada apresenta um beijo entre a personagem e
outro homem.

Imagem: Cenas do videoclipe Me Solta do Nego do Borel.

Fonte: Canal Kondzilla YouTube.

177
O clipe, com direção de Lucas Romor, teve como locação o morro tijucano, conhecido
como morro do Borel, local onde o cantor cresceu, e contou com a participação de
amigos de infância e ex-vizinhos, o que sinaliza a assunção de uma identidade do artista
com base em suas raízes.

Imagem: Cenas do videoclipe Me Solta do Nego do Borel.

Fonte: Canal Kondzilla YouTube.

A RESPOSTA INSTANTANEA ENTRE OS PÚBLICOS

No canal do YouTube da Kondzilla, mostra-se que o vídeo foi de longe o mais


visualizado no período de 10 meses, perdendo para a produção da música Rabiola, de
Mc Kevinho, com 219 milhões de visualizações até o dia 09/10/2018 com 2,1M de
curtidas e 129K descurtidas. Uma proporção diferente do videoclipe do Nego do Borel
que totalizou 115 milhões de visualizações em 3 meses de lançamento com 1,7M de
curtidas e 1,1M descurtidas.

Levando em consideração que o canal tem visualizações médias de 2 a 3 milhões de


visualizações, com pequenas exceções de artistas em ascensão, como citado
anteriormente. E a base de visualizações e descurtidas do próprio canal, como no vídeo
“Você Partiu Meu Coração” que teve 361M de visualizações e 2,1M de curtidas e apenas
178
202K de descurtidas. Percebe-se então um alto nível de procura e descontentamento
com base na análise de dados e opiniões nas plataformas de interações sociais como o
YouTube, Facebook, Twitter e buscas no Google.

Para uma busca centralizada em 24 horas do lançamento do produto audiovisual em


questão, usou-se a plataforma Sysomos², que agrupou os tweets com os termos “Me
Solta” e “Nego do Borel”, resultando em 175.3K de menções por 160K usuários
atingindo a 326.9M de usuários e 443.4M de impressões. Relacionando os termos em
comum dos tweets, observa-se os termos “LGBT”; “Dinheiro”; “Bolsonaro”; “Beija” e
“Homem”. Sendo usada em argumentos entre usuários, podendo ser entendido junto a
análise dos termos e assuntos relacionados à pesquisas sobre o Nego do Borel no dia,
buscadas pela plataforma Google Trends.

Imagem: Teia de termos do Twitter.

Fonte: Aplicativo online Sysomos.

Imagem: Pesquisa relacionada ao termo “Nego do Borel”.

Fonte: Google Trends.


179
Os comentários analisados no Twitter e YouTube trazem a divisão entre dois grandes
grupos com argumentações homogêneas caracterizando opiniões populares públicas. A
comunidade LGBT+ e o público conservador.

Tal polarização pode ser um indicativo da importância da busca por informação quando
se trata da elaboração de argumentos utilizados em produtos artísticos/culturais e o
público que se pretende impactar, além disso, de que forma se pretende impacta-los. O
sensacionalismo, no caso, representado pelo beijo entre os personagens, também pode
ser apontado como fator influenciador na popularidade do produto, evidenciando o tabu
ao redor do assunto.

Um dos públicos de opinião homogênea que se pronunciou sobre o conteúdo do


videoclipe foi a comunidade LGBT+, que foi representada diretamente pelo cantor no
produto com a personagem “Nega da Borelia”. As principais argumentações entre os
internautas, que trouxeram pontos críticos, mostrando um estudo da história da cultura
da comunidade, foram:

1- A estereotipia da personagem “Nega da Borélia”. A representação do humor LGBT+


pela visão e interpretação por um homem hétero, negligenciando a representatividade
da vivência. Ou seja, reforça os estereótipos da mídia, no qual o homosexual tende a ser
engraçado e escandaloso. Segundo a jornalista Gyssele Mendes em uma matéria ao
Carta Capital, é necessária uma democratização da mídia, buscando ampliar o processo
de construção dos personagens como meio de mapa social de leituras, gerando uma
instrução à massa, ou seja, histórias verdadeiras precisam ser contadas pelas pessoas que
viveram ela, mostrando que deve ter respeito. Esse discurso dialoga com a falta de
informação gerando visões rasas levando ao mal entendimento sobre a comunidade.

2- O termo “Pink Money” ou “Pink Pound” surgiu como forma de explicação para as
estratégias de marketing e vendas direcionadas para a comunidade LGBT+. A cada ano
que se passa, o nível de consumo da comunidade cresce: segundo o portal Correio 24
Horas, a InSearch Tendências e Estudos de Mercado mostrou que cerca de R$ 150
bilhões são movimentados por ano pela comunidade. Porém a estratégia pode passar a
ser reconhecida por oportunismo, ao apenas usar a fachada como público, sem assumir
uma posição ou ter seus valores atrelados à causa que estão comunicando.

180
3- Demonstração do apoio político que contradiz com a representação e o discurso de
cultura diversificada. Na internet circula uma fotografia do cantor Nego do Borel, junto
aos Jair Bolsonaro (PSL) e Flávio Bolsonaro. Além de troca de comentários e curtidas
entre os cidadãos mencionados.

Imagem: Flávio Bolsonaro, Nego do Borel e Jair Bolsonaro.

Fonte: Portal A Redação.


Entre os Tweets de maior engajamento estão:
Imagem: Captura de tela do Twitter sobre o videoclipe de Nego do Borel.

Imagem: Captura de tela do Twitter sobre o videoclipe de Nego do Borel.

181
Fonte: Usuários @BrizolaMemes e @Leandranbs no Twitter.

Fonte: Usuários @Rachelperalt e @Fentyfear no Twitter.

Já o público recorrente do Nego do Borel, que mostrou a indignação, com o discurso


conservador, trouxe comentários de teor preconceituoso, com piadas pejorativas e
desaprovação do conteúdo produzido.

182
Exemplos:

Imagem: Comentários no vídeoclipe de Nego do Borel.

Fonte: Canal Kondzilla YouTube.

Imagem: Comentários no vídeoclipe de Nego do Borel.

Fonte: Canal Kondzilla YouTube.

Imagem: Comentários no vídeoclipe de Nego do Borel.

Fonte: Canal Kondzilla YouTube.

Imagem: Comentários no vídeoclipe de Nego do Borel.

Fonte: Canal Kondzilla YouTube.

Os argumentos se completam, ainda que as ideologias defendidas sejam diferentes. As


piadas feitas pelo público denominado conservador são aquelas que o público LGBT+
183
temia pela falta de humanidade, interpretação e respeito. Em comparação à
argumentação do Pink Money, o público conservador, como observado nas imagens
acima, também concorda que o artista se vendeu à causa, com argumentos agressivos e
desrespeitosos.

O artista apenas declarou posicionamento após ser abordado à sites de notícias, que
compartilharam de forma neutra o lançamento do clipe, juntamente com a indignação
do público impactado. Em resposta ao G1 e Extra, Nego esclareceu as acusações porém
não se desculpou. Seguem as declarações:

“Quando eu decidi fazer esse clipe, sabia que poderia ser algo polêmico, mas fui em
frente. A Nega da Borelli é uma personagem que, pra mim, representa a liberdade de
ser quem eu sou" (G1).

"Recebi muitos elogios pelo clipe e tenho acompanhado as críticas de perto porque
acho que eu e todo mundo temos muita ainda a aprender com esse tema” (G1).

Bolsonaro: “Eu não apoio o Bolsonaro. Esta foto foi tirada num jantar que eu estava
também, a pedido do filho dele. Não costumo negar tirar fotos com ninguém” (G1).

“Eu não apoio o Bolsonaro. Esta foto foi tirada em um jantar que eu estava também, a
pedido do filho dele. Não costumo negar a tirar fotos com ninguém” (G1).

Conclusão

Conclui-se que, a partir da ascensão econômica de entretenimento para público


comunidade LGBT+, o tema e a própria causa passaram a serem vistos como
oportunismo no mercado audiovisual em específico, como estudado no artigo, a
indústria musical, que tem como foco na atual cultura pop a produção e comercialização
de artistas padronizados e descartáveis. Porém com a internet e as ferramentas de
interação e exposição da opinião online, todos os grupos sociais tiveram a oportunidade
de comunicar, dividir e analisar opiniões. No caso, a comunidade LGBT+, pôde
manifestar-se no ambiente digital de modo a criticar o que julgou representar no
ambiente digital de retrocesso à Sua luta, cada vez mais representativa; inclusive em
termos de produção e divulgação de produção e divulgação de conteúdo.

Uma ação de natureza contraditória, conforme o caso analisado, gerou não só o


descontentamento do público LGBT+ representado no videoclipe, mas também dos já

184
consumidores fiéis do artista, trazendo uma diminuição no consumo e a exposição do
boicote pelos públicos. Pois como no caso ilustrado, Nego do Borel foi pauta de sites de
notícias que questionaram o posicionamento do cantor, deixando registrado um novo
argumento nas redes, que, poderá servir de base para discussões das atitudes futuras
acerca do artista.

Artistas que continuam com a estratégia de marketing do “Falem bem ou falem mal,
mas falem de mim” tendem a gerar um grande índice de insatisfação tendo como
consequência uma má imagem para a agenda de shows, vendas e streaming. Mas
visualizações são mais importantes do que críticas? Na era digital, talvez. A estratégia
de comunicação com foco em um público específico, considerando discurso e coerência
do artista, ainda que não possa prever reações de forma precisa reitera a importância da
opinião desse público não apenas como consumidor, mas influenciador e porta-voz do
artista. Ainda que não se possa trabalhar por uma unanimidade, é importante que no
nível de contentamento seja proporcionalmente maior do que o de descontentamento.
Reafirma-se, desta forma, a necessidade de um estudo de riscos junto a stakeholders
para que se atente às justificativas para o discurso utilizado antes, durante e após o
desenvolvimento e divulgação de um produto, sobretudo quando esse produto fala
diretamente da imagem e posicionamento ideológico de um artista/marca.

Referências

APOSTOLO, LUCAS. “Me Solta Porra” e uma Análise da Trajetória de Nego do Borel,
2018. Disponível em: <https://medium.com/@lucasapostolo/me-solta-porra-e-uma-
an%C3%A1lise-da-trajet%C3%B3ria-de-nego-do-borel-74f4903d55cb>. Acesso em: 11 ago.
2018.

BELING, FERNANDA. Os 10 Maiores Canais do YouTube, 2018. Disponível em:


<https://www.oficinadanet.com.br/post/13911-os-10-maiores-canais-do-youtube>. Acesso em:
17 ago. 2018.

DEBORD, GUY. A Sociedade do Espetáculo: Comentários Sobre a Sociedade do Espetáculo.


Brasil: Contraponto, 1996. 240p.

KONDZILLA. Nego do Borel - Me Solta (kondzilla.com), 2018. Disponível em:


<https://www.youtube.com/watch?v=FY3m6hMyh3g>. Acesso em: 04 ago. 2018.

KOTLER, Philip; KARTAJAYA, Hermawan; SETIAWAN, Iwan. Marketing 4.0: do


Tradicional ao Digita. Sp: Sextante / Gmt, 2017.

LLOSA, Mario Vargas. A Civilização do Espetáculo. Brasil:Objetiva,2013.208p.

185
MENDES, GYSSELE. Representação de LGBTs na mídia: entre o silêncio e o estereótipo,
2018. Disponível em:<https://www.cartacapital.com.br/blogs/intervozes/representacao-de-
lgbts-na-midia-entre-o-silencio-e-o-estereotipo>. Acesso em: 09 ago. 2018.

MURRAY, Janet H. Hamelet no Holodeck: O Futuro da Narrativa no Ciberespaço. Brasil:


Unesp, 2003.282p.

NASCIMENTO, MARYANNA. Pink Money Comunidade LGBT Já Movimenta Mais de


R$ 150 bilhões por ano, 2017. Disponível em:
<https://www.correio24horas.com.br/noticia/nid/pink-money-comunidade-lgbt-ja-movimenta-
mais-de-r-150-bilhoes-por-ano/>. Acesso em: 15 ago. 2018.

NEVES, MARÍLIA. Nego do Borel fala sobre clipe de 'Me solta': 'Sabia que poderia ser
algo polêmico, mas fui em frente’, 2018 <https://movimentorevista.com.br/2018/03/industria-
cultural-pink-money-e-a-crise-de-hegemonia-sob-o-prisma-lgbt/>. Acesso em: 02 ago. 2018.

ORTEGA, RODRIGO. Kondzilla Vira Maior Canal do YouTube no Brasil e Quer Dominar
Funk Além de Clipes, 2017. Disponível em: <https://g1.globo.com/musica/noticia/kondzilla-
vira-maior-canal-do-youtube-no-brasil-e-quer-dominar-funk-alem-de-clipes.ghtml>. Acesso em:
10 ago. 2018.

REDAÇÃO. Nego do Borel Explica Foto Polêmica ao Lado de Jair Bolsonaro, 2018.
Disponível em: <https://catracalivre.com.br/entretenimento/nego-do-borel-explica-foto-
polemica-ao-lado-de-jair-bolsonaro/>. Acesso em: 02 ago. 2018.

REDAÇÃO. Nego do Borel Faz Comentário Simpático em Foto de Bolsonaro, 2018.


Disponível em: <https://www.aredacao.com.br/cultura/105123/nego-do-borel-faz-comentario-
simpatico-em-foto-de-bolsonaro> Acesso em: 02 ago. 2018.

RODRIGUES, THAYNÁ. Clipe de Nego do Borel Divide Opiniões Entre Artistas e


Comunidade LGBT na Internet, 2018. Disponível em: <https://extra.globo.com/tv-e-
lazer/musica/clipe-de-nego-do-borel-divide-opinioes-entre-artistas-comunidade-lgbt-na-
internet-22870419.html>. Acesso em: 10 ago. 2018.

RODRIGUES, THAYNÁ. Nego do Borel se Defende Após Críticas ao Clipe Me Sol e Diz
que Beijo Gay Foi Ideia Sua, 2018. Disponível em: <.https://extra.globo.com/tv-e-
lazer/musica/nego-do-borel-se-defende-apos-criticas-ao-clipe-me-solta-diz-que-beijo-gay-foi-
ideia-sua-22871263.html>. Acesso em: 11 ago. 2018.

TELES, DENER. Os 15 Sites Mais Acessados no Brasil, 2018. Disponível em:


<https://br.blastingnews.com/tecnologia/2018/05/os-15-sites-mais-acessados-no-brasil-
002600989.html>. Acesso em: 17 ago. 2018.

WOLFF, Michael. Televisão é a nova televisão. Brasil: Globo, 2015. 192 p.

186
Análise comparativa da animação brasileira: estudo das características
estilísticas a partir da produção

Comparative Analysis of the brazilian animation: study of the stylistic


characteristics from the production

David Ehrlich1

Resumo: A animação brasileira, já há algum tempo, começou a ganhar espaço tanto no


cenário audiovisual nacional quanto internacional, recebendo seus primeiros prêmios
significativos e sendo progressivamente mais reconhecida. Cada vez mais novas
animações tem sido produzidas no Brasil em diferentes meios de comunicação e mídias,
no cinema, na TV ou até na internet, em sites como o YouTube. Em cada meio notam-
se diferentes características estilísticas, públicos-alvo, níveis de qualidade de produção e
narrativa. Em alguns casos concorre diretamente com produções estrangeiras, pelo
menos dentro do cenário nacional. Ainda não existe, porém, em nosso país, um nível
“industrial” de produção de animações. Entretanto, ainda assim é possível notar uma
grande variedade de estilos de produção e narrativas. O grande problema encontrado é
que, apesar do reconhecimento crescente das animações nacionais em diferentes mídias,
ele ainda é muito esparso, além de depender muito de incentivos governamentais para
sua produção, apesar de se estender para diferentes mídias e estar recentemente, nos
últimos anos, em considerável crescimento, inclusive chama cada vez mais a atenção de
distribuidores estrangeiros. Tal crescimento também é instável, e não se sabe quanto
tempo ainda irá durar, por depender muito de uma combinação de diversos fatores
muito recentes. Com isso, pela análise desses fatos, observou-se que é necessário
elaborar um trabalho que analise a produção e o estilo de algumas animações nacionais,
em diferentes mídias, para assim permitir o incentivo de novas produções e possibilitar
uma orientação para novos produtores brasileiros de animações. É de interesse geral que
a cultura nacional tenha maior reconhecimento. Portanto este estudo fez uma análise da
animação brasileira, verificando, através do estudo de três animações recentes, que
características elas possuem em comum, com o intuito de contribuir para que aumente
as produções de animação brasileiras e que as mesmas sejam nacionalmente e
internacionalmente reconhecidas.

Palavras-chave: Animação brasileira; características; produção; estilo.

1 David Ehrlich é graudado em Comunicação Social – Jornalismo pela Universidade Federal do Paraná (UFPR),
atualmente cursando especialiação em Narrativas Visuais na Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR).
E-mail davidehrlichbrasil@hotmail.com.
187
Abstract: Brazilian animation, since quite a while, started to gain space both in the
national and international audiovisual scenarios, earning its first significant awards
and being progressively more recognized. More and more new animations have been
produced in Brazil in different media, on cinema, on TV or even on the internet, on
websites such as YouTube. In each media different stylistic characteristics, target
audiences, production and storytelling qualities can be noted. In some cases it competes
directly with foreign productions, at least inside the national scenario. There isn’t still,
however, in our country, an “industrial” level of animation production. However, it is
still possible to notice a great variety of production and storytelling styles. The big
problem found is that, despite the growing recognition of the national animations on
different media, it is still very sparse, besides depending a lot of government incentives
for its production, despite of extending itself to different media and being recently, in
the last few years, in considerable growth, even drawing more and more the attention of
foreign distributors. Such growth is also unstable, and no one knows how long it is still
going to last, due to it depending a lot of a combination of many, very recent factors.
With this, by the analysis of these factors, it was observed that it is necessary to
elaborate a work that analyses the production and the style of some national
animations, on different media, so that it allows the incentive of new productions and
enables guidance to new Brazilian animation producers. It is of general interest for the
national culture to have more recognition. Therefore, this study did an analysis of the
Brazilian animation, verifying, through the study of three recent animations, which
characteristics they share in common, with the intent of contributing to the growth of
Brazilian animations and for the same to be national- and international-wise
recognized.

Key words: Brazilian animation; characteristics; production; style.

O menino e o Mundo - Cinema


Embora tenha tido um público de apenas 35 mil pessoas quando foi exibido nos
cinemas brasileiros em 2014, O Menino e o Mundo tornou-se uma das animações
brasileiras de maior reconhecimento de todos os tempos. Desde sua estreia oficial no
Ottawa International Animation Festival, em setembro de 2013, o filme conquistou mais
de 40 prêmios nacionais e internacionais, inclusive sendo indicado ao Oscar de Melhor
Animação em 2016; além de ter seus direitos de distribuição vendidos para 80 países.
(GUIMARÃES, 2015). Ao analisar O Menino e o Mundo, é possível, porém, verificar
características que se repetem nas outras animações apresentadas neste artigo.

Sua ludicidade é inegável. Tendo surgido na mente de seu diretor, Alê Abreu,
como um documentário animado chamado Canto Latino, que narraria a história da
188
América Latina; o filme mudou de rumo quando Abreu criou Caco, o menino que dá
nome ao filme. Sem roteiro pré-definido, o documentário deu espaço para a ficção O
Menino e o Mundo. A temática latina, porém, não foi deixada de lado, uma vez que o
filme descreve diferentes relações de exploração. (CORTÊS, 2016). Entre as diversas
mudanças que o projeto inicial sofreu, porém, uma delas foi que ele adquiriu maior
universalidade. Embora a estética do filme continue apelando para o imaginário
brasileiro/latino, a impressão que se tem é que poderia ser ambientado em qualquer país
de terceiro mundo.

Para reproduzir um ponto de vista infantil, Abreu apropriou-se da liberdade que


uma criança tem ao desenhar, deixando sua imaginação fluir e misturando seus
materiais de desenho sem uma autocrítica “adulta”. Isso permitiu que Abreu recheasse
O Menino e o Mundo de um visual surrealista. Surgiram personagens de aparências
desproporcionais, e um mundo de animais e objetos irrealistas, onde as leis naturais têm
pouca importância. Nos primeiros minutos do filme, vê-se Caco escalando nuvens como
se fossem uma escada, e brincando nelas como se fossem algodão; e veículos em
formato de animais, sons que se manifestam como bolhas e cidades com arquiteturas
impossíveis são alguns dos outros elementos absurdos. As imagens do filme utilizam-se
também bastante de padrões geométricos complexamente ornamentados, mostrando
uma vontade do diretor em “brincar” com seu próprio filme. Esta estética surrealista e
naïf é notada também na variedade de materiais utilizados. Lápis de cor, giz de cera,
colagem e pintura são capazes de dividir todos um mesmo frame, tornando a produção
quase artesanal. (CORTÊS, 2016).

Este tom artesanal de O Menino e o Mundo mostrou-se necessário, devido ao seu


baixo orçamento de cerca de R$ 1,6 milhão, equivalente na época a cerca de US$ 500
mil (WAGON, 2016), tornando-o o filme de menor orçamento entre os indicados ao
Oscar de Melhor Animação em 2016. O baixo orçamento resultou em uma equipe
pequena, e em Alê Abreu concentrando durante a produção as funções de diretor,
diretor de animação e de cenários; dando voz a um dos personagens; e inclusive
realizando a montagem na fase de finalização. Ao todo, a produção do filme, feita pela
produtora Filmes de Papel, durou três anos e meio, mais seis meses para preparar o
lançamento.
189
O resultado final é um filme cujo ponto de partida é quando Cuca, um menino
que vive uma vida simples em uma zona rural, vê seu pai indo para a cidade grande em
busca de emprego. Sofrendo com sua falta, Cuca vai atrás dele para trazê-lo de volta
para casa. Em sua busca, ele encontra personagens como o Velho, que Caco conhece em
uma plantação de algodão; e o Jovem, que trabalha em uma fábrica que transforma o
algodão em tecido. Através dos dois, Cuca entra em contato com as diferentes formas de
exploração, além de diversos dilemas típicos do terceiro mundo. Ao mesmo tempo,
Cuca conhece novas músicas, alegrias e também o espírito revolucionário da arte.

Vê-se, assim, que em relação à autoria Alê Abreu produziu o filme de acordo
com sua própria visão, assumindo várias funções. Em O Menino e o Mundo, ele criou
um mundo próprio, de acordo com seu próprio imaginário e ideais. Ele acredita
fielmente no poder revolucionário da arte, na “magia” da ingenuidade infantil e na
superioridade de uma vida fora dos padrões industriais modernos, e insere essas crenças
em sua obra. Alê preencheu-a também com certo apelo nostálgico, um saudosismo de
uma sociedade pré-industrial, incutindo isso ao longo da narrativa, com o protagonista
tendo flashbacks felizes de sua vida no campo. A própria estética visual do filme gera
em muitos adultos uma sensação nostálgica, ao lembrá-los de seus próprios desenhos
que faziam na infância.

Uma peculiaridade narrativa é que o filme possui poucos diálogos, e quando


estes aparecem, são em português lido de trás para frente. Esta não necessidade de se
compreender os diálogos faz com que o filme se comunique em qualquer meio cultural,
sem a necessidade de adição de legendas ou dublagem. Em entrevista (GUIMARÃES,
2015), porém, Alê Abreu admitiu que O Menino e o Mundo tem uma linguagem da
cultura da animação e precisa ser visto por um público que esta acostumado com ela.

De fato, uma vez finalizado, O Menino e o Mundo encontrou dificuldades de


exibição no Brasil. Devido à sua linguagem artística, foi lançado basicamente no
circuito de arte, apesar das grandes parcerias de distribuição de Abreu no país
(GUIMARÃES, 2015). Ainda assim, o filme foi bem recebido pela crítica, ganhando
prêmios e menções importantes, e chamando a atenção de distribuidores internacionais.
Quando O Menino e o Mundo chegou à França, já foi lançado como o Top 3 da crítica,

190
resultando em uma recepção de mercado ainda melhor que a brasileira. E, em 2014, O
Menino e o Mundo ganhou o prêmio de Melhor Filme no Festival de Annecy, segunda
vitória seguida do Brasil no festival após ganhar o mesmo prêmio em 2013 com Uma
História de Amor e Fúria - feito marcante, considerando que até então nenhuma
animação brasileira havia sido sequer indicada ao prêmio.

Com isso, o filme chamou a atenção da GKIDS, uma das maiores distribuidoras
norte-americanas de animações independentes e estrangeiras. A distribuidora
internacional do filme, a Elo Company, reduziu o valor de licença ao assinar o contrato
de distribuição nos Estados Unidos, com a condição de a GKIDS comprometer-se em
levar o filme à competição do Oscar (Wagon, 2016). Definiu-se por esperar um ano para
o lançamento de O Menino e o Mundo nos EUA. Assim, em dezembro de 2015, O
Menino e o Mundo foi lançado nos EUA, rapidamente chamando a atenção da crítica
norte-americana, e conquistando a esperada indicação ao Oscar de Melhor Animação.

Tanto a GKIDS quanto a Elo e a Filmes de Papel começaram então a coordenar


uma campanha para conseguir os votos dos membros da Academia (Wagon, 2016). Ao
final, porém, O Menino e o Mundo não ganhou o Oscar. Ainda assim, o fato de o filme
ser indicado em um espaço majoritariamente dominado pelos blockbusters do ramo,
apesar de uma campanha de marketing consideravelmente menor que seus concorrentes,
e de a animação brasileira estar apenas começando a construir um histórico de boa
recepção no exterior, mostra a personalidade da animação produzida no Brasil
(CORTÊS, 2016).

Irmão do Jorel - Televisão

A segunda animação a ser analisada, representando a produção para televisão, é


Irmão do Jorel, um dos grandes sucessos de público e crítica da animação brasileira
atual neste meio. Primeira série animada brasileira do canal a cabo Cartoon Network,
foi lançada em 2014, e embora tenha como público-alvo crianças entre 7 e 11 anos,
tornou-se um dos programas mais assistidos do canal no Brasil, inclusive entre públicos
de outras faixas etárias. O sucesso foi tanto que Irmão do Jorel foi renovado para mais
duas temporadas e exportado para o restante da América Latina. Mas o que permitiu que
uma série sobre as desventuras de um menino tão impopular que nem sequer tem um
191
nome, ambientada em um cenário semelhante ao Brasil dos anos 1980/90, tivesse
tamanha boa recepção de público? Segundo Pereira ([2016?]), os principais motivos são
a identificação e a surpresa.

Primeiro, a identificação. Irmão do Jorel é uma série que apela principalmente


para o imaginário do público brasileiro. Mas isso não a impede de ser também
universal, mesmo que deixe explícito que é ambientada no Brasil. Um dos aspectos
mais universais da série é o familiar, com os personagens representando arquétipos que
podem ser encontrados em praticamente toda família, não importa de que país. Durante
todo o processo de criação de Irmão do Jorel, a identificação por parte do público com
os personagens e as histórias sendo contadas foi um dos aspectos mais zelados da série.
O criador da série, Juliano Enrico, e sua equipe sempre souberam contar histórias que,
não importa em que língua, fazem quem as assiste lembrar-se de sua própria vida e das
pessoas que conhece.

Depois, de acordo com Pereira ([2016?]), vem a surpresa. Embora a série lide
com dilemas, dúvidas e situações comuns ao universo infantil, ela é ambientada em um
mundo visto de uma perspectiva imaginativa e fantasiosa, por muitas vezes
verdadeiramente surrealista: O próprio título se deve ao fato de que o protagonista, um
menino de 9 anos, é o irmão mais novo de um garoto popular chamado Jorel, e, devido a
isso, todos os seus conhecidos o chamam simplesmente de “Irmão do Jorel”.

O surrealismo, porém, não para aí, com cada episódio protagonizando o Irmão
do Jorel em uma situação aparentemente cotidiana que, devido à realidade fantasiosa de
seu universo, ganha uma proporção absurda e inesperada. No primeiríssimo episódio da
série, o menino quer provar que pode andar numa bicicleta sem rodinhas para participar
de uma corrida; a solução encontrada é ele usar rodinhas no capacete. No episódio
seguinte, o Irmão do Jorel se recusa a sair da gangorra após o recreio para não rasgar
seu shorts novo, que ficou preso nela; isso resulta em os outros alunos da escola
iniciarem uma revolução, que ao final é reprimida com balas de mascar. E,
constantemente, detalhes “bizarros” como policiais desenhados como palhaços e
“árvores de pogobol” (D’ANGELO, 2016) são acrescentados aos cenários.

192
Junto a isso, Irmão do Jorel contém um forte elemento de nostalgia, com
inspirações provindas da infância de seu criador, Juliano Enrico, que admite que a série
tem origem em uma releitura do que ele via à sua volta nessa época. As primeiras
histórias protagonizando o personagem eram baseadas em fotografias e memórias de
família (D’ANGELO, 2016). Assim, Pereira [2016?] destaca, o universo da série é
fortemente inspirado na cultura dos anos 1980 e início dos anos 1990 e recheado de
referências e paródias à cultura pop deste período, como no figurino e cenários.
Percebe-se nisso um forte apelo nostálgico que, embora não ressone tanto com o
público infantil, tem impacto no público mais velho, como, por exemplo, os pais das
crianças que assistem a série junto com elas. Essa nostalgia, porém, muitas vezes vem
na forma de sátira, destacando os elementos ridículos da cultura desse período, fazendo
o público mais velho lembrar o que a tornava divertida.

Essas primeiras histórias, que misturavam ficção com realidade, Juliano


escreveu em 2003, como uma forma de complementar fotos constrangedoras de sua
família que ele publicava no extinto site Fotolog. Essas histórias foram mais tarde
transformadas em quadrinhos e, quando o Cartoon Network abriu um pitching para
investir em animações brasileiras em 2009, em projeto de série animada para TV.

Para que a série saísse do papel, Juliano teve que mudar o tom das histórias de
Irmão do Jorel, que nos quadrinhos possuíam um humor mais adulto, para algo mais
agradável ao público infantil, mudando inclusive o traço dos personagens (D’ANGELO,
2016).

Os elementos absurdos, talvez sejam por sua vez o que mais atraiam o público
infantil, que não sente a nostalgia citada anteriormente. Enrico conseguiu em Irmão do
Jorel além de criar um universo surrealista, torna-lo apelativo ao público infantil, que
embora não reconheça as referências mais adultas da série consegue achar graça de
coisas como um capacete com rodinhas ou soldados com cara de palhaço. É
principalmente, porém, a capacidade das crianças de se colocar no lugar do protagonista
nas situações que ele vive, por mais absurdas que sejam, que torna Irmão do Jorel uma
grande série.

193
Como é típico em séries de TV, cada episódio de Irmão do Jorel contém uma
trama que começa e termina em si próprio. Este recurso permite que os episódios
possam ser assistidos em separado ou fora de ordem, o que facilita a exibição de
reprises e também acelera a produção, com diversos roteiristas, entre fixos e
colaboradores, trabalhando simultaneamente. Na segunda temporada, porém, por as
reprises terem tornado o público mais familiarizado com a série e seus personagens,
alguns elementos novos surgiram e agregaram-se à Grande Narrativa, e perto do final da
temporada surge pela primeira vez uma narrativa que se estende para além de um único
episódio, quando no episódio Elefante de Porcelana a melhor amiga do Irmão do Jorel,
Lara, muda-se para o Japão, afetando os episódios seguintes.

Embora a série seja uma grande produção para os padrões brasileiros, Juliano
envolve-se em todas as etapas de criação da série. Foi trabalhando em várias áreas que
descobriu o ator de voz do Irmão do Jorel, Andrei Duarte, concept artist que, durante a
produção, fazia vozes engraçadas que Juliano achou que combinavam com o
protagonista. Outros personagens também tiveram suas personalidades marcadas pelos
improvisos de seus atores de voz, que gravam seus diálogos antes do processo de
animação, que se adapta às falas. A ludicidade da produção, portanto, é notável. Se a
equipe não tivesse liberdade de se divertir durante o processo, a série seria diferente.
Apesar disso, a autoria de Juliano Enrico é bem clara. Foi ele que criou a série, baseado
em suas experiências de vida, e cuida pessoalmente para que ela não difira demais de
sua visão. Até quando dá liberdade para os envolvidos improvisarem e fazerem o que
acham melhor, ele sempre dá a palavra final quanto a o que passa e o que não.

Cueio – Internet

Uma das maiores séries animadas de internet do Brasil nasceu do desejo de fazer
uma animação rápida, econômica e autoral, como seu próprio criador, Ronaldo de
Azevedo, explica (AZEVEDO, 2017). Cueio, que começou sendo assistida apenas pelos
amigos de Ronaldo, em cerca de dois anos tornou-se uma das séries animadas mais
vistas do YouTube brasileiro, seus vídeos somando quase 40 milhões de visualizações.
A análise de Cueio se torna essencial para este artigo: Além de trazer para o meio da
194
internet as características apresentadas nos casos anteriores, estas estão presentes de
formas às vezes extremas, e bastante pensadas durante a criação.

Animador que não aguentava mais fazer animações que não fossem suas
próprias criações, Ronaldo resolveu em 2013 investir no YouTube como forma de
realizar trabalhos mais autorais. Sua primeira ideia era uma animação chamada Gato
Galáctico, porém tal projeto era ambicioso e demorado, considerando que teria que
produzi-lo sozinho. Assim, seu canal estreou com a série Cueio, sobre um coelho falante
chamado Cueio capaz de se transformar em um humanoide (AZEVEDO, 2017), com
uma atitude fria que, ao longo da série, é revelado que é resultante de uma misteriosa
perda de memória. Produzindo vídeos com 1 a 3 minutos, os quais ele escrevia,
animava, dublava e sonorizava sozinho, Ronaldo lançou 14 episódios entre novembro
de 2013 e maio de 2014. Embora cada vez mais pessoas assistissem, a série ainda tinha
um alcance limitado. Até que Ronaldo resolveu lançar Pudim Amassado, um vídeo em
que os personagens cantam uma música cômica.

O vídeo viralizou, e permanece o mais visto do canal. Com isso, este teve um
boom de inscrições, e mais pessoas passaram a acompanhar a série (AZEVEDO, 2017).
Diversos elementos fizeram com que Cueio criasse um público fiel: A mistura de humor
nonsense com ação; a estrutura narrativa, inicialmente episódica, mas que ganha uma
continuidade que se estende de um episódio para o outro, criando uma expectativa
quanto ao episódio seguinte; e um apelo nostálgico que Ronaldo colocou em Cueio,
com um “retorno à infância” sendo importante à narrativa. Os personagens
frequentemente recriam brincadeiras de criança, e inclusive o 15º episódio, A Nossa
Infância, é um emotivo flashback que relembra em tom saudosista as férias de verão da
infância dos personagens. O próprio estilo de animação pode ser visto como um retorno
de Ronaldo às animações que assistia quando criança.

Os episódios seguintes começaram a ter durações mais longas e uma melhor


qualidade de animação. Isso exigiu também um custo de produção maior, com o qual
Ronaldo só pôde arcar graças à sua mãe, com a qual na época morava, pois somente
com o sistema de monetização de vídeos do YouTube ele não conseguia ter lucros

195
(AZEVEDO, 2017), apesar do estilo de animação de Cueio ser a princípio bastante
econômico.

A dificuldade em financiar sua série não foi o único problema pelo qual Ronaldo
passou nesta nova fase de Cueio. Até agosto de 2014, todos os seus vídeos tinham sido
relacionados a Cueio. O fato de querer fazer outros projetos e não ter o devido
reconhecimento financeiro pela sua série, junto com o trabalho exaustivo que esta lhe
exigia, o levaram a um estado de desânimo que, conscientemente ou não, se refletiu no
próprio Cueio (AZEVEDO, 2017). Se seus primeiros episódios eram alegres e
inocentes, a série gradualmente se tornou mais sombria, com o protagonista tendo que
lidar com sua falta de memória e seu crescente desligamento de seus amigos, atingindo
um estado depressivo. E assim, após 20 episódios, Ronaldo encerrou o que ele chamou
de “1ª Temporada” de Cueio, em um cliffhanger no qual Cueio, recuperado de sua
depressão, dirige-se a um torneio de luta.

Percebe-se que a ludicidade com que Ronaldo produziu Cueio é indiscutível: Ele
estava fazendo aquilo que queria, e quanto mais ele se divertia, mais a série se tornava
divertida. E quando ele entrou em um estado melancólico devido ao excesso de trabalho
e falta de reconhecimento, Cueio se tornou um meio pelo qual pôde expressar sua
frustração.

Após o fim da “1ª Temporada”, Ronaldo começou uma nova fase em seu canal e
passou a se dedicar a outros conteúdos (AZEVEDO, 2017). Cueio, porém, continuava
sendo sua série mais popular, e a escolha por termina-la em um cliffhanger fez com que
comentários exigindo uma segunda temporada de Cueio se tornassem frequentes em
seus vídeos.

A insistência e, em muitos casos, a negatividade desses comentários obrigou


Ronaldo a lançar um vídeo explicando o que aconteceu com Cueio. No vídeo, além de
contar os motivos que o levaram a criar e, depois, terminar com a série, ele explica que
nunca de fato a abandonou, e que além de realizar um concurso para redesenhar os
personagens de Cueio como crianças, isso o inspirou a ponto de ele escrever uma
pequena história em quadrinho em cima dos personagens redesenhados (AZEVEDO,
2017). A repercussão do vídeo entre os fãs foi tão positiva que, em seguida, Ronaldo
196
publicou outro vídeo no qual apresentava a história em quadrinho e, pouco depois, um
em que narra em mais detalhes como criou a série e o porquê de certas escolhas
narrativas.

Em Como Eu Criei o Cueio (2017), Ronaldo descreve suas principais


inspirações, como outras animações de internet de humor nonsense e animações
japonesas de ação do estilo shonen; conta como se utilizou do surrealismo, idealizando
um universo com elementos nonsense como animais que viram humanoides, sem jamais
dar uma explicação de porque isso acontece. A própria estrutura dos episódios iniciais
possui um tom nonsense, assumindo a forma de pequenos quadros cômicos que pouco
se atêm a uma narrativa com introdução, desenvolvimento e conclusão. Para que,
porém, as cenas de ação e nonsense pudessem ser melhor animadas sem tornar a
produção custosa, Ronaldo teve que economizar em diversos pontos, não usando
dubladores, criando poucos personagens, usando poucas cores, e criando cenários
simplistas. O foco da série teria que ser na narrativa e nas relações dos personagens. Por
isso, estes possuem personalidades bastante marcadas e contrastantes, e seus dilemas
podem ser compreendidos por um público de praticamente qualquer origem. Sendo
assim, os episódios iniciais definem os personagens, e no restante da série, cada
episódio coloca um novo obstáculo para que estes resolvam à sua própria maneira. Com
um universo de ambientação simples e inspirado em estilos de animação de diversas
origens, Cueio não se preocupa em representar nenhuma cultura específica, tornando-se
assim uma série universal.

A autoria de Cueio é assim a mais evidente das animações analisadas. Ronaldo


realizou sua obra quase inteiramente sozinho, utilizando-se de seus conhecimentos
sobre como fazer uma animação. Além disso, ele criou o universo de Cueio e sua
história baseado em seus gostos pessoais e no que ele achava certo para a série,
mudando o rumo e o humor da narrativa de acordo com seu próprio estado emocional
durante a produção.

Até o momento em que este trabalho foi escrito, Ronaldo de Azevedo não voltou
mais a se manifestar a respeito de Cueio. E embora não tenha dado indício de que irá
fazer a 2ª temporada ou de que a série sequer volte no formato de animação, ao

197
apresentar sua história em quadrinho em O Recomeço de Cueio (2017) Ronaldo admitiu
a ideia de fazer um livro encadernado com pequenas histórias em quadrinhos de Cueio.
Enquanto isso, ele tem se dedicado a diversos conteúdos, inclusive vídeos não
animados. E embora seu canal tenha mudado, Ronaldo admite estar feliz com isso, e
pretende continuar mudando e experimentando novos conteúdos. Como ele próprio
afirma, qualquer artista que coloca seu coração em sua arte também irá acabar pondo
seus sentimentos internos nela (AZEVEDO, 2017), e se ele muda, seu canal também
mudará.

Análise comparativa

Ao analisar as animações brasileiras O Menino e o Mundo, Irmão do Jorel e


Cueio nota-se que muitas características são comuns às três animações. Pode-se então
inferir que essas seriam algumas das principais características da animação brasileira,
que embora não necessariamente formem um perfil desta como um todo, são comuns
em animações de grande reconhecimento, seja do público e/ou da crítica. São elas:
Autoria, ludicidade, universalidade, apelo nostálgico e durrealismo/elementos absurdos.

Característica do audiovisual brasileiro independente, a autoria inicialmente


surge da necessidade, devido à falta de recursos de muitas animações brasileiras,
obrigando o criador a assumir diversas funções dentro de sua obra. Mesmo em
animações de maior orçamento, porém, como foi o caso de Irmão do Jorel, nota-se
certo incentivo à autoria. Em entrevista à Superinteressante (2016), Juliano Enrico
admitiu que a Cartoon Network pouco interferiu na produção, uma vez que o projeto da
série foi adequado aos padrões infantis do canal.

Uma vez que o autor na animação brasileira desfruta muitas vezes de grande
liberdade, é comum sua obra assumir um estilo que este ache mais divertido pra si
mesmo de trabalhar, e aí entra o conceito de ludicidade. Nas três obras analisadas, os
autores, antes mesmo de pensar no que o público gostaria de assistir, pensaram em
primeiro lugar no que eles próprios gostariam de fazer, procurando ter certo prazer na
produção de seus trabalhos. Vale lembrar que este conceito não necessariamente tem a

198
ver com tornar a animação bem-humorada, mas sim com, mesmo nos momentos mais
sérios, fazer a animação de uma forma “lúdica”, que o autor considere melhor para si.

Vale lembrar neste ponto que a animação é um processo bastante trabalhoso, e


que por mais que o cenário esteja aos poucos mudando nos últimos anos, animadores
ainda passam por dificuldades durante a produção de seus trabalhos. A descrição do
trabalho em animação como algo exaustivo, porém recompensador por si só, é
compartilhada por Alê Abreu, Juliano Enrico e Ronaldo de Azevedo em múltiplas
entrevistas e vídeos.

As três animações citadas, porém, não são apenas trabalhos introspectivos, que
apenas o próprio autor é capaz de entender. Todas são de certa forma universais, lidando
com dilemas sociais, familiares/psicológicos que inclusive espectadores de fora do
Brasil são capazes de entender. Essa identificação é um dos grandes fatores que atraem
o público a estas animações.

Coelho (2012) nota que muitas animações brasileiras buscam uma identidade que
mescle uma temática universal com características locais brasileiras. Ele inclusive vê
essa característica como se alinhando aos “sintomas” do novo contexto pós-moderno, no
qual a “nação” morre diante da globalização.

Além deste caráter universalizante, porém, outra característica bastante específica


das três animações analisadas é que todas, em maior ou menor grau, possuem um forte
apelo nostálgico. Seja a idealização de um mundo bucólico menos industrializado
(como em O Menino e o Mundo), a inspiração satírica na cultura de um período
específico da história (Irmão do Jorel), ou a lembrança por vezes saudosista das
brincadeiras, jogos e momentos da infância (Cueio), nas três obras os autores parecem
utilizar-se da animação como um escapismo da atualidade, por vezes vista até de forma
crítica.

Não apresentando os problemas sociais reais, os desenhos cumprem o papel de


disfarce do homem contemporâneo. Ao mesmo tempo, são criados como uma forma de
esperança, para que as crianças superem as falhas existentes e construam um futuro
melhor.

199
Não é apenas o escapismo da atualidade, porém, que se nota nas animações
analisadas. Há também o escapismo da realidade como um todo, na forma de uma
estética surrealista que incorpora elementos visuais/narrativos absurdos à animação.
Característica que pode ser relacionada à ludicidade estudada anteriormente, este
surrealismo é também uma forma deste construir um miniuniverso próprio, paralelo à
realidade, e que melhor expressa suas próprias vontades e gostos, sem, porém, deixar de
ser compreensível ao público geral.

Sem precisar se render às leis físicas do mundo real, a animação é provavelmente


o processo cinematográfico onde criadores mais têm liberdade para criar cenários e
situações absurdas.

Conclusão

Atualmente, a animação brasileira passa por um alargamento da produção e


internacionalização: Séries de animação brasileiras sendo recentemente importadas e
traduzidas para diversas línguas, e no cinema, o Anima Mundi tornou-se uma referência
mundial, não apenas exibindo centenas de animações brasileiras e inclusive
internacionais todos os anos, como também oferecendo uma plataforma de animação
que inclui cursos e oficinas que já foram responsáveis pela iniciação de diversos atuais
animadores profissionais.

Muitos autores citam características pontuadas que definem a animação


brasileira, diferentes de acordo com a concepção de cada um. Pegando três animações
recentes conceituadas, o artigo visou apresentar apenas as características que comuns às
três, formando assim, cinco que seriam essenciais a elas. Essa simplificação buscou
facilitar o entendimento sobre o assunto que muitas vezes aparece disperso na literatura
brasileira, e auxiliar futuros entusiastas de animação a entenderem e admirar as grandes
animações brasileiras que souberam alcançar grande reconhecimento com seus próprios
méritos.

Independente da mídia, é notável que a tendência da produção de animações no


Brasil nos últimos anos tem sido de aumento. Junto com o aumento na produção, é

200
possível perceber que as animações no Brasil têm evoluído consideravelmente em anos
recentes quanto à qualidade técnica, à criatividade temática, à diversidade estilística, às
parcerias internacionais, e à diversificação midiática. Houve também um alargamento
do público em anos mais recentes, com a animação deixando de ser um produto
principalmente infantil e atraindo cada vez mais adultos, muitas vezes devido a um
apelo nostálgico da animação. É possível de se dizer que temos algo parecido com uma
indústria de animação no Brasil? “Talvez seja um bom começo”, diz Coelho (2012).

Referências bibliográficas

AZEVEDO, Ronaldo de. COMO EU CRIEI O CUEIO. 10’01’’. Em:


<https://www.youtube.com/watch?v=SpiWf7QzUyQ&t=77s>. 2017. Acesso em: 05/10/2017.

___________________. O QUE ACONTECEU COM CUEIO? 10’10’’. Em:


<https://www.youtube.com/watch?v=0t4DZ3EqXlY>. 2017. Acesso em: 30/09/2017.

__________________. O RECOMEÇO DE CUEIO. 7’54’’. Em:


<https://www.youtube.com/watch?v=A_v8xIlMqt4>. Acesso em 08/10/2017.

COELHO, Davi de Barros. Amazônia Animada: A Representação da Região


Amazônica no Cinema de Animação Brasileiro. Rio de Janeiro: PUC-Rio. 2012.

CORTÊS, Arthur. “O Menino e o Mundo” – quatro entrevistas com o diretor. Em:


<http://www.setcenas.com.br/jornal-movimento/o-menino-e-o-mundo-quatro-entrevistas-com-
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D’ANGELO, Helô. Batemos um papo com Juliano Enrico, criador do ‘Irmão do


Jorel’. Em: <https://super.abril.com.br/cultura/batemos-um-papo-com-juliano-enrico-criador-
do-irmao-do-jorel/#>. 2016. Acesso em 23/09/2017.

GUIMARÃES, Thayz. O menino e o mundo é vendido para 80 países. Em:


<http://www.filmeb.com.br/noticias/nacional/o-menino-e-o-mundo-e-vendido-para-80-paises>.
2015. Acesso em 27/08/2017.

PEREIRA, Aline. “Irmão do Jorel”: sucesso levou primeiro desenho animado


brasileiro da Cartoon ao exterior. Em: <https://www.vix.com/pt/entretenimento/545904/irmao-
do-jorel-sucesso-levou-primeiro-desenho-brasileiro-da-cartoon-ao-exterior>. [2016?]. Acessado
em 23/09/2017.

WAGON, Sabrina Nudeliman. Como “O Menino e o Mundo” chegou ao Oscar. Em:


<http://teletela.com.br/telaviva/12/02/2016/como-o-menino-e-o-mundo-chegou-ao-oscar/>.
2016. Acessado em 07/09/2017.

201
GLOW: O início do Pro-Wrestling Feminino na visão do Netflix

GLOW: The start of Women's Pro-Wrestling in Netflix's vision

Carlos Cesar Domingos do Amaral1

Resumo: A Luta Livre é uma prática que sempre recebe os olhares de produções e a
Netflix fez o seriado GLOW em referência ao antigo GLOW Gorgeous Ladies of
Wrestlling. O objetivo desse trabalho é analisar o que existe de Luta Livre no seriado e
como se enquadra no resgate das lutas femininas. A justificativa fica por conta do Pro-
Wrestling está em pleno desenvolvimento e um produto audiovisual como o GLOW pode
contribuir para como as pessoas possam compreender tal prática de uma melhor forma e
assim combater o preconceito. Metodologia nos dez episódios da temporada. Revisão
com DoAmaral (2016), Barthes (1972), Drago (2007). Resultados reforçam a força das
mulheres em brilharem pelos shows e dá força a mensagem do embate entre vilões e
heróis.
Palavras-chave: GLOW; Luta Livre; Netflix; Pro-Wrestling Feminino; Seriado.

Abstract: Pro-Wrestling is a practice that always receives the looks of productions and
Netflix did the series GLOW in reference to the old GLOW Gorgeous Ladies of Wrestling.
The objective of this work is to analyze what exists of Pro-Wrestling in the series and how
it fits in the rescue of the feminine fights. The justification is because Pro-Wrestling is in
full development and an audiovisual product like GLOW can contribute to how people
can understand such a practice in a better way and thus combat prejudice. Methodology
in the ten episodes of the season. Review with DoAmaral (2016), Barthes (1972), Drago
(2007). Results reinforce the strength of women to shine through the shows and give
strength to the message of the clash between villains and heroes.
Key words: GLOW; Netflix; Women’s Pro-Wrestling; Sitcom; Wrestling.

Introdução

A Luta Livre é uma prática que sempre recebe os olhares de produções e a Netflix
fez o seriado GLOW em referência ao antigo programa GLOW: Ladies of Wrestlling. A

1
Mestre em Comunicação na Universidade São Caetano do Sul – USCS. Jornalista pela Universidade de Uberaba
(UNIUBE), Especialista em Jornalismo Esportivo e Negócios do Esporte pela FMU Faculdades Metropolitanas Unidas.
E-mail: carlaomestre@hotmail.com
202
sitcom trata de como eram as atividades das atletas fora das câmeras e dificuldades no
cotidiano.

O objetivo desse trabalho é analisar o que existe de Luta Livre no seriado e como
ela se enquadra no resgate das lutas femininas. Justificando isso na proposta de que o
termo para o Pro-Wrestling está em pleno desenvolvimento e um produto audiovisual
como o GLOW pode contribuir para como as pessoas possam compreender tal prática de
uma melhor forma e assim combater o preconceito.

Metodologia focada nos dez episódios que compõem a primeira temporada. Além
disso breve revisão bibliográfica com DoAmaral (2016) que relata seu termo de Esporte
de Entretenimento, algo nunca feito antes nos estudos de Luta Livre.

Esporte de Entretenimento: Prática esportiva que mistura ações do


teatro e espetáculo em busca de levar entretenimento aos espectadores.
Os resultados são determinados nos bastidores, os participantes e a
empresa sabem o que irá acontecer, os fãs não. Os praticantes precisam
ser atletas, pois o esforço físico é alto. Os riscos de integridade física
são os mesmos que qualquer outro esporte. Objetos cortantes, cadeiras,
escadas, mesas e até mesmo fogo podem ser usados na busca de maior
adrenalina. O local para as exibições podem ser o ringue, tatame ou
qualquer outro espaço como garagens, jardins, parques e etc
(DOAMARAL, 2016, p. 11 – 12).

Barthes (1972) parte pelo caminho de explicar o que deveria se esperar de uma
luta nesse estilo. Nesse caso o autor compreende que é o herói vencer o vilão frente a
todas suas falcatruas durante a rivalidade entre ambos. Enquanto isso Drago (2007)
aparece explicando características da Luta Livre, como os que preferem lutar mascarados,
assim que em algumas passagens lembra sobre os combates femininos. Pesquisa
documental em alguns sites americanos que lançaram suas reviews sobre o seriado. Delas
apontamos:

As Gorgeous Ladies of Wrestling sofreram chutes na cabeça, joelhos


até a virilha, chicotadas, insultos, rivalidades, ridículos e músculos de
neon. Na sexta-feira, eles enfrentam o que pode ser seu desafio mais
difícil ainda: uma nova série Netflix com base nelas. Seu antigo
programa de TV, "GLOW", foi enorme na década de 1980. As mulheres
cantavam, dançavam, desenhavam comédia e se lançavam em torno de
um ringue. O novo "GLOW" é uma versão ficcional de como o antigo
"GLOW" veio a ser. Nenhuma das mulheres originais está nele. Nem -
com uma exceção - foram consultados - um fato que não está
203
exatamente saindo bem. (...) Meltzer continua: "Eles dizem que não é
sobre nós, mas então porque eles estão usando nosso nome? Por que
não chamar outra coisa? " Se as mulheres se sentem proprietárias sobre
"GLOW", é só porque eles deram tanto de si mesmos para isso. Foi um
trabalho brutal. O pagamento era miserável, o material era racista. Para
muitos, no entanto, foi o melhor trabalho que já tiveram. A brincadeira,
é claro, é que o wrestling profissional é falso. Mas a dor era
real. Praticamente nenhum deles começou como lutadoras
treinadas. Elas eram atrizes, dançarinas e modelos que responderam ao
chamado para "um novo show de entretenimento esportivo"
(ALIMURUNG, 2017)

Enquanto que a visão de Stuever (2017):

No caso do "GLOW", o objetivo é dominar a escavação fisicamente


exigente da luta livre profissional, com um pouco de dignidade
intacta. As mulheres que formam GLOW - “Gorgeous Ladies of
Wrestling,” uma vida real de 1980 na TV e a sensação em que este show
é baseado vagamente em suportar uma série de humilhações e contar
com compromissos pessoais. Elas também devem aprender a deixar de
lado suas diferenças e cooperar a tal ponto que, no final da série, elas
estão emprestando tampões uma para a outra porque seus ciclos
menstruais foram sincronizados. Do ringue de luta livre, surge o
empoderamento de suas irmãs. (...) Mas qual é exatamente o triunfo que
representa "GLOW"? A conquista de entretenimento barato? A
promessa dos salários de showbiz? A adrenalina? Embora suas
personagens sejam encarregadas de agradar um mercado dirigido por
homens, "GLOW" parece estar satisfeito principalmente na realização
física. É também uma espécie de história de parto, a criação do zero de
um conjunto de personagens conhecidos pelos fãs de wrestling como
heróis e vilões (STUEVER, 2017).

Segundo Balogh (2002, p. 95) as produções audiovisuais como os seriados foram


de grande impacto para os americanos. Isso porque contribuíram para a alfabetização dos
populares em outros países como o Brasil, assim como criaram um nicho cultural entre
as pessoas nos Estados Unidos. Obviamente as produções seguiam um tema e também o
dia certo para serem levadas a TV. A autora (2002, p. 53) conta que tal atração possui
uma narrativa diferenciada. “É preciso que ele seja finito, ou seja, tenha começo e fim
entre os quais se configura gradualmente um efeito de sentido". GLOW sem dúvida preza
por isso, sendo sua busca de contar pequenos fatos que fazem a diferença no ato do que
será levado ao ringue. O autor continua. "É necessário que haja um esquema mínimo de
personagens" (BALOGH, 2002, p. 53). O elenco principal é de certa forma grande e a
Luta Livre acaba sendo a parte em que as ligam "É necessário que esses personagens

204
tenham algum tipo de qualificação para as ações que realizam ao longo da história"
(BALOGH, 2002, p. 53). Elas são mulheres que buscam sobreviver das apresentações do
Pro-Wrestling. Por fim Balogh (2002, p. 61) afirma que é "essencial todos os modelos
narrativos giram em torno das ações de seus personagens. As ações executadas pelos
personagens para atingir os seus objetivos constituem o cerne da narrativa". Nesse ponto
a Luta Livre toma dois lados, primeiro que é a forma delas ganharem dinheiro e assim
poderem sobreviverem, assim como também é o esporte que fizeram elas saírem do
anonimato / fracasso de outras profissões para serem admiradas ou odiadas segundo os
personagens que decidiram seguir.

Características dos episódios da primeira temporada


Episódio 1
Apresenta-se as personagens, mas acompanha-se a história de Ruth Wilder que é
uma atriz, mas vem tomando muitos negativos em testes de trabalho. Ela chega a abordar
uma das diretoras no banheiro e pergunta sobre o papel na atração que acaba negado.
Dessa mesma pessoa, Ruth recebe um recado na secretária eletrônica de uma seleção para
“garotas não-convencionais”.
Antes disso, Ruth malhou com sua melhor amiga Debbie e a noite recebeu a visita
inesperada de um homem casado e eles tiveram uma relação sexual.
Na seleção de garotas se apresenta Sam Sylvia, um diretor de filmes trash e que
vai dirigir um novo programa de Luta Livre feminina, o GLOW – Gorgeous Ladies of
Wrestling. Das 50 candidatas apenas 15 restam.
Durante os treinos Ruth acaba sendo dispensada por querer naquele momento
adicionar motivação a luta. Em casa ela assisti o WWF Superstars e as atuações de Hulk
Hogan, um dos maiores nomes de todos os tempos da Luta Livre. Ela o imita nas formas
de expressão e de certa forma monta um personagem. No outro dia ela volta ao ginásio
de treinos e atua como fez em casa, enquanto isso Debbie invade o local e a acusa de ter
roubado seu marido. Debbie derruba Ruth no ringue e fica lhe dando tapas. Sam assiste
tudo e as imagina no futuro como grandes lutadoras e assim termina o primeiro episódio.

205
Episódio 2
Ruth volta ao elenco de GLOW após a briga com a agora ex-amiga. Ela diz que
tudo aquilo foi encenado, mas em cenas posteriores é deixado claro ter sido real. Sam
rouba na bolsa de Ruth o endereço de Debbie e vai atrás dela. Enquanto isso as mulheres
ficam treinando por conta própria. Algumas discutem entre si, mas tudo é porque elas não
têm afinidade alguma umas com as outras.
Sam é usuário de cocaína e em diversas cenas o mostram usando tal artefato. Ele
decide que Ruth será uma vilã na atração e ela não gosta da ideia, pois gostaria de ser
amada e não odiada. Ele explica o porquê da decisão e como os vilões possuem as
melhores falas ela compreende.
Debbie aceita ser a estrela do show, mas sem Ruth no elenco e Sam concorda.

Episódio 3
Sam faz um roteiro e elas o encenam para Bash, um produtor rico que vai ajudar
GLOW a se popularizar na TV. Ao final Bash se diz animado, mas seu semblante diz o
contrário. Ele chama a todas para uma festa em sua mansão. Debbie vai com ele no
helicóptero e as outras de carro. Sam gosta de bajuladores e por isso ele suporta Jasmine
que adora suas obras.
Ruth e as outras curtem a festa e Bash dá a elas fantasias para que isso alimente a
criatividade delas e assim os personagens na Luta Livre possam surgir. Ele entende disso
muito mais do que qualquer coisa que Sam possa fazer. É isso que os difere e também
explica os insucessos do diretor.
Sam e Bash acabam discutindo, mas por apelo de Ruth, Sam volta e se acerta com
o produtor. Após GLOW, Bash terá que financiar um filme de Sam, mas no programa de
Luta Livre ele terá total abertura de fazer qualquer mudança.
As mulheres gravam para a câmera atuando como suas personagens. Por ser
bonita, Debbie rouba o personagem de outra lutadora e se torna na Liberty Belle. A outra
restou o papel de Viking. Desde o segundo episódio até o final da atração Debbie é
favorecida por ter sido atriz em uma novela de grande porte.

206
Episódio 4
Sam e Bash chegam de uma viagem de fim de semana e pelos seus semblantes usaram
cocaína por bastante tempo. Eles decidem que todas devem s mudar para um hotel e assim
darem mais foco aos treinos. Debbie não precisa se juntar a elas e o favorecimento
continua.
Ruth se dá bem nisso, pois deixa as dívidas de locação, gás e etc com essa
mudança, mas as outras mulheres perdem o contato com familiares por essa concentração.
A cada momento elas buscam aceitação, assim como também ficam ansiosas se aquilo
pode dar certo e aos poucos vão se abrindo e mostrando suas personalidades.
Debbie briga com o ex-marido por causa da casa, ela então pega o filho e vai para
o hotel em que estão as lutadoras, enquanto as outras dividem quarto com mais uma, a
“estrela” tem um quarto sozinha com cama de casal.

Episódio 5
As lutadoras recebem uma visita de um proprietário de uma TV que vai transmitir
o programa delas. Ruth o impressiona com suas movimentações no ringue. Debbie tentar
mostrar o que sabe fazer, mas nem cair ela dá conta e decepciona Sam e o dono da TV.
Ruth junto de Sam e Britânica vão a um possível patrocinador que vende móveis
de madeira, o proprietário se recusa a investir. Na hora da inauguração ninguém se mostra
animado para tal até que Ruth começa a interpretar uma soviética e faz com que as pessoas
tenham melhores olhos aos móveis ali expostos. Todos se animam e GLOW tem o seu
primeiro patrocinador.
Debbie, Machu Picchu e mais uma lutadora vão a um show de Luta Livre e enfim
a Liberty Belle compreende o que é a representação no ringue. Após o show conversam
com um lutador daquela equipe e ele explica sobre esse desporto e diz essa marcante
frase:
“Nós não somos amigos. Não precisa ser amigo para lutar. É como uma
língua não falada. Eu olho para ele assim e ele olha de volta e nós
sabemos o que vai acontecer. É uma parceria, sabe? Não gostamos um
do outro, mas valorizamos um ao outro. O que rola no ringue é só
entretenimento. Mas precisa ter algo de real. É isso que faz dar certo. É
o que mexe com você” (GLOW, 2017, episódio 05, primeira
temporada).
207
Após dito isso e uma noite de relações sexuais com esse lutador, Debbie topa ser
a heroína de GLOW e pede a Sam uma rival a sua altura.

Episódio 6
Sam escolhe Ruth como a rival de Debbie. Tanto pelo problema pessoal como
pela boa desenvoltura de Ruth como a soviética Zoya. Debbie se mostra irredutível em
trabalhar com a ex-amiga, mesmo após tudo que aprendeu no show de Luta Livre.
Sam tenta que Debbie lute com outras mulheres, mas sempre existe algo que ela
se desagrada e pede que seja trocada. Ela não compreende o porquê o público por algumas
vezes decida o vilão ao herói. Isso se dá pela melhor atuação do malfeitor.
Com isso GLOW passa dias difíceis, pois Sam perde o valor junto das outras
lutadoras frente a tantos favorecimentos a Debbie.
Por fim, Debbie aceita Ruth como sua adversária e essa será a luta principal do
programa piloto que elas vão gravar.

Episódio 7
Dia de gravação do programa piloto e o amadorismo é grande para a produção do
mesmo.
Ruth e Debbie aprendem mais golpes com os irmãos de Machu Picchu, mas elas
executam apenas os que a Liberty Belle gosta.
Britânica cria o Rap de GLOW algo usado no programa real e uma das grandes
marcas da empresa.
Elas fazem a divulgação do show pelas ruas próximas ao local, mas mesmo assim
poucas são as pessoas que vão assistir e que pouco reagem nas duas primeiras lutas.
A terceira luta eles usam do estereótipo do Kan Ku Klan contra as lutadoras
negras, Rainha do Bem-Estar e Junkchain que humilham as rivais e o povo vibra como
nunca.
Para a luta principal novamente o estereótipo entre Liberty Belle, um símbolo dos
Estados Unidos contra Zoya da União Soviética. A luta estava se encaminhando bem e
na hora do golpe final que teria Belle pulando da terceira corda de costas, o ex-marido de

208
Debbie aparece e ela abandona o ringue. Para não declarar a vitória da vilã Zoya, Britânica
por conta própria sobe no ringue e canta o Rap de GLOW e as outras sobem também e
ajudam no coro.

Episódio 8
Elas ficam animadas após o primeiro show, mas Sam em muitos momentos as
colocam para baixo. Bash está sem dinheiro, pois sua mãe não o quer gastando com Luta
Livre e assim ele some.
Ruth e Sam visitam um local que pode ser gravado o programa que será exibido
na TV, mas o local é caro e Bash teria que bancar sozinho o aluguel.
Elas descobrem que é aniversário de Sheila, A Loba e a levam para fazer
patinação, uivam e comem bolo.
Ruth passa mal e se descobre gravida do ex-marido de Debbie e ao final do
episódio ela vai ao médico com Sam e decide por si que vai interromper a gravidez e
assim faz um aborto.

Episódio 9
Sam fecha o contrato com a TV e enfim Bash aparece. Em particular ele diz que
não tem dinheiro e assim GLOW está fora do ar, pois o canal não investe em locais para
gravar programas, apenas gravam e editam.
As lutadoras resolvem dar um jeito nisso lavando carros e assim tentando levantar
dinheiro. Elas conseguem U$ 287.
Sam fica mais próximo de Ruth e de certa forma começa a paquera-la. Ele termina
com Britânica, mas não chega a dizer ou expor essa vontade com Zoya, caso ela exista
mesmo.
Pela demora de resposta perdem o local de gravação visto anteriormente e para
resolver isso e também a falta de dinheiro, Bash leva todos a um jantar beneficente na
mansão de sua mãe.
No jantar Debbie diz que agora ama a Luta Livre, pois sente que ela é sua própria
heroína e que o corpo dela é somente dela em um ato de total pertencimento.

209
Elas fingem serem ex-drogadas e que a Luta Livre as salvou do vício e as pessoas
se comovem com as histórias encenadas por elas. Muitos milionários as ajudam, mas a
mãe de Bash sabe que tudo é mentira e toma os cheques de Bash. Contudo oferece um
salão de um de seus amigos para a gravação do show e diz a Ruth que suas palavras da
importância dada a Luta Livre a fizeram entender o filho.
Sam sem saber disso já tinha subido para os quartos e descobre que sua ideia de
filme já tinha sido gravada no filme de grande bilheteria daqueles dias: De volta para o
futuro. Ele se desespera e bebe muito. Em total embriaguez beija Justine, ela revida e diz
que é filha dele.

Episódio 10
As lutadoras voltam ao hotel para pegarem seus pertences e irem para o show que
acontece a noite, para a surpresa de todas Debbie desiste do programa, pois quer salvar o
casamento.
Justine e Sam discutem na casa do namorado da lutadora e o clima entre eles fica
estremecido, mas no final do episódio é dado o entendimento que ela o desculpa pelo
beijo.
Tudo está pronto, mas quase vazio e então elas decidem usar o dinheiro da
lavagem de carro para pagar os que estão na fila do filme De volta para o futuro. Eles
aceitam e a casa de show fica cheia.
O card das lutas ficou assim: Britânica x Beirute // Vikki Viking x Junkchain //
Melrose x Sheila, A Loba // Rainha do Bem-Estar x Machu Picchu // Zoya & Biscoito da
Sorte x Edna & Etheu, As Velhinhas Boas de Briga.
Na luta principal Zoya e Biscoito vencem e depois a soviética trai a parceira e
vence a coroa de Rainha do GLOW. Ao receber a coroa, Liberty Belle a desafia para a
surpresa dos espectadores. Ela diz ao marido que se ele acredita que tudo aquilo é uma
besteira então que ele fosse embora. Belle vence com o golpe da terceira corda e o público
explode em êxtase. Quando tudo parecia resolvido, Rainha do Bem-Estar invade e ataca
Belle e a vence tomando a coroa do GLOW. Enquanto todas as outras mulheres brigam
no ringue, Zoya e Belle saem e voltam a ser Ruth e Debbie. Sam aparece e diz que ordenou
que a Rainha do Bem-Estar invadisse e mudasse o final previsto pelas lutadoras. Não por

210
ele não ser bom, mas para ter o que as outras lutarem em outros programas. Por fim,
Debbie e Ruth entendem que a amizade delas é meio sem volta, mas que conseguem
lutarem / trabalharem juntas.
Após os créditos finais mostram todas elas assistindo o começo do programa pela
TV.

Considerações Finais
Resultados preliminares apontam que mesmo mostrando o que não ia na TV, o
seriado da Netflix demonstra não apenas as dificuldades de anos passados, mas de muitos
lutadores atuais que se arriscam por alguns trocados no cenário independente. Além disso
reforça a força das mulheres em brilharem pelos shows e da vitória sobre diversos
preconceitos.

A Luta Livre é meio que elas encontraram para poderem se sustentar, mas isso
também as promovem como grandes artistas. Tudo isso é reforçado na segunda
temporada. GLOW se mostra muito mais que apenas o Pro-Wrestling, entretanto se não
fosse por esse esporte de entretenimento, elas continuariam com as dificuldades para
sobreviverem. Assim sendo, mesmo com abordagens nos bastidores sobre a convivência
delas, é a Luta Livre o principal mecanismo para a real vitória.

Por fim, dá ao espectador a impressão de tudo o que é feito para os entreter durante
os combates é realmente o ódio entre elas e reforça a mensagem da Luta Livre do embate
entre vilões e heróis.

Referências Bibliográficas:

BALOGH, Anna Maria. O discurso ficcional na TV. São Paulo. EDUSP, 2002.

BARTHES, Roland. Mitologias. trad. Rita Buongermind e Pedro de Souza. - São


Paulo: Difusão Européia do Livro. 1972.

DOAMARAL. Carlos Cesar Domingos. Luta Livre: Esporte de Entretenimento, WWE


e Outras Plataformas. Alemanha: Novas Edições Acadêmicas, 2016.

DRAGO. Telecatch: Almanaque da Luta Livre. São Paulo: Vozes, 2007.


211
Pesquisa Documental

ALIMURUNG, Gendy. This ’80s female wrestling league was dangerous and sexist —
and the best job of their lives. In: Washington Post. Disponível em:
<https://www.washingtonpost.com/lifestyle/this-80s-female-wrestling-league-was-
dangerous-and-sexist--and-the-best-job-of-their-lives/2017/06/19/4ed73c02-4220-11e7-
adba-394ee67a7582_story.html?tid=ss_fb&utm_term=.3c8c271ca953> Acesso em 27
jun. 2017.

STUEVER, Hank. Netflixs Glow fits right in with todas feminist tv but mostly its just
ready to rumble. In: Washington Post. Disponível em
<Https://www.washingtonpost.com/entertainment/tv/netflixs-glow-fits-right-in-with-
todays-feminist-tv-but-mostly-its-just-ready-to-rumble/2017/06/ 15 / f704fed8-4ad0-
11e7-bc1b-fddbd8359dee_story.html? Utm_term = .9cc41ce4bb2a> Acesso em 27 jun
2017.

212
Interfaces Gráficas e Narrativas Transmídia em Jogos Digitais

Graphic Interfaces and Narratives Transmedia in Digital Games

Marina Jugue Chinem, Metodista / USCS / USP1


Missila Loures CARDOZO, PUCSP / USCS2

Resumo: Este artigo busca compreender o uso de interfaces gráficas em adaptações de


narrativas transmídia de jogos digitais, com a composição de personagens e cenários nas
adaptações. Uso da jornada do herói como recurso narrativo e sua adaptação de narrativa
linear literária para narrativa não linear. Breve estudo de caso da adaptação da série
literária Harry Potter para jogos digitais de plataforma e celular, buscando comparar os
jogos produzidos com base na adaptação para cinema e na adaptação direta dos livros
para jogos. As narrativas visuais criam novas formas de erudição e comunicação nas
adaptações destas narrativas transmidiáticas entre literatura, cinema e jogos digitais, que
lança novos desafios nas aplicações nas próximas gerações destas mídias visuais.

Palavras-chave: Interface; Narrativa Transmídia; Jogos Digitais.

Abstract: This article seeks to understand the use of graphical interfaces in adaptations
of transmediational narratives of digital games, with the composition of characters and
scenarios in the adaptations. Use of the hero's journey as a narrative resource and its
adaptation from literary linear narrative to non-linear narrative. Brief case study of the
adaptation of the Harry Potter literary series for digital platform and mobile games,
seeking to compare games produced based on film adaptation and direct adaptation of
books to games. Visual narratives create new forms of scholarship and communication
in the adaptations of these transmissive narratives between literature, cinema and digital
games, which launches new challenges in applications in the next generations of these
visual media.

Keywords: Interface; Transitory Narrative; Digital games.

1
Doutora pelo PGEHA-USP, Pós-Graduação em Estética e História da Arte. Pesquisadora do Colabor -
Centro de Linguagens Digitais, ECA – USP (Universidade de São Paulo). Docente no curso de Publicidade
e Propaganda e Administração da Universidade Metodista de São Paulo - UMESP e na Escola de
Comunicação e Computação da Universidade Municipal de São Caetano do Sul – USCS. email:
marinajugue@gmail.com
2
Doutoranda em Tecnologias e Inteligências do Design Digital pela PUCSP. Pesquisadora do Comunidata
- Estudo da comunicação de/entre dados, TIDD – PUCSP. Docente da Escola de Comunicação e
Computação da Universidade Municipal de São Caetano do Sul – USCS e do curso de Publicidade e
Propaganda da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUCSP. e-mail:
missila.cardozo@gmail.com

213
Adaptações, Adaptações Transmídia, Arquétipos e a Jornada do Herói
Segundo exposto por Stam (2016) podemos também falar das adaptações no
ambito da interxtextualidade, teoria de Genette, que evidencia a “permutação de
textualidades” e ainda afirma:

“Embora a teoria da intertextualidade certamente tenha reformulado os estudos


da adaptação, outros aspectos do pós-estruturalismo ainda não haviam sido
levados em conta na re-elaboração do status e prática da adaptação.” (STAM,
2006, p. 22)
Ainda que Genette prefira o tesmo mais inclusivo da transtextualidade, que se
refere a “tudo aquilo que coloca um texto em relação com outros textos, seja essa relação
manifesta ou secreta” (STAM, 2006, p. 29). Ele ainda propoe 5 tipos de relações
transtextuais, dos quais nos interessam para este artigo são o “paratextualidade” e
“hipertextualidade”. A paratextualidade Genette define como é a relação entre o texto e
o paratexto de uma obra:

“Mas o “paratexto” também toma formas mais mercadológicas. No caso dos


grandes sucessos de Hollywood, incluindo aqueles baseados em fontes pré-
existentes como romances ou histórias em quadrinhos, o texto acaba sendo
inundado por um paratexto comercial. O filme se torna uma espécie de marca ou
franchise, desenhada para gerar não apenas seqüências mas também produtos de
consumo subordinados como brinquedos, músicas, livros e outros produtos
sinérgicos dos diversos tipos de mídia. As adaptações de Harry Potter, por
exemplo, se tornam o que Peter Bart chama de um “megafranchise”, arrecadando
bilhões de dólares.” (STAM, 2006, p. 30)
Já a hipertextualidade, Genette define como a relação entre o hipertexto e o
hipotexto:
“Adaptações cinematográficas, nesse sentido, são hipertextos derivados de
hipotextos pré-existentes que foram transformados por operações de seleção,
amplificação, concretização e efetivação.” (STAM, 2006, p. 33)
A adaptação é quando uma obra é levada a outro meio ou plataforma com o mesmo
conteúdo, isto é, não é uma continuação ou uma narração paralela. Ainda assim, está
adequada, segundo Rost, Bernardi e Bergero (2016, p. 16) “A história não se expande,
mas apenas se adapta a outro meio”.

Desta maneira, não é qualquer obra que pode ser considera uma adaptação ou
ainda uma narrativa transmídia. É Henry Jenkins quem começa a desenvolver e
popularizar o conceito de transmidialidade. As características apontadas por Jenkins
(2008 apud ROST, BERNARDI e BERGERO, 2016, p. 13) para uma obra transmídia
são:

214
a- cada elemento deve ser autônomo ("não precisa ver o filme para desfrutar o
jogo e vice-versa ");
b- em sua forma ideal, cada item faz uma contribuição única e específico para o
desenvolvimento do todo;
c- um determinado produto é um ponto de entrada para a história;
d- transmedialidade pode estender a história para novos espaços e novos
consumidores;
e- os usuários participam como co-criadores.
Grande parte das histórias que são adaptadas para outros meios tem algo em
comum, o uso da chamada Jornada do Herói. Foi no livro “O herói de mil faces” que
Joseph Campbel acabou por constatar que narrativas épicas e míticas, nas diversas
culturas, eram repetições que representavam um mesmo modelo e sequência de
acontecimentos. A imagem a seguir representa o modelo dos passos pelos quais as
narrativas passam ao representar a Jornada do Herói:

Figura 1: Jornada do Herói de Joseph Campbel

Fonte: Disponível em http://www.usp.br/cje/jorwiki/exibir.php?id_texto=287

De certa maneira, todo herói refere-se ao chamado Arquétipo do Herói. Pode-se


dizer que o primeiro cientista a chamar a atenção para o tema dos arquétipos no campo
da ciência da psicologia foi o Dr. Carl Gustav Jung. Ele empreendeu estudos muito
abrangentes sobre os arquétipos não só em assuntos religiosos e mitológicos, como
também nos sonhos. Os arquétipos são elementos permanentes e muito importantes da
psique humana que podem ser encontrados em todas as nações, civilizações, e até mesmo
em sociedades tribais primitivas de todos os tempos. De acordo com Jung, os arquétipos
“não são disseminados apenas pela tradição, idioma ou migração. Eles podem reaparecer
espontaneamente a qualquer hora, em qualquer lugar, e sem qualquer influência externa”

215
(JUNG, 2000 pag 79). Um arquétipo é um modelo universal ou predisposição para
caracterizar pensamentos ou sentimentos, uma tendência não aprendida para
experimentar coisas de um certo modo (BOEREE, 1997). Para aquilo que nos ocupa, a
denominação é precisa e de grande ajuda, pois nos diz que, no concernente aos conteúdos
do inconsciente coletivo, estamos tratando de tipos arcaicos – ou melhor – primordiais,
isto é, de imagens universais que existiram desde os tempos mais remotos. O arquétipo é
essencialmente um conteúdo inconsciente, o qual se modifica através de sua
conscientização e percepção, assumindo matizes que variam de acordo com a consciência
individual na qual se manifesta.

O arquétipo não é uma imagem, mas particularmente uma tendência para formar
uma imagem de caráter típico; em outras palavras, um modelo mental tornado visível
(JUNG, 2000). Acredita-se que um arquétipo evoque emoções poderosas no leitor ou em
espectadores porque desperta uma imagem primordial da memória inconsciente. É por
isso que mitos, lendas, ou até mesmo filmes (como o Guerra nas Estrelas), baseados em
arquétipos, podem atrair e excitar a atenção e os sentimentos dos leitores ou da audiência
de forma tão intensa. Jung presumiu que é a parte inconsciente da psique humana que cria
o enredo de um sonho, de uma lenda ou de um mito como uma representação dos
elementos psíquicos e do processo de crescimento. De acordo com suas ideias, a psique
humana expressa seu processo de crescimento e evolução de forma visível e
compreensível para a mente consciente através de mitos e lendas (JUNG, 2000).

“Os arquétipos não são apenas impregnações de experiências típicas,


incessantemente repetidas, mas também se comportam empiricamente como
forças ou tendências à repetição das mesmas experiências. Cada vez que um
arquétipo aparece em sonho, na fantasia ou na vida, ele traz consigo uma
“influência” específica ou uma força que lhe confere um efeito luminoso e
fascinante ou impele à ação.” (JUNG, 1942, pag. 109).
É a função primeira do arquétipo e do mito: ensinar-nos sobre nós mesmos,
sobre a condição humana, sobre o nosso processo de vida - os mitos expressando aquilo
que nos é incognoscível, em si mesmo, nos arquétipos.

“Além disso, não precisamos correr sozinhos o risco da aventura, pois os heróis
de todos os tempos a enfrentaram antes de nós. O labirinto é conhecido em toda
a sua extensão. Temos apenas de seguir a trilha do herói; e lá, onde temíamos
encontrar algo abominável, encontramos um deus. E lá, onde esperávamos matar
alguém, mataremos a nós mesmos. Onde imaginávamos viajar para longe, iremos
ter ao centro da nossa própria existência. E lá, onde pensávamos estar sós,
estaremos na companhia do mundo todo.” (CAMPBELL, 1990)

216
Interfaces Gráficas

A narrativa é um modo central de compreender o mundo que nos rodeia. À medida


que a narrativa se expandiu para a mídia digital, novas possibilidades surgiram para a
criação destas narrativas visuais, que estabelecem novas formas de erudição e
comunicação, lançam novos desafios que estabelecem novas possibilidades nas próximas
gerações destas mídias visuais.
As adaptações transmidiáticas entre literatura, cinema e jogos digitais na evolução
de histórias se constrói nas narrativas visuais onde se compreende as imagens como
linguagem e sua utilização nesta organização é impulsionada por seu visual e sensação:
cores, formas, imagens, padrões, comportamentos interativos e corte de planos - que
direcionam a resposta emocional ao público, que assume uma importância na experiência
das pessoas. A exibição na tela depende de uma organização visual intuitiva. Esta
narrativa visual coerente que leva as pessoas através de uma progressão lógica de
elementos organizativos. Utilizam-se elementos do design visual, que contam uma
história que irão orientar o usuário.
A narrativa visual e a interface gráfica como uma sequência de fatos interligados
ocorrem ao longo de certo tempo e possui elementos básicos na sua composição: Fato –
corresponde à ação que vai ser narrada (o que); Tempo – em que linha temporal aconteceu
o fato (quando); Lugar – descrição de onde aconteceu o fato (onde); Personagens –
participantes ou observadores da ação (com quem); Causa – razão pela qual aconteceu o
fato (por que); Modo – de que forma aconteceu o fato (como); Consequência – resultado
do desenrolar da ação.
O design visual são áreas presentes no nosso cotidiano de representações de modo
cada vez mais intenso, replicando, mediando ou construindo a realidade. Agimos e
interagimos com as mesmas sem percebermos o quanto elas estão envolvidas com o
mundo contemporâneo, transmitindo e moldando ideias e valores fundamentais da nossa
cultura. No processo de manipulação de informação, decisão e ação, podemos dizer que
o processo criativo demanda uma ação efetiva que se manifesta por um efeito real
representável.
O cientificismo e o academicismo da arte eliminam de certa forma o prazer,
relegando-o para esfera da psicologia que, por sua vez, não se detém muito no universo
das questões estéticas, com exceção provavelmente da psicologia da gestalt, que trata das
questões relativas à percepção visual. Essas representações estariam impregnadas de

217
signos, sentidos e códigos visuais que se sobressaem constantemente, implicando
seleções, sobreposições, relações, sucessões e uma troca dinâmica de valores. O juízo
estético que exige de cada um a busca de uma comunicação universal e resgata
esteticamente uma parte da proposta de uma adequada percepção visual.
O estudo busca compreender o uso de interfaces gráficas em adaptações de
narrativas transmídia de jogos digitais, com a composição de personagens e cenários nas
adaptações. Abordar esses processos de design visual e os aspectos teóricos sobre a
importância deste sistema organizativo para a percepção e estética com o embasamento
que nos possibilita compreender como o conhecimento é construído na mente.
Apresentam-se as principais teorias e conceitos sobre os estímulos como gerador
de informação tendo como foco o seu processamento no ato comunicativo. No design
visual das interfaces gráficas estão contemplados os conceitos básicos que definem um
processo de comunicação tendo a linguagem visual como suporte, sua especificidade de
conteúdo/forma e suas implicações estéticas e culturais.
Uma estrutura narrativa organiza essas imagens sequenciais em uma mensagem
coerente, enquanto uma estrutura composicional externa organiza esses painéis através
do layout físico de uma narrativa. Uma estrutura visual codifica as linhas físicas e formas
que compõem os personagens e cenários, que constroem expressões significativas que
alinhava a narrativa que estrutura um design visual que evidencia as interações e
significados visuais e enquadramentos. A familiaridade nessas estruturas contribui para
uma maior fluência na linguagem visual, consiste: 1- numa ação ao enquadrar uma
imagem, 2- uma tipografia, ou 3- a adequada utilização da cor o que demonstra a
dimensão exata de como será apresentada aos receptores.

Singularidades no Design Visual

Em 1962, Umberto Eco publica seu livro Obra Aberta e fala sobre "narrativas que
ganham vida no momento em que o leitor interfere com elas". Eco chama narrativas que
se desenvolvem em várias direções com base nas decisões tomadas pelos leitores "obras
abertas". O leitor pode decidir sobre o conteúdo, a estrutura ou o estilo da narrativa. O
leitor não está mais ligado a uma única maneira de atravessar a narrativa apresentada.

Relação figura e fundo: Cada cena em escala e ângulo durante seu movimento
contínuo, sem quebrar a continuidade visual, com possibilidades de uma visão dos
personagens literários que se aproximam, os movimentos na escala e no ângulo evidencia

218
o primeiro plano, que faz o movimento aumentar o espetáculo e a intensidade da
experiência e isso cria um ritmo ao colocar em foco as outras ações do jogo digital.

Objetos em movimento: o movimento do objeto é usado para alterar o ritmo na


tela. A densidade da experiência aumenta quando um personagem aparece e a aparência
de um objeto móvel adicional aumenta a densidade do evento, além disso, cada
personagem se movimenta mais rápido do que todos os outros objetos e fica muito perto
do receptor. Assim, há um sentimento de aumento de ritmo quando um personagem
aparece e interage com a paisagem.

Cor e iluminação: outros parâmetros visuais, como cor e iluminação, podem ser
usados para significar a delineação da cena. Por se tratar de um produto que tem cores,
há uma gama de áreas brilhantes, outras com cores frias seguidas por cores quentes o que
estabelece uma sensação de ritmo e cria uma delimitação visual de cenas e sequências.

Tipografia: uma fonte com design visual que traz uma identidade com a
mensagem e para o receptor o que dinamiza a mensagem do texto.

Volume/Forma e Textura/Volume: são os outros fatores importantes que


especialmente para o design visual: as diferentes texturas da paisagem e cenário criam
ritmo.

Dimensão Tátil: é um aspecto muito importante no design arquitetônico. A textura


e a sensação do espaço que atravessa tem um impacto na nossa percepção, uma sequência
de várias qualidades táteis traz uma série de mudanças estéticas que possibilita um ritmo
na experiência.

Som e o ambiente: o ambiente é outra questão que é muito importante, a maneira


como o som trabalha com o sincronismo da interface gráfica devido à mudança na
dimensão tátil ou acústica do meio ambiente o que estabelece uma conexão com a
variedade cenográfica.

Ciclos de movimento: vai depender do local onde o receptor estiver mas ao fazer
conexão com a adaptação e cria uma estrutura rítmica que cria uma mudança constante
entre os planos cenográficos de acordo com o roteirização.

Franquia Harry Potter

219
Uma série literária, dirigida ao público infanto juvenil, que tem em média 300
páginas por edição e nenhuma ilustração. O que faria milhares de jovens no mundo todo
a “devorar” estes livros? Esta é não é uma pergunta simples de ser respondida. Porém, ao
analisar a obra e as estratégias de marketing que circundam o fenômeno, é possível
identificar algumas características que este livro possui que o tornam tão irresistível.

Existem muitos livros atualmente que abordam a temática da magia e do


imaginário, da eterna luta entre o bem e o mal. Segundo críticos literários, Harry Potter
foi inspirado na Trilogia do “Senhor dos Anéis” de J.J. Tolkien. A obra de Tolkien é
dirigida ao público adulto sendo considerada um marco na ficção estilo
Drugons&Dragons que despertou a febre dos RPGs.

O ineditismo no caso Harry Potter é que foi escrito para um público juvenil e se
propõe a acompanhá-lo em seu crescimento. O projeto inicial é uma série tenha 7 livros,
iniciando com a entrada do personagem central na Escola de Magia de Hogwarts, com 11
anos e irá terminar com sua saída da escola, aos 18 anos. A autora da série, J.K. Rowling
afirmou, à epoca do lançamento do último livro em 2007, declarava que a saga estava
completa e que não haveriam novos livros. O tempo provou que isso não era exatamente
uma verdade. Em 2016 foi lançada o livro Harry Potter e a Criança Amaldiçoada, texto
da peça teatral homonima, que conta a história subsequente ao termino de Harry Potter e
as Reliquias da Morte.

Há nas histórias de Harry Potter um pouco de todas as histórias que têm feito
sucesso: Super-homem, Guerra nas Estrelas, Cinderela, com a influência de Tolkien,
Lewis, Chesterton, Roal Dahl, Swift... para lembrar apenas autores consagrados da língua
inglesa. Toda a história é baseada na tradicional Jornada do Herói, proposta por Joseph
Campbell, com grande sode do uso de personagens arquetipicos.

Harry Potter é o típico protagonista de um livro infantil britânico. Órfão de pai e


mãe, bonzinho, criado por tios maus e com um primo de sua idade, mimado e infernal.
Um dia, quando acaba de completar dez anos, bate-lhe à porta uma coruja com uma carta,
convocando-o a continuar sua educação na Escola de Mágia Hogwarts. É só então que
Harry descobre que era um bruxo desde o início. JK Rowling imaginou todo um universo
à parte. Há o mundinho cá nosso, dos trouxas, gente meio otária que não sabe que, entre
nós, convivem bruxos, unicórnios, gigantes, lobisomens e afins; e há o mundo destes,
bruxos, que convivem entre nós, discretíssimos. Têm escolas próprias, hospitais, leis,
prisões e, naturalmente, um ministro.

220
Com todo este sucesso promissor, a industria do entretenimento não deixaria para
tras a oportunidade explorar comercialmente a marca. Logo já surgiam toda sorte de
produtos licenciados, como camisetas, albuns de figurinhas, cadernos e card games. Não
demorou para que a Warner Bros comprasse os direitos para filmar a saga, que no final
teve 8 e não apenas 7 filmes, para dar conta da adaptação de toda a obra. Os games
tambem não demoraram a surgir. Há doze jogos digitais baseados na franquia, oito dos
quais correspondem aos filmes e livros e outros quatro spin-offs, enquadrando-se em
adaptações transmídia. Os jogos baseado nos filmes/livros são produzidos pela Electronic
Arts, como “Harry Potter: Quidditch World Cup”, com a versão do jogo da primeira
entrada na série, “Harry Potter and the Philosopher's Stone”, lançado em novembro de
2001 e que se tornou um dos melhores jogos de PlayStation de todos os tempos. Os jogos
eram liberados para coincidir com os filmes, contendo paisagens e detalhes dos filmes,
bem como o tom e o espírito dos livros.

Os objetivos geralmente ocorrem em torno Hogwarts, juntamente com várias


outras áreas mágicas. A história e o design dos jogos segue a caracterização da série de
filmes; a EA trabalhou em estreita colaboração com a Warner Bros para incluir as cenas
dos filmes. O último jogo da série, Deathly Hallows, foi dividido entre a Parte 1, lançada
em novembro de 2010, e a Parte 2, que estreou em consoles em julho de 2011. Os outros
jogos spin-offs, Lego Harry Potter: Years 1-4 e Lego Harry Potter: Years 5-7 são
desenvolvidos pela Traveller's Tales e publicados pela Warner Bros Interactive
Entertainment. O último grande lançamento foi o game mobile Harry Potter Hogwarts
Mystery, lançado em 2018, o jogo foi desenvolvido e publicado pela Jam City, sob licença
da Portkey Games e narra acontecimentos anteriores a entrada de Harry Potter na escola
de Magia. Aguarda-se para o final de 2018 o lançamento do game mobile Harry Potter
Wizards Unite, por conta da Warner Bros e Niantic Labs, game que promete a inclusão
de realidade aumentada e geolocalização em sua gameplay.

Potencial de aplicação da realidade aumentada na interface gráfica


A realidade aumentada está sendo usada em várias áreas do conhecimento, isso é
possível, pois se baseia na inserção de textos, imagens e objetos virtuais tridimensionais
no ambiente físico com o qual o usuário interage. Em todos os casos possibilita ao usuário
ver um cenário real com elementos complementares, repleto de informações simbólicas
e textuais, além de objetos virtuais, que podem ser animados e sonorizados, para

221
amplificar a sua capacidade de visualização e interação com o meio ambiente, no qual
está inserido.
Desde a criação dos sistemas computacionais, a maneira sintética de representar
o mundo nunca foi tão real, veloz e imersiva. Com o avanço das novas tecnologias como
a realidade aumentada entramos numa nova forma de reapresentar o real, substituindo
quase que por completo a necessidade física do produto pelos meios digitais.
Com isso, podemos experimentar de maneira visual e tátil um produto digital, e
observar em tempo real aspectos físicos como reflexos, opacidade e
volumetria, exatamente como um produto é na realidade. Trata-se de uma ferramenta
que possibilita melhorar a qualidade da decisão da compra de um produto, além de
significar um bônus nos aspectos de lazer e de valor agregado entregue ao consumidor
final.

Para efeito da análise neste artigo foram selecionados 3 jogos, de epócas


diferentes, para compreender as evoluções da narrativa e da interface gráfica. Foram
selecionados os jogos: Harry Potter: Quidditch World Cup, lançado em 2003, Lego Harry
Potter, lançado em 2010 e o jogo mobile Harry Potter Hogwarts Mystery, lançado em
2018.

Adaptação e Interface Gráfica nos Jogos Digitais da Franquia Harry Potter

Harry Potter: Quidditch World Cup


Fugindo da adaptação pura e simples da narrativa original, Harry Potter: Quidditch
World Cup é claramente uma narrativa transmídia ao explorar e ampliar o universo
ficcional centrado no jogo de quadribol. Lançado 6 anos após o primeiro livro (1997) e 2
anos após o primeiro filme (2001) o jogo cumpre o objetivo de explorar parte da narrativa
principal com o jogo de quadribol mostrando e permitindo que o jogador compreenda
como se dá o principal esporte do universo Harry Potter.

O jogo possibilita em cada cena um ângulo durante seu movimento contínuo, os


movimentos na escala e no ângulo evidencia o primeiro plano, que faz o movimento
aumentar o espetáculo e a intensidade da experiência e isso cria um ritmo ao colocar em
foco as outras ações do jogo digital. A densidade da experiência aumenta quando um
personagem aparece e a aparência de um objeto móvel adicional aumenta a densidade do
evento, além disso, cada personagem se movimenta mais rápido do que todos os outros
objetos e fica muito perto do receptor. Por se tratar de um produto que tem cores, há uma

222
gama de áreas brilhantes, outras com cores frias seguidas por cores quentes o que
estabelece uma sensação de ritmo e cria uma delimitação visual de cenas e sequências.

Figura 2: Harry Potter: Quidditch World Cup. Montagem com imagens de capa e tela do jogo
Harry Potter: Quidditch World Cup

Fonte: Disponível em https://www.mobygames.com/game/windows/harry-potter-quidditch-


world-cup/screenshots/gameShotId,90373/

Lego Harry Potter

A famosa franquia Lego, conhecida por adaptar para action figure grandes
franquias cinematográficas e também explorar tais franquias com adaptações em jogos
digitais tais como Batman, Indiana Jones, Star Wars, chega ao universo Harry Potter com
a adaptação da saga em duas sequencias: Harry Potter Years 1-4 e Harry Potter Years 5-
7. Desta maneira os 7 livros (que compreendem 7 anos do universo) são adaptados para
a franquia. A grande caracteristica das adaptações da franquia Lego são o foco no humor.

Esta adaptação é chamada de crossover, quando existe a conexão de universos


ficcionais distintos.

No entanto, como o conceito de narrativa transmídia, o crossover está dentro das


mesmas condições de campos semânticos relacionados, como o mashup ou o
remix. De acordo com o Dicionário Oxford Inglês, crossover significa
literalmente "um ponto ou lugar de onde cruza de um lugar para outro." Na
música, o termo é utilizado para descrever fusões de estilos de artistas famosos
de mais de um gênero musical, enquanto que no reino da ficção nomeia obras
que mostram personagens de dois ou mais mundos narrativos no contexto da
mesma história (GUERRERO-PICO; SCOLARI, 2016, p.187)

Como os jogos são a adaptação simples e direta dos livros (ou dos filmes) a
adaptação Lego Harry Potter não é uma adaptação transmidia e sim, apenas, crossover.

223
A popularidade do Lego é demonstrada por sua ampla representação e uso em
muitas formas de obras culturais, incluindo livros, filmes e obras de arte. O Lego na
construção dos personagens estimula o pensamento criativo, na qual criam-se metáforas
de suas identidades e experiências. Os participantes trabalham através de cenários
imaginários usando construções tridimensionais visuais, com suas possibilidades de
formas e cores, o que possibilita nesta adaptação para um jogo digital um elemento lúdico
nesta interface gráfica.

Figura 3: Montagem com imagens de capa e tela do jogo Lego Harry Potter.

Fonte:https://www.techtudo.com.br/listas/noticia/2016/12/confira-lista-de-codigos-de-cheats-
para-lego-harry-potter-anos-5-7.html

Harry Potter Hogwarts Mystery


Este último jogo analisado foi, neste momento também o último jogo lançada para
a franquia, é um jogo exclusivo para a plataforma mobile. O jogo narra acontecimentos
dentro da famosa escola de Hogwarts que antecedem a aparição do personagem Harry
Potter. Por ser uma expansão do universo ficcional original, este jogo é considerado uma
narrativa transmidia. A narrativa permite ao jogador conhecer um pouco mais da escola
de magia e personificar um estudante, incluindo a escolha da casa a qual vai pertencer, e
a progressão nos anos de estudo, tal qual na narrativa original.
As possibilidades de escolha traz ao design uma identidade com a mensagem e o
personagem e para o receptor uma forma e uma dimensão tátil no design arquitetônico.
A textura e a sensação do espaço que atravessa tem um impacto na nossa percepção, uma
sequência de várias qualidades táteis traz uma série de mudanças estéticas que possibilita
um ritmo nesta experiência.

Figura 4: Montagem com imagens de capa e tela do jogo Harry Potter Hogwarts Mystery.

224
Fonte: Disponível em https://mashable.com/2018/04/13/harry-potter-hogwarts-mystery-
game/#l_3pSHrinPqC

Considerações Finais
Muitas são as análises a cerca do universo Harry Potter. Este artigo não tem a
pretenção de apresentar uma análise completamente nova, porém, se propoe a a focar nas
questões da interface gráfica ao longo destes 20 anos do lançamento da franquia em jogos
digitais. Uma nova realidade se apresenta neste cenário com a introdução dos dispositivos
móveis como possibilidade de expansão desta franquia. Algo completamente diferente do
que os até então games portáteis propiciavam. Não é apenas o tamanho de tela reduzido
ou a portabilidade que está em questão, mas o acesso, muitas vezes gratuito para a entrada
(jogos free to play), que não tem precedentes na indústria dos jogos.

Ainda que nem toda produção em torno de Harry Potter seja de narrativas
transmídia, fica claro que com o passar dos anos e com o esgotamento de conteúdo da
obra original, novas adaptações midiáticas se fazem comercialmente necessárias.
O estudo busca compreender as narrativas visuais criam novas formas de erudição
e como as interfaces gráficas na adaptação direta dos livros para jogos digitais, com a
composição de personagens e cenários. Abordar esses processos de design visual e os
aspectos teóricos sobre a importância deste sistema organizativo para a percepção e
estética com o embasamento que nos possibilita compreender como o conhecimento é
construído na mente.

A forma como tais narrativas são exploradas no jogos digitais demonstram que o
público ainda anseia por novas narrativas e que as interfaces gráficas tornem o jogador
num novo personagem desta história que torna o caminho interessante e promissor.

225
Referências Bibliográficas

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226
Narrativas convergentes e divergentes

Convergent and divergent storytellings

Alexandre S. Kieling1
Clarissa Trein2

Resumo: O presente trabalho se propõe discutir os impactos da convergência digital nas


narrativas a partir de suas estruturas e analisar os deslocamentos de padrão. Parte-se de
um histórico da narrativa clássica, passando pela noção de estrutura e tensiona-se a
composição das narrativas complexas, convergentes e transmidiáticas. Observa-se
nesses deslocamentos da estrutura e das composições movimentos que se efetivam
como convergentes e outros que resultam em ações não convergentes (divergentes). A
perspectiva da multitela e da transmidialidade sugere uma recorrência nos sistemas e
estruturas narrativos que, no entanto, não se aplicam plenamente em toda e qualquer
experiência pensada como convergente.

Palavras-chave: Narrativas; estrutura; convergência; divergente; narrativas


transmidiáticas.

Abstract: The present work aims to discuss the impacts of digital convergence on
narratives from their structures and to analyze the pattern displacements. It begins from
the historic of the classic narrative, going through the notion of structure and stresses
to the composition of the complex, convergent and transmediatic storytelling. It can be
observed in these structure and compositions displacements movements that are
effective as convergent and others that result in non-convergent (divergent) actions. The
perspective of multi-screen and transmidiality suggests a recurrence in narrative
systems and structures that, however, do not fully apply in any and every experience
thought as convergent.

Key words: Narrative, structure, convergence, divergent, transmediatic storytelligs.

1Doutor em Comunicação e professor do Programa de Mestrado em Comunicação da Universidade Católica de


Brasília. E-mail: alexandre.s.kieling@gmail.com.
2 Mestranda em Comunicação e especialista em TV Digital pela Universidade Católica de Brasília. E-mail
claryalmeida@gmail.com.
227
Da fogueira à convergência

As narrativas convergentes trouxeram aumento considerável do número de personagens


presentes na trama. Isso pode muitas vezes dificultar a identificação do protagonista de
um filme ou série, pois os personagens aparentemente possuem um mesmo status
narrativo (SCOLARI, 2009). Pratten (2011) afirma que em uma narrativa transmídia, o
envolvimento com cada mídia sucessiva aumenta a compreensão, prazer e afeto pela
história por parte da audiência. Para essa ideia ser bem-sucedida, a história contada em
cada mídia deve levar em conta as características próprias de cada uma e a forma como
elas podem contribuir para o todo. É sabido que a não-linearidade, apesar de não ser o
modelo predominante, já aparecia em narrativas cinematográficas como Cidadão Kane
(Citizen Kane, Estados Unidos, 1941, Orson Welles). Onde Orson Welles transforma de
forma radical a estrutura narrativa continuísta ao desconstruí-la e fragmentá-la através
do uso de flashbacks. Entretanto, apesar de demonstrar características de uma narrativa
considerada complexa e de sua grande representatividade na sétima arte até os dias de
hoje, Cidadão Kane ainda estava distante de possuir o potencial da experiência
convergente e transmidiática que ganharam forças a partir décadas seguintes. É o caso
da série Westworld, da HBO, que está em sua segunda temporada. A série, além de sua
storytelling base, conseguiu trazer (ou simular) a experiência de fazer parte desse
mundo, através da construção de uma réplica de Sweetwater 3 no evento South by
Southwest (SXSW Conference4) de 2018.

A questão é que nessa ambiência multitela apesar dos esforços “disruptivos” o que
persiste de estrutura? O que converge e o que não converge? Para responder a estas
questões, parte-se de um estudo comparativo entre duas franquias, Matrix (1999) e
Westworld (2016), no qual se procura definir a partir de conceitos e características da
narratologia, convergência e transmidialidade o que persiste de estrutura e quais são

3 Cidade fictícia contida em um parque que remete ao estilo de vida do velho-oeste.

4Evento anual, existente desde 1987, que reúne filmes, mídias interativas, música e conferências em realizado em
Austin, Texas nos Estados Unidos.
228
considerados convergentes e quais não. O que se passa de disruptivo (e o que não) em
estruturas como estas é que se pretende analisar tomando como referências a adorbagem
da narratologia em diálogo com as perspectivas apresentadas por Henry Jenkins e
Robert Pratten que busca compreender a transmidialidade de maneira que transcende ao
texto ou a estrutura da storytelling.

No tempo da fogueira

Na antiguidade, povos preservavam sua identidade e transmitiam o saber através de


histórias contadas de geração em geração. As tribos se reuniam ao redor da fogueira e
compartilhavam experiências utilizando como recursos as pinturas rupestres
(pictóricas), rituais envolvendo música e dança ou histórias contadas oralmente. Esses
relatos consistem em narrativas.

Vivemos em um mundo formado por narrativas ou stories, que tiveram início com a
própria História da humanidade, contada por todos os povos, independente de classe
social. Elas estão presentes em todas as épocas, lugares e sociedades, em uma
articulação para tecer, como diria Gerbner, nosso ambiente cultural.

Anteriormente contadas pelo sábio da tribo, as narrativas passaram a ser transmitidas


não somente por nós de forma presencial, mas por diversas outras plataformas como
livros, rádio e televisão. Isso alterou a forma como as narrativas chegam aos seus
destinatários e como estes a consomem.

Ainda que os meios convencionais tenham, com o passar do tempo, permitido a


expansão do alcance das narrativas, até o final do século XX eram predominantemente
analógicos. Isso quer dizer que seus sistemas de produção eram distintos e dificilmente
conversavam entre si. A transmissão de áudio, vídeo e dados era através de corrente
elétrica alternada e gravados diretos nos suportes. Outra característica era o domínio das
empresas de comunicação sobre a informação, entretenimento, grade de programação e
o nível de relacionamento entre empresa-público.

229
A partir da década de 1970, sob influência das descobertas eletrônicas advindas da
Segunda Guerra Mundial, a internet começou a ser difundida mundialmente, o que foi o
passo para a denominada Era da Informação. Segundo Castells:

Diferentemente de qualquer outra revolução, o cerne da transformação


que estamos vivendo na revolução atual refere-se às tecnologias da
informação, processamento e comunicação. A tecnologia da
informação é para esta revolução o que as novas fontes de energia
foram para as revoluções industriais sucessivas, do motor a vapor à
eletricidade, aos combustíveis fósseis e até mesmo à energia nuclear,
visto que a geração e distribuição de energia foi o elemento principal
na base da sociedade industrial. (CASTELLS, 2000, p.50).
Mesmo serviços ligados à agricultura e manufatura foram influenciados pelas mudanças
trazidas por essa nova Era. Para Straubhaar e Larose (2004) a transição para uma
sociedade baseada na informação foi acelerada pelo fenômeno da convergência digital.

O evento do CD-ROM dos anos 80 e o conceito de multimídia atenciparam os


movimentos de fusão entre telcomunicações, editoração, cinema e televisão (LEVY,
1999). Tem início a denominada era da tecnologia digital 5 que, por meio de uma
linguagem binária, atua através da convertibilidade6. O ambiente digital é formado pelo
conjunto dessas mídias que agora dialogam entre si, em um processo de convergência.

O advento da internet e a digitalização mudaram radicalmente a ecologia dos meios7


(SCOLARI, 2008). A aparição de novas espécies (nós) alterou a ecologia inicial do
conjunto o que possibilitou a adaptação de alguns elementos e o surgimento de
híbridos8, que combinam o antigo com o novo.

5 Cannito considera o termo digital, no campo audiovisual, como “um vasto conjunto de técnicas de captação,
finalização, distribuição, recepção e reprodução de imagens e sons em diversos suportes” (2010, p. 72-73).
6
Trata-se da possibilidade de transformar qualquer informação em uma sequência de código de ‘zeros’ e ‘uns’
decodificados por diferentes mídias (CANNITO, 2010).
7 Scolari (2008a) considera que o sistema dos meios e suas interfaces formam uma rede sociotécnica semelhante a um

hipertexto. Em determinados momentos, alguns nós dessa rede são ativados e começam a se relacionar com outros,
surgindo assim novas configurações.
8 Vale reforçar que essa característica não é exclusiva da Era da Convergência. O cinema remodelou o teatro e a
televisão dificilmente estaria entre nós sem seus antecessores (rádio e cinema).
230
Novas práticas midiáticas trouxeram um desafio aos meios tradicionais e ao
apresentarem “um novo tipo de leitor acostumado a interatividade e as redes, um
usuário experto em textualidade fragmentadas com grande capacidade de adaptação a
novos ambientes de interação” (SCOLARI, 2008a, p. 5).

As mudanças tecnológicas afetaram também a narrativa audiovisual. A ubiquidade da


internet permitiu aos fãs abraçarem uma “inteligência coletiva” para informação,
interpretação e discussão de narrativas complexas que incentiva a participação dos fãs
juntamente com a instância de produção. Através desse processo, os criadores
conseguem obter um feedback de seus fãs e assim, conhecer melhor seu público.

Tempo de convergência

O fenômeno da convergência digital representa transformações sociais, culturais,


mercadológicas, tecnológicas, entre outras (JENKINS, 2009). Filmes podem ser
baixados da internet em todas as partes do mundo e em todos os tipos de aparelho;
programas de televisão podem ser vistos em PC; compras podem ser feitas
pressionando-se um botão no controle remoto; fotos e vídeos podem ser captados e
enviados por celulares, (CANNITO, 2010).

A convergência de mídias, propiciada pela tecnologia digital, trouxe também a


possibilidade de um mesmo objeto cultural (conteúdo) ser exibido em várias
plataformas diferentes, sem sofrer alterações. Numa dinâmica incialemnte chamada de
crossmedia9, um conteúdo antes produzido inicialmente para o cinema pode, através de
tecnologia digital, ser exibido também em smartphones. Hoje, sua exibição se dá em
diversas plataformas. Um exemplo é o Globo Play – serviço de estreaming, da Rede
Globo. O acesso a ele é possível através do uso da internet em plataformas como o

9 Esse processo também acontecia com plataformas analógicas como de película para a fita VHS. Mas com as
tecnologias digitais esse processo se torna mais rápido e viável.
231
computador ou por meio de aplicativos para smartphones que permitem ao espectador
assistir ao mesmo conteúdo transmitido pela televisão e mesmo conteúdos exclusivos.

Aconvergência das mídias é mais do que “fluxo de conteúdos através de múltiplas


plataformas” (JENKINS, 2009, p. 29). É relação entre mercados, tecnologia, indústria,
gêneros e o público. O fenômeno tem impacto não apenas na linguagem, mas também
na organização do processo de produção, circulação e consumo, no próprio negócio, na
indústria midiática.

Narrativa: conceito e estrutura

Seymour Chatman (1978) já ensinou que as narrações são estruturas independentes de


qualquer meio. São estruturas pela capacidade de uma história ser transposta para outro
meio sem perder suas propriedades essenciais. Uma década antes Bremond(1964)
indicou que uma história tanto pode servir a uma dança, como a uma novela, teatro ou
cinema e que um filme pode ser contado em palavras para quem não assistiu. Palavras,
imagens, gestos nos conduzem numa história, a mesma história.

A que é narrada (raconté) possui seus próprios elementos


significativos, seus elementos da história (racontants): estes não são
nem palavras, nem imagens, nem gestos, mas eventos, situações e
comportamentos que representam essas palavras, imagens e gestos”
(BREMOND, 1964, p. 4).
Chatman (1990) ao sustentar a ideia de estrutura amparou-se na teoria de Piaget que
segundo a qual disciplinas tão diferentes como a matemática, a filosofia, a linguística, a
antropologia social e a física utilizam a ideia de estrutura. Milton José Pinto vair
reforçar que a noção de estrutura nas ciências se aproxima da matemática quando
compreendida como conjunto que une as partes, chamadas de elementos que vão
resultar em modelos (PINTO, 2011).

O estruturalismo considera que um objeto é um conjunto constituído por elementos, e


em vez de determinar as partes pelo todo, determina o todo pelas partes. A operação que
utiliza os elementos e o modelo para reconstruir teoricamente o todo, é chamada de
combinatória (PINTO, 2011).

232
A estruturação narrativa pensada no “principio, meio e fim” em Aristóteles (2001)
introduz a ideia de que uma situação é iniciada (princípio); uma série de eventos
ocorrem de acordo com um padrão de causa e efeito (meio); e uma nova situação surge
e que levará ao final da narrativa (fim). Temos a narrativa como cadeia de eventos
ligados por causa e efeito que se desenvolvem no tempo e espaço. (BORDWELL;
THOMPSON, 2013).

Uma obra é ao mesmo tempo uma história e um discurso (TODOROV, 2011) O


discurso seriam os meios pelos quais o conteúdo é transmitido. Existe um narrador para
relatar a história e um leitor (espectador, ouvinte) para recebê-la. Na narrativa
audiovisual o discurso é “o fluxo de imagens, sons e outros elementos portadores de
significação, que assumem a função de configurar textos narrativos, ou seja, textos cujo
significado são as histórias” (JIMÉNEZ, 2003, p.17). Dessa forma, a narrativa é a
história contada através do discurso e, portanto, resultado deste.

A noção de complexidade em uma narrativa aparece em Propp(2001) através de sua


obra Morfologia do Conto Maravilhoso. O teórico analisou uma centena de contos
populares de magia até chegar à conclusão de que todos os contos se resumiam a um
sistema canônico, composto por trinta e uma funções organizadas de forma linear. Essas
funções são limitadas e executadas, independentes da forma, pelos personagens. São
elementos permanentes do conto maravilhoso.

Um conjunto de funções formava uma sequência. Devido ao paralelismo ou repetições


de algumas funções, um único conto poderia ser formado por mais de uma sequência.
Uma sequência pode vir imediatamente após a outra ou aparecerem entrelaçadas e assim
por diante.

Todorov (2011) também apresenta formas para que diferentes histórias, e


consequentemente sequências, possam ser combinadas em uma única narrativa. A
conexão entre essas histórias pode se dar através do encadeamento, encaixamento ou

233
alternância 10 . Para narrativas audiovisuais, os métodos citados por Todorov, são
considerados estratégias narrativas voltadas especialmente para obras.

Segundo Rodrigues (2014), também podem fazer parte desse perfil de classificação a
Narrativa em árvore (a partir de da trama principal, saem diversos outros ramos - é o
caso de Game of Thrones), a Narrativa em espiral (existe um momento específico da
trama, em seguida diversos outros eventos relacionados ou não a ele acontecem e
posteriormente o momento específico é retomado) e a Narrativa em contraponto (as
verdades dos personagens são confrontadas no decorrer de uma temporada).

Narrativas na era da convergência

Com a convergência digital, as diversas formas de expressão do audiovisual (TV,


cinema e rádio) que anteriormente remetiam a estruturas e linguagens narrativas
características do mundo analógico - trabalhavam de forma individualizada - exigem
também novos formatos de programação e novos tipos de roteiro para atender a um
público que está cada vez mais distante de ser passivo. A narrativa convergente seria
contaminada pelos os outros textos e mídias, constituindo uma nova forma (GARCIA, 2013).

Assim, no efeito de diluição do digital, itens são apropriados ou


integrados, criando novos lugares de encontro entre múltiplas
plataformas de comunicação. Sobretudo, porque no ambiente digital a
mobilização de dispositivos tecnológicos, conteúdos e códigos
semióticos encontram um lugar de diluição que é a narrativa para a
qual convergem integrados, constituindo novos estatutos textuais.
(GARCIA, 2013, p. 98).
O hipertexto expandiu a noção de texto além da forma exclusivamente verbal. Através
dele, passagens de discurso verbal são conectadas à imagens, mapas, sons e diagramas
tão facilmente como a outra passagem verbal (LANDOW, 1992). Theodor H. Nelson,
criador do termo, explica que se refere a “escrita não-sequencial e, como consenso

10
O encademaneto justapõe diferentes histórias (quando uma acaba começa em seguida a outra) - situação
encontrada no filme Relatos Selvagens (RELATOS SALVAJES, Argentina, 2014) compostas por histórias
independentes, mas que são unidas pelo seu tema (limite entre a civilização e a barbárie); o encaixamento consiste na
inclusão de uma história no interior de outra. A alternância (contar duas histórias simultaneamente, interrompendo
uma para contar a outra e em seguida retomando a primeira.
234
popular “trata-se de uma série de pedaços de texto ligados por links que oferecem ao
leitor diferentes caminhos " (1980 apud LANDOW, 1992, p. 4). Landown (1992) ainda
coloca que o hipertexto é composto por unidades de leitura de texto - o que Barthes
(2001) chama de lexia - e os links.

Características da hipertextualidade como a eliminação da linearidade (SCOLARI,


2008b) trouxeram novas dinâmicas às narrativas audiovisuais e novos desafios ao
público. Garcia (2013) aponta que essa ruptura sequencial é tendência na filmografia
contemporânea e pode ser ilustrada pela série de TV americana Lost (IDEM, Estados
Unidos, 2004-2010).

As narrativas convergentes trouxeram aumento considerável do número de personagens


presentes na trama. Isso pode muitas vezes dificultar a identificação do protagonista de
um filme ou série, pois os personagens aparentemente possuem um mesmo status
narrativo (SCOLARI, 2009). Essa diferenciação do número de personagens pode ser
observada pela comparação entre séries televisivas de sucesso de diferentes épocas A
Feiticeira (Bewitched, Estados Unidos, 1964-1972), com um conjunto básico de
personagens (Samantha e James Stephens, Endora, Larry Tate e mais tarde Tabatha
filha do casal protagonista,) e Guerra dos Tronos (Game of Thrones, Estados Unidos,
2011) onde com uma complexa cadeia de personagens, composta por mais de vinte
integrantes em sua temporada de estreia e que estão presentes na maioria dos episódios.
Para Lipovetsky e Serroy:

Conta-se agora não mais uma história, mas duas, três, dez, vinte,
através de enredos que entrecruzam personagens tendo entre si
ligações distantes ou mesmo nenhuma ligação [...] São filmes que
traduzem a fragmentação e as novas segmentações do mundo através
da heterogeneização estrutural da narrativa. (LIPOVETSKY;
SERROY, 2011, p. 98).
O hipertexto rompeu com a ideia de um texto unitário e estável. Essa perda de
autonomia e unidade por parte do texto leva a uma remodelação dos papéis de autor e
leitor, de forma que o primeiro cede parte de seu poder ao segundo. Há aqui um leitor
mais ativo e que, com o processo participativo, tem a oportunidade de ler como se fosse
autor (Landow apud Scolari, 2008b, p. 216).

235
O caráter de bidirecionalidade mudou processo comunicacional como um todo através
da a possibilidade da instância de recepção, além de produzir e transmitir seu próprio
conteúdo, dialogar com a instância da produção (KIELING, 2012). Isso apresentou
modificações em relação às narrativas tradicionais que:

Deixam de se restringir à relação produção-recepção para ganhar


novos âmbitos e lógicas operativas de construção de sentido, que
inclui a participação das audiências e das próprias tecnologias na
construção dos roteiros e/ou desenvolvimento das histórias, sejam elas
de cunho ficcional, factual ou híbridas. (KIELING, 2012, p. 740-741).
É o caso da série de TV Heroes (Heroes, Estados Unidos, 2006-2010). Através de uma
campanha denominada “Create your own Hero”, possibilitou aos espectadores fazerem
parte da produção da série. No site da emissora americana NBC, os fãs votavam em
características físicas e atributos de personalidade para criar um novo herói. O
personagem foi ao ar em uma websérie em live-action na página da emissora (Heroes
Wiki). Além da campanha, a série levou a narrativa a outros lugares (HQ, jogos, livros
etc.) sob a bandeira de Heroes Evolution (YAKOB, 2009). A esse processo, no qual o
discurso da narrativa se expressa através de diversas plataformas, se dá o nome de
narrativa transmidiática (SCOLARI, 2008b).

Narrativas transmidiáticas

Em 1999 a Bruxa de Blair (The Blair Witch Project, Estados Unidos, 1999, Daniel
Myrick; Eduardo Sánchez) entrou para debate do público por ser se tratar/de um filme
independente de baixo orçamento e mesmo assim ter conseguido atingir um sucesso
fenomenal. O filme começou a conquistar uma série de fãs ao utilizar a estratégia de
disponibilizar em um site informações e documentação, antes da chegada do filme às
telas, a respeito do desaparecimento da equipe central do filme e da bruxa de
Burkittsville. Um pseudo documentário também foi exibido pelo canal Sci Fi
(JENKINS, 2009).

Nesse sentido, a estratégia utilizada em a Bruxa de Blair consiste em uma narrativa


transmidiática. Uma narrativa que “desenrola-se através de múltiplas plataformas de

236
mídia, com cada novo texto contribuindo de maneira distinta e valiosa para o todo”. Ou
seja, “cada meio faz o que faz de melhor.” (JENKINS, 2009, p. 138). Os acessos devem
ser independentes entre si de forma que não seja necessário ler uma história em
quadrinhos para entender um filme ou ver um filme para gostar e entender o game
(JENKINS, 2009). Cada produto é uma porta de entrada para a franquia como um todo.

Pratten (2011) afirma que em uma narrativa transmídia, o envolvimento com cada mídia
sucessiva aumenta a compreensão, prazer e afeto pela história por parte da audiência.
Para essa ideia ser bem-sucedida, a história contada em cada mídia deve levar em conta
as características próprias de cada uma e a forma como elas podem contribuir para o
todo (ver figura 1).

Figura 1 - Comparação entre a formação de franquia tradicional e uma franquia transmídia

Fonte: Pratten (2011)

Dessa forma, a euforia de juntar todas as partes faz com que o todo seja mais
satisfatório do que a soma das partes individuais. Isso difere do que o autor chama de
“velho mundo” onde a soma das partes era maior do que o todo. As partes não possuíam
harmonia o suficiente para se encaixarem, o que trazia insatisfação ao público.

237
Para Pratten (2011), as narrativas transmidiáticas devem conter, embora isso nem
sempre ocorra, um grau de participação, interação e colaboração por parte dos
consumidores. Jenkins (2009) afirma que o consumo se tornou um processo coletivo e
que, para ele, esse entendimento remete a expressão inteligência coletiva, cunhada pelo
ciberteórico Pierre Lévy.

O consumo é estimulado por meio do entendimento obtido através da experiência de


acesso ao universo transmidiático. Para manter os consumidores fiéis é necessário
oferecer novos níveis de revelação e não deixar a redundância tomar conta do conteúdo
(JENKINS, 2009).

Essa experiência é constituída por três itens: a narrativa, o jogo e a participação. Para
Pratten (2011), uma experiência só pode ser considerada transmidiática se possuir ao
menos dois dos itens citados.

Matrix

Um dos casos mais discutidos até hoje é a franquia Matrix (IDEM, Estados Unidos,
1999, Lilly Wachowski; Lana Wachowski). Jenkins (2009) considera que a integração
de múltiplos textos criou uma narrativa tão ampla que não pode limitar-se a uma única
mídia (ver figura 2). Em seu pré-lançamento, a pergunta “O que é Matrix?” foi lançada
com a intenção de atrair os curiosos para a web atrás de respostas (JENKINS, 2009). A
franquia não parou por aí. Em 2003 o segundo filme, Matrix Reloaded (IDEM Estados
Unidos, 2003, Lilly Wachowski; Lana Wachowski), foi lançado- sem recapitulação - e,
ao final, vinha com a promessa de que seu fim abrupto faria sentido no terceiro filme
Matrix Revolutions (IDEM, Estados Unidos, 2003, Lilly Wachowski; Lana
Wachowski).

238
Figura 2 - Franquia Matrix

Fonte: elaborado pelos autores

A estratégia transmidiática das irmãs Wachowski consistiu na exibição do primeiro


filme original como gatilho para despertar o interesse; quadrinhos na web para sustentar
a fome dos fãs por informação; a publicação do anime, antes do segundo filme, e o
lançamento do game, junto ao terceiro filme (Matrix Revolutions), para aproveitar a
onda da publicidade; e a transferência da mitologia para jogos online para múltiplos
jogadores como forma de não deixar a franquia morrer.

Entre o lançamento dos dois filmes, os cineastas plantaram pistas que fariam sentido
somente ao jogar game. Já com diversas peças para montar o quebra-cabeça, o dever de
casa não terminava por aí. Uma série feita em animação foi distribuída para ser baixada
na web e continha uma história paralela a do filme (JENKINS, 2008).

Apesar de inovar em sua estratégia de produção e divulgação, Matrix não alcançou seu
potencial estético da narrativa transmidiática. O problema pode ser em parte pelas
reclamações de fãs e críticos sobre o jogo depender demais do conteúdo do filme e o
filme depender de informações do game (JENKINS, 2009). Essa alegação já romperia
com uma das características essenciais de Jenkins para narrativas transmidiáticas: os
acessos devem ser autônomos, de forma que um não dependa do outro para o

239
entendimento do todo.
Todavia nem todas as operações supostamente convergentes e transmidiáticas podem
ser consideradas assim. Nessa torrente de interações e fluxos muitas ofertas de interação
não resultam em interatividade e em convergências bem-sucedidas. Se pensarmos o
fluxo da oferta (VITÓRIO; KIELING, 2015) no ambiente midiático já descrito, há
processos sem controle tanto de interatividade quanto de convergência, como a reação
da audiência, a interação real e um possível republicação que nem sempre terminam
num ciclo completo.

Westworld

Em 2016 estreou, pelo canal a cabo HBO, Westworld (IDEM, Estados Unidos, 2016-).
A série é baseada no filme de mesmo nome e foi escrito e dirigido pelo escritor
estadunidense Michael Crichton.

A trama apresenta um parque temático onde pessoas podem agendar uma visitação e
vivenciar uma experiência do que é o velho-oeste no cenário da cidadezinha de
Sweetwater. O parque é constituído por androides, chamados de anfitriões 11 e pelos
membros da corporação que comanda o parque (Delos). Os visitantes não precisam
seguir leis. Assim, podem fazer o que quiserem com os anfitriões e sem ter medo destes.
Os anfitriões possuem uma programação constituída por narrativas entrelaçadas que são
repetidas dia-a-dia após a memória dos androides ser apagada.

A história possui diversos personagens e arcos narrativos que se cruzam entre si e são
voltados principalmente, mas não exclusivamente, para os anfitriões. Além disso, utiliza
o recurso de flashback de modo que este dificilmente é percebido até alguns episódios
adiante da série.

11 Os anfitriões à primeira vista são idênticos aos humanos.

240
A narrativa complexa base (a série) não é o único recurso utilizado pelos produtores
(ver figura 3). Um site10 foi criado para que o usuário possa simular um agendamento de
viagem ao parque. A jogada é que o site sofre algumas modificações de acordo com os
acontecimentos da série.

Figura 3 - Franquia Westworld

Fonte: elaborado pelos autores

Entre a primeira e segunda temporada da série, algumas ações foram criadas pela
produção. Na New York Comic Con de 2017, foi criado um ambiente para simular a
chegada ao parque. Os participantes eram recebidos por atores contratados, que faziam
o papel de anfitriões, e passavam por todos os procedimentos até adentrarem ao bar
estilo velho-oeste igual ao da série. Austin, Texas, também recebeu uma ação
semelhante. Na conferência South by Southwest SXSW Conference, através de uma
réplica construída, os participantes se sentiam como se estivessem em Sweetwater.

Através das ações, site e série, Westworld conseguiu trazer os três critérios de uma
experiência transmidiática.
241
Considerções finais

Apesar de não ser um processo exclusivo da convergência digital, esta certamente


trouxe grandes modificações na ecologia dos meios através da hibridização de
elementos. Assim, meios tradicionais como a TV precisaram se adaptar para sobreviver,
mesmo que fugindo de sua natureza através de simulação.

Com novas práticas midiáticas interativas (como a navegação na web e videojogos) e


um público esperto em textualidade fragmentadas, a hibridização chegou no processo de
produção de conteúdo através da junção entre áudio, vídeo e hipertexto. Assim,
surgiram novas formas de narrativas, como a transmidiática e a interativa.

No decorrer do histórico traçado desde a narrativa clássica literária até a convergente,


percebemos que características que predominam nesta última, como múltiplos arcos (ou
sequências) e a complexidade narrativa já eram de certa forma, objetos de estudo de
pesquisadores como Propp e Todorov.

Com a convergência digital e a valorização do público como parte ativa no processo de


produção, tornou-se uma tendência pensar na criação, produção e distribuição não
somente uma única narrativa, veiculada em uma plataforma específica. Mas em um
conjunto de ações e produtos complementares, pensados e distribuídos através de
diferentes meios, que trazem uma experiência de participação e engajamento muito
maior ao público e contribuem para o todo - a transmidialidade.

Assim, podemos considerar que esse conjunto de ações e conteúdos juntos formam uma
macronarrativa. Ou seja, se a estrutura é um todo constituído por partes articuladas
(PINTO, 2011) - micronarrativas e narrativas, então a macronarrativa pode ser
considerada uma estrutura. Cada elemento é ligado entre si através de causa e efeito,
como a mudança no site de Westworld entre a primeira e a segunda temporada.

Esses esforços e complexidade podem ser pensados com uma operação macronarrativa
na qual todos os sistemas de produção e recepção acabam por se inscrever na estrutura
da narrativa ou das micronarrativas de cada projeto audiovisual.
242
Isso trouxe mudanças estruturais, não necessariamente no sentido das configurações
postuladas por Aristóteles, Propp ou Barthes. Mas alterou estruturalmente a forma de se
construir uma narrativa a partir do momento em que não depende somente da criação de
uma história, mas de uma experiência. Entretanto, nem todas as tentativas de criação de
experiências convergentes e trasmdiáticas foram bem-sucedidas.

No caso de narrativas transmidiáticas, os acessos a cada parte não podem depender um


do outro para que o público compreenda o todo (JENKINS, 2009) e é necessário que a
história contada em cada mídia, leve em consideração as peculiaridades de cada meio na
construção desse todo. Além disso, ao menos dois elementos (jogo, história e
participação) devem estar presentes na experiência para esta ser considerada
transmidiática (PRATTEN, 2011).

Nessa nova dinâmica de criação de conteúdo, vimos os casos de Matrix e Westworld.


Matrix pode ser considerada paradoxalmente um marco na criação de
macronarrativas. Isso porque sua ideia inicial foi bem desenvolvida e entregou produtos
que circulavam ao menos em mais de uma plataforma. Entretanto, a partir do momento
em que informações importantes para a compreensão da narrativa base (filmes) foram
disponibilizadas apenas para o videojogo, essa rompeu com um dos critérios de
transmidialidade descritos por Jenkins e tornou-se divergente. E o processo divergente
não se deu na intencionalidade dos produtores resultou do próprio processo e da
experiência. A dissipação da história por outras mídias fragmentou estrutura quando
incorporações (no videojogo) foram feitas sem a comunhão e a vinculação com todo o
público da franquia. Essa ruptura entre narrativa e tramidialidade quebrou a adesão com
o espectador.

Westworld apresenta uma narrativa base (série) e a ideia de jogo através de seus eventos
organizados em Nova York e Austin, onde o público pode vivenciar a experiência tanto
imergindo no cotidiano de Sweetwater, como se sentindo um cliente real da Delos.
Diferentemente de Matrix, essas experiências não interferiram no entendimento do todo,
assim como as modificações no site, que seguiram os acontecimentos da narrativa base.
Não houve uma quebra no vínculo entre história e transmidialidade, entre a história e o

243
público. Dessa forma, ao menos até o momento, Westworld ainda é convergente e
transmidiático.

Podemos concluir, a priori, que a partir da narrativa clássica diversas estratégias


narrativas foram surgindo no decorrer do tempo. Essas variações no universo das
narrativas não significam que os modelos mais recentes excluem os tradicionais. Hoje,
elas coexistem, mas em níveis diferentes de predominância ou as anteriores combinam-
se com as novas para dar lugar a formatos híbridos. Por mais que mudanças na ecologia
dos meios e no perfil do público possam ocasionar o surgimento de novas formas
narrativas, estas dificilmente deixarão de conter alguma essência das narrativas
tradicionais (início, meio e fim), independente do meio em que sejam veiculadas. Estas,
ainda são parte importante (juntamente com o jogo e a participação) do que hoje é
considerado o foco de produção e distribuição, a experiência transmidiática, que tem sua
implicação inscrevendo funções na macronarrativa. Nessa perspectiva é que a cada
experiência poderemos ter um processo de convergências ou de divergência.

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245
Fotografias na Rua, Museu de Rua: Memórias
Resgatadas

Photos on the Street, Street Museum: Memories Rescued


Coordenação Ingrid Hötte Ambrogi1

Cyntia Campelo Schneider2


Fernanda Maria Oliveira Araujo3
Márcio André Ferreira Pereira4
Noemi Zein Telles5

Resumo: As memórias resgatadas se traduzem pelo esforço em tornar público algo


esquecido em caixas e gavetas. Neste caso, trazemos à tona uma ação que se passou nos
anos 70, inicialmente na cidade São Paulo, e que buscou, através de fotografias expostas
em painéis nas ruas, mostrar ao transeunte a cidade, sua transformação, seus
apagamentos, suas cicatrizes e histórias narradas por imagens. O Museu de Rua traz a
perspectiva da narrativa visual com apoio mínimo da linguagem escrita, buscando
iluminar o tempo que passa e transforma sem ser percebido, tornando-se naturalizado
pelo olhar cotidiano. O resgate dessa ação é feito pelo grupo de pesquisa Arquivo
Memória e Cidade da UPM / CNPq, que vem digitalizando e divulgando esse acervo
sistematicamente. Atualmente, a digitalização ganha nova perspectiva de ação pela
difusão que é capaz de promover, bem como propicia maior atenção sobre o patrimônio
e suas mutações. Como parte dos registros, o grupo apresenta uma ideia para um
pequeno vídeo documentário resgatando a criação do Museu de Rua por seu idealizador,
focando no bairro do Bixiga com a criação do Museu Memória do Bixiga, iniciativa
derivada da exposição feita nos anos 80 no bairro e, para compor a trilha sonora, traz
também uma breve pesquisa da paisagem sonora desse lugar.

1
Pesquisadora e Professora do Programa de Pós-Graduação em Educação, Arte e História da Cultura da
Universidade Presbiteriana Mackenzie, Coordenadora do Grupo de Pesquisa Arquivo Memória e Cidade da
Universidade Presbiteriana Mackenzie. E-mail ihambrogi@gmail.com
2
Musicista, Pedagoga, Especialista em Linguagens da Arte - USP. Pesquisadora, Mestre e Doutoranda em Educação,
Arte e História da Cultura da Universidade Presbiteriana Mackenzie. Educadora musical e Coordenadora de artes
visuais e música da Educação Infantil e Ensino Fundamental. E-mail campelo.campelo@gmail.com
3
Mestre em Educação, Arte e História da Cultura, Pesquisadora e Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em
Educação, Arte e História da Cultura da Universidade Presbiteriana Mackenzie. E-mail fernanda.araujo@gmail.com
4
Mestre em Administração, Pesquisador e Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Educação, Arte e História
da Cultura da Universidade Presbiteriana Mackenzie. Professor de Ensino Superior do Centro Estadual de Educação
Tecnológica Paula Souza. E-mail marcio@pereira.eti.br
5
Pesquisadora e Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Educação, Arte e História da Cultura da
Universidade Presbiteriana Mackenzie. E-mail noemi.zein.telles@gmail.com

244
Palavras-chave: Museu de Rua; Memórias de Gaveta; Narrativa Visual; Processo de
Digitalização; Paisagem Sonora.

Abstract: The memories rescued is made by the effort to make public something
forgotten in boxes and drawers. In the study case, we bring up an action that happened
in the 70's, initially in the city of São Paulo, that showed at the passersby the city and its
transformation, erasings, scars and stories narrated by images through photographs
exposed in panels in the streets. The Street Museum brings the perspective of the visual
narrative with a minimal written language support. It sought to illuminate the passage
of time and its transforms without being perceived so that becomes normally to the daily
look. This action's rescue is done by the research group Archive, Memory and City
UPM / CNPq, which has been systematically scanning and disseminating this
collection. Now, the scanning gains a new action perspective by the diffusion of the
material, that is able to promote, as well as allow a greater attention on the patrimony
and its mutations. As part of the registers, the group presents an idea for a short
documentary film rescuing the creation of the Street Museum by its idealizer. This video
also focuses at the neighborhood of Bixiga and the creation of the Memory Museum of
Bixiga, initiative that comes from the exhibition made in the 80's in the neighborhood.
To compose the soundtrack, the article also brings a brief research of the place's
landscape sounds.

Key words: Street Museum; Drawer Memory; Visual Narrative; Scanning Process;
Landscape Sounds

Nasce um museu na rua, Museu de Rua...

O percurso trilhado pelo Museu de Rua é uma iniciativa desencadeada pelo arquiteto,
museólogo e fotógrafo Julio Abe Wakahara, que buscou formas de tornar público um
importante acervo ao assumir o Museu Histórico da Imagem Fotográfica da Cidade de
São Paulo. Inicialmente tornou público os primeiros registros fotográficos da cidade de
São Paulo realizados por Augusto Militão de Azevedo (1879-1905), que compunham o
Álbum Comparativo da Cidade de São Paulo (1862-1887) revelando uma aparência
ainda colonial, posteriormente as imagens feitas por Aurélio Becherini (1879-1939), que
as refaz nos mesmos locais, revelam a cidade com aspecto um da Belle Époque. Estas
fotografias eram objeto de estudo apenas de pesquisadores; Julio Abe ao buscar
informações sobre elas para realizar a exposição, encontra Boris Kossoy pesquisando o
mesmo assunto na Biblioteca Mário de Andrade, troca com ele algumas impressões
sobre as fotografias de Militão.

245
A partir dessas descobertas criou-se o Museu de Rua para divulgar as fotografias do
acervo e com isso “criar o impacto da presença do passado arquitetônico e urbanístico
de São Paulo, para tentar conscientizar sobre a necessidade de ‘defendermos’ as obras
básicas remanescentes” (DHP, 1979:3).

O Museu de Rua realizou suas exposições desta forma por não haver na época nenhum
espaço expositivo disponível, tornou-se uma iniciativa original, aproximou a
informação da população, criando um impacto enorme.

No período entre 1977-2013 cerca


de oitenta exposições foram
realizadas nas ruas, com o objetivo
de provocar na população a
curiosidade sobre as transformações
das cidades e municípios que
receberam Museus de Rua, dentre
eles destacamos: Santana de
Figura 01. Exposição Museu de Rua Vale do
Parnaíba, Iguape, Jacareí, Cananéia, Anhangabaú
São José dos Campos, Bananal, Fonte: Projeto Museu de Rua II: História do
Anhangabaú e do Viaduto do Chá, DPH-SP, 1979.
Atibaia, Amparo, Jaboticabal, São Carlos, Catanduva. O foco principal, no entanto,
foram locais e bairros da cidade São Paulo tais como: Centro Histórico, Anhangabaú,
Viaduto do Chá, Sé, Bexiga, Cambuci, Pinheiros, Butantã, Pompéia, Freguesia do Ó.

Os Museus de Rua tinham como objetivo principal despertar o interesse da população


para a história, fatos, memórias, através das fotografias, desafiar a pensar sobre as
grandes alterações sofridas na cidade, ou resgatar memórias perdidas em gavetas, caixas
de acervos familiares e públicos, acessível aos olhares de poucos.

Sua realização criou um forte impacto ao expor a cidade que estava sendo destruída, em
especial o centro da capital pelas obras do metrô, que na época demoliu marcos
geográfico e apagou do espaço urbano muitos dos seus lugares de memória, largos,
edifícios e ruas inteiras desapareceram.

246
A primeira experiência do Museu de Rua criou uma exposição em um percurso do
Centro Histórico realizada entre 25 de janeiro e 25 de fevereiro de 1977, com dez
pontos representativos da formação da cidade criando um itinerário: Pátio do Colégio,
Praça da Sé, Rua Quintino Bocaiúva, Largo São Francisco, Rua São Bento, Viaduto do
Chá, Rua Direita, Praça Antônio Prado, Avenida São João e Largo São Bento. Não se
tratava de uma mera exposição na rua, mas de revelar um acervo e torná-lo vetor de
questionamento da própria cidade e de suas mudanças.

Esses painéis tinham um tamanho que possibilitava aos passantes observar as imagens
e ler algumas informações mesmo sem parar de andar, como mostra a figura 01 acima.
Outro cuidado foi o de colocar cada uma das imagens dos painéis no mesmo ângulo em
que foram realizadas, para proporcionar a comparação visual de diferentes épocas da
cidade. A exposição possibilitou a “leitura visual comparativa da cidade em duas
épocas: a antiga, na fotografia, contrapondo-se à paisagem urbana atual.”
(WAKAHARA, 2004, p. 48). Já a partir do quinto Museu de Rua, quando o interesse de
Wakahara passa a ser o de contar a história dos bairros paulistanos, surge a ideia de
utilizar fotografias antigas de famílias para compor os painéis, o primeiro bairro foi o
do Bexiga que vem sendo trabalhado pelo grupo de pesquisa. Algumas das coleções do
Museu de Rua já receberam o processo de organização, digitalização e catalogação dos
negativos, são elas: Revolução de 1924, Cambuci, Iguape, Cananéia, buscando manter
suas características, ou seja, a ordem original dos negativos de cada filme.

O acervo de cada Museu de Rua possui muitas imagens que não foram expostas,
optamos através da identificação na base de dados dar a possibilidade de pesquisa e
busca e agrupar por temas, época, características entre outros aspectos explicitados a
seguir.

O envolvimento da Tecnologia no Processo de Digitalização


A fotografia, antes um suporte à ilustração de textos, hoje tem papel relevante nos
processos de informação. Instituições como museus, arquivos e bibliotecas cada vez
mais têm direcionado esforços e recursos a um tratamento adequado de seus acervos
fotográficos com vistas à preservação dos originais e especialmente objetivando a

247
disponibilização da informação. A digitalização dos acervos fotográficos tornou-se
então prática comum entre instituições tanto da esfera pública quanto privada.

As tecnologias têm papel inegável na aproximação do público em geral aos acervos das
instituições, na contemporaneidade os olhos se atêm muito mais a telas de aparatos
tecnológicos, como janelas de infinitas possibilidades, a visualização da imagem digital
proporciona ao observador a liberdade espaço-temporal, permitindo experimentações
como zoom para observação de detalhes e do todo, limitado somente às condições do
aparato tecnológico para visualização e da Internet para o acesso.

Um projeto de digitalização demanda organização, planejamento e, especialmente visão


da existência de um posterior ciclo de vida da imagem digital e a coleção digital online.

A execução da digitalização, isto é, a conversão digital de um acervo, independente de


sua natureza, representa uma das etapas mais importantes quando da decisão do uso da
tecnologia para preservação de originais e democratização da informação. Porém, antes
de se iniciar o processo de digitalização, é necessário o planejamento priorizando o
estudo das condições físicas do acervo, das condições de direitos autorais e a definição
dos parâmetros de qualidade do processo técnico da digitalização. Aspectos como: quais
os equipamentos que serão utilizados, como e onde serão armazenados, que os objetos
digitais serão gerados, como será o arquivamento, como serão acessados e qual
qualidade da informação necessária para se consolidar em dados recuperáveis, foram
questões que nortearam a pesquisa.

As razões para digitalização de acervos fotográficos mostram-se fortemente embasadas


no acesso e na preservação. Tornar o acervo fotográfico acessível, reduzir o manuseio
dos originais já em condições de fragilidade foram decisivos à digitalização.

Para o acervo fotográfico Museu de Rua foram definidos dois tipos de arquivos: o
arquivo mestre em alta resolução, com 3200 dpi (pontos por polegada ou dots per inch),
e o arquivo derivado em baixa resolução, com 300 dpi (pontos por polegada ou dots per
inch) ambos sem correções técnicas, estéticas ou de qualquer natureza. Foi decisão do
projeto tratar arquivos de produção conforme demanda.

A anatomia de uma imagem digital é dada por dots, pixels e resolução. A imagem
digital é composta por um conjunto de pontos (dots), chamados pixels, dispostos numa

248
matriz de linhas e colunas. Cada pixel tem uma cor ou tom de cinza específico, e em
combinação com pixels vizinhos cria a ilusão de uma imagem de tom contínuo. A
resolução refere-se à quantidade de pixels. É expressa como a combinação do número
de pixels horizontais e o número de pixels verticais, por exemplo, 8.956 x 6.708 pixels,
o que expressa o número de 60,1 megapixels.

Na figura 02, a fotografia de 6” x 6”


foi digitalizada a 300 dpi (dots per
inches), um arquivo derivado com as
dimensões em pixels de 1.800 (6”x
300 dpi) por 1.800 (6”x 300 dpi)
expressa 3,2 megapixels. O objetivo
da geração de imagens em baixa
resolução, isto é, dos arquivos Figura 02. Imagem pertencente à coleção
Revolução de 1924
derivados, é atingir dispositivos Fonte: Acervo Fotográfico Museu de Rua
móveis como smartphones, tablets e computadores, preocupando-se com a pouca
largura de banda da Internet. Já as de alta resolução, os arquivos mestres, além da
preservação, desempenharam papel de arquivo de produção mediante solicitação para
trabalhos específicos e que necessitem de maior detalhamento fotográfico.

A leitura de uma imagem é diferente da leitura de um texto, pois “ao observar uma
imagem nossos olhos não percorrem um caminho sequencial e linear como quando
lemos um texto” (SEVAROLLI; RODRIGUES, 2006, p.3). A capacidade de apreender
o significado total da imagem depende muito do repertório cultural – e em certa medida
histórico – do observador. E, quando existe uma grande quantidade de imagens, torna-se
impossível vê-las todas ao mesmo tempo, daí a necessidade de se criar uma forma de
acesso à elas pautada pelo sistema arquivístico. “Como nosso sistema de compreensão
das coisas ainda é pautado pela oralidade é preciso traduzir as informações em palavras,
também é preciso ordenar e coordenar as palavras utilizadas dentro de um arranjo que
seja capaz de orientar a busca e recuperação dessas imagens” (SEVAROLLI;
RODRIGUES, 2006, p.3).

249
As características das fotografias dos museus de rua digitalizadas foram levantadas,
inclusive inscrições quando houvesse, como dedicatórias, assinaturas, etc. ou outras
informações fornecidas pelo cedente daquela coleção, bem como aspectos da própria
fotografia, enquadramento, retrato posado entre outros aspectos.

Com base na Planilha de Descrição do Acervo – NOBRADE, indicação de Sevarolli, o


grupo considerou inicialmente três áreas: (1) identificação e contextualização
relacionadas ao Museu de Rua em geral, (2) conteúdo e (3) estrutura relacionada às
fotografias.

A Catalogação usando a Tecnologia


Realizando a identificação dos negativos e, das fotografias digitalizadas, surgiu a
necessidade de sua catalogação. Este processo contou com algumas etapas: pesquisa
bibliográfica para embasamento teórico; elaboração de uma ficha catalográfica
preliminar; ajustes nessa ficha para contemplar a realidade do material digitalizado;
manual de instrução para preenchimento da ficha; os desafios relacionados à própria
identificação de fotografias desordenadas e sem muito registro e, por fim, a transposição
dos dados da ficha de identificação para um suporte digital externo. Além do
planejamento prévio de hardware, foram pesquisados e testados vários softwares de
catalogação como o Biblioteca Livre (BiBLivre), o BibLime Koha, o Gnuteca, o
OpenBiblio e o PHL©Elysio. O Biblioteca Livre (comumente chamado de Biblivre),
que melhor atendeu às necessidades do projeto, é um programa nacional, e como
definido “Trata-se de um software para catalogação e a difusão de acervos de
bibliotecas públicas e privadas, de variados portes. Além disso, qualquer pessoa pode
compartilhar no sistema seus próprios textos, músicas, imagens e filmes.” (BIBILIVRE,
2018).

Pensando na catalogação do acervo, bem como na fácil disponibilidade, optamos por


uma solução gratuita e livre (free) software, com suporte à catalogação de
fotos/imagens, divisão por bibliotecas permitindo a portabilidade por cada biblioteca
disponível dentre as várias a serem suportadas pela ferramenta, simplicidade e
facilidade na implementação inicial, suporte multiplataforma (Windows e Linux),
interface Web com seu acesso em qualquer dispositivo com navegador, facilidade de

250
uso pela equipe do projeto, suporte da língua portuguesa, além da consolidada utilização
por diversas instituições no Brasil e no mundo. Facilmente implementado num
computador, para utilização individual de um ou dois usuários em um simples
computador ou num grande ambiente de rede com um robusto servidor. E ainda
oferecendo recursos como base móvel/portável para duplicação ou mesmo numa opção
“backup” (opção como cópia de segurança) totalmente funcional. Além disto,
utilizamos na pasta onde são armazenados os dados do Biblivre, o sincronismo de
arquivos oferecido pela plataforma Google Drive para replicação e cópia dos dados, e,
usando uma conta Gmail/Google para hospedagem destes arquivos, que ganham a
possibilidade de acesso.

Das gavetas às ruas: histórias misturadas

As fotografias de famílias e recortes de


jornais e revistas (Figuras 03 e 04) pouco a
pouco recolhidas surgiram nas ruas da
cidade em grandes painéis, a história do
bairro / da cidade era então contada por
Figuras 03 e 04. Recortes de jornais e revistas
seus moradores. sobre a Rev. de 1924 Fonte: Acervo
Fotográfico Museu de Rua

As imagens expostas, muito além de


lembranças e fragmentos, eram agora
arquivos da história. As fotografias
domésticas produzidas inicialmente sem
nenhuma pretensão artística, no âmbito da
Figura 05. Registros fotográficos
“casa” e da “família” com a função de (Revolução de 1924)
Fonte: Acervo Fotográfico Museu de Rua
memória familiar, são deslocadas para a
contexto histórico da cidade e do bairro,
para o universo de exposições, ganhando
novos significados.

251
A seguir são apresentadas (Figuras 06 a 26) algumas preciosidades desse imenso (em
quantidade e multiplicidade) acervo que Julio Abe constituiu ao longo dos anos.

252
Figuras 06 a 14. O cotidiano, festividades e momentos de lazer no Bairro do Cambuci
Fonte: Acervo Fotográfico Museu de Rua

Figuras 15 a 20. Os ofícios (Bairro do Cambuci)


Fonte: Acervo Fotográfico Museu de Rua

253
Figuras 21 a 24 - Lembranças (Bairro do Cambuci)
Fonte: Acervo Fotográfico Museu de Rua

Figuras 25 a 27. Personagens ( Cananéia, Iguape)


Fonte: Acervo Fotográfico Museu de Rua

Figura 28. Paisagens de uma época (Iguape)


Fonte: Acervo Fotográfico Museu de Rua

254
Vídeo Memória
Faz parte deste projeto a criação de um Vídeo-Documentário sobre o Museu de Rua que
pretende contar uma parte da história do Museu de Rua pelas palavras de alguns de seus
“atores principais”. Um dos personagens mais importantes dessa história é Júlio Abe

Wakahara, que concebeu toda


metodologia por trás das exposições e
coordenava as equipes
multidisciplinares responsáveis pelos
textos que acompanhavam as
fotografias nos painéis dos Museus de
Rua. Outra personagem fundamental
Figura 29. Ivany Sevarolli e Julio Abe
nessa história é Ivany Sevarolli,
Wakahara durante entrevista filmada em
especialista em revelação e ampliação auditório da Universidade Presbiteriana
Mackenzie, em março de 2018.
de filmes fotográficos. Fonte: Autores

Ela trabalhou junto com Julio Abe na elaboração de diversos Museus de Rua e também
auxiliou o nosso grupo no início dos trabalhos de digitalização e identificação das
imagens. Ambos já foram filmados e entrevistados juntos, no Mackenzie, em março de
2018, fazendo uma retrospectiva de seus trabalhos realizados na década de 80.

Outro entrevistado importante é


Paulo Santiago, do Museu Memória
do Bixiga – MUMBI, ele é jornalista,
foi amigo pessoal de Armando
Puglisi, o fundador do MUMBI e
conhece muito bem os fatos e as
Figura 30. Painéis do IV Museu de Rua: “História lendas em torno dessa história. O
do Bexiga contada pelos seus moradores” (1979) vídeo-documentário também vai
Fonte: Acervo do Museu Memória do Bixiga

mostrar a relação intrínseca da criação do MUMBI após a realização do projeto


Museu de Rua do Bixiga: “História do Bexiga contada pelos seus moradores” cuja
primeira exposição data de 22 de agosto de 1979.

255
Para isso, os depoimentos de Júlio Abe e Paulo Santiago são fundamentais no resgate
dessa memória. Conversas entre os dois aconteceram em 2017 no MUMBI,
acompanhadas por nossa equipe quando já se pensava em fazer um vídeo-documentário.

Além da história oral e dos croquis que Júlio Abe faz para contá-la, usaremos o material
imagético produzido por ele para a exposição, que está arquivado em Paranapiacaba.
Mas a maior parte dos negativos e provas do “Museu de Rua do Bexiga” está arquivada
no próprio Museu Memória do Bixiga, inclusive com as fotografias originais de época,
doadas pelas famílias do bairro. É também por isso que estivemos fazendo a limpeza,
conservação e organização desse material entre 2017 e 2018.

A trilha sonora deste Vídeo Memória será composta por músicas relacionadas ao bairro
do Bixiga e arredores, como foco principal do documentário.

O Bixiga Sonoro
Contar uma história, qualquer que seja, é necessário que se tenha tempo para depurar o
que se está narrando, ter reflexão sobre o que se vê e ter a ciência que se está contando
uma nova história nessa história contada. Todos estão a todo tempo contando uma
história, fazendo uma declaração com a própria vida.
Assim, a cada dia pessoas e mais pessoas deixam seu roteiro escrito para ser apreciado,
lido e relido. O bairro do Bixiga registra ao longo de sua existência o traçado de vários
personagens que nos deixaram heranças em diferentes aspectos, nesse caso em
particular, destacamos um pequeno caminho sonoro que marcou e marca o caminho dos
que passam nesse bairro. Sons musicais e não musicais que compõem a paisagem desse
lugar.

Uma paisagem sonora


“Bixiga com ‘I’ é um estado de espírito”. Palavras do Walter Taverna se referindo à
mudança da grafia cunhada pelo antigo morador Armando Puglisi (Armandinho do
Bixiga). De fato, essa é uma característica desse bairro onde encontramos os mais
variados aspectos sonoros. Alguns são comuns em qualquer lugar, outros, possuem
significações profundas como o largar uma bandeja no chão para fazer um estrondo no
meio dos clientes em um restaurante. Para alguns, esse movimento é se livrar de males

256
porque “o diabo entrega a má sorte na bandeja, temos que nos livrar dela e só existe um
jeito: atirá-la no chão” (MOREAUX, p. 126). Para um povo que tem a fama de já nascer
cantando, o italiano deixou portas abertas para diferentes estilos musicais, para
diferentes campos sonoros e novas reverberações. Entre uma bandeja que repercute no
chão à uma serenata napolitana, o Bixiga abre os braços para o samba, o samba que hoje
tem sua maior representatividade com a Escola de Samba “Vai Vai” que foi cantada
pelo lendário Geraldo Filme.
Nascido em São João da Boa Vista - SP, Geraldo Filme se considerava um paulistano
completo. Foi pela influência dos cantos escravos da avó que ele inicia sua vida
musical. Compondo desde os 10 anos de idade, é o samba “Tradição” que traz, com
muita poesia, a mudança da vida do Bixiga. Com palavras simples, o samba remonta um
pouco da história e coloca as mudanças ocorridas sob a orientação do progresso, quando
diz que “Bexiga hoje é só arranha-céu e não se vê mais a luz da lua. Mas o Vai-Vai está
firme no pedaço, é tradição e o samba continua”. O registro poético dado no texto sobre
marcas que não saem da vida é uma referência sobre a influência da música no ser
humano, pois o que se aprende com música, o cérebro deixa guardado, fica registrado
fisicamente e, por sua vez, fica registrado nos recantos da alma que novamente brota em
poesia para se cantar e contar de diferentes formas, com novos desdobramentos.
Com o ritmo do samba que convida ao movimento, a referida música ainda retoma a
vida em comunidade muitas vezes desfrutada numa calçada de alguma rua, partilhando
muitas conversas, observando algumas mudanças que demoraram a chegar naquele
lugar. Se não se consegue mais viver em comunidade em outro lugar, se pode ir ao
Bixiga, pois “Quem nunca viu o samba amanhecer, vai no Bixiga pra ver”. Ou seja, se
você quer ver um grupo de amigos conversando e cantando na rua a noite inteira, vai lá
no Bixiga, isso ainda acontece.
Para além, o bairro que apresenta na sua história a característica de receptividade dos
mais variados estrangeiros, proporcionou abertura para um arcabouço cultural que,
como dito, revelou um dos sambas mais famosos, e também deu espaço para diferentes
representatividades como, por exemplo, o grupo Ilú Obá De Min que é composto por
mulheres que trazem sempre à memória a vida de outras mulheres que lutaram de
diferentes maneiras para viver ou sobreviver. Com o retrato da história muitas vezes
gritando o contrário, elas dizem: “Em terras africanas formaram-se impérios de

257
destemidas mulheres, de grandes guerreiras. Rainhas soberanas divindades da beleza,
nobreza, sabedoria e poder”.
Entre poesia leve e lutas de vida, o Bixiga continua sendo tecido no maravilhoso tear de
possibilidades diversas, que entre diferenças e semelhanças, os olhos e ouvidos
envolvidos apontam para a mesma paixão: a vida plena. Como dito, o Bixiga com “I”, é
de fato um estado de espírito. Um estado de acolhimento, pluralidade de vida e arte
constantes e, em plena ebulição. “Vai no Bixiga pra ver”, vai lá.

Considerações sobre o caminho percorrido


O Projeto Museu de Rua ao difundir seu acervo cria a possibilidade de traduzir através
de múltiplas linguagens o seu potencial. As narrativas visuais dos museus de rua são
capazes de produzir e traduzir olhares e percepções sobre as cidades e os bairros que
abordou, revelam aspectos peculiares de grupos sociais, modos de viver, de trabalhar,
fatos históricos, tipologia das moradias, topografia dos bairros e cidades, festividades,
dentre inúmeros focos e perspectivas que poderiam ser aqui elencados. Muitas das
fotografias re fotografadas por Julio Abe, não existem mais ou estão dispersas, portanto
seu conjunto de negativos é único, e ao ser preservado com cópias digitais garante sua
conservação e difusão.
A comunicação a partir do momento que ganha uma nova dimensão com as tecnologias
da informação torna os acervos fotográficos conhecidos, permite um maior número de
pesquisas, cruzamentos de dados e aposta na própria recriação de sua existência. A
transformação de sentidos através de novos olhares e possibilidade de exploração das
imagens coletadas pode ser traduzida a partir das potencialidades tecnológicas de uma
época em consonância com o que se quer dizer em um dado momento histórico, e assim
traduz os sentimentos de um determinado tempo.
O fato de este projeto contemplar inúmeras perspectivas de tempos e lugares distintos,
de memórias adormecidas em caixas, gavetas que passam a ter uma nova dimensão ao
se unirem a outras memórias e assim constituir um mosaico de micro histórias, que
desafiam os fatos instituídos e sacralizados por um tipo de narrativa tradicional; ganha a
partir da nova historiografia um novo ponto de vista, passa a contemplar as vozes dos
esquecidos, dos sem história, dos sem memória, dos que fazem parte apenas dos
cenários.

258
As vozes e sons ganham neste espaço da rua de todos os cidadãos a possibilidade de
reconexão dos sujeitos com seu passado, com as histórias apagadas do território. É uma
promessa que traduz sentimentos amalgamados, que traz a tona à importância de cada
pedaço da história viva e próxima do cotidiano, da vida dos comuns, das pessoas de
carne e osso que habitam as cidades, que revelam em suas peculiaridades suas marcas,
que contam no olhar capturado nas lentes de algum aparato fotográfico, o tempo
congelado em fotografias que nos tocam e dizem muito sobre cada um de nós.

Referências Bibliográficas
BARENBOIM, Daniel. A Música Desperta o Tempo. Tradução do inglês: Eni Rodrigues;
tradução do alemão: Irene Aron. São Paulo: Marins fontes, 2009.
BIBLIVRE, Biblioteca Livre. Disponível em <http://www.biblivre.org.br>. Acesso em 24 de
janeiro de 2018.
CANCLINI, Nestor Garcia. Culturas Híbridas: Estratégias para Entrar e Sair da Modernidade.
São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2008.
DPH/MUSEU HISTÓRICO DA IMAGEM FOTOGRÁFICA DA CIDADE DE SÃO PAULO.
Projeto Museu de Rua. DPH-SP. São Paulo, 1979.
FADGI, Federal Agencies Digitization Guidelines Initiative Disponível em:
<http://www.digitizationguidelines.gov/>. Acesso em 25 de Janeiro de 2018.
FRANCO, Maria Eugênia, Museu de Rua/da Rua/ na Rua No Álbum de Arte, São Paulo,
janeiro 1978 In: DPH/MUSEU HISTÓRICO DA IMAGEM FOTOGRÁFICA DA CIDADE
DE SÃO PAULO. Projeto Museu de Rua. DPH-SP. São Paulo, 1979.
MOREAUX, Nazareth. Quem conta a História do Bixiga. Impresso pela PAJGRAF Gráfica e
Copiadora LTDA.
SCHAEFER, R. Murray. O Ouvido Pensante. São Paulo: Fundação Editora da UNESP, 1991.
SEVAROLLI, Ivany; RODRIGUES, André Lopez A. Da relíquia ao virtual. Considerações
sobre a digitalização de fotografias antigas com fins de disponibilização. Anais (...) Itanhaém-
SP: WCCSETE, 2006.
WAKAHARA, Julio Abe. Expedição São Paulo 1985: Expedição São Paulo 450 anos: uma
viagem por dentro da metrópole. São Paulo. Secretaria Municipal da Cultura. Instituto Florestan
Fernandes, 2004.

259
Meia Noite em Paris e a Metáfora da Saudade Daquilo que não se Viveu: Reflexões
sobre a Pós-Modernidade, Retropia e Cansaço.

Midnight in Paris and the Metaphor of the Saudade of What Not Lived:
Reflections on Post-Modernity, Retropia and Tiredness.

Patricio Dugnani1

Resumo: Pretende-se nesse artigo desenvolver uma reflexão entre o sujeito pós-
moderno, o hedonismo e a saudade do passado, que pode ser observada no conceito de
retropia de Zygmunt Bauman, e corroborada pelo uso constante da citação e a paródia
no discurso estético contemporâneo. Esse escapismo estético, em busca de uma
nostalgia não vivida, mas sonhada, é reforçada pela tendência hedonista do sujeito pós-
moderno e esse fenômeno será ilustrado pela metáfora de dois personagens do filme de
Woody Allen, Meia Noite em Paris. Além dessa característica que pretende-se ressaltar,
outras características importantes para compreender o sujeito pós-moderno serão
analisadas, dentre tantas destacam-se a fragmentação da identidade cultural, o aumento
do individualismo, a neutralização das alteridades, o consumo como maneira de atingir
a felicidade, o culto à imagem, valorização do corpo e da aparência. A partir de uma
pesquisa bibliográfica, documental e exploratória serão comparadas as características do
sujeito pós-moderno, com a personagem do filme. Serão utilizadas análises de autores
como Zygmunt Bauman e a questão da modernidade líquida; Gilles Lipovetsky, o
consume emocional e a felicidade paradoxal; Joel Birman e os três registros do mal-
estar contemporâneo; Stuart Hall e a fragmentação da identidade cultural; e Byung
Chul-Han e a neutralização das alteridades.

Palavras-chave: Pós-modernidade; Retropia; Hedonismo; Intertextualidade; Cansaço.

Abstract: In this article we intend to develop a reflection between the postmodern


subject, hedonism and the nostalgia of the past, which can be observed in the concept of
retropia by Zygmunt Bauman, and corroborated by the constant use of citation and
parody in contemporary aesthetic discourse. This aesthetic escapism, in pursuit of an
unfulfilled but dreamed nostalgia, is reinforced by the hedonistic tendency of the
postmodern subject, and this phenomenon will be illustrated by the metaphor of two
characters from Woody Allen's Midnight Movie in Paris. In addition to this
characteristic, it is worth highlighting that other important characteristics to understand
the postmodern subject will be analyzed, among them the fragmentation of cultural
identity, the increase of individualism, the neutralization of alterities, consumption as a
way of achieving happiness, the worship of the image, appreciation of the body and
appearance. From a bibliographical, documentary and exploratory research will be
compared the characteristics of the postmodern subject, with the character of the film.
Analyzes by authors like Zygmunt Bauman and the question of liquid modernity will be

1Doutor em Comunicação e Semiótica, professor do curso de Comunicação Social: Publicidade e Propaganda da


Universidade Presbiteriana Mackenzie. Pesquisador da área de Comunicação e Artes. patrício@mackenzie.br

260
used; Gilles Lipovetsky, emotional consumption and paradoxical happiness; Joel
Birman and the three records of contemporary malaise; Stuart Hall and the
fragmentation of cultural identity; and Byung Chul-Han and the neutralization of
alterities.

Key Words: Postmodernity; Retropia; Hedonism; Intertextuality; Tiredness.

Introdução

Pretende-se nesse artigo desenvolver uma reflexão entre o sujeito pós-moderno,


o hedonismo, o cansaço e a saudade do passado. Saudade, nostalgia, essa que pode ser
observada no conceito de retropia de Zygmunt Bauman (2017), e corroborada pelo uso
constante da intertextualidade no discurso estético contemporâneo. Entendendo a
intertextualidade, segundo Roland Barthes (2004), como o cruzamento de textos,
discursos, entre culturas, referências, períodos distintos.
Por isso, o filme de Woody Allen, Meia Noite em Paris (2011) foi escolhido
para servir de metáfora para essa análise. A escolha se deu pois o filme apresenta um
debate sobre a insatisfação com o presente e a nostalgia de um passado não vivido, mas
imaginado, ou seja um passado utópico. O que para Bauman (2017) se aproximaria de
seu conceito de retropia.
Acredita-se que o uso constante da intertextualidade, na expressão estética da
Pós-modernidade, representada através das estratégias, por exemplo, de citação e
paródia, torna-se recorrente, pois existe uma desilusão, um cansaço desse sujeito, em
relação a realidade. Esse escapismo estético, em busca de uma nostalgia não vivida, mas
sonhada, é reforçada pela tendência hedonista do sujeito pós-moderno.
Por isso a visão de Bauman (2017) será fundamental para entender essa exaustão
pós-moderna, de uma possível modernidade que pode ser observada, se avalia que as
utopias, as vanguardas modernas, a velocidade, o progresso e a busca pela
experimentação, que leva o humano a se defrontar com a incerteza (a incerteza da Pós-
modernidade), é substituída, segundo o filósofo, por uma retropia, uma utopia do
passado.
Essa saudade do passado, daquilo que sequer viveu, essa nostalgia, também tem
se intensificado pela sensação de desilusão contemporânea, desilusão reforçada pela
insatisfação dos desejos e prazeres, pois identifica-se no sujeito pós-moderno, uma
tendência hedonista que pode ser observada nas reflexões de Gilles Lipovetsky e Jean

261
Serroy, nos livro Estetização do Mundo (2015), Cultura-mundo (2011) e Felicidade
Paradoxal (2007). Com essa tendência hedonista, ou seja, a busca do prazer ininterrupto
do sujeito da Pós-modernidade, o leva a essa saudade do passado, e a se expressar por
uma estética intertextual, onde o Retrô, o Vintage se tornam aspectos positivos da moda,
e são representados de maneira mais constante, através da citação, da paródia, ou seja,
através da intertextualidade.
Para entender esse humano, que se expressa pela intertextualidade, serão
utilizadas as reflexões feitas sobre o sujeito da Pós-modernidade na análises dos estudos
culturais de Stuart Hall (2004). Nessas análises o autor observa o constante processo de
adaptação a que esse sujeito pós-moderno está exposto quando se vislumbra um
processo de globalização como cenário social. Globalização que também se torna
motivador de processos intertextuais, pois, através da velocidade dos meios de
comunicação e das trocas de informações entre humanos de diferentes grupos, as
referências se multiplicam, multiplicando-se assim os cruzamentos dessas referências e,
consequentemente, o cruzamento de diferentes culturas, ou seja, intertextualidade.
Finalmente, para auxiliar na investigação dessa desilusão em relação às
incertezas do mundo contemporâneo, da Pós-modernidade, desse cansaço, deve-se
recorrer à análise de Byung-Chul Han feita no livro Sociedade do Cansaço (2017), onde
o autor descreve a neutralização das alteridades, e a valorização das positividades, em
detrimento das negatividades como um processo que leva o humano a um desgaste, a
um cansaço neutralizador.

Da pós-modernidade: tempo e saudade do que não vivi

“E é só você que tem a


Cura pro meu vício de insistir
Nessa saudade que eu sinto
De tudo que eu ainda não vi”
Renato Russo, Legião Urbana

A questão do tempo tem torturado o sujeito pós-moderno, pois a Pós-


modernidade parece estar assentada numa dinâmica onde tudo se organiza entorno da
saturação, da intensidade, ou como indica Lipovetsky e Serroy (2011), a
hipermodernidade, se estrutura em polos como o hipercapitalismo, a hipertecnização, o
hiperindividualismo.

262
O mundo hipermoderno, tal como se apresenta hoje, organiza-se em torno de
quatro polos estruturantes que desenham a fisionomia dos novos tempos. Essas
axiomáticas são: o hipercapitalismo, força motriz da globalização financeira; a
hipertecnicização, grau superlativo da universalidade técnica moderna; o
hiperindividualismo, concretizando a espiral do átomo individual daí em diante
desprendido das coerções comunitárias à antiga; o hiperconsumo, forma
hipertrofiada e exponencial do hedonismo mercantil. Essas lógicas em
constantes interações compõem um universo dominado pela tecnicização
universalista, a desterritorialização acelerada e uma crescente comercialização
planetarizada. É nessas condições que a época vê triunfar uma cultura
globalizada ou globalista, uma cultura sem fronteiras cujo objetivo não é outro
senão uma sociedade universal de consumidores. (LIPOVETSKY e SERROY,
2011, p. 32)

Dessa forma tudo parece ganhar um tom de urgência, o que se reflete no próprio
movimento do hiperconsumo. O sujeito da Pós-modernidade parece retornar a um
período onde ele se torna mais reativo que ativo, no sentido político, conforme observa,
no artigo Psicologia e gestores escolares: mediações estéticas e semióticas promovendo
ações coletivas (2016), Lilian Dugnani e Vera Souza, entendendo a ação e a reação não
nos sentido sinestésico, mas sim no sentido político. O humano contemporâneo parece
reagir de maneira cada vez mais instintiva, do que reflexiva e crítica, o que se observa,
principalmente em relação ao consumo. Essa ideia combina com a visão de Hannah
Arendt, onde ela classifica, no livro Condição Humana (2007) o humano
contemporâneo como Animal Laborans, e não como Homo Politicus. O Homo Politicus
de Arendt seria o humano que toma as suas ações mediadas pela visão crítica, e política,
compreendendo a política como uma ato moral e social dos seres humanos. Contudo, na
contemporaneidade, o humano pós-moderno se torna mais reativo, sendo dominado pela
aparente necessidade do consumo, e para satisfação de seus desejos. Sendo assim
podemos considerar que esse sujeito se torna hedonista, onde a satisfação do prazer se
torna sempre prioridade em relação às questões sociais, ou seja, esse individuo, se
tornando cada vez mais centrado na satisfação de seus desejos, torna-se, também, cada
vez mais individualista.
Giorgio Agamben, em seu livro Profanações (2007), também destaca esse
fenômeno em relação ao consumo, quando demonstra que no ato de consumir, o sujeito
da Pós-modernidade projeta dois valores nos bens de consumo, o sagrado e o profano. O
bem de consumo, quando ainda em estado de desejado, parece algo tão inalcançável,
que torna-se uma obsessão para o consumidor. Esse bem desejado se torna um objeto
sagrado, como se a conquista, ou seja o consumo dele, pudesse trazer a perfeição para
esse sujeito, consequentemente saciando a voracidade do apetite insaciável dele. No

263
entanto, para Agamben (2007), esse objeto, ao passar do status de desejado, para
consumido, perde sua aura de sacralidade, e torna-se comum, cotidiano, não mais tão
desejado. Nesse sentido o objeto foi profanado, tornou-se profano, terrestre, material.
Dessa forma o sujeito pós-moderno, nesse movimento, precisa eleger outro objeto para
desejar, para tornar sagrado, para querer consumir. Com esse círculo vicioso, o consumo
não se torna estagnado, se movimenta velozmente, criando um ciclo de hiperconsumo,
pois nunca será possível saciar o apetite voraz desse consumidor contemporâneo, afinal,
seus desejos estão sempre voltados para o próximo objeto que desejará no futuro, o
próximo bem a deixar de ser sagrado e tornar-se profano.
Com esse movimento é que Lipovetsky detecta a sua visão de um hiperconsumo
que somente se sacia por poucos instantes, gerando o que ele denomina de “felicidade
paradoxal” (2007). Essa felicidade é paradoxal, como é paradoxal a própria Pós-
modernidade, pois é uma felicidade volátil e volúvel, ou seja, não tem duração, e está
voltada para o futuro. Dessa forma, o consumo está galgado no desejo futuro da
satisfação das vontades, onde o gozo é sempre adiado, como observa-se na obra Blefe, o
gozo pós-moderno (2001) de Louis Kodo, e a “felicidade é paradoxal” (2007).
Essa relação com o tempo é tão paradoxal, que, se a satisfação do prazer pelo
consumo e adiado, não é assim sua visão do futuro. Pois o futuro do sujeito pós-
moderno para o consumo, não se instaura em uma visão muito distante, o futuro do
consumo, espera-se que seja próximo, o mais presente possível. Isso se dá, pois se o
prazer está no consumo de um bem num futuro próximo, sua visão do futuro mais
distante não é tão esperançoso, pelo contrário, é apocalíptico. O futuro para o sujeito
contemporâneo parece sem esperança, como observa Bauman em seu livro Retropia
(2017). Sendo assim, para o sujeito pós-moderno, diferente da visão utópica da
modernidade, o futuro é distopico, dessa forma, resta a ele observar com saudade o
passado e saciar seus desejos no presente, pois o futuro é incerto.
A retropia para Bauman (2017) é uma nostalgia do passado, de um passado
perfeito e glorioso, um passado que sequer o sujeito pós-moderno viveu, mas que foi
descrito por outros, imaginado pelo indivíduo e, por fim, consumido nas representações
dos produtos contemporâneos. Essa nostalgia do passado é facilmente observável nos
bens de consumo, quando se analisa as tendências estéticas da Pós-modernidade, como
o estilo retrô, ou vintage. O passado está na moda e é resgatado através de estratégias
como a citação, a paródia, e a intertextualidade, descrita por Roland Barthes (2004)
como o cruzamento de referencias e representações culturais das mais dispares.

264
Sendo assim, o sujeito pós-moderno vive com uma saudade do passado, pois
tem pouca esperança no futuro, e sente a necessidade de satisfazer seus desejos em um
presente cada vez mais instantâneo. Essa parece ser a descrição de dois personagens do
filme de Woody Allen, Meia Noite em Paris (2011): Gil Pender, interpretado por Owen
Wilson, e Adriana, interpretada por Marion Cotillard. Esse dois personagens vivem em
épocas diferentes, Gil é do início do século XXI, enquanto Adriana é do início do século
XX. O primeiro vive a Pós-modernidade, enquanto o segundo vive a modernidade, a
época das vanguardas modernas. Embora vivam em tempos diferentes, ambos dividem a
mesma admiração pelo passado, só que Gil sente saudade do início do século XX,
enquanto Adriana sente nostalgia pelo final do século XIX, a Belle Epoque, dos pintores
impressionistas. A partir dessa observação, parece que o diretor quer representar essa
nostalgia utópica pelo passado que influencia o pensamento da Pós-modernidade.

Do Cansaço e a Retropia Sujeito da Pós-modernidade

“Mas é o presente... Ele é chato.”


Gil Pender e Adriana (Owen Wilson e Marion Cotillard,
em Meia-Noite em Paris)

Para Gil Pender, personagem do Owen Wilson a vida perfeita, sua utopia,
estava na Paris dos anos 20, com os escritores e pintores da época, como Ernst
Hemingway, Pablo Picasso, Salvador Dalí, Scott Fitzgerald, e Gertrude Stein. No
entanto, para Adriana, personagem de Marion Cotillard no filme, a utopia esta na Paris
da metade do século XIX, com os pintores impressionistas, como Claude Monet e Pierre
August Renoir. De qualquer forma, embora cada um dos personagens deseje um tempo
diferente, ambos tem algo em comum: a projeção de sua utopia está num passado que
sequer eles viveram, como dito anteriormente. Essa nostalgia idealizada desse passado
não vivido, é a retropia que Bauman (2017) descreveu em seu livro homônimo.
“Então o presente é assim. É um pouco insatisfatório, porque a vida é
insatisfatória” (2011). Essa frase dita por Gil Pender (Owen Wilson) a Adriana,
personagem de Marion Cotillad no filme Meia Noite em Paris (2011), tenta justificar o
presente como algo passageiro, volátil e incapaz de satisfazer os desejos, mas que é
preciso se conformar. Denunciando, assim o passado, o sujeito pós-moderno vê também
o futuro como momento incerto. Esse parece ser o estigma da Pós-modernidade: viver o
presente, tirando prazer desse momento etéreo (visão hedonista), olhar para o futuro

265
sem esperança, e, finalmente, sentir uma nostalgia por um passado que não viveu, mas
projetou como sua utopia, seu recanto de perfeição.
Essa sentença também parece ser a metáfora que Woody Allen utilizou para
retratar o sujeito da Pós-modernidade, no filme Meia Noite em Paris (2011). Um sujeito
cansado das incertezas, buscando alívio numa visão idealizada do passado.
Tanto Gil Pender, como Adriana demonstram sentir-se insatisfeitos com o
cotidiano, apresentam um cansaço do presente e buscam refugiar-se no passado. Esse
cansaço dos personagens, parece uma metáfora do sujeito pós-moderno. Esse cansaço
na Pós-modernidade foi analisada por Byung Chul Han, em seu livro Sociedade do
Cansaço (2015) e, nesse artigo, observa-se como um cansaço em relação às incertezas.
A incerteza na Pós-modernidade parece uma constante, e entende-se essa
sensação como um fenômeno construído à partir da relação entre a revolução dos meios
digitais e o processo de globalização. Com a revolução dos meios de comunicação, a
quantidade de informação se multiplica, e ao compreender a informação como um
conteúdo que altera a percepção e a consciência de mundo do ser humano (COELHO,
1990, p. 122), pode-se concluir que, se houve um aumento da quantidade de
informações, se elas chegam com mais intensidade e velocidade, também mais rápidas
serão as mudanças na sociedade. Esse é um dos fenômenos que produzem o aumento da
sensação de incerteza no sujeito pós-moderno. As suas certezas são menos absolutas, o
que confirma o conceito da liquidez de Bauman (1998). Para Bauman (1998) a liquidez
é uma característica recorrente da Pós-modernidade, o que significa que os conceitos, a
moral, as expressões culturais, ou seja, todo discurso da sociedade contemporânea
perdeu a sua solidez, tornaram-se líquidos, voláteis e adaptáveis a cada nova
informação, e elas são múltiplas e, muitas vezes, contraditórias.
A globalização, observada em seu efeito de mistura de culturas, de hibridização,
ou seja, de formação de culturas híbridas, amplia esse processo de incerteza. Pois ao
entender a cultura como um processo de significação, de constituição de sentido, onde o
humano atribui significado à suas representações (GEERTZ, 2008), a cada nova
expressão cultural que se apresenta para uma cultura estabelecida, assim como o caso da
informação, altera essa cultura. Dessa forma os discursos que dão fundamentação e que
contribuem com a constituição do sentido para uma determinada cultura, acabam sendo
abalados, pois a sua razão, seus processos de significação precisam ser revistos, e
reavaliados. Nesse processo, os discursos que outrora eram considerados como
verdades, podem se desestabilizar, ganhando assim novos significados, gerando assim

266
uma crise das metanarrativas (LYOTARD, 2000, STRINATI, 1999), ou seja, uma crise
nos discursos fundadores da cultura de uma determinada sociedade. Hoje, uma
sociedade globalizada, acaba por constituir-se como uma cultura híbrida, onde os
diversos discursos se entrecruzam, provocando, também essa sensação de incerteza no
sujeito pós-moderno.
Nesse processo de crescimento das incertezas, vivido pelo sujeito pós-moderno,
o cansaço dessa condição parece estar presente e produzindo efeitos, que ajudam a
resgatar discursos que pareciam a muito ter desaparecidos, mas que estavam apenas
adormecidos, esperando para ser resgatados. Sendo assim, a tendência de retropia
(BAUMAN, 2017), de idealização de um passado não vivido, além da presença de uma
estética retrô, Vintage, parecem ser, mais que fenômenos culturais, sintomas. Sintomas
de uma sociedade que já não vê esperança nas utopias modernas de um futuro perfeito, e
passa a buscar o refúgio em um passado descrito como glorioso. Essa tendência lembra
tão bem a busca do resgate da estética clássica, e da grandiosidade de uma Alemanha,
de um período medieval, onde não existia a tal Alemanha. Claro que destaca-se nessa
reflexão o pensamento nazista. A Pós-modernidade, pela sua intensidade de incertezas,
parece ter conseguido resgatar discursos fundadores, metanarrativas que formavam o
pensamento de tendências fundamentalistas, como as do Nazismo.
Esse cansaço alienante, identificado por Han (2015), ou melhor esse cansaço,
essa saturação perante as incertezas da Pós-modernidade, parece promover uma vontade
de alienação no sujeito, que, juntamente com estratégias de comunicação, reforçam esse
processo de abandono do pensamento dialético, em favor de uma visão maniqueísta. Ou
seja, o humano contemporâneo está abandonando seu pensamento crítico, deixando de
levar em consideração as contradições, se apegando a qualquer conceito único, que
prometa um pouco de estabilidade, e de certeza. Dessa forma, o sujeito da Pós-
modernidade parece carecer de uma verdade que guie sua vida. Abrindo caminho para
que discursos fundamentalistas, possam ganhar força. Esses discursos ganham força em
períodos de incerteza, pois de maneira simplista, defendem suas verdades, sem levar em
consideração a possibilidade de que possa haver qualquer contradição em suas certezas.
A incerteza da pós-modernidade causa insegurança, e os discursos fundamentalistas
prometem certezas. Por isso Bauman (1998) percebe em sua análise do que ele
denomina como mal-estar na Pós-modernidade, que o sujeito contemporâneo é capaz de
abdicar da liberdade, mesmo a liberdade de reflexão e crítica, por uma promessa de
segurança.

267
Você ganha alguma coisa, em troca, perde alguma outra coisa: a antiga
norma mantém-se hoje tão verdadeira quanto o era então. Só que os ganhos
e as perdas mudaram de lugar: os homens e as mulheres pós-modernos
trocaram um quinhão de suas possibilidades de segurança por um quinhão
de felicidade. Os mal-estares da modernidade provinham de uma espécie de
segurança que tolerava uma liberdade pequena demais na busca da
felicidade individual. Os mal-estares da pós-modernidade provêm de uma
espécie de liberdade de procura do prazer que tolera uma segurança
individual pequena demais. (BAUMAN, 1998, p. 10)

Nesse ponto é que a teoria de Han (2015) sobre o cansaço da sociedade faz
muito sentido, pois para o autor, o momento contemporâneo abdica da visão do outro,
das negatividades, “o desaparecimento da alteridade e da estranheza” (HAN, 2015, p.
10), substituindo essa alteridade pelas certezas absolutas, produzindo uma
“massificação do positivo” (HAN, 2015, p. 21). Essa massificação do positivo é
impulsionado, na Pós-modernidade, pelo uso dos meios de comunicação digitais que,
através de todos usuários, acabam multiplicando informações, que muitas vezes, ou a
maioria, são debatidas de maneira rasa simplista e maniqueísta. Onde a opinião suplanta
a razão e o debate, pois, por serem meios de comunicação de resposta imediata, reativa,
e com pouco espaço para aprofundamento, acabam por sarurar os espaços com a defesa
de interesses mais individualizados. Essas são as positividades que povoam a internet,
principalmente as redes sociais onde o “excesso de positividade se manifesta também
como excesso de estímulos, informações e impulsos. Modifica radicalmente a estrutura
e economia da atenção” (HAN, 2015, p. 31). Ou seja, o sujeito pós-moderno, embora
tenha um potencial poderoso para participar da constituição coletiva do conhecimento
através dos meios digitais, acaba vítima desse volume de atividades propostas pelo
meio, onde sua atenção é dividida entre milhares de informações e debates, que ele
acaba, na maioria das vezes, participando de forma superficial, sem verificar as
informações, e, sem sequer debate-las. Afinal é proposto pelos meios de comunicação
muitas tarefas simultâneas, o que Han (2015) define como “multitasking” (HAN, 2015,
p. 31), onde o sujeito pós-moderno somente acaba por desenvolver uma resposta
reativa, que se assemelha à concentração instintiva dos animais no meio ambiente, que
são obrigados a estar sempre atentos, em busca da sobrevivência.

A técnica temporal e atenção multitasking (multitarefa) não representa


nenhum progresso civilizatório. A Multitarefa não é uma capacidade para a
qual só seria capaz o homem na sociedade trabalhista e de informação pós-
moderna. Trata-se antes de um retrocesso. [...] Na vida selvagem, o animal
está obrigado a dividir sua atenção em diversas atividades. Por isso, não é

268
capaz de aprofundamento contemplativo. [...] Não apenas a multitarefa, mas
também atividades como jogos de computador geram uma atenção ampla,
mas rasa, que se assemelha à atenção de um animal selvagem. [...] A
preocupação pelo bem viver, à qual faz parte também uma convivência bem –
sucedida, cede lugar cada vez mais à preocupação por sobreviver. [...] A
cultura pressupõe um ambiente onde seja possível uma atenção profunda é
cada vez mais deslocada por uma forma de atenção bem distinta, a
hiperatenção (hyperattention). (HAN, 2015, p. 31 a 33)

Esse humano com a atenção difusa em muitos fenômenos simultâneos trata-se


do sujeito pós-moderno, que se sente inseguro, mergulhado em incertezas e que
abdicaria, como disse Bauman (1998) de sua liberdade, por um pouco de segurança.
Esse cansaço das contradições, das incertezas é que parece estar fortalecendo os
discursos dogmáticos e fundamentalistas que estão sendo resgatados e aclamados em
posts diários nas redes sociais. Esse crescimento de discursos podem ser observados em
diversos países, nas eleições de diversos candidatos, que de maneira contrária ao
processo de diversidade e globalização, acabam sendo aclamados por processos de
fechamento de fronteiras, e policiamento de discursos contrários à um modelo limitado.
O fim das alteridades de Han (2015), o aumento das positividades, ou seja, o fim do
pensamento crítico, dialético e histórico, não parece mais uma ficção, mas uma
possibilidade real.

Considerações finais
“Adriana, se ficar aqui, isso se torna o seu presente. E
logo vai começar a imaginar que outra época é que é os
seus anos dourados”.
Gil Pender (Owen Wilson em Meia noite em Paris)

O cansaço da Pós-modernidade é representada pelos personagens Gil pender e


Adriana no filme Meia-noite em Paris, e a citação acima, retirada do filme, demonstra
esse círculo vicioso de insatisfação, onde o desprezo pelo seu momento presente, levam
os personagens a uma viagem de retorno ao passado, aquele passado idealizado e não
vivido, onde a utopia do futuro, é substituído pela nostalgia. Essa nostalgia do passado
parece satisfazer os dois, substituindo a incerteza por um sonho, uma utopia do passado,
a retropia de Bauman (2017). Porém esse processo parece abrir caminho para o resgate
de certos discursos, que podem fazer retornar visões totalitárias na Pós-modernidade.
A partir da análise da Pós-modernidade, como um período de incertezas, como
afirmam autores como Zygmunt Bauman, Stuart Hall, entre outros, é possível perceber
um efeito preocupante na sociedade contemporânea: o cansaço da incerteza. Esse

269
cansaço parece proporcionar um mal estar que produz no sujeito pós-moderno um
processo de desprezo pela complexidade, pelas contradições, pelo debate, o que o leva a
esperar que algum demiurgo bondoso possa surgir com verdades absolutas que o tirem
desse furacão de inconstâncias que parece constituir o seu panorama visível. Uma
paisagem que ao se vislumbrar ao longe, lá no futuro, não parece ter esperança, o que o
leva, num movimento nostálgico, ater saudade de um passado projetado, idealizado.
Passado esse que ele resgata com seus discursos, como se a solidez do passado, à
maneira de Bauman (1998), pudesse novamente solidificar a liquidez do presente, e
reerguer um pano de fundo que fosse capaz de resgatar a esperança no futuro.
Infelizmente, caro leitor, essa equação está equivocada, pois a substituição do desafio de
conviver com a liberdade de escolher e viver num mundo complexo vem sendo apenas
encoberto pela falsa impressão de segurança de discursos simplistas, dogmáticos e
fundamentalistas, com seus ridículos títeres repetindo seus discursos de ódio e de fim
das diversidades, ou seja, os discursos de certezas tão absolutas, que não merecem
sequer críticas. Esse é o dilema da Pós-modernidade, um potencial tão grande de
participação na construção da informação, e consequentemente da sociedade, ao mesmo
tempo que o crescimento de discursos tão limitados, que buscam apenas produzir a
alienação, para a tomada de um poder, galgado em promessas de perfeição. Foi assim
no início do século XX com o Nazismo, e tem indicativos que será assim no início do
século XXI. Nesse momento é que espera-se que esse processo seja cortado por um
ganho de consciência dos usuários dos meios de comunicação digital, a única maneira
de parar esse crescente discurso totalitário e de ampliação das intolerância em todos os
sentidos. Pois as intolerâncias parecem estar renascendo do cansaço, o cansaço das
alteridades e das negatividades, as quais foram destacadas por Byung Chul Han (2015).
Essa sociedade do cansaço tem como desafio, recuperar as suas forças e resistir a esse
movimento avassalador de retorno consentido às positividades. Talvez Gil Pender e
Adriana, os personagens do filme, precisem, ao invés de voltar ao passado, conviver
com o presente, e resgatar a esperança do futuro, um futuro que aprenda a se edificar na
diversidade, e não na singularidade do totalitarismo.

Referências
AGAMBEN, Giorgio. Profanações. São Paulo: Boitempo, 2007..
ARENDT, Hannah. A Condição Humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007.
BARTHES, R. O Rumor da Língua. São Paulo: Martins Fontes, 2004.

270
BAUMAN, Z. Retropia. Rio de Janeiro: Zahar, 2017.
BAUMAN, L. O Mal-Estar da Pós-Modernidade. Rio de Janeiro, RJ: Zahar, 1998.
COELHO, J. T. Semiótica, Informação e Comunicação. São Paulo: Perspectiva, 1990.
DUGNANI, L. A. Cruz; SOUZA, V. L. T. de. Psicologia e gestores escolares: mediações
estéticas e semióticas promovendo ações coletivas. Estud. psicol. (Campinas), Campinas , v.
33, n. 2, p. 247-259, June 2016 . Disponível em:
<http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0103-
166X2016000200247&lng=en&nrm=iso>. Acesso em
29 Maio 2018. http://dx.doi.org/10.1590/1982-02752016000200007.
GEERTZ, C. Interpretação das Culturas. Rio de Janeiro: LTC, 2008.
HALL, Stuart. A Identidade Cultural na Pós-Modernidade. Rio de Janeiro, 2004.
HAN, B. Sociedade do Cansaço. Petropolis: Vozes, 2015.
KODO. L. Blefe, o gozo pós-moderno. São Paulo: Zouk, 2001.
LYOTARD, J. A Condição Pós-moderna. Rio de Janeiro: José Olympio, 2000.
LIPOVETSKY, G. & SERROY, J. A Estetização do Mundo: Viver na Era do Capitalismo
Artista. São Paulo: Companhia das Letras, 2015.
LIPOVETSKY, G.; SERROY, J. A Cultura-Mundo: Resposta a uma Sociedade Desorientada.
São Paulo: Companhia das Letras, 2011.
LIPOVETSKY, Gilles. A Felicidade Paradoxal. Ensaio sobre a sociedade de hiperconsumo.
São Paulo: Companhia das Letras, 2007.
STRINATI, Dominic. Cultura Popular. São Paulo: Hedra, 1999.

271
Reverberações biopolíticas em Mar Adentro, de Alejandro Amenábar.
Biopolitical reverberations in Mar Adentro, by Alejandro Amenábar.

Alan dos Santos1

Resumo: Este artigo pretende realizar uma discussão acerca do conceito de biopoder, tal
como elaborado pelo filósofo francês Michel Foucault, a partir do filme Mar Adentro,
dirigido por Alejandro Amenábar. Biopoder é uma modalidade de poder que tomou a vida
de assalto e se encarregou de administrá-la. A fórmula do biopoder, segundo Foucault,
pode ser descrita do seguinte modo: um poder de fazer viver e deixar morrer. O biopoder
inverte a máxima da soberania política, que consiste no direito de fazer morrer ou deixar
viver. Os corpos insubordinados, num contexto biopolítico, são abandonados à morte,
uma morte lenta. Isso fica claro na produção de Amenábar. O personagem interpretado
por Javier Bardem, que levava uma vida afirmativa, após sofrer um acidente e ficar
paraplégico decide morrer. Mas o Estado (política) e a família conservadora (moral) não
permitem. A vida não mais lhe pertence. Pertence aos poderes. Ou pertence também aos
poderes.
Palavras-chave: Foucault; biopoder; Amenábar; vida; política.

Abstract: This article intends to conduct a discussion about the concept of biopower, as
created by the French philosopher Michel Foucault, with the film Mar Adentro, directed
by Alejandro Amenábar. Biopower is a form of power that took the life of assault and
was in charge of administering it. The biopower, according to Foucault, can be described
as follows: a power to make live and let it die. Biopower inverts the maxim of political
sovereignty, which consists in the right to cause death or let live. Insubordinate bodies,
in a biopolitical context, are abandoned to death, a slow death. This is clear in Amenábar's
production. The character played by Javier Bardem, who led an affirmative life, after
suffering an accident and become paraplegic decides to die. But the state (political) and
the conservative (moral) family do not allow. Life no longer belongs to him. It belongs
to the powers. Or it belongs to the powers as well.
Key words: Foucault; biopower; Amenáber; life; politics.

Introdução
"Basta: está chegando a hora em que a política terá um significado diferente",
diz Nietzsche, na seção 960, de "A Vontade de Potência". Nietzsche certamente rejeitaria
o título de profeta que estou lhe atribuindo; no entanto, pode-se dizer que sua temeridade

1 Doutorando em Educação, Artes e História da Cultura (Mackenzie), mestre em Filosofia Política (Unifesp) e
licenciado em Filosofia (Unisantos). Professor do curso de Licenciatura em Filosofia da Unimes.
272
tornou-se realidade: a política, hoje, é muito mais extensa do que na sua época (séc. XIX),
possui dispositivos de controle muito mais eficazes e, portanto, faz-se obedecer mais
sutilmente, mesmo para aqueles que se dizem bem formados subjetivamente ou
portadores de senso crítico. Mais do que isso: a política nesse começo do séc. XXI tem
como paradigma central não mais a violência explícita e punitiva, mas a normatização e
a gestão calculista da vida, abarcando questões que sobrepujam a atuação política
enquanto tal, adentrando ao campo biológico. É o caso do biopoder, conceito elaborado
por Michel Foucault para designar a ação política que, entre aspectos mais gerais,
caracteriza-se pela inclusão da vida biológica em assuntos governamentais, gerando
estratégias e ações políticas que visam não mais a disciplina dos corpos em espaços
previamente demarcados, mas um controle populacional, direcionado ao homem
enquanto espécie, em outros termos, enquanto população2. Como Foucault demonstrou
no último capítulo de A vontade de saber e na última aula de Em defesa da sociedade
(utilizaremos sobretudo deste último livro no correr do artigo), está na inclusão da vida
biológica em assuntos estatais a gênese dos paradigmas que movimentam a política atual,
com especial atenção para os projetos sociais, a questão racial e, sobretudo, os debates
acerca dos direitos dos homossexuais.
Assistimos no Ocidente a uma profunda transformação dos mecanismos de
poder. Ao antigo direito do soberano de fazer morrer ou deixar viver se substitui um
poder de fazer viver ou abandonar à morte. Há nisso uma grande mudança de paradigma.
O poder passou a se organizar em torno da vida, sob duas formas principais que não são
antitéticas, mas organizadas em sintonia uma com a outra numa espécie de
complementariedade de controle: por um lado, as disciplinas, uma anátomo-política do
corpo humano, elas têm como objetivo o corpo individual, considerado como uma
máquina a ser aprimorada. Por outro lado, vemos o surgimento de uma biopolítica da

2“É um novo corpo: corpo múltiplo, corpo com inúmeras cabeças, se não infinito pelo menos necessariamente
numerável. É a noção de ‘população’. A biopolítica lida com a população, e a população como problema político, como
problema a um só tempo científico e político, como problema biológico e como problema de poder, acho que aparece
nesse momento”. (FOUCAULT, 2010; 207)
273
população, do corpo-espécie; seu objetivo é o corpo vivente, os processos de
desenvolvimento biológico (nascimento, mortalidade, saúde, etc).
Para demonstrar essa nova dimensão política que gira em torno da vida
individual e coletiva utilizaremos do filme Mar Adentro (AMENÁBAR, Alejandro. Fox
Video Brasil, 2005), que tem como o tema principal o direito que temos de dispor da vida
nas sociedades neoliberais ou capitalistas contemporâneas.
Eis, portanto, o nosso objetivo ao redigir este artigo filosófico com suporte
sensível num filme / roteiro: a relação entre política, vida e morte no contemporâneo,
nesse tempo que podemos chamar de nosso.
O caso Ramon e o poder sobre a vida
Se o governo da vida pertence também às instâncias político-jurídicas; se as
instituições diversas organizadas em torno do Estado moderno e do mercado capitalista
são autorizadas a pronunciar discursos sobre a verdade da vida e da morte, lanço então a
seguinte questão: basta apenas a vontade do sujeito para dispor da própria vida? Pode um
sujeito reivindicar o seu direito de morte?
Esse é o dilema com que se depara Ramon, personagem principal de Mar
Adentro. Ele leva quase trinta anos debilitado em uma cama sob cuidados de sua família;
sua única janela para o mundo é a de seu quarto junto ao mar por onde tanto viajou e onde
sofreu o acidente que interrompeu sua saúde: certo dia, ao mergulhar na maré cheia,
Ramon, que era marinheiro, quebrou o pescoço e tornou-se tetraplégico, imobilizando por
completo o movimento do pescoço aos pés. Desde então, o objetivo único de Ramon é
dispor da própria vida e usufruir o direito natural de morte. Mas, sozinho, ele não o
consegue fazer. É necessária a ajuda de outra pessoa. Ilegalmente, a família e amigos não
colaboram com a sua vontade; a saída, portanto, é recorrer ao Estado a legalidade para
poder exercer uma morte digna. Para isso, a família e o próprio Ramon procuram uma
advogada.
Na primeira conversa entre os dois, eles tratam da vontade de Ramon de morrer,
como segue no diálogo abaixo:
- Por que quer morrer? - pergunta a advogada, sentada numa cadeira à
beira da cama de Ramon.
- Quero morrer porque a vida para mim, nesse estado... a vida assim não
é digna; então; bem; eu entendo que alguns tetraplégicos possam se
274
sentir ofendidos quando eu digo que viver assim não é digno; mas eu
não estou julgando ninguém; quem sou eu para julgar quem quer viver;
e por isso eu peço que ninguém me julgue e ... nem mesmo a pessoa que
me prestar ajuda para morrer - responde Ramon.
- E acha que alguém vai ajudar você?
- Isso vai depender dos que controlam as coisas, e de que eles superem
seu medo, mas... me escute, não é para tanto, a morte sempre esteve
conosco e sempre estará, pois, é o fim de todos nós, não é? Ela faz parte
da vida; por que ficam escandalizados se digo que quero morrer, como
se fosse uma coisa contagiosa - responde, sempre com a expressão
serena.
- Se chegarmos ao tribunal, perguntarão por que não busca uma
alternativa melhor para a sua incapacidade; por que recusa a cadeira de
rodas, por exemplo... - insiste a advogada.
- Aceitar a cadeira de rodas seria como aceitar migalhas da liberdade
que já tive. Olha, pense nisso: Você está sentada aí a menos de dois
metros e o que são dois metros? Uma distância insignificante para
qualquer ser humano, mas, para mim, cobrir esses dois metros
necessários para chegar até você e poder ao menos tocá-la, é uma
viagem impossível. É uma utopia; um sonho. Por isso eu quero morrer.
- finaliza Ramon. (AMENÁBAR, 2005)3
Ramon deseja morrer; não considera digna uma vida em suas condições. Não
pretende tornar isso uma norma ou mesmo afrontar as normas estabelecidas, apenas
deseja morrer. Mas a vida não é um direito todo seu; a vida enquanto tal pertence a uma
espécie, à espécie humana, pertence também aos poderes, aos códigos legais. É a lógica
biopolítica, essa espécie de estatização e politização da vida biológica:
Parece-me que um dos fenômenos fundamentais do século XIX foi, é o
que se poderia denominar a assunção da vida pelo poder: se vocês
preferirem, uma tomada de poder sobre o homem enquanto ser vivo,
uma espécie de estatização do biológico ou, pelo menos, uma certa
inclinação que conduz ao que se poderia chamar de estatização do
biológico. (FOUCAULT, 2010; 202)
Percebe-se pela citação acima de Michel Foucault que durante o século XIX
houve uma transmutação política decisiva no Ocidente: a vida, vista como um elemento
fora da política, um elemento natural, transformou-se no principal tema político e no
principal objeto a ser governado e controlado pelas relações de poder. Nas palavras de

3 O presente artigo / ensaio conterá uma grande quantidade de citações recuadas porque trabalharemos com diálogos e
trechos transcritos das falas dos personagens de Mar Adentro. Trazer à luz para o (a) leitor (a) trechos do filme é
importante para justificarmos a “trama biopolítica” criada por Amenábar. As citações, portanto, revezar-se-ão entre
diálogos transcritos do filme e argumentações de Michel Foucault sobre o biopoder.
275
Foucault, houve uma “tomada de poder sobre o homem enquanto ser vivo”, “uma espécie
de estatização do biológico”. Essa tomada da vida pelos poderes Foucault chamou de
biopoder.
Com o advento da biopolítica, o homem ocidental aprendeu pouco a pouco o que
é ser uma espécie viva, ter corpo, condições de existência, saúde individual e coletiva.
Aprendeu que a vida é uma propriedade (é triste escrever isso) compartilhada entre o
humano e as tecnologias modernas de controle e poder.
Voltando ao filme, tão logo as pretensões de morte de Ramon tornaram-se
públicas, um agente importante da sociedade biopolitizada – um padre – tentou dissuadir
Ramon da ideia de morrer. Ele pronunciou-se numa rede de TV aberta com o objetivo de
alcançar a atenção de Ramon:
- Ramon disse que não quer continuar vivendo; mas não sei, eu me
pergunto: será que na realidade o que Ramon está fazendo não seria
reclamar da sociedade, de nós, algum tipo de atenção?
A fala desagrada Ramon que o assiste pela televisão.
- Talvez as pessoas que o cercam, a família, não possam lhe dar o
carinho que necessita. Será que, afinal, o que Ramon está pedindo não
é um pouco mais de amor? - continua o padre. - Eu gostaria muito de
vê-lo; de verdade, eu gostaria de falar com ele e de convencê-lo de que
existem inúmeras razões boas para se continuar vivendo.
(AMENÁBAR, 2005)
O padre, ciente da insistência de Ramon em reivindicar o direito de morte, tratou
de ir visita-lo sem ao menos comunicá-lo. O diálogo entre Ramon e o padre é intenso,
repleto de intensidades poéticas, momentos filosóficos, divergências políticas, como
podemos ver no trecho abaixo:
- [a fala inicia-se cortada] como nós estamos dentro da eternidade, a
vida não nos pertence; então, é claro, nós levamos ao extremo ridículo
a noção burguesa de propriedade privada. – diz o padre, ao tentar
explanar o sentido da vida.
- A igreja sempre foi a primeira a sacramentar a propriedade privada -
interfere Ramon, ironicamente. E continua: - Liberdade para escolher
as minhas crenças; não as suas crenças, tampouco decidir sobre a sua
vida!
O padre faz uma réplica e a fala não aparece. Ramon prossegue:
- Por que a igreja mantem com tanta paixão essa postura de terror para
com a morte? Por que sabe que perderia grande parte dos seus fiéis se
as pessoas aprendessem a perder o medo...
O padre o questiona: - Não lhe parece demagogia falar-se em morte com
dignidade? Por que não diz, em alto e bom tom, que vai se matar e
pronto!

276
Ramon o responde:
- Não deixa de me surpreender que demonstre tanta sensibilidade
quanto à minha vida, levando em conta que a instituição que o senhor
representa aceita, hoje em dia, nada menos que a pena de morte, e
durante anos condenou à fogueira aqueles que não pensavam
corretamente; agora quem está fazendo demagogia, aqui, é você. Mas
deixando o eufemismo... eles teriam feito isso comigo, não é? Me
queimariam vivo... me queimariam por defender minha liberdade.
- Uma liberdade que elimina a vida não é liberdade - retruca o padre.
- E uma vida que elimine a liberdade também não o é! - insiste Ramon,
sem titubear. (AMENÁBAR, 2005)
A normatização e a pressão política exercida sobre a vida de Ramon ilustra a
noção foucaultiana sobre o que é biopoder, o poder sobre a vida, a estatização do
biológico. Ele sente o poder do discurso impessoal, ou melhor, o poder do discurso
normativo que visa controlar a realidade humana como se se tratasse de um único corpo
biológico a ser administrado. O biopoder reduz o humano ao biológico. Mas Ramon não
é qualquer um, ele é o outro, o diferente, uma minoria social. O outro que a biopolítica
não enxerga, e por isso ele resiste ao controle político da vida.
Do poder soberano ao biopoder
Segundo Foucault (1997) um fator determinante para que a biopolítica se
constituísse como tecnologia de poder foi a acumulação de indivíduos na sociedade, isto
é, o surgimento da população. A expansão demográfica na Europa, em especial no século
XVIII, levou a uma ampla produção teórica sobre novas artes de governo, no qual a
biopolítica se apresenta como uma delas:
O curso deste ano [O nascimento da biopolítica] foi finalmente
dedicado, em sua totalidade, ao que devia constituir apenas a
introdução. O tema escolhido foi, portanto, a “biopolítica”: entendia por
biopolítica a maneira pela qual se tentou, desde o século XVIII,
racionalizar os problemas propostos à prática governamental, pelos
fenômenos próprios a um conjunto de seres vivos constituídos em
população: saúde, higiene, natalidade, raças... Sabe-se o lugar crescente
que esses problemas ocuparam, desde o século XIX, e as questões
políticas e econômicas em que eles se constituíram até os dias de hoje.
(FOUCAULT, 1997; 89)
A biopolítica surge, portanto, como uma tecnologia de governo destinada à
população, como já adiantamos rapidamente num momento anterior. E o surgimento da
população enquanto fenômeno político é algo recente, data da modernidade ocidental. O
biopoder é moderno, uma tecnologia de poder criada recentemente pela cultura política
ocidental e, portanto, algo a que devemos nos ater hoje. A filosofia política
277
contemporânea, por exemplo, encontra-se às voltas e atenta para a questão do biopoder.
Diversos filósofos de nosso tempo discutem a questão do biopoder: Giorgio Agamben,
Antonio Negri, Michael Hardt, Paul Beatriz Preciado, Paul Rabinow, Roberto Esposito,
dentre outros – cada qual, claro, seguindo seus propósitos de pesquisa particulares, mas
todos refletindo sobre a relação decisiva entre política, vida e morte.
Uma boa maneira de compreender o conceito de biopoder em Foucault é
compará-lo com o poder soberano, esta modalidade de poder pré-moderno, pré-
liberalismo político. De certo modo, o biopoder – o poder sobre a vida – nasce para resistir
e contrapor o poder soberano – o poder sobre a morte.
Em termos históricos o poder soberano coincide com as monarquias absolutistas,
com o mercantilismo, com a passagem do mundo feudal para o mundo moderno. O poder
soberano é um poder sobre o território. Dentro dos limites de um território – vale lembrar
que a consolidação das nacionalidades europeias aconteceu nesse período histórico -
haveria a existência de um ser soberano, um rei soberano, que detêm poder total sobre
aquele território. Nada poderia afrontar a soberania do rei. Caso alguém ousasse
transgredir uma norma ou resistir ao comando do rei, tornar-se-ia legítimo para o poder
soberano dispor da vida do súdito rebelde. Por isso que Foucault chamou o poder
soberano de “poder de morte”, pois tratasse de um poder capaz de tirar a vida, de submeter
o corpo à morte. Nas palavras de Foucault (2010; 207): “A soberania fazia morrer e
deixava viver. E eis que agora aparece um poder [o biopoder] que eu chamaria de
regulamentação e que consiste, ao contrário, em fazer viver e em deixar morrer”. Foucault
começou o trecho citado alegando que o poder soberano é um poder que fazia morrer e
deixava viver. O biopoder inverteu essa lógica para o fazer viver e deixar morrer. No caso
de Ramon, de Mar Adentro, o Estado atuou no sentido biopolítico do deixar morrer: não
concedeu o direito de morte a ele, abandonou seu corpo à morte, uma morte lenta, uma
morte sofrida.
A morte dos súditos rebeldes pelo poder soberano dar-se-ia em praça pública
para servir de exemplo para o restante da população. Havia uma ritualização da morte. O
súdito teria direito a fazer um último pedido ao soberano, teria direito de ver a sua família
pela última vez. Tratava-se, pois, de um rito de passagem do mundo material para o

278
mundo espiritual, tendo em vista que o poder soberano estava atrelado a uma cosmovisão
de cunho cristã oriunda do período medieval e da cristandade.
O bopoder, o poder sobre a vida, por sua vez, nasce para contrapor o poder sobre
a morte, o poder soberano. Em termos históricos o biopoder coincide com o liberalismo,
que traz em seu escopo antropológico a ideia de que o homem possui uma dignidade
natural a ser respeitada pelo contrato social, a ideia de que o homem possui uma natureza
universal, possui direitos universais que precisam ser acatados e respeitados pelo Estado.
A proclamação dos Direitos do Homem na Revolução Francesa de 1789 é um documento
ilustrativo dessa concepção liberal de homem. A citação abaixo de Foucault deixa claro
que o biopoder nasceu e se desenvolveu dentro dos marcos históricos do liberalismo
político e econômico:
Pareceu-me que não se podia dissociar esses problemas do quadro de
racionalidade política no interior do qual surgiram e adquiriram sua
acuidade. Ou seja, o “liberalismo”, já que é em relação a ele que se
constituíram como um desafio. Num sistema preocupado com o
respeito aos sujeitos de direito e à liberdade de iniciativa dos indivíduos,
como será que o fenômeno “população”, com seus efeitos e seus
problemas específicos, pode ser levado em conta? Em nome de que e
seguindo quais regras é possível geri-lo? (FOUCAULT, 1997; 89)
O Estado e as relações de poder, portanto, se depararam com esse novo
fenômeno: a dignidade da vida humana. O Estado, os poderes, já não podiam mais dispor
da vida dos homens. Os poderes precisaram se transmutar, inserir a vida em seus cálculos
estratégicos, governar a vida e não exercer a morte. Daí nasce o biopoder, segundo a
perspectiva histórico-filosófica de Foucault.
Durante a vigência do poder soberano, o rei dispunha da vida de seus súditos
rebeldes ou transgressores. Com o advento do biopoder, o Estado Moderno passou a
prevenir as más condutas com o estabelecimento de normas institucionais, controlando a
vida e o comportamento individual e coletivo. O fato é que os poderes se voltaram para a
vida. Estimular a vida, prolonga-la, controla-la, governa-la, eis no que consiste o
biopoder.
Ramon não conseguiu exercer o direito de morte porque a sua vida
biologicamente considerada era um elemento importante para o funcionamento das
instituições públicas, em resumo, para o Estado. O Estado, atuando sob a lógica
biopolítica do liberalismo, encarregou-se da vida da população e, por conseguinte, da vida
279
biológica de Ramon. A vida de Ramon pertence também ao Estado e aos poderes. E sem
o aval político-jurídico do Estado, Ramon não pode dispor de sua vida.
Produção de subjetividades docilizadas
Como já esclarecemos em demasia nas linhas acima, o biopoder é um poder
sobre a vida. Não se trata, em definitivo, de um poder bélico, que reprime, que agride a
vida da população. O objetivo do biopoder é o de governar a população, impor ordem,
impor segurança, domesticar a vida. Nesse sentido, o biopoder age sobre a consciência
dos indivíduos, penetra na subjetividade das pessoas, produzem os sujeitos segundo os
seus critérios. Vimos que o biopoder nasceu dentro dos marcos do liberalismo político e
econômico. O biopoder, portanto, visa capturar a vida da população para usá-la, para
adaptá-la às necessidades do liberalismo. É com o liberalismo que o poder se volta para
a vida, e se volta para a vida com o objetivo tático de usá-la ao seu favor e interesse. Com
o liberalismo o poder passou a precisar da vida para o seu funcionamento. Não é inútil
lembrar que o liberalismo resultou no que Marx intitulou de capitalismo, o sistema de
produção e reprodução de Capital concentrado nas mãos de uma determinada classe
social, o que ele chamou de burguesia. O liberalismo quer governar a vida da população
para transformar os corpos em máquinas produtivas, em corpos economicamente úteis,
mas politicamente dóceis, esse é o ponto. O governo da vida visa resultar na produção de
subjetividades docilizadas, modos de existir docilizados.
A citação abaixo escrita por Peter Pál Pelbart demonstra claramente como que
os poderes se encarregaram de capturar as forças da vida (psiquismo, energia,
criatividade, genes) para usá-las, para pô-las para trabalhar a seu próprio proveito:
Duas tendências contrapostas nos obrigam hoje a repensar esse termo
tão antigo e a cada dia mais invocado: a vida. A primeira delas pode ser
formulada como segue: o poder tomou de assalto a vida. Isto é, o poder
penetrou todas as esferas da existência, e as mobilizou, e as pôs para
trabalhar em proveito próprio. Desde os genes, o corpo, a afetividade,
o psiquismo, até a inteligência, a imaginação, a criatividade, tudo isso
foi violado e invadido, mobilizado e colonizado, quando não
diretamente expropriado pelos poderes. Mas, o que são os poderes?
Digamos, para ir rápido, com todos os riscos de simplificação: as
ciências, o capital, o Estado, a mídia. Mas é uma resposta muito geral e
mola, pois de fato assistimos a uma lógica esparramada, dispersa,
infinitesimal, bem mais molecular do que tais instâncias poderiam
sugerir, e a mecanismos muito mais complexos e sutis. Na esteira de
Foucault, é preciso remeter-se aos dispositivos heterogêneos, díspares,
280
locais, bem como aos mecanismos de poder constituintes, e não apenas
repressivos, com seus efeitos simultâneos de individualização e
totalização. (PELBART, 2008; 01)
A citação acima é enfática: o poder tomou de assalto a vida! Desde os genes, o
corpo, a afetividade, o psiquismo, a inteligência, a imaginação e a criatividade foram
postas para trabalhar para os poderes. Em suma, nós, humanos, fomos postos para
trabalhar para os poderes. Nossa subjetividade é produzida pelos poderes.
Essa é uma tese que perpassa transversalmente os trabalhos filosóficos de
Foucault: somos seres históricos, produzidos pela história e pelas relações de poder. O
biopoder nos produz, não está distante de nós. O problema de Foucault é a abordagem
histórica da subjetividade. Em oposição à tradição cartesiana, sua análise do sujeito não
se respalda no problema da substância. O problema do sujeito é o da história da “forma-
sujeito”. E justamente por ser “forma”, o sujeito não pode ser idêntico a si mesmo, porque
toda forma é, ela mesma, múltipla, composta. Com efeito, trata-se de um profundo
ceticismo com relação aos universais antropológicos instaurados pela modernidade
filosófica (o homem como o fundamento de todo o saber possível). Tudo o que nos é
proposto, em nosso saber e em nossa prática, como sendo de caráter universal a respeito
da natureza humana ou de categorias que se podem aplicar ao sujeito, exige ser verificado
e analisado em suas dimensões históricas. Efetuar a história do sujeito ou analisar a
subjetividade em sua historicidade representa o que Foucault denomina de “ontologia
histórica de si mesmo”. Noutros termos, o que Foucault nos ensina é uma recusa radical
sobre quaisquer teorias que se sustentam numa concepção demasiadamente rígida do ser
humano.
Meu objetivo será mostrar-lhes como as práticas sociais podem chegar
a engendrar domínios de saber que não somente fazem aparecer novos
objetos, novos conceitos, novas técnicas, mas também fazem nascer
formas totalmente novas de sujeitos e de sujeitos de conhecimento.
(FOUCAULT, 2002; 8)
No ano de 1984, Foucault (2012, p. 228) escreveu um verbete anônimo intitulado
de Foucault para um dicionário francês explicando o percurso do seu próprio pensamento.
Nele, Foucault afirmou que seu objetivo não era investigar o poder (embora tenha feito
isso com êxito), mas criar uma história sobre os diferentes modos pelos quais os seres
humanos tornam-se sujeitos. Analisar os processos de subjetivação produzidos pela
história de nossa cultura, com especial atenção ao projeto político da modernidade e seus
281
desdobramentos ainda atuais, é o que constitui a natureza de suas pesquisas. Foi num
momento específico das suas pesquisas que a análise dos poderes fez-se urgente para a
sequência de seu projeto filosófico. Entretanto, é necessário cautela ao abordar temas
como “sujeito” ou “subjetividade” em suas obras. Foi ele quem anunciou textualmente a
sentença de “morte do homem” como horizonte do saber na contemporaneidade. Por isso,
ao mesmo tempo em que se dedica a analisar o modo de ser e os processos de formação
da subjetividade, a busca por um sujeito fundamental representa o maior ponto de
distanciamento das suas pretensões filosóficas.
Voltando mais uma vez para o suporte sensível do filme Mar Adentro,
percebemos claramente que todos os que vivem ao redor de Ramon estão produzidos
subjetivamente pela dinâmica do biopoder. Ramon insistentemente pediu que “por amor”
seus amigos e familiares o matassem, já que sozinho ele não conseguia fazer. A família,
muito conservadora e muito católica, recusou os pedidos insistentes de Ramon.
Poderíamos dizer que suas subjetividades estavam postas a trabalho do biopoder, estavam
capturadas pelo escopo moral do biopoder. As subjetividades dos familiares de Ramon
estavam docilizadas pelo biopoder.
O diálogo abaixo entre Ramon e sua amiga Rosa demonstra bem essa capacidade
que o biopoder tem de produzir as subjetividades modernas. Rosa conheceu Ramon após
o acidente, ou seja, conheceu Ramon como um sujeito tetraplégico. Ela insistia para que
Ramon dissuadisse da ideia de morte. Ela estava capturada por completo pela visão de
mundo biopolítica. Ramon é quem escapou dessa captura. Ramon, em toda a trama de
Mar Adentro, é o único sujeito que resistiu à dinâmica governamental do biopoder:
- Olha, Rosa, não venha me pedir para continuar vivendo por sua
causa...
- E se eu dissesse que... você me dá forças para viver, Ramon...
- Você ama seus Filhos?
- Claro!
- Daí você tira suas forças para viver. - Não aumente minha
responsabilidade. Você chama isso de amor? Me prender contra a
minha vontade? - A pessoa que realmente me amar será aquela que me
ajudará a morrer. Isso é me amar... isso é me amar... (AMENÁBAR,
2005)
O grande impedimento de Ramon quanto ao desejo de morte é, para além do
aparato jurídico, para além da lei, a subjetividade docilizada de seus parentes e amigos.
O seu grande inimigo é, também, a norma: as pessoas ao seu redor estão todas
282
normatizadas, incultadas pelo veneno que é a ordem normalizadora, veneno este cedido
voluntariamente pelo biopoder.
Conclusões finais
Pode parecer estranha uma trama que se desenvolve a partir do seguinte suposto:
o desejo de morte, a vontade de morrer de um indivíduo. No entanto, se achamos estranho
o desejo de morte – esse elemento tão imanente à vida – é porque estamos envolvidos de
algum modo com o biopoder. Resistir ao biopoder não é fácil.
Apesar da vontade de morrer, Ramon é a pessoa mais serena, mais sóbria, mais
autêntica e, acreditem se quiser, mais autônoma de Mar Adentro. Ramon nunca se
enveredou pelo ressentimento. Ele era marinheiro. Sofreu o acidente no mar, num
mergulho. E ainda assim manteve boas recordações do mar: toda vez que rememorava
suas experiências era através de saudosismo, da vontade de retornar à experiência perdida.
Como tentamos demonstrar em nossas argumentações, Ramon reivindicou o seu
direito de morte. Mas, por viver num contexto histórico e político marcado pelo governo
da vida, pelo biopoder, seu pedido foi recusado pelo Estado. Incapaz de tirar a própria
vida sozinho, Ramon recorreu à família, que também não respeitou a sua vontade, pois
estavam capturadas subjetivamente e docilizadas pelo mesmo biopoder.
O biopoder não é uma modalidade de poder agressiva, bélica; antes, caracteriza-
se por uma gestão calculista da vida. Por isso é difícil resistir ao biopoder, resistir a um
poder que tomou a vida de assalto.
O filme Mar Adentro, dirigido por Alejandro Amenábar, nos permitiu discutir e
problematizar a temática do biopoder. Tivemos a oportunidade de esclarecer diversos
elementos constituintes do biopoder: o contraponto ao poder soberano, a identificação
com o liberalismo, a produção da subjetividade, dentre outras questões menos evidentes.
O fato é que a partir do suporte sensível de Amenábar conseguimos discutir diversos
elementos do pensamento filosófico de Michel Foucault, um dos principais filósofos
franceses do século XX.
Este trabalho consistiu numa problematização filosófica sobre o biopoder, de
Foucault, a partir do filme de Amenábar. Esperamos, por fim, que a relação entre o
pensamento filosófico e a trama cinematográfica tenha transmitido um significado e um

283
sentido sobre a relação contemporânea entre a política, a vida e a morte. Este foi o nosso
objetivo principal.

Referências bibliográficas:

FOUCAULT, Michel. Resumo dos cursos do Collège de France. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
1997. Tradução de Andrea Daher.
__________. A verdade e as formas jurídicas. Rio de Janeiro: Nau Editora, 2002. Tradução de
Roberto Cabral de Melo Machado e Eduardo Jardim Morais.
__________. Em defesa da sociedade. São Paulo: Martins Fontes, 2010. Tradução de Maria
Ermantina de Almeida Prado Galvão.
__________. Foucault (verbete). In: __. Ditos e escritos V: Ética, sexualidade e política. Rio de
Janeiro: Forense universitária, 2012. Tradução de Elisa Monteiro e Inês Autran Dourado Barbosa.
Organização de Manoel Barros da Motta.
NIETZSCHE, Friedrich. A vontade de potência: ensaio de uma transmutação de todos os valores.
Coletivo “A foice e o martelo”, s/d. Disponível em: <
http://www.afoiceeomartelo.com.br/posfsa/autores/Nietzsche,%20Friedrich/Friedrich%20Nietzs
che%20-%20Vontade%20de%20Pot%C3%AAncia.pdf >, acessado em 22 de outubro de 2018.
PELBART, Peter Pal. Biopoder e contraniilismo. Programa Cultura e Pensamento, 2008.
Disponível em: < http://desarquivo.org/sites/default/files/const-comum_peter-pal-pelbart.pdf >,
acessado em 22 de outubro de 2018.
Filmografia

MAR ADENTRO. Direção: Alejandro Amenábar. Produção: Fox Video Brasil. Espanha / França
/ Itália, 2005, 1 DVD.

284
Mulher Maravilha e o protagonismo feminino

Wonder Woman and the feminine protagonism

Matilde Wrublevski1
Yuri Garcia2

Resumo: Em 2017, o universo fictício das HQs teve uma importante incursão no
audiovisual. Mulher Maravilha surge como uma potente marca feminista em um nicho
marcado por uma presença majoritariamente masculina. A chegada de uma protagonista
mulher de tamanha potência se mostra como um marco político na história da indústria.
Não seria a primeira heroína do cinema ou a primeira aparição do personagem (visto que
já existia nos quadrinhos desde a década de 40 e não é sua primeira aparição no
audiovisual). O importante era a mistura de ingredientes que trazia. A estruturação do
universo fílmico da Marvel e da DC no cinema apontava para uma ausência de uma
produção centrada em uma protagonista feminina. Desde uma tradição de “donzelas em
perigo” até as recentes personagens mais fortes que apareciam no cinema, a representação
sempre se limitava a uma aparição como coadjuvante. Patty Jenkins, uma diretora mulher
estava a frente do projeto, unindo o fato da personagem ser um símbolo feminista, o filme
foi uma das maiores bilheterias do ano. Em uma primeira instância, parece ser uma obra
que realça a figura da mulher como uma imagem de força e coragem, contudo, uma
análise mais cuidadosa pode apontar questões que ainda se enquadram em um padrão
cultural de centralização da figura masculina. Esse trabalho procura apontar algumas
dessas questões, sem abandonar a importância do filme. Mulher Maravilha dá início a um
processo importante, apresentando um avanço na batalha das mulheres por um espaço de
representação no cinema, mas uma análise cuidadosa nos mostra que ainda há muito a se
conquistar.
.Palavras-chave: Mulher Maravilha; protagonismo feminino; cinema; HQs.

Abstract: In 2017, the fictional universe of comics had an important foray into the
audiovisual. Wonder Woman emerges as a powerful feminist brand in a niche marked by
a predominantly male presence. The arrival of a female protagonist of such power is
shown as a political landmark in the history of the industry. It is not the first heroine of
cinema or the first appearance of the character (since it already existed in the comic
books from the decade of 40 and it is not her first appearance in the audiovisual). The
importance is the mixture of ingredients she brought. The structuring of the film universe
of Marvel and DC in cinema pointed to an absence of a production centered on a female
protagonist. Since a tradition of "damsels in distress" to the recent stronger characters
appearing on film, the performance was always limited to an appearance as a supporting
actor. Patty Jenkins, a female director was leading the project, joining the fact that the

1 Doutoranda em Teatro pela Universidade do Estado de Santa Catarina. Mestre em "Poéticas da Cena: Teoria e
Crítica"" pelo "Programa de Pós-Graduação em Artes da Cena (PPGAC)" da ECO - UFRJ. Especialista em Gestão e
Produção Cultural pela Fundação Getúlio Vargas. Autora do livro "Modelo de Implantação para um Centro Cultural
Autossustentável" (2017). E-mail: matildewrublevski@hotmail.com.
2 Doutorando com bolsa Faperj Nota 10 em Comnuicação Social pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Mestre

em Comunicação Social pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Possui pós-graduação em Docência do Ensino
Superior pela IAVM-UCAM. Participa do Grupo de Pesquisa “Culturas Tecnológicas: medialidades, materialidades e
temporalidades” coordenado pelo Prof. Dr. Erick Felinto. Autor do livro “Drácula, o vampiro camaleônico” (2014). E-
mail:yurigpk@hotmail.com

285
character is a feminist symbol, the film was one of the biggest box office of the year. In a
first instance, it seems to be a work that emphasizes the figure of the woman as an image
of strength and courage, however, a more careful analysis can point to questions that still
fit into a cultural pattern of centralization of the male figure. This work tries to point out
some of these issues, without abandoning the importance of the film. Wonder Woman
begins an important process, presenting a breakthrough in the battle of women for a
space of representation in the cinema, but a careful analysis shows that there is still much
to conquer.
.Key words: Wonder Woman; female protagonism; cinema; comics.

I n trod u ção
Nos últimos anos as pautas do feminismo têm ganhado mais espaço e visibilidade,
muitas camadas desse movimento tem vindo à tona através da percepção e inclusão de
uma diversidade de vozes e subjetividades. Termos como “lugar de fala”,
“representatividade” e “protagonismo feminino” se tornaram demandas que aprofundam
a reflexão sobre a relação entre as posições de poder e as mulheres. Aliado a esta
potencialização do discurso, vemos um cenário de intensa comunicação e atenção sobre
toda informação que circula no mundo, sendo a internet como a ferramenta que nutre a
velocidade do fluxo de notícias e dados. Desse modo, o feminismo ganha força particular
quando se tem um número imenso de mulheres em contato, sob um estado de atenção e
com a possibilidade de se posicionar publicamente. Com frequência é possível ver críticas
sobre filmes, comerciais, falas de pessoas públicas, entre outros, difundir-se pelo mundo
em pouco tempo. Vemos então, que, entre as pautas demandadas, a visibilidade e voz da
figura feminina é fortemente reforçada.
No entanto, estamos em um período em que o olhar crítico está extremamente
aguçado. Para a representação de um mulher é preciso haja vozes de mulheres no processo
de criação, é preciso pensar no modo como essa representação é concebida, quais
estereótipos ela aciona, entre outras questões. O caso da personagem da Mulher
Maravilha não foge à regra, pois, de fato ela é uma imagem de força, mas que também
possui suas contradições. Ela tem a mais longa publicação entre as super-heróis mulheres,
compondo o “big three” da empresa DC de quadrinho, juntamente com Batman e Super-
homem. Antes do filme lançado em 2017 sua última protagonização foi em 1974,
enquanto os outros dois personagens foram explorados em um grande número de filmes
nas últimas décadas. Então, vemos que o universo dos super-heróis ganhou destaque nos
últimos anos com suas produções cinematográfica, rendendo um valor alto em bilheterias
para a indústria.

286
Quando o filme da Mulher Maravilha foi lançado, na sua divulgação houve um
grande apelo para o público feminino, sendo este, o primeiro filme de herói protagonizado
e dirigido por mulheres. De fato, se trata de um marco e uma grande conquista. Entre a
pequena quantidade de filmes sobre super-heróis mulheres, cada nova produção é uma
conquista, pois elas projetam imagens de força, inteligência e autonomia. Além de ter
uma mulher como diretora, isto é, ocupando o que seria o posto mais alto na categorização
dos profissionais de cinema, visto que o número de diretoras premiadas ou conhecidas é
consideravelmente inferior ao de diretores.
Contudo, um olhar cuidadoso sobre esse cenário se faz indispensável, pois os
filmes de super-heróis estão inseridos em uma condição comercial, com altas quantias de
investimento e visando uma bilheteria lucrativa. Quando um movimento como o
feminismo está aliado a uma iniciativa de mercado é preciso investigar se, de fato, há um
tensionamento da ordem vigente e um deslocamento das posições de poder. Para pensar
essas questões analisaremos a relação entre o roteiro e a diretora Patty Jenkins.
O filme de Patty Jenkins faz algumas alterações da história original, retirando um
pouco da ingenuidade e acrescentando algumas alterações que foram feitas ao longo dos
anos nas HQs e outras feitas pelos próprios roteiristas. No entanto, a diretora consegue
captar a essência da personagem e trabalha de forma brilhante questões essencias para as
mulheres em um roteiro escrito por homens – Zack Snyder, Allan Heinberg e Jason Fuchs
– que não possui o mesmo olhar.
A Mulher Maravilha está longe de ser um símbolo feminsita tão forte como
costuma ser creditado e o filme de 2017, apesar de ser um marco extremamente
importante em uma constante batalha pelo maior protagonismo feminino no audiovisual
– tanto entre os personagens quanto entre os realizadores – ainda reflete práticas
encontradas nas tessituras de uma indústira audiovisual machista.
Patty Jenkins realmente desenvolveu um trabalho significativo diante desse
cenário, contudo, o maior poder encontrado em Mulher Maravilha ainda é o dos homens
detentores da produção, algo que é refletido no filme. Procuramos evidenciar algumas
dessas questões, sem, no entanto, esquecer a importância do filme em um percurso de
igualdade que ainda ocorre com dificuldade. O olhar da diretora, nesse caso, é essencial
para trazer camadas de sentido importantes e dialogar com um modo de representação do
feminino que não era alcançado no roteiro. Assim como o movimento feminsta está
batalhando por seus direitos e procurando seus espaços, a presença e o trabalho de Patty

287
Jenkins mostram que a batalha da Mulher Maravilha está tanto nas telas como por trás
delas.

A personagem como símbolo feminino


A Mulher Maravilha foi criada na chamada “Era de Ouro” dos quadrinhos,
durante a Segunda Guerra Mundial por William Moulton Marston. Sob o pseudônimo
Charles Moulton, a verdadeira identidade do criador de Mulher Maravilha foi revelada
apenas em 2014, pela jornalista e pesquisadora Jil Lepore no livro The Secret History of
Wonder Woman (2014).
Marston era uma psicólogo, professor e pesquisador, responsável pela criação de
um protótipo que daria origem ao polígrafo (conhecido vulgarmente como “detector de
mentiras”). Vivia em um relacionamento a três com sua esposa Elizabeth Holloway
Marston e Olive Byrne. Elizabeth era uma brilhante advogada e psicóloga, que enfrentava
dificuldades de posicionamento profissional por ser mulher e é responsável pelo
desenvolvimento da medida de pressão sanguínea sistólica, essencial para o
desnvolvimento do protótipo de Marston. Olive Byrne foi aluna e assitente de Marston
na universidade, e era filha de Ethel Byrne e sobrinha de Margaret Sanger, importantes
figuras do feminismo.
Marston acreditava em uma superioridade da mulher sobre o homem e projetava
que, em 100 anos, a sociedade estaria sendo regida por mulheres. Em 1940, Olive Byrne
(sob o pseudônimo Olive Richard) publica uma entrevista intitulada “Don't Laugh at the
Comics", com William Marston destacando o “grande potencial educativo” do meio. A
entrevista faz com que Marston seja contratado como consultor da National Periodicale
da All-American Publications, que mais tarde se transformariam na DC Comics. Marston
decidiu criar um super-herói similar ao Superman, mas que, promovesse uma revolução
no pensamento trazendo amor ao invés de luta. Ao apresentar sua ideia a Elizabeth, ela
sugeriu que seu personagem fosse uma mulher. Assim, a Mulher Maravilha é uma criação
conjunta entre os três, no entanto, com Marston levando o crédito.
Marston, era, de fato, o principal criador da persoangem, apesar das importantes
colaborações de Elizabeth e Olive. Todavia, a inspiração de sua criação eram essas duas
mulheres, o que fica claro quando vemos os braceletes que Olive usava e que acabram se
transformando em uma importante arma da Mulher Maravilha e toda trajetória feminsita
e batalhadora de sua esposa. A Mulher Maravilha era uma retrato das mulheres da vida
de Marston, que ele admirava e amava. Mesmo com a ótica progressista de Marston, seu

288
olhar ainda é o de um homem. A importante colaboração e inspiração de Elizabeth e Olive
são os toques essenciais para trazerem uma perspectiva um pouco mais feminina a
personagem que, apesar de todas as considerações, ainda foi criada e desenvolvida por
um homem e que passou todos os seus anos sendo escrita por uma esmagadora maioria
de homens.
A personagem se trata de uma mulher forte e guerreira que prega justiça e
igualdade. Não procura castigar seus inimigos, e sim fazê-los melhorar. Sua principal
arma: a verdade! Assim, surge mais do que uma personagem de histórias em quadrinhos,
assim surge um ícone, uma marca, um ideal. A Mulher Maravilha é um símbolo feminino
que, assim como todas as mulheres, batalha por igualdade em um mundo machista.
Na narrativa da personagem, Diana de Themyscira (lugar também conhecido
como Ilha Paraíso), veio ao mundo como uma estátua de barro, criada por Hipólita, rainha
das amazonas. Apaixonada por sua obra e, querendo ter uma filha, a rainha pediu aos
deuses que dessem vida a figura e foi atendida por Zeus. Foi presenteada com grande
sabedoria, presente da Deusa Atena; força, do Deus Deméter; velocidade de Hermes;
beleza de Afrodite; capacidade de cura acelerada e compreensão das feras de Ártemis e
Apolo; imunidade ao fogo, seus braceletes dourados e um laço mágico de Hefesto;
desterza no nado de Poseidon e a herança de semi-deusa de Zeus. Foi criada com as
amazonas na Ilha Paraíso, treinada para ser uma grande guerreira, em um lugar onde não
havia homem algum.
Steve Trevor, um piloto estadunidense da Força Aérea sofre um acidente e seu
avião cai na Ilha Paraíso, e é salvo por Diana. A rainha Hipólita decretou um torneio entre
as amazonas para que a ganhadora levasse o capitão de volta ao seu lar em segurança e
fosse a representante das amazonas, lutando por justiça no mundo dos homens. A
princesa, mesmo proibída de participar, se disfarça e ganha a competição. Após revelar
sua identidade, Hipólita permite a Diana que assumisse a função e a presenteia com um
uniforme feito pela própria rainha.
A personagem de Moulton é um marco de representação para as mulheres pelo
simples fato de sua existência. Em um cenário de personagens predominantemente
masculinos, criar uma super-herói mulher é um passo muito importante. Atualmente ela
é uma das personagens mais estudadas e com a maior publicação. Na sua história vemos
que se trata de uma mulher independente, que prioriza sua missão antes de qualquer
envolvimento romântico. Sua identidade secreta, isto é, seu alter ego, Diana Prince é
utilizada para se disfarçar entre a multidão e não ser reconhecida, assim, se tornando uma

289
interpretação ou espelho do que seria a mulher de sua época. O que observamos é o retrato
de uma mulher que batalha com a incapacidade de ser auto-suficiente, possuindo
trabalhos de secretária, muito comuns as mulheres na época. Essa relação pode ser
encarada como uma própria crítica da Mulher Maravilha as mulheres que viviam no seu
contexto histórico e como herói ela enfatiza a potência que essas mesmas mulheres
possuíam (FRETHEIM, 2017, p. 11).
A figura da Mulher Maravilha é complexa, possuindo assim muitas contradições,
principalmente no que diz respeito ao discurso e da voz que existe por trás dela. A
personagem foi criada para estar aliada ao movimento feminista, no entanto a voz por trás
da personagem é de um homem, seu criador, William Marston. Todo o modo como ela é
concebida provém de um ponto de vista masculino da primeira metade o século XX. A
intenção era criar “um personagem feminino com toda a força do Superman e com todo
o fascínio de uma boa e linda mulher” (MADRID Apud FRETHEIM, 2017, p. 16)3. O
embate da representação da super-herói mulher é uma questão muito revisitada, pois
enquanto a Mulher Maravilha possui características nítidas de força feminina, ela também
se confronta com um imaginário de força que é masculino, além da reverberação desse
imaginário na sua imagem.
Os corpos dos super-herói possuem uma tendência a se assemelhar ao de
fisiculturistas, na intenção de representar um super humano que fosse extremamente forte.
Seus músculos podem ser tão exagerados que beiram ou ultrapassam a proporcionalidade
de um corpo real (FRETHEIM, 2017, p. 12). Na tradição das super-heróis mulheres o
corpo deve ser magro, mas com muitas curvas e seios grandes.
É interessante, então, que a parte mais avançada da anatomia feminina
de super-heróis são seus seios, que é uma característica que não apenas
identifica claramente o sujeito como feminino, mas também uma parte
do corpo que não é afetada pela musculatura (FRETHEIM, 2017,
p.13)4.
Em outras palavras, a autora coloca que, de certa forma, a representação de força viria de
uma intensificação de características sexuais femininas. Ambos os corpos, masculinos e
femininos são objetificados, mas de formas diferentes. Esses corpos femininos
reproduzem padrões impossíveis e ditam o modo como as mulheres deveriam ser, além

3 Todas as traduções, quando não apontadas o contrário, serão de nossa autoria: “[...] a feminine character with all the
strength of superman plus all the allure of a good and beautiful woman” (Madrid 35).
4 It is interisting then, that the most enhanced part of female superhero’s anatomy is her breasts, which is a feature that

not only clearly identifies the subject as female, but i salso a parto f the body that is not affected by musculature
(FRETHEIM, 2017, p. 13).

290
de fortalecer uma cultura que trata o outro como objeto e como posse, que afeta de modo
diferente a mulher.
No caso específico da Mulher Maravilha sua personagem foi modificada ao longo
das décadas de acordo com cada artista No início ela foi desenhada muito feminina, mas
como uma mulher com proporções realísticas (p.14). Em um evidente processo de
sexualização de sua figura, seu corpo ficou mais musculoso, com coxas mais grossas,
com um rosto mais sedutor, cabelos mais longos, seios maiores e com um traje mais justo
e curto. Nesse trajetória, houve apenas uma mulher desenhando a personagem (Colleen
Doran), todos os outros foram homens. É nítido que a personagem absorve características
femininas dependendo da época em que ela é produzida, mas uma similaridade é que são
visões de feminino reproduzidas por homens.
Se pensarmos a partir Judith Butler e suas ideias sobre atos performativos e
constituição de gênero. Podemos analisar o impacto da representação da Mulher
Maravilha ser criada majoritariamente pelo olhar masculino. Primeiramente Butler separa
as noções de gênero e sexo, para então pontuar que “o gênero não é de modo algum uma
identidade estável ou um local de acção, do qual provêm vários actos; é antes uma
identidade tenuemente constituída no tempo – uma identidade instituída através de uma
repetição estilizada de actos (2011, p. 70)”. O olhar sobre o outro, o “outro sexo”, é
sempre uma comparação ao seu e uma assimilação de diferenças, semelhanças e
expectativas. Desse modo, a concepção de feminino e mulher que constitui as criações
dos desenhistas da Mulher Maravilha são retratos de continuas construções do olhar do
homem sobre como uma super-herói mulher deveria ser. É inevitável que essa
personagem receba críticas de mulheres que não se sentem representadas pois não há uma
perspectiva feminina. A posição de fala e de poder nesse caso, pertence aos homens.

O feminisno comercial
Muitas críticas demonstram que há tensionamentos sobre representação de super-
heróis mulheres diante do público feminino. Existe uma ruptura entre essas imagens e os
padrões que elas reforçam. Se considerarmos que nos encontramos em um cenário sócio
político aonde os holofotes estão fortemente atentos aos detalhes, isto é, estão atentos
sobre a representação de figuras femininas e as vozes que as constroem. Para pensar a
potência dessas vozes, do lugar de fala no filme dirigido por Patty Jenkins precisamos
primeiro entender a importância desse termo. Djamila Ribeiro, através do seu livro, O
que é lugar de fala?, constrói um entendimento por dentro do seu estudo sobre feminismo

291
negro e suas particularidades diante do movimento feminista. No entanto, o termo pode
ser utilizado para pensar a representação de questões de diversas minorias. O que a autora
pontua é que a ação de falar não está ligada apenas ao ato de emitir palavras, mas ao fato
de poder existir
É aí que entendemos que é possível falar de lugar de fala a partir do
feminist standpoint: não poder acessar certos espaço, acarreta em não
se ter produções e epistemologia desses grupos nesses espaços; não
poder estar de forma justa nas universidades, meios de comunicação,
política institucional, por exemplo, impossibilita que as vozes dos
indivíduos desses grupos sejam catalogadas, ouvidas. (RIBEIRO, 2017,
p. 64).
Em outras palavras, se existe um grupo onde suas questões não são ouvidas através de
formas legitimadas, essas questões, então, não existem. Elas passam a existir quando um
lugar de poder é tensionado e ocupado por um representação específica.
No filme protagonizado por Gal Gadot, o grande apelo da mídia estava localizado
no ponto de vista feminino, isto é, por possuir uma diretora, a mesma estaria tomando seu
lugar de fala. No entanto, em que ponto a diretora teve realmente poder no projeto? Essa
é a primeira problemática que encontramos, pois, se considerarmos que a empresa visa
primordialmente o lucro, já que estamos tratando de filmes com grandes investimentos,
ela fará o que for necessário para atingir uma grande bilheteria. Nesse caso, fazer um
filme sobre uma super-herói mulher, sem ter nenhuma mulher na equipe principal,
poderia ter os mesmos problemas que a representação da personagem teve nos
quadrinhos. Soma-se a isso o senso crítico mais apurado sobre questões feministas que
convivemos atualmente, o filme correria sérios riscos de sofrer com as críticas e possíveis
boicotes. Com este panorama em vista, a presença de Patty Jenkins se torna muito
necessária, tanto para construir um tom mais preciso ao filme quanto para garantir sua
boa recepção com o público.
Em uma observação inicial, já podemos notar um grande problema. Zack Snyder,
grande detentor do poder de criação do universo da DC é diretor executivo da produção,
assim, um forte lugar de poder parece continuar sendo ocupado por um homem. Todavia,
o que encontramos como mais problemático é o roteiro do filme que, além de não possuir
uma mulher sequer entre os escritores, não foi muito modificado nas telas – o que
indicaria pouco espaço criativo para a diretora. Desse modo, vemos que existem algumas
contradições na ocupação do lugar de poder da direção do filme.
O roteiro é de Allan Heinberg com a história feita em parceria com Zack Snyder
e Jason Fuchs. Não pretendemos apontar os escritores como machistas, mas sim como

292
homens, que possuem uma visão masculina do personagem e não estão em completa
sintonia com uma super-herói mulher. O olhar masculino é presente em todo filme, não
permitindo que ele alcance o status realmente prometido.
Mesmo assim, Patty Jenkins é definitiva e consegue dar um olhar feminino ao
filme que não se encontra no roteiro. Em muitos casos, a direção de Patty Jenkins propõe
sutiliezas que fazem enorme diferença no trato da figura feminina. Grande parte não se
baseia em modificações no roteiro de uma forma geral, mas em apresentar uma
perspectiva mais sensível para o assunto, como a famosa cena em que a mulher maravilha
aterrisa no chão e podemos ver um pequeno tremor em sua perna, mostrando um corpo
mais real (dentro do possível, pois a atriz é também uma modelo).
Além disso, Patty Jenkins modifica poucas coisas em algumas falas ou ações que
acabam por afetar a relação entre os personagens, melhorando algumas coisas que vemos
no roteiro original. Dentre elas, podemos apontar para o fato de Steve Trevor (Chris Pine)
ter uma atitude mais sexualizada em relação a Diana, já no filme a diretora deixa o tom
mais leve e constrói a relação de forma mais sutil. O encontro de Etta, secretária de Steve
Trevor e Diana é descrito no roteiro como não muito agradável, deixando uma pequena
impressão de disputa e inveja por parte de Etta. Patty Jenkins modifica isso ao colocar a
atriza Lucy Davis como uma pessoa agradável, divertida e simpática que encontra uma
interessante cumplicidade feminina e uma dose de bom humor na dinâmica entre as duas
mulheres.
O encontro inicial entre Diana e os companheiros de batalha é bem dicotômico.
Diana claramente não gosta de Sameer (Saïd Taghmaoui) e Charlie (Ewen Bremner) e
ambos agem de forma um pouco lasciva em relação a ela. No filme, Patty Jenkins faz
Diana ficar intrigada e confusa, mas um pouco animada. Charlie não tem atitude
sexualizada em relação a Diana – é um personagem mais doce no filme do que no roteiro
– e Sameer fica com os mesmos diálogos mas Patty dá um tom mais leve e de um flerte
mais educado.
A relação entre Steve e Diana é mais interessante no filme, Patty Jenkins
desenvolve um romance aos poucos baseado em interesse mútuo e carinho de um por
outro. Steve parece aceitar rápido a potência de Diana e não disputa força com ela, apenas
estando confuso se o que Diana acerdita pode ser real ou apenas fantasia. No roteiro,
Steve tem uma postura de “macho alfa” em constante dominância e com aproximações
ou sexualizadas ou como homem forte e cavalheiro, e não acredita em Diana, sendo até
desrespeitoso algumas vezes. Ele passa a acreditar mais nela no momento em que se

293
apaixona e percebe que ela demonstra interesse por ele – no roteiro descrito até como uma
possível intenção de casar e ter filhos. Depois em sua conversa com Charlie deixa parecer
que talvez acredite na história de Diana, mas no fundo não acredita. Patty Jenkins deixa
essa sensação mais dúbia, parecendo o contrário, que finge não acreditar mas acredita
(pelo menos um pouco). A cena em que se beijam é mais explícita e sexual no roteiro. No
filme é tratada de forma mais sutil e bonita.
Outro ponto importante é uma discussão entre ambos sobre matar o general na
festa. Steve pergunta a Diana sobre a possibilidade de ele não ser Áries, enquanto no
roteiro ele pergunta sobre não existir Áries. Isso mostra a confiança que Steve tem em
Diana no filme é diferente do que no roteiro.
Mas talvez a alteração mais emblemática de Patty Jenkins seja em uma conversa
entre Steve e Diana no início do filme sobre ela ser a pessoa que pode solucionar a guerra.
STEVE : Olha, princesa, eu gosto do seu espírito, e talvez você saiba
algo que eu não sei, mas essa guerra está se alastrando, não há nada que
nós possamos fazer a respeito. Mas podemos tentar chegar até os
homens que podem.
DIANA: Você está olhando para a pessoa que pode.5 (p.38)
No filme, Patty Jenkins, substitui a reposta de Diana por “Eu sou o homem que pode fazer
isso”. A mudança proposta é muito significativa. Primeiro por explicitar um lugar que,
em teoria, não poderia ser ocupado por uma mulher. Esse lugar diz respeito a um salvador,
um herói que pudesse resolver a situação da guerra. Ao mesmo tempo essa alteração
sugere que Diana está enfaticamente ocupando essa posição, independente do gênero que
dão a ela, a posição e a personagem, além disso, que o gênero em si, não seria uma questão
nesse caso, pois o problema é a resolução de uma guerra.
Ao longo de toda narrativa é possível observar também que o personagem de
Steve possui um papel particularmente importante. Diferente de outros filmes de heróis
aonde suas companheiras possuem uma posição substancialmente coadjuvante, na
produção da Mulher Maravilha, Steve irá conduzir Diana em sua jornada. Ele é a pessoa
que possui as informações e os meios para encaminhar a personagem ao seus objetivos.
Desse modo, o protagonismo nesse caso já é diferenciado dos filmes em que o super-
herói é um homem, pois ele parece ser divido entre ambos os personagens. Essa questão
se desdobra através de algumas ações no decorrer da história, por exemplo quando Steve

5 “STEVE : Look, Princess, I like your spirit, and maybe you know something I don’t, but this war is so sprawling,
there’s nothing the two of us can do about it. But we can try to get to the men who can.
DIANA You’re looking at the person who can.” (p.38)

294
tem a ideia de fazer a manobra com amigos que então auxiliaria a Diana a destruir os
atiradores em cima de uma torre que estavam dizimando um vilarejo.
Para analisar melhor a problemática do protagonismo divido entre os personagens
podemos observar as cenas finais do filme. A batalha final com o vilão Áries é vencida
por Diana, porém havia ainda o problema das bombas que estavam em um avião e seriam
utilizadas na guerra, prejudicando muitos inocentes. Veja, a questão da guerra e suas
consequências no mundo não são resolvidas pelas mãos da Mulher Maravilha, pois
mesma derrotando o Deus Áries , essa ação em si não faz com que a guerra acabe, a
personagem descobre que se trata de uma questão mais complexa que habita os homens.
Desse modo, é Steve o responsável por sacrificar sua vida detonando o avião cheio de
bombas e salvando toda uma população de inocentes. Diante dessa conjuntura, quem
realmente salvou o dia? O sacrifício do herói que tão costumeiramente vemos nos filmes
não é totalmente exercido pelo o que seria a super-herói dessa história. Quantas
companheiras de super-heróis vemos com uma posição tão fundamental, como a Steve,
em outros filmes? Assim, Diana parece ter ficado mais responsável pela parte mítica que
envolvia o combate ao Deus da guerra e Steve pela parte mais concreta que envolvia
questões relacionadas à guerra.

Considerações finais
O filme da Mulher Maravilha é sem dúvida um marco importante em diversas
instâncias. Na representação de mulheres como super-heróis, em sua imagem e pela
presença da diretora Patty Jenkins ocupando uma das posições mais importantes na
produção. Esse trabalho possui diversas contradições, mas é uma conquista para o público
feminino. Ele nos mostra que é preciso estar sempre atento e crítico ao cenário que nos é
mostrado. Nesse caso, por exemplo, após uma pesquisa mais minuciosa percebemos que
tensionar e deslocar um lugar de poder para uma mulher foi interessante até determinado
ponto.
O lugar de fala ocupado pela diretora vai de encontro a uma demanda do público
e consequentemente do mercado. De modo que, ela é concedida para assegurar o sucesso
do filme. Em outras palavras, o protagonismo feminino é permitido até o ponto de
interesse para a indústria cinematográfica. Assim como as reflexões de Judith Butler e
Djamila Ribeiro demonstram que existe diferenças nas construções da ideia de feminino
e masculino e como olhamos para elas e que representatividade, por meio do lugar de
fala, traz a tona questões acerca de um determinao grupo social, percebemos que nesse

295
caso, onde havia várias roteiristas homens e uma diretora mulher, que a presença e as
contribuições de Patty Jenkins foram essenciais para a construção de um representação
que trouxesse uma subjetividade diferenciada.
Portanto, através desse estudo obsrvamos que há uma uma grande semelhança
entre o tensionameento causado pelo protagonismo da Mulher Maravilha no filme de
2017 e o de Patty Jenkins ocupando a posição de diretora dessa produção. Em ambos os
casos suas posições como protagonistas são divididas com figuras masculinas, assim,
compreendemos que uma mulher ocupar uma posição central, seja na ficção ou não, se
trata de um processo a ser continuamente conquistado. Em suma, esse lugar de fala
necessita se construido além do seu título, mas nas suas particulariades e relações.

Referências bibliográficas
BUTLER, Judith. Actos performativos e constituição de género. Um ensaio sobre fenomenologia
e teoria feminista. IN: Género, Cultura Visual e Performance. Organização Ana Gabriela
Macedo e Francesca Rayner. Edições Húmus, 2011.

FRETHEIM, Ingrid M. Fantastic Feminism: Female Characters in Superhero Comic Books.


Oslo: University of Oslo, 2017.

LEPORE, Jill. The Secret History of Wonder Woman. New York: Knopf, 2014.

RIBEIRO, Djamila. O que é lugar de fala? Belo Horizonte: Letramento: Justificando, 2017.

SNYDER, Zack; HEINBERG, Allan; FUCHS, Jason. Wonder Woman (Script). Burbank,
California: Warner Bros. Pictures Inc., 2017.

296
SÍMBOLOS, ARQUÉTIPOS E REGIME DE IMAGENS DA SÉRIE

"SUPERMAX" PELAS PERSPECTIVAS DE DURAND, CAMPBELL E

VOGLER

SYMBOLS, ARCHETYPES AND IMAGE SCHEME OF THE "SUPERMAX"

SERIES BY THE PERSPECTIVES OF DURAND, CAMPBELL AND VOGLER

Marcio Tadeu dos Santos

Resumo: A partir das perspectivas propostas pelas obras de Gilbert Durand para a
teoria do imaginário, de Joseph Campbell para os estudos dos arquétipos mitológicos
nas narrativas e de Christopher Vogler para o desenvolvimento de estruturas narrativas
míticas como ferramenta de criação para o desenvolvimento de novas histórias, o
presente artigo analisa símbolos, arquétipos e o regime de imagens presentes na série
"Supermax", da Rede Globo, em ambas as versões produzidas, para o Brasil em 2016 e
para os países de língua espanhola, em 2017, buscando semelhanças e diferenças no
regime de imagens e nos arquétipos encontrados para cada personagem das narrativas
propostas.

Palavras-chave: #supermax #série #arquétipos #símbolos #imaginário

Abstract: The present article analyzes the symbols, archetypes and the image scheme
from the perspectives of Gilbert Durand for the theory of the imaginary, Joseph
Campbell's studies of mythological archetypes and Christopher Vogler's proposal for
mythical narrative structures presented in both brazilian and the spanish-speaking
versions of the "Supermax" series, seeking similarities and differences in the regime of
images and archetypes found for each character in the proposed narratives.

Key words: #supermax #series #archetypes #symbols #imaginary


_________________________
Marcio Tadeu é roteirista pós-graduado pela FAAP, jornalista formado pela Universidade Santa Cecília e aluno
especial dos programas de pós-graduação da ECA-USP. Especialista em criação, pesquisa, desenvolvimento e roteiro
de projetos audiovisuais, já escreveu mais de 300 roteiros, entre programas de TV, telenovelas, séries, reality-shows,
filmes, entre outros. Portfólio: www.marciotadeu.com.br E-mail: marcio-tadeu@uol.com.br

Imaginário, Durand, arquétipos e Campbell

Esse artigo tem como objetivo principal identificar elementos do trajeto


antropológico proposto por Gilbert Durand em sua contribuição para a teoria do
imaginário, bem como identificar símbolos e arquétipos definidos a partir da obra de

297
Joseph Campbell e Christopher Vogler para o estudo das narrativas mitológicas,
aplicados a uma narrativa audiovisual contemporânea.
Durand faz um estudo detalhado da produção cultural da humanidade, com
ênfase no coletivo de imagens que advêm das narrativas mitológicas clássicas, além de
correntes religiosas, contribuições artísticas e literárias, e estabelece o que o autor
chama de trajeto antropológico, uma categorização de imagens, que são transformadas
em símbolos e por sua vez estruturadas como arquétipos. Tal categorização é associada
a gestos e reflexos instintivos do gênero humano, que buscam a criação de um
imagético com objetivo definido - negar, refutar, superar a ideia de morte, a angústia
gerada a partir da consciência de que tudo acaba, morre, chega ao fim. Essa busca
imagética se dá por meio de uma lógica de combate à inevitabilidade da morte, numa
busca de inversão de significados - do medo da morte para para algo mais reconfortante,
menos ameaçador o fatalístico, que permite ao homem seguir.
Essas atitudes imaginativas resultam na percepção, produção e
reprodução de símbolos, imagens, mitos e arquétipos pelo ser humano.
Esse conjunto de elementos simbólicos formaria o “imaginário”, cuja
principal função seria levar o homem a um equilíbrio biopsicossocial
diante da percepção da temporalidade e, consequentemente, da finitude.
(...) Na perspectiva de Durand, os gestos e reflexos dominantes:
postural, copulativo e digestivo estão diretamente relacionados às
estruturas presentes nas atitudes imaginativas do ser humano, e suas
forças atuam em vários níveis de formação dos símbolos. O autor
denominou as estruturas do imaginário de heróicas ou esquizomorfas -
relacionadas ao gesto postural - dramáticas ou sintéticas - relacionadas
ao gesto copulativo - e místicas ou antifrásicas - relacionadas ao reflexo
digestivo. (ANAZ, AGUIAR, LEMOS, FREIRE, COSTA, p. 6-7,
2014).

Para Durand (2002), o imaginário é resultado de atitudes imaginativas, que


emergem desse trajeto antropológico, baseado principalmente no conceito de arquétipo
de Jung1 e nos estudos sobre os reflexos ou gestos inatos dominantes do ser humano -
postural, digestivo e copulativo. Ele classifica as estruturas e sistemas que compõem o
trajeto antropológico em dois regimes de imagens - o regime diurno - que representa as
estruturas heróicas e os esquemas de ascensão e separação - derrotar a morte e o tempo
pela lógica do combate - luz versus trevas; céu versus inferno; herói versus monstro.

1
Em O Homem e seus Símbolos, Carl Gustav Jung (2008) define os arquétipos como conjuntos de imagens
primordiais originadas de uma repetição progressiva de uma mesma experiência durante muitas gerações,
armazenadas no inconsciente coletivo, refletindo-se (projetando-se) em diversos aspectos da vida humana, como
sonhos e narrativas. Ele explica que "no concernente aos conteúdos do inconsciente coletivo, estamos tratando de
tipos arcaicos - ou melhor - primordiais, isto é, de imagens universais que existiram desde os tempos mais remotos"

298
Remete, nas narrativas, às jornadas heróicas e de purificação, aos símbolos de potência
e diluição de subida em direção à luz e ao sol, de elevação e pureza e de confronto e
separação.
O segundo regime - o noturno - está relacionado a dois grupos de esquemas de
imagens - a estrutura mística, que representa os arquétipos e símbolos da queda e do
acocoramento, conectados ao gesto digestivo que busca atenuar a morte, o tempo regido
pela lógica do equilíbrio; e a estrutura sintética ou dramática - o esquema cíclico
conectado ao gesto copulativo, regido pela integração das lógicas heróica (diurna) e
mística (noturna). São exemplos de arquétipos e símbolos noturnos as representações
simbólicas do fogo e da chama, a roda, a cruz, a árvore, o sacrifício, a criança, a mãe, o
túmulo, entre muitos outros. A contribuição de Campbell (1989) vem por meio de seus
estudos sobre a mitologia universal, em que ele identifica os arquétipos clássicos das
muitas narrativas mitológicas, analisando as semelhanças entre diferentes mitologias e
identificando as sequenciais etapas da aventura do principal arquétipo mitológico - o
herói2, bem como suas transformações.
Baseado na obra de Campbell, Christopher Vogler (2015) trabalha na utilização
das estruturas míticas identificadas para contribuir pela racionalização dos elementos
narrativos, a fim de criar uma obra-guia que auxilie escritores, roteiristas e contadores
de história em geral a melhor estruturar suas narrativas, a partir das estruturas míticas
propostas por Campbell. Ele não somente simplifica as etapas da jornada do herói3
como faz uma análise dos principais arquétipos mitológicos, com o objetivo de usá-los
nas técnicas de contação de histórias. São eles: o Herói, o Mentor, o Guardião do
Limiar, o Arauto, o Camaleão, o Sombra, o Aliado e o Pícaro.
A partir das definições propostas para as imagens, arquétipos e símbolos
propostos por Durand, Campbell e Vogler, que foram estudados ao longo do curso
"Processos Criativos e Imaginários Audiovisuais", o estudo de caso pretendido a seguir

2
Em O Herói de Mil Faces, Joseph Campbell (p. 57-248, 1989) refaz, a partir de seus estudos de mitologia e
religiões, a trajetória do herói, conceito que é amplamente utilizado na sociedade moderna ao ser aplicado em
diferentes áreas como comunicação, artes, ciências humanas, educação, entre outras. São elementos clássicos da
jornada do herói categorizada por Campbell o chamado da aventura (inicia a partida), a recusa do chamado, o auxílio
sobrenatural, a passagem pelo primeiro limiar, o ventre da baleia, o caminho de provas (a iniciação), o encontro com
a deusa, a mulher como tentação, a sintonia com o pai, a apoteose, a benção última, a recusa do retorno (o retorno), a
fuga mágica, o resgate com auxílio externo, a passagem pelo limiar do retorno, o senhor dos dois mundos, a
liberdade para viver e as chaves.
3
A jornada do herói adaptada por Christopher Vogler como estruturas míticas para escritores: mundo comum,
chamado à aventura, recusa do chamado, encontro com o mentor, a travessia do primeiro limiar; provas, aliados e
inimigos; aproximação da caverna secreta, a provação, recompensa, o caminho de volta, a ressurreição, o retorno com
o elixir (p.47, 2015)

299
é o da série "Supermax" em suas duas versões, a original brasileira e o remake para
países de língua espanhola. O exercício descrito a seguir pretende identificar e comparar
arquétipos, símbolos e regimes de imagens nas duas versões da série, buscando
diferenças e semelhanças entre si.

Supermax - a versão brasileira


Em 2015, a Rede Globo iniciou a produção de uma nova série dramática. Criada
por Fernando Bonassi, João Alvarenga Jr. (que também assina a direção-geral) e Marçal
Aquino, "Supermax" foi o primeiro projeto de ficção da emissora produzido nos moldes
de desenvolvimento típico da criação audiovisual norte-americana, que criou e
aperfeiçoou o modelo da writer’s room, a sala de roteiristas. Até então, o processo
criativo mais habitual empregado pelos roteiristas da emissora até hoje é o modelo
advindo das telenovelas, com uma equipe formada pelo autor e seus colaboradores, não
necessariamente constituindo uma sala de roteiristas, já que o autor cria e escreve boa
parte do projeto audiovisual sozinho, com seus colaboradores entrando somente no
desenvolvimento de cenas e diálogos.
Numa sala de roteiristas, criadores, pesquisadores e colaboradores convivem por
longos períodos, numa rotina de criação e desenvolvimento da história. Foi assim que se
juntaram aos criadores de Supermax os roteiristas Bráulio Mantovani, Juliana Rojas,
Carolina Kotscho, Dennison Ramalho, Raphael Draccon e Raphael Montes, numa busca
da emissora pela inserção na teledramaturgia das narrativas fantásticas (TODOROV, p.
148, 1970), nos gêneros do terror e do suspense.
Supermax tem 12 episódios, com duração variável entre 30 e 46 minutos.
Diferentemente de conceito clássico que se tem de um seriado4 (PALLOTINI, p.45,
1998), Supermax segue um modelo mais contemporâneo, que não se prende à unidade
dramática procedural. Apresentando uma narrativa que se estende ao longo de vários
episódios, não possibilita o entendimento da história a partir do meio (como nas
telenovelas, onde ninguém precisa assistir a todos capítulos para acompanhar a trama) e
obriga o espectador a acompanhar todos os capítulos.

4
Em Dramaturgia de Televisão, Renata Pallottini conceitua o seriado como um conjunto de dramaturgias unitárias,
que possuem unidade dramática em torno de um conceito, mas que não deixam de funcionar com uma narrativa
completa, com início, meio e fim. Trata-se do que convencionou-se chamar de narrativa procedural, o tradicional
episódio da semana.

300
A esse tipo de trama, que valoriza o arco de temporada ou mesmo o formato de
minisséries, porém com fortes característica de cinema, já que a impressão que se tem é
a de que estamos acompanhando um filme dividido em capítulos, em episódios, já vem
se convencionando o emprego do termo "narrativa cinematográfica longa" (KALLAS,
p. 12-19, 2016). Tratam-se de séries com tratamento narrativo e de produção de cinema,
com orçamentos altos e, geralmente, com possibilidade de binge-watching, ou seja,
quando o espectador pode assistir a série como quiser, independentemente da
programação televisiva, pois dispõe de um serviço de streaming digital (Netflix, HBO
GO, Now, Fox Premium, Amazon Primevideo, Hulu, Globo Play, Globosat Play, entre
outros).
Com um público predominante familiar e acostumado aos melodramas, o projeto
de Supermax buscou o público mais jovem, de 18 a 24 anos, cada vez mais consumidor
de séries americanas de ficção científica, terror e suspense. Foi a busca por esse público
mais jovem que fez a Rede Globo abrir onze episódios da temporada de Supermax em
sua plataforma digital de VOD (vídeo-on-demand), Globo Play, além do serviço de
streaming do Now (NET), guardando apenas o último episódio da temporada, que
conclui a série, para a exibição inédita na TV e posterior liberação online.
No elenco principal, a versão brasileira contou com apenas dois nomes mais
conhecidos, Mariana Ximenes e Cléo Pires. Os produtores queriam que o público
reconhecesse nas personagens apenas suas histórias, sem a carga dramática de
intérpretes famosos. A exceção à regra se deu apenas na escalação das duas musas,
como destaco mais à frente. Os demais atores são menos conhecidos do grande público,
mas com experiências diversas no teatro e no cinema - Erom Cordeiro, Maria Clara
Spinelli, Ravel Andrade, Vânia de Brito, Mário César Camargo, Ademir Emboava, Rui
Ricardo Dias, Fabiana Gugli, Bruno Belarmino e Nicolas Trevijano. Outro nome
famoso, o do apresentador de TV Pedro Bial, se destaca no elenco, já que ele faz uma
participação na série como ele mesmo, aparecendo no primeiro episódio (ele é o
apresentador do reality-show) e no último (já morto).
Na trama, doze pessoas que nunca se viram são confinadas numa prisão de
segurança máxima desativada no meio da Floresta Amazônica, para a gravação de um
reality-show de confinamento. O prêmio ao ganhador, ou seja, aquele que vencer os
desafios e provas propostos pela produção do programa e não for eliminado, é de R$2
milhões. Os doze selecionados para participar do programa de TV são bem diferentes

301
entre si - o ex-policial Sérgio, a enfermeira Bruna, o jogador de futebol Artur, o médico
aposentado Timóteo, a socialite Cecília, o jovem rebelde Dante, o lutador de MMA
Luizão, a dona de casa Diana, a psicóloga Sabrina, o assessor político José Augusto, a
esteticista Janette e o padre Nando - mas todos escondem um segredo. Cada um deles
cometeu um crime ou foi acusado e condenado de ter praticado um crime.
Como em todos os reality-shows de confinamento, os personagens são
acompanhados por câmeras de vigilância, 24 horas por dia, e conversam com o
apresentador apenas pelos monitores. No primeiro dia no presídio de segurança
máxima, conhecem as regras do jogo, passam a primeira noite em suas celas individuais
e disputam uma prova de resistência - ficar em pé dentro de uma caixa que mais parece
um elevador, debaixo de um sol escaldante. Aos poucos, depois de horas, os
participantes que não resistem vão deixando a caixa, absolutamente exaustos e
desidratados. Os únicos dois personagens que resistem e seguem na disputa são
justamente os dois heróis da história.
Ao sair da prova, uma das participantes, a socialite Cecília, vê o que parece ser
uma criatura monstruosa por detrás de uma porta de vidro do presídio, mas o desfecho
do episódio é inclusivo, pois pode ter sido apenas um relance, uma miragem causada
pelo calor excessivo da floresta, e ela acaba achando que se enganou.
Logo depois, a partir do segundo episódio, fica claro que os participantes
perdem o contato com a produção do programa. Com o passar dos dias, a comida vai
acabando, eles percebem que estão confinados à própria sorte e têm de lidar com uma
série de acontecimentos macabros e sobrenaturais que começam a acontecer no isolado
presídio - símbolos macabros que surgem nas paredes, vozes, gritos, personagens
começam a enlouquecer. Segue uma luta desesperada pela sobrevivência, que passa pela
descoberta do que está de fato acontecendo no presídio de segurança máxima, o que
aconteceu com a produção do programa e como os personagens farão para sair dali.
Pragas, doenças contagiosas, símbolos sagrados e profanos, cultos religiosos,
sacrifício humano, contaminação por radiação, a luta pela sobrevivência e a jornada de
combate ao mal para superar um obstáculo estão presentes nas narrativa da série.
Partimos para a análise dos personagens, bem como seus símbolos, arquétipos e
regime de imagens.
O primeiro deles é o apresentador do reality-show. Pedro Bial interpreta a si
mesmo, numa espécie de caricatura do que costumava fazer na TV. Trata-se de uma

302
participação - o jornalista aparece apenas no primeiro e no último episódio. Na trama,
Bial representa o arquétipo do Arauto (Hermes/Mercúrio na mitologia greco-romana) -
tem a função dramática de trazer a motivação, oferecer ao herói um desafio e pôr a
história em movimento. O arauto alerta ao herói e ao público que a mudança e a
aventura estão à caminho. Em Supermax, Bial é um personagem predominante do
regime de imagens diurno, pois tenta ordenar o caos ao explicar as regras do jogo.
Personagem do ator Erom Cordeiro, Sérgio é um líder nato, ex-policial militar
que foi afastado de suas funções por suspeita de ter matado uma criança durante uma
operação. Inicialmente, se recusa a acreditar na ameaça sobrenatural que rodeia a prisão.
Por definição, é o protagonista, pois é ele quem, mais movimenta a ação (busca
soluções e respostas), sofre uma transformação (se depara com o sobrenatural) e fecha
o arco dramático (sobrevive à Supermax). O arquétipo mais marcante de Sérgio é o do
herói, que abre uma janela para a história e tem qualidades com as quais o público se
identifica. O personagem pertence ao regime de imagens diurno, pois é um um herói
que assume a dianteira, lidera e busca encontrar respostas, quer achar uma saída da
prisão e termina por enfrentar a grande ameaça oculta.
A atriz Mariana Ximenes interpreta uma das musas de Supermax, a enfermeira
Bruna, que representa o objeto de desejo, de proteção e de intrigas entre os homens.
Disputada, por diferentes razões, por Sérgio e Baal, representa o prêmio, o elixir da
jornada. Ela é uma enfermeira que admite ter fixação pela morte e pratica a eutanásia
em hospitais. É raptada e violentada pelo vilão Baal, que a mantém em cativeiro, num
buraco (queda). Fica grávida do vilão fica entre os últimos personagens a morrer, ao
lado de Sabrina. Além de Musa, outro arquétipo presente na personagem é o da Sombra,
pois Bruna parece esconder algo sério. A narrativa chega a sugerir que a personagem
pode trair seus companheiros. A personagem pertence ao regime de imagens noturno,
com características místicas. Simboliza a mãe, pois seu ventre é disputado por Baal e o
herói (Sérgio) tem que protegê-la.
Outra musa de Supermax, Sabrina, personagem da atriz Cléo Pires, é desejada e
idolatrada pelo anti-herói Artur. Psicóloga sequestrada que desenvolve Síndrome de
Estocolmo pelo seu sequestrador e explode parte do presídio em que ele estava preso, a
personagem demonstra desde o início ter personalidade forte, alfa, parece ser dona de si.
Ao longo da série, no entanto, revela-se fraca e despreparada. Vítima de uma armadilha
de Baal, Sabrina sofre um acidente e tem uma perna amputada. Torna-se dependente

303
dos outros participantes para sobreviver, principalmente de Artur. Protegida, Sabrina
também é das últimas a morrer, junto com Bruna. Além de musa, Sabrina possui
características do arquétipo do Camaleão, devido a transformação que sofre na prisão de
segurança máxima, de segura e independente para insegura e dependente. Sabrina
pertence ao regime noturno sintético, pois sofre a queda, e tenta se reerguer.
Apaixonado por Sabrina, Artur faz de tudo para protegê-la. O personagem do
ator Rui Ricardo Dias é um ex-jogador de futebol milionário, que assalta por diversão
uma loja de conveniência com seus amigos e mata um funcionário. Rivaliza com
Sérgio, disputa a liderança do grupo e é o único personagem da série que concede
alguns alívios cômicos, em poucos momentos. Artur possui características do arquétipo
do Sombra, pois rivaliza o herói clássico, mas possuindo ele mesmo elementos heróicos
que fazem dele um anti-herói, além do Pícaro. Ele também é um personagem do regime
noturno sintético, pois reage às ameaças, se sacrifica por Sabrina (tem atitude heroica
clássica) mas não deixa de rivalizar o herói diurno.
Já o padre Nando é vivido pelo ator Nicolas Trevijano. O religioso foi afastado
ao ser injustamente acusado de pedofilia. É o único personagem comprovadamente
inocente da série. Um homem de fé, que questiona suas crenças ao ser confrontado por
visões sobrenaturais, que alimentam o suspense e terror na série. Sobrevive à Supermax,
mas é transformado pela radiação que o cura da praga desconhecida que assola o
presídio. Nando se torna um novo Baal, afetado pela radiação da caverna escondida na
floresta. Quanto aos arquétipos, Nando é um Herói noturno porque busca respostas e
saídas, mas de maneira pouco ortodoxa, em suas visões. Também é um Aliado valoroso,
ajuda outros personagens, especialmente o protagonista, e ainda possui elementos de
Sombra, pois é atormentado pelas visões que ele esconde dos demais; e Camaleão, pois
questiona sua fé e termina por se transformar fisicamente. O personagem pertence
predominantemente ao regime diurno, pois vive o conflito interno de suas crenças
diante do que está passando - trevas vs luz; céu vs inferno; anjo vs o animal, mas tem
em sua gênese características místicas e sintéticas, ambas do regime noturno.
Outro personagem de natureza mística é Dante, vivido pelo ator Ravel Andrade.
Jovem atormentado e misterioso, com tatuagens simbólicas relacionadas ao oculto pelo
corpo, Dante é misterioso, some e reaparece algumas vezes e conta histórias de índios,
rituais e passagens secretas. Não inspira confiança, tem uma natureza instável. É visto
em companhia do vilão e leva a mensagem ao herói - Baal quer as mulheres para

304
procriar. Dante tem em sua constituição os arquétipos: Sombra, Camaleão e Arauto. É
um personagem do esquema de imagens noturno, com características místicas -
confunde, atrapalha, traz consigo o sobrenatural e a trevas.
Timóteo (Mário César Camargo) é médico reformado do Exército. Homem
reservado, de poucas palavras e de traços autoritários. Foi um torturador à serviço da
Ditadura, mas não assume isso. Não sobrevive à Supermax; Arquétipos: mistura
características do Mentor, que tenta aconselhar ou mesmo orientar outros personagens,
Aliado, que usa seus conhecimentos de medicina para cuidar dos feridos e Sombra, pois
a máscara do médico sábio esconde seu passado de torturas. Personagem
predominantemente sintético, com elementos dos dois regimes (médico/monstro),
(passado/futuro).
Interpretada pela atriz Fabiana Gugli, Diana é uma ex-garota de programa,
soropositiva, assassina o marido por ter sido traída. Seus segredos logo são descobertos,
mas ela é transparente e direta e quase chega até a saída do presídio. Arquétipos:
Sombra e Musa. Diana é desejada por Dante e trava uma batalha psicológica com José
Augusto, quando o desmascara. Personagem do regime noturno sintético, representa a
mulher desejada, mas perigosa, que parte para o ataque quando ameaçada.
Já o inescrupuloso José Augusto (Ademir Emboava) é um lobista ligado a um
senador corrupto, que não sobrevive à praga misteriosa e é logo infectado, virando um
problema para os demais habitantes da Supermax. Arquétipos: mistura características de
Guardião do Limiar (vira, um obstáculo que tem que ser enfrentado, quando fica fora de
si) e Sombra (age nos bastidores, manipula alguns personagens e mente). Personagem
do regime diurno, pois representa um homem que perde sua humanidade e se torna um
animal.
O ator Bruno Belarmino dá vida a um ex-lutador de MMA que vive atormentado
pela culpa - matou um adversário num acesso de fúria, durante uma luta. Luizão se
dedica a domar a raiva e a violência que lhe são características , mas acaba morrendo
cruelmente nas mãos do vilão. Arquétipo: é o Aliado mais fiel de Sergio, representa a
força bruta em pessoa, o parceiro que tomba na batalha e fica para trás. Personagem do
regime noturno sintético, que evita se expor, pois conhece sua força, mas tem certa
iniciativa em ajudar.
Janette (Maria Clara Spinelli) é dona de uma rede de salões de beleza.
Transexual, pretendia vencer o reality Supermax para, com o dinheiro, fazer a operação

305
de mudança de sexo. Desperta a atenção e o desejo de Luizão. No último episódio, é
raptada por Baal e é sacrificada depois que o vilão descobre que ela não pode gerar seus
filhos. Arquétipos: Sombra e Musa. Personagem do regime noturno sintético, pois
representa o arquétipo do andrógino (masculino e feminino num só ser), possui de
forma equilibrada o animus e anima.
Cecília (Vânia de Brito) pertencia a elite carioca. Seu único filho morre de
overdose em seu carro a caminho do hospital. É a primeira contaminada pela peste,
passa por todo um processo de quase morte, febre, delírios, até se tornar uma criatura
perigosa, possuída, fora de controle. É também a primeira a morrer. Arquétipos: Sombra
e Camaleão. Personagem do regime diurno, pois perde sua humanidade e se torna um
monstro.
Por fim, o vilão Baal é vivido pelo ator Márcio Fecher. Está por trás de todas as
ameaças e mortes em Supermax. Sua origem é a verdadeira revelação do mistério da
série. Era um pastor que foi pregar no canteiro de obras do presídio. Infectado pela peste
do mosquito, enlouquece e mata a família. Descobre a gruta que tem o mineral que
irradia a cura, mas que também o transforma num ser asqueroso, bem como as mulheres
que passam a viver com ele - ex-prostitutas do canteiro de obras. Baal sequestra as
mulheres do presídio porque quer gerar filhos, o que as irradiadas não conseguem fazer.
Arquétipos mais presentes no personagem: Sombra, Guardião do Limiar e Camaleão.
Personagem predominantemente do regime noturno sintético, pois representa o híbrido
homem/criatura, que caiu em desgraça, mas também com forte apelo místico.

Tabela 01: arquétipos e regime de imagens dos personagens de Supermax.

ARQUÉTIPOS E REGIME DE IMAGENS

PERSONAGENS DIURNO NOTURNO / SINTÉTICO NOTURNO / MÍSTICO

Bial Arauto

Sérgio Herói

Bruna Musa
Sombra

Sabrina Musa
Camaleão

Artur Herói
Pícaro

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Nando Herói Camaleão Sombra
Aliado

Dante Arauto Sombra


Camaleão

Timóteo Mentor Sombra


Aliado

Diana Musa Sombra

José Augusto Guardião do Limiar


Sombra

Luizão Aliado

Janette Musa Sombra

Cecília Camaleão Sombra

Baal Guardião do Limiar Sombra


Camaleão

O inferno em suas mentes: a versão iberoamericana


Em 2016, Supermax ganhou uma nova versão, voltada para o público de língua
espanhola e produzida pela Rede Globo, em parceria com a Argentina e o diretor Daniel
Burman, que também assina a adaptação. A série foi exibida até o momento em quatro
países: Argentina, Espanha, México e Uruguai.
Muitas mudanças foram feitas na série na nova versão, não somente na
produção, como no elenco e na narrativa, agora rebatizada como "Supermax: O Inferno
em Suas Mentes". No elenco, ao invés de nomes pouco conhecidos, foram escalados
alguns dos maiores nomes do audiovisual latino, como Cecilia Roth e Antonio Birabent.
Na nova versão de Supermax, a trama acontece num presídio de segurança
máxima isolado no meio do deserto de sal na Argentina. Mas as mudanças na
adaptação foram ainda mais radicais e surpreendentes no campo narrativo. Do original
brasileiro, ficaram apenas o conceito do reality-show de confinamento num presídio e
alguns elementos característicos de alguns personagens. Mas a principal mudança
realizada na adaptação de Supermax é de gênero. Toda a ambientação da narrativa no
gênero sobrenatural, de terror e suspense, característicos do roteiro original brasileiro,
foi deixada de lado e descartada. Na nova versão, Supermax agora é um drama de ação
policial, com os personagens em busca de tesouro escondido nas catacumbas da prisão.
Tal mudança, bastante radical, leva a narrativa a um conjunto totalmente diferentes de
símbolos e imagens, não mais relacionados ao regime de imagens do original brasileiro.

307
Eis a trama da nova versão de Supermax:
Após longos anos fechada depois de um sangrento motim, uma das
prisões mais antigas e famosas do continente, localizada no meio de um
deserto sem fim, reabre as suas portas abrigar um reality show. A
trama acompanha desafios extremos que devem ser superados para oito
(e não mais doze) participantes. Em total isolamento e sem se
conhecerem, os participantes enfrentam seus próprios infernos pessoais,
onde prevalecem o medo, remorso e obsessão. Quando até o
apresentador do programa de TV é deixado para trás e a transmissão é
interrompida abruptamente, cada um deve lutar por sua sobrevivência.
(Fonte: site Globo Internacional).
O segredo por trás da trama da Supermax é um tesouro escondido em cavernas
localizadas no subterrâneo da prisão, aliado à revelação de que vários personagens que
participam do reality-show na verdade fazem parte de uma conspiração para chegar ao
tesouro escondido. Analisando as novas personagens x, é fácil perceber que vários deles
representam diferentes arquétipos e regimes de imagens não mais relacionados à suas
contrapartes do roteiro original brasileiro.
Orlando é o apresentador do reality-show. Diferentemente de sua versão
brasileira, tem status de protagonista. Após dez anos afastado da TV, está de volta, mas
o que poucos sabem é que ele tem uma aliança com um dos participantes do reality,
para juntos, chegarem ao tesouro escondido. O novo apresentador de Supermax é
portanto, um anti-herói na figura de Herói, com elementos de Sombra, mas num forte
regime de imagens diurno. Também não deixa de ser o Arauto, que explica as regras do
jogo e tem ainda características de Pícaro.
Já Pamela é uma mulher amargurada pela morte prematura do filho Damian. A
personagem tem elementos arquetípicos de dois personagens da versão brasileira, a
Sombra de Cecília, pois ela também matou o próprio filho, e o passado camaleônico de
Diana, pois era uma stripper que se tornou uma respeitável esposa e dona de casa.
Sandro na verdade se chama Francisco, era líder de uma gangue de criminosos
profissionais. Dez anos atrás, estava preso e liderou o motim que terminou em uma
sangrenta repressão. Seu melhor amigo acabou morrendo e Lorna, o amor de sua vida,
desapareceu. Procurado por Augusto, filho do amigo morto, Sandro planeja com ele a
participação no reality-show, apenas para voltar ao presídio e achar o tal tesouro, para
tentar se redimir da culpa que carrega. Diferentemente do protagonista brasileiro, que

308
era policial, o da nova versão é um bandido, mas não deixa de simbolizar o arquétipo do
Herói, apesar de manter características sombrias muito presentes no regime de imagens
noturno sintético.
Cholo é um ex-boxeador e ex-alcoólatra. Seu objetivo é muito claro. Se alia a
Orlando para tentar sobreviver à Supermax. O personagem é bem parecido com sua
versão brasileira (Luizão) e conserva sua essência como Aliado diurno.
Mercúrio é um sobrevivente, que usa suas capacidades para conquistar Lorna.
Vai disputar com Sandro o amor de Lorna e o tesouro escondido na prisão. É um aliado
de Orlando na busca pelo tesouro, por isso faz as vezes de Guardião de Limiar, pois se
coloca como uma obstáculo na jornada de Sandro, com um regime de imagens diurno.
Muriel (Santiago) é um participante enigmático. Adota um nome artístico
feminino e se torna aliado de Anette. Muriel compartilha com sua contraparte na versão
brasileira (Janette) o mitema do Andrógino e também representa a figura da Musa,
mesmo sendo um homem, pois desperta o desejo de Anette. Cumpre seu papel de
Aliado, porém no regime noturno místico, de quem reage às circunstâncias.
Anette é a personagem que menos sofreu alterações do original brasileiro.
Enfermeira acusada de ter praticado a eutanásia e ainda ter se envolvido em esquemas
de corrupção hospitalar, quer verdadeiramente ganhar o prêmio do reality. Simboliza o
arquétipo do Camaleão, com elementos do Sombra, pertencendo a um regime de
imagens noturno sintético.
Antiga amante de Sandro e Mercúrio, Lorna está há vários anos desaparecida,
pois foi sequestrada e mantida em cativeiro nas catacumbas do presídio. O trauma a
transformou numa arremedo de mulher, desconectada do mundo e capaz de vários tipos
de violência. Como Baal na versão brasileira, é uma pessoa que se tornou um animal,
mas que pode se recuperar devidos aos laços afetivos do passado, o que faz com ela seja
ao mesmo tempo Sombra e Musa, representada pelo regime de imagens diurno.
Sunny é brasileira, sedutora e perigosa, com olhar de menina, mas que é
responsável pela morte da irmã. Se alia a Orlando para conseguir o tesouro, traindo os
companheiros de programa. Além de Musa, tem características de Camaleão e Sombra,
bem como sua contraparte brasileira, Dante. Personagem do regime de imagens noturno
sintético.
Rex é o típico garoto rico que tinha tudo o que queria. Filho de um pai
milionário, entra na Supermax a fim de mostrar ao pai do que é capaz, mas sua

309
insegurança e arrogância o transformam na primeira vítima de Lorna. É um personagem
que representa um aspecto da Sombra do próprio pai e pertence ao regime de imagens
noturno místico.
Por fim, El Pardo é a grande Sombra de Supermax, pai de Rex e dono da
emissora que realiza o reality-show. Pretendia sabotar o próprio programa de TV para
faturar. Também vai atrás do tesouro escondido no presídio.

Tabela 02: arquétipos e regime de imagens dos personagens de Supermax (versão


latina).
ARQUÉTIPOS E REGIME DE IMAGENS

PERSONAGENS DIURNO NOTURNO NOTURNO


SINTÉTICO MÍSTICO

Orlando Anti-herói Sombra


Arauto Pícaro

Pamela Camaleão Sombra

Sandro Herói Sombra

Lorna Musa Sombra

Mercúrio Guardião do Limiar


Aliado.

Rex Sombra

Anette Sombra
Camaleão

Muriel Aliado

Cholo Aliado

Sunny Musa Sombra


Camaleão

Engenheiro Sombra

Considerações Finais
Com média de 9,5 pontos no Ibope, Supermax não foi bem recebida pelo
público geral da Rede Globo, o que não surpreende, haja visto que a série buscou um
novo público, mais jovem, com menos do perfil padrão da emissora, como mostram os
dados a seguir:

310
Dados do PNT (Painel Nacional de Televisão), que computa a
audiência em 15 grandes centros urbano, mostram, no entanto,
resultados positivos em nichos específicos de públicos: crescimento de
19% na faixa 12/17 anos, 12% na faixa 18/24 anos e 7% para o público
25/34 anos (fonte: UOL, 16/11/2016).
A exibição em plataformas digitais, porém obtiveram expressivos resultados,
sinalizando uma audiência mais jovem interessada no produto, porém, fora do esquema
tradicional de exibição. A versão latina de Supermax também não fez sucesso esperado,
mas continua em exibição em países de língua espanhola.
Um símbolo é uma imagem com um poder especial que tem
valor para o público. Assim como a matéria é energia altamente
concentrada, um símbolo é um significado altamente concentrado. Na
verdade, é o condensador-expansor mais focado de qualquer técnica de
narração. Sempre crie uma rede de símbolos em que cada símbolo
ajude a definir os outros. Você cria a página de símbolos anexando
símbolos a qualquer ou a todos esses elementos: a história inteira, a
estrutura, os personagens, o tema, o mundo da história, as ações, os
objetos e o diálogo. TRUBY, p. 220-222, 2007 (tradução do autor)5.
Apesar da mudança de cenário, de elenco e de estruturas narrativas, as duas
versões de "Supermax" mantêm o uso de arquétipos para a criação e desenvolvimento
de seus personagens, porém com certa repetição de estereótipos, o que pode ter, de fato,
prejudicado o resultado final da obra. Estereótipos acabam por aproximar personagens,
arcos dramáticos e estruturas narrativas de melodramas mais clássicos, com o gênero
das telenovelas, ou seja, que mantém distância do rigor estrutural das séries advindas do
modelo norte-americano, onde necessariamente a mecânica de repetição de um formato
define melhor o funcionamento de uma série dramática, do que necessariamente a sua
história, a sua trama.
De qualquer maneira, a produção em série dos formatos televisivos seriados no
Brasil cresce a cada ano, principalmente depois do estabelecimento da nova legislação,
que regula o volume de produções nacionais nos canais estrangeiros da TV paga.

5
A symbol is an image with special power that has value to the audience. Just as matter is highly concentrated
energy, a symbol is highly concentrated meaning. In fact, is the most focused condenser-expander of any storytelling
technique. Always create a web of symbols in which each symbols helps define the others. You create the symbol
web by attaching symbols to any or all of these elements: the entire story, the structure, characters, theme, story
world, actions, objects and dialogue.
TRUBY, p. 220-222, 2007.

311
Entender as redes simbólicas (TRUBY, 2007), o regime de imagens empregado
nos processos criativos (DURAND, 2002) e o uso dos arquétipos míticos para a criação
de personagens, arcos dramáticos e estruturas narrativas (VOGLER, 2015) contribui
para a qualificação de autores, criadores e roteiristas, possibilitando o desenvolvimento
de narrativas cada vez mais complexas e originais e a evolução qualitativa e quantitativa
da produção audiovisual de séries.

Referências Bibliográficas
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In: LEÃO, Lucia (Org.). Processos do imaginário. São Paulo: Képos, 2016.

__________, Sílvio. AGUIAR, Graziella; LEMOS, Lúcia; FREIRE, Norma e COSTA,


Edwaldo. Noções do Imaginário: Perspectivas de Bachelard, Durand, Maffesoli e Corbin.
Revista Nexi, v. 03, 2014. PUC-SP.

AQUINO, Marçal; ALVARENGA JR, José; BONASSI, Fernando; Supermax - episódio 1 -


versão definitiva. Roteiro. Rio de Janeiro: Rede Globo, 10/05/2015.

_________. Supermax Internacional - episódio 1 - vale este 2. Roteiro. Rio de Janeiro: Rede
Globo, 09/04/2016.

ARISTÓTELES. A poética clássica. Tradução Jaime Bruna. São Paulo: Cultrix, 2014.

CAMPBELL, Joseph. O herói de mil faces. Tradução de Adail Ubirajara Sobral. São Paulo:
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___________. O poder do mito/Joseph Campbell, com Bill Moyers; org. por Betty Sue Flowers.
Tradução de Carlos Felipe Moisés. São Paulo, Palas Athena, 1990.

DURAND, Gilbert. As estruturas antropológicas do imaginário: introdução à arquetipologia


geral. São Paulo: Martins Fontes, 2002.

JUNG, Carl Gustav. O homem e seus símbolos. Concepção e org. de Carl Gustav Jung,
tradução de Maria Lúcia Pinho. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2008.

KALLAS, Christina. Na Sala dos Roteiristas. Tradução de Maria Luiza X. de A. Borges. Rio de
Janeiro: Zahar, 2016.

PALLOTTINI, Renata. Dramaturgia de Televisão. São Paulo: Moderna, 1998.

PODER do mito, O. Joseph Campbell com Bill Moyers. Cultura Marcas e Log On Editora
Multimídia, 1988. 2 DVDS (354 min), NTSC, color. Título original: The power of the myth.

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Barcelona: Gedisa, 2003.

SEVERINO, Antônio Joaquim. Metodologia do trabalho científico - 20a edição. São Paulo,
Cortez, 1996.

312
SUPERMAX. Série de TV - 12 episódios. Rio de Janeiro: Globo Play/Rede Globo, 2016.

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313
Fotografias na Rua, Museu de Rua: Memórias
Resgatadas

Photos on the Street, Street Museum: Memories Rescued


Coordenação Ingrid Hötte Ambrogi1

Cyntia Campelo Schneider2


Fernanda Maria Oliveira Araujo3
Márcio André Ferreira Pereira4
Noemi Zein Telles5

Resumo: As memórias resgatadas se traduzem pelo esforço em tornar público algo


esquecido em caixas e gavetas. Neste caso, trazemos à tona uma ação que se passou nos
anos 70, inicialmente na cidade São Paulo, e que buscou, através de fotografias expostas
em painéis nas ruas, mostrar ao transeunte a cidade, sua transformação, seus
apagamentos, suas cicatrizes e histórias narradas por imagens. O Museu de Rua traz a
perspectiva da narrativa visual com apoio mínimo da linguagem escrita, buscando
iluminar o tempo que passa e transforma sem ser percebido, tornando-se naturalizado
pelo olhar cotidiano. O resgate dessa ação é feito pelo grupo de pesquisa Arquivo
Memória e Cidade da UPM / CNPq, que vem digitalizando e divulgando esse acervo
sistematicamente. Atualmente, a digitalização ganha nova perspectiva de ação pela
difusão que é capaz de promover, bem como propicia maior atenção sobre o patrimônio
e suas mutações. Como parte dos registros, o grupo apresenta uma ideia para um
pequeno vídeo documentário resgatando a criação do Museu de Rua por seu idealizador,
focando no bairro do Bixiga com a criação do Museu Memória do Bixiga, iniciativa
derivada da exposição feita nos anos 80 no bairro e, para compor a trilha sonora, traz
também uma breve pesquisa da paisagem sonora desse lugar.

1
Pesquisadora e Professora do Programa de Pós-Graduação em Educação, Arte e História da Cultura da
Universidade Presbiteriana Mackenzie, Coordenadora do Grupo de Pesquisa Arquivo Memória e Cidade da
Universidade Presbiteriana Mackenzie. E-mail ihambrogi@gmail.com
2
Musicista, Pedagoga, Especialista em Linguagens da Arte - USP. Pesquisadora, Mestre e Doutoranda em Educação,
Arte e História da Cultura da Universidade Presbiteriana Mackenzie. Educadora musical e Coordenadora de artes
visuais e música da Educação Infantil e Ensino Fundamental. E-mail campelo.campelo@gmail.com
3
Mestre em Educação, Arte e História da Cultura, Pesquisadora e Doutoranda do Programa de Pós-Graduação em
Educação, Arte e História da Cultura da Universidade Presbiteriana Mackenzie. E-mail fernanda.araujo@gmail.com
4
Mestre em Administração, Pesquisador e Doutorando do Programa de Pós-Graduação em Educação, Arte e História
da Cultura da Universidade Presbiteriana Mackenzie. Professor de Ensino Superior do Centro Estadual de Educação
Tecnológica Paula Souza. E-mail marcio@pereira.eti.br
5
Pesquisadora e Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Educação, Arte e História da Cultura da
Universidade Presbiteriana Mackenzie. E-mail noemi.zein.telles@gmail.com

247
Palavras-chave: Museu de Rua; Memórias de Gaveta; Narrativa Visual; Processo de
Digitalização; Paisagem Sonora.

Abstract: The memories rescued is made by the effort to make public something
forgotten in boxes and drawers. In the study case, we bring up an action that happened
in the 70's, initially in the city of São Paulo, that showed at the passersby the city and its
transformation, erasings, scars and stories narrated by images through photographs
exposed in panels in the streets. The Street Museum brings the perspective of the visual
narrative with a minimal written language support. It sought to illuminate the passage
of time and its transforms without being perceived so that becomes normally to the daily
look. This action's rescue is done by the research group Archive, Memory and City
UPM / CNPq, which has been systematically scanning and disseminating this
collection. Now, the scanning gains a new action perspective by the diffusion of the
material, that is able to promote, as well as allow a greater attention on the patrimony
and its mutations. As part of the registers, the group presents an idea for a short
documentary film rescuing the creation of the Street Museum by its idealizer. This video
also focuses at the neighborhood of Bixiga and the creation of the Memory Museum of
Bixiga, initiative that comes from the exhibition made in the 80's in the neighborhood.
To compose the soundtrack, the article also brings a brief research of the place's
landscape sounds.

Key words: Street Museum; Drawer Memory; Visual Narrative; Scanning Process;
Landscape Sounds

Nasce um museu na rua, Museu de Rua...

O percurso trilhado pelo Museu de Rua é uma iniciativa desencadeada pelo arquiteto,
museólogo e fotógrafo Julio Abe Wakahara, que buscou formas de tornar público um
importante acervo ao assumir o Museu Histórico da Imagem Fotográfica da Cidade de
São Paulo. Inicialmente tornou público os primeiros registros fotográficos da cidade de
São Paulo realizados por Augusto Militão de Azevedo (1879-1905), que compunham o
Álbum Comparativo da Cidade de São Paulo (1862-1887) revelando uma aparência
ainda colonial, posteriormente as imagens feitas por Aurélio Becherini (1879-1939), que
as refaz nos mesmos locais, revelam a cidade com aspecto um da Belle Époque. Estas
fotografias eram objeto de estudo apenas de pesquisadores; Julio Abe ao buscar
informações sobre elas para realizar a exposição, encontra Boris Kossoy pesquisando o
mesmo assunto na Biblioteca Mário de Andrade, troca com ele algumas impressões
sobre as fotografias de Militão.

248
A partir dessas descobertas criou-se o Museu de Rua para divulgar as fotografias do
acervo e com isso “criar o impacto da presença do passado arquitetônico e urbanístico
de São Paulo, para tentar conscientizar sobre a necessidade de ‘defendermos’ as obras
básicas remanescentes” (DHP, 1979:3).

O Museu de Rua realizou suas exposições desta forma por não haver na época nenhum
espaço expositivo disponível, tornou-se uma iniciativa original, aproximou a
informação da população, criando um impacto enorme.

No período entre 1977-2013 cerca


de oitenta exposições foram
realizadas nas ruas, com o objetivo
de provocar na população a
curiosidade sobre as transformações
das cidades e municípios que
receberam Museus de Rua, dentre
eles destacamos: Santana de
Figura 01. Exposição Museu de Rua Vale do
Parnaíba, Iguape, Jacareí, Cananéia, Anhangabaú
São José dos Campos, Bananal, Fonte: Projeto Museu de Rua II: História do
Anhangabaú e do Viaduto do Chá, DPH-SP, 1979.
Atibaia, Amparo, Jaboticabal, São Carlos, Catanduva. O foco principal, no entanto,
foram locais e bairros da cidade São Paulo tais como: Centro Histórico, Anhangabaú,
Viaduto do Chá, Sé, Bexiga, Cambuci, Pinheiros, Butantã, Pompéia, Freguesia do Ó.

Os Museus de Rua tinham como objetivo principal despertar o interesse da população


para a história, fatos, memórias, através das fotografias, desafiar a pensar sobre as
grandes alterações sofridas na cidade, ou resgatar memórias perdidas em gavetas, caixas
de acervos familiares e públicos, acessível aos olhares de poucos.

Sua realização criou um forte impacto ao expor a cidade que estava sendo destruída, em
especial o centro da capital pelas obras do metrô, que na época demoliu marcos
geográfico e apagou do espaço urbano muitos dos seus lugares de memória, largos,
edifícios e ruas inteiras desapareceram.

249
A primeira experiência do Museu de Rua criou uma exposição em um percurso do
Centro Histórico realizada entre 25 de janeiro e 25 de fevereiro de 1977, com dez
pontos representativos da formação da cidade criando um itinerário: Pátio do Colégio,
Praça da Sé, Rua Quintino Bocaiúva, Largo São Francisco, Rua São Bento, Viaduto do
Chá, Rua Direita, Praça Antônio Prado, Avenida São João e Largo São Bento. Não se
tratava de uma mera exposição na rua, mas de revelar um acervo e torná-lo vetor de
questionamento da própria cidade e de suas mudanças.

Esses painéis tinham um tamanho que possibilitava aos passantes observar as imagens
e ler algumas informações mesmo sem parar de andar, como mostra a figura 01 acima.
Outro cuidado foi o de colocar cada uma das imagens dos painéis no mesmo ângulo em
que foram realizadas, para proporcionar a comparação visual de diferentes épocas da
cidade. A exposição possibilitou a “leitura visual comparativa da cidade em duas
épocas: a antiga, na fotografia, contrapondo-se à paisagem urbana atual.”
(WAKAHARA, 2004, p. 48). Já a partir do quinto Museu de Rua, quando o interesse de
Wakahara passa a ser o de contar a história dos bairros paulistanos, surge a ideia de
utilizar fotografias antigas de famílias para compor os painéis, o primeiro bairro foi o
do Bexiga que vem sendo trabalhado pelo grupo de pesquisa. Algumas das coleções do
Museu de Rua já receberam o processo de organização, digitalização e catalogação dos
negativos, são elas: Revolução de 1924, Cambuci, Iguape, Cananéia, buscando manter
suas características, ou seja, a ordem original dos negativos de cada filme.

O acervo de cada Museu de Rua possui muitas imagens que não foram expostas,
optamos através da identificação na base de dados dar a possibilidade de pesquisa e
busca e agrupar por temas, época, características entre outros aspectos explicitados a
seguir.

O envolvimento da Tecnologia no Processo de Digitalização


A fotografia, antes um suporte à ilustração de textos, hoje tem papel relevante nos
processos de informação. Instituições como museus, arquivos e bibliotecas cada vez
mais têm direcionado esforços e recursos a um tratamento adequado de seus acervos
fotográficos com vistas à preservação dos originais e especialmente objetivando a

250
disponibilização da informação. A digitalização dos acervos fotográficos tornou-se
então prática comum entre instituições tanto da esfera pública quanto privada.

As tecnologias têm papel inegável na aproximação do público em geral aos acervos das
instituições, na contemporaneidade os olhos se atêm muito mais a telas de aparatos
tecnológicos, como janelas de infinitas possibilidades, a visualização da imagem digital
proporciona ao observador a liberdade espaço-temporal, permitindo experimentações
como zoom para observação de detalhes e do todo, limitado somente às condições do
aparato tecnológico para visualização e da Internet para o acesso.

Um projeto de digitalização demanda organização, planejamento e, especialmente visão


da existência de um posterior ciclo de vida da imagem digital e a coleção digital online.

A execução da digitalização, isto é, a conversão digital de um acervo, independente de


sua natureza, representa uma das etapas mais importantes quando da decisão do uso da
tecnologia para preservação de originais e democratização da informação. Porém, antes
de se iniciar o processo de digitalização, é necessário o planejamento priorizando o
estudo das condições físicas do acervo, das condições de direitos autorais e a definição
dos parâmetros de qualidade do processo técnico da digitalização. Aspectos como: quais
os equipamentos que serão utilizados, como e onde serão armazenados, que os objetos
digitais serão gerados, como será o arquivamento, como serão acessados e qual
qualidade da informação necessária para se consolidar em dados recuperáveis, foram
questões que nortearam a pesquisa.

As razões para digitalização de acervos fotográficos mostram-se fortemente embasadas


no acesso e na preservação. Tornar o acervo fotográfico acessível, reduzir o manuseio
dos originais já em condições de fragilidade foram decisivos à digitalização.

Para o acervo fotográfico Museu de Rua foram definidos dois tipos de arquivos: o
arquivo mestre em alta resolução, com 3200 dpi (pontos por polegada ou dots per inch),
e o arquivo derivado em baixa resolução, com 300 dpi (pontos por polegada ou dots per
inch) ambos sem correções técnicas, estéticas ou de qualquer natureza. Foi decisão do
projeto tratar arquivos de produção conforme demanda.

A anatomia de uma imagem digital é dada por dots, pixels e resolução. A imagem
digital é composta por um conjunto de pontos (dots), chamados pixels, dispostos numa

251
matriz de linhas e colunas. Cada pixel tem uma cor ou tom de cinza específico, e em
combinação com pixels vizinhos cria a ilusão de uma imagem de tom contínuo. A
resolução refere-se à quantidade de pixels. É expressa como a combinação do número
de pixels horizontais e o número de pixels verticais, por exemplo, 8.956 x 6.708 pixels,
o que expressa o número de 60,1 megapixels.

Na figura 02, a fotografia de 6” x 6”


foi digitalizada a 300 dpi (dots per
inches), um arquivo derivado com as
dimensões em pixels de 1.800 (6”x
300 dpi) por 1.800 (6”x 300 dpi)
expressa 3,2 megapixels. O objetivo
da geração de imagens em baixa
resolução, isto é, dos arquivos Figura 02. Imagem pertencente à coleção
Revolução de 1924
derivados, é atingir dispositivos Fonte: Acervo Fotográfico Museu de Rua
móveis como smartphones, tablets e computadores, preocupando-se com a pouca
largura de banda da Internet. Já as de alta resolução, os arquivos mestres, além da
preservação, desempenharam papel de arquivo de produção mediante solicitação para
trabalhos específicos e que necessitem de maior detalhamento fotográfico.

A leitura de uma imagem é diferente da leitura de um texto, pois “ao observar uma
imagem nossos olhos não percorrem um caminho sequencial e linear como quando
lemos um texto” (SEVAROLLI; RODRIGUES, 2006, p.3). A capacidade de apreender
o significado total da imagem depende muito do repertório cultural – e em certa medida
histórico – do observador. E, quando existe uma grande quantidade de imagens, torna-se
impossível vê-las todas ao mesmo tempo, daí a necessidade de se criar uma forma de
acesso à elas pautada pelo sistema arquivístico. “Como nosso sistema de compreensão
das coisas ainda é pautado pela oralidade é preciso traduzir as informações em palavras,
também é preciso ordenar e coordenar as palavras utilizadas dentro de um arranjo que
seja capaz de orientar a busca e recuperação dessas imagens” (SEVAROLLI;
RODRIGUES, 2006, p.3).

252
As características das fotografias dos museus de rua digitalizadas foram levantadas,
inclusive inscrições quando houvesse, como dedicatórias, assinaturas, etc. ou outras
informações fornecidas pelo cedente daquela coleção, bem como aspectos da própria
fotografia, enquadramento, retrato posado entre outros aspectos.

Com base na Planilha de Descrição do Acervo – NOBRADE, indicação de Sevarolli, o


grupo considerou inicialmente três áreas: (1) identificação e contextualização
relacionadas ao Museu de Rua em geral, (2) conteúdo e (3) estrutura relacionada às
fotografias.

A Catalogação usando a Tecnologia


Realizando a identificação dos negativos e, das fotografias digitalizadas, surgiu a
necessidade de sua catalogação. Este processo contou com algumas etapas: pesquisa
bibliográfica para embasamento teórico; elaboração de uma ficha catalográfica
preliminar; ajustes nessa ficha para contemplar a realidade do material digitalizado;
manual de instrução para preenchimento da ficha; os desafios relacionados à própria
identificação de fotografias desordenadas e sem muito registro e, por fim, a transposição
dos dados da ficha de identificação para um suporte digital externo. Além do
planejamento prévio de hardware, foram pesquisados e testados vários softwares de
catalogação como o Biblioteca Livre (BiBLivre), o BibLime Koha, o Gnuteca, o
OpenBiblio e o PHL©Elysio. O Biblioteca Livre (comumente chamado de Biblivre),
que melhor atendeu às necessidades do projeto, é um programa nacional, e como
definido “Trata-se de um software para catalogação e a difusão de acervos de
bibliotecas públicas e privadas, de variados portes. Além disso, qualquer pessoa pode
compartilhar no sistema seus próprios textos, músicas, imagens e filmes.” (BIBILIVRE,
2018).

Pensando na catalogação do acervo, bem como na fácil disponibilidade, optamos por


uma solução gratuita e livre (free) software, com suporte à catalogação de
fotos/imagens, divisão por bibliotecas permitindo a portabilidade por cada biblioteca
disponível dentre as várias a serem suportadas pela ferramenta, simplicidade e
facilidade na implementação inicial, suporte multiplataforma (Windows e Linux),
interface Web com seu acesso em qualquer dispositivo com navegador, facilidade de

253
uso pela equipe do projeto, suporte da língua portuguesa, além da consolidada utilização
por diversas instituições no Brasil e no mundo. Facilmente implementado num
computador, para utilização individual de um ou dois usuários em um simples
computador ou num grande ambiente de rede com um robusto servidor. E ainda
oferecendo recursos como base móvel/portável para duplicação ou mesmo numa opção
“backup” (opção como cópia de segurança) totalmente funcional. Além disto,
utilizamos na pasta onde são armazenados os dados do Biblivre, o sincronismo de
arquivos oferecido pela plataforma Google Drive para replicação e cópia dos dados, e,
usando uma conta Gmail/Google para hospedagem destes arquivos, que ganham a
possibilidade de acesso.

Das gavetas às ruas: histórias misturadas

As fotografias de famílias e recortes de


jornais e revistas (Figuras 03 e 04) pouco a
pouco recolhidas surgiram nas ruas da
cidade em grandes painéis, a história do
bairro / da cidade era então contada por
Figuras 03 e 04. Recortes de jornais e revistas
seus moradores. sobre a Rev. de 1924 Fonte: Acervo
Fotográfico Museu de Rua

As imagens expostas, muito além de


lembranças e fragmentos, eram agora
arquivos da história. As fotografias
domésticas produzidas inicialmente sem
nenhuma pretensão artística, no âmbito da
Figura 05. Registros fotográficos
“casa” e da “família” com a função de (Revolução de 1924)
Fonte: Acervo Fotográfico Museu de Rua
memória familiar, são deslocadas para a
contexto histórico da cidade e do bairro,
para o universo de exposições, ganhando
novos significados.

254
A seguir são apresentadas (Figuras 06 a 26) algumas preciosidades desse imenso (em
quantidade e multiplicidade) acervo que Julio Abe constituiu ao longo dos anos.

255
Figuras 06 a 14. O cotidiano, festividades e momentos de lazer no Bairro do Cambuci
Fonte: Acervo Fotográfico Museu de Rua

Figuras 15 a 20. Os ofícios (Bairro do Cambuci)


Fonte: Acervo Fotográfico Museu de Rua

256
Figuras 21 a 24 - Lembranças (Bairro do Cambuci)
Fonte: Acervo Fotográfico Museu de Rua

Figuras 25 a 27. Personagens ( Cananéia, Iguape)


Fonte: Acervo Fotográfico Museu de Rua

Figura 28. Paisagens de uma época (Iguape)


Fonte: Acervo Fotográfico Museu de Rua

257
Vídeo Memória
Faz parte deste projeto a criação de um Vídeo-Documentário sobre o Museu de Rua que
pretende contar uma parte da história do Museu de Rua pelas palavras de alguns de seus
“atores principais”. Um dos personagens mais importantes dessa história é Júlio Abe

Wakahara, que concebeu toda


metodologia por trás das exposições e
coordenava as equipes
multidisciplinares responsáveis pelos
textos que acompanhavam as
fotografias nos painéis dos Museus de
Rua. Outra personagem fundamental
Figura 29. Ivany Sevarolli e Julio Abe
nessa história é Ivany Sevarolli,
Wakahara durante entrevista filmada em
especialista em revelação e ampliação auditório da Universidade Presbiteriana
Mackenzie, em março de 2018.
de filmes fotográficos. Fonte: Autores

Ela trabalhou junto com Julio Abe na elaboração de diversos Museus de Rua e também
auxiliou o nosso grupo no início dos trabalhos de digitalização e identificação das
imagens. Ambos já foram filmados e entrevistados juntos, no Mackenzie, em março de
2018, fazendo uma retrospectiva de seus trabalhos realizados na década de 80.

Outro entrevistado importante é


Paulo Santiago, do Museu Memória
do Bixiga – MUMBI, ele é jornalista,
foi amigo pessoal de Armando
Puglisi, o fundador do MUMBI e
conhece muito bem os fatos e as
Figura 30. Painéis do IV Museu de Rua: “História lendas em torno dessa história. O
do Bexiga contada pelos seus moradores” (1979) vídeo-documentário também vai
Fonte: Acervo do Museu Memória do Bixiga

mostrar a relação intrínseca da criação do MUMBI após a realização do projeto


Museu de Rua do Bixiga: “História do Bexiga contada pelos seus moradores” cuja
primeira exposição data de 22 de agosto de 1979.

258
Para isso, os depoimentos de Júlio Abe e Paulo Santiago são fundamentais no resgate
dessa memória. Conversas entre os dois aconteceram em 2017 no MUMBI,
acompanhadas por nossa equipe quando já se pensava em fazer um vídeo-documentário.

Além da história oral e dos croquis que Júlio Abe faz para contá-la, usaremos o material
imagético produzido por ele para a exposição, que está arquivado em Paranapiacaba.
Mas a maior parte dos negativos e provas do “Museu de Rua do Bexiga” está arquivada
no próprio Museu Memória do Bixiga, inclusive com as fotografias originais de época,
doadas pelas famílias do bairro. É também por isso que estivemos fazendo a limpeza,
conservação e organização desse material entre 2017 e 2018.

A trilha sonora deste Vídeo Memória será composta por músicas relacionadas ao bairro
do Bixiga e arredores, como foco principal do documentário.

O Bixiga Sonoro
Contar uma história, qualquer que seja, é necessário que se tenha tempo para depurar o
que se está narrando, ter reflexão sobre o que se vê e ter a ciência que se está contando
uma nova história nessa história contada. Todos estão a todo tempo contando uma
história, fazendo uma declaração com a própria vida.
Assim, a cada dia pessoas e mais pessoas deixam seu roteiro escrito para ser apreciado,
lido e relido. O bairro do Bixiga registra ao longo de sua existência o traçado de vários
personagens que nos deixaram heranças em diferentes aspectos, nesse caso em
particular, destacamos um pequeno caminho sonoro que marcou e marca o caminho dos
que passam nesse bairro. Sons musicais e não musicais que compõem a paisagem desse
lugar.

Uma paisagem sonora


“Bixiga com ‘I’ é um estado de espírito”. Palavras do Walter Taverna se referindo à
mudança da grafia cunhada pelo antigo morador Armando Puglisi (Armandinho do
Bixiga). De fato, essa é uma característica desse bairro onde encontramos os mais
variados aspectos sonoros. Alguns são comuns em qualquer lugar, outros, possuem
significações profundas como o largar uma bandeja no chão para fazer um estrondo no
meio dos clientes em um restaurante. Para alguns, esse movimento é se livrar de males

259
porque “o diabo entrega a má sorte na bandeja, temos que nos livrar dela e só existe um
jeito: atirá-la no chão” (MOREAUX, p. 126). Para um povo que tem a fama de já nascer
cantando, o italiano deixou portas abertas para diferentes estilos musicais, para
diferentes campos sonoros e novas reverberações. Entre uma bandeja que repercute no
chão à uma serenata napolitana, o Bixiga abre os braços para o samba, o samba que hoje
tem sua maior representatividade com a Escola de Samba “Vai Vai” que foi cantada
pelo lendário Geraldo Filme.
Nascido em São João da Boa Vista - SP, Geraldo Filme se considerava um paulistano
completo. Foi pela influência dos cantos escravos da avó que ele inicia sua vida
musical. Compondo desde os 10 anos de idade, é o samba “Tradição” que traz, com
muita poesia, a mudança da vida do Bixiga. Com palavras simples, o samba remonta um
pouco da história e coloca as mudanças ocorridas sob a orientação do progresso, quando
diz que “Bexiga hoje é só arranha-céu e não se vê mais a luz da lua. Mas o Vai-Vai está
firme no pedaço, é tradição e o samba continua”. O registro poético dado no texto sobre
marcas que não saem da vida é uma referência sobre a influência da música no ser
humano, pois o que se aprende com música, o cérebro deixa guardado, fica registrado
fisicamente e, por sua vez, fica registrado nos recantos da alma que novamente brota em
poesia para se cantar e contar de diferentes formas, com novos desdobramentos.
Com o ritmo do samba que convida ao movimento, a referida música ainda retoma a
vida em comunidade muitas vezes desfrutada numa calçada de alguma rua, partilhando
muitas conversas, observando algumas mudanças que demoraram a chegar naquele
lugar. Se não se consegue mais viver em comunidade em outro lugar, se pode ir ao
Bixiga, pois “Quem nunca viu o samba amanhecer, vai no Bixiga pra ver”. Ou seja, se
você quer ver um grupo de amigos conversando e cantando na rua a noite inteira, vai lá
no Bixiga, isso ainda acontece.
Para além, o bairro que apresenta na sua história a característica de receptividade dos
mais variados estrangeiros, proporcionou abertura para um arcabouço cultural que,
como dito, revelou um dos sambas mais famosos, e também deu espaço para diferentes
representatividades como, por exemplo, o grupo Ilú Obá De Min que é composto por
mulheres que trazem sempre à memória a vida de outras mulheres que lutaram de
diferentes maneiras para viver ou sobreviver. Com o retrato da história muitas vezes
gritando o contrário, elas dizem: “Em terras africanas formaram-se impérios de

260
destemidas mulheres, de grandes guerreiras. Rainhas soberanas divindades da beleza,
nobreza, sabedoria e poder”.
Entre poesia leve e lutas de vida, o Bixiga continua sendo tecido no maravilhoso tear de
possibilidades diversas, que entre diferenças e semelhanças, os olhos e ouvidos
envolvidos apontam para a mesma paixão: a vida plena. Como dito, o Bixiga com “I”, é
de fato um estado de espírito. Um estado de acolhimento, pluralidade de vida e arte
constantes e, em plena ebulição. “Vai no Bixiga pra ver”, vai lá.

Considerações sobre o caminho percorrido


O Projeto Museu de Rua ao difundir seu acervo cria a possibilidade de traduzir através
de múltiplas linguagens o seu potencial. As narrativas visuais dos museus de rua são
capazes de produzir e traduzir olhares e percepções sobre as cidades e os bairros que
abordou, revelam aspectos peculiares de grupos sociais, modos de viver, de trabalhar,
fatos históricos, tipologia das moradias, topografia dos bairros e cidades, festividades,
dentre inúmeros focos e perspectivas que poderiam ser aqui elencados. Muitas das
fotografias re fotografadas por Julio Abe, não existem mais ou estão dispersas, portanto
seu conjunto de negativos é único, e ao ser preservado com cópias digitais garante sua
conservação e difusão.
A comunicação a partir do momento que ganha uma nova dimensão com as tecnologias
da informação torna os acervos fotográficos conhecidos, permite um maior número de
pesquisas, cruzamentos de dados e aposta na própria recriação de sua existência. A
transformação de sentidos através de novos olhares e possibilidade de exploração das
imagens coletadas pode ser traduzida a partir das potencialidades tecnológicas de uma
época em consonância com o que se quer dizer em um dado momento histórico, e assim
traduz os sentimentos de um determinado tempo.
O fato de este projeto contemplar inúmeras perspectivas de tempos e lugares distintos,
de memórias adormecidas em caixas, gavetas que passam a ter uma nova dimensão ao
se unirem a outras memórias e assim constituir um mosaico de micro histórias, que
desafiam os fatos instituídos e sacralizados por um tipo de narrativa tradicional; ganha a
partir da nova historiografia um novo ponto de vista, passa a contemplar as vozes dos
esquecidos, dos sem história, dos sem memória, dos que fazem parte apenas dos
cenários.

261
As vozes e sons ganham neste espaço da rua de todos os cidadãos a possibilidade de
reconexão dos sujeitos com seu passado, com as histórias apagadas do território. É uma
promessa que traduz sentimentos amalgamados, que traz a tona à importância de cada
pedaço da história viva e próxima do cotidiano, da vida dos comuns, das pessoas de
carne e osso que habitam as cidades, que revelam em suas peculiaridades suas marcas,
que contam no olhar capturado nas lentes de algum aparato fotográfico, o tempo
congelado em fotografias que nos tocam e dizem muito sobre cada um de nós.

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Fernandes, 2004.

262
Meia Noite em Paris e a Metáfora da Saudade Daquilo que não se Viveu: Reflexões
sobre a Pós-Modernidade, Retropia e Cansaço.

Midnight in Paris and the Metaphor of the Saudade of What Not Lived:
Reflections on Post-Modernity, Retropia and Tiredness.

Patricio Dugnani1

Resumo: Pretende-se nesse artigo desenvolver uma reflexão entre o sujeito pós-
moderno, o hedonismo e a saudade do passado, que pode ser observada no conceito de
retropia de Zygmunt Bauman, e corroborada pelo uso constante da citação e a paródia
no discurso estético contemporâneo. Esse escapismo estético, em busca de uma
nostalgia não vivida, mas sonhada, é reforçada pela tendência hedonista do sujeito pós-
moderno e esse fenômeno será ilustrado pela metáfora de dois personagens do filme de
Woody Allen, Meia Noite em Paris. Além dessa característica que pretende-se ressaltar,
outras características importantes para compreender o sujeito pós-moderno serão
analisadas, dentre tantas destacam-se a fragmentação da identidade cultural, o aumento
do individualismo, a neutralização das alteridades, o consumo como maneira de atingir
a felicidade, o culto à imagem, valorização do corpo e da aparência. A partir de uma
pesquisa bibliográfica, documental e exploratória serão comparadas as características do
sujeito pós-moderno, com a personagem do filme. Serão utilizadas análises de autores
como Zygmunt Bauman e a questão da modernidade líquida; Gilles Lipovetsky, o
consume emocional e a felicidade paradoxal; Joel Birman e os três registros do mal-
estar contemporâneo; Stuart Hall e a fragmentação da identidade cultural; e Byung
Chul-Han e a neutralização das alteridades.

Palavras-chave: Pós-modernidade; Retropia; Hedonismo; Intertextualidade; Cansaço.

Abstract: In this article we intend to develop a reflection between the postmodern


subject, hedonism and the nostalgia of the past, which can be observed in the concept of
retropia by Zygmunt Bauman, and corroborated by the constant use of citation and
parody in contemporary aesthetic discourse. This aesthetic escapism, in pursuit of an
unfulfilled but dreamed nostalgia, is reinforced by the hedonistic tendency of the
postmodern subject, and this phenomenon will be illustrated by the metaphor of two
characters from Woody Allen's Midnight Movie in Paris. In addition to this
characteristic, it is worth highlighting that other important characteristics to understand
the postmodern subject will be analyzed, among them the fragmentation of cultural
identity, the increase of individualism, the neutralization of alterities, consumption as a
way of achieving happiness, the worship of the image, appreciation of the body and
appearance. From a bibliographical, documentary and exploratory research will be
compared the characteristics of the postmodern subject, with the character of the film.
Analyzes by authors like Zygmunt Bauman and the question of liquid modernity will be

1Doutor em Comunicação e Semiótica, professor do curso de Comunicação Social: Publicidade e Propaganda da


Universidade Presbiteriana Mackenzie. Pesquisador da área de Comunicação e Artes. patrício@mackenzie.br

263
used; Gilles Lipovetsky, emotional consumption and paradoxical happiness; Joel
Birman and the three records of contemporary malaise; Stuart Hall and the
fragmentation of cultural identity; and Byung Chul-Han and the neutralization of
alterities.

Key Words: Postmodernity; Retropia; Hedonism; Intertextuality; Tiredness.

Introdução

Pretende-se nesse artigo desenvolver uma reflexão entre o sujeito pós-moderno,


o hedonismo, o cansaço e a saudade do passado. Saudade, nostalgia, essa que pode ser
observada no conceito de retropia de Zygmunt Bauman (2017), e corroborada pelo uso
constante da intertextualidade no discurso estético contemporâneo. Entendendo a
intertextualidade, segundo Roland Barthes (2004), como o cruzamento de textos,
discursos, entre culturas, referências, períodos distintos.
Por isso, o filme de Woody Allen, Meia Noite em Paris (2011) foi escolhido
para servir de metáfora para essa análise. A escolha se deu pois o filme apresenta um
debate sobre a insatisfação com o presente e a nostalgia de um passado não vivido, mas
imaginado, ou seja um passado utópico. O que para Bauman (2017) se aproximaria de
seu conceito de retropia.
Acredita-se que o uso constante da intertextualidade, na expressão estética da
Pós-modernidade, representada através das estratégias, por exemplo, de citação e
paródia, torna-se recorrente, pois existe uma desilusão, um cansaço desse sujeito, em
relação a realidade. Esse escapismo estético, em busca de uma nostalgia não vivida, mas
sonhada, é reforçada pela tendência hedonista do sujeito pós-moderno.
Por isso a visão de Bauman (2017) será fundamental para entender essa exaustão
pós-moderna, de uma possível modernidade que pode ser observada, se avalia que as
utopias, as vanguardas modernas, a velocidade, o progresso e a busca pela
experimentação, que leva o humano a se defrontar com a incerteza (a incerteza da Pós-
modernidade), é substituída, segundo o filósofo, por uma retropia, uma utopia do
passado.
Essa saudade do passado, daquilo que sequer viveu, essa nostalgia, também tem
se intensificado pela sensação de desilusão contemporânea, desilusão reforçada pela
insatisfação dos desejos e prazeres, pois identifica-se no sujeito pós-moderno, uma
tendência hedonista que pode ser observada nas reflexões de Gilles Lipovetsky e Jean

264
Serroy, nos livro Estetização do Mundo (2015), Cultura-mundo (2011) e Felicidade
Paradoxal (2007). Com essa tendência hedonista, ou seja, a busca do prazer ininterrupto
do sujeito da Pós-modernidade, o leva a essa saudade do passado, e a se expressar por
uma estética intertextual, onde o Retrô, o Vintage se tornam aspectos positivos da moda,
e são representados de maneira mais constante, através da citação, da paródia, ou seja,
através da intertextualidade.
Para entender esse humano, que se expressa pela intertextualidade, serão
utilizadas as reflexões feitas sobre o sujeito da Pós-modernidade na análises dos estudos
culturais de Stuart Hall (2004). Nessas análises o autor observa o constante processo de
adaptação a que esse sujeito pós-moderno está exposto quando se vislumbra um
processo de globalização como cenário social. Globalização que também se torna
motivador de processos intertextuais, pois, através da velocidade dos meios de
comunicação e das trocas de informações entre humanos de diferentes grupos, as
referências se multiplicam, multiplicando-se assim os cruzamentos dessas referências e,
consequentemente, o cruzamento de diferentes culturas, ou seja, intertextualidade.
Finalmente, para auxiliar na investigação dessa desilusão em relação às
incertezas do mundo contemporâneo, da Pós-modernidade, desse cansaço, deve-se
recorrer à análise de Byung-Chul Han feita no livro Sociedade do Cansaço (2017), onde
o autor descreve a neutralização das alteridades, e a valorização das positividades, em
detrimento das negatividades como um processo que leva o humano a um desgaste, a
um cansaço neutralizador.

Da pós-modernidade: tempo e saudade do que não vivi

“E é só você que tem a


Cura pro meu vício de insistir
Nessa saudade que eu sinto
De tudo que eu ainda não vi”
Renato Russo, Legião Urbana

A questão do tempo tem torturado o sujeito pós-moderno, pois a Pós-


modernidade parece estar assentada numa dinâmica onde tudo se organiza entorno da
saturação, da intensidade, ou como indica Lipovetsky e Serroy (2011), a
hipermodernidade, se estrutura em polos como o hipercapitalismo, a hipertecnização, o
hiperindividualismo.

265
O mundo hipermoderno, tal como se apresenta hoje, organiza-se em torno de
quatro polos estruturantes que desenham a fisionomia dos novos tempos. Essas
axiomáticas são: o hipercapitalismo, força motriz da globalização financeira; a
hipertecnicização, grau superlativo da universalidade técnica moderna; o
hiperindividualismo, concretizando a espiral do átomo individual daí em diante
desprendido das coerções comunitárias à antiga; o hiperconsumo, forma
hipertrofiada e exponencial do hedonismo mercantil. Essas lógicas em
constantes interações compõem um universo dominado pela tecnicização
universalista, a desterritorialização acelerada e uma crescente comercialização
planetarizada. É nessas condições que a época vê triunfar uma cultura
globalizada ou globalista, uma cultura sem fronteiras cujo objetivo não é outro
senão uma sociedade universal de consumidores. (LIPOVETSKY e SERROY,
2011, p. 32)

Dessa forma tudo parece ganhar um tom de urgência, o que se reflete no próprio
movimento do hiperconsumo. O sujeito da Pós-modernidade parece retornar a um
período onde ele se torna mais reativo que ativo, no sentido político, conforme observa,
no artigo Psicologia e gestores escolares: mediações estéticas e semióticas promovendo
ações coletivas (2016), Lilian Dugnani e Vera Souza, entendendo a ação e a reação não
nos sentido sinestésico, mas sim no sentido político. O humano contemporâneo parece
reagir de maneira cada vez mais instintiva, do que reflexiva e crítica, o que se observa,
principalmente em relação ao consumo. Essa ideia combina com a visão de Hannah
Arendt, onde ela classifica, no livro Condição Humana (2007) o humano
contemporâneo como Animal Laborans, e não como Homo Politicus. O Homo Politicus
de Arendt seria o humano que toma as suas ações mediadas pela visão crítica, e política,
compreendendo a política como uma ato moral e social dos seres humanos. Contudo, na
contemporaneidade, o humano pós-moderno se torna mais reativo, sendo dominado pela
aparente necessidade do consumo, e para satisfação de seus desejos. Sendo assim
podemos considerar que esse sujeito se torna hedonista, onde a satisfação do prazer se
torna sempre prioridade em relação às questões sociais, ou seja, esse individuo, se
tornando cada vez mais centrado na satisfação de seus desejos, torna-se, também, cada
vez mais individualista.
Giorgio Agamben, em seu livro Profanações (2007), também destaca esse
fenômeno em relação ao consumo, quando demonstra que no ato de consumir, o sujeito
da Pós-modernidade projeta dois valores nos bens de consumo, o sagrado e o profano. O
bem de consumo, quando ainda em estado de desejado, parece algo tão inalcançável,
que torna-se uma obsessão para o consumidor. Esse bem desejado se torna um objeto
sagrado, como se a conquista, ou seja o consumo dele, pudesse trazer a perfeição para
esse sujeito, consequentemente saciando a voracidade do apetite insaciável dele. No

266
entanto, para Agamben (2007), esse objeto, ao passar do status de desejado, para
consumido, perde sua aura de sacralidade, e torna-se comum, cotidiano, não mais tão
desejado. Nesse sentido o objeto foi profanado, tornou-se profano, terrestre, material.
Dessa forma o sujeito pós-moderno, nesse movimento, precisa eleger outro objeto para
desejar, para tornar sagrado, para querer consumir. Com esse círculo vicioso, o consumo
não se torna estagnado, se movimenta velozmente, criando um ciclo de hiperconsumo,
pois nunca será possível saciar o apetite voraz desse consumidor contemporâneo, afinal,
seus desejos estão sempre voltados para o próximo objeto que desejará no futuro, o
próximo bem a deixar de ser sagrado e tornar-se profano.
Com esse movimento é que Lipovetsky detecta a sua visão de um hiperconsumo
que somente se sacia por poucos instantes, gerando o que ele denomina de “felicidade
paradoxal” (2007). Essa felicidade é paradoxal, como é paradoxal a própria Pós-
modernidade, pois é uma felicidade volátil e volúvel, ou seja, não tem duração, e está
voltada para o futuro. Dessa forma, o consumo está galgado no desejo futuro da
satisfação das vontades, onde o gozo é sempre adiado, como observa-se na obra Blefe, o
gozo pós-moderno (2001) de Louis Kodo, e a “felicidade é paradoxal” (2007).
Essa relação com o tempo é tão paradoxal, que, se a satisfação do prazer pelo
consumo e adiado, não é assim sua visão do futuro. Pois o futuro do sujeito pós-
moderno para o consumo, não se instaura em uma visão muito distante, o futuro do
consumo, espera-se que seja próximo, o mais presente possível. Isso se dá, pois se o
prazer está no consumo de um bem num futuro próximo, sua visão do futuro mais
distante não é tão esperançoso, pelo contrário, é apocalíptico. O futuro para o sujeito
contemporâneo parece sem esperança, como observa Bauman em seu livro Retropia
(2017). Sendo assim, para o sujeito pós-moderno, diferente da visão utópica da
modernidade, o futuro é distopico, dessa forma, resta a ele observar com saudade o
passado e saciar seus desejos no presente, pois o futuro é incerto.
A retropia para Bauman (2017) é uma nostalgia do passado, de um passado
perfeito e glorioso, um passado que sequer o sujeito pós-moderno viveu, mas que foi
descrito por outros, imaginado pelo indivíduo e, por fim, consumido nas representações
dos produtos contemporâneos. Essa nostalgia do passado é facilmente observável nos
bens de consumo, quando se analisa as tendências estéticas da Pós-modernidade, como
o estilo retrô, ou vintage. O passado está na moda e é resgatado através de estratégias
como a citação, a paródia, e a intertextualidade, descrita por Roland Barthes (2004)
como o cruzamento de referencias e representações culturais das mais dispares.

267
Sendo assim, o sujeito pós-moderno vive com uma saudade do passado, pois
tem pouca esperança no futuro, e sente a necessidade de satisfazer seus desejos em um
presente cada vez mais instantâneo. Essa parece ser a descrição de dois personagens do
filme de Woody Allen, Meia Noite em Paris (2011): Gil Pender, interpretado por Owen
Wilson, e Adriana, interpretada por Marion Cotillard. Esse dois personagens vivem em
épocas diferentes, Gil é do início do século XXI, enquanto Adriana é do início do século
XX. O primeiro vive a Pós-modernidade, enquanto o segundo vive a modernidade, a
época das vanguardas modernas. Embora vivam em tempos diferentes, ambos dividem a
mesma admiração pelo passado, só que Gil sente saudade do início do século XX,
enquanto Adriana sente nostalgia pelo final do século XIX, a Belle Epoque, dos pintores
impressionistas. A partir dessa observação, parece que o diretor quer representar essa
nostalgia utópica pelo passado que influencia o pensamento da Pós-modernidade.

Do Cansaço e a Retropia Sujeito da Pós-modernidade

“Mas é o presente... Ele é chato.”


Gil Pender e Adriana (Owen Wilson e Marion Cotillard,
em Meia-Noite em Paris)

Para Gil Pender, personagem do Owen Wilson a vida perfeita, sua utopia,
estava na Paris dos anos 20, com os escritores e pintores da época, como Ernst
Hemingway, Pablo Picasso, Salvador Dalí, Scott Fitzgerald, e Gertrude Stein. No
entanto, para Adriana, personagem de Marion Cotillard no filme, a utopia esta na Paris
da metade do século XIX, com os pintores impressionistas, como Claude Monet e Pierre
August Renoir. De qualquer forma, embora cada um dos personagens deseje um tempo
diferente, ambos tem algo em comum: a projeção de sua utopia está num passado que
sequer eles viveram, como dito anteriormente. Essa nostalgia idealizada desse passado
não vivido, é a retropia que Bauman (2017) descreveu em seu livro homônimo.
“Então o presente é assim. É um pouco insatisfatório, porque a vida é
insatisfatória” (2011). Essa frase dita por Gil Pender (Owen Wilson) a Adriana,
personagem de Marion Cotillad no filme Meia Noite em Paris (2011), tenta justificar o
presente como algo passageiro, volátil e incapaz de satisfazer os desejos, mas que é
preciso se conformar. Denunciando, assim o passado, o sujeito pós-moderno vê também
o futuro como momento incerto. Esse parece ser o estigma da Pós-modernidade: viver o
presente, tirando prazer desse momento etéreo (visão hedonista), olhar para o futuro

268
sem esperança, e, finalmente, sentir uma nostalgia por um passado que não viveu, mas
projetou como sua utopia, seu recanto de perfeição.
Essa sentença também parece ser a metáfora que Woody Allen utilizou para
retratar o sujeito da Pós-modernidade, no filme Meia Noite em Paris (2011). Um sujeito
cansado das incertezas, buscando alívio numa visão idealizada do passado.
Tanto Gil Pender, como Adriana demonstram sentir-se insatisfeitos com o
cotidiano, apresentam um cansaço do presente e buscam refugiar-se no passado. Esse
cansaço dos personagens, parece uma metáfora do sujeito pós-moderno. Esse cansaço
na Pós-modernidade foi analisada por Byung Chul Han, em seu livro Sociedade do
Cansaço (2015) e, nesse artigo, observa-se como um cansaço em relação às incertezas.
A incerteza na Pós-modernidade parece uma constante, e entende-se essa
sensação como um fenômeno construído à partir da relação entre a revolução dos meios
digitais e o processo de globalização. Com a revolução dos meios de comunicação, a
quantidade de informação se multiplica, e ao compreender a informação como um
conteúdo que altera a percepção e a consciência de mundo do ser humano (COELHO,
1990, p. 122), pode-se concluir que, se houve um aumento da quantidade de
informações, se elas chegam com mais intensidade e velocidade, também mais rápidas
serão as mudanças na sociedade. Esse é um dos fenômenos que produzem o aumento da
sensação de incerteza no sujeito pós-moderno. As suas certezas são menos absolutas, o
que confirma o conceito da liquidez de Bauman (1998). Para Bauman (1998) a liquidez
é uma característica recorrente da Pós-modernidade, o que significa que os conceitos, a
moral, as expressões culturais, ou seja, todo discurso da sociedade contemporânea
perdeu a sua solidez, tornaram-se líquidos, voláteis e adaptáveis a cada nova
informação, e elas são múltiplas e, muitas vezes, contraditórias.
A globalização, observada em seu efeito de mistura de culturas, de hibridização,
ou seja, de formação de culturas híbridas, amplia esse processo de incerteza. Pois ao
entender a cultura como um processo de significação, de constituição de sentido, onde o
humano atribui significado à suas representações (GEERTZ, 2008), a cada nova
expressão cultural que se apresenta para uma cultura estabelecida, assim como o caso da
informação, altera essa cultura. Dessa forma os discursos que dão fundamentação e que
contribuem com a constituição do sentido para uma determinada cultura, acabam sendo
abalados, pois a sua razão, seus processos de significação precisam ser revistos, e
reavaliados. Nesse processo, os discursos que outrora eram considerados como
verdades, podem se desestabilizar, ganhando assim novos significados, gerando assim

269
uma crise das metanarrativas (LYOTARD, 2000, STRINATI, 1999), ou seja, uma crise
nos discursos fundadores da cultura de uma determinada sociedade. Hoje, uma
sociedade globalizada, acaba por constituir-se como uma cultura híbrida, onde os
diversos discursos se entrecruzam, provocando, também essa sensação de incerteza no
sujeito pós-moderno.
Nesse processo de crescimento das incertezas, vivido pelo sujeito pós-moderno,
o cansaço dessa condição parece estar presente e produzindo efeitos, que ajudam a
resgatar discursos que pareciam a muito ter desaparecidos, mas que estavam apenas
adormecidos, esperando para ser resgatados. Sendo assim, a tendência de retropia
(BAUMAN, 2017), de idealização de um passado não vivido, além da presença de uma
estética retrô, Vintage, parecem ser, mais que fenômenos culturais, sintomas. Sintomas
de uma sociedade que já não vê esperança nas utopias modernas de um futuro perfeito, e
passa a buscar o refúgio em um passado descrito como glorioso. Essa tendência lembra
tão bem a busca do resgate da estética clássica, e da grandiosidade de uma Alemanha,
de um período medieval, onde não existia a tal Alemanha. Claro que destaca-se nessa
reflexão o pensamento nazista. A Pós-modernidade, pela sua intensidade de incertezas,
parece ter conseguido resgatar discursos fundadores, metanarrativas que formavam o
pensamento de tendências fundamentalistas, como as do Nazismo.
Esse cansaço alienante, identificado por Han (2015), ou melhor esse cansaço,
essa saturação perante as incertezas da Pós-modernidade, parece promover uma vontade
de alienação no sujeito, que, juntamente com estratégias de comunicação, reforçam esse
processo de abandono do pensamento dialético, em favor de uma visão maniqueísta. Ou
seja, o humano contemporâneo está abandonando seu pensamento crítico, deixando de
levar em consideração as contradições, se apegando a qualquer conceito único, que
prometa um pouco de estabilidade, e de certeza. Dessa forma, o sujeito da Pós-
modernidade parece carecer de uma verdade que guie sua vida. Abrindo caminho para
que discursos fundamentalistas, possam ganhar força. Esses discursos ganham força em
períodos de incerteza, pois de maneira simplista, defendem suas verdades, sem levar em
consideração a possibilidade de que possa haver qualquer contradição em suas certezas.
A incerteza da pós-modernidade causa insegurança, e os discursos fundamentalistas
prometem certezas. Por isso Bauman (1998) percebe em sua análise do que ele
denomina como mal-estar na Pós-modernidade, que o sujeito contemporâneo é capaz de
abdicar da liberdade, mesmo a liberdade de reflexão e crítica, por uma promessa de
segurança.

270
Você ganha alguma coisa, em troca, perde alguma outra coisa: a antiga
norma mantém-se hoje tão verdadeira quanto o era então. Só que os ganhos
e as perdas mudaram de lugar: os homens e as mulheres pós-modernos
trocaram um quinhão de suas possibilidades de segurança por um quinhão
de felicidade. Os mal-estares da modernidade provinham de uma espécie de
segurança que tolerava uma liberdade pequena demais na busca da
felicidade individual. Os mal-estares da pós-modernidade provêm de uma
espécie de liberdade de procura do prazer que tolera uma segurança
individual pequena demais. (BAUMAN, 1998, p. 10)

Nesse ponto é que a teoria de Han (2015) sobre o cansaço da sociedade faz
muito sentido, pois para o autor, o momento contemporâneo abdica da visão do outro,
das negatividades, “o desaparecimento da alteridade e da estranheza” (HAN, 2015, p.
10), substituindo essa alteridade pelas certezas absolutas, produzindo uma
“massificação do positivo” (HAN, 2015, p. 21). Essa massificação do positivo é
impulsionado, na Pós-modernidade, pelo uso dos meios de comunicação digitais que,
através de todos usuários, acabam multiplicando informações, que muitas vezes, ou a
maioria, são debatidas de maneira rasa simplista e maniqueísta. Onde a opinião suplanta
a razão e o debate, pois, por serem meios de comunicação de resposta imediata, reativa,
e com pouco espaço para aprofundamento, acabam por sarurar os espaços com a defesa
de interesses mais individualizados. Essas são as positividades que povoam a internet,
principalmente as redes sociais onde o “excesso de positividade se manifesta também
como excesso de estímulos, informações e impulsos. Modifica radicalmente a estrutura
e economia da atenção” (HAN, 2015, p. 31). Ou seja, o sujeito pós-moderno, embora
tenha um potencial poderoso para participar da constituição coletiva do conhecimento
através dos meios digitais, acaba vítima desse volume de atividades propostas pelo
meio, onde sua atenção é dividida entre milhares de informações e debates, que ele
acaba, na maioria das vezes, participando de forma superficial, sem verificar as
informações, e, sem sequer debate-las. Afinal é proposto pelos meios de comunicação
muitas tarefas simultâneas, o que Han (2015) define como “multitasking” (HAN, 2015,
p. 31), onde o sujeito pós-moderno somente acaba por desenvolver uma resposta
reativa, que se assemelha à concentração instintiva dos animais no meio ambiente, que
são obrigados a estar sempre atentos, em busca da sobrevivência.

A técnica temporal e atenção multitasking (multitarefa) não representa


nenhum progresso civilizatório. A Multitarefa não é uma capacidade para a
qual só seria capaz o homem na sociedade trabalhista e de informação pós-
moderna. Trata-se antes de um retrocesso. [...] Na vida selvagem, o animal
está obrigado a dividir sua atenção em diversas atividades. Por isso, não é

271
capaz de aprofundamento contemplativo. [...] Não apenas a multitarefa, mas
também atividades como jogos de computador geram uma atenção ampla,
mas rasa, que se assemelha à atenção de um animal selvagem. [...] A
preocupação pelo bem viver, à qual faz parte também uma convivência bem –
sucedida, cede lugar cada vez mais à preocupação por sobreviver. [...] A
cultura pressupõe um ambiente onde seja possível uma atenção profunda é
cada vez mais deslocada por uma forma de atenção bem distinta, a
hiperatenção (hyperattention). (HAN, 2015, p. 31 a 33)

Esse humano com a atenção difusa em muitos fenômenos simultâneos trata-se


do sujeito pós-moderno, que se sente inseguro, mergulhado em incertezas e que
abdicaria, como disse Bauman (1998) de sua liberdade, por um pouco de segurança.
Esse cansaço das contradições, das incertezas é que parece estar fortalecendo os
discursos dogmáticos e fundamentalistas que estão sendo resgatados e aclamados em
posts diários nas redes sociais. Esse crescimento de discursos podem ser observados em
diversos países, nas eleições de diversos candidatos, que de maneira contrária ao
processo de diversidade e globalização, acabam sendo aclamados por processos de
fechamento de fronteiras, e policiamento de discursos contrários à um modelo limitado.
O fim das alteridades de Han (2015), o aumento das positividades, ou seja, o fim do
pensamento crítico, dialético e histórico, não parece mais uma ficção, mas uma
possibilidade real.

Considerações finais
“Adriana, se ficar aqui, isso se torna o seu presente. E
logo vai começar a imaginar que outra época é que é os
seus anos dourados”.
Gil Pender (Owen Wilson em Meia noite em Paris)

O cansaço da Pós-modernidade é representada pelos personagens Gil pender e


Adriana no filme Meia-noite em Paris, e a citação acima, retirada do filme, demonstra
esse círculo vicioso de insatisfação, onde o desprezo pelo seu momento presente, levam
os personagens a uma viagem de retorno ao passado, aquele passado idealizado e não
vivido, onde a utopia do futuro, é substituído pela nostalgia. Essa nostalgia do passado
parece satisfazer os dois, substituindo a incerteza por um sonho, uma utopia do passado,
a retropia de Bauman (2017). Porém esse processo parece abrir caminho para o resgate
de certos discursos, que podem fazer retornar visões totalitárias na Pós-modernidade.
A partir da análise da Pós-modernidade, como um período de incertezas, como
afirmam autores como Zygmunt Bauman, Stuart Hall, entre outros, é possível perceber
um efeito preocupante na sociedade contemporânea: o cansaço da incerteza. Esse

272
cansaço parece proporcionar um mal estar que produz no sujeito pós-moderno um
processo de desprezo pela complexidade, pelas contradições, pelo debate, o que o leva a
esperar que algum demiurgo bondoso possa surgir com verdades absolutas que o tirem
desse furacão de inconstâncias que parece constituir o seu panorama visível. Uma
paisagem que ao se vislumbrar ao longe, lá no futuro, não parece ter esperança, o que o
leva, num movimento nostálgico, ater saudade de um passado projetado, idealizado.
Passado esse que ele resgata com seus discursos, como se a solidez do passado, à
maneira de Bauman (1998), pudesse novamente solidificar a liquidez do presente, e
reerguer um pano de fundo que fosse capaz de resgatar a esperança no futuro.
Infelizmente, caro leitor, essa equação está equivocada, pois a substituição do desafio de
conviver com a liberdade de escolher e viver num mundo complexo vem sendo apenas
encoberto pela falsa impressão de segurança de discursos simplistas, dogmáticos e
fundamentalistas, com seus ridículos títeres repetindo seus discursos de ódio e de fim
das diversidades, ou seja, os discursos de certezas tão absolutas, que não merecem
sequer críticas. Esse é o dilema da Pós-modernidade, um potencial tão grande de
participação na construção da informação, e consequentemente da sociedade, ao mesmo
tempo que o crescimento de discursos tão limitados, que buscam apenas produzir a
alienação, para a tomada de um poder, galgado em promessas de perfeição. Foi assim
no início do século XX com o Nazismo, e tem indicativos que será assim no início do
século XXI. Nesse momento é que espera-se que esse processo seja cortado por um
ganho de consciência dos usuários dos meios de comunicação digital, a única maneira
de parar esse crescente discurso totalitário e de ampliação das intolerância em todos os
sentidos. Pois as intolerâncias parecem estar renascendo do cansaço, o cansaço das
alteridades e das negatividades, as quais foram destacadas por Byung Chul Han (2015).
Essa sociedade do cansaço tem como desafio, recuperar as suas forças e resistir a esse
movimento avassalador de retorno consentido às positividades. Talvez Gil Pender e
Adriana, os personagens do filme, precisem, ao invés de voltar ao passado, conviver
com o presente, e resgatar a esperança do futuro, um futuro que aprenda a se edificar na
diversidade, e não na singularidade do totalitarismo.

Referências
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ARENDT, Hannah. A Condição Humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007.
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274
Reverberações biopolíticas em Mar Adentro, de Alejandro Amenábar.
Biopolitical reverberations in Mar Adentro, by Alejandro Amenábar.

Alan dos Santos1

Resumo: Este artigo pretende realizar uma discussão acerca do conceito de biopoder, tal
como elaborado pelo filósofo francês Michel Foucault, a partir do filme Mar Adentro,
dirigido por Alejandro Amenábar. Biopoder é uma modalidade de poder que tomou a vida
de assalto e se encarregou de administrá-la. A fórmula do biopoder, segundo Foucault,
pode ser descrita do seguinte modo: um poder de fazer viver e deixar morrer. O biopoder
inverte a máxima da soberania política, que consiste no direito de fazer morrer ou deixar
viver. Os corpos insubordinados, num contexto biopolítico, são abandonados à morte,
uma morte lenta. Isso fica claro na produção de Amenábar. O personagem interpretado
por Javier Bardem, que levava uma vida afirmativa, após sofrer um acidente e ficar
paraplégico decide morrer. Mas o Estado (política) e a família conservadora (moral) não
permitem. A vida não mais lhe pertence. Pertence aos poderes. Ou pertence também aos
poderes.
Palavras-chave: Foucault; biopoder; Amenábar; vida; política.

Abstract: This article intends to conduct a discussion about the concept of biopower, as
created by the French philosopher Michel Foucault, with the film Mar Adentro, directed
by Alejandro Amenábar. Biopower is a form of power that took the life of assault and
was in charge of administering it. The biopower, according to Foucault, can be described
as follows: a power to make live and let it die. Biopower inverts the maxim of political
sovereignty, which consists in the right to cause death or let live. Insubordinate bodies,
in a biopolitical context, are abandoned to death, a slow death. This is clear in Amenábar's
production. The character played by Javier Bardem, who led an affirmative life, after
suffering an accident and become paraplegic decides to die. But the state (political) and
the conservative (moral) family do not allow. Life no longer belongs to him. It belongs
to the powers. Or it belongs to the powers as well.
Key words: Foucault; biopower; Amenáber; life; politics.

Introdução
"Basta: está chegando a hora em que a política terá um significado diferente",
diz Nietzsche, na seção 960, de "A Vontade de Potência". Nietzsche certamente rejeitaria
o título de profeta que estou lhe atribuindo; no entanto, pode-se dizer que sua temeridade

1 Doutorando em Educação, Artes e História da Cultura (Mackenzie), mestre em Filosofia Política (Unifesp) e
licenciado em Filosofia (Unisantos). Professor do curso de Licenciatura em Filosofia da Unimes.
275
tornou-se realidade: a política, hoje, é muito mais extensa do que na sua época (séc. XIX),
possui dispositivos de controle muito mais eficazes e, portanto, faz-se obedecer mais
sutilmente, mesmo para aqueles que se dizem bem formados subjetivamente ou
portadores de senso crítico. Mais do que isso: a política nesse começo do séc. XXI tem
como paradigma central não mais a violência explícita e punitiva, mas a normatização e
a gestão calculista da vida, abarcando questões que sobrepujam a atuação política
enquanto tal, adentrando ao campo biológico. É o caso do biopoder, conceito elaborado
por Michel Foucault para designar a ação política que, entre aspectos mais gerais,
caracteriza-se pela inclusão da vida biológica em assuntos governamentais, gerando
estratégias e ações políticas que visam não mais a disciplina dos corpos em espaços
previamente demarcados, mas um controle populacional, direcionado ao homem
enquanto espécie, em outros termos, enquanto população2. Como Foucault demonstrou
no último capítulo de A vontade de saber e na última aula de Em defesa da sociedade
(utilizaremos sobretudo deste último livro no correr do artigo), está na inclusão da vida
biológica em assuntos estatais a gênese dos paradigmas que movimentam a política atual,
com especial atenção para os projetos sociais, a questão racial e, sobretudo, os debates
acerca dos direitos dos homossexuais.
Assistimos no Ocidente a uma profunda transformação dos mecanismos de
poder. Ao antigo direito do soberano de fazer morrer ou deixar viver se substitui um
poder de fazer viver ou abandonar à morte. Há nisso uma grande mudança de paradigma.
O poder passou a se organizar em torno da vida, sob duas formas principais que não são
antitéticas, mas organizadas em sintonia uma com a outra numa espécie de
complementariedade de controle: por um lado, as disciplinas, uma anátomo-política do
corpo humano, elas têm como objetivo o corpo individual, considerado como uma
máquina a ser aprimorada. Por outro lado, vemos o surgimento de uma biopolítica da

2“É um novo corpo: corpo múltiplo, corpo com inúmeras cabeças, se não infinito pelo menos necessariamente
numerável. É a noção de ‘população’. A biopolítica lida com a população, e a população como problema político, como
problema a um só tempo científico e político, como problema biológico e como problema de poder, acho que aparece
nesse momento”. (FOUCAULT, 2010; 207)
276
população, do corpo-espécie; seu objetivo é o corpo vivente, os processos de
desenvolvimento biológico (nascimento, mortalidade, saúde, etc).
Para demonstrar essa nova dimensão política que gira em torno da vida
individual e coletiva utilizaremos do filme Mar Adentro (AMENÁBAR, Alejandro. Fox
Video Brasil, 2005), que tem como o tema principal o direito que temos de dispor da vida
nas sociedades neoliberais ou capitalistas contemporâneas.
Eis, portanto, o nosso objetivo ao redigir este artigo filosófico com suporte
sensível num filme / roteiro: a relação entre política, vida e morte no contemporâneo,
nesse tempo que podemos chamar de nosso.
O caso Ramon e o poder sobre a vida
Se o governo da vida pertence também às instâncias político-jurídicas; se as
instituições diversas organizadas em torno do Estado moderno e do mercado capitalista
são autorizadas a pronunciar discursos sobre a verdade da vida e da morte, lanço então a
seguinte questão: basta apenas a vontade do sujeito para dispor da própria vida? Pode um
sujeito reivindicar o seu direito de morte?
Esse é o dilema com que se depara Ramon, personagem principal de Mar
Adentro. Ele leva quase trinta anos debilitado em uma cama sob cuidados de sua família;
sua única janela para o mundo é a de seu quarto junto ao mar por onde tanto viajou e onde
sofreu o acidente que interrompeu sua saúde: certo dia, ao mergulhar na maré cheia,
Ramon, que era marinheiro, quebrou o pescoço e tornou-se tetraplégico, imobilizando por
completo o movimento do pescoço aos pés. Desde então, o objetivo único de Ramon é
dispor da própria vida e usufruir o direito natural de morte. Mas, sozinho, ele não o
consegue fazer. É necessária a ajuda de outra pessoa. Ilegalmente, a família e amigos não
colaboram com a sua vontade; a saída, portanto, é recorrer ao Estado a legalidade para
poder exercer uma morte digna. Para isso, a família e o próprio Ramon procuram uma
advogada.
Na primeira conversa entre os dois, eles tratam da vontade de Ramon de morrer,
como segue no diálogo abaixo:
- Por que quer morrer? - pergunta a advogada, sentada numa cadeira à
beira da cama de Ramon.
- Quero morrer porque a vida para mim, nesse estado... a vida assim não
é digna; então; bem; eu entendo que alguns tetraplégicos possam se
277
sentir ofendidos quando eu digo que viver assim não é digno; mas eu
não estou julgando ninguém; quem sou eu para julgar quem quer viver;
e por isso eu peço que ninguém me julgue e ... nem mesmo a pessoa que
me prestar ajuda para morrer - responde Ramon.
- E acha que alguém vai ajudar você?
- Isso vai depender dos que controlam as coisas, e de que eles superem
seu medo, mas... me escute, não é para tanto, a morte sempre esteve
conosco e sempre estará, pois, é o fim de todos nós, não é? Ela faz parte
da vida; por que ficam escandalizados se digo que quero morrer, como
se fosse uma coisa contagiosa - responde, sempre com a expressão
serena.
- Se chegarmos ao tribunal, perguntarão por que não busca uma
alternativa melhor para a sua incapacidade; por que recusa a cadeira de
rodas, por exemplo... - insiste a advogada.
- Aceitar a cadeira de rodas seria como aceitar migalhas da liberdade
que já tive. Olha, pense nisso: Você está sentada aí a menos de dois
metros e o que são dois metros? Uma distância insignificante para
qualquer ser humano, mas, para mim, cobrir esses dois metros
necessários para chegar até você e poder ao menos tocá-la, é uma
viagem impossível. É uma utopia; um sonho. Por isso eu quero morrer.
- finaliza Ramon. (AMENÁBAR, 2005)3
Ramon deseja morrer; não considera digna uma vida em suas condições. Não
pretende tornar isso uma norma ou mesmo afrontar as normas estabelecidas, apenas
deseja morrer. Mas a vida não é um direito todo seu; a vida enquanto tal pertence a uma
espécie, à espécie humana, pertence também aos poderes, aos códigos legais. É a lógica
biopolítica, essa espécie de estatização e politização da vida biológica:
Parece-me que um dos fenômenos fundamentais do século XIX foi, é o
que se poderia denominar a assunção da vida pelo poder: se vocês
preferirem, uma tomada de poder sobre o homem enquanto ser vivo,
uma espécie de estatização do biológico ou, pelo menos, uma certa
inclinação que conduz ao que se poderia chamar de estatização do
biológico. (FOUCAULT, 2010; 202)
Percebe-se pela citação acima de Michel Foucault que durante o século XIX
houve uma transmutação política decisiva no Ocidente: a vida, vista como um elemento
fora da política, um elemento natural, transformou-se no principal tema político e no
principal objeto a ser governado e controlado pelas relações de poder. Nas palavras de

3 O presente artigo / ensaio conterá uma grande quantidade de citações recuadas porque trabalharemos com diálogos e
trechos transcritos das falas dos personagens de Mar Adentro. Trazer à luz para o (a) leitor (a) trechos do filme é
importante para justificarmos a “trama biopolítica” criada por Amenábar. As citações, portanto, revezar-se-ão entre
diálogos transcritos do filme e argumentações de Michel Foucault sobre o biopoder.
278
Foucault, houve uma “tomada de poder sobre o homem enquanto ser vivo”, “uma espécie
de estatização do biológico”. Essa tomada da vida pelos poderes Foucault chamou de
biopoder.
Com o advento da biopolítica, o homem ocidental aprendeu pouco a pouco o que
é ser uma espécie viva, ter corpo, condições de existência, saúde individual e coletiva.
Aprendeu que a vida é uma propriedade (é triste escrever isso) compartilhada entre o
humano e as tecnologias modernas de controle e poder.
Voltando ao filme, tão logo as pretensões de morte de Ramon tornaram-se
públicas, um agente importante da sociedade biopolitizada – um padre – tentou dissuadir
Ramon da ideia de morrer. Ele pronunciou-se numa rede de TV aberta com o objetivo de
alcançar a atenção de Ramon:
- Ramon disse que não quer continuar vivendo; mas não sei, eu me
pergunto: será que na realidade o que Ramon está fazendo não seria
reclamar da sociedade, de nós, algum tipo de atenção?
A fala desagrada Ramon que o assiste pela televisão.
- Talvez as pessoas que o cercam, a família, não possam lhe dar o
carinho que necessita. Será que, afinal, o que Ramon está pedindo não
é um pouco mais de amor? - continua o padre. - Eu gostaria muito de
vê-lo; de verdade, eu gostaria de falar com ele e de convencê-lo de que
existem inúmeras razões boas para se continuar vivendo.
(AMENÁBAR, 2005)
O padre, ciente da insistência de Ramon em reivindicar o direito de morte, tratou
de ir visita-lo sem ao menos comunicá-lo. O diálogo entre Ramon e o padre é intenso,
repleto de intensidades poéticas, momentos filosóficos, divergências políticas, como
podemos ver no trecho abaixo:
- [a fala inicia-se cortada] como nós estamos dentro da eternidade, a
vida não nos pertence; então, é claro, nós levamos ao extremo ridículo
a noção burguesa de propriedade privada. – diz o padre, ao tentar
explanar o sentido da vida.
- A igreja sempre foi a primeira a sacramentar a propriedade privada -
interfere Ramon, ironicamente. E continua: - Liberdade para escolher
as minhas crenças; não as suas crenças, tampouco decidir sobre a sua
vida!
O padre faz uma réplica e a fala não aparece. Ramon prossegue:
- Por que a igreja mantem com tanta paixão essa postura de terror para
com a morte? Por que sabe que perderia grande parte dos seus fiéis se
as pessoas aprendessem a perder o medo...
O padre o questiona: - Não lhe parece demagogia falar-se em morte com
dignidade? Por que não diz, em alto e bom tom, que vai se matar e
pronto!

279
Ramon o responde:
- Não deixa de me surpreender que demonstre tanta sensibilidade
quanto à minha vida, levando em conta que a instituição que o senhor
representa aceita, hoje em dia, nada menos que a pena de morte, e
durante anos condenou à fogueira aqueles que não pensavam
corretamente; agora quem está fazendo demagogia, aqui, é você. Mas
deixando o eufemismo... eles teriam feito isso comigo, não é? Me
queimariam vivo... me queimariam por defender minha liberdade.
- Uma liberdade que elimina a vida não é liberdade - retruca o padre.
- E uma vida que elimine a liberdade também não o é! - insiste Ramon,
sem titubear. (AMENÁBAR, 2005)
A normatização e a pressão política exercida sobre a vida de Ramon ilustra a
noção foucaultiana sobre o que é biopoder, o poder sobre a vida, a estatização do
biológico. Ele sente o poder do discurso impessoal, ou melhor, o poder do discurso
normativo que visa controlar a realidade humana como se se tratasse de um único corpo
biológico a ser administrado. O biopoder reduz o humano ao biológico. Mas Ramon não
é qualquer um, ele é o outro, o diferente, uma minoria social. O outro que a biopolítica
não enxerga, e por isso ele resiste ao controle político da vida.
Do poder soberano ao biopoder
Segundo Foucault (1997) um fator determinante para que a biopolítica se
constituísse como tecnologia de poder foi a acumulação de indivíduos na sociedade, isto
é, o surgimento da população. A expansão demográfica na Europa, em especial no século
XVIII, levou a uma ampla produção teórica sobre novas artes de governo, no qual a
biopolítica se apresenta como uma delas:
O curso deste ano [O nascimento da biopolítica] foi finalmente
dedicado, em sua totalidade, ao que devia constituir apenas a
introdução. O tema escolhido foi, portanto, a “biopolítica”: entendia por
biopolítica a maneira pela qual se tentou, desde o século XVIII,
racionalizar os problemas propostos à prática governamental, pelos
fenômenos próprios a um conjunto de seres vivos constituídos em
população: saúde, higiene, natalidade, raças... Sabe-se o lugar crescente
que esses problemas ocuparam, desde o século XIX, e as questões
políticas e econômicas em que eles se constituíram até os dias de hoje.
(FOUCAULT, 1997; 89)
A biopolítica surge, portanto, como uma tecnologia de governo destinada à
população, como já adiantamos rapidamente num momento anterior. E o surgimento da
população enquanto fenômeno político é algo recente, data da modernidade ocidental. O
biopoder é moderno, uma tecnologia de poder criada recentemente pela cultura política
ocidental e, portanto, algo a que devemos nos ater hoje. A filosofia política
280
contemporânea, por exemplo, encontra-se às voltas e atenta para a questão do biopoder.
Diversos filósofos de nosso tempo discutem a questão do biopoder: Giorgio Agamben,
Antonio Negri, Michael Hardt, Paul Beatriz Preciado, Paul Rabinow, Roberto Esposito,
dentre outros – cada qual, claro, seguindo seus propósitos de pesquisa particulares, mas
todos refletindo sobre a relação decisiva entre política, vida e morte.
Uma boa maneira de compreender o conceito de biopoder em Foucault é
compará-lo com o poder soberano, esta modalidade de poder pré-moderno, pré-
liberalismo político. De certo modo, o biopoder – o poder sobre a vida – nasce para resistir
e contrapor o poder soberano – o poder sobre a morte.
Em termos históricos o poder soberano coincide com as monarquias absolutistas,
com o mercantilismo, com a passagem do mundo feudal para o mundo moderno. O poder
soberano é um poder sobre o território. Dentro dos limites de um território – vale lembrar
que a consolidação das nacionalidades europeias aconteceu nesse período histórico -
haveria a existência de um ser soberano, um rei soberano, que detêm poder total sobre
aquele território. Nada poderia afrontar a soberania do rei. Caso alguém ousasse
transgredir uma norma ou resistir ao comando do rei, tornar-se-ia legítimo para o poder
soberano dispor da vida do súdito rebelde. Por isso que Foucault chamou o poder
soberano de “poder de morte”, pois tratasse de um poder capaz de tirar a vida, de submeter
o corpo à morte. Nas palavras de Foucault (2010; 207): “A soberania fazia morrer e
deixava viver. E eis que agora aparece um poder [o biopoder] que eu chamaria de
regulamentação e que consiste, ao contrário, em fazer viver e em deixar morrer”. Foucault
começou o trecho citado alegando que o poder soberano é um poder que fazia morrer e
deixava viver. O biopoder inverteu essa lógica para o fazer viver e deixar morrer. No caso
de Ramon, de Mar Adentro, o Estado atuou no sentido biopolítico do deixar morrer: não
concedeu o direito de morte a ele, abandonou seu corpo à morte, uma morte lenta, uma
morte sofrida.
A morte dos súditos rebeldes pelo poder soberano dar-se-ia em praça pública
para servir de exemplo para o restante da população. Havia uma ritualização da morte. O
súdito teria direito a fazer um último pedido ao soberano, teria direito de ver a sua família
pela última vez. Tratava-se, pois, de um rito de passagem do mundo material para o

281
mundo espiritual, tendo em vista que o poder soberano estava atrelado a uma cosmovisão
de cunho cristã oriunda do período medieval e da cristandade.
O bopoder, o poder sobre a vida, por sua vez, nasce para contrapor o poder sobre
a morte, o poder soberano. Em termos históricos o biopoder coincide com o liberalismo,
que traz em seu escopo antropológico a ideia de que o homem possui uma dignidade
natural a ser respeitada pelo contrato social, a ideia de que o homem possui uma natureza
universal, possui direitos universais que precisam ser acatados e respeitados pelo Estado.
A proclamação dos Direitos do Homem na Revolução Francesa de 1789 é um documento
ilustrativo dessa concepção liberal de homem. A citação abaixo de Foucault deixa claro
que o biopoder nasceu e se desenvolveu dentro dos marcos históricos do liberalismo
político e econômico:
Pareceu-me que não se podia dissociar esses problemas do quadro de
racionalidade política no interior do qual surgiram e adquiriram sua
acuidade. Ou seja, o “liberalismo”, já que é em relação a ele que se
constituíram como um desafio. Num sistema preocupado com o
respeito aos sujeitos de direito e à liberdade de iniciativa dos indivíduos,
como será que o fenômeno “população”, com seus efeitos e seus
problemas específicos, pode ser levado em conta? Em nome de que e
seguindo quais regras é possível geri-lo? (FOUCAULT, 1997; 89)
O Estado e as relações de poder, portanto, se depararam com esse novo
fenômeno: a dignidade da vida humana. O Estado, os poderes, já não podiam mais dispor
da vida dos homens. Os poderes precisaram se transmutar, inserir a vida em seus cálculos
estratégicos, governar a vida e não exercer a morte. Daí nasce o biopoder, segundo a
perspectiva histórico-filosófica de Foucault.
Durante a vigência do poder soberano, o rei dispunha da vida de seus súditos
rebeldes ou transgressores. Com o advento do biopoder, o Estado Moderno passou a
prevenir as más condutas com o estabelecimento de normas institucionais, controlando a
vida e o comportamento individual e coletivo. O fato é que os poderes se voltaram para a
vida. Estimular a vida, prolonga-la, controla-la, governa-la, eis no que consiste o
biopoder.
Ramon não conseguiu exercer o direito de morte porque a sua vida
biologicamente considerada era um elemento importante para o funcionamento das
instituições públicas, em resumo, para o Estado. O Estado, atuando sob a lógica
biopolítica do liberalismo, encarregou-se da vida da população e, por conseguinte, da vida
282
biológica de Ramon. A vida de Ramon pertence também ao Estado e aos poderes. E sem
o aval político-jurídico do Estado, Ramon não pode dispor de sua vida.
Produção de subjetividades docilizadas
Como já esclarecemos em demasia nas linhas acima, o biopoder é um poder
sobre a vida. Não se trata, em definitivo, de um poder bélico, que reprime, que agride a
vida da população. O objetivo do biopoder é o de governar a população, impor ordem,
impor segurança, domesticar a vida. Nesse sentido, o biopoder age sobre a consciência
dos indivíduos, penetra na subjetividade das pessoas, produzem os sujeitos segundo os
seus critérios. Vimos que o biopoder nasceu dentro dos marcos do liberalismo político e
econômico. O biopoder, portanto, visa capturar a vida da população para usá-la, para
adaptá-la às necessidades do liberalismo. É com o liberalismo que o poder se volta para
a vida, e se volta para a vida com o objetivo tático de usá-la ao seu favor e interesse. Com
o liberalismo o poder passou a precisar da vida para o seu funcionamento. Não é inútil
lembrar que o liberalismo resultou no que Marx intitulou de capitalismo, o sistema de
produção e reprodução de Capital concentrado nas mãos de uma determinada classe
social, o que ele chamou de burguesia. O liberalismo quer governar a vida da população
para transformar os corpos em máquinas produtivas, em corpos economicamente úteis,
mas politicamente dóceis, esse é o ponto. O governo da vida visa resultar na produção de
subjetividades docilizadas, modos de existir docilizados.
A citação abaixo escrita por Peter Pál Pelbart demonstra claramente como que
os poderes se encarregaram de capturar as forças da vida (psiquismo, energia,
criatividade, genes) para usá-las, para pô-las para trabalhar a seu próprio proveito:
Duas tendências contrapostas nos obrigam hoje a repensar esse termo
tão antigo e a cada dia mais invocado: a vida. A primeira delas pode ser
formulada como segue: o poder tomou de assalto a vida. Isto é, o poder
penetrou todas as esferas da existência, e as mobilizou, e as pôs para
trabalhar em proveito próprio. Desde os genes, o corpo, a afetividade,
o psiquismo, até a inteligência, a imaginação, a criatividade, tudo isso
foi violado e invadido, mobilizado e colonizado, quando não
diretamente expropriado pelos poderes. Mas, o que são os poderes?
Digamos, para ir rápido, com todos os riscos de simplificação: as
ciências, o capital, o Estado, a mídia. Mas é uma resposta muito geral e
mola, pois de fato assistimos a uma lógica esparramada, dispersa,
infinitesimal, bem mais molecular do que tais instâncias poderiam
sugerir, e a mecanismos muito mais complexos e sutis. Na esteira de
Foucault, é preciso remeter-se aos dispositivos heterogêneos, díspares,
283
locais, bem como aos mecanismos de poder constituintes, e não apenas
repressivos, com seus efeitos simultâneos de individualização e
totalização. (PELBART, 2008; 01)
A citação acima é enfática: o poder tomou de assalto a vida! Desde os genes, o
corpo, a afetividade, o psiquismo, a inteligência, a imaginação e a criatividade foram
postas para trabalhar para os poderes. Em suma, nós, humanos, fomos postos para
trabalhar para os poderes. Nossa subjetividade é produzida pelos poderes.
Essa é uma tese que perpassa transversalmente os trabalhos filosóficos de
Foucault: somos seres históricos, produzidos pela história e pelas relações de poder. O
biopoder nos produz, não está distante de nós. O problema de Foucault é a abordagem
histórica da subjetividade. Em oposição à tradição cartesiana, sua análise do sujeito não
se respalda no problema da substância. O problema do sujeito é o da história da “forma-
sujeito”. E justamente por ser “forma”, o sujeito não pode ser idêntico a si mesmo, porque
toda forma é, ela mesma, múltipla, composta. Com efeito, trata-se de um profundo
ceticismo com relação aos universais antropológicos instaurados pela modernidade
filosófica (o homem como o fundamento de todo o saber possível). Tudo o que nos é
proposto, em nosso saber e em nossa prática, como sendo de caráter universal a respeito
da natureza humana ou de categorias que se podem aplicar ao sujeito, exige ser verificado
e analisado em suas dimensões históricas. Efetuar a história do sujeito ou analisar a
subjetividade em sua historicidade representa o que Foucault denomina de “ontologia
histórica de si mesmo”. Noutros termos, o que Foucault nos ensina é uma recusa radical
sobre quaisquer teorias que se sustentam numa concepção demasiadamente rígida do ser
humano.
Meu objetivo será mostrar-lhes como as práticas sociais podem chegar
a engendrar domínios de saber que não somente fazem aparecer novos
objetos, novos conceitos, novas técnicas, mas também fazem nascer
formas totalmente novas de sujeitos e de sujeitos de conhecimento.
(FOUCAULT, 2002; 8)
No ano de 1984, Foucault (2012, p. 228) escreveu um verbete anônimo intitulado
de Foucault para um dicionário francês explicando o percurso do seu próprio pensamento.
Nele, Foucault afirmou que seu objetivo não era investigar o poder (embora tenha feito
isso com êxito), mas criar uma história sobre os diferentes modos pelos quais os seres
humanos tornam-se sujeitos. Analisar os processos de subjetivação produzidos pela
história de nossa cultura, com especial atenção ao projeto político da modernidade e seus
284
desdobramentos ainda atuais, é o que constitui a natureza de suas pesquisas. Foi num
momento específico das suas pesquisas que a análise dos poderes fez-se urgente para a
sequência de seu projeto filosófico. Entretanto, é necessário cautela ao abordar temas
como “sujeito” ou “subjetividade” em suas obras. Foi ele quem anunciou textualmente a
sentença de “morte do homem” como horizonte do saber na contemporaneidade. Por isso,
ao mesmo tempo em que se dedica a analisar o modo de ser e os processos de formação
da subjetividade, a busca por um sujeito fundamental representa o maior ponto de
distanciamento das suas pretensões filosóficas.
Voltando mais uma vez para o suporte sensível do filme Mar Adentro,
percebemos claramente que todos os que vivem ao redor de Ramon estão produzidos
subjetivamente pela dinâmica do biopoder. Ramon insistentemente pediu que “por amor”
seus amigos e familiares o matassem, já que sozinho ele não conseguia fazer. A família,
muito conservadora e muito católica, recusou os pedidos insistentes de Ramon.
Poderíamos dizer que suas subjetividades estavam postas a trabalho do biopoder, estavam
capturadas pelo escopo moral do biopoder. As subjetividades dos familiares de Ramon
estavam docilizadas pelo biopoder.
O diálogo abaixo entre Ramon e sua amiga Rosa demonstra bem essa capacidade
que o biopoder tem de produzir as subjetividades modernas. Rosa conheceu Ramon após
o acidente, ou seja, conheceu Ramon como um sujeito tetraplégico. Ela insistia para que
Ramon dissuadisse da ideia de morte. Ela estava capturada por completo pela visão de
mundo biopolítica. Ramon é quem escapou dessa captura. Ramon, em toda a trama de
Mar Adentro, é o único sujeito que resistiu à dinâmica governamental do biopoder:
- Olha, Rosa, não venha me pedir para continuar vivendo por sua
causa...
- E se eu dissesse que... você me dá forças para viver, Ramon...
- Você ama seus Filhos?
- Claro!
- Daí você tira suas forças para viver. - Não aumente minha
responsabilidade. Você chama isso de amor? Me prender contra a
minha vontade? - A pessoa que realmente me amar será aquela que me
ajudará a morrer. Isso é me amar... isso é me amar... (AMENÁBAR,
2005)
O grande impedimento de Ramon quanto ao desejo de morte é, para além do
aparato jurídico, para além da lei, a subjetividade docilizada de seus parentes e amigos.
O seu grande inimigo é, também, a norma: as pessoas ao seu redor estão todas
285
normatizadas, incultadas pelo veneno que é a ordem normalizadora, veneno este cedido
voluntariamente pelo biopoder.
Conclusões finais
Pode parecer estranha uma trama que se desenvolve a partir do seguinte suposto:
o desejo de morte, a vontade de morrer de um indivíduo. No entanto, se achamos estranho
o desejo de morte – esse elemento tão imanente à vida – é porque estamos envolvidos de
algum modo com o biopoder. Resistir ao biopoder não é fácil.
Apesar da vontade de morrer, Ramon é a pessoa mais serena, mais sóbria, mais
autêntica e, acreditem se quiser, mais autônoma de Mar Adentro. Ramon nunca se
enveredou pelo ressentimento. Ele era marinheiro. Sofreu o acidente no mar, num
mergulho. E ainda assim manteve boas recordações do mar: toda vez que rememorava
suas experiências era através de saudosismo, da vontade de retornar à experiência perdida.
Como tentamos demonstrar em nossas argumentações, Ramon reivindicou o seu
direito de morte. Mas, por viver num contexto histórico e político marcado pelo governo
da vida, pelo biopoder, seu pedido foi recusado pelo Estado. Incapaz de tirar a própria
vida sozinho, Ramon recorreu à família, que também não respeitou a sua vontade, pois
estavam capturadas subjetivamente e docilizadas pelo mesmo biopoder.
O biopoder não é uma modalidade de poder agressiva, bélica; antes, caracteriza-
se por uma gestão calculista da vida. Por isso é difícil resistir ao biopoder, resistir a um
poder que tomou a vida de assalto.
O filme Mar Adentro, dirigido por Alejandro Amenábar, nos permitiu discutir e
problematizar a temática do biopoder. Tivemos a oportunidade de esclarecer diversos
elementos constituintes do biopoder: o contraponto ao poder soberano, a identificação
com o liberalismo, a produção da subjetividade, dentre outras questões menos evidentes.
O fato é que a partir do suporte sensível de Amenábar conseguimos discutir diversos
elementos do pensamento filosófico de Michel Foucault, um dos principais filósofos
franceses do século XX.
Este trabalho consistiu numa problematização filosófica sobre o biopoder, de
Foucault, a partir do filme de Amenábar. Esperamos, por fim, que a relação entre o
pensamento filosófico e a trama cinematográfica tenha transmitido um significado e um

286
sentido sobre a relação contemporânea entre a política, a vida e a morte. Este foi o nosso
objetivo principal.

Referências bibliográficas:

FOUCAULT, Michel. Resumo dos cursos do Collège de France. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
1997. Tradução de Andrea Daher.
__________. A verdade e as formas jurídicas. Rio de Janeiro: Nau Editora, 2002. Tradução de
Roberto Cabral de Melo Machado e Eduardo Jardim Morais.
__________. Em defesa da sociedade. São Paulo: Martins Fontes, 2010. Tradução de Maria
Ermantina de Almeida Prado Galvão.
__________. Foucault (verbete). In: __. Ditos e escritos V: Ética, sexualidade e política. Rio de
Janeiro: Forense universitária, 2012. Tradução de Elisa Monteiro e Inês Autran Dourado Barbosa.
Organização de Manoel Barros da Motta.
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Disponível em: < http://desarquivo.org/sites/default/files/const-comum_peter-pal-pelbart.pdf >,
acessado em 22 de outubro de 2018.
Filmografia

MAR ADENTRO. Direção: Alejandro Amenábar. Produção: Fox Video Brasil. Espanha / França
/ Itália, 2005, 1 DVD.

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Mulher Maravilha e o protagonismo feminino

Wonder Woman and the feminine protagonism

Matilde Wrublevski1
Yuri Garcia2

Resumo: Em 2017, o universo fictício das HQs teve uma importante incursão no
audiovisual. Mulher Maravilha surge como uma potente marca feminista em um nicho
marcado por uma presença majoritariamente masculina. A chegada de uma protagonista
mulher de tamanha potência se mostra como um marco político na história da indústria.
Não seria a primeira heroína do cinema ou a primeira aparição do personagem (visto que
já existia nos quadrinhos desde a década de 40 e não é sua primeira aparição no
audiovisual). O importante era a mistura de ingredientes que trazia. A estruturação do
universo fílmico da Marvel e da DC no cinema apontava para uma ausência de uma
produção centrada em uma protagonista feminina. Desde uma tradição de “donzelas em
perigo” até as recentes personagens mais fortes que apareciam no cinema, a representação
sempre se limitava a uma aparição como coadjuvante. Patty Jenkins, uma diretora mulher
estava a frente do projeto, unindo o fato da personagem ser um símbolo feminista, o filme
foi uma das maiores bilheterias do ano. Em uma primeira instância, parece ser uma obra
que realça a figura da mulher como uma imagem de força e coragem, contudo, uma
análise mais cuidadosa pode apontar questões que ainda se enquadram em um padrão
cultural de centralização da figura masculina. Esse trabalho procura apontar algumas
dessas questões, sem abandonar a importância do filme. Mulher Maravilha dá início a um
processo importante, apresentando um avanço na batalha das mulheres por um espaço de
representação no cinema, mas uma análise cuidadosa nos mostra que ainda há muito a se
conquistar.
.Palavras-chave: Mulher Maravilha; protagonismo feminino; cinema; HQs.

Abstract: In 2017, the fictional universe of comics had an important foray into the
audiovisual. Wonder Woman emerges as a powerful feminist brand in a niche marked by
a predominantly male presence. The arrival of a female protagonist of such power is
shown as a political landmark in the history of the industry. It is not the first heroine of
cinema or the first appearance of the character (since it already existed in the comic
books from the decade of 40 and it is not her first appearance in the audiovisual). The
importance is the mixture of ingredients she brought. The structuring of the film universe
of Marvel and DC in cinema pointed to an absence of a production centered on a female
protagonist. Since a tradition of "damsels in distress" to the recent stronger characters
appearing on film, the performance was always limited to an appearance as a supporting
actor. Patty Jenkins, a female director was leading the project, joining the fact that the

1 Doutoranda em Teatro pela Universidade do Estado de Santa Catarina. Mestre em "Poéticas da Cena: Teoria e
Crítica"" pelo "Programa de Pós-Graduação em Artes da Cena (PPGAC)" da ECO - UFRJ. Especialista em Gestão e
Produção Cultural pela Fundação Getúlio Vargas. Autora do livro "Modelo de Implantação para um Centro Cultural
Autossustentável" (2017). E-mail: matildewrublevski@hotmail.com.
2 Doutorando com bolsa Faperj Nota 10 em Comnuicação Social pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Mestre

em Comunicação Social pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Possui pós-graduação em Docência do Ensino
Superior pela IAVM-UCAM. Participa do Grupo de Pesquisa “Culturas Tecnológicas: medialidades, materialidades e
temporalidades” coordenado pelo Prof. Dr. Erick Felinto. Autor do livro “Drácula, o vampiro camaleônico” (2014). E-
mail:yurigpk@hotmail.com

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character is a feminist symbol, the film was one of the biggest box office of the year. In a
first instance, it seems to be a work that emphasizes the figure of the woman as an image
of strength and courage, however, a more careful analysis can point to questions that still
fit into a cultural pattern of centralization of the male figure. This work tries to point out
some of these issues, without abandoning the importance of the film. Wonder Woman
begins an important process, presenting a breakthrough in the battle of women for a
space of representation in the cinema, but a careful analysis shows that there is still much
to conquer.
.Key words: Wonder Woman; female protagonism; cinema; comics.

I n trod u ção
Nos últimos anos as pautas do feminismo têm ganhado mais espaço e visibilidade,
muitas camadas desse movimento tem vindo à tona através da percepção e inclusão de
uma diversidade de vozes e subjetividades. Termos como “lugar de fala”,
“representatividade” e “protagonismo feminino” se tornaram demandas que aprofundam
a reflexão sobre a relação entre as posições de poder e as mulheres. Aliado a esta
potencialização do discurso, vemos um cenário de intensa comunicação e atenção sobre
toda informação que circula no mundo, sendo a internet como a ferramenta que nutre a
velocidade do fluxo de notícias e dados. Desse modo, o feminismo ganha força particular
quando se tem um número imenso de mulheres em contato, sob um estado de atenção e
com a possibilidade de se posicionar publicamente. Com frequência é possível ver críticas
sobre filmes, comerciais, falas de pessoas públicas, entre outros, difundir-se pelo mundo
em pouco tempo. Vemos então, que, entre as pautas demandadas, a visibilidade e voz da
figura feminina é fortemente reforçada.
No entanto, estamos em um período em que o olhar crítico está extremamente
aguçado. Para a representação de um mulher é preciso haja vozes de mulheres no processo
de criação, é preciso pensar no modo como essa representação é concebida, quais
estereótipos ela aciona, entre outras questões. O caso da personagem da Mulher
Maravilha não foge à regra, pois, de fato ela é uma imagem de força, mas que também
possui suas contradições. Ela tem a mais longa publicação entre as super-heróis mulheres,
compondo o “big three” da empresa DC de quadrinho, juntamente com Batman e Super-
homem. Antes do filme lançado em 2017 sua última protagonização foi em 1974,
enquanto os outros dois personagens foram explorados em um grande número de filmes
nas últimas décadas. Então, vemos que o universo dos super-heróis ganhou destaque nos
últimos anos com suas produções cinematográfica, rendendo um valor alto em bilheterias
para a indústria.

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Quando o filme da Mulher Maravilha foi lançado, na sua divulgação houve um
grande apelo para o público feminino, sendo este, o primeiro filme de herói protagonizado
e dirigido por mulheres. De fato, se trata de um marco e uma grande conquista. Entre a
pequena quantidade de filmes sobre super-heróis mulheres, cada nova produção é uma
conquista, pois elas projetam imagens de força, inteligência e autonomia. Além de ter
uma mulher como diretora, isto é, ocupando o que seria o posto mais alto na categorização
dos profissionais de cinema, visto que o número de diretoras premiadas ou conhecidas é
consideravelmente inferior ao de diretores.
Contudo, um olhar cuidadoso sobre esse cenário se faz indispensável, pois os
filmes de super-heróis estão inseridos em uma condição comercial, com altas quantias de
investimento e visando uma bilheteria lucrativa. Quando um movimento como o
feminismo está aliado a uma iniciativa de mercado é preciso investigar se, de fato, há um
tensionamento da ordem vigente e um deslocamento das posições de poder. Para pensar
essas questões analisaremos a relação entre o roteiro e a diretora Patty Jenkins.
O filme de Patty Jenkins faz algumas alterações da história original, retirando um
pouco da ingenuidade e acrescentando algumas alterações que foram feitas ao longo dos
anos nas HQs e outras feitas pelos próprios roteiristas. No entanto, a diretora consegue
captar a essência da personagem e trabalha de forma brilhante questões essencias para as
mulheres em um roteiro escrito por homens – Zack Snyder, Allan Heinberg e Jason Fuchs
– que não possui o mesmo olhar.
A Mulher Maravilha está longe de ser um símbolo feminsita tão forte como
costuma ser creditado e o filme de 2017, apesar de ser um marco extremamente
importante em uma constante batalha pelo maior protagonismo feminino no audiovisual
– tanto entre os personagens quanto entre os realizadores – ainda reflete práticas
encontradas nas tessituras de uma indústira audiovisual machista.
Patty Jenkins realmente desenvolveu um trabalho significativo diante desse
cenário, contudo, o maior poder encontrado em Mulher Maravilha ainda é o dos homens
detentores da produção, algo que é refletido no filme. Procuramos evidenciar algumas
dessas questões, sem, no entanto, esquecer a importância do filme em um percurso de
igualdade que ainda ocorre com dificuldade. O olhar da diretora, nesse caso, é essencial
para trazer camadas de sentido importantes e dialogar com um modo de representação do
feminino que não era alcançado no roteiro. Assim como o movimento feminsta está
batalhando por seus direitos e procurando seus espaços, a presença e o trabalho de Patty

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Jenkins mostram que a batalha da Mulher Maravilha está tanto nas telas como por trás
delas.

A personagem como símbolo feminino


A Mulher Maravilha foi criada na chamada “Era de Ouro” dos quadrinhos,
durante a Segunda Guerra Mundial por William Moulton Marston. Sob o pseudônimo
Charles Moulton, a verdadeira identidade do criador de Mulher Maravilha foi revelada
apenas em 2014, pela jornalista e pesquisadora Jil Lepore no livro The Secret History of
Wonder Woman (2014).
Marston era uma psicólogo, professor e pesquisador, responsável pela criação de
um protótipo que daria origem ao polígrafo (conhecido vulgarmente como “detector de
mentiras”). Vivia em um relacionamento a três com sua esposa Elizabeth Holloway
Marston e Olive Byrne. Elizabeth era uma brilhante advogada e psicóloga, que enfrentava
dificuldades de posicionamento profissional por ser mulher e é responsável pelo
desenvolvimento da medida de pressão sanguínea sistólica, essencial para o
desnvolvimento do protótipo de Marston. Olive Byrne foi aluna e assitente de Marston
na universidade, e era filha de Ethel Byrne e sobrinha de Margaret Sanger, importantes
figuras do feminismo.
Marston acreditava em uma superioridade da mulher sobre o homem e projetava
que, em 100 anos, a sociedade estaria sendo regida por mulheres. Em 1940, Olive Byrne
(sob o pseudônimo Olive Richard) publica uma entrevista intitulada “Don't Laugh at the
Comics", com William Marston destacando o “grande potencial educativo” do meio. A
entrevista faz com que Marston seja contratado como consultor da National Periodicale
da All-American Publications, que mais tarde se transformariam na DC Comics. Marston
decidiu criar um super-herói similar ao Superman, mas que, promovesse uma revolução
no pensamento trazendo amor ao invés de luta. Ao apresentar sua ideia a Elizabeth, ela
sugeriu que seu personagem fosse uma mulher. Assim, a Mulher Maravilha é uma criação
conjunta entre os três, no entanto, com Marston levando o crédito.
Marston, era, de fato, o principal criador da persoangem, apesar das importantes
colaborações de Elizabeth e Olive. Todavia, a inspiração de sua criação eram essas duas
mulheres, o que fica claro quando vemos os braceletes que Olive usava e que acabram se
transformando em uma importante arma da Mulher Maravilha e toda trajetória feminsita
e batalhadora de sua esposa. A Mulher Maravilha era uma retrato das mulheres da vida
de Marston, que ele admirava e amava. Mesmo com a ótica progressista de Marston, seu

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olhar ainda é o de um homem. A importante colaboração e inspiração de Elizabeth e Olive
são os toques essenciais para trazerem uma perspectiva um pouco mais feminina a
personagem que, apesar de todas as considerações, ainda foi criada e desenvolvida por
um homem e que passou todos os seus anos sendo escrita por uma esmagadora maioria
de homens.
A personagem se trata de uma mulher forte e guerreira que prega justiça e
igualdade. Não procura castigar seus inimigos, e sim fazê-los melhorar. Sua principal
arma: a verdade! Assim, surge mais do que uma personagem de histórias em quadrinhos,
assim surge um ícone, uma marca, um ideal. A Mulher Maravilha é um símbolo feminino
que, assim como todas as mulheres, batalha por igualdade em um mundo machista.
Na narrativa da personagem, Diana de Themyscira (lugar também conhecido
como Ilha Paraíso), veio ao mundo como uma estátua de barro, criada por Hipólita, rainha
das amazonas. Apaixonada por sua obra e, querendo ter uma filha, a rainha pediu aos
deuses que dessem vida a figura e foi atendida por Zeus. Foi presenteada com grande
sabedoria, presente da Deusa Atena; força, do Deus Deméter; velocidade de Hermes;
beleza de Afrodite; capacidade de cura acelerada e compreensão das feras de Ártemis e
Apolo; imunidade ao fogo, seus braceletes dourados e um laço mágico de Hefesto;
desterza no nado de Poseidon e a herança de semi-deusa de Zeus. Foi criada com as
amazonas na Ilha Paraíso, treinada para ser uma grande guerreira, em um lugar onde não
havia homem algum.
Steve Trevor, um piloto estadunidense da Força Aérea sofre um acidente e seu
avião cai na Ilha Paraíso, e é salvo por Diana. A rainha Hipólita decretou um torneio entre
as amazonas para que a ganhadora levasse o capitão de volta ao seu lar em segurança e
fosse a representante das amazonas, lutando por justiça no mundo dos homens. A
princesa, mesmo proibída de participar, se disfarça e ganha a competição. Após revelar
sua identidade, Hipólita permite a Diana que assumisse a função e a presenteia com um
uniforme feito pela própria rainha.
A personagem de Moulton é um marco de representação para as mulheres pelo
simples fato de sua existência. Em um cenário de personagens predominantemente
masculinos, criar uma super-herói mulher é um passo muito importante. Atualmente ela
é uma das personagens mais estudadas e com a maior publicação. Na sua história vemos
que se trata de uma mulher independente, que prioriza sua missão antes de qualquer
envolvimento romântico. Sua identidade secreta, isto é, seu alter ego, Diana Prince é
utilizada para se disfarçar entre a multidão e não ser reconhecida, assim, se tornando uma

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interpretação ou espelho do que seria a mulher de sua época. O que observamos é o retrato
de uma mulher que batalha com a incapacidade de ser auto-suficiente, possuindo
trabalhos de secretária, muito comuns as mulheres na época. Essa relação pode ser
encarada como uma própria crítica da Mulher Maravilha as mulheres que viviam no seu
contexto histórico e como herói ela enfatiza a potência que essas mesmas mulheres
possuíam (FRETHEIM, 2017, p. 11).
A figura da Mulher Maravilha é complexa, possuindo assim muitas contradições,
principalmente no que diz respeito ao discurso e da voz que existe por trás dela. A
personagem foi criada para estar aliada ao movimento feminista, no entanto a voz por trás
da personagem é de um homem, seu criador, William Marston. Todo o modo como ela é
concebida provém de um ponto de vista masculino da primeira metade o século XX. A
intenção era criar “um personagem feminino com toda a força do Superman e com todo
o fascínio de uma boa e linda mulher” (MADRID Apud FRETHEIM, 2017, p. 16)3. O
embate da representação da super-herói mulher é uma questão muito revisitada, pois
enquanto a Mulher Maravilha possui características nítidas de força feminina, ela também
se confronta com um imaginário de força que é masculino, além da reverberação desse
imaginário na sua imagem.
Os corpos dos super-herói possuem uma tendência a se assemelhar ao de
fisiculturistas, na intenção de representar um super humano que fosse extremamente forte.
Seus músculos podem ser tão exagerados que beiram ou ultrapassam a proporcionalidade
de um corpo real (FRETHEIM, 2017, p. 12). Na tradição das super-heróis mulheres o
corpo deve ser magro, mas com muitas curvas e seios grandes.
É interessante, então, que a parte mais avançada da anatomia feminina
de super-heróis são seus seios, que é uma característica que não apenas
identifica claramente o sujeito como feminino, mas também uma parte
do corpo que não é afetada pela musculatura (FRETHEIM, 2017,
p.13)4.
Em outras palavras, a autora coloca que, de certa forma, a representação de força viria de
uma intensificação de características sexuais femininas. Ambos os corpos, masculinos e
femininos são objetificados, mas de formas diferentes. Esses corpos femininos
reproduzem padrões impossíveis e ditam o modo como as mulheres deveriam ser, além

3 Todas as traduções, quando não apontadas o contrário, serão de nossa autoria: “[...] a feminine character with all the
strength of superman plus all the allure of a good and beautiful woman” (Madrid 35).
4 It is interisting then, that the most enhanced part of female superhero’s anatomy is her breasts, which is a feature that

not only clearly identifies the subject as female, but i salso a parto f the body that is not affected by musculature
(FRETHEIM, 2017, p. 13).

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de fortalecer uma cultura que trata o outro como objeto e como posse, que afeta de modo
diferente a mulher.
No caso específico da Mulher Maravilha sua personagem foi modificada ao longo
das décadas de acordo com cada artista No início ela foi desenhada muito feminina, mas
como uma mulher com proporções realísticas (p.14). Em um evidente processo de
sexualização de sua figura, seu corpo ficou mais musculoso, com coxas mais grossas,
com um rosto mais sedutor, cabelos mais longos, seios maiores e com um traje mais justo
e curto. Nesse trajetória, houve apenas uma mulher desenhando a personagem (Colleen
Doran), todos os outros foram homens. É nítido que a personagem absorve características
femininas dependendo da época em que ela é produzida, mas uma similaridade é que são
visões de feminino reproduzidas por homens.
Se pensarmos a partir Judith Butler e suas ideias sobre atos performativos e
constituição de gênero. Podemos analisar o impacto da representação da Mulher
Maravilha ser criada majoritariamente pelo olhar masculino. Primeiramente Butler separa
as noções de gênero e sexo, para então pontuar que “o gênero não é de modo algum uma
identidade estável ou um local de acção, do qual provêm vários actos; é antes uma
identidade tenuemente constituída no tempo – uma identidade instituída através de uma
repetição estilizada de actos (2011, p. 70)”. O olhar sobre o outro, o “outro sexo”, é
sempre uma comparação ao seu e uma assimilação de diferenças, semelhanças e
expectativas. Desse modo, a concepção de feminino e mulher que constitui as criações
dos desenhistas da Mulher Maravilha são retratos de continuas construções do olhar do
homem sobre como uma super-herói mulher deveria ser. É inevitável que essa
personagem receba críticas de mulheres que não se sentem representadas pois não há uma
perspectiva feminina. A posição de fala e de poder nesse caso, pertence aos homens.

O feminisno comercial
Muitas críticas demonstram que há tensionamentos sobre representação de super-
heróis mulheres diante do público feminino. Existe uma ruptura entre essas imagens e os
padrões que elas reforçam. Se considerarmos que nos encontramos em um cenário sócio
político aonde os holofotes estão fortemente atentos aos detalhes, isto é, estão atentos
sobre a representação de figuras femininas e as vozes que as constroem. Para pensar a
potência dessas vozes, do lugar de fala no filme dirigido por Patty Jenkins precisamos
primeiro entender a importância desse termo. Djamila Ribeiro, através do seu livro, O
que é lugar de fala?, constrói um entendimento por dentro do seu estudo sobre feminismo

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negro e suas particularidades diante do movimento feminista. No entanto, o termo pode
ser utilizado para pensar a representação de questões de diversas minorias. O que a autora
pontua é que a ação de falar não está ligada apenas ao ato de emitir palavras, mas ao fato
de poder existir
É aí que entendemos que é possível falar de lugar de fala a partir do
feminist standpoint: não poder acessar certos espaço, acarreta em não
se ter produções e epistemologia desses grupos nesses espaços; não
poder estar de forma justa nas universidades, meios de comunicação,
política institucional, por exemplo, impossibilita que as vozes dos
indivíduos desses grupos sejam catalogadas, ouvidas. (RIBEIRO, 2017,
p. 64).
Em outras palavras, se existe um grupo onde suas questões não são ouvidas através de
formas legitimadas, essas questões, então, não existem. Elas passam a existir quando um
lugar de poder é tensionado e ocupado por um representação específica.
No filme protagonizado por Gal Gadot, o grande apelo da mídia estava localizado
no ponto de vista feminino, isto é, por possuir uma diretora, a mesma estaria tomando seu
lugar de fala. No entanto, em que ponto a diretora teve realmente poder no projeto? Essa
é a primeira problemática que encontramos, pois, se considerarmos que a empresa visa
primordialmente o lucro, já que estamos tratando de filmes com grandes investimentos,
ela fará o que for necessário para atingir uma grande bilheteria. Nesse caso, fazer um
filme sobre uma super-herói mulher, sem ter nenhuma mulher na equipe principal,
poderia ter os mesmos problemas que a representação da personagem teve nos
quadrinhos. Soma-se a isso o senso crítico mais apurado sobre questões feministas que
convivemos atualmente, o filme correria sérios riscos de sofrer com as críticas e possíveis
boicotes. Com este panorama em vista, a presença de Patty Jenkins se torna muito
necessária, tanto para construir um tom mais preciso ao filme quanto para garantir sua
boa recepção com o público.
Em uma observação inicial, já podemos notar um grande problema. Zack Snyder,
grande detentor do poder de criação do universo da DC é diretor executivo da produção,
assim, um forte lugar de poder parece continuar sendo ocupado por um homem. Todavia,
o que encontramos como mais problemático é o roteiro do filme que, além de não possuir
uma mulher sequer entre os escritores, não foi muito modificado nas telas – o que
indicaria pouco espaço criativo para a diretora. Desse modo, vemos que existem algumas
contradições na ocupação do lugar de poder da direção do filme.
O roteiro é de Allan Heinberg com a história feita em parceria com Zack Snyder
e Jason Fuchs. Não pretendemos apontar os escritores como machistas, mas sim como

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homens, que possuem uma visão masculina do personagem e não estão em completa
sintonia com uma super-herói mulher. O olhar masculino é presente em todo filme, não
permitindo que ele alcance o status realmente prometido.
Mesmo assim, Patty Jenkins é definitiva e consegue dar um olhar feminino ao
filme que não se encontra no roteiro. Em muitos casos, a direção de Patty Jenkins propõe
sutiliezas que fazem enorme diferença no trato da figura feminina. Grande parte não se
baseia em modificações no roteiro de uma forma geral, mas em apresentar uma
perspectiva mais sensível para o assunto, como a famosa cena em que a mulher maravilha
aterrisa no chão e podemos ver um pequeno tremor em sua perna, mostrando um corpo
mais real (dentro do possível, pois a atriz é também uma modelo).
Além disso, Patty Jenkins modifica poucas coisas em algumas falas ou ações que
acabam por afetar a relação entre os personagens, melhorando algumas coisas que vemos
no roteiro original. Dentre elas, podemos apontar para o fato de Steve Trevor (Chris Pine)
ter uma atitude mais sexualizada em relação a Diana, já no filme a diretora deixa o tom
mais leve e constrói a relação de forma mais sutil. O encontro de Etta, secretária de Steve
Trevor e Diana é descrito no roteiro como não muito agradável, deixando uma pequena
impressão de disputa e inveja por parte de Etta. Patty Jenkins modifica isso ao colocar a
atriza Lucy Davis como uma pessoa agradável, divertida e simpática que encontra uma
interessante cumplicidade feminina e uma dose de bom humor na dinâmica entre as duas
mulheres.
O encontro inicial entre Diana e os companheiros de batalha é bem dicotômico.
Diana claramente não gosta de Sameer (Saïd Taghmaoui) e Charlie (Ewen Bremner) e
ambos agem de forma um pouco lasciva em relação a ela. No filme, Patty Jenkins faz
Diana ficar intrigada e confusa, mas um pouco animada. Charlie não tem atitude
sexualizada em relação a Diana – é um personagem mais doce no filme do que no roteiro
– e Sameer fica com os mesmos diálogos mas Patty dá um tom mais leve e de um flerte
mais educado.
A relação entre Steve e Diana é mais interessante no filme, Patty Jenkins
desenvolve um romance aos poucos baseado em interesse mútuo e carinho de um por
outro. Steve parece aceitar rápido a potência de Diana e não disputa força com ela, apenas
estando confuso se o que Diana acerdita pode ser real ou apenas fantasia. No roteiro,
Steve tem uma postura de “macho alfa” em constante dominância e com aproximações
ou sexualizadas ou como homem forte e cavalheiro, e não acredita em Diana, sendo até
desrespeitoso algumas vezes. Ele passa a acreditar mais nela no momento em que se

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apaixona e percebe que ela demonstra interesse por ele – no roteiro descrito até como uma
possível intenção de casar e ter filhos. Depois em sua conversa com Charlie deixa parecer
que talvez acredite na história de Diana, mas no fundo não acredita. Patty Jenkins deixa
essa sensação mais dúbia, parecendo o contrário, que finge não acreditar mas acredita
(pelo menos um pouco). A cena em que se beijam é mais explícita e sexual no roteiro. No
filme é tratada de forma mais sutil e bonita.
Outro ponto importante é uma discussão entre ambos sobre matar o general na
festa. Steve pergunta a Diana sobre a possibilidade de ele não ser Áries, enquanto no
roteiro ele pergunta sobre não existir Áries. Isso mostra a confiança que Steve tem em
Diana no filme é diferente do que no roteiro.
Mas talvez a alteração mais emblemática de Patty Jenkins seja em uma conversa
entre Steve e Diana no início do filme sobre ela ser a pessoa que pode solucionar a guerra.
STEVE : Olha, princesa, eu gosto do seu espírito, e talvez você saiba
algo que eu não sei, mas essa guerra está se alastrando, não há nada que
nós possamos fazer a respeito. Mas podemos tentar chegar até os
homens que podem.
DIANA: Você está olhando para a pessoa que pode.5 (p.38)
No filme, Patty Jenkins, substitui a reposta de Diana por “Eu sou o homem que pode fazer
isso”. A mudança proposta é muito significativa. Primeiro por explicitar um lugar que,
em teoria, não poderia ser ocupado por uma mulher. Esse lugar diz respeito a um salvador,
um herói que pudesse resolver a situação da guerra. Ao mesmo tempo essa alteração
sugere que Diana está enfaticamente ocupando essa posição, independente do gênero que
dão a ela, a posição e a personagem, além disso, que o gênero em si, não seria uma questão
nesse caso, pois o problema é a resolução de uma guerra.
Ao longo de toda narrativa é possível observar também que o personagem de
Steve possui um papel particularmente importante. Diferente de outros filmes de heróis
aonde suas companheiras possuem uma posição substancialmente coadjuvante, na
produção da Mulher Maravilha, Steve irá conduzir Diana em sua jornada. Ele é a pessoa
que possui as informações e os meios para encaminhar a personagem ao seus objetivos.
Desse modo, o protagonismo nesse caso já é diferenciado dos filmes em que o super-
herói é um homem, pois ele parece ser divido entre ambos os personagens. Essa questão
se desdobra através de algumas ações no decorrer da história, por exemplo quando Steve

5 “STEVE : Look, Princess, I like your spirit, and maybe you know something I don’t, but this war is so sprawling,
there’s nothing the two of us can do about it. But we can try to get to the men who can.
DIANA You’re looking at the person who can.” (p.38)

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tem a ideia de fazer a manobra com amigos que então auxiliaria a Diana a destruir os
atiradores em cima de uma torre que estavam dizimando um vilarejo.
Para analisar melhor a problemática do protagonismo divido entre os personagens
podemos observar as cenas finais do filme. A batalha final com o vilão Áries é vencida
por Diana, porém havia ainda o problema das bombas que estavam em um avião e seriam
utilizadas na guerra, prejudicando muitos inocentes. Veja, a questão da guerra e suas
consequências no mundo não são resolvidas pelas mãos da Mulher Maravilha, pois
mesma derrotando o Deus Áries , essa ação em si não faz com que a guerra acabe, a
personagem descobre que se trata de uma questão mais complexa que habita os homens.
Desse modo, é Steve o responsável por sacrificar sua vida detonando o avião cheio de
bombas e salvando toda uma população de inocentes. Diante dessa conjuntura, quem
realmente salvou o dia? O sacrifício do herói que tão costumeiramente vemos nos filmes
não é totalmente exercido pelo o que seria a super-herói dessa história. Quantas
companheiras de super-heróis vemos com uma posição tão fundamental, como a Steve,
em outros filmes? Assim, Diana parece ter ficado mais responsável pela parte mítica que
envolvia o combate ao Deus da guerra e Steve pela parte mais concreta que envolvia
questões relacionadas à guerra.

Considerações finais
O filme da Mulher Maravilha é sem dúvida um marco importante em diversas
instâncias. Na representação de mulheres como super-heróis, em sua imagem e pela
presença da diretora Patty Jenkins ocupando uma das posições mais importantes na
produção. Esse trabalho possui diversas contradições, mas é uma conquista para o público
feminino. Ele nos mostra que é preciso estar sempre atento e crítico ao cenário que nos é
mostrado. Nesse caso, por exemplo, após uma pesquisa mais minuciosa percebemos que
tensionar e deslocar um lugar de poder para uma mulher foi interessante até determinado
ponto.
O lugar de fala ocupado pela diretora vai de encontro a uma demanda do público
e consequentemente do mercado. De modo que, ela é concedida para assegurar o sucesso
do filme. Em outras palavras, o protagonismo feminino é permitido até o ponto de
interesse para a indústria cinematográfica. Assim como as reflexões de Judith Butler e
Djamila Ribeiro demonstram que existe diferenças nas construções da ideia de feminino
e masculino e como olhamos para elas e que representatividade, por meio do lugar de
fala, traz a tona questões acerca de um determinao grupo social, percebemos que nesse

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caso, onde havia várias roteiristas homens e uma diretora mulher, que a presença e as
contribuições de Patty Jenkins foram essenciais para a construção de um representação
que trouxesse uma subjetividade diferenciada.
Portanto, através desse estudo obsrvamos que há uma uma grande semelhança
entre o tensionameento causado pelo protagonismo da Mulher Maravilha no filme de
2017 e o de Patty Jenkins ocupando a posição de diretora dessa produção. Em ambos os
casos suas posições como protagonistas são divididas com figuras masculinas, assim,
compreendemos que uma mulher ocupar uma posição central, seja na ficção ou não, se
trata de um processo a ser continuamente conquistado. Em suma, esse lugar de fala
necessita se construido além do seu título, mas nas suas particulariades e relações.

Referências bibliográficas
BUTLER, Judith. Actos performativos e constituição de género. Um ensaio sobre fenomenologia
e teoria feminista. IN: Género, Cultura Visual e Performance. Organização Ana Gabriela
Macedo e Francesca Rayner. Edições Húmus, 2011.

FRETHEIM, Ingrid M. Fantastic Feminism: Female Characters in Superhero Comic Books.


Oslo: University of Oslo, 2017.

LEPORE, Jill. The Secret History of Wonder Woman. New York: Knopf, 2014.

RIBEIRO, Djamila. O que é lugar de fala? Belo Horizonte: Letramento: Justificando, 2017.

SNYDER, Zack; HEINBERG, Allan; FUCHS, Jason. Wonder Woman (Script). Burbank,
California: Warner Bros. Pictures Inc., 2017.

299
SÍMBOLOS, ARQUÉTIPOS E REGIME DE IMAGENS DA SÉRIE

"SUPERMAX" PELAS PERSPECTIVAS DE DURAND, CAMPBELL E

VOGLER

SYMBOLS, ARCHETYPES AND IMAGE SCHEME OF THE "SUPERMAX"

SERIES BY THE PERSPECTIVES OF DURAND, CAMPBELL AND VOGLER

Marcio Tadeu dos Santos

Resumo: A partir das perspectivas propostas pelas obras de Gilbert Durand para a
teoria do imaginário, de Joseph Campbell para os estudos dos arquétipos mitológicos
nas narrativas e de Christopher Vogler para o desenvolvimento de estruturas narrativas
míticas como ferramenta de criação para o desenvolvimento de novas histórias, o
presente artigo analisa símbolos, arquétipos e o regime de imagens presentes na série
"Supermax", da Rede Globo, em ambas as versões produzidas, para o Brasil em 2016 e
para os países de língua espanhola, em 2017, buscando semelhanças e diferenças no
regime de imagens e nos arquétipos encontrados para cada personagem das narrativas
propostas.

Palavras-chave: #supermax #série #arquétipos #símbolos #imaginário

Abstract: The present article analyzes the symbols, archetypes and the image scheme
from the perspectives of Gilbert Durand for the theory of the imaginary, Joseph
Campbell's studies of mythological archetypes and Christopher Vogler's proposal for
mythical narrative structures presented in both brazilian and the spanish-speaking
versions of the "Supermax" series, seeking similarities and differences in the regime of
images and archetypes found for each character in the proposed narratives.

Key words: #supermax #series #archetypes #symbols #imaginary


_________________________
Marcio Tadeu é roteirista pós-graduado pela FAAP, jornalista formado pela Universidade Santa Cecília e aluno
especial dos programas de pós-graduação da ECA-USP. Especialista em criação, pesquisa, desenvolvimento e roteiro
de projetos audiovisuais, já escreveu mais de 300 roteiros, entre programas de TV, telenovelas, séries, reality-shows,
filmes, entre outros. Portfólio: www.marciotadeu.com.br E-mail: marcio-tadeu@uol.com.br

Imaginário, Durand, arquétipos e Campbell

Esse artigo tem como objetivo principal identificar elementos do trajeto


antropológico proposto por Gilbert Durand em sua contribuição para a teoria do
imaginário, bem como identificar símbolos e arquétipos definidos a partir da obra de

300
Joseph Campbell e Christopher Vogler para o estudo das narrativas mitológicas,
aplicados a uma narrativa audiovisual contemporânea.
Durand faz um estudo detalhado da produção cultural da humanidade, com
ênfase no coletivo de imagens que advêm das narrativas mitológicas clássicas, além de
correntes religiosas, contribuições artísticas e literárias, e estabelece o que o autor
chama de trajeto antropológico, uma categorização de imagens, que são transformadas
em símbolos e por sua vez estruturadas como arquétipos. Tal categorização é associada
a gestos e reflexos instintivos do gênero humano, que buscam a criação de um
imagético com objetivo definido - negar, refutar, superar a ideia de morte, a angústia
gerada a partir da consciência de que tudo acaba, morre, chega ao fim. Essa busca
imagética se dá por meio de uma lógica de combate à inevitabilidade da morte, numa
busca de inversão de significados - do medo da morte para para algo mais reconfortante,
menos ameaçador o fatalístico, que permite ao homem seguir.
Essas atitudes imaginativas resultam na percepção, produção e
reprodução de símbolos, imagens, mitos e arquétipos pelo ser humano.
Esse conjunto de elementos simbólicos formaria o “imaginário”, cuja
principal função seria levar o homem a um equilíbrio biopsicossocial
diante da percepção da temporalidade e, consequentemente, da finitude.
(...) Na perspectiva de Durand, os gestos e reflexos dominantes:
postural, copulativo e digestivo estão diretamente relacionados às
estruturas presentes nas atitudes imaginativas do ser humano, e suas
forças atuam em vários níveis de formação dos símbolos. O autor
denominou as estruturas do imaginário de heróicas ou esquizomorfas -
relacionadas ao gesto postural - dramáticas ou sintéticas - relacionadas
ao gesto copulativo - e místicas ou antifrásicas - relacionadas ao reflexo
digestivo. (ANAZ, AGUIAR, LEMOS, FREIRE, COSTA, p. 6-7,
2014).

Para Durand (2002), o imaginário é resultado de atitudes imaginativas, que


emergem desse trajeto antropológico, baseado principalmente no conceito de arquétipo
de Jung1 e nos estudos sobre os reflexos ou gestos inatos dominantes do ser humano -
postural, digestivo e copulativo. Ele classifica as estruturas e sistemas que compõem o
trajeto antropológico em dois regimes de imagens - o regime diurno - que representa as
estruturas heróicas e os esquemas de ascensão e separação - derrotar a morte e o tempo
pela lógica do combate - luz versus trevas; céu versus inferno; herói versus monstro.

1
Em O Homem e seus Símbolos, Carl Gustav Jung (2008) define os arquétipos como conjuntos de imagens
primordiais originadas de uma repetição progressiva de uma mesma experiência durante muitas gerações,
armazenadas no inconsciente coletivo, refletindo-se (projetando-se) em diversos aspectos da vida humana, como
sonhos e narrativas. Ele explica que "no concernente aos conteúdos do inconsciente coletivo, estamos tratando de
tipos arcaicos - ou melhor - primordiais, isto é, de imagens universais que existiram desde os tempos mais remotos"

301
Remete, nas narrativas, às jornadas heróicas e de purificação, aos símbolos de potência
e diluição de subida em direção à luz e ao sol, de elevação e pureza e de confronto e
separação.
O segundo regime - o noturno - está relacionado a dois grupos de esquemas de
imagens - a estrutura mística, que representa os arquétipos e símbolos da queda e do
acocoramento, conectados ao gesto digestivo que busca atenuar a morte, o tempo regido
pela lógica do equilíbrio; e a estrutura sintética ou dramática - o esquema cíclico
conectado ao gesto copulativo, regido pela integração das lógicas heróica (diurna) e
mística (noturna). São exemplos de arquétipos e símbolos noturnos as representações
simbólicas do fogo e da chama, a roda, a cruz, a árvore, o sacrifício, a criança, a mãe, o
túmulo, entre muitos outros. A contribuição de Campbell (1989) vem por meio de seus
estudos sobre a mitologia universal, em que ele identifica os arquétipos clássicos das
muitas narrativas mitológicas, analisando as semelhanças entre diferentes mitologias e
identificando as sequenciais etapas da aventura do principal arquétipo mitológico - o
herói2, bem como suas transformações.
Baseado na obra de Campbell, Christopher Vogler (2015) trabalha na utilização
das estruturas míticas identificadas para contribuir pela racionalização dos elementos
narrativos, a fim de criar uma obra-guia que auxilie escritores, roteiristas e contadores
de história em geral a melhor estruturar suas narrativas, a partir das estruturas míticas
propostas por Campbell. Ele não somente simplifica as etapas da jornada do herói3
como faz uma análise dos principais arquétipos mitológicos, com o objetivo de usá-los
nas técnicas de contação de histórias. São eles: o Herói, o Mentor, o Guardião do
Limiar, o Arauto, o Camaleão, o Sombra, o Aliado e o Pícaro.
A partir das definições propostas para as imagens, arquétipos e símbolos
propostos por Durand, Campbell e Vogler, que foram estudados ao longo do curso
"Processos Criativos e Imaginários Audiovisuais", o estudo de caso pretendido a seguir

2
Em O Herói de Mil Faces, Joseph Campbell (p. 57-248, 1989) refaz, a partir de seus estudos de mitologia e
religiões, a trajetória do herói, conceito que é amplamente utilizado na sociedade moderna ao ser aplicado em
diferentes áreas como comunicação, artes, ciências humanas, educação, entre outras. São elementos clássicos da
jornada do herói categorizada por Campbell o chamado da aventura (inicia a partida), a recusa do chamado, o auxílio
sobrenatural, a passagem pelo primeiro limiar, o ventre da baleia, o caminho de provas (a iniciação), o encontro com
a deusa, a mulher como tentação, a sintonia com o pai, a apoteose, a benção última, a recusa do retorno (o retorno), a
fuga mágica, o resgate com auxílio externo, a passagem pelo limiar do retorno, o senhor dos dois mundos, a
liberdade para viver e as chaves.
3
A jornada do herói adaptada por Christopher Vogler como estruturas míticas para escritores: mundo comum,
chamado à aventura, recusa do chamado, encontro com o mentor, a travessia do primeiro limiar; provas, aliados e
inimigos; aproximação da caverna secreta, a provação, recompensa, o caminho de volta, a ressurreição, o retorno com
o elixir (p.47, 2015)

302
é o da série "Supermax" em suas duas versões, a original brasileira e o remake para
países de língua espanhola. O exercício descrito a seguir pretende identificar e comparar
arquétipos, símbolos e regimes de imagens nas duas versões da série, buscando
diferenças e semelhanças entre si.

Supermax - a versão brasileira


Em 2015, a Rede Globo iniciou a produção de uma nova série dramática. Criada
por Fernando Bonassi, João Alvarenga Jr. (que também assina a direção-geral) e Marçal
Aquino, "Supermax" foi o primeiro projeto de ficção da emissora produzido nos moldes
de desenvolvimento típico da criação audiovisual norte-americana, que criou e
aperfeiçoou o modelo da writer’s room, a sala de roteiristas. Até então, o processo
criativo mais habitual empregado pelos roteiristas da emissora até hoje é o modelo
advindo das telenovelas, com uma equipe formada pelo autor e seus colaboradores, não
necessariamente constituindo uma sala de roteiristas, já que o autor cria e escreve boa
parte do projeto audiovisual sozinho, com seus colaboradores entrando somente no
desenvolvimento de cenas e diálogos.
Numa sala de roteiristas, criadores, pesquisadores e colaboradores convivem por
longos períodos, numa rotina de criação e desenvolvimento da história. Foi assim que se
juntaram aos criadores de Supermax os roteiristas Bráulio Mantovani, Juliana Rojas,
Carolina Kotscho, Dennison Ramalho, Raphael Draccon e Raphael Montes, numa busca
da emissora pela inserção na teledramaturgia das narrativas fantásticas (TODOROV, p.
148, 1970), nos gêneros do terror e do suspense.
Supermax tem 12 episódios, com duração variável entre 30 e 46 minutos.
Diferentemente de conceito clássico que se tem de um seriado4 (PALLOTINI, p.45,
1998), Supermax segue um modelo mais contemporâneo, que não se prende à unidade
dramática procedural. Apresentando uma narrativa que se estende ao longo de vários
episódios, não possibilita o entendimento da história a partir do meio (como nas
telenovelas, onde ninguém precisa assistir a todos capítulos para acompanhar a trama) e
obriga o espectador a acompanhar todos os capítulos.

4
Em Dramaturgia de Televisão, Renata Pallottini conceitua o seriado como um conjunto de dramaturgias unitárias,
que possuem unidade dramática em torno de um conceito, mas que não deixam de funcionar com uma narrativa
completa, com início, meio e fim. Trata-se do que convencionou-se chamar de narrativa procedural, o tradicional
episódio da semana.

303
A esse tipo de trama, que valoriza o arco de temporada ou mesmo o formato de
minisséries, porém com fortes característica de cinema, já que a impressão que se tem é
a de que estamos acompanhando um filme dividido em capítulos, em episódios, já vem
se convencionando o emprego do termo "narrativa cinematográfica longa" (KALLAS,
p. 12-19, 2016). Tratam-se de séries com tratamento narrativo e de produção de cinema,
com orçamentos altos e, geralmente, com possibilidade de binge-watching, ou seja,
quando o espectador pode assistir a série como quiser, independentemente da
programação televisiva, pois dispõe de um serviço de streaming digital (Netflix, HBO
GO, Now, Fox Premium, Amazon Primevideo, Hulu, Globo Play, Globosat Play, entre
outros).
Com um público predominante familiar e acostumado aos melodramas, o projeto
de Supermax buscou o público mais jovem, de 18 a 24 anos, cada vez mais consumidor
de séries americanas de ficção científica, terror e suspense. Foi a busca por esse público
mais jovem que fez a Rede Globo abrir onze episódios da temporada de Supermax em
sua plataforma digital de VOD (vídeo-on-demand), Globo Play, além do serviço de
streaming do Now (NET), guardando apenas o último episódio da temporada, que
conclui a série, para a exibição inédita na TV e posterior liberação online.
No elenco principal, a versão brasileira contou com apenas dois nomes mais
conhecidos, Mariana Ximenes e Cléo Pires. Os produtores queriam que o público
reconhecesse nas personagens apenas suas histórias, sem a carga dramática de
intérpretes famosos. A exceção à regra se deu apenas na escalação das duas musas,
como destaco mais à frente. Os demais atores são menos conhecidos do grande público,
mas com experiências diversas no teatro e no cinema - Erom Cordeiro, Maria Clara
Spinelli, Ravel Andrade, Vânia de Brito, Mário César Camargo, Ademir Emboava, Rui
Ricardo Dias, Fabiana Gugli, Bruno Belarmino e Nicolas Trevijano. Outro nome
famoso, o do apresentador de TV Pedro Bial, se destaca no elenco, já que ele faz uma
participação na série como ele mesmo, aparecendo no primeiro episódio (ele é o
apresentador do reality-show) e no último (já morto).
Na trama, doze pessoas que nunca se viram são confinadas numa prisão de
segurança máxima desativada no meio da Floresta Amazônica, para a gravação de um
reality-show de confinamento. O prêmio ao ganhador, ou seja, aquele que vencer os
desafios e provas propostos pela produção do programa e não for eliminado, é de R$2
milhões. Os doze selecionados para participar do programa de TV são bem diferentes

304
entre si - o ex-policial Sérgio, a enfermeira Bruna, o jogador de futebol Artur, o médico
aposentado Timóteo, a socialite Cecília, o jovem rebelde Dante, o lutador de MMA
Luizão, a dona de casa Diana, a psicóloga Sabrina, o assessor político José Augusto, a
esteticista Janette e o padre Nando - mas todos escondem um segredo. Cada um deles
cometeu um crime ou foi acusado e condenado de ter praticado um crime.
Como em todos os reality-shows de confinamento, os personagens são
acompanhados por câmeras de vigilância, 24 horas por dia, e conversam com o
apresentador apenas pelos monitores. No primeiro dia no presídio de segurança
máxima, conhecem as regras do jogo, passam a primeira noite em suas celas individuais
e disputam uma prova de resistência - ficar em pé dentro de uma caixa que mais parece
um elevador, debaixo de um sol escaldante. Aos poucos, depois de horas, os
participantes que não resistem vão deixando a caixa, absolutamente exaustos e
desidratados. Os únicos dois personagens que resistem e seguem na disputa são
justamente os dois heróis da história.
Ao sair da prova, uma das participantes, a socialite Cecília, vê o que parece ser
uma criatura monstruosa por detrás de uma porta de vidro do presídio, mas o desfecho
do episódio é inclusivo, pois pode ter sido apenas um relance, uma miragem causada
pelo calor excessivo da floresta, e ela acaba achando que se enganou.
Logo depois, a partir do segundo episódio, fica claro que os participantes
perdem o contato com a produção do programa. Com o passar dos dias, a comida vai
acabando, eles percebem que estão confinados à própria sorte e têm de lidar com uma
série de acontecimentos macabros e sobrenaturais que começam a acontecer no isolado
presídio - símbolos macabros que surgem nas paredes, vozes, gritos, personagens
começam a enlouquecer. Segue uma luta desesperada pela sobrevivência, que passa pela
descoberta do que está de fato acontecendo no presídio de segurança máxima, o que
aconteceu com a produção do programa e como os personagens farão para sair dali.
Pragas, doenças contagiosas, símbolos sagrados e profanos, cultos religiosos,
sacrifício humano, contaminação por radiação, a luta pela sobrevivência e a jornada de
combate ao mal para superar um obstáculo estão presentes nas narrativa da série.
Partimos para a análise dos personagens, bem como seus símbolos, arquétipos e
regime de imagens.
O primeiro deles é o apresentador do reality-show. Pedro Bial interpreta a si
mesmo, numa espécie de caricatura do que costumava fazer na TV. Trata-se de uma

305
participação - o jornalista aparece apenas no primeiro e no último episódio. Na trama,
Bial representa o arquétipo do Arauto (Hermes/Mercúrio na mitologia greco-romana) -
tem a função dramática de trazer a motivação, oferecer ao herói um desafio e pôr a
história em movimento. O arauto alerta ao herói e ao público que a mudança e a
aventura estão à caminho. Em Supermax, Bial é um personagem predominante do
regime de imagens diurno, pois tenta ordenar o caos ao explicar as regras do jogo.
Personagem do ator Erom Cordeiro, Sérgio é um líder nato, ex-policial militar
que foi afastado de suas funções por suspeita de ter matado uma criança durante uma
operação. Inicialmente, se recusa a acreditar na ameaça sobrenatural que rodeia a prisão.
Por definição, é o protagonista, pois é ele quem, mais movimenta a ação (busca
soluções e respostas), sofre uma transformação (se depara com o sobrenatural) e fecha
o arco dramático (sobrevive à Supermax). O arquétipo mais marcante de Sérgio é o do
herói, que abre uma janela para a história e tem qualidades com as quais o público se
identifica. O personagem pertence ao regime de imagens diurno, pois é um um herói
que assume a dianteira, lidera e busca encontrar respostas, quer achar uma saída da
prisão e termina por enfrentar a grande ameaça oculta.
A atriz Mariana Ximenes interpreta uma das musas de Supermax, a enfermeira
Bruna, que representa o objeto de desejo, de proteção e de intrigas entre os homens.
Disputada, por diferentes razões, por Sérgio e Baal, representa o prêmio, o elixir da
jornada. Ela é uma enfermeira que admite ter fixação pela morte e pratica a eutanásia
em hospitais. É raptada e violentada pelo vilão Baal, que a mantém em cativeiro, num
buraco (queda). Fica grávida do vilão fica entre os últimos personagens a morrer, ao
lado de Sabrina. Além de Musa, outro arquétipo presente na personagem é o da Sombra,
pois Bruna parece esconder algo sério. A narrativa chega a sugerir que a personagem
pode trair seus companheiros. A personagem pertence ao regime de imagens noturno,
com características místicas. Simboliza a mãe, pois seu ventre é disputado por Baal e o
herói (Sérgio) tem que protegê-la.
Outra musa de Supermax, Sabrina, personagem da atriz Cléo Pires, é desejada e
idolatrada pelo anti-herói Artur. Psicóloga sequestrada que desenvolve Síndrome de
Estocolmo pelo seu sequestrador e explode parte do presídio em que ele estava preso, a
personagem demonstra desde o início ter personalidade forte, alfa, parece ser dona de si.
Ao longo da série, no entanto, revela-se fraca e despreparada. Vítima de uma armadilha
de Baal, Sabrina sofre um acidente e tem uma perna amputada. Torna-se dependente

306
dos outros participantes para sobreviver, principalmente de Artur. Protegida, Sabrina
também é das últimas a morrer, junto com Bruna. Além de musa, Sabrina possui
características do arquétipo do Camaleão, devido a transformação que sofre na prisão de
segurança máxima, de segura e independente para insegura e dependente. Sabrina
pertence ao regime noturno sintético, pois sofre a queda, e tenta se reerguer.
Apaixonado por Sabrina, Artur faz de tudo para protegê-la. O personagem do
ator Rui Ricardo Dias é um ex-jogador de futebol milionário, que assalta por diversão
uma loja de conveniência com seus amigos e mata um funcionário. Rivaliza com
Sérgio, disputa a liderança do grupo e é o único personagem da série que concede
alguns alívios cômicos, em poucos momentos. Artur possui características do arquétipo
do Sombra, pois rivaliza o herói clássico, mas possuindo ele mesmo elementos heróicos
que fazem dele um anti-herói, além do Pícaro. Ele também é um personagem do regime
noturno sintético, pois reage às ameaças, se sacrifica por Sabrina (tem atitude heroica
clássica) mas não deixa de rivalizar o herói diurno.
Já o padre Nando é vivido pelo ator Nicolas Trevijano. O religioso foi afastado
ao ser injustamente acusado de pedofilia. É o único personagem comprovadamente
inocente da série. Um homem de fé, que questiona suas crenças ao ser confrontado por
visões sobrenaturais, que alimentam o suspense e terror na série. Sobrevive à Supermax,
mas é transformado pela radiação que o cura da praga desconhecida que assola o
presídio. Nando se torna um novo Baal, afetado pela radiação da caverna escondida na
floresta. Quanto aos arquétipos, Nando é um Herói noturno porque busca respostas e
saídas, mas de maneira pouco ortodoxa, em suas visões. Também é um Aliado valoroso,
ajuda outros personagens, especialmente o protagonista, e ainda possui elementos de
Sombra, pois é atormentado pelas visões que ele esconde dos demais; e Camaleão, pois
questiona sua fé e termina por se transformar fisicamente. O personagem pertence
predominantemente ao regime diurno, pois vive o conflito interno de suas crenças
diante do que está passando - trevas vs luz; céu vs inferno; anjo vs o animal, mas tem
em sua gênese características místicas e sintéticas, ambas do regime noturno.
Outro personagem de natureza mística é Dante, vivido pelo ator Ravel Andrade.
Jovem atormentado e misterioso, com tatuagens simbólicas relacionadas ao oculto pelo
corpo, Dante é misterioso, some e reaparece algumas vezes e conta histórias de índios,
rituais e passagens secretas. Não inspira confiança, tem uma natureza instável. É visto
em companhia do vilão e leva a mensagem ao herói - Baal quer as mulheres para

307
procriar. Dante tem em sua constituição os arquétipos: Sombra, Camaleão e Arauto. É
um personagem do esquema de imagens noturno, com características místicas -
confunde, atrapalha, traz consigo o sobrenatural e a trevas.
Timóteo (Mário César Camargo) é médico reformado do Exército. Homem
reservado, de poucas palavras e de traços autoritários. Foi um torturador à serviço da
Ditadura, mas não assume isso. Não sobrevive à Supermax; Arquétipos: mistura
características do Mentor, que tenta aconselhar ou mesmo orientar outros personagens,
Aliado, que usa seus conhecimentos de medicina para cuidar dos feridos e Sombra, pois
a máscara do médico sábio esconde seu passado de torturas. Personagem
predominantemente sintético, com elementos dos dois regimes (médico/monstro),
(passado/futuro).
Interpretada pela atriz Fabiana Gugli, Diana é uma ex-garota de programa,
soropositiva, assassina o marido por ter sido traída. Seus segredos logo são descobertos,
mas ela é transparente e direta e quase chega até a saída do presídio. Arquétipos:
Sombra e Musa. Diana é desejada por Dante e trava uma batalha psicológica com José
Augusto, quando o desmascara. Personagem do regime noturno sintético, representa a
mulher desejada, mas perigosa, que parte para o ataque quando ameaçada.
Já o inescrupuloso José Augusto (Ademir Emboava) é um lobista ligado a um
senador corrupto, que não sobrevive à praga misteriosa e é logo infectado, virando um
problema para os demais habitantes da Supermax. Arquétipos: mistura características de
Guardião do Limiar (vira, um obstáculo que tem que ser enfrentado, quando fica fora de
si) e Sombra (age nos bastidores, manipula alguns personagens e mente). Personagem
do regime diurno, pois representa um homem que perde sua humanidade e se torna um
animal.
O ator Bruno Belarmino dá vida a um ex-lutador de MMA que vive atormentado
pela culpa - matou um adversário num acesso de fúria, durante uma luta. Luizão se
dedica a domar a raiva e a violência que lhe são características , mas acaba morrendo
cruelmente nas mãos do vilão. Arquétipo: é o Aliado mais fiel de Sergio, representa a
força bruta em pessoa, o parceiro que tomba na batalha e fica para trás. Personagem do
regime noturno sintético, que evita se expor, pois conhece sua força, mas tem certa
iniciativa em ajudar.
Janette (Maria Clara Spinelli) é dona de uma rede de salões de beleza.
Transexual, pretendia vencer o reality Supermax para, com o dinheiro, fazer a operação

308
de mudança de sexo. Desperta a atenção e o desejo de Luizão. No último episódio, é
raptada por Baal e é sacrificada depois que o vilão descobre que ela não pode gerar seus
filhos. Arquétipos: Sombra e Musa. Personagem do regime noturno sintético, pois
representa o arquétipo do andrógino (masculino e feminino num só ser), possui de
forma equilibrada o animus e anima.
Cecília (Vânia de Brito) pertencia a elite carioca. Seu único filho morre de
overdose em seu carro a caminho do hospital. É a primeira contaminada pela peste,
passa por todo um processo de quase morte, febre, delírios, até se tornar uma criatura
perigosa, possuída, fora de controle. É também a primeira a morrer. Arquétipos: Sombra
e Camaleão. Personagem do regime diurno, pois perde sua humanidade e se torna um
monstro.
Por fim, o vilão Baal é vivido pelo ator Márcio Fecher. Está por trás de todas as
ameaças e mortes em Supermax. Sua origem é a verdadeira revelação do mistério da
série. Era um pastor que foi pregar no canteiro de obras do presídio. Infectado pela peste
do mosquito, enlouquece e mata a família. Descobre a gruta que tem o mineral que
irradia a cura, mas que também o transforma num ser asqueroso, bem como as mulheres
que passam a viver com ele - ex-prostitutas do canteiro de obras. Baal sequestra as
mulheres do presídio porque quer gerar filhos, o que as irradiadas não conseguem fazer.
Arquétipos mais presentes no personagem: Sombra, Guardião do Limiar e Camaleão.
Personagem predominantemente do regime noturno sintético, pois representa o híbrido
homem/criatura, que caiu em desgraça, mas também com forte apelo místico.

Tabela 01: arquétipos e regime de imagens dos personagens de Supermax.

ARQUÉTIPOS E REGIME DE IMAGENS

PERSONAGENS DIURNO NOTURNO / SINTÉTICO NOTURNO / MÍSTICO

Bial Arauto

Sérgio Herói

Bruna Musa
Sombra

Sabrina Musa
Camaleão

Artur Herói
Pícaro

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Nando Herói Camaleão Sombra
Aliado

Dante Arauto Sombra


Camaleão

Timóteo Mentor Sombra


Aliado

Diana Musa Sombra

José Augusto Guardião do Limiar


Sombra

Luizão Aliado

Janette Musa Sombra

Cecília Camaleão Sombra

Baal Guardião do Limiar Sombra


Camaleão

O inferno em suas mentes: a versão iberoamericana


Em 2016, Supermax ganhou uma nova versão, voltada para o público de língua
espanhola e produzida pela Rede Globo, em parceria com a Argentina e o diretor Daniel
Burman, que também assina a adaptação. A série foi exibida até o momento em quatro
países: Argentina, Espanha, México e Uruguai.
Muitas mudanças foram feitas na série na nova versão, não somente na
produção, como no elenco e na narrativa, agora rebatizada como "Supermax: O Inferno
em Suas Mentes". No elenco, ao invés de nomes pouco conhecidos, foram escalados
alguns dos maiores nomes do audiovisual latino, como Cecilia Roth e Antonio Birabent.
Na nova versão de Supermax, a trama acontece num presídio de segurança
máxima isolado no meio do deserto de sal na Argentina. Mas as mudanças na
adaptação foram ainda mais radicais e surpreendentes no campo narrativo. Do original
brasileiro, ficaram apenas o conceito do reality-show de confinamento num presídio e
alguns elementos característicos de alguns personagens. Mas a principal mudança
realizada na adaptação de Supermax é de gênero. Toda a ambientação da narrativa no
gênero sobrenatural, de terror e suspense, característicos do roteiro original brasileiro,
foi deixada de lado e descartada. Na nova versão, Supermax agora é um drama de ação
policial, com os personagens em busca de tesouro escondido nas catacumbas da prisão.
Tal mudança, bastante radical, leva a narrativa a um conjunto totalmente diferentes de
símbolos e imagens, não mais relacionados ao regime de imagens do original brasileiro.

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Eis a trama da nova versão de Supermax:
Após longos anos fechada depois de um sangrento motim, uma das
prisões mais antigas e famosas do continente, localizada no meio de um
deserto sem fim, reabre as suas portas abrigar um reality show. A
trama acompanha desafios extremos que devem ser superados para oito
(e não mais doze) participantes. Em total isolamento e sem se
conhecerem, os participantes enfrentam seus próprios infernos pessoais,
onde prevalecem o medo, remorso e obsessão. Quando até o
apresentador do programa de TV é deixado para trás e a transmissão é
interrompida abruptamente, cada um deve lutar por sua sobrevivência.
(Fonte: site Globo Internacional).
O segredo por trás da trama da Supermax é um tesouro escondido em cavernas
localizadas no subterrâneo da prisão, aliado à revelação de que vários personagens que
participam do reality-show na verdade fazem parte de uma conspiração para chegar ao
tesouro escondido. Analisando as novas personagens x, é fácil perceber que vários deles
representam diferentes arquétipos e regimes de imagens não mais relacionados à suas
contrapartes do roteiro original brasileiro.
Orlando é o apresentador do reality-show. Diferentemente de sua versão
brasileira, tem status de protagonista. Após dez anos afastado da TV, está de volta, mas
o que poucos sabem é que ele tem uma aliança com um dos participantes do reality,
para juntos, chegarem ao tesouro escondido. O novo apresentador de Supermax é
portanto, um anti-herói na figura de Herói, com elementos de Sombra, mas num forte
regime de imagens diurno. Também não deixa de ser o Arauto, que explica as regras do
jogo e tem ainda características de Pícaro.
Já Pamela é uma mulher amargurada pela morte prematura do filho Damian. A
personagem tem elementos arquetípicos de dois personagens da versão brasileira, a
Sombra de Cecília, pois ela também matou o próprio filho, e o passado camaleônico de
Diana, pois era uma stripper que se tornou uma respeitável esposa e dona de casa.
Sandro na verdade se chama Francisco, era líder de uma gangue de criminosos
profissionais. Dez anos atrás, estava preso e liderou o motim que terminou em uma
sangrenta repressão. Seu melhor amigo acabou morrendo e Lorna, o amor de sua vida,
desapareceu. Procurado por Augusto, filho do amigo morto, Sandro planeja com ele a
participação no reality-show, apenas para voltar ao presídio e achar o tal tesouro, para
tentar se redimir da culpa que carrega. Diferentemente do protagonista brasileiro, que

311
era policial, o da nova versão é um bandido, mas não deixa de simbolizar o arquétipo do
Herói, apesar de manter características sombrias muito presentes no regime de imagens
noturno sintético.
Cholo é um ex-boxeador e ex-alcoólatra. Seu objetivo é muito claro. Se alia a
Orlando para tentar sobreviver à Supermax. O personagem é bem parecido com sua
versão brasileira (Luizão) e conserva sua essência como Aliado diurno.
Mercúrio é um sobrevivente, que usa suas capacidades para conquistar Lorna.
Vai disputar com Sandro o amor de Lorna e o tesouro escondido na prisão. É um aliado
de Orlando na busca pelo tesouro, por isso faz as vezes de Guardião de Limiar, pois se
coloca como uma obstáculo na jornada de Sandro, com um regime de imagens diurno.
Muriel (Santiago) é um participante enigmático. Adota um nome artístico
feminino e se torna aliado de Anette. Muriel compartilha com sua contraparte na versão
brasileira (Janette) o mitema do Andrógino e também representa a figura da Musa,
mesmo sendo um homem, pois desperta o desejo de Anette. Cumpre seu papel de
Aliado, porém no regime noturno místico, de quem reage às circunstâncias.
Anette é a personagem que menos sofreu alterações do original brasileiro.
Enfermeira acusada de ter praticado a eutanásia e ainda ter se envolvido em esquemas
de corrupção hospitalar, quer verdadeiramente ganhar o prêmio do reality. Simboliza o
arquétipo do Camaleão, com elementos do Sombra, pertencendo a um regime de
imagens noturno sintético.
Antiga amante de Sandro e Mercúrio, Lorna está há vários anos desaparecida,
pois foi sequestrada e mantida em cativeiro nas catacumbas do presídio. O trauma a
transformou numa arremedo de mulher, desconectada do mundo e capaz de vários tipos
de violência. Como Baal na versão brasileira, é uma pessoa que se tornou um animal,
mas que pode se recuperar devidos aos laços afetivos do passado, o que faz com ela seja
ao mesmo tempo Sombra e Musa, representada pelo regime de imagens diurno.
Sunny é brasileira, sedutora e perigosa, com olhar de menina, mas que é
responsável pela morte da irmã. Se alia a Orlando para conseguir o tesouro, traindo os
companheiros de programa. Além de Musa, tem características de Camaleão e Sombra,
bem como sua contraparte brasileira, Dante. Personagem do regime de imagens noturno
sintético.
Rex é o típico garoto rico que tinha tudo o que queria. Filho de um pai
milionário, entra na Supermax a fim de mostrar ao pai do que é capaz, mas sua

312
insegurança e arrogância o transformam na primeira vítima de Lorna. É um personagem
que representa um aspecto da Sombra do próprio pai e pertence ao regime de imagens
noturno místico.
Por fim, El Pardo é a grande Sombra de Supermax, pai de Rex e dono da
emissora que realiza o reality-show. Pretendia sabotar o próprio programa de TV para
faturar. Também vai atrás do tesouro escondido no presídio.

Tabela 02: arquétipos e regime de imagens dos personagens de Supermax (versão


latina).
ARQUÉTIPOS E REGIME DE IMAGENS

PERSONAGENS DIURNO NOTURNO NOTURNO


SINTÉTICO MÍSTICO

Orlando Anti-herói Sombra


Arauto Pícaro

Pamela Camaleão Sombra

Sandro Herói Sombra

Lorna Musa Sombra

Mercúrio Guardião do Limiar


Aliado.

Rex Sombra

Anette Sombra
Camaleão

Muriel Aliado

Cholo Aliado

Sunny Musa Sombra


Camaleão

Engenheiro Sombra

Considerações Finais
Com média de 9,5 pontos no Ibope, Supermax não foi bem recebida pelo
público geral da Rede Globo, o que não surpreende, haja visto que a série buscou um
novo público, mais jovem, com menos do perfil padrão da emissora, como mostram os
dados a seguir:

313
Dados do PNT (Painel Nacional de Televisão), que computa a
audiência em 15 grandes centros urbano, mostram, no entanto,
resultados positivos em nichos específicos de públicos: crescimento de
19% na faixa 12/17 anos, 12% na faixa 18/24 anos e 7% para o público
25/34 anos (fonte: UOL, 16/11/2016).
A exibição em plataformas digitais, porém obtiveram expressivos resultados,
sinalizando uma audiência mais jovem interessada no produto, porém, fora do esquema
tradicional de exibição. A versão latina de Supermax também não fez sucesso esperado,
mas continua em exibição em países de língua espanhola.
Um símbolo é uma imagem com um poder especial que tem
valor para o público. Assim como a matéria é energia altamente
concentrada, um símbolo é um significado altamente concentrado. Na
verdade, é o condensador-expansor mais focado de qualquer técnica de
narração. Sempre crie uma rede de símbolos em que cada símbolo
ajude a definir os outros. Você cria a página de símbolos anexando
símbolos a qualquer ou a todos esses elementos: a história inteira, a
estrutura, os personagens, o tema, o mundo da história, as ações, os
objetos e o diálogo. TRUBY, p. 220-222, 2007 (tradução do autor)5.
Apesar da mudança de cenário, de elenco e de estruturas narrativas, as duas
versões de "Supermax" mantêm o uso de arquétipos para a criação e desenvolvimento
de seus personagens, porém com certa repetição de estereótipos, o que pode ter, de fato,
prejudicado o resultado final da obra. Estereótipos acabam por aproximar personagens,
arcos dramáticos e estruturas narrativas de melodramas mais clássicos, com o gênero
das telenovelas, ou seja, que mantém distância do rigor estrutural das séries advindas do
modelo norte-americano, onde necessariamente a mecânica de repetição de um formato
define melhor o funcionamento de uma série dramática, do que necessariamente a sua
história, a sua trama.
De qualquer maneira, a produção em série dos formatos televisivos seriados no
Brasil cresce a cada ano, principalmente depois do estabelecimento da nova legislação,
que regula o volume de produções nacionais nos canais estrangeiros da TV paga.

5
A symbol is an image with special power that has value to the audience. Just as matter is highly concentrated
energy, a symbol is highly concentrated meaning. In fact, is the most focused condenser-expander of any storytelling
technique. Always create a web of symbols in which each symbols helps define the others. You create the symbol
web by attaching symbols to any or all of these elements: the entire story, the structure, characters, theme, story
world, actions, objects and dialogue.
TRUBY, p. 220-222, 2007.

314
Entender as redes simbólicas (TRUBY, 2007), o regime de imagens empregado
nos processos criativos (DURAND, 2002) e o uso dos arquétipos míticos para a criação
de personagens, arcos dramáticos e estruturas narrativas (VOGLER, 2015) contribui
para a qualificação de autores, criadores e roteiristas, possibilitando o desenvolvimento
de narrativas cada vez mais complexas e originais e a evolução qualitativa e quantitativa
da produção audiovisual de séries.

Referências Bibliográficas
ANAZ, Sílvio. Processo criativo no cinema mainstream na perspectiva da teoria do imaginário.
In: LEÃO, Lucia (Org.). Processos do imaginário. São Paulo: Képos, 2016.

__________, Sílvio. AGUIAR, Graziella; LEMOS, Lúcia; FREIRE, Norma e COSTA,


Edwaldo. Noções do Imaginário: Perspectivas de Bachelard, Durand, Maffesoli e Corbin.
Revista Nexi, v. 03, 2014. PUC-SP.

AQUINO, Marçal; ALVARENGA JR, José; BONASSI, Fernando; Supermax - episódio 1 -


versão definitiva. Roteiro. Rio de Janeiro: Rede Globo, 10/05/2015.

_________. Supermax Internacional - episódio 1 - vale este 2. Roteiro. Rio de Janeiro: Rede
Globo, 09/04/2016.

ARISTÓTELES. A poética clássica. Tradução Jaime Bruna. São Paulo: Cultrix, 2014.

CAMPBELL, Joseph. O herói de mil faces. Tradução de Adail Ubirajara Sobral. São Paulo:
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Tradução de Carlos Felipe Moisés. São Paulo, Palas Athena, 1990.

DURAND, Gilbert. As estruturas antropológicas do imaginário: introdução à arquetipologia


geral. São Paulo: Martins Fontes, 2002.

JUNG, Carl Gustav. O homem e seus símbolos. Concepção e org. de Carl Gustav Jung,
tradução de Maria Lúcia Pinho. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2008.

KALLAS, Christina. Na Sala dos Roteiristas. Tradução de Maria Luiza X. de A. Borges. Rio de
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PODER do mito, O. Joseph Campbell com Bill Moyers. Cultura Marcas e Log On Editora
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SALÓ, Gloria. ¿Qué es eso del formato? Como nace y se desarrolla un programa de televisión.
Barcelona: Gedisa, 2003.

SEVERINO, Antônio Joaquim. Metodologia do trabalho científico - 20a edição. São Paulo,
Cortez, 1996.

315
SUPERMAX. Série de TV - 12 episódios. Rio de Janeiro: Globo Play/Rede Globo, 2016.

TODOROV, Tzvetan. As estruturas narrativas. São Paulo: Perspectiva, 1970.

TRUBY, John. The anatomy of story: 22 steps to becoming a master storyteller. Chapter 7:
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VICTORIA, Luiz Augusto Pereira. Dicionário básico de mitologia: Grécia, Roma, Egito. Rio de
Janeiro: Ediouro, 2000.

VOGLER, Christopher. A jornada do escritor: estrutura mítica para escritores. Tradução de Petê
Rissatti - 3. ed - São Paulo, Aleph, 2015.

WILKINSON, Philip e PHILIP, Neil. Guia ilustrado Zahar: Mitologia. Tradução de Áurea
Akemi. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2008.

316
Da telenovela à websérie: incursões do SBT em transmídia
infantojuvenil

From the “telenovela” (SoapOpera) to the web series: SBT


incursions into transmedia for children and teenagers
João Paulo Hergesel1
Carolina de Oliveira Silva2

Resumo: A telenovela Carinha de Anjo (2016-2018) propõe uma transmidialidade inédita à


emissora, no segmento da dramaturgia, ao não se limitar à comunicação televisiva e se expandir
para as plataformas digitais, por meio do Vlog da Juju (2016-2018). Presente no YouTube, no
Facebook, no Instagram e no Twitter, o produto faz uso da ficção realista – caracterizando,
outrossim, o que se poderia denominar uma websérie – para oferecer conteúdo extra a seu público
infantojuvenil. Ao estabelecer a intermidialidade entre televisão e internet, o SBT registra um
experimento com as extensões narrativas, fazendo com que sua telenovela ganhe ramificações em
diferentes plataformas digitais. Diante dessa realidade, cabe o questionamento: quais são as
potências comunicacionais e as cargas culturais, considerando o narratário pré-adolescente, que
sustentam a narrativa transmídia apresentada? Tem-se como objetivo geral analisar o processo de
transmidialidade narrativa na novela Carinha de Anjo, observando a prática discursiva
manifestada pelo Vlog da Juju. Para isso, faz-se uma contextualização sobre a contribuição do
SBT para a televisão brasileira – e consequentemente para os estudos televisivos – além de
endossar a relevância das análises narratológicas para a Comunicação. As considerações finais
apontam que a relação estabelecida entre a telenovela Carinha de Anjo e a websérie Vlog da Juju
é uma amostra de como as narrativas contemporâneas, sobretudo em linguagem audiovisual, estão
se difundindo de forma aventureira pelas plataformas midiáticas.
Palavras-chave: Audiovisual; Televisão; Narrativas midiáticas; Transmídia; SBT.

Abstract: The telenovela Carinha de Anjo (2016-2018) proposes an unprecedented


transmission to the broadcaster in the dramaturgy segment, by not limiting itself to
television communication and expanding to digital platforms, through Vlog da Juju
(2016-2018). Present on YouTube, Facebook, Instagram and Twitter, the product makes
use of realistic fiction – also featuring what could be called a web series – to offer extra
content to your child and adolescent audience. In establishing the intermidiality between
television and the internet, the SBT registers an experiment with the narrative extensions,
making its telenovela gain ramifications in different digital platforms. Faced with this
reality, it is the question: what are the communicational powers and the cultural burdens,
considering the pre-adolescent narratary, who support the presented transmedia
narrative? The general objective is to analyze the process of narrative transmissibility in
the telenovela Carinha de Anjo, observing the discursive practice manifested by the Vlog

1
Doutorando em Comunicação (UAM), mestre em Comunicação e Cultura (Uniso) e licenciado em Letras (Uniso).
Líder do grupo de estudos em Narrativas Midiáticas Infantis e Juvenis (PPGCC-Uniso). Membro dos grupos de
pesquisa Inovações e Rupturas na Ficção Televisiva Brasileira (UAM) e Narrativas Midiáticas (Uniso). Contato:
jp_hergesel@hotmail.com.
2
Professora de Cinema, Rádio e TV no Senac. Doutoranda em Educação, Arte e História da Cultura (Universidade
Presbiteriana Mackenzie). Mestra em Comunicação (Universidade Anhembi Morumbi). Especialista em História da
Arte (FPA). Bacharela em Rádio e TV (Universidade Anhembi Morumbi). Contato: carol_olsi@yahoo.com.br.

318
of Juju. For this, a contextualization is made on the contribution of SBT to Brazilian
television – and consequently to television studies – besides endorsing the relevance of
narratological analyzes for Communication. The final considerations point out that the
relationship established between the telenovela Carinha de Anjo and the Vlog da Juju
web series is a sample of how contemporary narratives, especially in audiovisual
language, are diffusing in an adventurous way by the media platforms.
Key words: Audiovisual; Television; Media narrativas; Transmedia; SBT.

Registro da fala proferida em apresentação oral

Iniciamos nossa fala agradecendo a três pessoas que foram fundamentais para que
esta pesquisa saísse do ponto de partida. A primeira delas é a Carol (Carolina de Oliveira
Silva), da Universidade Presbiteriana Mackenzie, que aceitou se aventurar nesse universo
das narrativas infantojuvenis e agora assina como coautora deste trabalho. As outras duas
pessoas são o professor Rogério Ferraraz, da Universidade Anhembi Morumbi, orientador
da tese de doutorado sobre o SBT, e a professora Míriam Cristina Carlos Silva, da
Universidade de Sorocaba, orientadora da dissertação de mestrado sobre webséries e atual
supervisora do Grupo de Estudos em Narrativas Midiáticas Infantis e Juvenis, do qual
participamos.

A apresentação desta tarde, por sua vez, reúne um pouco dos conceitos apendidos
no mestrado e revisitados no doutorado, além de representar um avanço nos estudos
pessoais sobre produções midiáticas para crianças e adolescentes. O interesse por esse
tema surgiu da percepção de algumas lacunas na comunidade científica: em primeiro
lugar, a carência de publicações acadêmicas envolvendo o SBT, emissora de televisão
com a segunda maior audiência do Brasil e presente em mais de 90% dos lares; em
seguida, a escassez de pesquisas sobre narrativas infantojuvenis na área de Comunicação,
estando esse tema mais presente em estudos de Educação e Literatura; por fim, a
necessidade de atualizar as análises envolvendo transmídia, visto que o caráter
consuetudinário da convergência entre televisão e internet torna os registros bastante
efêmeros.

Neste trabalho, que nasce de um desdobramento da tese de doutorado A


comunicação televisiva em ritmo de festa: análise narrativa e estilística das produções
do SBT, temos proposto um aprofundamento na relação entre telenovela e websérie, por
meio do Vlog da Juju, programa ficcional derivado de Carinha de Anjo. Trata-se, na
verdade, de uma investigação recente, que ainda não se encontra finalizada e carece de
aconselhamentos e sugestões do pares para que cumpra os objetivos estabelecidos. No

319
entanto, antes de avançarmos nas discussões sobre a extensão narrativa proposta pelo
SBT, vimos como necessária a contextualização dos fatos e dos objetos estudados.

Carinha de Anjo foi uma telenovela produzida pelo SBT e exibida entre 21 de
novembro de 2016 e 06 de junho de 2018, na faixa das 20h30, com roteiro de Leonor
Corrêa e direção geral de Ricardo Mantoanelli. O produto é uma adaptação da novela
mexicana Carita de Ángel (produzida por Nicandro Díaz, entre 2000 e 2001, pela
Televisa, para o Canal de las Estrellas) – que, por sua vez, é uma versão da telenovela
Mundo de juguete (também da Televisa, produzida por Valentín Pimstein, em 1974),
inspirada na obra argentina Papá Corazón (escrita por Abel Santa Cruz e produzida pela
Pol-Ka para o Canal 13 em 1973). Vale lembrar que Carinha de Anjo é a segunda releitura
brasileira, tendo em vista a telenovela Papai Coração, roteirizada por José Castellar, com
direção de Edison Braga e Atílio Riccó, produzida pela TV Tupi em 1976.

De forma resumida, Carinha de Anjo registra o cotidiano de Dulce Maria, de 5


anos, sempre em busca de diversão. Após a morte da mãe em um acidente de asa-delta, o
pai decide matriculá-la em um internato católico apenas para meninas, na fictícia cidade
interiorana Doce Horizonte, devido aos compromissos com o trabalho. O conflito inicial
da narrativa ocorre quando o pai passa a conviver mais tempo com a filha e acaba se
apaixonando por uma das noviças do colégio. A difícil relação entre os compromissos da
religião e os sentimentos amorosos é apenas uma das linhas de enredo da telenovela, que
se propõe a discutir o bullying, o preconceito, a relevância das artes, dentre outros
assuntos contemporâneos e de engajamento social.

Uma das vertentes que mais nos chamou a atenção é a vivida pela personagem
Juliana Almeida, a Juju, adolescente que mantém um canal de vídeos pessoais na internet.
Além dos debates envolvendo tecnologia (devido ao fato de ela ser uma influenciadora
digital), seu núcleo ainda abre discussões para a importância da adoção (seu irmão mais
novo, Emílio, é adotado) e para a desigualdade social (seu namorado, Zeca, é negro, pobre
e de cultura caipira). Para esta análise, entretanto, o assunto que mais despertou a atenção
foi o desdobramento que a telenovela propõe ao disponibilizar os vídeos de Juju para
além da plataforma televisiva, por meio de um canal no YouTube.

O Vlog da Juju, ao longo dos meses de novela, angariou mais de 1,5 milhão de
inscritos, lançou mais de 100 vídeos e ultrapassou a marca de 40 milhões de visualizações,
além de interagir também pelo Instagram, pelo Twitter e pelo Facebook, por meio dos
perfis criados com o usuário @vlogju2. Apenas com essa visão panorâmica do objeto,

320
percebemos a veracidade da afirmação do professor João Massarolo, proferida em
conferência no dia 24 de setembro de 2018, no 12.º Encontro de Pesquisadores em
Comunicação e Cultura: já não é mais possível analisar o produto audiovisual como obra
única; é necessário compreender a transmídia e a cultura participativa que o envolve.

Fenômenos transmídia na televisão aberta brasileira são comuns e amplamente


discutidos em produções da Rede Globo, que costuma disponibilizar webséries
relacionadas a suas telenovelas nas plataformas Gshow e Globo Play. Quando a atenção
se volta a outra emissora, como o SBT, consagrado pelos programas de auditório e de
cunho popular, a curiosidade a respeito de como tais eventos ocorrem é ainda mais
instigante. Sabe-se que o Vlog da Juju não é a primeira ação do SBT envolvendo mais de
uma mídia; a utilização de transmídia – e ainda, crossover, crossmídia, extensões
narrativas e extensões diegéticas – vem sendo observada, pelo menos, desde 2012, em
suas telenovelas.

Como relembrou o professor João Massarolo na palestra anteriormente


referenciada, é comum que se chame de transmídia diversas ações que se relacionam com
a convergência de múltiplas plataformas, apropriando-se de um mesmo universo
narrativo; há, contudo, uma série de classificações que tais eventos podem apresentar. Em
se tratando de SBT, por exemplo, vemos o crossover, isto é, quando dois produtos
distintos dentro de uma mesma mídia se misturam, desde sua primeira novela
infantojuvenil da nova fase de dramaturgia, iniciada em 2012. Tomando como referência
a telenovela Carinha de Anjo, é possível perceber a intromissão do Programa do Ratinho
em um dos capítulos, quando o coral de freiras é convidado a se apresentar em um
concurso musical idealizado pela atração. Também em Carinha de Anjo, verificamos a
presença de crossmídia, ou seja, quando um fragmento se desvincula da fábula para
produzir um conteúdo independente, como é o caso dos diversos videoclipes lançados em
DVD e dos variados licenciamentos (brinquedos, materiais escolares, fantasias, etc.).

Se retomarmos a telenovela Carrossel, torna-se visível, ainda, a existência de


extensão narrativa, quer dizer, quando surge um novo episódio em uma mídia
diferenciada – que é o caso dos longas-metragens Carrossel: O Filme e Carrossel 2: O
Sumiço de Maria Joaquina, que se aproveitam dos mesmos personagens e da mesma
abordagem para acrescentar conteúdo à trama. Ainda em Carrossel, ocorre a extensão
diegética, ou seja, a criação de uma proposta inédita a partir de um artefato fisgado do
mundo criado pela narrativa – como é o caso da série Patrulha Salvadora, que, embora

321
tenha sido igualmente televisiva, apresentou-se em formato distinto do original, com novo
gênero e nova periodicidade. Nessa série, a autora Íris Abravanel se apropria de um clube
criado pelas crianças e recria a narrativa em cima desse fato, dando aos personagens
superpoderes vinculados a cada personalidade e situando-os na cidade fictícia de
Kausópolis, a fim de investigarem mistérios e crimes leves (como roubo de brinquedos)
cujas vítimas são crianças e pré-adolescentes.

Como se percebe, a construção de hipertextos, isto é, textos que estão diretamente


ligados a outros, é fato constante nas produções dramatúrgicas do SBT. Na telenovela em
exibição neste ano de 2018, As Aventuras de Poliana, a emissora inovou nesse sentido ao
apresentar, além dos desdobramentos comuns aos anteriores, espécies de episódios
realizados ao vivo, pela redes sociais, com direito a interação com os espectadores. Um
exemplo foi o episódio construído coletivamente em 20 de setembro de 2018: por meio
de uma live no Instagram, o personagem Roger, executivo da empresa de game design
0110 (Onze), apareceu como se estivesse aguardando uma reunião via videoconferência;
no entanto, por não estar no computador de seu escritório, outros usuários invadiam a
conversa. A princípio, Roger conversava com outros personagens da novela, que falavam
sobre suas ações e/ou relações com o executivo, tecendo assim uma extensão narrativa da
telenovela; posteriormente, Roger começou a interagir com quem estava assistindo. Ao
convidar uma garota para a chamada de vídeo, por exemplo, ele disse estar precisando de
uma nova secretária e a interrogou sobre suas experiências e seu interesse em trabalhar
na 0110 – estabelecendo, assim, a quebra da “quarta parede”, permitindo que a audiência
adentre a história, alimentando a ideia de cultura participativa.

Voltando ao caso do Vlog da Juju, prioridade deste trabalho, salientamos que,


embora contenha a palavra “vlog” no título, o produto está muito mais voltado para o
formato websérie – por ser ficcional, ter um roteiro específico, estar dividido em episódios
e derivar-se da telenovela. No primeiro vídeo, intitulado 10 fatos sobre mim, postado em
27 de setembro de 2016, a personagem faz uma apresentação de seus gostos, costumes e
personalidades, ora corroborando, ora complementando o que se vê na narrativa
televisiva. A edição do material é feita de forma semelhante a vlogs: com câmera fixa e
frontal, planos curtos, cortes secos, efeitos visuais limitados e com a figura humana
centralizada, mantendo, inclusive, os ruídos extradiegéticos e os erros de gravação.

Ainda nesse primeiro vídeo, a identidade do SBT é demarcada, sobretudo nos


momentos em que Juju declara ser fã do João Guilherme (ator da emissora), querer

322
entrevistar a Larissa Manoela (atriz da emissora), ter o sonho de conhecer o Silvio Santos
(apresentador e dono da emissora), além de fazer o apelo: “#SbtMeContrata”. Essa
reafirmação autoral, como vista em pesquisas anteriores, é algo comum em se tratando de
produções do SBT, especialmente pelo fato de elas terem forte influência no melodrama
latino-americano, que traz esse elemento como parte de sua sintaxe – equiparados às
imagens emblemáticas, às músicas com função narrativa e às alegorias nacionais.

Nos mais de cem vídeos disponíveis, o Vlog da Juju traz conteúdos do cotidiano
da personagem, dicas de maquiagem, desafios, entrevistas, culinária, videoclipes e até
uma suposta “invasão” ao SBT. O destaque ocorre com as participações de personalidades
do elenco da emissora (como Beca Milano, Ratinho, Celso Portiolli), além de responder
a perguntas dos espectadores – geralmente deixadas nos comentários ou enviadas por
mensagens aos perfis da personagem nas redes sociais. Tais movimentos, como já
mencionado, tendem a enfatizar as características e ações da personagem na telenovela,
bem como oferecem partículas de novidades que estendem a narrativa. Em comum, os
vídeos sempre trazem a expressão “Juju Almeida na área!” no início e a
“#SbtMeContrata” no final, até a finalização do canal, em 23 de maio de 2018.

Para encerrar este pensamento, a relação estabelecida entre a telenovela Carinha


de Anjo e a websérie Vlog da Juju é uma amostra de como as narrativas contemporâneas,
sobretudo em linguagem audiovisual, estão se difundindo de forma aventureira pelas
plataformas midiáticas. O público parece não se contentar mais com o modo tradicional
de se fazer roteiro, mas demonstra o desejo de participar daquilo que vem sendo
produzido, ressaltando a necessidade de transformar as clássicas narrativas fechadas em
inovadoras narrativas em processo, que permitem um intercâmbio de ideias entre
produtores e audiência, atingindo diferentes territórios e possibilitando a abordagem de
diversos ângulos de uma mesma diegese.

Referências bibliográficas
CASTILHO, F. et al. Ficção seriada televisiva no espaço lusófono. Covilhã: UBI, 2017.
FACEBOOK. Vlog da Juju. 2016-2018. Disponível em:
<https://www.facebook.com/vlogju2>. Acesso em: 12 out. 2017.
FREIRE FILHO, J. O debate sobre a qualidade da televisão no Brasil. In: BORGES, G.; REIA-
BAPTISTA, V. (org.). Discursos e práticas de qualidade na televisão. Lisboa: Livros
Horizonte, 2008, p. 78-99.
HERGESEL, J. P.; FERRARAZ, R. Melodrama infantojuvenil na televisão brasileira. Conexão
– Comunicação e Cultura, v. 16, n. 31, 2017, p. 201-222.

323
HERNÁNDEZ GARCÍA, P. Las webséries. Revista Faro, n. 13, p. 94-104, 2011.
INSTAGRAM. Vlog da Juju. 2016-2018. Disponível em:
<https://www.instagram.com/vlogju2/>. Acesso em: 12 out. 2017.
JENKINS, H. Cultura da convergência. São Paulo: Aleph, 2009.
MARTINS, R. B. F. A TV mais feliz do Brasil. Dissertação (Comunicação Social) – UFMG,
Belo Horizonte, 2016.
MIRA, M. C. Circo eletrônico – Silvio Santos e o SBT. São Paulo: Edições Loyola; Olho
D’água, 1995.
ROCHA, S. M. Estilo televisivo. Florianópolis: Insular, 2016.
SOUSA, S. M. Silvio Santos vem aí. Niterói: Editora da UFF, 2011.
TODOROV, T. As estruturas narrativas. 4. ed. São Paulo: Perspectiva, 2006.
TWITTER. Vlog da Juju. 2016-2018. Disponível em: <https://twitter.com/vlogju2>. Acesso
em: 12 out. 2017.
YOUTUBE. Vlog da Juju. 2016-2018. Disponível em: <https://www.youtube.com/vlogju2>.
Acesso em: 12 out. 2017.

324
Magnólia, de Paul Thomas Anderson: a tragédia cotidiana e
os Mitos
Magnolia, by Paul Thomas Anderson: daily tragedy and Myths

Sandra Trabucco Valenzuela3

Resumo: O presente artigo discute os três primeiros relatos presentes no prólogo do filme
Magnólia (EUA, 1999), de Paul Thomas Anderson. Sua construção narrativa apresenta uma
intertextualidade com os relatos míticos provenientes da Bíblia e da Teogonia de Hesíodo,
buscando na Poética de Aristóteles, o modelo ideal da tragédia clássica para o desenrolar o fio
narrativo, um fio de Ariadne que leva o espectador a encontrar a verossimilhança dos fatos
contados, por mais absurdos que possam parecer. O narrador vale-se de notícias publicadas em
jornais, visando impressionar o espectador, ganhando-o como aliado em sua postura, que vê a
morte e o sofrimento como castigos divinos, mas que, em determinadas situações, atuam como
uma redenção.
Palavras-chave: Poética de Aristóteles; Magnolia; Paul Thomas Anderson; Literatura
comparada; Literatura e Cinema

Abstract: This article discusses the first three reports in the prologue of the movie
Magnolia (USA, 1999), by Paul Thomas Anderson. The narrative construction presents
an intertextuality with the mythical accounts coming from the Bible and Hesiodo’s
Theogony, seeking in the classic tragedy the ideal model for the unfolding of the narrative
thread, a thread of Ariadne that leads to find the verisimilitude of the facts counted. The
narrator clings to news published in newspapers, to impress the viewer, winning him as
an ally in his posture, who sees death as divine punishment and suffering, but in certain
situations, as a redemption.

Key words: Poetics of Aristotle; Magnolia; Paul Thomas Anderson; Comparative


Literature; Literature and Cinema.

Análise do Prólogo de Magnólia


Este artigo discute a construção do prólogo do filme Magnólia (EUA, 1999), escrito, dirigido e
produzido por Paul Thomas Anderson. Produção norte-americana, premiada com o Urso de
Ouro de melhor filme no Festival de Berlim e com Globo de Ouro para o desempenho de Tom
Cruise como ator coadjuvante, Magnólia é um filme repleto de possibilidades de análise
semiológicas, que vão desde o uso de recursos cênicos teatrais clássicos, à utilização da
linguagem própria dos meios audiovisuais.

3
Pós-doutora em Literatura Comparada e Doutora em Letras pela Universidade de São Paulo, tem diversos
trabalhos e livros publicados analisando audiovisuais, literatura e arte; escritora e pesquisadora premiada, é
docente e coordenadora do curso de Rádio, TV e Internet da Universidade Anhembi Morumbi; produtora e
apresentadora do programa Mega Séries, pela Rádio Mega Brasil Online. E-mail sandratrabucco@uol.com.br .

325
O filme Magnólia constitui uma obra de especial interesse para um estudo da linguagem, dada a
sua estreita vinculação aos paradigmas propostos pela dramaturgia, mais especificamente
encontrados na Poética de Aristóteles (ARISTÓTELES, 1999), e a possibilidade de análise
audiovisual proporcionada pela riqueza de detalhes inserida tanto no roteiro, como no próprio
produto final da tela.
Em entrevista concedida à época de lançamento de Magnólia nos cinemas, Paul Thomas
Anderson esclarece o tema geral do filme: o título "Magnolia" veio antes do próprio filme.
Além da referência ao Magnolia Boulevard no Vale de San Fernando, na Califórnia, encontra-se
a proximidade sonora ao termo "Magônia", que, segundo o diretor, refere-se a um lugar mítico
para além do firmamento, onde, por exemplo, um navio pode se perder e sua âncora ser
encontrada 20 anos depois em uma fazenda longe do mar, pois o navio teria ficado "pendurado"
em Magônia. Anderson completa que o filme também é sobre a relação familiar entre pais e
filhos, e como tais relações determinam como realmente somos, como crescemos.4

Fig. 1. Magonia. 5
O termo "Magônia", utilizado pela primeira vez ainda na Idade Média pelo bispo Agobardo de
Lyon (815 c.), refere-se a uma cidade mítica localizada nas nuvens e que servia de morada de
terríveis marinheiros aéreos conhecidos como "tempestários", capazes de produzir ventos e
tempestades. Estes navegantes provocavam tempestades para saquear os grãos dos campos. São
Agobardo usava seus escritos contra crenças populares, superstições e prática de bruxaria:
II. [...] dicant quandam esse regionem, quae dicatur Magonia, ex qua
naves veniant in nubibus, in quibus fruges, quae grndinibus decidunt, et
tempestatibus pereunt, vehantur in eandem regionem, ipsis videlicte

4
Entrevista disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=K-c78gfsjpI Acesso em 06/05/2018.
5
Disponível em: http://geeklyinc.com/wp-content/uploads/2015/06/MAGONIA-image1-1-2.jpg

326
nautis aëreis dantibus pretia tempestariis [...].(SAINT AGOBARD, 1841:
10).
Magnólia foi estruturado em sua narratividade a partir dos preceitos aristotélicos das regras das
três unidades (ação, tempo e espaço). Trata-se da concepção de uma tragédia nos moldes do
teatro grego, com a presença de todos os aspectos formais que a compõe, do exórdio ao
desenlace, a participação do coro, o guénos (maldição) familiar, a predestinação e a expiação da
culpa (catarse) (BRANDÃO, 1984).
Até os seis minutos iniciais de Magnólia, o narrador em voz off introduz a ideia da
“coincidência” da morte, da predestinação, do castigo divino, da sincronicidade, sem que se
aborde nenhum dos personagens centrais da narrativa.
Com base na tipologia do narrador, de Norman Friedman (apud LEITE, 1985: 25-66), o prólogo
do filme é apresentado por um narrador onisciente intruso, que realiza um sumário, ou seja,
conta fatos passados, sempre em voz-off, vale-se da função conativa (Jakobson), visto que
sempre se remete ao espectador, na tentativa de convencê-lo da veracidade dos episódios
narrados. No intuito de obter o efeito da verossimilhança proposto por Aristóteles, o narrador
apega-se, supostamente, a notícias publicadas em jornais, fornecendo datas precisas e detalhes
dos três relatos que compõem o prólogo do filme. Esse recurso adotado pelo narrador objetiva
impressionar e cooptar o espectador, ganhando-o como aliado em sua postura, muitas vezes
maniqueísta, que vê a morte como castigo divino e o sofrimento, em determinadas situações,
como redenção, além de compartilhar a crença na predestinação clássica. Há, portanto, marcas
da enunciação mesmo nas cenas aparentemente objetivas, sem a intervenção direta do narrador.
O narrador posiciona-se fora da narrativa e, ao mesmo tempo, diante dela, tecendo comentários
e argumentando, e introduzindo silogismos: “não, não pode ser uma simples coincidência”. Na
conclusão da narrativa fílmica, o narrador retoma esta mesma forma de posicionamento diante
da história e seu desenvolvimento.
É apenas no final do prólogo que a narrativa a ser desenvolvida na diegese ficcional surge aos
olhos do espectador. Ao final do prólogo, os créditos vêm acompanhados da música-tema do
filme, escrita por Aimee Mann. Começa então um jogo de esconde-esconde, isto é, o narrador
intruso “esconde-se”, passa a narrar através de cenas para reaparecer e confirmar suas ideias
sobre a predestinação — introduzidas no prólogo — somente no final da história.
O narrador toma para si a incumbência de convencer o espectador (receptor) sobre a sua teoria
da não existência de coincidências, portanto, da existência de uma predestinação de cunho
divino.
Podemos ainda inferir, a partir de Barthes, que a postura do narrador, em função do processo de
enunciação, é de associar o historiador ao poeta ou ao adivinho:
A narração dos fatos passados, submetida em geral em nossa
cultura, a partir dos gregos, à sanção da Ciência Histórica, colocada sob
a imperiosa garantia do "real', justificada por princípios de exposição
"racional", difere, realmente, por indiscutível pertinência, da narração
imaginária, tal como se encontra na epopéia, no romance ou no drama?
(BARTHES, 1970: 49, apud LEITE).
Justifica-se esta afirmação dada a forma de inauguração do discurso — os seis minutos iniciais
do filme Magnólia —, cujo formato se aproxima do exórdio clássico. Não se tem a
determinação do tempo da enunciação; este narrador existe num tempo indeterminado que se
presentifica a cada assistência pelo espectador. Por sua vez, a presença da enunciação no
enunciado é marcada pelas interferências tanto na introdução como no epílogo do filme. Os três

327
relatos ocorrem em épocas históricas diferentes, o que torna o narrador uma voz da verdade, que
conhece presente e passado, projetando suas reflexões ao futuro, sempre com base em fatos de
caráter supostamente verídicos.
Do ponto de vista da literatura clássica, estes seis minutos iniciais associam-se ao exórdio, que
associa a narrativa a um caráter sagrado, sendo o narrador — nos moldes clássicos — um
intermediário dos deuses. Quem é a voz-off, quando e de onde tece os comentários: são
perguntas que se perpetuam, como outras tantas ao longo da narrativa e que reforçam o tempo
mítico, reforçado posteriormente pelo fenômeno da chuva de sapos.
A onisciência do narrador garante-lhe o domínio sobre o passado, presente e futuro. Na
Teogonia, de Hesíodo, observamos que o poeta é possuído pelas Musas, ele “sorve diretamente
da ciência de Mnemósine, isto é, sobretudo do conhecimento das ‘origens’, dos ‘primórdios’,
das genealogias” (ELIADE, 2004 : 109). Para conhecer as verdades originais, o poeta necessita,
segundo a Teogonia, a inspiração das Musas:
Eia! pelas Musas comecemos, elas a Zeus pai
hineando alegram o grande espírito no Olimpo
dizendo o presente, o futuro e o passado
vozes aliando. Infatigável flui o som
das bocas, suave (...) (HESÍODO, 1986: 130, vv. 36-40).
O narrador inicia o filme contando três histórias, segundo ele verídicas,
extraídas de jornais. Os relatos mantêm uma unidade de ação a partir da estrutura
trágica de Aristóteles, e todos sugerem outra discussão: o castigo divino dá-se, como
no relato bíblico, dentro de uma sociedade corrompida moral e eticamente.

Fig. 2. Magnolia, capa do DVD, divulgação.

328
Os relatos iniciais de Magnólia
Primeiro Relato
No jornal New York Herald, do dia 26 de novembro de 1911, consta o enforcamento de três
homens acusados do latrocínio do farmacêutico Edmund William Godfrey, residente em
Greenberry Hill, Londres. Os acusados eram: Joseph Green, Stanley Berry e Daniel Hill (green
= verde, berry = semente, hill = montanha). Comenta o narrador: Green, Berry, Hill (em
português, semente da montanha verde): “gostaria de pensar que foi apenas uma mera
coincidência”. Note-se que o nº 82 aparece estampado na camisa do 3º enforcado, e a residência
do farmacêutico está repleta de flores. A 1a. cena, em preto e branco, encerra-se com a
introdução de fogo, colorido, que leva à 2a. cena.

Fig. 3. Imagem em preto e branco referente ao primeiro relato.6

Segundo Relato
No jornal Reno Gazette, de junho de 1983, consta que, durante um incêndio numa floresta,
Delmer Darion apareceu morto, pendurado nos galhos de uma árvore, vestido com suas roupas
de mergulho. Delmer era croupier do Hotel Cassino Nugget de Reno, Nevada. Duas noites
antes, o bombeiro voluntário, pai de quatro filhos, divorciado e com tendências ao alcoolismo,
Craig Hansen, esteve na mesa de jogo, e agrediu Delmer, após perder uma rodada. Note-se que
o nº do avião é 82; Hansen pede um 2, mas na mesa aparece um 8. Ele estava dirigindo o avião
que, acidentalmente, ao armazenar água para apagar o incêndio na floresta num vôo rasante
sobre um lago, também carrega Delmer e o lança sobre a árvore. Segundo o legista, Delmer
morreu de enfarte entre o lago e a árvore. Inconformado, Hansen suicida-se com um tiro na
cabeça. Nesse momento, o sangue de Hansen se espalha sobre um quadro de Magnólias,
pendurado no quarto de Hansen. Mais uma vez, o narrador afirma que gostaria de pensar que
tudo aquilo não passou de coincidência.

6
Imagem disponível em: http://moviescreenshots.blogspot.com.br/2010/12/magnolia-1999.html

329
Fig. 4. Avião n. 82 fazendo um voo razante para pegar água referente ao segundo relato. 7

Terceiro Relato
A cena ocorre em 1961, durante a entrega de um prêmio da associação americana de ciências
forenses, às 8:20 pm. Nesse momento, como recurso de verossimilhança, o narrador citará um
fato exposto na associação americana de ciência forense, ou seja, num espaço científico e ligado
à justiça. Esta menção determina ao caso um caráter de precisão e, ao mesmo tempo, atua como
comprovação da tese do narrador quanto à predestinação e ao castigo divino. A história relatada
na solenidade é a de Sydney Barringer, de 17 anos, que em 23 de março de 1958, em Los
Angeles, ao tentar o suicídio ao saltar do terraço do prédio (note-se o nº 82 no terraço em que o
jovem saltará) onde residia com os pais, é atingido no estômago, durante a queda, por um tiro de
escopeta. O legista considerou que fora um suicídio fracassado, mas um homicídio bem-
sucedido, embora o rapaz tenha deixado um bilhete suicida no bolso. No apartamento 682,
ouvia-se a discussão entre um casal, que costumeiramente se ameaçava mutuamente de morte
com uma das várias armas da casa. Desta vez, era uma escopeta. Porém, quando acidentalmente
a escopeta disparou, o tiro acertou o rapaz que nesse momento despencava pela janela. No
momento do disparo, observa-se um quadro, atrás de Fay, com magnólias brancas. Os inquilinos
que brigavam eram justamente Fay e Arthur Barringer, pais de Sydney. Fay jurou não saber que
a arma estava carregada e o pai também afirmou não tê-la carregado.
Ricky, um menino que vivia no prédio teria visto Sydney carregar a arma 6 dias antes.
Aparentemente, Sydney teria se cansado das brigas dos pais e decidira que na próxima, a arma
estaria realmente carregada, e assim finalmente se matariam mutuamente. Assim, Sydney saltou
do 9º andar, foi atingido pelo tiro 3 andares abaixo e caiu sobre uma malha de proteção no 1º
andar, instalada 3 dias antes. Sydney não teria, portanto, morrido pela queda, pois existia a rede
de proteção. A morte de Sydney foi um assassinato. Fay foi acusada e o próprio Sydney foi
cúmplice de sua própria morte. Mais uma vez, o narrador opina: “isto não sé apenas uma mera
coincidência”, “é uma dessas coisas que acontecem...” e, conclui, “não sei dizer exatamente o
que quero dizer”, “isto não foi uma coincidência”.

Êxodo 8:2, o castigo

7
Imagem do relato n. dois, disponível em: http://moviescreenshots.blogspot.com.br/2010/12/magnolia-1999.html
Acesso em 06/05/2018.

330
Os números presentes 8:2 são citações recorrentes ao Êxodo, 8:2, conforme aparece na
cena da chuva de sapos (2:45:21) e em muitas outras: Êxodo, 8:2, "Mas se recusares
deixá-lo ir, eis que ferirei com rãs todos os teus termos".8

A cena da chuva de sapos é a confirmação da tese do narrador: ao castigo divino, sobrevirá a


redenção a aqueles que sobreviverem. Porém, prossegue o narrador, há aqueles que não
merecem perdão. O narrador questiona: será esse castigo divino mero acaso ou será a fatalidade
da predestinação, a moira dos gregos? E conclui, reafirmando a verdade: “but it did happen”
(mas, de fato aconteceu).
A Moira ou o Destino é
uma divindade cega e inexorável, nascida da Noite e do Caos. Todas
as outras divindades estão submetidas ao seu poder. (...) São as leis
cegas do Destino que tornaram culpados tantos mortais, apesar do seu
desejo de permanecer virtuosos. (...) Só os oráculos podiam entrever e
revelar o que estava escrito no livro do Destino (PUGLIESI, 2003: 37-
8).

Retomemos o capítulo IX, Aristóteles comenta a tragédia:


56. A tragédia, entretanto, não é apenas a imitação de uma ação
completa; também relata casos que inspiram horror e pena, emoções
que surgem, em especial, quando as ações são inesperadas; em casos
assim, o espanto é maior que nos eventos provocados pelo acaso e
pela fortuna. Mesmo dentre os eventos fortuitos, mais surpreendentes
são os que parecem acontecer de propósito. É o caso da estátua de
Mítis em Argos, a qual, tombando sobre o culpado da morte de Mítis,
no momento em que era por ele contemplada, acabou por matá-lo; tais
acontecimentos não parecem casuais. Seguem-se, pois, que as fábulas
assim compostas são, incontestavelmente, as mais belas
(ARISTÓTELES, 1999: 48. Grifos nossos.)
A reiteração da expressão “but it did happen” (“mas isso acontece”) reforça a expressão de
Aristóteles: “Mesmo dentre os eventos fortuitos, mais surpreendentes são os que parecem
acontecer de propósito” (ARISTÓTELES, 1999: 48). A fatalidade, o destino cego seriam
castigos impetrados aos seres que realizam ações nefastas que atentam contra a vida, contra a
moral, contra o bem-estar do próximo, atirando o outro a uma situação contrária, a um poço
profundo, e que para sair, precisa de ajuda. Essa ajuda, como é possível observar ao final do
filme, é o amor, o amor em sua essência, o amor desinteressado, o amor pelo próximo.
O narrador dos relatos iniciais retorna ao final da narrativa fílmica, trazendo novamente a
mitologia da Memória e do Esquecimento. A superação do mal que aflige os personagens em
torno de Earl e Jimmy dá-se pelo “esquecimento” que, do ponto de vista mítico, integra o reino
da Morte. “A alma que teve a imprudência de beber da fonte do Letes (‘repleta de esquecimento
e de maldade’, como descreve Platão, Fedro, 248 c), reencarna-se e é novamente projetada no

8
Êxodo 8:2, disponível em: https://www.biblestudytools.com/aa/exodo/8-2.html Acesso em 06/05/2018.

331
ciclo do vir-a-ser” (ELIADE, 2004: 109). Assim, a morte associa-se ao esquecimento e este
permite um renascimento, livre do fardo do passado.

Considerações finais
O narrador é onisciente, domina o tempo passado, presente e futuro; conta histórias
pretensamente reais, portanto de tempos reais. Contudo, o inexplicável, o mítico, permeia a
narrativa, o que a transporta para um tempo transfigurado, também mítico. Para Eliade,
“poderíamos dizer que, ao ‘viver’ os mitos, sai-se do tempo profano, cronológico, ingressando
num tempo qualitativamente diferente, um tempo ‘sagrado’, ao mesmo tempo primordial e
indefinidamente recuperável” (ELIADE, 2004: 21).
Os relatos iniciais sugerem que não há coincidências e que, onde ocorrer o mal, sobrevirá o
castigo divino, numa repetição constante, indefinida. Assim, podemos associar aqui a
simbologia do “eterno retorno”, “o que não tem fim, nem começo” (CHEVALIER, 1991: 780),
forma circular do mundo e ao Uno. A imagem da vinheta de abertura do filme mostra uma
magnólia, desde sua abertura até seu ressecamento. Ao final, novas magnólias nascerão, como
renovação do ciclo da vida.

Referências bibliográficas

ANDERSON, Paul Thomas. Entrevista concedida a Charlie Rose, CBS, 2000. Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=K-c78gfsjpI Acesso em 06/05/2018.
ARISTÓTELES. Poética. Organon. Política. Constituição de Atenas. São Paulo: Nova
Cultural, 1999. (Col. Os Pensadores).
BARTHES, R. Estruturalismo y literatura. Buenos Aires: Nueva Visión, 1970.
BIBLIA ONLINE. Êxodo 8:2, disponível em: https://www.biblestudytools.com/aa/exodo/8-
2.html Acesso em 06/05/2018.
BRANDÃO, Junito de Souza. Teatro Grego: tragédia e comédia. Petrópolis: Vozes, 1984.
CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, A. Dicionário de Símbolos. 4ed. Rio de Janeiro: José
Olympio, 1991.
ELIADE, Mircea. Mito e realidade. São Paulo: Perspectiva, 2004.
FRIEDMAN, Norman. Point of View in Fiction, the development of a critical concept. New
York, The Free Press, 1967. Apud: LEITE, L. Chiappini Moraes. O foco narrativo. op. cit.
LEITE, Ligia Chiappini Moraes. O foco narrativo. 2ed. São Paulo: Ática, 1985.
MAGNÓLIA. EUA, 1999. Roteiro e direção de Paul Thomas Anderson.
MOVIES SCREEN SHOTS. Disponível em:
http://moviescreenshots.blogspot.com.br/2010/12/magnolia-1999.html Acesso em 06/05/2018.
PUGLIESI, Márcio. Mitologia Greco-Romana. Arquétipos dos Deuses e Heróis. São Paulo:
Madras, 2003.
SAINT AGOBARD. De la Grêle et du Tonnerre. 2ed. Lyon: Dumoulin, Ronet et Sibuet, 1841.
Disponível em: http://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k58288830/f2.item.r=Magonie

332
Construindo o roteiro para podcasts educativos: relatando uma
experiência de produção e uso de podcasts como recurso de apoio no
processo de ensino-aprendizagem no ensino superior.

The script for educational podcasts: reporting an experience of


production and use of podcasts as a resource of support in the teaching-
learning process in higher education.

Fred Izumi Utsonomiya 1


Fernando Luis Cazarotto Berlezzi 2
Cristine Fickelscherer de Mattos3

Resumo: Os podcasts têm sido utilizados em contextos educacionais pois confere


mobilidade e flexibilidade para as aulas, além de poder ser facilmente produzido. Seu uso
traz diferentes possibilidades no processo de ensino e aprendizagem e devido as suas
características, podendo ir ao encontro às expectativas da geração millenial no que se
refere ao modo de consumir e produzir informações. O conhecimento sobre o aluno no
contexto social e histórico no qual vive revela uma geração de "nativos digitais", que
possui uma relação de consumo de informações e de aprendizagem mediada pela Internet.
Esse ponto de partida influi no âmbito do conteúdo, que foi elaborado, a partir do objetivo
proposto pelo Plano de Ensino, uma forma criativa de se revisar os temas da disciplina
numa linguagem adequada ao público alvo, ao meio utilizado e aos propósitos do curso:
o formato podcast. Como se escreve um roteiro para Podcast educativo? Um conteúdo de
apoio a uma disciplina, por exemplo, apresentado no formato podcast, necessita ser
projetado com critério. É necessário escrever um roteiro adequado para atingir os
objetivos educacionais da gravação em áudio para que este atenda às expectativas nele
depositadas. E nesse percurso de escrita do roteiro de um podcast devem ser consideradas
algumas questões sobre o material a ser produzido, as quais podem ser sintetizadas nas
seguintes perguntas: “Por que? Para que? O que? Como falar? e Para quem falar?” O
podcast, mesmo aquele que é simplesmente narrado, precisa ser planejado e roteirizado.
Trabalha-se, portanto com um texto escrito que será lido, dramatizado ou construído a
partir de uma entrevista, por exemplo. Ele pode adotar as formas mais variadas
dependendo de sua proposta e concepção: pode ser uma entrevista, uma discussão em
grupo, uma crônica do dia-a-dia, uma dramatização de um episódio, etc.
Palavras-chave: Roteiro para Podcasts; Tecnologia de Ensino; Processo Ensino-
Aprendizagem

1 Bacharel em Publicidade e Propaganda, docente pesquisador do Centro de Comunicação e Letras da Universidade


Presbiteriana Mackenzie (UPM), com foco de pesquisa em processos comunicacionais digitais. Doutor em Letras pela
UPM, Mestre em Ciências da Comunicação pela ECA-USP. fredu@mackenzie.br
2 Mestre em Educação, Arte e História da Cultura (UPM), Bacharel em Administração de Empresas e em Publicidade

e Propaganda (UPM). Produtor Executivo do Núcleo de Produção e Desenvolvimento Acadêmico, produzindo


audiovisual para EaD para a UPM e programas televisivos para a TV Mackenzie. fernando@berlezzi.com
3 Bacharel e Licenciatura, Mestrado e Doutorado em Letras pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas

da Universidade de São Paulo (USP). Atualmente é professora da Universidade Presbiteriana Mackenzie (graduação e
pós-graduação) nos Cursos de Letras e Jornalismo. E-mail: cristinemattos@gmail.com

334
Abstract: Podcasts have been used in educational contexts because it gives mobility and
flexibility to classes, and can be easily produced. Its use brings different possibilities in
the teaching and learning process and due to its characteristics, being able to meet the
expectations of the millennial generation in the way of consuming and producing
information. Knowledge about the student in the social and historical context in which he
lives reveals a generation of "digital natives", which has a relationship of information
consumption and learning mediated by the Internet. This starting point influences the
scope of content, which has been elaborated, from the objective proposed by the Teaching
Plan, a creative way of reviewing the subjects of the discipline in a language appropriate
to the target audience, the medium used and the purposes of the course: the podcast
format. How do you write a script for educational Podcast? Content that supports a
discipline, for example, presented in the podcast format, needs to be designed with
discretion. It is necessary to write an appropriate script to achieve the educational
objectives of the audio recording so that it meets the expectations deposited in it. And in
this itinerary of writing a podcast script you should consider some questions about the
material to be produced, which can be summarized in the following questions: "Why? For
what? What? How to speak? and Whom to speak? "The podcast, even one that is simply
narrated, needs to be planned and scripted. Therefore, one works with a written text that
will be read, dramatized or constructed from an interview, for example. He can adopt the
most varied forms depending on his proposal and conception: it can be an interview, a
group discussion, a day-to-day chronicle, a dramatization of an episode, etc.

Key words: Script for Podcasts; Teaching Technology; Teaching-Learning Process.

1. Podcasts como recurso de apoio no processo de ensino aprendizagem


O termo podcast foi utilizado por Adam Curry em 2004 a partir da abreviatura das
palavras “public on demand” e broadcast. Trata-se de um sistema de disponibilização de
arquivo de áudio através da Internet que pode ser acessado por qualquer pessoa
(BOTTENTUIT JUNIOR; COUTINHO, 2007). Essa tecnologia surgiu quando Curry (DJ
da MTV) e Dave Winer (criador de software) criaram um programa que permitia
descarregar automaticamente transmissões de rádio na Internet diretamente para os seus
iPods.

Os podcasts se parecem com os tradicionais programas de rádios, mas seu ambiente é o


meio digital e seu modo de distribuição se dá por “assinatura”, isto é, as pessoas
cadastradas recebem diretamente os arquivos em seus aparelhos (feed). Por isso
usualmente o termo podcast, já tem se referido ao formato e/ou linguagem empregado
num arquivo de áudio com diversas finalidades.

Os podcasts têm sido utilizados em contextos educacionais pois confere mobilidade e


flexibilidade para as aulas, além de poder ser facilmente produzido. Seu uso traz

335
diferentes possibilidades no processo de ensino e aprendizagem e devido as suas
características, podendo ir ao encontro às expectativas da geração millenial no que se
refere ao modo de consumir e produzir informações.

Este projeto propôs uma experiência de práticas comunicativas e cognitivas


contemporâneas proporcionadas pela posse de aparelhos que tornam a presença do áudio
uma constante na vida social. Os smartphones equipados com fones de ouvido,
conectados à Internet, permitem o contato contínuo com mensagens digitais de áudio e
de vídeo. Os computadores conectados à rede internacional de computadores tornam o
acesso aos áudios ali disponibilizados uma facilidade e um hábito. Os jovens escutam
mensagens todo o tempo, o que pode ser facilmente verificado nas ruas, nos transportes
públicos e também no ambiente escolar de todos os níveis. Juntamente com suas canções
favoritas, acessadas por meio de plataformas musicais, forma parte de sua rotina a audição
de arquivos em canais de áudio da internet: os podcasts. Segundo pesquisa realizada em
20144, a média de idade dos ouvintes de podcasts é de 25 anos e a maioria o faz por
computador ou smartphone regularmente – média de 8 horas semanais – geralmente,
enquanto executa outras tarefas. A facilidade de produção e o seu baixo custo tornam os
podcasts cada vez mais presentes na vida dos jovens.

Os arquivos de áudio também estão igualmente presentes na educação, devido, entre


outras coisas, às diversas vantagens de acesso acima mencionadas e à simplicidade de sua
produção. Em instituições de ensino superior estrangeiras e em programas de
treinamento, o uso de podcasts é constante para diversas finalidades.5 A ampliação de seu
emprego como recurso de ensino talvez se deva, no entanto, sobretudo à sintonia que
proporciona com os modos de comunicação atuais, na chamada Era Cibernética. Segundo
Santaella, uma das principais características de tal era pode ser resumida com a expressão
“a cultura do acesso” (SANTAELLA, 2003, p. 28), isto é, comunicação on demand com
grande empoderamento do receptor sobre o conteúdo da comunicação – escolhido e
acessado por ele – assim como sobre onde ou quando recebê-lo, além das possibilidades
de resposta ou comentário sobre o que foi comunicado. O uso de podcasts permite, então,
uma comunicação nos moldes da cultura em que se encontra imerso os alunos da
universidade, caracterizados como geração millennial e hommo zappiens, já mencionados

4 Trata-se da PodPesquisa 2014, a terceira edição da pesquisa nacional sobre a audiência de podcasts cujos resultados
estão disponíveis on-line em http://www.podpesquisa.com.br/2014/resultado. Não houve pesquisa posterior.
5 Veja-se para tal o mencionado por ROY, Ashok K. & ROY, Priya A. (2007, p 480) sobre os usos do PodCast em

colleges e universidades dos EUA.

336
anteriormente. Os arquivos de áudio digitais na educação podem, assim, afinar-se com as
dinâmicas habituais de interação e cognição do corpo discente, significando uma
possibilidade de superação de descompassos naturais entre os conhecimentos prévios,
ancorados a práticas de comunicação antigas, e as indagações atuais que projetam o
futuro.

A presença de podcasts na educação, contudo, não está isenta de obstáculos. A pesquisa


anteriormente mencionada destaca que a prática vigente de consumo de podcasts envolve,
em 83,3% dos casos, conteúdos de entretenimento. Isso significa que uma plataforma
cibernética e um modo de comunicação afinado com as maneiras de interação do
momento podem não garantir interesse e adesão dos alunos, pois ainda lhes será estranho
o gênero em que se molda o conteúdo. A identificação do gênero na comunicação é de
fundamental importância, pois, nas palavras de Marcuschi:

“os gêneros textuais são fenômenos históricos, profundamente ligados


à vida cultural e social. Fruto do trabalho coletivo, os gêneros
contribuem para ordenar e estabilizar as atividades comunicativas do
dia a dia. São entidades sócio-discursivas e forma de ação social
incontornáveis em qualquer situação comunicativa.” (MARCUSCHI,
2002, p. 19)

Deste modo, parte da interação comunicativa e consequentes resultados de cognição


estarão vinculados à identificação do gênero textual. Numa concepção sociointeracionista
da linguagem, como a desencadeada pelas reflexões de Bakhtin, todo gênero textual terá
implicações discursivas que envolvem os participantes da chamada cena discursiva, com
inevitável identificação da intenção comunicativa e suas reações no contato com os
enunciados (BAKHTIN, 1997).

Um gênero textual como o podcasts, vinculado ao discurso de entretenimento, quando


associado a uma intenção comunicativa que lhe é normalmente estranha, como a didática,
pode causar frustração no receptor devido à expectativa não confirmada de diversão.
Assim, o acesso ao conteúdo seria sucedido de provável rejeição ou redirecionado para
uma percepção condicionada a uma obrigação, como frequentemente ocorre com
componentes programáticos escolares.

2. Roteirizando um podcast

Um conteúdo de apoio a uma disciplina, por exemplo, apresentado no formato podcast,


necessita ser projetado com critério. É necessário escrever um roteiro adequado para

337
atingir os objetivos educacionais da gravação em áudio para que este atenda às
expectativas nele depositadas. Nesse percurso de escrita do roteiro devem ser
consideradas algumas questões sobre o material a ser produzido, as quais podem ser
sintetizadas nas seguintes perguntas:

• Por que falar? Qual o objetivo do podcast.


• Para que falar? Qual o efeito que se quer produzir no ouvinte.
• O que falar? Qual o conteúdo a ser passado.
• Em que ordem falar? Qual a melhor sequência para se passar o conteúdo.
• Como falar? Qual estratégias e recursos utilizar para fixar a atenção.

Para quem falar? Quais as características e expectativas do ouvinte.

O podcast, mesmo aquele que é simplesmente narrado, precisa ser planejado e roteirizado.
Trabalha-se, portanto com um texto escrito que será lido, dramatizado ou construído a
partir de uma entrevista, por exemplo. Ele pode adotar as formas mais variadas
dependendo de sua proposta e concepção: pode ser uma entrevista, uma discussão em
grupo, uma crônica do dia-a-dia, uma dramatização de um episódio etc.

Ao pensar num conteúdo amplo a ser abordado no projeto, é necessário programar


quantos “blocos” (“episódios” ou “capítulos”) será necessário produzir, cuidando para
manter uma unidade temática e identitária entre eles, a fim de se definir como uma “série”
única. Isso é elaborado a partir dos objetivos, dos recursos e do público alvo.

Definido essa parte conceitual do podcast, a segunda etapa é decidir o tipo de serviço que
irá hospedar o podcast (no caso deste projeto, o conteúdo foi disponibilizado para
download e cópia em pendrive). É importante ter certeza de que a proposta do projeto
está de acordo com a plataforma tecnológica a ser usada. A terceira etapa, é a confecção
do roteiro para o programa. Paralelamente faz-se a seleção de elementos como: músicas,
vinheta, efeitos especiais, bordões etc. Dessa forma concebe-se os roteiros para o
programa. A quarta etapa é gravação das locuções, das narrativas, das entrevistas e/ou das
discussões. Depois procede-se, na quinta etapa, à edição do programa, montando-se o
material num único arquivo e transformando-o no formato final de arquivo, geralmente
MP3. Finalmente, na sexta etapa, o material é disponibilizado na plataforma de
distribuição escolhida. Uma sétima etapa seria a apropriação e utilização do arquivo de
áudio por parte do usuário.

3. Etapas de planejamento e produção dos podcasts

338
Foram estabelecidas as seguintes etapas para o desenvolvimento do projeto: 1) Definição
do escopo dos podcasts e sua amplitude; 2)Seleção da disciplina; 3) Seleção do conteúdo
a ser desenvolvido a partir dos Planos de Ensino, 4) Roteirização dos conteúdos: decisões
de forma; 5) Produção: gravação e processo de adaptação dos roteiros e
6)Disponibilização dos podcasts antes da aplicação da avaliação.

1. Definição do escopo dos podcasts e sua amplitude: Foi definido que os podcasts
serviriam como recurso para ajudar a relembrar o conteúdo de um tópico de conteúdo do
Plano de Ensino da disciplina. Eles não abrangeriam o semestre inteiro, mas apenas parte
dele até a primeira prova para obtenção da nota intermediária. O uso do podcasts seria
opcional, portanto, seu uso não estaria ligado à aprendizagem de um conteúdo proposto,
mas sim, à sua fixação. Eles foram disponibilizados na semana das avaliações
intermediárias para servir como recurso de “lembrança” do conteúdo. O não uso do
material não influenciou na dinâmica de aprendizagem normalmente proposto. A
professora Cristine Fickelscherer de Mattos pesquisadora e participante deste projeto
usou suas turmas como voluntárias para neste projeto.

2. Seleção da disciplina: Foi selecionada a disciplina da graduação do Centro de


Comunicação e Letras da Universidade Presbiteriana Mackenzie: “Lógica e
Argumentação”, ofertada no 4º semestre do Curso de Jornalismo pela professora Cristine
Fickelscherer de Mattos. A disciplina é de caráter teórico, cujo aprendizado possibilita
análise e interpretação de textos e ideias e abrangem dois objetivos gerais: a)
aprendizagem de conceitos, nomenclaturas e categorias e b) capacitação para análise,
identificação de categorias e aplicação dos conceitos apresentados.

3. Seleção do conteúdo a ser desenvolvido a partir dos Planos de Ensino: Foram


consultados a ementa e os objetivos do Plano de Ensino do componente curricular
(disciplina) “Lógica e Argumentação”, ofertada no quarto semestre do curso de
Jornalismo e, a partir do Plano de Aulas (Quadro 1) foram levantados os tópicos cobrados
na primeira avaliação intermediária da disciplina.

Quadro 1: Plano de aulas da disciplina Lógica e Argumentação

339
Fonte: Os Autores (2016)

Portanto os temas dos podcasts explorados nessa disciplina foram: A persuasão e a


retórica; Retórica, Dialética e Lógica; e A Retórica aristotélica - Técnicas de persuasão.

4. Roteirização dos conteúdos: decisões de forma e conteúdo: A partir dos conteúdos


programáticos selecionados foram idealizados os podcasts. A professora elaborou os
textos que foram apreciados por toda a equipe, que auxiliou na consolidação dos roteiros.
Em ambas as disciplinas, dentre alguns formatos possíveis (Narração, Entrevista, Bate-
Papo e Dramatização) optou-se pelo formato “Dramatização”, por este ser mais lúdico e
melhor se encaixar no perfil e no contexto do estudante universitário em início de curso.
Como a proposta de ser um recurso de uso opcional e voluntário do aluno, o formato
“dramatização” poderia despertar mais curiosidade e, consequentemente, estimularia uma
maior adesão. O tempo médio de 3 a 5 minutos foi estabelecido para servir de base a todos

340
os podcasts, pois pretendeu-se disponibilizar o material para ser consultado várias vezes
durante uma viagem de ônibus de 30 minutos, por exemplo, ou poder ouvir a série inteira
nesse mesmo percurso. Também foi estabelecido o número cinco a seis “episódios”.

O argumento dos roteiros da disciplina é centrado em um grupo de alunos que se reúnem


na cantina em dias sucessivos para estudar às vésperas da avaliação. O roteiro, como
forma narrativa, permitiria a adaptação ao meio auditivo e digital, além de propiciar um
trabalho de aproximação aos alunos, através da criação de personagens que possuíssem
características de comportamento e linguagem próximos às suas. Os modos típicos do
folhetim – com cortes nos pontos culminantes da história e ganchos para a retomada e a
conexão entre as partes, despertariam curiosidade pela continuação da narrativa,
ajudariam a fixar e perceber a relação entre os itens, além de possibilitar transmissões em
pequenas partes, evitando mensagens longas e cansativas. Na medida do possível, foram
introduzidos elementos típicos das relações folhetinescas como amores não
correspondidos e ciúmes entre os personagens. Assim, atrelados aos conteúdos das
disciplinas, os elementos narrativos instigariam a curiosidade pela continuação da história
e manteriam o interesse pelas mensagens, permitindo a continuidade da apreensão do
material didático. A presença de fatores narrativo-folhetinescos possui ainda uma
vantagem adicional: fornece-nos um elemento de sedução capaz de concentrar a atenção,
notadamente dispersa nas mensagens exclusivamente auditivas e, no caso dos podcasts,
atestadamente secundária, já que, em sua grande maioria, os ouvintes estão executando
outras atividades enquanto ouvem.6

Se como afirmam os teóricos, a comunicação só se efetua na presença de proximidade


criada por repertório comum entre emissor e receptor (JAKOBSON, 1985), e se um dos
obstáculos à boa comunicação e consequente cognição na prática docente é a defasagem
de repertórios entre professores e alunos, os podcasts podem fornecer um meio habitual
de comunicação no universo discente e a narração-folhetinesca pode trazer proximidade
e envolvimento ao pontuar o referencial jovem através do comportamento e da linguagem
dos personagens cujas ações estão dispostas por meio de recursos de sedução (cortes
estratégicos, ganchos e retomadas).

Um esboço dos roteiros foi escrito pelas professoras das disciplinas, que além de
dominarem o conteúdo, estavam ministrando as aulas e conheciam os alunos público-alvo

6
Segundo a Podpesquisa, de 2014, 55, 94% ouve podcasts enquanto executa tarefas que não requerem dedicação
(ônibus, academia etc.) e 15,22% o faz enquanto executa tarefas que requerem dedicação.

341
que seriam usuários dos podcasts. Esses roteiros foram lidos pela equipe e mudanças
foram sugeridas, como adequação de linguagem, sugestões para melhorar o enredo e
deixar mais explícito e claro os conteúdos. Nesse processo, ensaios foram realizados com
leitura dramatizada dos textos e gravações para cronometragem e ajustes. Os roteiros
foram reescritos e disponibilizados para gravação final. Todos os “episódios” têm uma
“introdução” comum em todos os “programas”, que apresenta o tópico a ser apresentado.

5. Produção: gravação e processo de adaptação dos roteiros: As gravações dos


“episódios” foram realizadas no estúdio de rádio do Centro de Comunicação e Letras da
UPM entre os dias 30 de agosto e 29 de setembro 2016 no período da tarde. Nove
voluntários, alunos do 2º ao 8º semestres dos cursos de Letras, Jornalismos, Publicidade
e Propaganda emprestaram suas vozes aos personagens nas gravações. Elas foram
dirigidas pelo mestrando Fernando Luis Cazarotto Berlezzi e acompanhadas pelo aluno
bolsista Enrico Bonini e pela professora Cristine, integrantes da equipe do projeto.

O Quadro 2, apresentado a seguir, sintetizam os conteúdos dos episódios dos podcasts da


disciplina.

Quadro 2 - Síntese dos conteúdos dos podcasts da disciplina “Lógica e Argumentação”

Episódio 1 Retórica clássica – contraste entre lógica / dialética / retórica


Episódio 2 Os estudos da argumentação – gêneros deliberativo / judiciário / epidítico
O texto argumentativo; parágrafos argumentativos – dispositivo, exórdio e
Episódio 3
narração
O texto argumentativo; parágrafos argumentativos; dispositivo, provas,
Episódio 4
digressão e epílogo
O texto argumentativo; construção textual – técnica de provas: ethos, pathos
Episódio 5
e logos
Fonte: Os Autores (2016)

Foi realizada uma reunião inicial com os alunos voluntários para apresentação do projeto
na qual os roteiros foram distribuídos e os personagens foram atribuídos aos integrantes.
Alguns ensaios foram feitos pela equipe antes das gravações, para que os alunos se
familiarizassem com os roteiros, os personagens e as falas. Esses ensaios apontaram
algumas questões de texto a ser resolvidas e o roteiro foi reescrito algumas vezes mesmo
durante o processo de gravação quando era constatado que o texto necessitava de
adaptação para comunicar melhor as ideias propostas. Dessa forma, alguns alunos
puderam participar da construção do produto final, opinando e sugerindo mudanças para

342
a melhoria dos podcasts. Após o processo de gravação, todo o material foi editado até se
chegar ao formato de arquivo que seriam disponibilizados aos alunos: os podcasts.

A seguir apresentamos o roteiro completo do primeiro episódio denominado “Falando


Grego”que sintetiza os conteúdos dos episódios dos podcasts da disciplina.

LÓGICA E ARGUMENTAÇÃO – EPISÓDIO 1 - FALANDO GREGO

Loc 1 masc – preguiçoso / reclamão / gosta de fazer piada, mas com deduções
pertinentes - RAFAEL Loc 2 fem tom agudo – prestativa, estudiosa, mas menos sagaz -
MARIANA
Loc 3 fem tom grave – muito inteligente, confiante, exibida, porém desastrada -
RAÍSSA
Loc 4 masc tom galã – bonito, arrogante, inabalável, sabe menos que admite –
ARTHUR

RAÍSSA desconcerta-se com a presença de ARTHUR

RAFAEL gosta de RAÍSSA, mas não é notado MARIANA é boa e doce amiga de
todos

TÉCNICA AUDIO
Vinheta Podcast – 3’’
Loc masc jovem em tom de arauto1 QUAL É QUE É?
- 2’’
Coro de jovens em tom de arauto LÓGICA E ARGUMENTAÇÃO
gritando – 3’’
som de alunos conversando em
cantina – 2’’
Loc 1- masc jovem desanimada TÔ ACHANDO QUE EU VOU RODAR NESSA PROVA,
RAFAEL MARI.
AI, RAFA! XÔ PENSAMENTO RUIM. DIZ AÍ, O QUE QUE
Loc 2 fem jovem tom agudo
VAI CAIR?
MARIANA
Loc 1masc jovem desanimada TIPO TUDO!
RAFAEL
Loc 3 fem jovem tom grave –
confiante OI! E AÍ?
RAÍSSA
AH, GRAÇAS A DEUS, RAÍSSA. VC PRECISA AJUDAR A
Loc 1masc jovem desanimada
GENTE COM ESSA MATÉRIA....
RAFAEL
Loc 3 fem jovem tom grave –
confiante LÓGICA E ARGUMENTAÇÃO?
RAÍSSA

343
Loc 1masc jovem desanimada É... O LANCE DOS GREGOS... CARA, UNS TRECOS DE
RAFAEL ANTES DE CRISTO!
Loc 3 fem jovem tom grave – É TRANQUILO. E Ó: NADA A VER COM SER GREGO OU
confiante NÃO. É QUE FORAM ESTUDOS SUPER BEM FEITOS
RAÍSSA SOBRE A ARGUMENTAÇÃO QUE SÃO ÚTEIS ATÉ HOJE.
Loc 1masc jovem jocoso RAFAEL É QUE TEM UNS NOOOOMES QUE SOAM GREGO PARA
OS MEUS OUVIDOS...
LIGA NÃO. ELE RECLAMA DE TUDO. SÓ FALA
Loc 2 fem jovem tom agudo
BESTEIRA. MANDA AÍ, RAI. É O ASSUNTO DO SEU PIBIC
MARIANA
NÉ?
ISSO: RETÓRICA ARISTOTÉLICA EM EDITORIAIS DE
Loc 3 fem jovem tom grave -
JORNAL. COMECEI A ESTUDAR ESSE ASSUNTO ANTES
confiante
DE TER ESSA DISCIPLINA. TÔ ANALISANDO E
RAÍSSA
DESCOBRINDO CADA COISA...
Loc 2 fem jovem tom agudo TIPO O QUÊ?
MARIANA
Loc 3 fem jovem tom grave – QUE APLICANDO A TEORIA, A GENTE CONSEGUE VER
confiante O QUE TÁ POR TRÁS DO TEXTO, SABE? ASSIM, AS
RAÍSSA INTENÇÕES NAS ENTRELINHAS.
Loc 1masc jovem animada QUERO VER ISSO AÍ TAMBÉM. EXPLICA TUUUUDO!
RAFAEL
BOM, É IMPORTANTE ENTENDER O QUE É RETÓRICA,
NÉ? EU MESMA LEVEI UM TEMPO PRA SACAR O
Loc 3 fem jovem tom grave –
SENTIDO DA ARGUMENTAÇÃO. PORQUE QUANDO O
confiante
PROFESSOR DISSE PR’EU INCLUIR RETÓRICA NO
RAÍSSA
PROJETO DE PESQUISA, EU PENSEI NUMA COISA
TOTALMENTE DIFERENTE.
TEM QUE SABER A DIFERENÇA ENTRE RETÓRICA,
Loc 2 fem jovem tom agudo
DIALÉTICA E LÓGICA. VAI CAIR ISSO.
MARIANA
Loc 3 fem jovem tom grave – CLARO, PORQUE SÃO ABORDAGENS ASSIM NA
confiante FRONTEIRA UMA DA OUTRA.
RAÍSSA
LÓGICA, DE BOA. DÁ ATÉ PARA SACAR. MAS ISSO DE
Loc 1masc jovem animada
DIALÉTICA...
RAFAEL
Loc 3 fem jovem tom grave –
PENSA NA DIALÉTICA COMO UM MÉTODO PRA
confiante
ALCANÇAR A VERDADE.
RAÍSSA
UM SHERLOCK INVESTIGANDO... ADORO ESSA SÉRIE!
Loc 1masc jovem animada
VOLTARAM A FILMAR, TÁ SABENDO?
RAFAEL
Loc 2 fem jovem tom agudo FOCO, RAFA, FOCO!
MARIANA
SABE QUE ATÉ TEM A VER?! A DIALÉTICA TRABALHA
PELA CONTRAPOSIÇÃO DE ELEMENTOS, QUE VÃO SE
OPONDO ENTRE SI, VÃO EXCLUINDO ASPECTOS E
Loc 3 fem jovem tom grave –
DEIXAM NO FINAL SÓ AQUILO QUE NÃO PÔDE SER
confiante
REBATIDO E QUE DEVE SER A VERDADE. O DETETIVE
RAÍSSA
FAZ ISSO ELIMINANDO POSSIBILIDADES DIANTE DE
COISAS QUE INVALIDAM HIPÓTESES, ATÉ DESCOBRIR
O QUE HOUVE.
Loc 1masc jovem animada TEM DIALÉTICA NA SÉRIE! AGORA GOSTO MAIS
RAFAEL AINDA!
Loc 2 fem jovem tom agudo
MAS O QUE ISSO TEM A VER COM A RETÓRICA?
MARIANA

344
TEM A VER QUE PARA CONTRAPOR OS ELEMENTOS
Loc 3 fem jovem tom grave –
VC USA ARGUMENTAÇÃO, QUE É O QUE A RETÓRICA
confiante
ESTUDA.
RAÍSSA
PÉRA, PÉRA! A RETÓRICA, ENTÃO, ESTUDA A
Loc 2 fem jovem tom agudo
ARGUMENTAÇÃO USADA PELA DIALÉTICA?
MARIANA
Loc 3 fem jovem tom grave –
MAIS OU MENOS ISSO. Ó: ASSIM: PENSA EM DUAS
confiante
PESSOAS DISCUTINDO POLÍTICA.
RAÍSSA
Loc 1masc jovem animada DE ESQUERDA OU DE DIREITA?
RAFAEL
Loc 3 fem jovem tom grave –
divertida UM DE CADA! (riso)
RAÍSSA
Loc 1masc jovem - divertido AÍ SIM! (riso)
RAFAEL
ENTÃO, CADA UM VAI USAR SUAS HABILIDADES
ARGUMENTATIVAS PARA TENTAR PERSUADIR O
Loc 3 fem jovem tom grave –
OUTRO DE QUE ESTÁ CERTO, DE QUE ESTÁ COM A
confiante
VERDADE. A CONTRAPOSIÇÃO DOS ARGUMENTOS DE
RAÍSSA
UM DE OUTRO É O LANCE DA DIALÉTICA. A RETÓRICA
É A TÉCNICA PARA SER BEM PERSUASIVO.
TÁ. ENTÃO CADA UM DELES VAI USAR A RETÓRICA
Loc 2 fem jovem tom agudo PARA TENTAR PERSUADIR O OUTRO DO SEU PONTO
MARIANA DE VISTA.

Loc 3 fem jovem tom grave – ISSO. E A VERDADE SURGE DO CONFRONTO DAS DUAS
divertida PRÁTICAS RETÓRICAS, DAS DUAS ARGUMENTAÇÕES.
RAÍSSA
Loc 1masc jovem - divertido LEGAL! E LÓGICA? COMO ENTRA NESSA VIBE?
RAFAEL
A LÓGICA PARTICIPA DA CONSTRUÇÃO DOS
Loc 2 fem jovem tom agudo ARGUMENTOS. UM ARGUMENTO BOM TEM QUE
RAÌSSA FAZER SENTIDO, TEM QUE TER UM RACIOCÍNIO
LÓGICO PRA PARECER UM ARGUMENTO VÁLIDO, NÉ?
Loc 1masc jovem - divertido LÓGICO QUE SIM! (gargalhada)
RAFAEL
Loc 2 fem jovem tom agudo IMPRESSIONANTE! ELE NÃO PARA. É ZOEIRA
MARIANA COMPULSIVA! DESCULPA, RAI. CONTINUA.
Loc 1masc jovem - preocupado
RAFAEL ELA TÁ DE BOA. DE BOA, NÉ, RAI?

ENTÃO, A LÓGICA VERIFICA SE OS ARGUMENTOS


Loc 3 fem jovem tom grave– ESTÃO OK, A RETÓRICA, SE O CONJUNTO DOS
indiferente ARGUMENTOS, A ARGUMENTAÇÃO, ESTÁ OK, E A
RAÍSSA DIALÉTICA, O CONTRAPONTO ENTRE AS
ARGUMENTAÇÕES.
Loc 4 masc tom galã ARTHUR
E AÍ, GALERA? OI, MARI, OI RAI. QUE QUE ROLA?
Loc 2 fem jovem tom agudo
OI, ARTHUR
MARIANA
Loc 3 fem jovem tom grave –
vacilante O... OI.
RAÍSSA
som de objeto caindo

345
Loc 3 fem jovem tom grave –
vacilante AI, MEU DEUS! MEU CELULAR!
RAÍSSA
Loc 2 fem jovem tom agudo QUEBROU?
MARIANA
Loc 3 fem jovem tom grave –
vacilante AH, GRAÇAS A DEUS, NÃO.
RAÍSSA
ENTÃO, AQUI O CAUSO É ES-TU-DO. ESTUDOU PRA
Loc 1masc jovem sério RAFAEL PROVA, ARTHUR?

E NÃO? QUER DIZER, UM POUCO, NÉ? VIAJEI... NEM


Loc 4 masc tom galã ARTHUR DEU DIREITO.

Loc 2 fem jovem tom agudo A RAI TÁ AQUI EXPLICANDO PRA GENTE SOBRE
MARIANA DIALÉTICA, RETÓRICA E LÓGICA. TÁ POR DENTRO?
ISSO AÍ CAI NA PROVA TAMBÉM?
Loc 4 masc tom galã ARTHUR
Loc 2 fem jovem tom agudo
CLARO QUE CAI. MATÉRIA DAS PRIMEIRAS AULAS.
MARIANA
NUM VIM NAS PRIMEIRAS, POR ISSO...
Loc 4 masc tom galã ARTHUR
Loc 2 fem jovem tom agudo UÉ, RAI, VC JÁ TEM QUE IR EMBORA?
MARIANA
Loc 3 fem jovem tom grave –
vacilante EU... EU... VOU PEGAR ALGUMA COISA... PRA COMER...
RAÍSSA
MAS VOLTA AÍ QUE EU TAMBÉM QUERO A SUA AJUDA,
Loc 4 masc tom galã ARTHUR HEIN?!

Loc 3 fem jovem tom grave –


desconcertada AH... TÁ... EU... EU JÁ VOLTO.
RAÍSSA
AH, O LANCE DO EXÓRDIO, NÉ?
Loc 4 masc tom galã ARTHUR
CARA, E EU ACHANDO QUE TAVA POR FORA...
Loc 1masc jovem sério RAFAEL
NÃO ARTHUR, ISSO DO EXÓRDIO É A DISPOSITIO. NÓS
Loc 2 fem jovem tom agudo TAMO AQUI ESTUDANDO O QUE É RETÓRICA. RAI, VC
MARIANA QUE EXPLICA TÃO BEM, EXPLICA AÍ PRO ARTHUR.

ÉÉÉ... A A DIFERENÇA É QUE... BOM TEM QUE PENSAR


Loc 3 fem jovem tom grave –
NA RAGUMENTAÇ, A AÇÃO, QUE... VC PODE
vacilante
PERSUADIR PRA AÇÃO... OU PRA JULGAMENTO E
RAÍSSA
TAMBÉM PRO EPITICO... EPITÍ ...DICO
CREDO É CONTAGIOSO! QUE QUE DEU EM VC RAI?
Loc 1masc jovem sério RAFAEL
VAMOS TER QUE ISOLAR A MARIANA. ELA TÁ
CONTAMINADO TODO MUNDO...
Loc 4 masc tom galã ARTHUR EPIDÍTICO, CLARO. LEMBRO DISSO NA AULA. EU ATÉ
DEI UM EXEMPLO, LEMBRA?
NUM LEMBRO DE NADA DE VC DANDO EXEMPLO,
Loc 2 fem jovem tom agudo ARTHUR. PRECISAMOS LEMBRAR É DA MATÉRIA.
MARIANA VAMOS REPASSAR TUDO E VER SE A GENTE TÁ
SABENDO?
MANDA AÍ QUE EU VER SE VCS SABEM MESMO...
Loc 4 masc tom galã ARTHUR

346
VC VAI TOMAR A LIÇÃO DA GENTE? AI MEU DEUS!
Loc 1masc jovem sério RAFAEL
Loc 2 fem jovem tom agudo LEGAL. ESSE É O EPITITICO. MAS E OS OUTROS?
MARIANA
Loc 1masc jovem divertido É EPIDÍTICO, MARI. REPETE: E-PI-DI-TI-CO
RAFAEL
NÃO, ESSE É O JUDICIÁRIO. EU SEMPRE COMEÇO ME
Loc 3 fem jovem tom grave – PERGUNTANDO SE É DE JULGAR PORQUE ACHO MAIS
confiante FÁCIL DE PERCEBER. SE VCS ACHAREM QUE NÃO TEM
RAÍSSA ESSE LANCE DE JULGAR, ENTÃO PODEM SER OS
OUTROS DOIS: O DELIBERATIVO OU O EPIDÍTICO.
ENTENDI. E SE NÃO FOR JUDICIÁRIO? COMO É COM
Loc 2 fem jovem tom agudo
OS OUTROS DOIS?
MARIANA
SE O TEXTO QUISER PERSUADIR AS PESSOAS A
MUDAREM SEU COMPORTAMENTO, PORQUE ESSE
Loc 3 fem jovem tom grave – COMPORTAMENTO PERMITE O MACHISMO – VC É
confiante UMA MULHER QUE DEIXA OS HOMENS SEREM
RAÍSSA MACHISTAS COM VC -, POR EXEMPLO, E O TEXTO
QUER QUE VC MUDE ISSO E AJA DE OUTRA MANEIRA,
ENTÃO PREDOMINA O GÊNERO DELIBERATIVO.
Loc 2 fem jovem tom agudo AH... POR ISSO EU TINHA ANOTADO QUE O
MARIANA DELIBERATIVO ENVOLVE AÇÃO... CERTO, E O OUTRO?
Loc 1masc jovem divertido COMO SE CHAMA O OUTRO MESMO, MARI?
RAFAEL
Loc 2 fem jovem tom agudo NÃO ENCHE, RAFA.
MARIANA
O EPIDÍTICO É QUANDO A MENSAGEM É DE
Loc 3 fem jovem tom grave – COMEMORAÇÃO, DE ORGULHO, CELEBRAÇÃO. TIPO:
confiante SER FEMINISTA É O MÁXIMO! DAÍ VAI SER UM TEXTO
RAÍSSA QUE QUER PERSUADIR AS PESSOAS A ACHAREM O
MÁXIMO SER FEMINISTA.
Loc 1masc jovem divertido E SE FOR PRA DIZER QUE SER FEMINISTA É
RAFAEL HORRÍVEL?
Loc 3 fem jovem tom grave –
confiante TÁ DE ZOEIRA, NÉ, RAFA?
RAÍSSA
Loc 1masc jovem sério RAFAEL CLARO QUE EU NÃO ACHO ISSO, NÉ, RAI? TO TE
ZOANDO. MAS, SERIÃO, E SE FOR?
BOM, SE FOR SÓ PRA DESTACAR QUE É ALGO
Loc 3 fem jovem tom grave – NEGATIVO, QUE NÃO DEVE SER ESTIMULADO ETC, É
confiante EPIDÍTICO. SE FOR PRA JULGAR COMO CONDENÁVEL,
RAÍSSA PRINCIPALMENTE APONTANDO CULPADOS E
SUGERINDO PUNIÇÃO, ENTÃO É JUDICIÁRIO.
Loc 2 fem jovem tom agudo
MAS, AS VEZES, É DIFÍCIL DE DIFERENCIAR, NÉ NÃO?
MARIANA
É QUE TÁ TUDO CONECTADO, TÃO OS TRÊS GÊNEROS
Loc 3 fem jovem tom grave –
JUNTOS SEMPRE, MAS O LEGAL É PERCEBER PARA
confiante
QUAL DELES O TEXTO TENDE MAIS.
RAÍSSA
VC FALA TEXTO, MAS PODE SER DE TV TAMBÉM, NÉ?
Loc 1masc jovem sério RAFAEL
Loc 3 fem jovem tom grave –
confiante É, QUALQUER MENSAGEM: ÁUDIO, IMAGEM...
RAÍSSA
VCS ACHAM QUE VAI TER UM TEXTO NA PROVA PRA
Loc 1masc jovem sério RAFAEL
GENTE ANALISAR?

347
AH, COM CERTEZA... A GENTE ANALISOU UNS NA
Loc 2 fem jovem tom agudo
AULA, LEMBRA?
MARIANA
Loc 1masc jovem sério RAFAEL ÃHÃ... EU ATÉ...
Fonte: Os Autores (2016)

6. Disponibilização dos podcasts antes da aplicação da avaliação: Alguns dias antes da


primeira avaliação intermediária da disciplina que iria avaliar o aprendizado do conteúdo
ministrado aos alunos, estes foram instruídos a respeito da proposta do projeto de ouvir
os podcasts para ajudar a relembrar o conteúdo dado. Os arquivos foram disponibilizados
na plataforma Moodle da Universidade para download, na área da disciplina. A grande
maioria dos alunos baixou os arquivos para ouvir antes da prova. A avaliação da disciplina
“Lógica e Argumentação” foi realizada pela turma D no dia 3 de outubro de 2016,
contando com a presença de 59 pessoas, de um total de 60 alunos.

Uma semana após a prova, foi feita uma pesquisa junto aos alunos para obter
impressões da experiência do uso de podcasts para auxiliar no estudo do
conteúdo que seria cobrado na avaliação. Foi aplicado um questionário
estruturado, não-disfarçado, para ser auto-preenchido voluntariamente pelos
alunos. O formulário era composto em sua maior parte por perguntas abertas e
não exigia a identificação do respondente. A participação na pesquisa era
opcional e poderia ser feita de forma anônima.

A pesquisa revelou que a adesão dos alunos ao uso dos áudios e a aceitação
do formato foram muito grandes. Todos os participantes eram voluntários e
compreenderam os objetivos de serem disponibilizados os podcasts aos
alunos. Não houve dúvidas quanto à finalidade da proposta e a adesão foi livre
e opcional. Da mesma forma, o preenchimento das respostas dos questionários
também era voluntário e não influenciava na nota nem no processo de ensino-
aprendizagem. O entusiasmo geral das respostas com relação a avaliação da
experiência demonstra um engajamento e aprovação do recurso proposto. A
análise das respostas nos permite obter algumas conclusões.

Considerações Finais

Os podcasts são um recurso extraordinário a ser explorado no processo de ensino-


aprendizagem num contexto de uma disciplina presencial teórica ofertada no ensino
superior.

A equipe de pesquisadores realizou um levantamento do contexto social e histórico para


localizar o uso de podcasts pelos nativos digitais, a geração atual de alunos que

348
frequentam o ambiente universitário. O desafio de se apresentar disciplinas teóricas aos
millennials hommo zappiens para fundamentar conceitos que ajudem a classificar e
analisar fenômenos de modo “simples”, “fácil” e “leve” pressupõe não apenas dominar
um conhecimento, mas saber traduzi-lo de forma eficiente a um público específico, sem
perda de conteúdo. Como educadores e comunicólogos que somos, esse desafio tornou-
se uma questão primordial no desenvolvimento deste projeto.

A equipe pôde desenvolver na prática o desafio de se escrever roteiros que – de forma


lúdica, através de narrativas – tivessem um conteúdo teórico que poderia ser relembrado
(ou “compreendido”) através do uso de um conjunto de programas de áudio gravados, os
podcasts. Foram disponibilizados uma série de programa de áudios (5 episódios de 5
minutos mais ou menos) para cada disciplina, alguns dias antes de uma prova de
verificação de aprendizagem de conteúdo previamente dado. Decisões de roteiro foram
tomadas e as narrativas foram escritas, testadas, criticadas e reescritas. Os episódios foram
gravados com alunos voluntários, dirigidos por um técnico, integrante do grupo de
pesquisa, que exerceu o papel de diretor de gravação. O material foi editado e
disponibilizado aos alunos, que o utilizaram de forma também voluntária antes de realizar
as provas intermediárias da disciplina que cursavam. Uma pesquisa – também de caráter
voluntário – foi realizada uma semana após a prova, para se avaliar a aceitação da
proposta e para se obter impressões úteis para compreensão do desempenho do projeto.

Os resultados obtidos pela pesquisa junto aos alunos foram extremamente animadores,
pois a aceitação da proposta foi enorme. Não foi medido o impacto do uso dos podcasts
no desempenho efetivo para as provas, mas as manifestações positivas dos alunos acerca
das possibilidades de seu uso de forma corriqueira e mesmo em outras disciplinas foram
muito significativas. Constatou-se, ao final, que há grande interesse por parte dos alunos
para se utilizar esse recurso para auxiliar no processo de ensino-aprendizagem.

Uma constatação obtida através das respostas da pesquisa é a de que os podcasts serviram
não apenas para “relembrar” o conteúdo, mas para “entender” o que havia sido
apresentado nas aulas presenciais, tornando o assunto ministrado “mais claro”. Dessa
forma, fica aberta para futuros estudos a possibilidade de se utilizar os áudios com esse
objetivo – de complementar o processo de ensino-aprendizagem iniciado na aula de aula
– obtendo-se, assim, resultados mais efetivos nos objetivos propostos.

O desenvolvimento deste projeto revelou a importância do planejamento prévio e da


qualidade de produção. Os podcasts obtiveram grande aceitação entre os alunos porque

349
foram cuidadosamente planejados e produzidos. Mesmo que tenha havido uma ou outra
crítica na proposta do roteiro, e na interpretação dos atores, a grande maioria dos alunos
não teve problemas para entender a proposta, ou de perceber as vantagens dos podcasts
na hora do estudo. E a aprovação do experimento foi unânime. Muitos acharam que foi
“leve” e divertido estudar com os áudios.

A compreensão que a equipe tem, após todo este percurso, é de que o potencial a ser
explorado pelo uso de podcasts como recurso de apoio no processo de ensino-
aprendizagem de disciplinas presenciais são enormes, tanto por sua facilidade de
execução, quanto por sua aceitação por parte dos alunos. A efetividade de aprendizado
não foi medida, mas a manifestação dos alunos indica que o áudio é um recurso
pedagógico com grandes possibilidades que está sendo negligenciado nos projetos
educacionais desenvolvidos na Universidade.

Referências bibliográficas

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(VOLOCHINOV, V. N).
BOTTENTUIT JUNIOR, J. B. & COUTINHO, C. P. (2007). A Educação a Distância para a
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B.D. Silva & L. Almeida (eds.). Actas do IX Congresso Internacional Galego Português de
Psicopedagogia. Setembro, Universidade da Coruña. A Coruña, pp. 613-623.
JAKOBSON, Roman. Linguística e comunicação. 12. ed. São Paulo: Cultrix, 1985.
MARCUSCHI, Luiz Antônio. “Gêneros textuais: definição e funcionalidade”. In: MEYER,
Marlyse. Folhetim: uma história. São Paulo: Cia da Letras, 1996.
PODPESQUISA 2014. Disponível em http://www.podpesquisa.com.br/2014/ resultado. Acesso
em 16/03/2017.
ROY, Ashok K. & ROY, Priya A. “Intersection of training and podcasting in adult Education”,
Australian Journal of Adult Learning, Volume 47, No 3, November 2007, pp 479-491.
SANTAELLA, Lúcia. “Da cultura das mídias à cibercultura: o advento do póshumano”, Revista
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2017.
VEEN, Wim & VRAKKING, Ben. Homo zappiens: educando na era digital (Tradução Vinicius
Figueira ). Porto Alegre: Artmed, 2009.

350
A experiência da pré-produção como fator fundamental para a
elaboração de vídeos online de divulgação científica.

The experience of pre-production as a fundamental factor for the


elaboration of online videos of scientific dissemination

Ana Beatriz Camargo Tuma1

Resumo: O artigo discorre sobre a relevância da etapa de pré-produção para a construção de


vídeos de divulgação científica (DC), isto é, que veiculam conteúdos sobre ciência, tecnologia e
inovação (C, T & I) para a população em geral. Segundo Herbert Zettl (2011), a referida etapa
inclui todas as atividades e preparações realizadas antes do trabalho efetivo em campo ou em
estúdio no primeiro dia de produção, sendo dividida, usualmente, em dois estágios: 1) tudo o que
é preciso para a transformação da ideia básica em roteiro prático ou conceito; e 2) os detalhes
necessários à produção, como equipamentos e locação. A importância da pré-produção, neste
artigo, é explorada a partir da experiência da autora na elaboração de vídeos de DC para o canal
UFU Ciência, da Diretoria de Pesquisa da Universidade Federal de Uberlândia (DIRPE/UFU), o
qual foi finalista na categoria audiovisual, junto com emissoras profissionais como a TV Globo,
do Prêmio Regional Orlei Moreira promovido pela referida instituição no ano de 2017.
Palavras-chave: Divulgação científica; Pré-produção; UFU Ciência; Vídeos online.

Abstract: The paper discusses the relevance of the pre-production stage for the construction of
scientific dissemination videos (DC), which disseminate contents about science, technology and
innovation (C, T & I) for the population in general. According to Herbert Zettl (2011), this step
includes all the activities and preparations performed prior to actual work in the field or in the
studio on the first day of production, and is usually divided into two stages: 1) all that is required
for the transformation of the basic idea into a practical guide or concept; and 2) the details needed
for production such as equipment and place. The importance of pre-production in this paper is
explored from the author's experience in the production of DC videos for UFU Ciência channel,
from the Directorate of Research of the Federal University of Uberlândia (DIRPE/UFU), which
was a finalist in audiovisual category, along with professional broadcasters such as TV Globo, of
the Orlei Moreira Regional Award promoted by that institution in 2017.
Keywords: Pre-production; Scientific dissemination; UFU Ciência; Videos online.

Introdução

O UFU Ciência é um projeto de extensão criado pela Diretoria de Pesquisa da Universidade


Federal de Uberlândia (DIRPE/UFU), no início do ano de 2017. Ele surgiu, principalmente, com
a proposta de utilizar a internet para realizar divulgação científica (DC), isto é, veicular conteúdos

1Doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Ciências da Comunicação da Escola de Comunicações e Artes da


Universidade de São Paulo. Mestra em Divulgação Científica e Cultural pelo Laboratório de Estudos Avançados em
Jornalismo da Universidade Estadual de Campinas. Graduada em Comunicação Social - Jornalismo pela
Universidade Federal de Uberlândia. E-mail: anabeatriztuma@usp.br.

351
sobre ciência, tecnologia e inovação (C, T & I) para a população em geral, e não apenas para a
comunidade científica que faz parte da Universidade.
Da época em que esse projeto foi lançado até meados de 2018, período em que teve que sofrer
reformulações, seu carro-chefe foi os vídeos online de DC. Tais vídeos abordavam as pesquisas
realizadas na Universidade e eram produzidos por uma jornalista voluntária e estagiários do curso
de Jornalismo da UFU (voluntários e bolsistas), que recebiam o apoio de um técnico-
administrativo da DIRPE e do Diretor de Pesquisa. Os conteúdos produzidos eram veiculados na
fanpage do Facebook2, no canal do YouTube3 e no blog4 do projeto, sendo que a primeira sempre
foi seu principal meio de comunicação.
Para que os vídeos online fossem feitos, a etapa de pré-produção era um fator fundamental,
especialmente porque eles tratavam de divulgação científica, uma área que possui algumas
especificidades, como a necessidade da tradução de jargões científicos para uma linguagem
popular. Diante do exposto, este artigo objetiva abordar a relevância dessa etapa para a elaboração
de vídeos online de DC com base na experiência da autora, jornalista que foi participante do UFU
Ciência.
Com esse intuito, nas seções seguintes, é explicado o que é divulgação científica e no que consiste
a etapa de pré-produção aplicada aos referidos tipos de vídeos, tendo como modelo a que era
realizada pela equipe do UFU Ciência. Por último, são tecidas algumas considerações finais sobre
o tema em questão.

Divulgação científica

Primeiramente, é necessário compreender que divulgação científica não é o mesmo que


jornalismo científico, sendo essas atividades distintas, com finalidades diferentes. O jornalismo,
segundo Escobar (2018, p. 34), “[.] só se importa com aquilo que é inédito, enquanto que a
divulgação pode tratar de qualquer assunto, a qualquer hora e em qualquer lugar”.
Ademais, são função primordial da DC democratizar o acesso ao conhecimento científico e
estabelecer condições para a alfabetização científica5. Ela contribui, assim, para incluir os
cidadãos no debate de temas especializados e que podem impactar seu trabalho e vida, como os
transgênicos e as mudanças climáticas (BUENO, 2010).
Cabe destacar, aqui, que pode ser considerado grande, conforme aponta pesquisa realizada em
2015 sobre a percepção pública da C&T, o interesse que os brasileiros afirmam ter por ciência e
tecnologia. A maioria dos entrevistados (61%) se declara interessada (35%) ou muito interessada

2 https://www.facebook.com/ufuciencia/.
3 https://www.youtube.com/channel/UC_FU2sLcJ7nic-eIp78jw7w.
4 https://diretoriapesquisau.wixsite.com/ufuciencia.
5 Por esta expressão, entende-se: abrir espaço para a aproximação e o diálogo entre os que produzem ciência e

tecnologia, de um lado, e o cidadão comum, de outro, bem como convocar pessoas para amplos debates a respeito da
relação entre a ciência e a sociedade, o mercado e a democracia.

352
(26%) pelo assunto. Somado a isso, 44% deles concordam totalmente que, se bem explicado, são
capazes de entender o conhecimento científico e 47% que a população deve ser ouvida nas
grandes decisões sobre os rumos da ciência e da tecnologia (CENTRO DE GESTÃO E
ESTUDOS ESTRATÉGICOS, 2017).
A DC é voltada, prioritariamente, para um público que não possui,
obrigatoriamente, formação técnico-científica que lhe permita, sem muito
esforço, decodificar um jargão técnico ou compreender conceitos que respaldam
o singular processo de circulação de informações especializadas (BUENO,
2010).

Segundo afirma Bueno (2010), esse público leigo, em geral, não é alfabetizado cientificamente e,
por isso, vê como ruído (o que compromete drasticamente o processo de compreensão de ciência
e tecnologia) qualquer termo técnico ou mesmo se enreda em conceitos que denotam alguma
complexidade. Da mesma maneira, tal público sente dificuldade para acompanhar certos assuntos
ou temas, simplesmente porque não se situam em seu mundo particular e, portanto, ele não
consegue estabelecer sua relação com a realidade específica em que está inserido.
Por causa disso, a difusão de informações científicas e tecnológicas para o público da DC deve
ter, obrigatoriamente, de acordo com Bueno (2010), decodificação ou recodificação do discurso
especializado, que, feitas com a utilização de recursos como metáforas e ilustrações, podem
penalizar a precisão das informações. Assim:

Há, portanto, na divulgação científica, embate permanente entre a


necessidade de manter a integridade dos termos técnicos e conceitos para
evitar leituras equivocadas ou incompletas e a imperiosa exigência de se
estabelecer efetivamente a comunicação, o que só ocorre com o respeito
ao background sociocultural ou linguístico da audiência (BUENO, 2010,
p. 03).

Para Bertol e Epstein (2005), a função do divulgador é o de mediador, e, ao mesmo tempo, de


criador, sendo que a cultura científica de uma sociedade depende, em grande medida, desses
intermediários que fazem a ponte entre o público e os pesquisadores. O êxito possível da
divulgação científica se encontra no postulado da possibilidade da tradução da ciência não só
interlinguisticamente (entre as diversas línguas nacionais) como intersemioticamente (ao nível de
uma linguagem a outra).
É importante ressaltar que os meios de comunicação de massa (MCM) podem ou não serem
utilizados diretamente na DC, uma vez que ela inclui, também, outras formas de fazê-la, como
palestras e peças de teatro. De acordo com Bueno (2010), a divulgação científica realizada pela
imprensa incorpora novos elementos ao processo de circulação de informações científicas e
tecnológicas, já que estabelece instâncias adicionais de mediação. Dessa maneira, a fonte de
informação (pesquisador, cientista ou um centro de produção de C&T, como as universidades)

353
recebe a interferência de um agente (divulgador ou jornalista) e de uma estrutura de produção,
que apresenta especificidades dependendo do tipo de mídia e da proposta de divulgação.

A pré-produção dos vídeos online do UFU Ciência

A etapa de pré-produção é a primeira que deve ser realizada para a elaboração de um vídeo, seja
ele online ou não, sendo seguida pela produção e pela pós-produção. De acordo com Herbert Zettl
(2011), essa primeira etapa engloba todas as atividades e preparações realizadas antes do trabalho
efetivo em campo ou em estúdio no primeiro dia de produção, sendo dividida, usualmente, em
dois estágios: 1) tudo o que é preciso para a transformação da ideia básica em roteiro prático ou
conceito; e 2) os detalhes necessários à produção, como equipamentos e locação.
Zettl (2011) explica que, no primeiro estágio, deve-se: criar e avaliar ideias e definir uma proposta
para o programa (no caso do UFU Ciência, de cada vídeo online); preparar o orçamento; e elaborar
o roteiro. Já no segundo, é necessário: pensar nas pessoas e na comunicação; a solicitação de
recursos; o planejamento de produção; as permissões e autorizações; e a publicidade e promoção.
Nos próximos subitens, se lê sobre cada um desses passos aplicados, com adaptações por se
tratarem de vídeos online de ciência e não programas, no referido projeto de extensão da UFU.

Criação e avaliação de ideias

Em um processo criativo, todos são livres para propor ideias absurdas com o intuito de
que alguém rompa as barreiras conceituais e decrete um fim à escassez de ideias. Além disso, um
debate bem-sucedido deve evitar a crítica a qualquer comentário feito, por mais que ele pareça
improvável (ZETTL, 2011).
Em seguida, para avaliar as ideias, segundo Zettl (2011), é necessário que sejam
respondidas duas perguntas: vale a pena colocar a ideia em prática? (se ela influenciará
positivamente a vida de alguém); e a ideia é viável? (é preciso verificar se você dispõe de
orçamento, tempo e recursos para avançar até a produção). Se ambas as repostas forem “sim”,
pode-se prosseguir com a elaboração da mensagem do processo (objetivo básico a ser alcançado
com o vídeo) e o ângulo (foco ou direcionamento específico dado ao enredo).
No UFU Ciência, esses passos eram cumpridos em uma reunião de pautas mensal em que
os membros da equipe sugeriam, livremente, temas a serem abordados nos vídeos online.
Contudo, para a escolha das pautas a serem executadas, por se tratarem de temas científicos,
também se levava em conta os fatores de impacto (se afetava o maior número de pessoas),

354
proximidade (se estava perto dos indivíduos) e variedade e equilíbrio (cada vídeo abordava um
tema científico) (BURKETT, 1990).

Proposta de vídeo e roteiro

Como a maioria dos vídeos era produzida com o intuito de se aproximar da


videorreportagem, ou seja, o repórter é quem faz a pré-produção, a produção e a pós-produção do
conteúdo, as propostas deles eram apresentadas em pautas. Nelas, constavam as seguintes
informações: proposta; fontes; encaminhamento/angulação; dados; pesquisa; sugestões de
perguntas; sugestões de imagens; e observações. Além disso, para a identificação da pauta,
haviam: a data de elaboração dela e quando deveria ser executada; retranca; o produtor; e o
repórter. O roteiro para a gravação constava na pauta, sendo composto pelas sugestões de
perguntas e imagens.
Para a elaboração da pauta de uma maneira geral, eram realizadas pesquisas na internet sobre o
tema que seria abordado e eram feitas pré-entrevistas, de forma presencial, com os pesquisadores.
Uma pré-entrevista, segundo Scott (2009), é, usualmente, uma rápida conversa e em “off”, em
que se faz anotações, mas não se relata as opiniões dos entrevistados. Ela ajuda na compreensão
do contexto do qual se planeja extrair a matéria.
Esse momento era importante tanto para os repórteres quanto para os pesquisadores. No
primeiro caso, eles tinham a possibilidade, além da conversa em si para obtenção de informações,
de conhecerem onde a pesquisa era realizada para pensarem, junto com os cientistas, as imagens
que seriam captadas no dia da gravação. Já para os pesquisadores, esse era o tempo para que
pudessem se familiarizar com os repórteres e com a divulgação científica feita em vídeo online,
uma vez que a maioria deles nunca havia participado de uma entrevista.

Orçamento, solicitação de recursos, pessoas e comunicação

Os custos, segundo Zettl (2011), devem ser avaliados em relação aos itens óbvios, como
aluguel de equipamentos, e os itens aparentemente não óbvios, por exemplo, alimentação da
equipe. No entanto, o UFU Ciência, principalmente devido a crise econômica que atinge o Brasil
já há algum tempo e, em consequência, a academia, não conseguiu recursos financeiros para sua
execução, a não ser uma bolsa para um estagiário. Assim, toda a produção dos vídeos era feita,
basicamente, de forma voluntária, mas havia a possibilidade de solicitação de alguns recursos
próprios da Universidade, como filmadoras e câmeras, que eram retiradas na própria Diretoria de
Pesquisa para as gravações. Vale lembrar que algo essencial na equipe, e que é apontado pelo

355
referido autor como relevante, é que ela estava sempre em contínua comunicação entre si e com
seus entrevistados.

Planejamento de produção

O planejamento de produção precisa oferecer orientação ao pessoal envolvido na realização do


vídeo sobre quem faz o quê, onde e quando nas três etapas da produção (ZETTl, 2011). Como já
exposto neste artigo, a maior parte dos produtos do UFU Ciência eram viorreportagens, sendo
assim, os membros da equipe já sabiam, de antemão, que deveriam fazer da pré-produção à pós-
produção de um vídeo. Quando não era esse o tipo de vídeo, a jornalista desse projeto atribuía
quem faria cada função.

Permissões e autorizações

Conforme explica Zettl (2011), a maioria das produções envolve recursos e pessoas, que,
geralmente, não têm nenhum vínculo com a produtora ou a estação. Por isso, é importante
verificar se eles precisam de permissões e autorizações. No caso do UFU Ciência, isso não se fez
necessário, já que todos esses elemento pertenciam à própria Universidade Federal de Uberlândia.

Publicidade e promoção

O melhor produto, ainda de acordo com esse autor, não terá valor algum se ninguém souber nada
a respeito dele. Dessa maneira, ele sugere apresentá-lo aos departamentos de promoções e
publicidade para que eles possam ajudar com isso, o que não foi o caso do UFU Ciência. Para que
seus vídeos online se tornassem conhecidos, sua equipe os divulgou continuamente no Facebook,
o que gerava retorno imediato de suas visualizações. A título de nota, um de seus vídeos online6,
em setembro de 2018, contava com mais de 23.000 visualizações.

Considerações finais

Pelo simples fato de ser a primeira etapa da produção, em que se elabora como o vídeo
online será e se organiza as condições para que isso ocorra, a pré-produção já deveria ser levada
a sério. Contudo, em vídeos online de ciência, como os do projeto de extensão da UFU, ela é um
fator fundamental, principalmente, para criar e avaliar ideias que sejam do interesse de grande
parte das pessoas e para que o videorrepórter e o cientista se conheçam e, no primeiro caso, se
famialiarize com a pesquisa e, no segundo, com a divulgação científica no meio audiovisual.
Também devido à pré-produção, a falta de equipamentos e de recursos financeiros não
prejudicou o desenvolvimento dos vídeos online de ciência. Tudo era pensado para que, no

6 Projeto: Próteses a baixo custo: https://www.facebook.com/ufuciencia/videos/1330351253748645/.

356
momento da entrevista, não se precisasse utilizar equipamentos de luz, tripé e microfone. Para
tanto, gravavasse em lugares com boa iluminação e sem barulho, tendo como suporte da câmera
as própria mãos ou uma pilha de livros, por exemplo.
Prova de que os vídeos online do UFU Ciência foram bem-sucedidos, especialmente por causa
da etapa da pré-produção (no ponto de vista da autora deste artigo), foi o reconhecimento por
meio do primeiro lugar na categoria proposta empreendedora e ter ficado entre os finalistas na
categoria audiovisual, junto com emissoras profissionais como a TV Globo, do Prêmio Regional
de Jornalismo Orlei Moreira realizado em 2017 pela Universidade Federal de Uberlândia.

Referências bibliográficas

BERTOL, S.; EPSTEIN, I. Caminho das pedras: a difícil arte de comunicar a ciência para o
público. Comunicação & Sociedade, São Bernardo do Campo, v. 26, n. 43, p.11-27, 2005.
Disponível em: <https://www.metodista.br/revistas/revistas-
ims/index.php/CSO/article/view/3985/3864>. Acesso em: 11 set. 2018.

BUENO, W. Comunicação científica e divulgação científica: aproximações e rupturas


conceituais. Informação & Informação, Londrina, v. 15, n. 1, p.1-12, 2010. Disponível em:
<http://www.uel.br/revistas/uel/index.php/informacao/article/viewArticle/6585>. Acesso em: 02
set. 2018.

BURKETT, W. Jornalismo científico: como escrever sobre ciência, medicina e alta


tecnologia para os meios de comunicação. Trad. Antônio Trânsito. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 1990.

CENTRO DE GESTÃO E ESTUDOS ESTRATÉGICOS. A ciência e a tecnologia no olhar dos


brasIleiros: Percepção pública da C&T no Brasil 2015. 2017. Disponível em: <
ttps://www.cgee.org.br/documents/10195/734063/percepcao_web.pdf>. Acesso em: 11 set.
2018.

ESCOBAR, H. Divulgação científica: faça agora ou cale-se para sempre. In: VOGT, C.; GOMES,
M.; MUNIZ, R. (Orgs.). ComCiência e divulgação científica. Campinas: BCCL/UNICAMP,
2018. p. 31-35. Disponível em: <http://www.comciencia.br/wp-
content/uploads/2018/07/livrocomciencia_cb.pdf>. Acesso em: 03 set. 2018.

HEBERT, Z. Manual de produção de televisão. São Paulo: Cengage Learning, 2011.

SCOTT, C. A entrevista. In: WORLD FEDERATION OF SCIENCE JOURNALISTS. Curso


on-line de jornalismo científico. Rio de Janeiro: Museu da Vida/Casa de Oswaldo Cruz/Fiocruz,
2009. p. 49-64.

357
Título do artigo na língua original
Dialogismo e conhecimento prévio: aspectos fundamentais para a produção de
sentidos.

Título do artigo em inglês


Dialogism and prior knowledge: fundamental aspects for the production of
meanings.

Marlon Muraro1

Resumo: O presente artigo tem por objetivo refletir e analisar o discurso na esfera
publicitária e cinematográfica, neste momento, discutindo a importância do
conhecimento prévio na compreensão deste tipo de discurso em diferentes mídias.
Primeiramente, procurou-se contextualizar o discurso publicitário, inserindo-se, em
seguida, uma análise verbo-visual baseada no dialogismo de Bakhtin e de seu Círculo.
Ao final, realizou-se análises em anúncio publicitários de forma a demonstrar a
importância do conhecimento previamente adquirido para completo entendimento da
intencionalidade do autor e das relações dialógicas que ele propõe para que sejam
elementos fundamentais na produção de sentidos.
Palavras-chave: produção de sentidos; dialogismo; conhecimento prévio;
intertextualidade.

Abstract: The present article aims to reflect and analyze the discourse in the advertising
and cinematographic sphere, at this moment, discussing the importance of previous
knowledge in the understanding of this type of discourse in different media. First, we
tried to contextualize the advertising discourse, inserting, then, a verb-visual analysis
based on the dialogism of Bakhtin and his Circle. In the end, commercial analysis was
carried out in order to demonstrate the importance of previously acquired knowledge
for a complete understanding of the author's intentionality and the dialogical relations
he proposes to be fundamental elements in the production of meanings.

Key words: production of meanings; dialogism; previous knowledge;


intertextuality.

I n trod u ção

O presente artigo procura fazer uma reflexão sobre questões diretamente ligadas ao
conhecimento prévio e sua importância para a construção de relações dialógicas que
proporcionem entendimento para a leitura de qualquer texto. Elas são fundamentais para
a própria constituição do gênero. Para o círculo de Bakhtin, a interação, seja ela entre
interlocutores, ou entre obra e leitor/espectador/ouvinte é colocada como centro

1
Professor Doutor e Pesquisador da Universidade Presbiteriana Mackenzie, email:
docmarlon01@gmail.com .

358
organizador da linguagem, visto que as relações sociais orientam os interlocutores sobre
o que pode ou não ser dito e ainda como pode ser dito. Dessa maneira, pode-se dizer
que para produzir sentido em qualquer gênero se faz necessário o conhecimento sócio-
cultural que cada indivíduo traz e que foi constituído na trama das relações que
desenvolveu nos diversos contextos em que atua. Todo gênero se orienta para a reação-
resposta ativa do destinatário e, tal resposta é possível graças ao conhecimento prévio
que ele adquiriu por meio de suas relações sócio-culturais, permitindo a ele a construção
do seu discurso. Para exemplificar, seguem três momentos de reflexão:

Momento 1: a empresa Mondelez, atual detentora da marca de chocolates Bis, coloca no


ar em maio de 2016, um comercial em que uma menina com longos cabelos pretos que
lhe cobrem o rosto sai de um poço no meio de uma floresta e caminha em direção à
televisão a que um rapaz assiste comendo Bis.

Ela literalmente atravessa a TV causando pânico e criando uma situação de medo e


terror; ao final, fica claro que ela só queria mesmo pegar o chocolate que estava em uma
bandeja na sala. Ela só não contava que o rapaz estaria disposto a lutar com ela pelo
chocolate.

Momento 2: o cineasta Quentin Tarantino roteiriza e dirige um filme dividido em dois


volumes lançados em 2003 e 2004 respectivamente. O tema central da película é a
vingança da personagem Beatrix Kiddo, interpretada pela atriz Uma Thurman, contra
seus ex-parceiros de crime chamados de Esquadrão Assassino de Víboras Mortais.
Sucesso absoluto de crítica e público.

Momento 3: uma das novelas brasileiras com maior média de público nos últimos anos
termina com uma cena inesquecível: pai e filho de mãos dadas na praia declarando
mutuamente o quanto se amam. A cena é interpretada pelos atores Antônio Fagundes e
Mateus Solano (pai e filho na trama de Amor à Vida).

O que esses três gêneros discursivos (publicitário, cinematográfico e dramaturgia)


apresentam em comum, considerando-se os três momentos acima descritos? Sem
conhecimento prévio, sem construir a partir dele relações dialógicas, tudo ou muito do
que se quis transmitir acabaria se perdendo literalmente.

Observando-se o final de Amor à Vida, nota-se que ele foi construído por uma cena
plasticamente bonita e extremamente sensível, com o mar ao fundo, um final de tarde
inesquecível e dois atores que dialogam por expressões, praticamente sem emitirem

359
sons, apenas sentimentos. Todos que a assistiram (e foram muitos; para se ter uma ideia,
48 pontos de média em São Paulo e 75% da participação; quase 1 TV a cada 2 ligadas
no Brasil no horário, sintonizavam a novela e seu capítulo final) se emocionaram e
entenderam a beleza da sua atmosfera singela. Entretanto, alguns se emocionaram ainda
mais, pois foram telespectadores que tiveram o privilégio de assistir ao filme “Morte em
Veneza” de 1971, de Luchino Visconti. O filme inspirado no livro de mesmo nome,
conta a história de um homossexual já maduro que se apaixona por um jovem e morre
vítima da cólera. Em Amor à Vida, ninguém morre; só a homofobia do pai que sempre
rejeitou o filho homossexual.

Ao som de Adagietto da Sinfonia nº 5 de Mahler, a mesma trilha do filme, e com um


figurino que remete ao professor interpretado por Dick Bogarde, com o chapéu panamá,
César (Antônio Fagundes) surpreende o filho ao lhe estender a mão e declarar que
também o ama: - Eu também te amo… meu filho!

Quem viu, se emocionou porque, como dito anteriormente, acrescentou à cena da


novela, a lembrança e o conhecimento prévio do filme italiano. Ou seja, uma dose dupla
de sentimento e de emoção.

Agora da telinha à telona. Kill Bill, um retumbante sucesso do cinema e quarto filme do
prestigiado diretor Tarantino chegou às telas como um drama que tem como prato
principal, a vingança. Aqui, a questão pertinente é outra; a protagonista, Beatrix Kiddo é
mestre em artes marciais e usa um figurino amarelo inteiro com tênis da mesma cor;
ambos com listras pretas. Para o espectador, as cores fortes são impressionantes e
distinguem a heroína dos seus adversários, normalmente vestidos de branco ou preto. O
que potencializa tudo isto é que o mesmo figurino já havia sido utilizado, também no
cinema, pelo maior mestre de lutas marciais que já existiu: Bruce Lee, nascido nos
Estados Unidos e que, com apenas três meses, mudou-se para Hong Kong onde viveu
até o fim de sua adolescência. O documentário “A Warriors Journey” (A Jornada de Um
Guerreiro, de 2000) traz o ator usando figurino amarelo e preto na capa.

Assim, o que se pode observar em Kill Bill é uma homenagem explícita de Tarantino
aos filmes de artes marciais e em especial ao seu ídolo Bruce Lee. Mas para isso, mais
uma vez, recorre-se ao conhecimento prévio.

Finalmente chega-se ao discurso publicitário. No exemplo que citamos como momento


1, o comercial seria surreal, quase que sem sentido, sem o conhecimento prévio que nos

360
leva ao filme de terror japonês lançado em 1998 com o nome de Ringu ( O Chamado
em português). No filme, uma repórter decide investigar a morte misteriosa de sua
sobrinha e descobre que aparentemente a causa foi uma fita de vídeo que, quem a
assiste, morre em sete dias. Curiosa, a repórter assiste ao vídeo. Quando a fita acaba, o
telefone toca, e ouve-se uma mensagem premonitória e assustadora. A partir de então,
ela teria sete dias para descobrir como acabar com a maldição e salvar sua vida, e a de
seu filho, que também assistiu à fita. No filme, o personagem central é uma adolescente
de nome Samara, que nas cenas mais assustadoras entra e sai de um poço, sempre com
um traje branco puído e cabelos longos e negros sobre o rosto. Ela invade residências
por meio das ondas da televisão. Assim, quem viu o filme japonês (ou seu remake
chamado The Ring de 2002) pode fazer a relação dialógica no momento em que viu o
comercial da Mondelez divertindo-se até com a cena do chocolate Bis. Quem não viu,
não consegue produzir sentidos para a proposição do autor. A agência responsável pela
criação justificou a analogia por meio de pesquisas, uma vez que o anunciante,
Mondelez, percebeu que o consumo de Bis é quase sempre em casa e entre familiares e
amigos (em torno de 80%); a escolha pop de "O Chamado" veio ao encontro do novo
target da marca: o público entre 25 e 45 anos, que representa 60% dos consumidores de
Bis.

Três gêneros discursivos clássicos da comunicação que tratam de produtos distintos e


dialogam com públicos também diferentes em situações diversas fizeram sua mensagem
chegar com mais qualidade e assertividade pressupondo o conhecimento prévio do seu
espectador, do seu consumidor. E isto nos traz até o cerne desta reflexão sobre a
importância da ampliação do conhecimento para que as mensagens se complementem
por meios dessas relações dialógicas. Lembrando que ao se completarem, a
comunicação se realiza com eficiência e eficácia; afinal, comunicar não é o que se diz,
mas o que se entende, o que se produz de sentido. É desse pressuposto e por essa
relevância que se vê a necessidade de estudar e analisar o comportamento do discurso
publicitário, as codificações de sua produção e recepção aliadas ao conhecimento
prévio.

2. O Discurso Publicitário, mídia e seus truques verbos-visuais.

O discurso publicitário tem se apresentado cada vez mais irreverente e criativo e tem
contribuído para a criação das raízes da sociedade de consumo. Tem sido na era acirrada

361
do capitalismo, um elemento fundamental para persuadir o público-alvo que é
responsável pela instauração do consumo.

Para Baudrillard:

A sociedade de consumo, no seu conjunto, resulta do compromisso entre princípios


democráticos igualitários, que conseguem aguentar-se com o mito da abundância e
do bem-estar, e o imperativo fundamental de manutenção de uma ordem de
privilégio e de domínio. (Baudrillard,1995, p.52)
Dessa maneira, para atingir seus interlocutores, as agências de publicidade não têm
medido esforços e criatividade para pontuar o produto a ser oferecido por meio da
verbo-visualidade. Sobre isto vale recorrermos a Rocha que admite a construção de
imagens em torno do produto pela Publicidade, criando ainda utilidades e desejos,
sempre buscando uma atitude por parte do interlocutor/consumidor. Rocha diz que a
publicidade é um:

[...] mundo onde produtos são sentimentos e a completamente diferente, posto que
sempre bem sucedido. Onde o cotidiano se forma em pequenos quadros de
felicidade absoluta e impossível. Onde não habitam a dor, a miséria, a angústia, a
questão. Mundo onde existem seres vivos e, paradoxalmente, dele se ausenta a
fragilidade humana. Lá, no mundo do anúncio, a criança é sempre sorriso, a mulher
desejo, o homem plenitude, a velhice beatificação. Sempre a mesa farta, a sagrada
família, a sedução. Mundo nem enganoso nem verdadeiro, simplesmente porque
seu registro é o da mágica. (Rocha,1995, p.25)
Sobre o discurso publicitário é importante a compreensão de suas técnicas genéricas, já
que devemos observar nas análises que serão realizadas, o gênero a que pertencem e seu
papel comunicativo. Nesse sentido, Gomes (2001, p.111-121). esclarece que, “na área
da Comunicação, comumente publicidade e propaganda são confundidas, ou até vistas
como sinônimas, o que acontece, também, no Brasil”. A distinção entre elas acaba se
baseando numa interpretação subjetiva, como exemplifica uma busca no Dicionário
Aurélio. É possível observar nos verbetes a distinção que tais conceitos possuem, ainda
que isso possa ser discutível. Hoje em dia, publicidade e a propaganda não agem
isoladamente e aquele que faz publicidade ou propaganda costuma ser conhecido como
“publicitário”; além disso, ambas fazem parte de um contexto maior, denominado
“marketing”. Pode-se admitir que o discurso publicitário se faz na esfera da publicidade
e que a propaganda é uma ferramenta que o marketing dispões para buscar seus
objetivos.

Para Carvalho (2000, p.75), “o uso de discursos persuasivos e de sedução está


subjacente ao discurso publicitário como um todo”. Tal discurso se processa por meio
dos gêneros ligados à esfera publicitária, na qual, como afirma Bakhtin (2010, p.88):

362
“nenhum princípio ou valor subsiste como idêntico e autônomo, como constante,
separado do ato vivo do seu reconhecimento como princípio válido ou valor”.

Assim sendo, o discurso publicitário pode ser observado como aquele que deve fascinar
o olhar. Ágil e sedutor, ele atua na subjetividade de maneira contundente, sempre pronto
para capturar, estimular e fazer agir. A eficácia do discurso publicitário reside,
justamente, na combinação de elementos persuasivos. Permanentemente mutante, a
publicidade adere ao contexto por meio de um processo de codificação que utiliza as
referências do momento.

Uma das questões fundamentais, para qualquer publicitário, é saber ler o contexto
social: é dele que são extraídas as ideias. Para tanto, no jogo da sedução, é necessário
buscar as carências vigentes na sociedade, para, sobre elas, atuar, de modo a propiciar o
investimento do olhar, por parte dos interlocutores. Se a sociedade está passando por
problemas econômicos, o publicitário em seu discurso dará ênfase ao baixo custo do
objeto, às vantagens por ele propiciadas, à oferta promocional; se há carências sexuais,
os objetos serão investidos de erotismo: até mesmo amortecedores de carro poderão ter
o “balanço da Marilyn” (no caso, a marca “Monroe”). Se a questão é a violência, oferta-
se segurança. E, assim, estabelece-se a “ponte” mítica entre a ideia e o objeto. No mais,
necessita-se de uma narrativa de ligação entre os dois pólos. Mas o objeto apresenta-se
como empírico, concreto, limitado, enquanto a ideia é abrangente, abstrata: são
elementos, em princípio, incompatíveis, passíveis apenas de se juntarem no plano da
narrativa construída.

É aqui que um primeiro conceito importante se apresenta para, em conjunto com o


conhecimento prévio, o discurso publicitário possa ser construído: o contexto. Não se
pode descontextualizar a publicidade; oposto a isto, ela é sempre fortemente contextual,
pois necessita de instantaneidade; é ali, naquele momento, no aqui e no agora, que ela
deve produzir sentido, sob pena de tornar-se “notícia velha”, assunto passado, sedução
que se perdeu no tempo.

E o contexto se instala do completo conhecimento da sociedade, de seu momento e de


seus anseios. As campanhas publicitárias, amplamente divulgadas nas mídias, são
elaboradas a partir de inúmeras pesquisas relacionadas ao perfil do próprio público-alvo,
o qual entrará em sintonia ao que se pretende anunciar e, consequentemente, vender. O
papel da mídia nesse processo é discutido por Franzão (1998, p.19): “a ação da mídia, a
mensagem, necessariamente, tem que chegar à pessoa certa, ao consumidor potencial da

363
categoria e da marca em questão, e na intensidade, no momento, no ambiente correto e
adequado.”

Partindo-se desse princípio, à medida que uma corporação encomende a uma agência de
publicidade uma determinada campanha publicitária, para vender um produto x ou um
serviço y, ela, imediatamente fará um minucioso estudo do perfil do público-alvo com a
finalidade de criar estratégias de marketing que visam garantir o sucesso da campanha e,
por conseguinte, vender o que está anunciando. Observando sempre o contexto do
momento, procurando uma certa previsão das tendências que estão por vir. Dessa forma
busca-se antever a relevância e a assertividade da comunicação e sua adequação ao
público-alvo. Se não é garantia plena de sucesso, tal estratégia ao menos, minimiza os
riscos de cada investimento.

3. O conhecimento prévio: matéria-prima para compreensão do discurso


publicitário e adequação ao universo midiático.

Conhecimentos prévios são os saberes ou as informações armazenadas na memória, os


quais podem ser acionados quando necessários. No entanto, a situação não é tão
simples, pois há uma complexidade a respeito do funcionamento da memória. Existem
tantas informações referendadas pela aprendizagem e vivências, que muitas vezes não
se sabe exatamente como acioná-las. Alguns estudos apontam que não há
compartimentos na memória onde as memórias; as informações são ativações neuronais
que reconstroem o conhecimento e recuperam tais informações.

Um segundo aspecto importante é a dinamicidade do conhecimento. Há muitas


informações disponíveis na memória e elas não são estáticas. A cada momento se
modificam, renovam-se, são enriquecidas ou se perdem. Uma ideia ou conceito que
usamos muito fica mais ativado do que outro que raramente usamos. Pode-se comparar
as informações com os músculos do corpo; aqueles que são exercitados com mais
frequência e intensidade estão sempre ali, mais desenvolvidos e prontos para o uso; se
não as usamos, desativam até cair no esquecimento.

Partindo-se para o terceiro aspecto relevante para nossa análise, é fundamental a


reflexão sobre os tipos de conhecimento prévio como: conhecimento intuitivo,
científico, linguístico, enciclopédico, procedimental, entre outros. São classificações
que utilizamos para diferenciar o arsenal de informações que somos capazes de
processar e armazenar. É necessário pensar no tipo de conhecimento que se está

364
considerando; e lembrar que ele pode ser gerado durante, por exemplo, a leitura de um
texto. Considerando-se a leitura uma atividade de interação, observando-se inclusive, a
clara necessidade de reconhecimento dos elementos linguísticos, necessários para a
produção de sentidos. Tal procedimento é realizado o tempo todo durante a atividade
de leitura na qual inserem-se ações estratégias cognitivas. Tais estratégias ativam os
conhecimentos prévios que arquivados na memória, auxiliando no processo de
elaboração de hipóteses de interpretação sobre o que se lê.

O que normalmente se chama de conhecimento prévio são as informações que se


pressupõe que o interlocutor necessita para produzir sentido de uma determinada
comunicação. Tais informações serão responsáveis pela geração de inferências, isto é,
para a construção de novas informações que não são explicitamente apresentadas no
texto e para conectar partes do texto construindo sua coerência, por meio das relações
dialógicas que serão realizadas. Toda a vida histórico-cultural pela qual o sujeito passa
vai oferecendo a ele experiências, acontecimentos e eventos que vão ser armazenados
na memória, para, posteriormente serem reconstituídos em outras situações.

Ainda no campo do conhecimento, pode-se destacar três tipos: o conhecimento


interacional, o ilocucional e o metacomunicativo. O primeiro pode ser entendido como o
saber sobre as formas de interação por meio da linguagem, englobando o próprio
conhecimento ilocucional, que se traduz como a capacidade de reconhecer a força de
todo ato de fala. Nesse sentido o interlocutor reconhece a força de uma afirmação, o
oferecimento, a promessa, uma ordem, sempre em ligados a um determinado contexto.
Trata-se de um designar o quê e o como do enunciado; permite-se portanto identificar a
intencionalidade do produtor do texto, do anunciante. Já o metacomunicativo permite
compreender o texto por meio de várias ações linguísticas e apoios textuais, como
grafias destacadas, expressões e metalinguagem e a relação verbo-visual.

Todo esse conjunto de conhecimento e saberes garantem ao público-alvo e ao leitor de


forma geral a capacidade de levantar hipóteses de leitura e compreensão mais
apropriadas. Sendo assim, quanto maior for a capacidade de compreensão, inclusive de
intencionalidades do autor, mais preparado o seu interlocutor estará para absorver e
refletir sobre o que lê, vê e interpreta.

Também igualmente importante neste sentido é destacar que a produção de sentidos


exige que alem do conhecimento prévio, o leitor-consumidor recebe a informação no
espaço midiático que lhe faça mais sentido e que lhe seja de maior intimidade. Jovens

365
adolescentes têm mais afinidade por conteúdos digitais enquanto idosos sentem-se mais
à vontade partilhando o discurso impresso, seja nos meios revista ou jornal.

De uma forma ou de outra, a ironia do discurso publicitário está no fato de que ele ao
mesmo tempo que exige o conhecimento prévio para se fazer compreender, prefere que
a capacidade de reflexão seja diminuta, uma vez que sua essência não é o fazer pensar,
mas o fazer agir. Para que, de forma simples, como o mercado mesmo anuncia, é
preciso que todos entendam o que foi dito, mas não compreendam as verdadeiras
intenções”.

4. Produzir sentidos e se fazer compreender: análises discursivas no discurso


publicitário.

Ler é construir sentidos. Ao ler o indivíduo estabelece relações entre o que está dito e o
que está implícito e o que pode ser relacionado com nossa memória discursiva. Ler é um
processo interacional. É possível ler imagens, para além das palavras; a imagem
também produz sentidos; ela informa, comunica. Ela se constitui em texto e atua de
forma fundamental no discurso publicitário, cada vez mais pictórico.

A seguir apresenta-se algumas análises de anúncios publicitários selecionados a partir


da sua construção de sentidos e do seu apelo ao conhecimento prévio do público a que
se destina.

Buscou-se exemplos de empresas distintas, que trabalham em segmentos diferentes de


mercado (cosméticos e calçados), mas que têm em comum, a prioridade no público
feminino e o uso das inspirações de histórias infantis como mote de sua comunicação e
que retomam a mesma história infantil e, portanto, a análise possibilita algumas
conclusões que podem ser comparadas efetivamente.

No ano de 2005, O Boticário entrou na onda do mundo da fantasia. Com a campanha


“Conto de Fadas”, produzida pela agência AlmapBBDO, foram apresentados quatro
anúncios e quatro outdoors trazendo Branca de Neve, Cinderela, Chapeuzinho
Vermelho e referências a cavaleiros e dragões. Para esse momento, volta-se o olhar para
o anúncio Chapeuzinho Vermelho.

366
Anúncio 1 | Anunciante O Boticário

Fonte: http://mundofabuloso.blogspot.com.br/2008/01/o-boticario-e-suas-princesas.html

O anúncio traz um fundo com céu azul e algumas nuvens brancas esparsas, trazendo a
energia de um bonito dia de sol, o que transmite tranquilidade, serenidade. Esta
serenidade é transmitida pelo olhar da modelo: ela olha com firmeza, consciente de sua
beleza e de seu poder. Este olhar reforça o empoderamento feminino, a força que emana
das mulheres que sabem que sabem o que querem.

A referência ao conto infantil dos irmãos Grimm se faz pelo texto verbal e pela imagem.
O manto vermelho por estar sobre a cabeça da modelo remete imediatamente ao
“Chapeuzinho vermelho”, característica cênica e de figurino da personagem principal da
história; mas, para que não pairem dúvidas, o título deixa claro qual a personagem que
está sendo retratada.

Portanto, por meio da verbo-visualidade, a memória e o conhecimento prévio do leitor


são acionados e o levam para o contexto da história da garota que tinha medo de
caminhar sozinha pela floresta e encontrar o Lobo Mau sempre que havia de levar
comida para sua avó.

Mas além da segurança do olhar e da boca vermelha que define poder e sedução, o título
mostra com clareza o que as atuais “chapéus vermelhas” são capazes de fazer. Saem de
cena as mulheres e adolescentes frágeis, receosas dos homens e de seus
comportamentos sociais e entram em cena a geração de mulheres que decidem o que
querem, seguras de seu poder de sedução e que são capazes de ter qualquer homem na
palma da mão. E, se este homem for um “lobo mau”, sabem como prendê-lo e trazê-lo
em uma coleira. Aqui, o conhecimento prévio novamente é ativado, pois a coleira
representa a falta de liberdade ou seja, homens que se encantam com mulheres seguras,

367
se tornam presas fáceis; muitos inclusive, se casam (e aqui a coleira em formato circular
pode e remete às alianças, símbolo oficial do casamento).

Anúncio 2 | Anunciante Melissa


Nesse caso, há uma fantástica seqüência de anúncios publicitários que fizeram parte da
coleção Primavera/Verão 2008 da Melissa. A campanha foi assinada pela
BorghiErh/Lowe e veiculadas na revista Capricho.

As protagonistas Chapeuzinho Vermelho, Cinderela, Branca de Neve e Rapunzel


revelam atitudes bem mais adultas e diferentes das apresentadas nos tradicionais contos
de fadas. Para essa análise, trouxemos o anúncio Chapeuzinho Vermelho.

Fonte: http://mundofabuloso.blogspot.com.br/2007/08/contos-cabulosos.html.
Três anos depois da campanha de O Boticário, Melissa veiculou seus Contos de
Melissa, uma série de anúncios inspirados também nos contos infantis. Diferentemente
de O Boticário, os anúncios de Melissa não trazem títulos ou textos argumentativos; a
imagem deve definir a mensagem como um todo.

Temos a ação ocorrendo em uma floresta em um belo dia, por entre raios solares, muito
verde das folhas e personagens bucólicos como uma família de coelhos (no canto
inferior direito). Já se percebe que a floresta], há muito deixou de ser assustadora e que
para mulheres que usam Melissa, não há receio de lugares onde ir.

A ação se dá por meio de uma motocicleta potente cujo design agressivo em sua pintura
e escapamento duplo remete à marcas como Harley-Davidson ou Indian, ambas
desenhadas para impressionar, seja por sua robustez, forma ou ronco. Quem está sobre a
moto? Um casal aparentemente impossível de se imaginar: o Lobo Mau e a
Chapeuzinho Vermelho. Ele traja sua jaqueta de couro, acessório notório entre

368
motociclistas e gangues “do mal”; ela em um vestidinho curto, vermelho e sensual,
deixando belas pernas à vista. Usa o clássico capuz e capa vermelha para que o
conhecimento prévio seja acionado e se reconheça de imediato de se tratar de uma
versão moderna da Chapeuzinho Vermelho dos irmãos Grimm. E, claro, usando um par
de Melissas vermelhas nos pés.

Aqui, o empoderamento feminino também se faz presente, pois a personagem não tem
medo nem da floresta, nem de estar com o lobo mau. Pelo contrário, ambos formam um
inusitado e moderno casal, capaz de chamar a atenção de todos, inclusive da coruja
acima de suas cabeças.

Conclusões

O objetivo desse trabalho foi buscar demonstrar como o leitor para dar sentido a
determinadas produções ativa seus conhecimentos prévios arquivados na memória e
assim realiza ações de compreensão e interpretação textual, conforme lê e busca decifrar
o que processa. O discurso publicitário por sua natureza imediatista e seu alto custo de
veiculação não pode admitir que sua mensagem não seja 100% compreendida; qualquer
ruído é prejudicial e, aqui, não se fazer compreender é efetivamente, desperdiçar a verba
investida.

Por ser um discurso persuasivo e sedutor, faz uso de todas as artes que têm à disposição,
como a pintura, a música, o teatro e a literatura entre outras, para veicular o que deseja
apresentar ao seu interlocutor. Assim, sua mensagem] normalmente, está impregnada
por referências verbo-visuais que têm sua origem em outras esferas artísticas.

Se não há por parte do seu público leitor ou público-alvo condições anteriores para
entendimento das referências que propõe, o trabalho se perde, o texto não se completa e
a intenção não se realiza.

O Boticário e Melissa usaram em suas campanhas o recurso de trazer releituras de


contos infantis e trabalharam, ambos, com sua própria interpretação e intencionalidade
para seu público atual, a nova geração feminina.

Hoje, as mulheres são outras; mais seguras, mais sedutoras e mais independentes. Para
elas O Boticário e Melissa estão prontas, com produtos que se adequam à nova mulher:
ela não têm medo de florestas, lugares estranhos e lobo mau. Todas, assim, são
potenciais clientes. São elas que estão reescrevendo as histórias infantis. São novas

369
Chapeuzinhos, Brancas de Neve, e princesas que não ficam mais à espera de seus
príncipes encantados. Mas, como toda boa história, esta fica para uma próxima vez.

Referências Bibliográficas

[1] BAKHTIN, M. A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de


François Rabelais. São Paulo; Brasília, DF: Hucitec; EdUnB, 2010, p.88.

[2] BAUDRILLARD, Jean. A sociedade de consumo. Lisboa: Edições 70, 1995.p.52

[3] ROCHA, Everardo P. Guimarães. Magia e Capitalismo: um estudo antropológico da


publicidade. São Paulo: Brasiliense, 1995.p.25
[4] GOMES, N.D. Publicidade ou Propaganda? É isso a!. Revista FAMECOS . Porto Alegre,
número 16, dezembro 2001.p.111-121
[5] CARVALHO, N. Publicidade: A linguagem da sedução. 3.ed. São Paulo: Ática, 2000,
p.75.

[6] BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. Tradução de Paulo Bezerra. 5ª Ed. São Paulo:
Editora WMF Martins Fontes, 2010.p.17

[7] FRANZÃO, Ângelo. Mídia: função básica. In: PREDEBON, José (org). Propaganda:
profissionais ensinam como se faz . São Paulo: Atlas, 1998.p.19

370
Educomunicação e linguagem audiovisual: (des)construção de roteiros no
contexto da produção de videoclipes

Educommunication and audiovisual language: (de)construction of scripts in


context of video clips production

Natália Rosa Muniz Sierpinski1


Felipe Gustavo Guimarães Saldanha2

Resumo: O presente trabalho apresenta reflexões acerca de uma oficina


educomunicativa feita em junho de 2018 com alunos da Faculdade de Tecnologia
Prefeito Hirant Sanazar – FATEC Osasco (SP), na qual os autores mediaram uma
atividade sobre roteiro e produção audiovisual com ênfase no formato de videoclipe. A
partir dos conceitos de jornada do herói e de representação, foi discutida a construção
narrativa e de roteiro, exemplificada com videoclipes musicais. A práxis também
abordou elementos como storyboard, montagem e enquadramento, com vistas a orientar
uma futura produção prática pelos alunos. A partir das discussões realizadas durante a
atividade, foi possível inferir que a oficina contribuiu para que os alunos percebessem
os padrões narrativos e representacionais nas produções audiovisuais do seu cotidiano e
formassem uma postura mais crítica em relação a elas, ficando evidente a importância
de abordar essa linguagem na sala de aula e no dia a dia escolar.

Palavras-chave: Audiovisual; Videoclipe; Narrativa; Representação; Educomunicação.

Abstract: The present work presents reflections about an educational workshop done in
June 2018 with college students of Faculdade de Tecnologia Prefeito Hirant Sanazar –
FATEC Osasco (SP), in which the authors mediated an activity on script and
audiovisual production with emphasis on the video clip’s format. From the concepts of
the hero's journey and representation, the narrative and script construction were
discussed, exemplified with music video clips. The praxis also dealt with elements such
as storyboard, montage and framing, aiming to guide a future practical production by
students. From the discussions carried out during the activity, it was possible to infer
that the workshop contributed to the students' understanding of the narrative and
representational patterns in the audiovisual productions of their daily life and to form a
more critical posture towards them, being evident the importance of addressing this
language in the classroom and day to day school.

Key words: Audiovisual; Video clip; Narrative; Representation; Educommunication.

1
Licenciada em Educomunicação pela Universidade de São Paulo (USP). E-mail: natalia.sierpinski@usp.br
2
Doutorando em Ciências da Comunicação pela Universidade de São Paulo (USP). Mestre em Tecnologias,
Comunicação e Educação pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU). Graduado em Comunicação Social com
Habilitação em Jornalismo pela UFU. E-mail: fgsaldanha@gmail.com

371
Introdução

O presente trabalho traz reflexões acerca de uma práxis educomunicativa a partir da


mediação da linguagem audiovisual, com foco em roteiro de videoclipes, realizada em
junho de 2018, planejada e executada pelos autores deste artigo na Faculdade de
Tecnologia Prefeito Hirant Sanazar – FATEC Osasco (SP), com alunos do curso de
Graduação Tecnológica em Gestão Financeira. Tal ação está integrada a um ciclo de
formações promovidas pelo Núcleo de Comunicação e Educação da Universidade de
São Paulo (NCE-USP) que vem ocorrendo há meses, com alunos e professores da
instituição de ensino.

Com o objetivo de aprofundar as ponderações trazidas pela oficina na interface


educomunicação/audiovisual e verificar quais avanços teóricos foram constatados com
tal prática pedagógica, dividiu-se o presente artigo em quatro seções. A primeira seção –
Educomunicação: práxis social e ecossistemas comunicativos – apresenta um panorama
histórico da Educação Midiática e mostra como o paradigma educomunicativo localiza-
se dentro de tal trajetória, além de apresentar sua evolução conceitual e descrever suas
áreas de intervenção.

Posteriormente a essa retomada, elencam-se na segunda seção – Audiovisual, educação


e educomunicação – as relações teóricas e práticas que existem entre a educomunicação
e a linguagem audiovisual, com a exposição de projetos que incorporaram as duas
interfaces e as pesquisas que focaram essa inter-relação. A terceira seção –
Representações e narrativas na sala de aula – detém-se em destrinchar e examinar os
conceitos de representação e narrativa que foram apresentados durante o processo da
oficina em questão. Posteriormente, na última seção – Além dos segredos do vídeoclipe:
(des)construções na sala de aula –, o foco é no campo pragmático da oficina, elencando
os conteúdos técnicos e discussões teóricas que foram apresentadas em tal ação
formativa.

Ao final do artigo, pretende-se contribuir com considerações acerca do uso da


linguagem audiovisual na educação formal a partir da práxis educomunicativa no
contexto da formação discente no Ensino Superior Tecnológico da educação pública.

372
Educomunicação: práxis social e ecossistemas comunicativos

Projetos de educação midiática – que se concentram na aquisição de habilidades de


acessar, analisar, avaliar e comunicar mensagens em uma ampla variedade de formas
(UNESCO, 2016) – têm ganhado força nos Estados Unidos, na Europa e na América
Latina desde os anos 1970, embora com especificidades em cada região, como mostra
Soares (2014). No hemisfério norte, são vinculados predominantemente aos chamados
protocolos moral e cultural. O primeiro, de inspiração religiosa, entende que a proteção
da criança e do adolescente e o seu acesso a produções midiáticas socialmente
responsáveis, em última instância, se sobrepõem à liberdade de expressão. O segundo,
mais ligado ao universo da educação formal, considera que, fazendo a mídia parte da
cultura contemporânea, os mais jovens devem ter acesso a informações sobre ela para
que se tornem “imunes” aos efeitos psicológicos causados pelos seus excessos.

Já no continente latino-americano, a partir dos 1980, um terceiro protocolo se


estabelece: o midiático, que se baseia nos movimentos sociais ligados à democratização
da comunicação e busca sustentação teórica no conceito de mediações, entendidas como
“lugares dos quais provêm as construções que delimitam e configuram a materialidade
social e a expressividade cultural [das mídias]” (MARTÍN-BARBERO, 1997; 292) e
nos quais os atores envolvidos transitam entre os papéis de emissores e receptores. As
ações de educação midiática vinculadas a este protocolo passaram a ser identificadas
com o termo “educomunicação” após uma pesquisa realizada em 1999 com
especialistas dos campos da educação e da comunicação, liderada pelo NCE-USP, ter
identificado a emergência de um campo de intervenção social autônomo definido como:

[...] o conjunto das ações inerentes ao planejamento, execução e


avaliação de produtos e processos voltados para a criação e
desenvolvimento de ecossistemas comunicativos abertos e criativos,
em espaços educativos (formais, não formais ou, mesmo, informais),
mediados pelas tecnologias da informação, mediante uma gestão
democrática e compartilhada de tais recursos, tendo como meta a
ampliação do coeficiente comunicativo dos sujeitos e a prática plena
da cidadania. (SOARES, 2011b; 313)
Posteriormente, o NCE procurou atualizar a definição para torná-la menos funcionalista
e passou a entender o campo como um paradigma3 norteador das ações de grupos

3
Conceito de definição complexa, originalmente proposto por Thomas Kuhn e posteriormente
reformulado por outros autores, podendo ser entendido resumidamente como “pedra angular de um
sistema de conhecimento [...] produto de todo um desenvolvimento cultural, histórico, civilizatório”
(MORIN, 2006; 54, 77), que engloba conceitos sujeitos a operações lógicas.

373
humanos objetivando alcançar a plenitude do direito universal à expressão, marcado por
um caráter de utopia social. Nesse sentido, a educomunicação é práxis social (SOARES,
2011a, 2017). Práxis pode ser definida como uma atividade material, adequada a fins,
que transforma o mundo natural e humano, não sendo caracterizada como apenas
prática ou apenas teórica, mas como articulação entre ambos os polos:

A teoria em si [...] não transforma o mundo. Pode contribuir para sua


transformação, mas para isso tem que sair de si mesma e, em primeiro
lugar, tem que ser assimilada pelos que vão ocasionar com seus atos
reais, efetivos tal transformação. [...] Nesse sentido uma teoria é
prática na medida em que materializa, através de uma série de
mediações, o que antes só existia idealmente, como conhecimento da
realidade ou antecipação ideal de sua transformação. (VAZQUEZ,
1977; 207)
O conceito de ecossistema comunicativo, presente na definição original de
educomunicação, pode ser entendido como sendo “a organização do ambiente, a
disponibilização dos recursos, o modus faciendi dos sujeitos envolvidos e o conjunto
das ações que caracterizam determinado tipo de ação comunicacional” (SOARES, 1999;
69). Os indivíduos e as instituições criam ecossistemas que se superpõem e influenciam
uns aos outros, conformados a partir de distintas regras de convivência. No caso da
educomunicação, o ecossistema perseguido é visto como “um ideal de relações,
construído coletivamente em dado espaço, em decorrência de uma decisão estratégica
de favorecer o diálogo social, levando em conta, inclusive, as potencialidades dos meios
de comunicação e de suas tecnologias” (SOARES, 2011a; 44), sendo que “a relação
dialógica não é dada pela tecnologia adotada, mais ou menos amigável, mas
essencialmente pela opção por um tipo de convívio humano” (SOARES, 2011a; 45).

De acordo com Soares (2013), as ações educomunicativas podem ser agrupadas em


diversas áreas de intervenção: educação para a comunicação (ligada aos programas de
leitura crítica de mídia); expressão comunicativa por meio da Arte (voltada para o
potencial comunicativo da expressão artística); mediação tecnológica na educação
(relacionada com o acesso e o domínio das tecnologias digitais pela comunidade);
pedagogia da comunicação (vinculada às práticas de ensino na sala de aula); gestão da
comunicação (que diz respeito ao planejamento, execução e avaliação das ações
referentes às demais áreas); reflexão epistemológica (dedicada à sistematização

374
acadêmica das experiências educomunicativas); e produção midiática para a educação
(prestação de serviços pelos meios de comunicação para a prática da cidadania).

Audiovisual, educação e educomunicação

No fim do século passado, Moran (1995) já alertava o professor para os cuidados


necessários a se ter com o vídeo em sala de aula. Numa perspectiva ainda anterior à
sistematização do conceito de educomunicação, o autor elenca usos que considera
inadequados, como “vídeo-tapa-buraco”, “vídeo-enrolação”, “vídeo-deslumbramento”
ou “só vídeo”, pouco integrados à aula ou que simplesmente a substituem. Em seu
lugar, propõe que o audiovisual seja utilizado como instrumento de sensibilização,
ilustração, simulação, conteúdo de ensino, produção (documentação, intervenção e
expressão), avaliação, espelho ou em integração com outras mídias.

Indo ao encontro dessas propostas, Costa (2013) aponta a importância de os professores


não deixarem o material audiovisual substituir o seu lugar de narrativa na aula. Para
tanto, a autora elenca que os educadores devem se inteirar sobre o audiovisual
escolhido, levar a ficha técnica dele para a sala de aula e preparar um material prévio
que consiga contextualizar a temática do filme e suas escolhas estéticas, incluindo nesse
planejamento um momento para que os alunos possam fazer uma reflexão sobre o
audiovisual escolhido e expressar suas opiniões.

A autora ainda aponta que tal planejamento pedagógico deve considerar os hábitos
midiáticos e culturais de seus alunos, a fim de elencar produções que possam dialogar
com o repertório dos estudantes, salientando a importância do processo de escolha do
material audiovisual que será levado para a sala de aula.

Além das considerações acerca da entrada do audiovisual na escola de maneira


integrada ao planejamento pedagógico, também é necessário avançar para a construção
da alfabetização audiovisual dos estudantes:

Temos certeza de que a alfabetização dos espectadores na gramática


cinematográfica é o melhor caminho para construir um público menos
passivo e mais exigente. Assim, a relação entre cinema e educação
deve ser vista como uma mútua colaboração – do educador, e da
educação, promovendo um público espectador mais conhecedor e
menos ingênuo em relação à produção cinematográfica. (COSTA,
2013; 105)

375
Em sua tese, Mogadouro (2011) buscou compreender qual era o papel do cinema na
educação formal e conseguiu constatar que uma das grandes dificuldades do trabalho
com o audiovisual nas escolas era em relação à formação docente, em que o próprio
educador na maioria das vezes não tem essa alfabetização audiovisual, e que isso
conflita com a lógica educacional tradicional em que o professor deve ser sempre a
fonte primária do conhecimento:

O paradigma educacional predominante ainda é o tradicional, com


conteúdos fragmentados, gestão autoritária, desvalorização do
professor e uma exigência na relação professor/aluno, em que o
primeiro ainda é o transmissor do saber. Na cultura audiovisual,
muitas vezes os alunos sabem mais que o professor, o que só aumenta
a insegurança do docente. (MOGADOURO, 2011; 275)
Na mesma pesquisa, a autora acompanhou diversos professores no exercício da prática
de levar o audiovisual para a sala de aula, ficando evidente o uso da
interdisciplinaridade, a necessidade de um planejamento pedagógico e da presença do
diálogo, e demonstrando a importância de aprender a ouvir o outro, a partir das práticas
de debates sobre os audiovisuais, que contribuíram para fomentar a construção de um
ecossistema comunicativo nas escolas mais aberto e dialógico.

Voltando-se a outras propostas que abordaram essa temática a partir do viés da


educomunicação, ao longo dos anos 2000, várias delas buscaram formas de articular a
produção de vídeos nos ensinos formal e não-formal sob uma perspectiva participativa e
dialógica. O projeto “Do Giz ao Pixel”, realizado pelo Centro de Criação de Imagem
Popular (CECIP) com alunos e professores de escolas municipais do Rio de Janeiro
(RJ), previa a utilização de recursos tecnológicos de fácil acesso – máquinas
fotográficas digitais e computadores com o popular sistema operacional Windows, que à
época incluía um editor de vídeos simples pré-instalado – para a elaboração do que
geralmente era o “primeiro filme” dos participantes, editado sem lançar mão de roteiros
ou recursos mais sofisticados (CECIP, 2009).

Já em Niterói (RJ), a “Central de Notícias da Escola”, projeto da ONG Bem TV também


desenvolvido em escolas municipais, seguia uma metodologia baseada na divisão de
jovens em grupos e na distribuição de tarefas mais complexas entre eles, de forma a
contemplar as etapas de argumento, roteiro, gravação, decupagem e edição (BEM TV,
[2006?]). Etapas semelhantes às seguidas pelo projeto independente “Cala-boca já
morreu” – criado em 1995 e, portanto, um pioneiro da área –, com a diferença de que

376
este não trabalha com decupagem e edição, mas em seu lugar propõe a “pré-edição”,
momento em que o grupo observa atentamente o ambiente à sua volta, para em seguida
definir as cenas a serem filmadas e gravá-las na ordem pré-estabelecida, resultando em
um produto quase pronto (LIMA, 2009).

Por fim, o projeto “Olha a gente aqui”, realizado desde 2014 pelo Instituto Asas
Comunicação Educativa, atuou em escolas públicas da cidade de São Paulo (SP) com
jovens entre 14 a 18 anos com oficinas de média duração utilizando as linguagens da
fotografia, mídias digitais e audiovisual. As oficinas de audiovisual abordavam os
conceitos principais da História do Cinema com posterior construção coletiva de roteiro
e gravação de um curta-metragem no espaço escolar – o processo de edição e
finalização não era incluso nas aulas e realizado posteriormente, ao final das gravações,
pelo educador responsável pela sala. O projeto também levava mostras de audiovisual
para as escolas, com a exibição dos curtas produzidos pelos estudantes (INSTITUTO
ASAS, 2014).

Assim, percebe-se que já existem diversas práticas e contribuições acerca da interface


educomunicação/audiovisual. A oficina apresentada no presente artigo, tributária de
todas elas, parte da práxis educomunicativa para trazer conceitos acerca da linguagem
do videoclipe juntamente com uma visão crítica sobre o letramento audiovisual.

Representações e narrativas na sala de aula

Uma parte significativa da oficina em questão foi voltada ao debate sobre representação
e narrativa. Assim, busca-se trazer aqui reflexões que aprofundem tais conceitos, que
foram o fio condutor da prática pedagógica aqui referida.

Representação é um termo complexo que compreende definições das mais simples às


mais elaboradas. Em uma acepção mais básica, ligada ao cognitivo, refere-se ao
significado de um padrão de estimulação, uma palavra ou símbolo unitário (AUSUBEL;
NOVAK; HANESIAN, 1980). Já em um âmbito mais amplo, social, é entendida por
Moscovici (2007; 45) como um fenômeno cujo objetivo é “abstrair sentido do mundo e
introduzir nele ordem e percepções, que reproduzam o mundo de uma forma
significativa”. Ainda segundo o autor, as representações sociais “corporificam ideias”,
isto é, transformam teorias e ideologias em realidades compartilhadas e interações

377
coletivas. A necessidade deste elo entre crenças abstratas e atividades concretas teria
sido aumentada pelos meios de comunicação de massa.

Citelli (2012; 8), comentando Moscovici, afirma que as representações sociais são
“crenças, conhecimentos, perspectivas que são geradas e compartilhadas por sujeitos no
que se refere a um dado objeto ou situação social”. Uma vez que as representações são
uma forma não só de explicar e interpretar, mas de produzir conhecimento, segue o
autor: “a representação diz respeito à construção [...] e não à reprodução do que ocorre
no mundo da vida” (CITELLI, 2012; 9). É um ponto de vista que encontra eco com o
que Baccega (2009; 15) chama de passagem do “mundo editado” à “construção de
mundo”, já numa perspectiva de desafio imposto à prática educomunicativa:

O mundo, hoje, é trazido até o horizonte do universo no qual nos


inserimos. Ele nos chega através de relatos, eles próprios, já eivados
da subjetividade de quem os produz. É deles que partimos para nossa
reflexão. [...] Esse mundo que a edição constrói reconfigura‑se no
receptor, com seu universo cultural e dinâmica próprios. Ou seja: ele
é, aí também, reeditado. Assim se configura o desafio mais importante
para os estudiosos do campo comunicação/educação
[educomunicação]: o mundo a que temos acesso é este, o editado. É
nele, com ele e para ele que se impõe construir a cidadania.
É nesse contexto de “mundo editado” que a mídia dialoga e contribui para criar e
reforçar representações e ao mesmo tempo ser influenciada por representações já
existentes, tendo assim, na composição audiovisual, a ausência de neutralidade, estando
o audiovisual também integrado a esse contexto de representação:

O cinema foi estudado como um aparato de representação, uma


máquina de imagem desenvolvida para construir imagens ou visões da
realidade social e o lugar do espectador nele. Mas, [...] como o cinema
está diretamente implicado à produção e reprodução de significados,
de valores e ideologia, tanto na sociabilidade quanto na subjetividade,
é melhor entendê-lo como uma prática significante, um trabalho de
simbiose: um trabalho que produz efeitos de significação e de
percepção, auto-imagem e posições subjetivas, para todos aqueles
envolvidos, realizadores e espectadores; é, portanto, um processo
semiótico no qual o sujeito é continuamente engajado, representado e
inscrito na ideologia. (LAURENTIS, 1978; 37 apud GUBERNIKOFF,
2009; 69).
Assim, tendo em vista que toda produção terá uma representação e possuirá uma
ideologia e um discurso, é relevante buscar a desconstrução de tais narrativas e a
consciência sobre como elas são construídas, principalmente no campo da
educomunicação. Dado isso, o segundo conceito fundamental abordado na oficina em

378
questão é referente a construção narrativa, a partir do conceito de narrativa do
monomito, sistematizado por Joseph Campbell.

Trata-se da conhecida “jornada do herói”, escolhida não só por ser a base de histórias
muito tradicionais da civilização humana, como também ser exaustivamente explorada
em filmes e outras obras que fazem parte da realidade cotidiana dos alunos. É um
percurso extraído dos rituais de passagem e dividido em três etapas: separação,
iniciação e retorno. “Um herói vindo do mundo cotidiano se aventura numa região de
prodígios sobrenaturais; ali encontra fabulosas forças e obtém uma vitória decisiva; o
herói retorna de sua misteriosa aventura com o poder de trazer benefícios aos seus
semelhantes” (CAMPBELL, 1997; 18). Sendo assim, o herói “conseguiu vencer suas
limitações históricas pessoais e locais e alcançou formas normalmente válidas,
humanas. As visões, idéias e inspirações dessas pessoas vêm diretamente das fontes
primárias da vida e do pensamento humanos. Eis por que falam com eloqüência”
(CAMPBELL, 1997; 13).

Além dos segredos do vídeoclipe: (des)construções na sala de aula

A oficina educomunicativa aqui analisada trouxe conjuntamente questões teóricas e


técnicas acerca da linguagem audiovisual, com ênfase na linguagem do videoclipe, com
três momentos principais: (a) construção e desconstrução narrativa, (b) roteiro e
storyboard e (c) técnicas de montagem.

A introdução da oficina trouxe o videoclipe “This is America”, de Childish Gambino


(2018), assistido conjuntamente com os estudantes, e promoveu um debate posterior
sobre quais ideologias, discursos e posicionamentos políticos estavam colocados nessa
obra, uma produção que faz diversas críticas ao racismo e à polícia dos Estados Unidos.
A maioria dos alunos já conhecia esse videoclipe, o que contribuiu para que
levantassem vários pontos, fomentando o caráter de debate e indo além das
considerações levadas pelos mediadores.

No primeiro momento principal, abordou-se a construção narrativa a partir da trajetória


do herói clássico de Campbell (1997), comparando tal estrutura com filmes e produções
audiovisuais como “Harry Potter e a Pedra Filosofal” (2001) e “Star Wars: Episódio IV
– Uma Nova Esperança” (1977). Ao longo desse diálogo, os estudantes trouxeram
vários outros exemplos de narrativas audiovisuais do seu próprio repertório que seguiam
esse padrão. No debate final da oficina, um dos alunos comentou que compreender o
379
arquétipo narrativo de filmes que ele já conhecia anteriormente foi a parte que ele havia
gostado mais de todo o processo.

Posteriormente, a práxis aprofundou-se no conceito de representação. Foram exibidas


peças produzidas para a campanha publicitária “Reposter”, criada pela agência F/Nazca
para a cerveja Skol, na qual anúncios antigos da marca, em que o corpo feminino era
apresentado de forma objetificada, foram redesenhados por artistas engajadas com o
feminismo (SACCHITIELLO, 2017). Seguiu-se uma discussão sobre as consequências
concretas para a sociedade propiciadas por distintas visões de mundo.

O segundo momento da oficina trouxe exemplos de estruturas de roteiro, com o filme


Estômago (SILVESTRE; JORGE; NATIVIDADE, 2008), e de storyboard, com o filme
“Beleza Americana” (EYES ON CINEMA, 2014), para debater o processo de pré-
produção audiovisual e as relações entre tais ferramentas e o produto audiovisual final,
ainda com o recorte da construção narrativa, acrescentando os recursos visuais e
estéticos a esse panorama.

O último momento principal da prática aqui relatada aprofundou-se em algumas


técnicas de montagem, como o plano sequência, a câmera lenta e o match cut, com
diversos exemplos de videoclipes para exemplificar tais composições, como por
exemplo as produções “Indecente”, de Anitta (2018), e “Happy”, de Pharrell Williams
(2013). Também foram trabalhados os conceitos técnicos de enquadramento: plano
geral, plano médio, primeiro plano e primeiríssimo plano (BARBEIRO; LIMA, 2002).

Como fechamento da atividade, foi aberto um debate em que os estudantes trouxeram


exemplos do seu cotidiano para complementar questões que foram apresentadas no
decorrer do processo. A oficina posterior a esta – dado que esta ação foi parte de um
processo de longa duração na escola em questão – foi dedicada à construção de
storyboards pelos alunos, para dar início ao roteiro do material audiovisual que eles
estavam desenvolvendo.

Assim, esse primeiro contato que os estudantes tiveram com tais conteúdos levantou
questões de fundo social e crítico de maneira conjunta com as partes técnicas,
apresentando de forma integrada a concepção da produção audiovisual como um
produto que não possui neutralidade e, por este motivo, os estudantes teriam que
compreender e escolher quais seriam as representações e narrativas que estariam
colocando na tela.
380
Considerações finais

Tendo em vista que a oficina aqui analisada faz parte de um projeto de longa duração
que ainda não foi concluído, as considerações aqui explanadas partem desse recorte
específico e suas eventuais limitações materiais.

Assim, dentro da experiência educomunicativa realizada, foi possível perceber que a


maioria dos conteúdos audiovisuais elencados como exemplos durante o processo fazia
parte do repertório dos alunos – algo importante a se buscar em qualquer ação do tipo –,
o que contribuiu para uma prática dialógica e com debates qualificados.

O ponto central da oficina buscou fomentar uma visão crítica acerca da construção da
narrativa audiovisual e suas representações, tendo os conteúdos técnicos alinhados a tal
perspectiva, de modo que o aprendizado prático sobre a linguagem do vídeo, com foco
em roteiros, foi consequência de um processo pedagógico que focou um letramento
audiovisual crítico.

Dessa maneira, tal práxis educomunicativa trouxe uma formação discente que não
enfatizou apenas o conhecimento instrumental, abordagem especialmente necessária nas
escolas, pois, além de fomentar posteriores produções audiovisuais, também contribui
para melhorar o diálogo e a capacidade interpretativa entre os estudantes e, no longo
prazo, para modificar o ecossistema comunicativo da escola e desenvolver uma
formação crítica e cidadã para os seus estudantes.

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383
História, Literatura e seus vestígios na adaptação do livro
Memória Impura para um roteiro de longa-metragem

History, Literature and its vestiges in the adaptation of the book


Impure Memory for a film screenplay

Roberto Reiniger1
Luiz Vadico 2

Resumo: Este artigo tem por objetivo colaborar com as atuais correntes teóricas que investigam
a adaptação da literatura no cinema. Entre embasamentos narratológicos, estéticos e autorais, além
da pouca funcionalidade dos manuais de roteiro, há a ausência, ou uma ínfima investigação, da
teoria do audiovisual que aborde uma metodologia prática desta modalidade de transposição da
escrita para um possível e futuro suporte imagético. Ao tomarmos aqui elementos teóricos da
História e da Literatura, sobretudo os estudos de Durval Muniz de Albuquerque Júnior e Hans
Ulrich Gumbrecht, para a análise textual do livro de Luiz Vadico, Memória Impura, apontaremos
para estas interdisciplinaridades como um mecanismo que pode preencher este espaço e rever
conceitos, como a intertextualidade de Robert Stam, colaborando assim, com a teoria e a prática
da adaptação da literatura nos roteiros e filmes, sobretudo, do cinema contemporâneo.
Palavras-chave: História; Literatura; Roteiro Cinematográfico; Adaptação Literária;
Memória Impura.

Abstract: This article aims to collaborate with current theoretical currents that investigate the
adaptation of literature in cinema. Among narratological, aesthetic and authorial bases, besides
the limited functionality of the script manuals, there is the absence, or a small investigation, of
the theory of the audiovisual that approaches a practical methodology of this modality of
transposition of the writing for a possible and future imaginary support.When we take here
theoretical elements of History and Literature, especially the studies from Durval Muniz de
Albuquerque Júnior and Hans Ulrich Gumbrecht, for the textual analysis of Vadico's book,
Impure Memory, we will point to these interdisciplinarities as a mechanism that can fill this space
and revise concepts, such as the intertextuality of Robert Stam, thus collaborating with the theory
and practice of the adaptation of literature in scripts and films, especially contemporary cinema.
Key words: History; Literature; Film Screenplay; Adaptation of the literature; Impure
Memory.

Literatura e Cinema. Discursos distintos. Embasados em suas respectivas matrizes, escrita


e imagética. Matrizes essas, porém, que ao longo dos anos passaram a entrelaçar seus

1 Roberto Reiniger é Bacharel em Realização Audiovisual pela Universidade Federal de São Carlos. Mestre e Doutorando em Comunicação Audiovisual pela Universidade
Anhembi Morumbi. Atualmente desenvolve a tese Entre recortes, intertextualidades e ambivalências: A adaptação do livro Memória Impura para um roteiro de longa-metragem,
sob orientação do Professor Doutor Luiz Vadico. E-mail: roberto.reiniger@gmail.com;
2 Luiz Vadico é Mestre e Doutor em Multimeios pela Universidade Estadual de Campinas. Professor do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e do Curso de Graduação
em Cinema e Audiovisual da Universidade Anhembi Morumbi. E-mail: vadico@gmail.com;

385
conteúdos não só entre si, mas também com outras áreas científicas e com outras formas
de arte. Permeando ainda nesta relação, o surgimento de novas estéticas, linguagens,
críticas e tecnologias. Assim a adaptação da literatura no cinema ainda sobrevive, e neste
viés intertextual e interdisciplinar, este artigo buscará estabelecer outros olhares para os
estudos, a criação e a escrita de seu texto fílmico. Toma-se aqui a História, sob um escopo
não tão hermeticamente preciso, como um instrumento que pode evidenciar elementos
cinematográficos nesta literatura, gerando assim, um enriquecimento neste seu processo
de transposição, tornando seu futuro roteiro viável não só para produção, mas também
para desenvolvimentos teórico e científico. Comprovam, ou ao menos indicam, o
caminho desses pressupostos as relações constatadas no livro Memória Impura (2012)3,
de Luiz Vadico4, detalhadas a seguir.
Memória Impura é a segunda ficção publicada pelo Professor Doutor Luiz Vadico.
Bacharel e Licenciado em História, Mestre e Doutor em Multimeios pela Universidade
Estadual de Campinas – UNICAMP. Há quem possa, em um olhar mais desatento,
acreditar que datas, fatos ou épocas do passado possam fielmente, e fidedignamente,
conduzir sua trama. Em seu repertório, Vadico, entre outros temas, investiga a história da
representatividade da religião católica no cinema. Mas, de início, Memória Impura já traz
indícios que enveredará por outros caminhos. Seu projeto editorial conta com obras do
pintor Sir Lawrence Alma-Tadema, ícone do neoclassicismo europeu, representante das
tendências estéticas do século XIX. E concomitantemente em sua contracapa, o livro
revela que Augustus, imperador romano entre os anos 27 a.C e 14 d.C, é um de suas
personagens. Logo essa expectativa cronológica e historiográfica linear é desbancada, e
o leitor de Vadico é levado a juntar as peças que a história desta coletânea de treze contos
quer contar.
Trata-se de um livro que está além da Antiguidade que retrata. É um “estilhaçamento do
gênero épico” (VADICO, 2012) que enfatiza o lado humano de suas personagens. Mais
do que damas, centuriões, imperadores, escravos, guerreiros, filósofos, aurigas ou
gladiadores, o livro retrata o cotidiano de pessoas, seus desejos, culpas e existencialismos
que carregam permanentemente. Não há uma condução irrevogável ao final trágico, o
drama de cada um é latente e constante. Em seu prólogo Luiz Vadico já alerta que este

3 Memória Impura. Disponível em: <https://goo.gl/NptMsa>. Acesso em: 18 out. 2017;


4 Mestre e Doutor em Multimeios pela Universidade Estadual de Campinas - UNICAMP, Luiz Vadico traz em seu repertório sete livros publicados, sendo quatro ficções: Maria
de Deus (1999), Memória Impura (2012), Noite Escura (2013) e Fábulas Cruéis (2016); além de três produções acadêmicas Filmes de Cristo: Oito aproximações (2010), O Campo
do Filme Religioso: Cinema, Religião e Sociedade (2015), Cinema e Religião: Perguntas e Respostas (2016);

386
fato é um exercício estético-temporal que molda sua narrativa, nesta, seu discurso é seu
ponto de vista, sua coletânea traz assim, contos que “não intencionam enveredar pela
literatura histórica (.). São memórias. Uma memória da Antiguidade (.), memórias que
chegam a ser reais, reais na Antiguidade que está em mim” (VADICO, 2012, p.13).
Neste recontar a História, esta narrativa ainda destaca uma característica que lhe é
peculiar: há uma essência imagética descritiva, a qual permite traçar as relações
cinematográficas que serão pontuadas neste texto. Indícios destas relações são assumidas
pelo próprio Vadico ao compartilhar no posfácio de seu livro as etapas do seu processo
criativo. Nele, o autor alega que
(.) primeiro as personagens me contam a história, depois eu fico sabendo em que
ponto elas estão [.]. Sempre vejo todas as cenas dos contos que escrevo, porque
são muito vivos para mim. E, da mesma forma que numa realidade vivida, nem
sempre há placas para nos informar onde estamos (VADICO, 2012, p. 207-208).

Há aqui uma inegável semelhança com a prática cinematográfica, aonde as revisões entre
os conflitos e os espaços presentes em um roteiro cinematográfico, as chamadas
decupagem e análise técnica, são realizadas pelo diretor, seu assistente, e o roteirista de
um filme em sua pré-produção (RODRIGUES, 2002). No caso de Memória Impura, este
processo de forma semelhante fora conduzido, ainda que inconscientemente, somente por
seu autor, um dos fatores que, em 2017, instigou sua adaptação para um roteiro
cinematográfico, sob o respaldo de uma tese de doutorado. Em tempo, a teoria do
audiovisual aborda a adaptação da literatura no cinema, mas em correntes específicas,
como as que optam por uma abordagem mais focada na literatura, em detrimento de sua
imagem fílmica (GAUDREAULT; JOST, 2009); as que abordam determinada trajetória
estética ou autoral (BLUESTONE, 2003; CARDWELL, 2002), ou a receptividade e as
plataformas de expansão deste discurso (HUTCHEON, 2006).
Aqui pretende-se somar mais uma linha de trabalho a estas áreas: investigar a metodologia
do trabalho de adaptação da literatura no roteiro cinematográfico bem como os recortes
intertextuais e interdisciplinares que este seu texto de origem faz, e podem enriquecer
assim, o processo de criação desta sua transposição textual. Entre a página de origem e a
imagem projetada na tela final há discursos que quando vistos como colaborativos, e não
necessariamente fidedignos, libertam a teoria do audiovisual de um hermetismo submisso
à crítica, que a impede, ou vê com maus olhos, relações com outras obras, de outras áreas.
Há quem possa considerar os manuais de roteiro como uma instância que já atenda as
demandas práticas da escrita cinematográfica, quando o que o ocorre, é um amplo

387
desentendimento entre os autores dessas publicações e meio científico-acadêmico. Patrick
Cattryse em seu artigo The protagonist´s dramatic goals, wants and needs, endossa esta
questão ao afirmar que
(…) embora os manuais de roteiro, de um lado, e os estudos acadêmicos sobre a
narrativa cinematográfica de outro, lidem com a narração de histórias, o que os
dois têm conseguido fazer é ignorar um ao outro por décadas. […]. Do ponto de
vista profissional, o jargão acadêmico é frequentemente muito sofisticado e nada
prático. Do ponto de vista acadêmico, a terminologia do praticante é considerada
imprecisa e confusa. No entanto, fazer a ponte entre teóricos e os profissionais
beneficiaria ambas as partes (CATTRYSE, 2010, p. 84, tradução nossa).

Ressalta-se ainda o fato de que no cenário contemporâneo outras áreas científicas, ligadas
diretamente, ou não, ao cinema e sua adaptação literária, já admitiram a necessidade de
um repensar teórico. Na Literatura, Hans Ulrich Gumbrecht reconhece as constantes
transformações deixadas pelo estruturalismo e pelos estudos culturais, embora essas
sejam seguidas por uma certa estagnação desde o começo da década de noventa. Haveria
ainda um certo estanque causado pela excessiva profundidade acadêmica que impediria
de nos concentramos “em detalhes textuais e nas complexas situações culturais que
moldam a literatura e ressoam nela” (GUMBRECHT, 2009, p.105). Quando nos
tornamos dispostos5 a interpretar um discurso livre, a praticar uma hermenêutica não tão
fixa a prerrogativas conceituais, teríamos a chance de não nos atermos ao tempo, teríamos
no presente a oportunidade de efetuar leituras do passado, ou até mesmo construir
conceitos dele, ainda não elaborados (GUMBRECHT, 2015, p.10). Este tempo presente
vê o sujeito como quem aflora para o desenvolvimento e a exposição de conflitos, nem
sempre solucionados em uma narrativa. Este estado de alteração seria um meio, ou ao
menos um caminho, para uma nova discussão ou um repensar teórico das mais relevantes
doxas literárias.
Durval Muniz de Albuquerque Júnior questiona nossa necessidade de uma precisão
teórico-temporal dos fatos, quando para ele, relevante também, seria considerarmos nossa
experiência cultural com os mesmos. Em seu livro, História – A arte de inventar o
passado (2007), Albuquerque Júnior alega que nessa experiência, haveria uma
relatividade do discurso, do saber histórico, de nossa própria realidade, uma vez que essa
precisão não suportara o hermético discurso oriundo da conjuntura sócio-política
capitalista. Ares revolucionários trouxeram da Filosofia à História um caráter relacional,

5 Conceito gumbrechtiano denominado como stimmung, não traduzido em suas publicações de seu idioma original, a língua alemã. Stimmung, entre outros significados, pode ser
considerado como aquele que está disposto a algo (MICHAELIS, 2017);

388
contextual e plural aonde “qualquer acontecimento histórico elimina a possibilidade de
argumentação que tome, como ponto de partida, um ponto fixo, revelado à própria
relatividade da realidade” (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2007, p. 58).
A História não teria assim uma trajetória temporal, eximiamente determinada. Sua
produção na sociedade, ao longo de seu tempo, estaria assim, sujeita a uma sucessiva
intervenção de pontos de vistas distintos, aonde a escola de cada autor produziria sua
construção ou leitura de identidade, e nesta, vários fluxos de subjetivação e forças de
sujeição se encontram. Ainda que Albuquerque Júnior aponte para um repensar da
construção historiográfica, logo um fato social, e não ficcional, acredita-se aqui que seu
discurso estabeleça ligações com as relações teórico-literárias de Hans Ulrich Gumbrecht,
na medida em que esse autor aponta como solução para a construção de seu método a
experiência própria do sujeito como meio de procura da verdade, não havendo diretrizes
normativas de um mundo anterior. Nossa visão de mundo, entre tais perspectivas, seria
uma organização das experiências vividas. O mundo construído constitui-se pelas
experiências e não tem nenhuma pretensão à verdade, no sentido de corresponder a uma
realidade ontológica (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2007, p. 60). Ficcionais, ou não;
historiográficas ou literárias, essas experiências serão consideradas aqui um discurso,
aonde “o passado é uma construção, uma invenção feita durante a própria escrita. A
memória, assim como a História, são uma escritura sem fim nem origem”
(ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2007, p.63).
Essa escrita aqui também é vista como omnidirecional. Como exemplo, não nos
esqueçamos que Gumbrecht embasa sua teoria ao relacionar, entre outros, a Literatura de
Machado de Assis, a Música de Janis Joplin e a Filosofia de Diderot (GUMBRECHT,
2014); Albuquerque Júnior também embasa seus conceitos ao relacionar Literatura de
Flaubert, a História da França e a Política de Marx (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2007,
p.53). Tais embasamentos são construídos sob um universo colaborativo, e estão além de
uma prerrogativa qualitativa, de uma determinada obra, época ou autor. Neste quesito, a
teoria do audiovisual, sobretudo, no universo da adaptação da literatura no roteiro
cinematográfico, aproxima-se desta metodologia com os estudos de Robert Stam, no
artigo Teoria e prática da adaptação: Da fidelidade à intertextualidade (2006), e no livro
A literatura através do cinema: Realismo, magia e a arte da interpretação (2008). Em
ambos, Stam toma ciência de que o livro e o filme são formas distintas, mas não por isso,
impedidas de serem consideradas matrizes colaborativas, e não antagônicas em seus
estudos. Ele ainda afirma que é em um viés intertextual e interdisciplinar que a fidelidade,

389
ou não, de um filme ao seu livro de origem cria uma obra coletiva, de múltiplos autores,
coexistentes à outras criações e conjunturas sócio-políticas de produção e consumo de
arte6.
Em entrevista recente à Revista Brasileira de Ciências da Comunicação (RBCC –
INTERCOM), Stam enfatiza que não só a intertextualidade e a interdisciplinaridade
fazem parte de seu embasamento teórico, como também um comparativismo o conduz
nos estudos da adaptação da literatura no cinema. Nesta entrevista, Stam considera as
relações com outros formatos audiovisuais, e outras formas de arte como a música e o
teatro, como elementos que podem enriquecer seus estudos (VADICO; REINIGER
NETO, 2017).
Retomemos o livro Memória Impura para auferir como tais metodologias podem ser
colaborativas com o processo de adaptação de sua narrativa para um roteiro de longa-
metragem. Um processo que busca, em especial, recortes e diálogos com o cinema
contemporâneo para o enriquecimento de seu processo criativo. Ainda sobre as primeiras
impressões do livro, tão logo nos é revelada estética de sua narrativa, a presença das artes
plásticas e da Antiguidade em seu conteúdo, ganham também, espaço nas páginas
seguintes inúmeras citações à Mitologia Greco-Romana, “Um pouco mais. Alguns
murmúrios visitavam meus ouvidos: Nike!” (VADICO, 2012, p.16); citações à música,
“Meus dedos, dolorida e sequiosamente, passavam pelas cordas da lira.” (VADICO,
2012, p.94); citações à marcos históricos, “Os espartanos não participavam do motim,
mas naquele dia foi diferente. Achou-se um belo galo dourado entre os animais. Os
atenienses ofereceram-no a Anfiteles (VADICO, 2012, p.55); além de citações à outras
religiões, “Iochanaan estava lá no Jordão batizando. Jesus ouvira dizer que o batismo
preparava para uma vida nova” (VADICO, 2012, p. 216).
Este desenvolvimento polifônico, de ordem narrativa não linear, é explicitamente
assumido no posfácio do livro. A determinação temporal não só fica a posteriori, em
detrimento aos conflitos das personagens. Suas inclusões e descrições nas paisagens que
os circundam, formatam a estética do seu discurso, como seu próprio autor faz questão
de assumir. Vadico afirma que o posfácio de Memória Impura
(.) nasceu de uma necessidade verdadeira ou imaginada. A necessidade de situar
o leitor num universo social e temporal das personagens deste livro.
Particularmente, acredito no leitor e que este posfácio seria de todo

6 Albuquerque Júnior também ressalta a importância da produção e do consumo da arte em seu texto. Ele afirma que “se a vida é amiga da arte, enquanto houver vida e quisermos
vivê-la de forma cada vez melhor, precisaremos da arte, da arte de inventar novos mundos possíveis, inclusive da arte de inventar o passado” (ALBUQUERQUE JÚNIOR, 2007,
p. 65);

390
desnecessário. [.] Localização temporal Isso importa? Para mim, não; jamais
escrevi algo que se situasse em um ou outro momento histórico (VADICO, 2012,
p. 207).

Neste capítulo, nas descrições que precedem a criação de seus contos a imprecisão
temporal é reiterada inúmeras vezes, chegando ao ponto do autor informar que a mesma
é desnecessária para compreensão da sua trama. Ao longo do livro, a imprecisão – e
porque não a impureza (grifo nosso) – dessa definição temporal, torna-se um meio para
que as personagens exponham, ou confidenciem, seus traumas e existencialismos.
Tamanha é a necessidade desses relatos que eles se transformam na motivação das
personagens (TOMACHEVSKI, 1982, p. 184), tornando-se uma catarse, oriunda de fatos
tanto do presente, quanto de um tempo póstumo, direcionados a uma convergência
comum, o momento do conflito, aonde o leitor envereda pelo desenvolvimento do enredo.
No discurso de Vadico, o ato dessa revelação é antecedido, por uma descrição das ações
das personagens nos seus arredores, fato que permite enxergarmos aqui, mais evidências
da essência cinematográfica de Memória Impura. Essas descrições seriam o que David
Bordwell denomina como mise-en-scène (grifo nosso), ou o conjunto de ações que
ocorrem dentro de um único enquadramento cinematográfico, e em sua profundidade de
campo (2008, p.36). A organização e a ordenação dessas ações em um único um único
eixo narrativo abrem as portas para que tais memórias sejam dispostas no formato de um
texto fílmico, um possível roteiro cinematográfico. Sobre este eixo, as convergências do
presente e do tempo póstumo das personagens são instáveis e variáveis, fato que as
moldam com um arco dramático, peça chave para um desenvolvimento narrativo, seja ele
escrito ou audiovisual. Abaixo, apresentamos um resumo de cada conto de Memória
Impura, bem como um esquema de suas interferências no desenvolvimento desse arco
como um todo.

Conto Presente Tempo Póstumo

Um auriga questiona sua morte, nos


últimos momentos em que conduzia
Nike
uma biga em uma corrida que
disputava.

Failandes escreve para


Solidão
Atenodorus para contar como
Macedônica
e porque matou Ilírio, seu

391
irmão. Atenodorus responde a
carta de Failandes.

Eucadimio reflete sobre a dor


de perder Panfílio. Seu grande
amor que conhecera nas aulas
O Filósofo
de Filosofia de Eleanto, as
quais frequentava com seus
amigos.

Péle relembra a trajetória de


O Galo Dourado seu relacionamento, até ficar
de vez com Anfiteles.

Lívia conta sua biografia até o dia


que fora condenada à morte. Ela
Tarpeia
tivera um caso com Ambrósius no
Templo de Vesta.

Firmino orgulha-se de que quando


matara Lucius, seu dono, fora
Firmino
assassinado por outros escravos da
família.

Lívia retorna para seu Império


Folhas Secas de com Augustus. Ela confessa
Outono um segredo que guarda: a
morte de Diana, sua serviçal.

Temístocles surta e entrega-se


Temístocles, seus ao mar. Após transar com a
filhos e os filhos areia, acredita que as
de Temístocles tartarugas que de lá nascerão,
serão suas filhas.

O Cão que Guarda Marcius comete suicídio na


a Porta frente de seus pais. Túlio seu

392
pai, não reage, Semprônia, sua
mãe, segue seu marido.

Um grande incêndio consome uma


cidade. Um senador lutou para
salvar o patrimônio público;
Testemunhos do
Cordélia esperou Silvius para fugir;
Grande Incêndio
seu pai a procurou; Edil deu a
de 64
Horácio a função de reerguer a
cidade. Ninguém sobrevive ao
incêndio.

Alcides conta para o seu neto,


Pomponius, o final trágico de
O Touro e o Leão Leontius. Morto por Taurus,
seu amigo, ambos tiveram um
caso com Mânlia.

Um autor vai ao passado em busca


de respostas para o fim de sua
Carta aos Antigos
personagem, órfão de pai, ele fora
assassinado por sua própria mãe.

Frente ao que enfrentou, Jesus


decide continuar sua
caminhada no deserto. Ainda
Jesus no Deserto
que só, sem a companhia de
um chacal, ou de Mariamne,
sua esposa.

Fig. 1 – A curva dramática de Memória Impura: o desenvolvimento de seus contos entre


os seus tempos narrativos.

393
No intuito de aprofundar a investigação cinematográfica proposta neste texto,
consideremos uma análise mais detalhada do conto Carta aos Antigos7. Trata-se de uma
narrativa que, além de abarcar as convergências alternadas entre o presente e o tempo
póstumo, e as descrições das ações das personagens em delimitações imagéticas
imprecisas, conta com a presença de seu próprio autor como protagonista nesta
concomitância de informações. Enquanto não há um norteamento espaço temporal na
trama, seu autor se vê como um garoto sentado na escadaria de um Senado. Mais relevante
do que saber de onde é este local, é nos tornarmos dispostos a essa experiência
metalinguística, vivenciando a inadequação desta criança ao corpo que habita, ao espaço
que ocupa.
Desacompanhada, esta personagem está rodeada por desconhecidos, cabendo-lhe
somente buscar respostas na revoada de pássaros que vai do céu ao Fórum na sua frente.
Descobre-se então que esta fora uma instrução de seu pai, já não mais presente, seu único
porto seguro entre os adultos. Os demais adultos que passam ao seu redor, o deixam
inseguro. O texto então, cinematograficamente, chega próximo a uma montagem
paralela (grifo nosso), ao conduzir concomitantemente, dois eixos temporais distintos.
Vadico volta a tomar ciência da sua função de autor, sentado diante de seu computador,
refletindo sobre o seu pai da Antiguidade, e o seu pai do presente, não tão amado, não tão
querido.
Mas enlouqueço, já que não sou uma criança [.]. Sou um homem adulto sentado
na frente de um computador De onde vêm essas lembranças? [.] não gosto do
meu pai, e lá, naquele dia em Roma, eu amava meu pai. No entanto, ele se fora.
Pode ser ainda mais amado o pai que partiu do que o pai que ficou? (VADICO,
2012, p. 198).

A narrativa volta então à Antiguidade para que este desconforto leve a personagem a agir,
a buscar naquele tempo e espaço o que o sufoca pela falta de respostas. Se um roteiro de
cinema preza pela descrição (BORDWELL, 2008) das ações das personagens no espaço
que as circundam, é a partir daqui que Memória Impura atinge um dos seus pontos mais
altos de aproximação a este formato.
O garoto decide seguir adiante relembrando não só relações que ficaram
no seu tempo8, mas acima de tudo, descrevendo sua trajetória, e nela elementos
que tornam sua história instigante, mas, imprecisa. Tomemos como exemplo, o
fato de nessas recordações, a trama levantar indícios de que a personagem está

7 “Carta aos Antigos não é um título muito bom, porque não nos remete diretamente ao conto, mas ao método. Neste caso eu tinha a impressão de que iria explodir com tantas
imagens da Antiguidade em minha cabeça” (VADICO, 2012, p. 210);
8 O luto também atingira sua mãe nesta época, como ressalta a personagem ao afirmar que “devia ser inútil, pois meu pai não está mais aqui e minha mãe caminha só pelas ruas;
de cabeça sempre baixa, não há sorriso em seu rosto, sempre triste” (VADICO, 2012, p. 198);

394
nas ruas de Roma, mas na porta de sua casa há uma estátua de Príapo, deus grego
da fertilidade (VADICO, 2012, p. 198).

Mesmo que seu pai não retorne com a solução de seus problemas, para que ele conquiste
sua independência no mundo, é necessário que a personagem siga adiante, ainda que ele
sofra agressões físicas, como as de seu pedagogo. Neste ponto, há quem possa considerar
a frase que o garoto recorda de seu avô como um anúncio de seu fim trágico, mas vale
considerar que a metalinguagem deixa, mais uma vez, indícios imagéticos de uma
instância narrativa (AUMONT, 2012, p. 14) do presente que força o fluxo instável do
desenvolvimento de sua trama. A culpa não é pelo o que está por vir, mas sim, pela
incapacidade que o autor do conto dá a si, e ao seu personagem, de justificarem seus
argumentos.
Carta aos Antigos determina então que o destino do garoto é a sua casa. Este entra em
um estado latente de busca, não só de sua história, mas também de sua identidade, pelos
espaços que percorre em sua trajetória. Um destes locais, é as imediações dos prostíbulos
de sua cidade. Na sua inocência pueril, o garoto compara as mulheres de lá a lobas que
uivam e rosnam, atacam os homens e os satisfazem. Nesta imagem, mesmo que impura,
ou imprecisa, temos um realismo mimético (AUERBACH, 2013) e visual, que mais uma
vez é determinante para o desenvolvimento da trama. Deste signo, personagem e autor
refletem, levam em consideração que encontrar, ou ao menos preferir e valorizar a figura
da mãe neste tempo seria uma alternativa mais assertiva.
Esta mãe seria mais pura e casta do que as garotas de programa da região, mas não por
isso, deixaria de fazer uso de alegorias como perucas e vestes, que a colocassem entre
simulacros ou simulações, (BAUDRILLARD, 1991) da identidade feminina de sua
época. Essa funcionalidade era mantida pelo pai, desta época, que passa então a ter
também sua identidade questionável na medida em que escalpelava os cabelos de suas
servas, para que sua esposa estivesse sempre dentro dos padrões sociais esperados, pois
“quanto mais trabalhoso, quanto maior fosse o penteado, mais importante era a mulher
que o exibia” (VADICO, 2012, p. 201).
Desacompanhado e sem referencial, nem mesmo com o revoar dos pássaros a sua frente,
mais uma vez, o garoto retoma sua trajetória, desta vez num processo semiológico que
remete à construção de sua identidade. Uma vez que lhe falta o pai como um referencial
iconográfico da figura masculina, só lhe resta observar os outros homens que urinavam
na rua para o tingimento de tecidos. Nesta ressignificação falocêntrica é dada à

395
personagem uma noção de mundo ideal que lhe falta, mesmo que de modo fantasioso: o
belo não estaria necessariamente em seu empoderamento masculino, mas na cor que o
tingimento de urina traria às suas vestimentas. Esta característica não agradaria sua mãe,
mas ele, na iminência de sua formação masculina, decide seguir adiante. Este ar
fantasioso, que passa o conduzir, também serve de alerta para que ele evite a região do
circo. Não pelo risco que correria por enfrentar as feras que lá haviam, mas pela beleza
que as mesmas possuíam, por assim ficar petrificado, e invariavelmente, ser devorado.
Eis que o garoto chega em sua casa. Em sua fachada há uma riqueza no detalhamento de
seus elementos, que não só tentam traçar uma época, ainda impura, indefinida, mas
também se encontram em um estado latente para uma produção audiovisual. Cores,
formas e disposições já estão lá pré-determinadas para o preenchimento de um possível
quadro cinematográfico e permitir todo o desenvolvimento de suas ações ao longo de toda
sua profundidade de campo. Todo este conteúdo está em um único bloco textual, sendo
necessário, em uma adaptação, somente destacar aquilo que seria de utilidade para uma
equipe de direção de arte, ou cenografia. Tais elementos estão mais precisamente no
trecho em que o garoto relata

(.) lá estava ela [.] as portas dos cômodos que davam para a rua [.] uma belíssima
colunata. O portal de nossa casa era ladeado por colunas de porfírio vermelho e
azul [.] e os ramos de trepadeira que nela se entrelaçavam (VADICO, 2012,
p.203).

Neste momento de admiração, o modo fantasioso que o conduzira até então é posto à
prova quando o garoto vê um outro homem saindo de sua casa. Fato que não instaura um
conflito, não desvirtua o garoto de sua trajetória: ele tem como objetivo encontrar sua
mãe, ainda que esta tenha cometido adultério, pondo em risco o status de sua família. Para
ele seu pai ainda lhe apareceria e daria as instruções do que fazer com o indivíduo que de
lá saía.
O garoto é recebido pela serva da família, que lhe informa o aguardar de sua mãe.
Em termos de narrativa cinematográfica, o desenvolver das ações físicas dentro das
limitações espaciais, volta a ganhar destaque. Ainda não há nenhum indício do que a mãe
possa lhe fazer, o objetivo da personagem e sua motivação (TOMACHEVSKI, 1982) são
claros e objetivos. Neste interim há somente a intervenção de ritos religiosos que têm
como propósito manter a fantasia construída até o momento, o garoto pede a benção aos
seus ancestrais, e uma onda de aromas passa a conduzi-lo para os seus momentos finais.

396
São incensos que sua mãe queimava em seu quarto somente em ocasiões
especiais, como quando essa, gostava de repousar e ficar mais bela. É chegada a hora do
encontro entre mãe e filho. Ela causa certo estranhamento por vestir roupas que lhe fogem
do costume, há uma beleza que, entre joias e penteado, abduzem o garoto para o colo
maternal. A mãe, em um sutil gesto de conforto e alegria, pede apenas que o garoto se
deite com ela
Aroma, sensações e imagens que narrativa constrói no local acabam por colocar nosso
protagonista novamente em seu estado latente de busca e formação de sua identidade. A
inadequação da personagem ao seu corpo, a sua dinâmica temporal, trazem à tona a sua
busca espacial do início de Carta aos Antigos. Tal conjuntura dá margens ainda de que
um possível incesto possa acontecer como relata a personagem:

O carinho de mamãe, a beleza da luz, os seus dedos entre os meus cabelos Por
um momento consegui me lembrar do grande céu azul lá fora, origem de toda
aquela beleza. Toda a paz que eu havia ansiado naquele dia agora se realizava
naquele aconchego. Eu era novamente seu filho. Assim como se viesse do
infinito, ela começou a murmurar uma cantiga, levinho, levinho, e foi crescendo
aos poucos. Sempre cantava para mim quando eu era menor. Era bom, pois eu
sentia que papai estava presente. Parecia que nos perderíamos nas almofadas de
seda, lisas, macias e frias (VADICO, 2012, p. 204).

A essência cinematográfica aqui é instaurada na medida em que o aparente carinho


materno, não recai nem para o incesto, nem para um efetivo amor. A mãe chora e começa
a sufocá-lo, afogando-o em uma almofada até mata-lo. A mãe continua a chorar. Em um
tradicional manual de roteiro, este acontecimento seria um ponto de virada para que a
busca da personagem ficasse clara, e futuramente concretizada, ou um final não esperado
ocorresse, para que, como no melodrama clássico, fosse dado uma lição de moral ao
espectador (THOMASSEAU, 2005). Mas, entretanto, há uma macroestrutura, que como
nos demais contos de Memória Impura, se faz presente e dá uma outra continuidade à
narrativa. A convergência alternada entre o presente e o tempo póstumo das personagens
redireciona Carta aos Antigos para as reflexões de seu autor.
O autor, Luiz Vadico, que durante todo o enredo desta trama havia se alocado em
uma engrenagem concomitante ao seu protagonista, assumindo-se também como o garoto
que naquele tempo histórico estava, volta ao seu estado de homem, diante de seu
computador. Não há um esclarecimento concreto dos fatos, torna-se aqui mais relevante,
a catarse que ele atinge neste momento da trama. Catarse esta, que o fomenta a
permanecer em um estado alterado, com imagens históricas indeterminadas acumulando-

397
se em sua mente, fomentando assim, seu processo criativo. Afinal este não é o fim de
Memória Impura, e independente de seus contos poderem ser analisados como unidades
isoladas, há uma trama com sua estrutura regular preservada, conforme a tabela
apresentada anteriormente.
O estado gumbrechtiano de disposição para propulsão, busca ou esclarecimento diante de
um enredo, não é eximiamente concretizado, mas pode ser considerado aqui como um
propulsor que levou a personagem à busca, ou ao menos, ao contato com sua história.
Mesmo que impura, imprecisa, intrínseca a uma historicidade relativa, mais importante
para o autor-personagem, Luiz Vadico, no seu conto aqui analisado é vivenciar cada etapa
deste processo, pois o fim, ou a morte “é única coisa que acontece a todos, apenas isso”
(VADICO, 2012, p. 205).
Ainda que a metodologia de Albuquerque Júnior, aqui empregada, investigue meios para
contar um passado não ficcional, seus elementos políticos, históricos e literários, somados
às reflexões metodológicas de Hans Ulrich Gumbrecht serviram como fomento para
novas reflexões sobre o processo de criação artística o qual passa, e ainda passará o livro
Memória Impura. Mesmo que arte e ciência, infelizmente, ainda enfrentem instabilidades
críticas e acadêmicas, seu próprio autor, o Professor Doutor Luiz Vadico, clama para que
nos tornemos dispostos a experimentar, literária, e porque não, visualmente, aquilo que
sua obra tão particular compartilha. Segundo ele,
(.) é difícil dimensionar o que é esta memória. Sei que é minha. E vinda de muitas
origens. Coisas lidas relidas e revistas que me obrigam a indagar: são, de fato, da
Antiguidade? Esqueçam o autor e ‘escutem’ as personagens. Elas querem falar.
E é por causa delas que este livro existe (VADICO, 2012, p. 212).

Este artigo, embora focado em uma narrativa literária, buscou em uma leitura
interdisciplinar ao menos pontuar, ou indicar processos que possibilitam sua transposição
para uma esfera cinematográfica. Como visto anteriormente, em outros campos teóricos,
a adaptação da literatura no cinema até possui uma estruturação estética, autoral e
histórica. Mas chama a atenção o fato de sua gênese textual ter contado artisticamente
uma trama passada, e pouco se investigar eventuais componentes visuais que pudessem
emergir de sua escrita. Sendo assim, despertou-se aqui um anseio de poder enxergá-la
enquanto construtora de uma estrutura imagética. Mesmo que em sua história o cinema
não tenha sido germinado deste meio, ao longo de sua trajetória, sua organização buscou
do texto, o roteiro, e do roteiro, sua efetiva homologação enquanto forma de comunicação
e arte.

398
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_____________________. Atmosfera, Ambiência, Stimmung. Trad.: Ana Isabel


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__________. Memória Impura. São Paulo: Ed. Novo Século, 2012.

400
Entrevista com a vampira: comparando narrativas e
desconstruindo discursos
Interview with the vampire: comparing narratives and
deconstructing speeches

Natália Rosa Muniz Sierpinski1


Marciel Aparecido Consani2

Resumo: Este paper propõe uma análise comparativa entre o filme “Entrevista com o
Vampiro” (1994) dirigido por Neil Jordan e a Graphic Novel “Entrevista com o Vampiro:
a História de Cláudia” (2015) realizada por Ashley Marie Witter, ambas transposições do
livro “Entrevista com o Vampiro” de Anne Rice (1976). As duas obras apresentam
distintos pontos de vista narrativos, sendo que a adaptação audiovisual é contada a partir
do personagem Louis de Pointe du Lac, e a Graphic Novel pela personagem Cláudia.
Assim, nosso artigo busca compreender as diferenças narrativas de discurso e roteiro que
essa mudança de perspectiva revela em cada uma das obras, além de analisar como a
mudança de mídia influencia esse processo, dado que as linguagens do audiovisual e a
dos comics possuem aproximações mas também, particularidades. Ao final, pretendemos
demonstrar como a mudança de narrador(a) remete, particularmente, às questões de
gênero, com as variações de representação e diferenças de discurso entre as obras,
denotando um maior ou menor empoderamento da figura feminina, apesar de se tratar,
em tese, da mesma história.
Palavras-chave: audiovisual, quadrinhos, transposição, gênero, narrativa.

Abstract: This paper proposes a comparative analysis between the film "Interview with
the Vampire" (1994) directed by Neil Jordan and Graphic Novel "Interview with the
Vampire: The Story of Claudia" (2015) by Ashley Marie Witter, both transpositions of
the book "Interview with the Vampire" by Anne Rice (1976). The two works present
different narrative points of view, being that the audiovisual adaptation is counted from
the character Louis of Pointe du Lac, and Graphic Novel by the character Cláudia. Thus,
our article seeks to understand the narrative differences of discourse and script that this
change of perspective reveals in each of the works, besides analyzing how the media
change influences this process, since the languages of the audiovisual and the comics
have more approximations also, particularities. In the end, we intend to demonstrate how
the narrator's change (a) refers, in particular, to gender issues, with variations of
representation and differences of discourse between works, denoting a greater or lesser
empowerment of the female figure, in theory, of the same story.
Keywords: movie, comics, transposition, gender, narrative.

1 Licenciada em Educomunicação pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP).
Email: natalia.sierpinski@usp.br
2 Doutor em Ciência da Comunicação pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP,
2008), com Mestrado (IA-UNESP, 2003) e graduação em Artes/Música; possui Licenciatura Plena em Educação
Artística e Especialização em Tecnologias Interativas Aplicadas à Educação (PUC-SP). Email: mconsani@usp.br

401
Introdução

O presente artigo pode ser definido com base nas suas aproximações, ou melhor,

aquelas que ele busca promover. Por exemplo, a aproximação entre orientador e

orientanda, respectivamente professor e aluna da Licenciatura em Educomunicação da

ECA/USP, o qual resultou no TCC “Educomunicação e histórias em quadrinhos:

desconstruindo o preconceito de gênero nas escolas” — defendido e aprovado com nota

máxima em 2017 — além de um número significativo de outros artigos relacionando o

trinômio Quadrinhos/Gênero/Educação. Tais temas, aliás, sempre foram importantes na

trajetória acadêmica da autora, como demonstram seu trabalho de iniciação científica 3 e

sua participação em coletivos estudantis, tais como o “Educomics” 4, “Cineducom” 5 e

blogs temáticos, como o “Garotas Nerds”6.

Outra aproximação que este texto busca promover é entre as linguagens do

Cinema e das Histórias em Quadrinhos (HQs) enquanto diferentes abordagens para a

transposição de uma obra literária, como é o livro “Entrevista com o Vampiro”, o volume

que inaugurou a série “Crônicas Vampirescas” da escritora americana Anne Rice, objeto

de nossas análises.

Por fim, mantendo-nos fiéis a nossa matriz epistemológica — a Educomunicação

— aproximamos o campo da Comunicação, pelo viés da Leitura Crítica da Mídia, com o

da Educação, identificando a Narrativa como uma chave decodificadora capaz de revelar

os conteúdos ideológicos latentes ao discurso midiático propiciando seu emprego em

contextos educacionais.

Para desenvolver nossas análises e argumentação, dividimos este artigo em quatro

seções, sendo que a primeira delas apresenta o livro que serviu de base para as adaptações

que abordamos aqui, para, em seguida, tratar do filme que marcou a primeira e mais

3 “Enxergando além dos heróis: uma abordagem educomunicativa pelos caminhos da psicologia” orientada pelo Prof.
Dr. Lineu Norio Kohatsu, do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo, entre 2014 e 2015.
4 https://www.facebook.com/groups/1415948328656316/?ref=br_rs
5 https://www.facebook.com/groups/1472016473066283/
6 https://garotasnerds.com/author/natalia-sierpinski/
402
famosa transposição da obra de Rice para a grande tela. Já a segunda seção trata

especificamente da HQ “Entrevista com o Vampiro: a história de Cláudia” de Ashley

Marie Witter. Na terceira seção, nosso foco será a comparação entre cenas do filme e da

HQ, apontando as diferenças de narrativa que denotam o viés de gênero

masculino/feminino inerentes aos seus respectivos discursos.

Ao final, recapitulamos alguns dos pontos discutidos, buscando articular nossa

discussão com a matriz epistemológica na qual nos referenciamos.

1 - Narrativa: a transposição de Rice a Jordan

O filme “Entrevista com o Vampiro” (1994) pode ser considerado como um

fenômeno midiático, gerando muita expectativa, quando anunciado e bastante

repercussão, após sua estreia, devido ao elenco estelar e ao forte homoerotismo da direção

de arte, considerado bastante transgressor para a época.

A narrativa original pertence ao primeiro de uma série de doze livros que

pertencem à série “Crônicas Vampirescas”, uma parte de sua vasta obra, centrada no

gênero literário do fantástico/sobrenatural.

Sabemos que o roteiro creditado à romancista Anne Rice — pseudônimo de

Howard Allen O’Brien — na verdade foi bastante modificado pelo diretor irlandês Neil

Jordan, que gozava de bastante prestígio quando da realização de seu roteiro original “The

Crying Game” (no Brasil, “Traídos pelo Desejo”). Esta não foi a única das liberdades

criativas que a adaptação toma para si — muito pelo contrário — o filme desloca o foco

da narrativa para o protagonismo dos vampiros Lestat e Louis que, ao longo da trama,

oscila entre os pares de opostos: Criador/Criatura, Mestre/Discípulo; Amado/Inimigo.

Estes últimos papéis garantiram muito do interesse do filme nas bilheterias, assegurando

um tom decididamente homoerótico, apelando para um elenco de galãs consagrados por

Hollywood e interagindo num plot inusualmente ousado.

Ainda que possamos dizer que as divergências entre o romance original e sua

adaptação para a tela grande sejam regra em qualquer processo de transposição


403
livro/filme, as narrativas, quando comparadas, parecem bastante diferentes quanto às

motivações principais dos personagens, particularmente no que se refere às relações de

gênero7.

Podemos, inclusive nos referir ao filme como uma história com vários

protagonistas — todos do sexo masculino — e uma única personagem feminina forte —

Cláudia, que é uma mulher no corpo de uma criança e que, ao final, precisa ser eliminada

para direcionar a trama rumo ao seu desfecho trágico.

Neste breve artigo não nos dedicaremos à discussão sobre a fidelidade narrativa

propriamente dita, isto é, se o tempo e as curvas dramáticas do romance estão presentes

nas adaptações analisadas: em troca, nosso foco recairá sobre as questões — estas sim,

bem evidentes — de gênero suscitadas pelo viés do discurso narrativo de ambas as obras.

O filme de Jordan, assim como o livro de Rice, apresenta os vampiros de maneira

bastante humanizada e com foco em seus conflitos pessoais:


Os vampiros tornam-se mais humanizados, com conflitos psicológicos,
reflexões existenciais e afeições duradouras. O romantismo dos jogos
de sedução e sexualidade passou a construir elementos fundamentais.
Por trás dessa reviravolta, fica evidente a transposição espacial e
simbólica do antigo para o novo mundo, ou seja, as características
presentes no vampiro romântico de Stoker focar aculturadas ao novo
modelo, em atitude de permanência e persistência, mas adequadas ao
modus vivendi em voga. (Korasi, 2014, p. 141/142).
Essa caracterização constrasta vivamente com as representações vampirescas

“tradicionais”, perpetuadas pela Literatura, as HQs e o Cinema, as quais ressaltam, via de

regra, os aspectos mais repuslivos e tenebrosos dos Mortos-Vivos hematófagos.

Assim, autores que abordamos vão no caminho oposto da representação estreita

do vampiro enquanto monstro ou demônio,“ou seja, cada vampiro possui sua natureza

particular, igual aos humanos, determinando assim seu caráter vampírico.

Na perspectiva dessas classificações dos vampiros: monstro/ bom/ mau - pode-se

analisar a natureza dos vampiros, partindo da análise da natureza humana.” (Korasi, 2014,

7
Neste artigo, consideramos “questões de Gênero” aquelas que são pertinentes à oposição Masculino/Feminino (“cis”),
não adentrando, conceitualmente, na problemática da Sexualidade/Transexualidade.
404
p. 145) Essas dualidades também tangem as questões morais, que não são as mesmas

moralidades dos humanos comuns:


Com relação à questão sexual, em 1976, poucos escritores ousaram
incluir o sexo em suas histórias. No entanto, as relações homossexuais
e quase incestuosas fizeram parte do enredo de Entrevista com o
Vampiro. Mesmo sem uma cena explícita de sexo, as associações entre
beijo e sexo do vampiro apareceram constantemente. Uma das questões
que provam a popularidade do vampiro, mesmo nos dias de hoje,
apareceu quando a autora inverteu o rumo da história ao revelar que o
entrevistador do vampiro, Louis, não o temia, mas sim o admirava, e
desejou ser como ele, em uma clara representação daquilo que os seres
humanos aspiravam ser, mas que, por moralidades e padrões éticos, não
poderiam ou não teriam coragem de realizar. (Korasi, 2014, p. 147)

Talvez, justamente, pela capacidade de encontrar, um ponto de equilíbrio entre a


manutenção e o questionamento dos cânones nas histórias de vampiro, renovando o
gênero sem perder o frescor da “novidade”, o filme de Jordan tenha se tornado um
clássico, moderno, envelhecendo dignamente frente à saturação de filmes sobre o tema.

Parte 2 - A Graphic Novel: a vampira que não foi entrevistada

Antes de nos aprofundarmos na HQ específica que será analisada, é relevante

salientar que ela não foi a primeira adaptação em quadrinhos da obra de Rice. Entre 1991

e 1994, a Innovative Corporation, do Canadá, publicou uma adaptação da meams

“Entrevista com o Vampiro” no formato de quadrinhos, numa série em doze capítulos, as

obras foram realizadas por Cinthy J. Wood (roteiros) John Bolton (Arte).

Assim, essa primeira transposição quadrinhística foi anterior a estreia do primeiro

filme da saga. Logo nas primeiras páginas temos o escrito “Not intended for children”

enfatizando que tal obra é voltada ao público adulto.

Historicamente os HQs foram colocados como uma linguagem voltada ao público

infantil e vistos como uma literatura inferior, preconceito que vem sendo superado

gradativamente, principalmente a partir de Eisner (1989) que trouxe o conceito de Arte

Sequencial, trazendo aos HQs maior notoriedade e reconhecimento como uma linguagem

complexa.

405
Eisner também cunhou o termo “Graphic Novel”, que se refere a outro formato de

publicação, normalmente com encadernação em capa dura ou brochura. O termo foi usado

por Eisner em 1970 para convencer uma editora a publicar a sua HQ “Um Contrato com

Deus e Outras Histórias de Cortiço”.

Além das diferenças na impressão do conteúdo, as Graphic Novels (GNs) também

trazem em sua concepção uma maior liberdade artística, com a qual podem explorar

outras abordagens para além do mainstream editorial, sendo também identificadas como

obras autorais das quais se esperam uma maior densidade e profundidade narrativas.

Assim, as diferenças entre uma HQ publicada no formato de “revistinha” (histórias “de

linha”, isto é, seriadas) e uma GN, é em suma, de ordem editorial.

Neste contexto, a adaptação em quadrinhos na qual iremos nos debruçar –

“Entrevista com o vampiro: a história de Cláudia” – é descrita, no próprio volume da

obra, como a primeira graphic novel baseada no universo ficcional de Anne Rice. Com

capa dura e papel couchê de alta gramatura, o status de GN traz a mesma indicação citada

na adaptação canadense, que é a de uma HQ voltado ao público adulto.

Publicada no Brasil pela editora Rocco em 2015, a HQ foi adaptado e desenhado

por Ashley Marie Witter. A artista nasceu em Madison (Wisconsin) e estudou artes

visuais e animação na Faculdade de Madison, tendo realizado publicações independentes

em webcomics e trabalhos em grandes editoras, como por exemplo, a produção da arte de

alguns HQs da série Star Wars da Marvel Comics. “A História de Cláudia” é a segunda

produção em parceria com Anne Rice, a primeira foi “The Wolf Gift” adaptação de outra

obra, com o mesmo nome, lançada em 2014.

A arte escolhida por Witter no exemplo aqui analisado demosntra referências

visuais que remetem à Arte Barroca e ao traço do Mangá8, com páginas monocromáticas

8Nome que se aplica à quase totalidade da produção de quadrinhos do Japão. O termo pode ser traduzido livremente
como “Arte Irresponsável”.
406
em tom sépia, a única cor destoante é o vermelho vivo, que aparece sempre que temos

sangue em alguma cena, o que aumenta a intensidade da narrativa.

3. Vampiros na tela e vampiros no papel: duas Narrativas distintas?


Por se tratar de uma análise preliminar e de espectro reduzido, nossa abordagem
metodológica será bastante simples, orientada pela decupagem de elementos narrativos
dramáticos e visuais de algumas cenas-chave, que se assemelha às análises praticadas sob
a denominação de “Gramática da Narrativa” por Todorov (2008, p.135).

3.1. Cláudia em seu próprio caixão: o drama da Vampira-criança e o tédio da


imortalidade
A primeira cena aqui analisada apresenta o momento em que Cláudia pergunta

para Louis se existem caixões para crianças e pede que ele compre um para que ela possa

começar a dormir sozinha, dado que anteriormente a esse momento, ela dormia no mesmo

caixão que ele (Figura 1).

O filme aborda esse momento de forma rápida e passageira, enquanto a HQ o trata

com uma abordagem bem diferenciada, com detalhes e profundidade. Se, no filme, Louis

ainda a vê como uma criança e a descreve como tal — ela até segura uma boneca de

porcelana (inexistente na GN) para dormir —, na HQ, o interesse de Claudia pelo caixão

infantil é apresentado como o início de um conflito interno da personagem, que questina

sua própria existência, evidenciando que ela, definitivamente, já não é mais uma criança.

Além de haver uma diferença de pontos de vista dos narradores, há também uma

diferença de representação física, com o filme a representando Claudia com feições e

falas infantis, segurando uma boneca, enquanto a HQ a representa de maneira reflexiva,

com feições mais agressivas e sérias, que se afastam de uma representação infantilizada.

407
Figura 1. Louis divide seu caixão com Cláudia.

Podemos notar, já nesse primeiro momento, que o filme ser narrado a partir de um
protagonista masculino (e por um diretor idem), já influencia a representação da única
personagem feminina relevante da trama, apontando uma tendência que não é recente:

A partir da segunda onda do movimento feminista, ocorrida na década


de 70, a teoria feminista do cinema demonstrou que a posição das
mulheres nos enredos dos filmes hollywoodianos sempre foi a do outro,
nunca a de sujeito da narrativa, e que sempre foram tratadas como
objetos do voyeurismo masculino. (Gubernikoff, 2009, p. 65/66)

Dessa forma, no filme temos o desenvolvimento da personagem a partir de um

“olhar masculino” (Kaplan, 1995) que influencia em toda a composição da trama, não

apenas no roteiro, mas também no ritmo da narrativa, em que as mesmas cenas que são

longas e equilibradas na HQ, aparecem no filme de maneira superficial e rápida.

3.2. A histeria feminina: um velho clichê


O momento em que Cláudia descobre que nunca irá crescer e que terá a forma de

uma criança por toda a eternidade, acontece durante uma discussão entre ela Cláudia e o

vampiro Lestat. O filme apresenta o conflito de Claudia em seu corpo infantil como algo

brusco e repentino, que leva a personagem a ser apontada como “louca” por Lestat, ao

ponto de ambos os personagens se agredirem, sem nenhuma interferência do passivo

Louis. Esse descontrole da personagem feminina, que é apresentada atirando objetos e

gritando, é usada na narrativa do filme para salientar, de forma atabalhoada e caricata,


408
seu descontentamento de estar presa em um corpo infantil. O mesmo conflito é trabalhado

de maneira gradual e aprofundada no HQ, atingindo um ápice de fúria, mas, sem remeter

a nenhum sintoma de histeria ou descontrole (Figura 2).

Figura 2. Cláudia se revolta: histeria ou fúria?

Assim, o filme traz a representação da histeria feminina, que é “desvairada,


enlouquecida, descontrolada, geniosa e perigosa” (Magnabosco, 2003, p. 434) e que,
como toda representação, está envolta de uma construção social, assim “pensar em
histeria é pensar nas construções de gênero sexual que predominaram, na formação do
imaginário médico e cultural, sobre a figura do feminino, desde o início do século XIX.”
(Magnabosco, 2003, p. 431)

A concepção histérica do corpo feminino aconteceu tanto pela


colocação deste como saturado de sexualidade, o que era visto como
patologia, quanto pela restrição da mulher ao papel lingüístico-social
materno e doméstico, modo de controlar o horror da desterritorialização
dos contornos masculinos. Foi nesse contexto de patologização e
restrição sociolingüística, para um domínio sobre a diferença marcada
pela feminilidade, que a “mãe, com sua imagem negativa de a ‘mulher
nervosa’, constituiu a forma mais visível dessa histerização”. (Nunes
2000, apud Magnabosco, 2003, p. 433)

Enquanto a narrativa do filme se vale dessa representação depreciativa, na HQ, a

mesma cena transcorre de outra forma. A discussão entre Cláudia e Lestat é construída

em um clima de tensão entre ambos os personagens, porém sem agressões físicas. Lestat

ameaça agredir Cláudia e Louis intervém a favor dela, com falas que escancaram a visão

409
de que Cláudia não é mais uma criança, mas sim uma mulher intelectualmente adulta no

corpo de uma criança, foco de conflito que começa a abalar a relação entre Cláudia e

Lestat. Se, no filme, esta cena revela o início da crise da personagem com a sua condição

vampiresca, na HQ, a questão já se colocara muito antes.

4.3. O mistério da origem: por que a escolha não foi dela?


A cena que explora a origem de Cláudia ressalta que ela não teve escolha em

relação a se tornar vampira, dado que Louis simplesmente a atacou e se alimentou dela,

sem a coragem, no entanto, para dar cabo de sua vida. Depois, Lestat a encontrou e

consumou sua transformação, colocand tal escolha como prerrogativa dos dois vampiros

principais, ao passo que a própria Cláudia, sendo apenas uma criança, seuqer entendia o

que estava acontecendo com seu corpo.

Essa mesma cena tem pesos muito diferentes no filme e na HQ, pois, no primeiro,

a história da origem de Cláudia é bastante resumida, ao passo que na HQ ele é contada

num flashback detalhado (Figura 3), surpreendendo o leitor “junto” com a personagem,

por conta dessas revelações.

Figura 3. Louis leva a Cláudia a conhecer sua origem humana.

410
No filme, Louis relata a ela brevemente sobre sua condição como vampira sem

lhe dar maior atenção, pelo fato de estar consumido demais por sua autocomiseração. Na

GN, os diálogos entre os dois são aprofundados, demonstrando a relutância de Louis em

contar a ela o que realmente aconteceu. Depois das primeiras revelações, ela foge e ele

vai atrás dela declarando o medo que tem de perdê-la, agora que ela sabe de toda a

verdade. Esta cena, altamente dramática, é simplesmente excluída do filme.

Consideramos importante notar que a motivação para que o “casal” de vampiros


crie uma filha, reside na chantagem emocional de Lestat, que usa a criança inocente como
uma refém para garantir que Louis não o abandone. Ainda que o filme e a HQ evidenciem
a mesma ideia, apenas no filme a “objetificação” da menina funciona como um “gancho”
narrativo sem grande aprofundamento na psique complexa da garota e sua relação dúbia
(filha? amante?) de Louis.

Nesse caso, a mulher é mais uma das estruturas que regem o argumento
em um grupo de outras estruturas narrativas. Nessa perspectiva, o que
se percebe é que a estrutura-mulher, dentro da trama, está sempre
associada a uma função narrativa ligada a algum elemento masculino.
(KAPLAN, 1995 apud Gubernikoff, 2009, p. 73)

Cabe salientar, também, que essa concepção de estrutura-mulher presente na

narrativa está atrelada ao conceito de “visão masculina” da narrativas, ambas concepções

que não estão presentes na HQ que é produzido por uma mulher e que tem uma mulher

como protagonista.

Essa cena salienta também, entre filme e quadrinhos, a discrepância, de idade nas

representações de Cláudia, a qual fica mais evidente quando compararmos as dimensões

da menina em relaçõ a Louis. No filme, essa diferença de idade é minimizada (Dusnt era,

à época, umadolescente de doze anos), o que contribuiu para trazer outra visão acerca da

personagem e seu lugar na narrativa da história.

4.4. Se matar outro vampiro é um crime capital, por que só Cláudia é punida?
Após se rebelar contra Lestat e assassiná-lo, juntamente com Louis, Cláudia parte

de New Orleans para a Europa, em busca de outros vampiros, com a intenção de


411
compreenderem melhor a sua condição e sua ancestralidade. Quando finalmente eles

encontram um grupo outros vampiros, na cidade de Paris, é feita a revelação de que o

único crime no universo vampiresco é matar um semelhante.

Assim, vemos que os vampiros ostentam uma moralidade própria, bem diferente

dos parâmetros da moralidade humana, já que não há restrições quanto ao ato de matar

humanos ou a qualquer tipo de relacionamento sexual. Por outro lado, eles cultivam o

tabu de que um vampiro não pode matar outro sem pagar pelo crime com a própria vida.

O filme não dá nenhum destaque para Cláudia nessa cena, já que nem seu rosto

nem é mostrado depois de tal revelação. A HQ, por outo lado, demosntra o desespero de

Cláudia pela revelação (figura 4), que ocorre com o pano de fundo de um diálogo

existencial sobre bem e mal, descrito pela personagem como uma “discussão banal”. No

filme, só Louis parece não notar o perigo dizendo que “tudo vai ficar bem”, enquanto na

GN, ele assume sua cumplicidade na morte de Lestat e diz que não irá abandoná-la.

Figura 4. Cláudia percebe que está condenada.

Cena 05- Morte da Cláudia e da “mãe” que ela criou

Cláudia percebe que Louis está cada vez mais próximo de Armand, o líder do clã

de vampiros parisienses e decide que precisa de uma nova companheira para sua vida

412
imortal. Assim, ela convence Louis a transformar em vampira a dona de uma loja de

bonecas que Cláudia frequentava — Madeleine.

Pouco depois disso, os três são capturados pelos outros vampiros e Cláudia e

Madeleine são mortas por exposição à luz do sol, como forma de punição por Cláudia ter

matado (ou melhor, ter tentado matar) Lestat.

No filme fica a impressão de que essa mulher é quem cuidará da Cláudia na

ausência de Louis, pois ela teve uma filha muito nova que morreu, sugerindo que ela vê,

na menina-vampira, a filha que perdeu. Porém, nos quadrinhos percebemos em Cláudia

a intenção oposta: ela se vê como mãe da mulher — uma vez que a criou — e quer cuidar

de dela, ao invés de ser cuidada. Nas imagens abaixo vemos a diferença de representação,

em que no filme a Madeleine está por cima de Cláudia, protegendo-a, enquanto no HQ,

se evidencia o contrário (figura 5).

Outra diferença significativa, é que, enquanto na HQ assistimos a volta de Lestat


que procura diretamente por Armand (como no livro), no filme esta cena é não acontece,
sendo substituída por um desfecho no qual Armand se abstrai da culpa, sem indicar que
Lestat está envolvido diretamente com a denúncia e a posterior execução de Cláudia.

Por fim, é relevante destacar que temos a morte feminina como punição, em que

Cláudia e Madeleine são as únicas a morrer, no filme posteriormente a essa cena, Louis

mata vários vampiros, e não recebe nenhuma punição por esse feito.

Araujo (2015) aponta que existem três tipos de representação feminina produzidas

pelo inconsciente patriarcal masculino, dentro do contexto do cinema hollywoodiano, que

são cúmplices, resistentes e pós-modernas, podemos elencar Claudia como uma

representação resistente, dado que:


o tipo resistente luta, entre outras coisas, por emancipação financeira e
pessoal (...) O feminino é tido nessas narrativas como algo atemporal,
ou seja, com essas motivações, independentemente da época. Segundo
Kaplan, “superficialmente, a representação muda de acordo com a
moda e o estilo – mas se arranharmos a superfície, lá está o modelo
conhecido. ” (KAPLAN, 1995, p 17). A autora afirma que
independentemente do tipo representado, somente as mulheres que se
submetem ao patriarcado são redimidas nos finais das narrativas.
Mulheres que lutam a qualquer custo pela independência são
413
geralmente levadas à degradação moral ou punidas de alguma forma.
(Araujo, 2015, p. 28/29)

Figura 5. Madeleine e Cláudia às portas da more: quem protege quem?

Assim, vemos que essa representação já está atrelada a uma provável punição

como desfecho, dado que é uma personagem que não contenta com sua condição, “se há

alguma ruptura em seu papel durante o desenvolvimento do filme, no fim ela voltará

sempre para seu devido lugar social e familiar. Caso isso não aconteça, no transcorrer do

enredo, será castigada por sua transgressão.” (Gubernikoff, 2009, pg. 73)

Considerações finais
Seria tentador, pensar no filme como uma versão onde o olhar masculino molda e

prevalece sobre uma narrativa concebida por uma escritora. As mudanças operadas por

Jordan escamoteiam questões íntimas relacionadas com a maternidade (Rice perdeu uma

filha pequena, vítima da Leucemia) — enquanto ressaltam uma teia de relações afetivas

que ocorrem, praticamente, só entre os vampiros “machos”.

O protagonismo da única “mulher forte”, na verdade uma mulher adulta presa no

corpo de criança, alijada do prazer (castração) e do papel pleno de “fêmea predadora”,

sucumbe ante a condução dramática do titubeante Louis e do maquiavélico Lestat.

414
Afora Cláudia, todas as mulheres — humanas e vampiras — da tela, parecem ser

unidimensionais, acessórias e descartáveis como escravas, presas dos “caçadores” ou

prostitutas, não necessariamente nesta ordem. Interessante notar que, na tradição da

literatura vampírica (se é que este gênero existe), a figura da vampira Carmilla (Le Fanu,

2010), protagonista de um longo conto que precedeu a narrativa do próprio Conde

Drácula, personagem tido como o fundador do cânone.

Este desnível de poder, verificado na transposição cinematográfica de Rice, pode

ser, em grande parte, atribuído à mudança do ponto de vista do narrador, ainda que a

ordem e a relevância dos fatos narrados não tenha sofrido mudanças substanciais.

Exemplo deste raciocínio é o fato de que, embora a personagem de Kirsten Dunst ocupe

a tela em praticamente de metade do tempo de filme, não são suas ações (ao contrário do

que acontece na HQ) aquelas que definem a condução e o desfecho da trama, mas sim as

de Louis.

Além deste ponto de destaque, bastante enfatizado ao longo do nosso texto, e de

tudo o que foi desenvolvido na seção 4 deste artigo, consideramos pertinente resgatar dois

aspectos condizentes com nossa preocupação em contextualizar as análises aqui

realizadas dentro do viés educomunicativo ao qual nos referimos, no início.

O primeiro diz respeito ao campo da Comunicação e aos desdobramentos


estritamente “técnicos” das transposições aqui analisadas. Do ponto de vista dos artífices
destas releituras, pesam questões como a intertextualidade, as escolhas estéticas e as
contingênicas relativas à produção, tais como a classificação etária da obra,
principalmente no caso do filme.

Num arcabouço mais amplo, que remete diretamente ao segundo aspecto, o da


Educação — entendida aqui como umainstânica da Cultura, portanto, não circunscrita às
isntituições escolares —, podemos constatar que, no espaço de duas décadas que separam
as duas transposições, a questão feminista ganhou corpo, particularmente a reafirmação
do empoderamento da mulher. Isso mantém nosso olhar atento para os modos de
representação do feminino na Mídia, o que inclui as telas grandes e pequenas, e a
produção escrita em todas as formas literárias, incluindo, é claro, os quadrinhos.
415
Unificando ambos os aspectos, propomos uma questão que sintetiza nossos
anseios enquanto eduomunicadores: será que já alcançamos, nos dias de hoje, um patamar
de equidade de gênero que assegura a apresentação do feminino, no campo do simbólico,
de maneiras equilibradas, sem a predominânica de um viés patrircal e opressor?

Esperamos que o conjunto de novas análises e questionamentos responda, logo


que possível, aeste e outros questionamentos semelhantes.

Bibliografia
ARAUJO, Marcella Grecco de. Representações do feminino no cinema brasileiro de ficção:
Mar de rosas, Um céu de estrelas e Trabalhar cansa. Dissertação de mestrado, Universidade
Estadual de Campinas, Instituto de Artes. Campinas 2015. Disponível em:
<http://repositorio.unicamp.br/bitstream/REPOSIP/285303/1/Araujo_MarcellaGreccode_M.pdf
> Acesso em 21 out.2018.

EISNER, Will. Quadrinhos e Arte Sequencial. 1a ed. São Paulo: Martins Fontes, 1989.

ENTREVISTA COM O Vampiro. Direção: Neil Jordan. Produção: David Geffen, Redmond
Morris e Stephen Woolley. Intérpretes: Brad Pitt, Christian Slater, Tom Cruise, Kirsten Dunst,
Antonio Banderas e outros. Roteiro: Anne Rice e Neil Jordan. Som, cor, 1994, (123 min).

GUBERNIKOFF, Giselle. A imagem: representação da mulher no cinema. Revista Conexão –


Comunicação e Cultura,8:65-77,2009. Disponível em:
<http://www.ucs.br/etc/revistas/index.php/conexao/article/view/113/104>, Acesso em 20 out.
2018.

KAPLAN, E. Ann. A mulher e o cinema: os dois lados da câmera. Rio de Janeiro: Artemídia;
Rocco, 1995.

KORASI, Fabricio Pereira. O vampiro romântico, uma questão estética: uma história das
representações através do mito. Doutorado em história social. Pontifícia Católica de São Paulo
(PUC-SP), São Paulo, 2014. Disponível em:
<https://tede2.pucsp.br/bitstream/handle/12831/1/Fabricio%20Pereira%20Korasi.pdf> Acesso
em 21 out. 2018.

LE FANU, Joseph T. Sheridan. Carmilla: A Vampira de Karnstein. São Paulo, Hedra, 2010.

MAGNABOSCO, Maria Madalena. Mal-estar e subjetividade feminina. Revista Mal-Estar e


Subjetividade, Fortaleza, v. 3, n. 2, p. 418-438, set. 2003. Disponível em
<http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1518-
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RICE, Anne. Entrevista com o vampiro. Rio de Janeiro, Rocco, 1976.

TODOROV, Tzvetan. As Estruturas Narrativas. São Paulo, Perpectiva, 2008.

WITTER, Ashley Marie. Entrevista com o vampiro: a história de Cláudia. Rio de Janeiro:
Rocco, 2015.
416
As possíveis relações dialógicas com o cinema em a catábase de
Orfeu e de Eneias

The possible dialogical relations with the cinema in the katabasis of


Orpheus and Aeneas

Elaine Cristina Prado dos Santos

Resumo: A proposta deste artigo visa a apresentar a catábase de Orfeu e de Eneias,


segundo Vergílio (I a. C.), em uma linha comparativa, com os filmes Orfeu Negro, de
Camus (1959), e Amor além da vida, de Vincent Ward (1998), de tal forma a
estabelecer elos intertextuais e dialógicos entre os universos - da literatura clássica e do
cinema - com a finalidade de verificar que o mito pode ser recontextualizado e
reatualizado. Os pressupostos metodológicos para análise da proposta deste trabalho
terão como fundamento os estudos de Bakhtin (2010) e de Mircea Eliade (1991) a
respeito do dialogismo e de mito, respectivamente. Tendo por alicerce os estudos de
Bakthin (apud Fiorin, 2006:18), entende-se que todo discurso é dialógico, pois o sujeito
da enunciação se constitui a partir de um contexto cultural que o forma e que o atualiza
em seu discurso. Embora o mito seja uma realidade viva, o mundo pode ser
simbolicamente refeito por meio de uma remomoração e reatualização, conforme Eliade
(1991: 27). A partir da linha teórica de dialogismo e da perspectiva mítica, podemos
observar que as obras com as quais iremos trabalhar para se constituírem como tais são
perpassadas por outros discursos com os quais dialogam e se fazem expressão literária.
A partir desse raciocínio, será estabelecida uma relação dialógica entre os universos -
literário e fílmico - com a finalidade precípua de verificar o sentido de catábase que foi
empregado pela tradição e transposto para o contemporâneo e analisar o efeito de
sentido provocado pela recontextualização do mito e sua reatualização em sua
atemporalidade.
Palavras-chave: catábase; Orfeu; Eneias; Orfeu Negro; Amor além da vida.

Abstract: The proposal of this article aims to present the katabasis of Orpheus and
Aeneas, according to Vergílio (I B.C), in a comparative line, with the films Black
Orpheus, Camus (1959), and What Dreams May Come, by Vincent Ward (1998), in
such a way as to establish intertextual and dialogical links between the universes - of
classical literature and cinema - in order to verify that the myth can be recontextualized
and updated. The methodological assumptions for the analysis of the proposal of this
work will be based on the studies of Bakhtin (2010) and Mircea Eliade (1991) on
dialogism and myth, respectively. Taking as basis the studies of Bakhtin (apudFiorin,
2006:18), it is understood that every discourse is dialogical, as the subject of
enunciation is constituted from a cultural context that shapes and updates it in its
discourse. Although the myth is a living reality, the world can be symbolically redone
through remomoration and re-actualization,according to Eliade (1991:27). From the
theoretical line of dialogism and the mythical perspective, we can observe that the
pieces with which we will work to constitute themselves as such are permeated by other
discourses with which they dialogue and become literary expression. From this

417
reasoning, a dialogical relationship will be established between the universes - literary
and filmic -with the primary purpose of verifying the sense of katabasis that was used by
the traditionand transposed to the contemporaryand to analyze the effect of meaning
provoked by the recontextualization of the myth and its re-actualization in its
timelessness.
Key words: katabasis; Orpheus; Aeneas; Black Orpheus; What Dreams May Come.

A proposta deste artigo visa a apresentar a catábase de Orfeu e de Eneias, segundo


Vergílio (I a. C.), em uma linha comparativa, com os filmes Orfeu Negro, de Camus
(1959), e Amor além da vida, de Vincent Ward (1998), de tal forma a estabelecer elos
intertextuais e dialógicos entre os universos - da literatura clássica e do cinema - com a
finalidade de verificar que o mito pode ser recontextualizado e reatualizado. Os
pressupostos metodológicos para análise da proposta deste trabalho terão como
fundamento os estudos de Bakhtin (2010) e de Mircea Eliade (1991) a respeito do
dialogismo e de mito, respectivamente. Tendo por alicerce os estudos de Bakthin (apud
Fiorin, 2006:18), entendemos que todo discurso é dialógico, pois o sujeito da
enunciação se constitui a partir de um contexto cultural que o forma e que o atualiza em
seu discurso. Embora o mito seja uma realidade viva, o mundo pode ser simbolicamente
refeito por meio de uma rememoração e reatualização, conforme Eliade (1991: 27). A
partir da linha teórica de dialogismo e da perspectiva mítica, podemos observar que as
obras com as quais iremos trabalhar para se constituírem como tais são perpassadas por
outros discursos com os quais dialogam e se fazem expressão literária. A partir desse
raciocínio, será estabelecida uma relação dialógica entre os universos - literário e
fílmico - com a finalidade precípua de verificar o sentido de catábase que foi empregado
pela tradição e transposto para o contemporâneo e analisar o efeito de sentido
provocado pela recontextualização do mito e sua reatualização em sua atemporalidade.

É importante saber que a preocupação com a sobrevivência da alma esteve, de certa


forma, presente em todas as civilizações. A ideia de uma continuação da vida após a
morte não só originou os mais variados rituais em homenagem aos mortos, mas também
alimentou os mitos que procuravam retratar o local onde as almas se reuniam, após a
morte do corpo. Na antiguidade, houve grandes modelos de uma visão do Além: os
cantos XI e XXI da Odisseia; os quatro mitos escatológicos de Platão (o do Górgias, o
do Fédon, o de Er no final da República e o de Fedro); entre os latinos, o Sonho de
418
Cipião de Cícero. São numerosos os escritores latinos que se referem ao mito, no
entanto Vergílio nos oferece a descrição mais completa do Inferno, apresentando a
catábase de Orfeu, nas Geórgicas e consagrando todo o livro VI da Eneida à viagem de
Eneias aos domínios de Plutão. Tendo por partida esse pensamento da antiguidade a
respeito da morte, é imprescindível reverberar o fio condutor apresentado pela estudiosa
Beth Brait (2005:33), segundo a qual, a linguagem é, por constituição, dialógica e a
língua não é ideologicamente neutra e sim complexa, pois, a partir do uso e dos traços
dos discursos que nela se imprimem, instalam-se na língua choques e contradições.
Dessa forma, entendendo ser a língua dialógica e complexa, pois nela se imprimem
historicamente, como reflete Brait (2005:33) e pelo uso as relações dialógicas dos
discursos, procuramos, por meio da proposição de elos intertextuais, verificar e
depreender a partir do sentido clássico de catábase impresso por uma tradição literária e
investigar a transposição que foi realizada por meio da linguagem em elos intertextuais
e dialógicos para o universo fílmico de tal forma a ressignificar e recontextualizar a
atemporalidade mítica. É necessário que passemos para as narrativas das obras, citadas
acima, para que possamos entender a catábase de seus heróis.

A primeira catábase a ser verificada será a que está descrita no canto IV das Geórgicas,
quando o herói Orfeu, desesperado pela morte da esposa Eurídice, desceu aos Infernos
para trazê-la de volta à vida. Por meio do som inebriante de sua lira e de sua divina voz,
Orfeu encantou o mundo ctônico, comovendo Caronte, que largou o barco e seguiu o
cantor. Comovidos com a voz de Orfeu e com tamanha prova de amor, os deuses
infernais, Plutão e Prosérpina, concordaram em devolver-lhe a esposa; entretanto, uma
condição foi imposta: ele iria à frente e ela lhe acompanharia os passos, mas Orfeu não
poderia olhar para trás. Os dois amantes subiam em direção à luz, mas ele não resistiu,
olhou para trás e viu Eurídice sumir para sempre na sombra.

Orfeu tentou regressar, mas não foi lhe dada uma segunda chance. Inconsolável e fiel a
seu amor, Orfeu passou a repelir todas as mulheres da Trácia, que se sentiram
desprezadas, mataram-no e esquartejaram-no, lançando os restos de seu corpo e a
cabeça no rio Hebro. Ao rolar a cabeça no rio, sua boca proferiu o nome de Eurídice
(Geo. IV, 526-527).

Como os versos 475 a 477 do IV canto das Geórgicas são idênticos aos versos 306 a
308 do VI canto da Eneida, muito estudiosos e críticos dizem que, ao escrever o mito de
419
Orfeu e Eurídice, provavelmente, Vergílio estivesse envolvido com a obra Eneida.
Embora sejam idêntidos, apresentam-se como um elo intertextual a expressarem valores
distintos nessa descida aos infernos pelos dois heróis, ou seja, as catábases são
impregnadas de valores essenciais para a antiguidade clássica:

As mães, os maridos, os corpos dos magnânimos heróis isentos de


vida, os meninos, as meninas solteiras, os jovens colocados nas piras
sob os olhos dos pais”1. (tradução nossa)
Por meio da viagem ao submundo, da descida aos infernos, ou seja, da realização, das
catábases, tanto a de Orfeu quanto a de Eneias, apresentam-se duas espécies de amor,
revelando-se por um lado, o amor apaixonado de Orfeu por Eurídice; por outro, o amor
filial, segundo os romanos, a pietas, de Eneias, por Anquises. Para transpor a fronteira
do mundo dos mortos, Eneias pediu à Sibila, sacerdotisa de Apolo, que lhe permitisse
descer aos infernos; porém antes deveria colher um ramo de ouro, consagrado a Juno
Infernal, e oferecê-lo para Prosérpina, a rainha dos Infernos (En. VI, 124-125).

Conforme Vergílio, na Eneida, o interior dos infernos se subdividia em quatro


diferentes regiões: a primeira, local reservado aos que haviam morrido antes que
tivessem cumprido seu destino (En. VI, 426-547); a segunda, região do Tártaro, onde
ficavam os grandes criminosos; após a região dos suplícios, no meio do Inferno,
encontrava-se a morada de Plutão e Prosérpina. Eneias parou ali por um momento,
pondo o ramo de ouro à entrada do Tártaro; a terceira região, os Campos Elísios, lugar
destinado a receber os bons. A partir do verso 679, até o breve epílogo (En. VI, 893-
901), aconteceu o encontro de Eneias com Anquises, que fez ao filho uma dupla
revelação. A primeira dizia respeito às origens do mundo e da alma; a segunda foi o
chamado cortejo dos heróis romanos. A quarta região era um bosque, onde uma
multidão de sombras se aproximava do rio Letes. As sombras eram os espíritos dos
mortos que esperavam o momento de regressar ao mundo dos vivos (En. VI, 713-885).
Eneias ouviu os conselhos de seu pai e preparou-se para regressar a seu mundo (En. VI,
752-892).

1
Matres atque uiri defunctaque corpora uita
Magnanimum heroum, pueri innuptaeque puellae
Impositique rogis iuuenes ante ora parentum (Geo. IV, 475-477) (En. VI, 306-308)
420
Quanto ao filme Orfeu Negro, de Marcel Camus, trata-se de uma adaptação da peça
escrita por Vinícius de Moraes, Orfeu da Conceição, em uma transposição para o
universo de uma comunidade, no Rio de Janeiro, dessacralizando e deseroicizando o
mito. Orfeu, o jovem mulato do morro carioca, no filme, não é mais o tocador de lira,
pois agora é um motorneiro de bonde, talentoso jovem compositor de sambas-enredo,
que toca o violão mais afinado do morro e prepara-se para o grande desfile de sua escola
de samba no Carnaval. Ele é apaixonado por Eurídice, a linda mulata e jovem
interiorana.

No filme, crianças acreditavam no poder da voz de Orfeu, capaz de fazer o Sol se


levantar todas as manhãs. Quando Orfeu soube da morte de Eurídice, ficou desesperado,
procurou-a por todos os lados, até ir a um prédio, no 12o. andar, onde havia o local dos
desaparecidos. A cena fílmica é muito significativa, quando Orfeu subiu de elevador até
o andar indicado pelo ponteiro do elevador até o local dos desaparecidos no décimo
segundo andar do prédio: uma alusão aos doze deuses do Olimpo. Chegando ao andar,
encontrou um vasto corredor com muitos papeis e um faxineiro que varria toda a
papelada. O faxineiro, como um Caronte, conduziu Orfeu ao inferno para encontrar sua
Eurídice. Em forma genial, pelas lentes da narrativa fílmica, a catábase se projeta em
uma imensa e sombria escadaria sinuosa, toda em caracol, e a descida aos infernos se
realiza Orfeu homem descendo os degraus do prédio ao lado do faxineiro que o conduz
para um lugar incerto, sendo vistos pelos olhos atentos do expectator fílmico.

Para surpresa do expectador, o inferno se faz e se concretiza em um ritual religioso, pois


é apresentado como uma casa de Candomblé. Nesse momento, a tradição clássica do
inferno de Hades é transposta e recontextualizada, projetando-se, atrás de Orfeu, uma
senhora negra bem envelhecida, que lhe pede, com a voz de Eurídice, que não olhe para
trás, pois caso contrário, ele irá perdê-la; entretanto, Orfeu não consegue se dominar,
olha para trás, vendo essa senhora e, em desespero, sai correndo assustado. Percebemos
que os mesmos elementos do texto clássico são reverberados no texto de Vinícius;
entretanto em reatulização, provocando um outro efeito de sentido, pois Orfeu é
dessacralizado do mundo clássico para o morro carioca.

Nas Geórgicas, Eurídice é picada por uma serpente por culpa de Aristeu; entretanto, no
filme, Eurídice morreu, durante uma noite de Carnaval, eletrocutada por um dos fios de
alta tensão da estação de trem, porque fora perseguida por um homem, fantasiado de
421
Arlequim. Em Orfeu Negro, é perceptível que, por meio do acréscimo das crianças, está
implícita a ideia do renascer, pois os meninos, após a morte de Orfeu, pegaram o violão
para tocar sua música e, em sua inocência, conseguiram fazer o Sol ressurgir: “você fez
o Sol levantar, agora você é Orfeu”. Para Eliade (2001: 77), a noite da qual nasce o sol
todas as manhãs simboliza o caos primordial, e o nascer do sol é uma réplica da
cosmogonia.

Após termos apresentado a catábase de Orfeu e de Eneias, pelas obras clássicas


Geórgicas e Eneida, e visualizarmos como expectadores fílmicos a descida aos infernos
pelos degraus por Orfeu, em Orfeu Negro, atravassaremos não só o inferno mas também
o paraíso pelas telas de Amor além da vida. O filme, de Vincent Ward, procura retratar
uma imagem do paraíso e do inferno, segundo o roteiro de Ron Bass, baseado em um
romance de Richard Matheson. Depois de perder os dois filhos em um acidente de
carro, o médico Chris Nielson entregou-se ao trabalho para encontrar forças com as
quais pudesse ajudar sua esposa, Annie. Após quatro anos, Chris também morreu em
um acidente de carro e teve como destino o Paraíso, o qual é apresentado como uma
simulação de telas de pintura do imaginário de Chris, lembrando os jardins de Monet.
Chris, no paraíso, era acompanhado e orientado por um amigo chamado Albert.

Annie, não suportando mais a solidão, cometeu um suicídio e, como castigo, foi ao
inferno. Como Orfeu, Chris resolveu ir aos Infernos, resgatar sua esposa. A catábase é
apresentada com imagens que retomam o inferno vergiliano e o dantesco, podemos
perceber neste momento a relação dialógica que se estabelece entre os textos pela
retomada da catábase, porém com um novo sentido empregado pelo cineasta. Albert,
um missionário que salvava almas perdidas, levou Chris até um guia que poderia
conduzi-los até o Inferno. Pintou-se um cenário impressionante de uma grande
biblioteca medieval, onde eles encontraram um Psiquiatra, o rastreador interpretado por
Max Von Sydow, que, como o barqueiro Caronte, os levou até o inferno. Eles
atravessaram um rio, de águas turbulentas. Visualizam-se, nesse percurso infernal,
figuras negras, seres que voavam em um céu completamente escuro. O rastreador pediu
a Chris que ele tivesse sempre em mente imagens da esposa, pois Annie se tornaria um
transmissor de pensamento ao inferno. Mesmo atacados por diversas almas penadas,
conseguiram sair das profundezas das águas, chegando a uma espécie de praia, onde
havia diversos corpos estendidos sobre o chão. Passando por eles, chegaram
422
definitivamente à entrada dos Infernos: um inferno de navios, onde havia um, cujo
nome era Cérbero, o guardião. O cão do universo clássico é transposto para a linguagem
fílmica como uma referência ao nome em relação intertextual, reverberando a tradição.

Chris e o rastreador subiram em um elevador em direção ao inferno e chegaram a um


local que mais parecia um estranho Campo de Cabeças. No meio daquele horripilante
mar de rostos, Chris pensou ver, entre eles, Annie e, rumando em sua direção, acabou
mergulhando nesse mar, no qual se abriu uma fenda, afundando em um imenso abismo.

No fundo do poço, ficava a casa de Chris e de Annie, totalmente deteriorada. Antes de


Chris entrar, o rastreador avisou: “três minutos, pois mais do que isso você enlouquece.”
Mesmo assim, Chris entrou na casa, encontrando Annie, que não o reconheceu. Travou-
se então um profundo diálogo entre os dois. Chris desistiu do Paraíso para ficar com
Annie no inferno, mas no último instante Annie reconheceu Chris, que se afundou no
poço de seu inconsciente perturbado por esse clima de tensão. Entretanto ele conseguiu
resgatar Annie e também ser salvo.

A partir das leituras acima, pode-se dizer que para Orfeu, tanto nas Geórgicas quanto
em Orfeu Negro, e para Chris, em Amor além da Vida, o amor pela esposa é a razão
essencial de sua vida de tal forma que os leva a transpor as paredes dos Infernos; no
entanto, para Eneias, a descida aos infernos é impulsionada por seu amor filial, pela
pietas romana e pela busca de conhecimento.

Na Eneida, o poeta Vergílio, por meio de seu pai Anquises, faz uma exposição
sincrética das doutrinas de Platão e de Pitágoras sobre a natureza e imortalidade da
alma, a metempsicose. Em Amor além da vida, está explícita a noção de imortalidade e
continuidade de vida por meio da teoria das diversas existências; portanto, nas quatro
obras, o tema central é a imortalidade e o amor que consegue transpor a barreira da
morte.

Para se entrar nos Infernos, é necessário que haja um condutor; nas Geórgicas, há a
presença de Caronte, o barqueiro dos Infernos; em Orfeu Negro, há a figura do faxineiro
que conduz Orfeu a um ritual religioso. Em Amor além da vida, o guia aos infernos é o
rastreador, o Psiquiatra. Na Eneida, Caronte está presente, mas o verdadeiro guia de
Eneias aos infernos é a Sibila.

423
Tanto em Orfeu Negro, quanto em Amor além da vida, para se realizar a catábase, foi
necessário subir de elevador para depois descer. Orfeu sobe de elevador os doze andares
de um prédio e só encontra desolação e papeis espalhados por todo o chão; por outro
lado, tanto Chris quanto o rastreador sobem de elevador, porém não encontram papeis,
mas um mar de rostos em uma amorfa massa.

Nas Geórgicas, Cérbero, o cão dos infernos, emudece diante da voz maravilhosa de
Orfeu e fica com suas três goelas abertas. Em Orfeu Negro, Cérbero é apenas um cão
que fica na entrada da casa de Candomblé; em Amor além da vida, a entrada dos
infernos é um cemitério de navios e um deles traz como nome - Cérbero, o guardião.

Em Orfeu Negro, o inferno é retratado como uma casa de Candomblé; em Amor além
da vida, é apresentada a imagem de uma igreja gótica invertida que pode caracterizar a
ideia de outra vida, pois conforme Frye (1973: 134), o universo da imagem apocalíptica
retrata que a morte pode ter uma imagem invertida, sob a qual subjaz a ideia de uma
outra vida.

No canto IV das Geórgicas, o apicultor Aristeu tentou violentar a esposa de Orfeu,


Eurídice, que, ao fugir de seu perseguidor, morre picada por uma serpente. Em Orfeu
Negro, Eurídice é perseguida pela Morte, representada por homem fantasiado de
Arlequim; em Amor além da vida, Annie é perseguida pela depressão, pela sombra da
tristeza, cometendo suicídio ao final.

Em Amor além da vida, a água se torna, diversas vezes, um condutor da memória.


Conforme Eliade (2001: 81), para curar-se da obra do tempo, é preciso voltar atrás e
chegar ao princípio do mundo. Em Orfeu negro, durante todo percurso, com Eurídice
morta em seus braços, Orfeu canta uma canção de perdão e de agradecimento à amada,
enquanto um caminhão passa lavando a rua, como um rito de purificação para a alma de
Orfeu. Para Chevalier (1994: 15-18), a água pode simbolizar a fonte de vida, meio de
purificação e centro de regenerescência. Ao Orfeu novo, que sobe o morro com Eurídice
nos braços, e a Chris novo, que emerge das águas, corresponde a aparição de um outro
mundo.

Nas Geórgicas, Orfeu foi imprudente, olhou para trás e perdeu Eurídice (Geo. IV, 491-
492); em Orfeu Negro, encontra-se a mesma referência de não poder olhar para trás.
Conforme Brandão (1997: 143), Orfeu poderia ter trazido Eurídice de volta, se não

424
tivesse olhado para trás. Este foi seu grande desencontro, pois ao olhar para trás,
transgride as direções, volta ao passado, retrocede.

Em Amor além da vida, o rastreador recomenda a Chris que ele fique somente três
minutos ao lado da esposa. Como Orfeu, ele não obedeceu às orientações do rastreador,
mas como Alceste, no Banquete de Platão, ele consegue trazer a esposa para luz, pois
Alceste se sacrificara, trocando a própria vida pela do marido. De uma forma similar à
de Alceste, Chris, desistindo do Paraíso, preferindo ficar no Inferno ao lado de Annie,
obteve a reconquista do Paraíso.

Enquanto Orfeu, nas Geórgicas e em Orfeu Negro, consegue atravessar os Infernos, por
meio de um caminho: o seu canto poético; Eneias, resgatando os caracteres morais,
formadores do povo romano, deixa uma chave: o ramo de ouro, o sonho, movido por
um coração pleno de pietas, em busca do amor paterno. Quanto a Chris, o caminho que
o leva até a esposa é a força do pensamento, capaz de gerar realidade de tal forma que
sua esposa se torna um transmissor de seu próprio pensamento.

Pelo amor e com a força de seu canto, Orfeu, em ambas as obras, desceu aos Infernos
para resgatar sua esposa, tornando-se extraordinário com a milagrosa potência do canto,
que consegue, por sua vez, transpor as paredes da morte. Orfeu não morre, sua alma
preexiste, o canto poético permanece para a posteridade. A voz do poeta, viva,
continuará clamando pela eternidade, como Orfeu ainda clama o nome de Eurídice. Da
mesma forma que o canto, a arte é imortal, rompendo as paredes da morte, pois a
comunicação além da vida se demonstrou por meio da beleza da pintura.

E como as crianças que cantam para o Sol se levantar, movido pelas notas musicais -
Orfeu continua vivo. Afirma-se que, enquanto houver no mundo Amor, haverá sempre
Orfeu e Eurídice - Chris e Annie e tantos outros que se amarão e haverão de transpor as
barreiras da morte com a música, com a poesia que serão retratadas nas telas
recontextualizadas da atemporalidade da História metamorfoseada por aqueles que a
transformam pelas catábases, anábases em busca da escalada definitiva da anagnórisis.

Bibliografia:

BRANDÃO, Junito de S. Mitologia grega. Petrópolis: Vozes, 1997. 3v.

425
CARDOSO, Zélia de Almeida. A literatura latina. (Série Revisão - 33), Porto Alegre:
Mercado Aberto, 1989.

CHEVALIER, J.; GHEERBRANT, A.. Dicionário de símbolos. 8 ed. Colaboração de


André Barbault et alii, Coordenação Carlos Sussekind, Tradução de Vera da Costa e
Silva et alii. Rio de Janeiro: José Olympio, 1994.

ELIADE, M. O sagrado e o profano. Trad. Rogério Fernandes. 5.ed. São Paulo:


Martins fontes, 2001.

FIORIN, José Luiz. Introdução ao pensamento de Bakhtin. São Paulo: Ática, 2006.

FRYE, Northtrop. Anatomia da crítica. (trad. Péricles eugênio da Silva Ramos), São
Paulo: Cultrix, 1973.

VIRGILE. Eneide. Texte établi par Henri Goelzer et traduit par André Bellessort. Paris:
Société d’ Édition Les Belles Lettres, 1952.

.Les Géorgiques. Texte établi et traduit par Saint-Denis. Paris: Société


d’édition Les Belles Lettres, 1968.

426
Adaptações de mídias nas animações japonesas: A transposição do
livro 'O Castelo Animado' (1986), para o filme 'O Castelo Animado'
(2004).

Media adaptations in the Japanese animations: The transposition of the


book 'Howl’s Moving Castle' (1986), for the film 'Howl’s Moving Castle'
(2004).

Viktor Danko Perkusich Novaes1

Resumo: Este artigo se propõe a analisar o filme “O Castelo Animado” de Hayao


Miyazaki através das noções de adaptação. Comparando a obra do diretor com o original
da autora Diana Wynne Jones, mantendo em mente as claras adaptações e liberdades que
o diretor tomou ao realizar seu filme, tendo como foco os personagens para melhor
compreensão das mudanças feitas por Miyazaki. Deve ter em mente que esta não é a
primeira vez que o diretor adapta uma obra literária para a mídia audiovisual, de fato sua
carreira é permeada de adaptações, não apenas no contexto fílmico, mas também em
relação a animações seriadas, de fato, a animação japonesa tem em sua história a questão
da adaptação de literaturas, principalmente literatura estrangeira, como é o caso. Portanto,
um histórico com as diversas adaptações de literaturas ocorridas na história do cinema de
animação japonesa e da carreira do diretor se faz necessária para a compreensão das
decisões tomadas por ele.
Palavras-chave: Cinema; Japão; Animação; Adaptação; Miyazaki.

Abstract: This article proposes to analyze Hayao Miyazaki's movie "Howl’s Moving
Castle" through the notions of adaptation. Comparing the director's work with the original
of the author Diana Wynne Jones, keeping in mind the clear adaptations and freedoms
that the director took when making his film, focusing on the characters to better
understand the changes made by Miyazaki. It should be borne in mind that this is not the
first time that the director adapts a literary work to the audiovisual media, in fact his career
is permeated by adaptations, not only in the filmic context, but also in relation to serial
animations, in fact, the Japanese animation has in its history the issue of the adaptation of
literatures, mainly foreign literature, as is the case. Therefore, a history with the diverse
adaptations of literatures occurred in the history of Japanese animation cinema and the
director's career becomes necessary for the understanding of the decisions taken by him.
Key words: Cinema; Japan; Animation; Adaptation; Miyazaki.

1Mestre em Comunicação pela Universidade Anhembi Morumbi, bolsista CAPES (2018). Membro do
Grupo de Pesquisa em Animação e Comunicação AnimaCom. Atualmente professor da FATAC (Faculdade
de Tecnologia Alphachannel) ministrando aulas de Teoria de Vídeo e Áudio. viktor_danko@hotmail.com.

427
I n trod u ção
Em 2004 Miyazaki retornaria como diretor no filme Hauru no Ugoku Shiro (O Castelo
Animado), baseado no livro homônimo da autora Diana Wynne Jones. Apesar de ser uma
clara adaptação da obra de Jones e das comparações que serão realizadas neste capitulo,
devemos manter em mente que são obras independentes e que não necessariamente
devem ser algo de críticas ligadas a questões adaptativas. Vale lembrar que esse filme foi
baseado no primeiro livro de uma trilogia de livros escritos pela autora, seus volumes são:
O Castelo Animado de 1986, O Castelo no Ar de 1990 e A Casa de Muitos Caminhos de
2008.

Histórico de adaptação de literaturas para a animação japonesa.

Para que possamos compreender os motivos do diretor para realizar uma obra baseada
em outra estrangeira, devemos ter em mente os processos que passaram os filmes de
animação japonesa, perceberemos que muito do que foi, e é feito, tem como base
adaptações de narrativas folclóricas, livros e mangás (quadrinhos japoneses). Apesar de
existirem diversas obras, cujas adaptações vem das conhecidas fabulas de Esopo, foi
somente durante e após o período da segunda guerra mundial que o cinema de animação
japonesa teve seu grande exponencial, não apenas isso, mas é nessa época que temos a
maior quantidade de filmes que tem como base adaptações, sendo estas, em sua maioria,
contos folclóricos, obras gráficas produzidas dentro do Japão.
Um bom exemplo disso é o personagem Norakuro (Vira-lata Preto), que teve suas origens
nos mangás da época. O diretor Yasuji Murata (1896-1966) animou algumas histórias do
personagem, nessas narrativas, Norakuro se alista no exército imperial e acompanhamos
o personagem em algumas batalhas contra inimigos estrangeiros. Mais tarde ele se
tornaria mascote das tropas durante a segunda guerra mundial.
Em 1929 outra obra animada de propaganda bélica baseada em lendas folclóricas surgiu,
Nihonishi no Momotaro (Momotaro é o Maior) de Sanae Yamato, conta história de uma
lenda japonesa sobre um garoto que nasce de um pêssego, este é criado por uma família
muito pobre que, junto de seus companheiros animais, parte em uma jornada para
conquistar Onigashima (Ilha dos Ogros). Já durante a Ocupação Norte-Americana no
Japão após a guerra, as animações sofreram diversas mudanças em suas narrativas, estas
sofreram a repressão da censura.
“Não só a censura da ocupação proíbe as críticas aos Estados Unidos
ou outras nações aliadas, mas a menção da própria censura foi proibida.

428
Isso significa, como observado por Donald Keene, que, para alguns
produtores de textos, ‘A censura da ocupação era ainda maus
exasperante do que a censura militar japonesa porque insistia em
esconder todos os vestígios da censura, o que significava que os artigos
tinham de ser reescritos na íntegra, em vez de simplesmente submeter
XXs para as frases ofensivas.’ “(ROSENFELD, 1999, p. 85. Tradução
livre.)2

As temáticas japonesas foram proibidas e a animação japonesa tomou dois rumos, uma
delas sendo animações fantásticas e extravagantes, com protagonistas animais e com
características cartunescas, similares aos trabalhos de Walt Disney, e o outro foi à
adaptação de contos folclóricos de outros países, o “Conto da Vendedora de Fósforos”
de Hans Christian Andersen, por exemplo, foi adaptado para dois filmes, um destes de
1947 do diretor Sanae Yamamoto, feito com animação de silhuetas, e Yuki no Yoru no
Yume 1947 (Sonho de uma Noite Nevada) do diretor Noburo Ofuji com um estilo chinês
de capitulação do filme.
Outros contos como os de “As Mil e Uma Noites” também foram adaptados para filmes
de animação por diretores japoneses, Bagudaddo-hime, 1948 (A Princesa de Bagdá) de
Ashida Iwao é um exemplo.
No entanto apesar das dificuldades que a animação japonesa encontrou durante esse
período, essas obras influenciaram certos autores a criar obras próprias que também
seguiriam os caminhos da adaptação, neste caso Osamu Tezuka, faria adaptações de duas
próprias obras em mangá. Nascido em 1928 Tezuka é reconhecido como o maior autor
de mangás história, tendo o título de “O Deus dos mangás” este também é considerado o
pai dos mangás modernos.

Tezuka
Seus primeiros trabalhos eram publicados em forma de Akaihon (capas vermelhas), num
papel de baixa qualidade, no entanto o apelo estético e narrativo era seu diferencial.
Influenciado por Walt Disney e por filmes franceses e alemães, Osamu Tekuza foi
responsável por explorar, quadros, ângulos e perspectivas para dar dinamismo em suas
histórias, muito semelhantes às técnicas cinematográficas, isso permitiu um maior
desenvolvimento narrativo.

2
“Not only did Occupation censorship forbid criticism of United States or other Allied nations, but the
mention of censorship itself was forbidden. This means as Donald Keene observes, that some producers of
texts ‘The Occupation censorship was even more exasperating than the Japanese military had been because
it insisted that all traces of censorship to be concealed. This meant that articles had to be rewritten in full,
than ratter merely submitting XXs for the offending phrases.”

429
O Japão após a segunda guerra foi inundado com produtos de consumo, e não só isso, o
país agora podia exportar seus próprios produtos para os estrangeiros.
Tezuka uniu a capacidade de produção de animação com as histórias que já produzia em
mangá, nascendo assim o anime para a televisão.
Em 1961 Osamu Tezuka, que até então trabalhava no Estúdio Toei, fundou sua própria
companhia, a Mushi Production, esse estúdio viria a ser pioneiro na produção de
animações para a televisão e rivalizaria com a própria Toei que já estava consolidada, as
animações produzidas pela Mushi são originárias dos próprios trabalhos em Mangá de
Tezuka, Tetsuwan Atomu (Astro Boy), Jungle Tatei (Kimba o Leão Branco), Ribbon no
Kishi, (A Princesa e o Cavaleiro) são algumas das produções feitas que teriam
reconhecimento em diversos países, foi Tezuka que uniu suas histórias cinemáticas, com
a já existente capacidade que as animações teriam para esse tipo de linguagem, criando
assim a primeira era de ouro para as animações televisivas no Japão.
Novamente temos os trabalhos de um autor tanto de animação quanto de obras gráficas a
influenciar futuros realizadores, neste caso Osamu Tezuka acabou por influenciar uma
geração inteira de artistas incluindo Hayao Miyazaki, que durante a sua carreia teve
diversas obras que tem com inspiração obras literárias estrangeiras
Um exemplo mais tangível desse contexto é a série Arupusu no Shōjo Haiji (Heidi, a
Garota dos Alpes) de Isao Takahata, que viria a trabalhar no Estúdio Ghibli ao lado de
Hayao Miyazaki, a princípio essa série aparentava ser difícil de ser veiculada devido a
sua temática realista e dramática e o público mais jovem, que consumia os produtos
televisivos, desejava narrativas mais fantásticas, no entanto a série de Takahata fez grande
sucesso tanto na Europa quanto no Japão, o que permitiu que ele e Miyazaki iniciassem
uma série de animações baseadas em obras literárias chamada Sekai Meisaku Gekijō
(Obras Primas do Mundo).

As adaptações de Miyazaki
Desde muito jovem Miyazaki teve interesse em ser um artista de mangá, Osamu Tezuka
foi grande influência em seus trabalhos, no entanto o próprio diretor diz se arrepender de
tentar imitar o estilo de Tezuka em seus primeiros trabalhos, este deveria procurar um
estilo próprio, após seu ingresso na escola de ensino médio Toyotama, Miyazaki teve
contato com um dos primeiros filmes de animação japonesa que despertou seu interesse
por essa arte, Hakujaden (O Conto da Serpente Branca) do Estúdio Toei.

430
Na época o Estúdio Toei era o único estúdio capaz de produzir filmes de animação em
longa-metragem, Miyazaki iniciou sua carreira como animador de imagens intermediárias
no filme Wanwan Chushingura (Cão de Guarda Wanwan) do diretor Akira Daikubara em
1963, além da série para a televisão Okami Shonen Ken (Ken, O Menino Lobo). Em 1965
Miyazaki trabalhou no filme Gariba no Uchu Ryoko (Gulliver Viaja para além da Lua),
este sugeriu o final para o filme, que até então estava insatisfatório.
Foi no filme Hepburn: Nagagutsu o Haita Neko, (O Gato de Botas) de 1969 que o diretor
foi promovido a animador de imagens key e designer, além de trabalhar no storyboard,
este foi ilustrador do mangá promocional do filme. Hayao Miyazaki teve papel no filme
Soratobu Yureisen (O Navio Fantasma Voador) de 1969, em 1971 desenvolveu o design
de personagens e estruturas no filme Ari Baba to Yonjuppiki no Tozoku (Ali Baba e os
Quarenta Ladrões) 1971 de Hiroshi Shirada.
Em 1971 o diretor deixou a Toei para se unir a A-Pro, onde foi codiretor da série em 14
episódios Rupan Sansei (Lupin III) ao lado de Isao Takahata, nesse mesmo ano os dois
diretores trabalhavam na pré-produção do filme da personagem Pipi Meia Longa, em uma
viagem de pesquisa para a Suécia este conheceu a autora Astrid Lindgren, que negou o
uso da personagem para o Estúdio, mas apesar disso a personagem Pipi Meia Longa
“aparece” no primeiro filme dirigido por Miyazaki após a criação do Estúdio Ghibli Tenkû
no shiro Rapyuta (O Castelo no Céu) como a Capitã Dola dos piratas voadores, a
personagem de seu curta metragem Yadosagashi 2006 (Procurando um Lar) também se
assemelha muito a Pipi Meia Longa. Miyazaki também dirigiu uma série televisiva
chamada Mirai Shonen Konan (Conan, o Garoto do Futuro) adaptação do livro infanto-
juvenil de Alexander Key, The Incredible Tide.
Em 1980 Miyazaki dirigiria uma série televisiva pela TSM, uma coprodução italiana que
estrelaria animais antropomórficos recontando contos de Sherlock Holmes chamada
Meitantei Homuzu.
O próximo filme dirigido por Hayao Miyazaki seria Kaze no Tani no Naushika (Nausicaä
do Vale do Vento) de 1984, o filme se passaria um futuro pós apocalíptico, onde a raça
humana vive a mercê de criaturas gigantescas e se protegendo de florestas de fungos
tóxicos, nesse contexto temos a protagonista Nausicaä que tenta encontrar um equilíbrio
entre os seres humanos e a natureza que os cerca. No entanto fato a ser notado é que
filmes em animação não eram simplesmente criados sem uma obra fonte, os filmes
precisavam ser baseados em livros, contos ou mangás, devido a um fator histórico.

431
Por esse motivo a produção de Nausicaä teve de ser adiada até que o diretor Miyazaki
criasse uma obra original em mangá para se basear, portanto o filme de Nausicaä tem
como fonte uma obra gráfica de mesmo nome, mas que conta apenas uma parte de sua
história, o diretor trabalharia no mangá de 1982 até 1994, seu primeiro volume foi
publicado como fonte de propaganda para o filme na revista Animage graças à ajuda de
Toshio Suzuki, e devido ao sucesso do mangá de Nausicaä, Isao Takahata entrou em
contato com Miyazaki com a intenção de ser produtor executivo do filme, Toshio Suzuki
viria a se tornar um dos fundadores do Estúdio Ghibli, a colaboração entre eles foi o que
permitiu o lançamento do filme e a arrecadação de fundos para a criação do Estúdio. O
diretor novamente, agora com seu próprio estúdio, a criar filmes que tem como base a
adaptação de obras literárias, como “Serviço de Entrega Kiki” e “O Castelo Animado”,
além de obras que se baseou em criações próprias em manga, como “Vidas ao Vento”.

Análise dos dados coletados


A partir dessa análise percebemos então a relação que a animação japonesa possui, não
apenas com o mangá, mas também com outras formas de literatura e de contos, esta se
baseia em adaptações para as telas de narrativas que foram primeiramente mostradas em
outra mídia, percebemos isso nos primeiros anos das animações japonesas, os primeiros
filmes tinham como narrativas principal contos folclóricos que já eram de conhecimento
da população japonesa, alguns destes sendo as conhecidas fabulas de Esopo.
Durante o período expansionista, dois dos principais personagens da época, Norakuro e
Momotaro, tiveram suas obras animadas baseadas em seus mangás e em contos
folclóricos respectivamente. Não apenas isso, mas as animações da época também
adaptavam narrativas vindas de outros países, como no caso do conto da vendedora de
fósforos de Hans Christian Andersen que foi adaptada para dois filmes e “As Mil e Uma
Noites” adaptada para o filme Bagudaddo-hime, 1948 (A Princesa de Bagdá) de Ashida
Iwao.
Já em relação às animações para a televisão temos Osamu Tezuka que foi pioneiro em
relação à maneira de se produzir animações, mas mesmo ele uniu a produção de animação
com as histórias que o próprio produzia em mangá, Tetsuwan Atomu (Astro Boy), Jungle
Tatei (Kimba o Leão Branco), Ribbon no Kishi, (A Princesa e o Cavaleiro) são alguns
exemplos.

432
O próprio diretor Hayao Miyazaki durante a sua carreira teve diversas obras que se
basearam nesse modelo, variando de narrativas europeias como Sherlock Holmes, O Gato
de Botas, livros como o do autor Alexander Key que se tornaria Mirai Shonen Konan
(Conan, o Garoto do Futuro), até contos como os das “Mil e Uma Noites”, mas fato a ser
notado é que uma das obras de Miyazaki, Nausicaä do Vale do Vento de 1984, tomou o
rumo contrário, Nausicaä teve de ser adiada até que o diretor criasse uma obra original
em mangá para se basear, no entanto esse mangá criado por Miyazaki seria apenas a
primeira parte da história de Nausicaä, graças ao sucesso do mangá e o filme Miyazaki
produziu outros capítulos continuando a história da personagem.
Hayao Miyazaki ainda produziria diversas outras obras que teriam como base narrativas
em livros ou mangás, Dentre as primeiras influências do diretor estão às histórias que este
lia em mangás quando jovem, principalmente a arte sequencial com temas
cinematográficos de Osamu Tezuka e os temas políticos e sociais do autor Sanpei Shitaro
(Noburo Okamoto), durante a sua carreira como animador os trabalhos literários de
ocidentais como Ursula K. Le Gui, Lewis Carroll, Edward Blishen, Diana Wynne Jones,
Eleanor Farjeon, Rosemary Sutcliff e Philippa Pearce tiveram sua participação na criação
dos temas que o diretor utilizou em seus filmes, estes são autores de literatura fantásticas,
contos e poemas que tem como público crianças e adolescentes, que utilizam na
construção do mundo de suas histórias alegorias e seus personagens nem sempre possuem
motivações claras.
Em 1989 o filme Majo no Takkyubin (Serviço de Entrega Kiki) foi uma adaptação do
livro de mesmo nome da autora japonesa Eiko Kadono. Kurenai no Buta 1992 (Porco
Rosso) foi inspirado pelo mangá de Miyazaki Hikotei Jidai (A Era dos Barcos Voadores)
Hauru no Ugoku Shiro 2004 (O Castelo Animado), foi baseado no livro de mesmo nome
da autora Diana Wynne Jones, Gake no ue no Ponyo 2008 (Ponyo: Uma Amizade que
Veio do Mar), tem como inspiração a obra de Han Christian Andersen “A Pequena
Sereia”, além da opera de Richard Wagner “O Anel dos Nibelungos” e a lenda japonesa
de “Urashima Taro”, por fim, Kaze Tachinu 2014 (Vidas ao Vento), é uma adaptação de
uma história em mangá criada pelo próprio Miyazaki baseada em Jiro Horikoshi, o
criador do avião de guerra japonês Mitsubishi A6M ZERO.

O castelo animado
Tanto o livro quanto o filme a princípio mantém certa similaridade, no entanto com o
decorrer da trama percebemos que o diretor escolheu tomar um caminho mais poético e

433
que está também relacionado com seus ideais, enquanto a autora Diana Wynne Jones, que
assim como Miyazaki faz obras para o público infantil, decidiu tomar um caminho
relacionado ao da fantasia literária, a obra da autora é preenchida de diversos elementos
fantásticos, que se perdem em relação ao filme, que acaba por ser uma obra muito mais
intimista e que de certa forma propaga os já conhecidos ideais antibelicistas do diretor.
Ambas as obras iniciam com a protagonista Sophie, que acredita que seu destino é
continuar com a chapelaria da família sem nunca ter ambições. Certo dia quando saiu para
visitar sua irmã Lettie, acaba se deparando com bonito jovem, que, conforme a narrativa
se desenvolve no livro, descobrimos ser o mago Howl. Essa descoberta é feita é feita
imediatamente por Sophie no filme.
Esse encontro atrai a atenção da Bruxa das Terras Devastadas, que lança um feitiço sobre
Sophie, a transforma numa velha. Esta então decide sair de casa para encontrar um modo
de quebrar a maldição. No caminho a velha Sophie liberta um espantalho enfeitiçado com
cabeça de nabo, e no livro um cão, esta então chega ao castelo animado do mago Howl.
Lá ela encontra o demônio de fogo Calcifer que propõe quebrar seu feitiço desde que ela
quebre o contrato que o prende ao mago. Pela manhã quando o mago lhe questiona sobre
quem ela é Sophie diz que é a nova faxineira. A partir disso temos então a história se
desenvolvendo com Sophie tentando descobrir uma maneira de quebrar a maldição.
Desde o princípio podemos notar diversas diferenças entre as obras, No livro somos
apresentados à família de Sophie, sabemos detalhes a respeito de seu pai que faleceu e
deixou a chapelaria como herança para as filhas, uma das maiores mudanças a respeito
da adaptação das obras é que a família de Sophie está com problemas financeiros, por
esse motivo não possuem condições de manter diversos empregados, no livro temos
apenas uma, que trabalha na loja junto de Sophie, enquanto no filme existem várias outras
mulheres que estão na loja.
Descobrimos que Sophie tem na verdade uma madrasta que é a mãe de sua irmã mais
nova Martha e os motivos financeiros que levaram a separação das filhas. Devido a isso
as duas irmãs mais novas, Lettie e Martha, são apresentadas de maneira muito mais
complexa no livro, descobrimos que ambas trocam de identidade, Martha deveria ter ido
aprender magia em outra cidade e Lettie deveria ir trabalhar no café. Por esse motivo,
Sophie no início do livro não sai para visitar Lettie, mas sim Martha, apesar de no livro
Martha já revelar o plano para Sophie no filme, não há essa revelação, o diretor escolheu
não nos envolver em tramas secundárias, por isso existe a possibilidade de que este
detalhe tenha sumido completamente da obra.

434
As mudanças realizadas neste sentido pelo diretor se deem ao fato de que este quis
transmitir uma situação de solidão, ao invés de sermos apresentados a Sophie num
contexto familiar, a vemos completamente sozinha e retraída, sabemos que está possui
uma família, mas que está distante. Além do ambiente profissional, no livro vemos uma
protagonista muito mais conformada com sua condição de irmã mais velha que não pode
possuir ambições, mas no filme temos Sophie sofrendo devido a sua condição, tanto que
a presença de mais mulheres trabalhando na loja e que possuem obvias diferenças de
personalidade faz com que essa ideia seja reforçada, Sophie está só onde quer que esteja
dessa forma o impacto das cenas de perseguição escolhidas pelo diretor toma outro
sentido, como veremos ao final do livro. Os acontecimentos então voltam a ser similares
em ambas às obras, Sophie encontra a Bruxa das terras desoladas e a amaldiçoa a tornando
uma velha senhora, uma única diferença mais marcante a respeito do que vemos é que
enquanto no livro a Bruxa é descrita como sendo muito bela, no filme temos uma Bruxa
mais monstruosa, a escolha do diretor a esse respeito se deve novamente a fatos que ainda
estão para acontecer durante o filme, descobrimos que a Bruxa das terras desoladas de
Miyazaki é na verdade uma velha senhora, que quando despida de toda a magia que a
mantém se torna inofensiva, enquanto a Bruxa da autora Diana Wynne Jones mantém
suas características físicas até o final da obra.
Sophie então sai em busca de uma cura para sua maldição, no caminho apesar de não ser
explicito, mas sim citado por alguns personagens que estão presentes, descobrimos que
Sophie está à procura de sua outra irmã, que até então acreditamos que seja Martha, mas
na verdade é Lettie. O nome dela nunca é dito, no entanto, para os leitores da obra original,
fica claro a escolha de Sophie ao procurar sua irmã.
Após alguns acontecimentos, como a libertação do espantalho com cabeça de nabo e, no
livro de um cão, Sophie chega finalmente ao castelo animado do mago Howl.
Novamente temos diversas similaridades entre o livro e o filme, apenas alguns detalhes,
que somente terão explicação com o livro, são deixados de fora do filme, à rotina que se
segue é basicamente a mesma, quando mago está em seu castelo, no entanto temos a
maior diferença de personalidade encontrada no personagem, enquanto no filme Howl é
excêntrico e demonstra ser um mago poderosíssimos, com diversas demonstrações desde
o começo, demonstrações estas que tem apenas função estética, e está muito mais ligado
aos acontecimentos que se passam em segundo plano do filme, como a guerra por
exemplo. No livro temos um Howl que é muito mais fútil, mulherengo e que se preocupa
de mais com a aparência do que os acontecimentos em segundo plano, na verdade aí está

435
outra grande diferença entre as obras, enquanto o diretor Miyazaki escolheu a guerra
como conflito de segundo plano, no livro a guerra nunca acontece muito pelo contrário,
fica a noção que esta pôde ser evitada devido às ações de Howl e de Sophie. Em algumas
cenas do filme vemos Howl se envolvendo diretamente em conflitos armados, se
transformando em um grande pássaro, no livro essa atitude não seria praticada por ele
devido a sua vaidade.
ma das maiores diferenças que se tem entre as obras em relação à construção de mundo é
que, enquanto o diretor escolheu nos transportar para um universo fechado em qualquer
ligação com o nosso universo, a autora faz com que exista uma ligação entre eles. No
livro uma das cores que estão no disco da porta levam os personagens até a o país de
Gales, de fato ficamos sabendo que o mago Howl é na verdade galês e que este encontrou
uma forma de se transportar para o universo de Sophie. As reações dos personagens
quando estão em Gales é de total distanciamento, não sabendo explicar nem mesmo o que
é um automóvel, uma televisão entre outras coisas. Enquanto no filme são vistos
automóveis e aparelhos eletrônicos e em nenhum momento temos ligação com Gales, o
disco na porta do mago o transporta para um lugar que aparentemente está constantemente
em guerra, este o transporta para uma zona de conflito.
Ao que diz respeito à exibição de soldados na cidade, as bandeiras sendo portadas e as
maquinas de guerra, tem apenas função estética, o gosto do diretor por colocar em seus
filmes maquinas voadoras excêntricas, neste caso, acabou por se mostrar um exagero.
Calcifer, o demônio de fogo, que faz com que o castelo se movimente, em ambas as obras
é o coração de Howl que habita uma estrela cadente, a única e verdadeira diferença entre
Calcifer do livro e do filme é sua aparência física, enquanto no filme ele é apenas uma
bola e fogo com olhos e boca que conversa com os personagens, no livro este aparenta
ter diversas cores e uma aparência mais demoníaca.
A respeito de tramas secundárias que foram deixadas de lado e o aprendiz de Howl,
Michael, temos as seguintes diferenças. Primeiramente a idade do personagem, enquanto
no livro Michael tem 15 anos de idade no filme ele nos é retratado como sendo muito
mais jovem, cerca de 10 anos. Essa diferença na idade do personagem faz om que certos
acontecimentos sejam deixados de lado, por exemplo, o fato do Michael dos livros estar
apaixonado pelo irmão de Sophie Martha, que estava se disfarçando de Lettie na cafeteria,
ao mesmo tempo em que temos uma pequena trama onde o mago Howl este também em
busca de uma mulher que se chama Lettie, esta, no entanto, é a verdadeira Lettie que

436
trocou de lugar com sua irmã e foi estudar magia. Todos estes acontecimentos são
excluídos do filme e consequentemente, o final de ambas as obras é bem diferente.
Até determinado ponto do filme o diretor manteve todos os personagens apresentados,
excluindo alguns, devido ao tempo e a seus papeis de menor importância, não havia
demonstrado até então nenhum personagem que fosse uma amalgama de outros
personagens nem fez com que estes mudassem se gênero, no entanto, enquanto no livro
somos apresentados ao desaparecimento do mago do rei, Sullivan e a professora de Howl,
madame Pentstemmom. No filme temos apenas um personagem que possui estas duas
funções, madame Sullivan, que é tanto professora de Howl quanto feiticeira do rei. Esta
escolha do diretor tenha, novamente, a função de excluir certos acontecimentos que são
serão retratados durante o filme.
Uma característica muito importante que deve ser notada em relação à Sophie é que
durante todo o livro, esta, quando transformada em uma idosa pela Bruxa das terras
devastadas, se matem assim durante todo o livro. No entanto no filme Sophie
constantemente mudando de aparência, de uma senhora mais idosa para uma mais jovem
dependendo do seu humor, não fica exatamente claro o porquê de o diretor dar tal
característica a personagem, pois outra grande diferença entre elas é que a Sophie do filme
não possui nenhuma característica mágica. Portanto esse fato fica sem qualquer
explicação.
O grande conflito final, no filme se deve as ações da bruxa das terras devastadas e a guerra
que se aproxima, temos Howl enfraquecido devido aos conflitos em que participa e a
destruição do castelo, ao final descobrimos que Calcifer era de fato uma estrela cadente
que toma o coração de Howl para continuar viva, a Bruxa das terras devastadas se junta
aos personagens no final como uma velhinha inofensiva e todos são vistas partindo no
castelo que agora voa.
No livro há um grande conflito entre a Bruxa das terras devastadas e Howl, uma batalha
ocorre e Sophie tem de enfrentar a Bruxa em seu próprio castelo, descobrimos que a
Bruxa, assim como Howl, tem uma estrela cadente emposse de seu coração, o final
acontece com a destruição da Bruxa e a quebra da maldição de Sophie, neste momento
temos a reunião de todos os personagens que até então não se encontravam, Martha,
Lettie, a madrasta de Sophie, Fanny, a professora de Lettie Sra. Fairfax, Michael, Howl,
o mago Sullivan e o irmão desaparecido do rei. A escolha de Jones para esse final se deve
ao fato de ser uma autora de literatura infantil, portanto apesar dos diversos conflitos
apresentados o final não poderia ser diferente, uma reunião feliz com todos os

437
personagens é o esperado. Enquanto no filme o diretor escolheu um grande clímax para
em seguida termos uma cena calma. Essa característica do diretor se deve ao fato de que
nem tudo em suas obras necessitam de explicação, apenas as expressões dos personagens
já nos dizem o que se passa.

Conclusão
Percebemos então que apesar das claras diferenças entre as duas obras Miyazaki fez um
bom trabalho em transpor a visão de Jones para uma obra fílmica, podemos argumentar
que este fez diversas mudanças estruturais e em personagens importantes, mas tais
mudanças foram necessárias para que pudesse criar uma obra que fosse ao mesmo tempo
relacionada com a de Jones e algo que fosse próprio seu.
Este não foi o primeiro e nem seria o último trabalho que realizou adaptando uma obra,
Miyazaki não é nenhum pioneiro no que diz respeito a esse quesito, diversos autores,
desde antes da segunda-guerra mundial já realizavam trabalhos de adaptações para o
cinema de animação, graças a isso o diretor teve diversas influências, como Osamu
Tezuka, por exemplo, que fizeram com que ele criasse obras baseadas tanto em literaturas
estrangeiras, japonesas e suas próprias obras gráficas.

Referências bibliográficas

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LUYTEN, Sonia Bibe. Manga – O Poder dos Quadrinhos Japoneses. 3. ed. São Paulo:
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438
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1. ed. Nova Iorque: ROWMAN & LITTLEFIELD. 2002.
SHARP, Jasper. Pioneers of Japanese Animation at PIFan – Part 1. Disponível em:
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SHARP, Jasper. Pioneers of Japanese Animation at PIFan – Part 2. Disponível em:
<http://www.midnighteye.com/features/pioneers-of-japanese-animation-at-pifan-part-2/>.
Acesso em: 25 de fevereiro de 2017.

Referências filmograficas
O Castelo Animado. Direção Hayao Miyazaki. Japão. Cor. 119 min. 2004.

439
O Pessimismo Cósmico de H. P. Lovecraft no Cinema

H. P. Lovecraft’s Cosmic Pessimism in Cinema

Yuri Garcia1

Resumo: H. P. Lovecraft é considerado um dos maiores escritores de horror. Suas


histórias influenciaram diversos artistas como Stephen King e Neil Gaiman. Acima de
tudo, Lovecraft é uma importante fonte de material para o audiovisual. Além das diversas
adaptações de seus contos para as telas, vemos uma gama de elementos de seu universo
ficcional em diversos filmes. No entanto, a contribuição do autor não se resume a isso.
Uma perspectiva filosófica que ele denominava “Pessimismo Cósmico” é cada vez mais
popular na cultura contemporânea, sobretudo no cinema. O olhar de Lovecraft para o
mundo e para o ser-humano é visto em diversas películas através dos mais variados
diretores. O horror e a ficção científica, embora não únicos, são gêneros que se utilizam
dessa premissa com cada vez mais frequência. Embora a tarefa de evidenciar a presença
das criações lovecraftianas através de uma perspectiva filosófica cósmica seja de extrema
complexidade e de difícil comprovação, tentaremos mapear alguns filmes que possuam
essa influência e demonstrar as similaridades contidas nas obras. O mundo que H. P.
Lovecraft propõe é um mundo sombrio em que nos encontramos em incrível
insignificância em um perigoso universo. A imensidão do desconhecido é perigosa e
assustadora mas continua nos atraindo para as salas escuras.
Palavras-chave: Lovecraft; pessimismo cósmico; cinema; horror.

Abstract: H. P. Lovecraft is considered one of the greatest horror writers. His stories
influenced several artists such as Stephen King and Neil Gaiman. Above all, Lovecraft is
an important source of material for the audiovisual. In addition to the various adaptations
of his stories to the screen, we see a range of elements from his fictional universe in
several films. However, the author's contribution is not limited to this. A philosophical
perspective he called "Cosmic Pessimism" is increasingly popular in contemporary
culture, especially in cinema. Lovecraft's gaze to the world and to the human being is
seen in several films through the most varied directors. Horror and science fiction, though
not unique, are genres that use this premise more and more often. Although the task of
highlighting the presence of the lovecraftian creations through a cosmic philosophical
perspective is extremely complex and difficult to prove, we will try to map out some films
that have this influence and demonstrate the similarities contained in the works. The
world that H. P. Lovecraft proposes is a dark world in which we find ourselves in
incredible insignificance in a dangerous universe. The immensity of the unknown is
dangerous and frightening but continues to draw us into the dark rooms.
Key words: Lovecraft; cosmic pessimism; cinema; horror.

1 Doutorando com bolsa Faperj Nota 10 em Comnuicação Social pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Mestre
em Comunicação Social pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Possui pós-graduação em Docência do Ensino
Superior pela IAVM-UCAM. Participa do Grupo de Pesquisa “Culturas Tecnológicas: medialidades, materialidades e
temporalidades” coordenado pelo Prof. Dr. Erick Felinto. Autor do livro “Drácula, o vampiro camaleônico” (2014). E-
mail:yurigpk@hotmail.com

440
I n trod u ção
O autor H. P. Lovecraft desenvolveu uma mitologia complexa que se espalhou
massivamente por diversos âmbitos da nossa cultura. Não apenas da literatura, mas
também de outras mídias – cinema, jogos, histórias em quadrinhos entres outras. Suas
criações estão em todos os lugares, sem fronteiras ou meras denominações que as
prendam. Seus monstros estão soltos pelo mundo, e povoam todo espaço que encontram.
A filosofia e, sobretudo, a cultura pop foram profundamente impactados por Lovecraft.
O escritor deu vida a um mundo que se entranha nos mais diversos lugares, criando novas
formas, novas visões. Sua mitologia é rizomática e demonstra cada vez mais sua falta de
limites, penetrando em todos os espaços que encontra.
Esse contágio, por assim de dizer, é monstruoso.em tamanho e em personificação.
Uma deidade alienígena que se encontra no nosso imaginário, graças ao escritor que abriu
suas portas e nos apresentou um novo mundo. Lovecraft é um marco do horror, um nome
de extrema importância para o gênero, todavia sua fama não condiz com sua relevância e
é ainda desconhecido para muitos. Não é o primeiro artista (nem mesmo no âmbito
literário) que alcança grande fama depois de falecido. Todavia, acabou por criar uma
mitologia que penetra com mais força progressivamente em nossa cultura. Mais ainda, ao
iniciar seu reconhecimento era tido como um escritor de qualidade inferior, para acabar
sendo compreendido hoje como um complexo criador de universos que nos permitem
pensar nas mais variadas questões epistemológicas acerca de diversas áreas.
A mitologia do autor é baseada em uma premissa conhecida como “Pessimismo
Cósmico”. Nesse artigo, proponho conceituar tal perspectiva filosófica para, poder assim
evidenciar algumas obras cinematográficas que possuem essa inspiração. A proposta não
é a de analisar obras do autor que foram adaptadas para o cinema, ou de destacar
elementos de sua complexa mitologia no audiovisual. O importante aqui, será
compreender a premissa do Pessimismo Cósmico para conseguir evidenciar a forma
como ela pode ser vista em alguns filmes.

H. P. Lovecraft
Em 20 de agosto de 1890, em Providence, Rhode Island, nos Estados Unidos da
América, nasce Howard Phillips Lovecraft, filho único de Winfield Scott Lovecraft e
Sarah Susan Philips. Aos três anos, seu pai sofreu uma aguda crise nervosa e foi internado
em um hospital psiquiátrico, onde ficou até sua morte em 1898. Assim, o escritor acabou

441
sendo criado por sua mãe, suas tias Annie Emeline Philips e Lillian Delora Philips e seu
avô materno Whipple Van Buren Philips na casa da família.
Seu avô sempre o incentivou muito a ler e, desde cedo, era entretido com contos
góticos, que além de entrarem para a lista de suas leituras favotitas, acabaram por
despertar seu interesse pelo sobrenatural. Durante a infância, era uma criança muito
solitária e frágil e se encontrava doente com certa frequência e sofria “várias doenças de
fundo aparentemente psicológico” (JOSHI, 1996, p.8), o que fez com que acabasse
abandonando a escola, após, aos oito de idade, quase passar um ano sem conseguir atender
às aulas. Entretanto, sempre leu bastante e acabou se apaixonando por Astronomia e
Química (já com oito anos de idade).
Com a morte do avô em 1904, a antes confortável situação financeira da família
se modifica, dando lugar a um cenário de dificuldades e a mudança de sua casa com sua
enorme biblioteca para uma casa bem menor na mesma rua. Esse fato, aliado ao seu
insucesso em concluir sua graduação na escola devido a um ataque de nervos e a não
aprovação para entrar na Brown University, o fez viver isolado com sua mãe somente
escrevendo poesia, sem procurar emprego ou fazer qualquer contato social. Em 1914,
inicou um longo período de contribuições com poemas, ensaios e contos com United
Amateur Press Association (UAPA).
Em 1919, a mãe de Lovecraft é internada no Butler Hospital, após um longo
período de depressão e histeria e morre em 1921 por complicações em uma cirurgia de
vesícula. No mesmo ano, comparece a um encontro de fãs em Boston e conhece a
vendedora e também escritora amadora Sonia Haft Greene. Se casam em 1924 e ele se
muda para seu apartamento em Nova Iorque, no Brooklyn.
O início parecia promissor para o casal: Lovecraft vendeu várias
histórias para a recém criada Weird Tales – a primeira revista dedicada
ao gênero fantástico em todo mundo, em 1923 –, e Sônia abriu com
sucesso uma loja de chapéus na Quinta Avendia em Nova York.
Mas as dificuldades não demoraram a suceder: a loja não resistiu a
dívidas e faliu. Lovecraft perdeu uma oportunidade para assumir como
editor-assistente de Weird Tales – pois ela tinha mudado seu endereço
para Chicago. Além de perder a loja, a esposa de Lovecraft ficou muito
doente, indo parar em um sanatório em Nova Jersey, gastando quase
todo o dinheiro do casal em sua recuperação. (JOSHI, 1996, p.9)
Lovecraft, já com 34 anos, não consegue arrumar emprego pela falta de
experiência e idade avançada para a época. Em 1925, Sônia consegue um emprego em
Cleveland e Lovecraft fica residindo em um pequeno apartamento em Red Hook, em
Nova Iorque. Nesse período inicia um processo de maior maturidade em sua escrita com
histórias mais longas e complexas que, por sua vez, tornam-se cada vez mais difíceis de

442
serem vendidas. Volta sozinho para Providence em 1926 (seu casamento acaba em um
divórcio inevitável em 1929) e vive com sua tia beirando a miséria em um pequeno
apartamento. Morre em 10 de março de 1937, precisamente num momento em que parecia
atingir sua maturidade intelectual e literária, ensaiando um início de reconhecimento que
apontava para seu ápice como escritor.
O Pessimismo Cósmico
Em vida, Lovecraft não chegou a se tornar um artista de grande repercussão e
sempre foi marcado por uma enorme dificuldade para conseguir arranjar emprego ou se
sustentar por meio de sua escrita, tendo sido apenas um autor de contos e ensaios
publicados em revistas amadoras (como as já citadas Weird Tales, Amazing Stories etc).
Uma de suas maiores frustrações foi não ter conseguido publicar um livro de sua autoria
enquanto vivo. Mesmo assim, possuía fiéis seguidores do seu trabalho, que contribuíram
para fazer algumas de suas últimas obras chegarem às prensas. Em 1939, August Derleth
e Donald Wandrey, dois de seus grandes amigos escritores e correspondentes de cartas,
criam a editora Akham House, para divulgar suas histórias. Não muito tempo após sua
morte, as histórias do autor começam a se firmar no cenário da literatura de horror,
destacando-o como um dos principais nomes do gênero e conquistando legiões cada vez
maiores de admiradores entre nichos de públicos específicos.
Lovecraft não é reconhecido por uma história em particular, mas pelo criativo e
complexo desenvolvimento de uma mitologia que podemos encontrar permeando a
maioria de suas narrações. Mesmo com contos mais famosos podendo ser destacados
como At the Mountains of Madness ou The Call of Cthulhu, o autor tem seu maior mérito
em sua obra como um todo se complementando e referenciando a criação de um universo
assustador. Atualmente, é consolidado como um grande nome do horror e da ficção
fantástica e sua mitologia e perspectivas foram incorporadas em nossa cultura e são
continuamente reelaboradas.
O princípio central da escrita lovecraftiana é sua perspectiva filosófica, pessimista
e cósmica. Grande admirador de astronomia, o autor percebe a grandeza do universo e
seu desconhecido como central, colocando o ser-humano como uma pequena poeira
cósmica em um espaço de proporções infinitas.
O princípio literário de Lovecraft era o que ele chamava de
“Cosmicismo” ou “Terror Cósmico”, que se resume à ideia de que a
vida é incompreensível ao ser humano, e de que o universo é
infinitamente hostil aos interesses do homem. Isto posto, as suas obras

443
expressam uma profunda indiferença às crenças e atividades humanas.
(Wikipédia)2
Não procuramos apontar aqui a wikipédia como um meio de pesquisa confiável
ou uma base sólida para compreender a perspectiva filosófica lovecraftiana. O verbete
acima oferece uma breve, porém eficiente descrição do princípio literário das obras de
Lovecraft. Na realidade, embora a mitologia lovecraftiana seja bem mais complexa, é
interessante perceber como podemos encontrar diversas explicações bem satisfatórias ao
procuramos na internet em meios mais simples de pesquisa como a Wikipédia.
Suas criações, no entanto, são mais obscuras, nos apresentando seres indescritíveis
e criando universos que ultrapassam os limites da racionalidade. Seu mundo imaginário
representa o ser humano como criatura abandonada em um cosmos indiferente à sua
existência, dando forma a uma peculiar mitologia não (ou mesmo anti) antropocêntrica.
Espécies alienígenas muito superiores teriam dominado a Terra em um passado remoto e
aguardam adormecidas seu retorno em um futuro apocalíptico. Aqui vale a pena lembrar
o controverso escritor suíço Erich Von Däniken que ficou muito famoso na década de
1970 por suas teorias sobre a suposta influência extraterrestre na cultura humana desde
os tempos pré-históricos 3 . As alegações do escritor são totalmente rejeitadas pela
comunidade científica e sua suposta “originalidade” ou “pioneirismo” pode ser alvo de
questionamento. A curiosa tese de Jason Colavito The Cult of Alien Gods: H.P. Lovecraft
and Extraterrestrial Pop Culture (2005) aponta para a influência de Lovecraft na cultura
pop, sobretudo em literaturas esotéricas (e, nesse caso, pseudo-científicas) como a de
Däniken.
Dessa forma, o autor apresenta um conceito de divindade que prescinde dos
homens e habita outra(s) dimensão(ões), possuindo noções de tempo e espaço muito além
da capacidade da compreensão humana. Tal mitologia evoca uma religiosidade
monstruosa de alienígenas e uma visão do ser humano como um mero inseto
insignificante diante de um cosmos que aponta para o imenso poder do desconhecido.
Segundo o pesquisador Greg Conley (2017):
As criaturas na maioria das histórias de Lovecraft não são demoníacas,
mas alienígenas, normalmente no sentido literal. Eles vêm de outros
planetas ou dimensões. Apenas alguns desejam dominar a terra. Poucos
querem subjugar a humanidade, visto que geralmente não sequer
notaram a presença dos humanos.4 (CONLEY, 2017, p.8)

2 https://pt.wikipedia.org/wiki/H._P._Lovecraft
3 Mais famoso por seu livro Eram Os Deuses Astronautas? (2010) abordando o assunto.
4 Todas as traduções no texto são de nossa autoria: “The creatures in the bulk of Lovecraft’s stories are not demoniac,

but alien, usually literally. They come from other planets or dimensions. Only some wish to take over Earth. Few want
to subjugate humanity, as they generally have not noticed humans at all.” (CONLEY, 2017, p.8)

444
O ensaio de Conley desenvolve a mitologia lovecraftiana articulando a imagem
do alienígena com os valores morais e anseios de Lovecraft. Segundo o autor, a narração
carregada e descritiva, repleta de adjetivos confusos e arcaicos de Lovecraft aponta não
puramente para o horror desses seres mas também para a distância que possuem com o
ser humano. A aparência é identificada como grotesca devido a sua diferença com o que
conhecemos e sua ameaça não é uma ameça malígna, pois a ideia de bom ou mal faz parte
de uma escala moral da humanidade, onde esses seres não se encontram. A indifrença
com a humanidade nos apresenta uma perigo que não se difere em nada ao perigo que
outras espécies sofrem de entrar em extinção. Não é bom ou mal e sim uma diferença da
natureza.
Eles existem totalmente fora das concepções humanas de linguagem,
incluindo moral e ética. Eles são totalmente inumanos, e servem para
recordar os leitores, através de seu espectro grotesco, da natureza
abstrata da moral humana. Os monstros de Lovecraft são monstruosos
na medida em que lembram o leitor que toda ideia de decência humana
e bondade é tão abstrata e ficcional como os próprios monstros.5 (ibid,
p.9)
Assim, Conley procura focar não apenas nas explicações da mitologia em si, mas
desenvolver uma interessante teoria sobre uma desmistificação da moral humana através
de contos de Lovecraft. O desenvolvimento de sua tese é centrado essencialmente na
seguinte premissa:
O problema na crítica de Lovecraft, que este ensaio procura resolver, é
que todos associam esses temas aos alienígenas do espaço. Várias
histórias de Lovecraft retratam seres alienígenas que nascem ou se
adaptam à própria Terra. Essas raças alienígenas ainda são totalmente
estranhas à experiência humana, mas vêm da mesma ecologia. Elas se
adaptam aos mesmos ambientes e, como consequência, espera-se que
tenham visões morais similares, dado o gosto de Lovecraft por
argumentos evolutivos sociais. Simplesmente, Lovecraft escreveu
histórias sobre a moralidade alienígena e quão estranho seria para os
seres humanos. Mas ele não estava satisfeito apenas com alienígenas do
espaço. Seus alienígenas terrestres são quase tão estranhos à
experiência humana quanto os alienígenas do espaço. Lovecraft afirma
que a moralidade humana não é simplesmente um fenômeno local - é
especificamente humano. Mesmo criaturas evoluídas no mesmo
planeta, usando os mesmos recursos, têm pontos de vista totalmente
diferentes.6 (ibid, p.9-10)

5 “They exist totally outside human conceptions of language, including morality and ethics. They are totally unhuman,
and serve to remind readers, through their grotesqueness, of the abstract nature of human morality. Lovecraft’s monsters
are monstrous inasmuch as they remind the reader that every idea of human decency and goodness is as abstract and
fictional as the monsters themselves.” (ibid, p.9)
6 “The problem in Lovecraft criticism, which this essay seeks to solve, is that everyone associates these themes with

the space aliens. Several Lovecraft stories portray alien beings who are born on, or adapt themselves to, Earth itself.
These alien races are still totally foreign to human experience, but come from the same ecology. They adapt themselves
to the same environments, and as a consequence might be expected to have similar moral views, given Lovecraft’s taste
for social evolutionary arguments. Simply, Lovecraft wrote stories about alien morality and how foreign it would be to
humans. But he was not satisfied only with space aliens. His terrestrial “aliens” are nearly as foreign to the human

445
A complexidade que o autor traz para os escritos de Lovecraft é interessante e
digna de menção, no entanto, aqui pretendo apresentar mais o que seria a mitologia e
desenvolvê-la de forma mais explicativa. Uma breve explicação detalhada e de uma fonte
de pesquisa mais espcializada do que o verbete da wikipédia apontado acima é a descrição
de S. T. Joshi, maior pesquisador sobre Lovecraft da atualidade, sobre a perspectiva
filosófica que é um pilar essencial para os contos lovecraftianos:
O cosmicismo é a um só tempo uma posição metafísica (uma
consciência da vastidão do universo no espaço e no tempo), ética (uma
consciência da insignificância dos seres humanos diante do universo),
e estética (uma expressão literária dessa insignificância, a ser atingida
pela minimização da personagem humana e a exposição de absimos
titânicos de tempo e espaço). (2014, p.212)
Lovecraft produziu uma profunda reformulação da noção tradicional de mito,
elaborando um panteão de deuses monstruosos inteiramente indiferentes ao homem. Esse
conjunto de mitos e narrativas, que, além de tudo, poderia ser qualificado como uma
espécie de trabalho colaborativo nos moldes da atual cultura digital, recebeu de August
Derleth (um escritor e fiel seguidor com quem o autor trocava correspondências, que,
assim como outros, também desenvolvia contos a partir das criações lovecraftianas) a
designação de “Cthulhu Mythos”. No entanto, é necessário destacar uma profunda
diferença entre a visão derlethiana de suas criações. Enquanto o autor de Providence –
agnóstico durante boa parte de sua vida, tornando-se, mais tarde ateu – destaca suas
criações divinas como metáforas para uma complexiade do universo e a imensidão do
cosmos diante da pequenez humana, Derleth traz uma carga religiosa mais clássica e
moralista retornando a visões dicotomicas de bem e mal. A mitologia de Lovecraft é uma
evocação de uma religiosidade não-religiosa, ou ao menos, não doutrinária e eclesiástica.
A perspectiva do autor é quase científica ao apontar uma explicação mais racional para
as figuras divinas como seres de outors planetas e/ou outras dimensões. Desde seu
contato, mais novo com a ciência, sobretudo a astronomia foram essenciais para o
desenvolvimento de seu pessimismo cósmico (como o próprio autor gostava de chamar)
Tendo descartado qualquer crença na deidade por ser cientificamente
injustificada, Lovecraft foi deixado com a ideia de que a humanidade
estava (provavelmente) sozinha no universo – pelo menos não temos
meios de estabelecer contato com quaisquer raças extraterrestres – e que
a insignificância quantitativa do planeta e de todos os seus habitantes,
espacial e temporal, traz consigo o corolário de uma insignificância
qualitativa. (JOSHI, 2014, p.78)

experience as the space aliens. Lovecraft drives home that human morality is not even simply a local phenomenon – it
is a specifically human one. Even creatures evolved on the same planet, using the same resources, have totally different
points of view.” (ibid, p.9-10)

446
Assim, Lovecraft, através de sua perspectiva cosmicista, populariza uma visão
pessimista com bases mitológicas e científicas para o mundo. “Criando suas visões, então,
Lovecraft estabeleceu as lendas de Cthulhu, uma de suas mais famosas e mais populares
criações imaginárias.” (KUTRIEH, 1985, p.41) 7 O autor traz a ideia de mitologia na
modernidade com uma nova face, a do horror inumano. Seus mitos estão muito distantes
das clássicas narrativas de esperança e salvação que Deus (ou os deuses do politeísmo)
costumava prometer à humanidade. Em vez disso, a Lovecraft pode provavelmente ser
creditada a invenção da primeira mitologia legitimamente pós- ou anti-humanista (Cf.
LUDUEÑA, 2013).
Lovecraft parecia procurar mais passar uma inexatidão a respeito de seu universo
jogando com o ser-humano perdido em uma grandiosidade cósmica assutadora. Seus
personagens sempre à beira de um abismo medonho que revela algumas pistas de uma
complexidade sempre maior e nunca totalmente revelada.
“HPL exitosamente toma a noção da insignificância humana relacionada a um
universo mecânico não consciente e o localiza na vida de um dado personagem ficcional.”
(TAYLOR, 2004, p.54)8 Desse modo, o universo conceitual de Lovecraft nos apresenta
uma visão pós-humanista, uma desconstruçao de determinados fundamentos tradicionais
do humanismo clássico.
O Pessimismo Cósmico no Cinema
Lovecraft traz a possibilidade de um novo mundo, um mundo não humano que
nos apresenta uma alteridade radical. Essa mitologia que o autor cria nos envolve de
forma que consumimos seus produtos mesmo sem notar. Seu pessimsimo cósmico pode
ser percebido em diversos filmes, alguns dialogando diretamente com o autor, e outros
apenas se ancorando em sua perspectiva filosófica. Assim, proponho iniciar com obras
que estão mais diretamente ligadas a Lovecraft para traçar um caminho que nos possibilite
destacar filmes que requerem uma observação mais atenta.
Assim, iniciamos com o Pessismismo Cósmico dialogando diretamente com uma
criaçao lovecraftiana bem famosa. Dentre os objetos criados pelo autor, nenhum alcançou
tamanha fama como o livro profano “Necronomicon”. Entre suas inúmeras incursões no
cinema, podemos destacar a trilogia Evil Dead como mais notória. Tendo sido iniciada
em 1981 com The Evil Dead, traduzido como Uma Noite Alucinante: A Morte do

7 “In creating his visions, then, Lovecraft has established the Cthulhu legends, one of the best-known and most popular
of his imaginative creations.” (KUTRIEH, 1985, p.41).
8
“HPL succeeds in taking the notion of humanity’s insignificance relative to a nonconscious mechanic universe and
localizing it in the life of a given fictional character.” (TAYLOR, 2004, p.54)

447
Demônio, teve sua continuação em 1987 com uma história que mais parece uma segunda
versão da primeira do que uma continuação propriamente dita com Evil Dead II, traduzido
como Uma Noite Alucinante 2. Em 1992, o diretor Sam Raimi, responsável pelos filmes
até então feitos, fecha sua trilogia com Army of Darkness, em português, Uma Noite
Alucinante 3 contando com um orçamento bem mais alto, e levando a história do
personagem Ash para a idade média em uma produção mais ousada. Em 2013, o diretor
Fede Alvarez faz uma regravação do primeiro filme A Morte do Demônio (Evil Dead),
contudo, sem o mesmo sucesso. Em 2015, Sam Raimi lança a série Ash vs Evil Dead,
como uma continuação de seus filmes, acompanhando seu personagem anos depois, mais
velho em uma nova batalha contra o mal. Embora a maior marca lovecraftiana do filme
seja, de fato, o Necronomicon, o pessismismo cósmico se faz presente ao apontar para as
dimensoes desconecidas e monstruosas. No entanto, se afasta um pouco ao apontar o
“mal” como grande ameaça. No momento em que se lança de conceitos como “bom” e
“mal”, se afasta da perspectiva lovecraftiana, abraçando mais uma tradiçao dogmática
judaico-cristã e centralizando novamente o homem.
O diretor John Carpenter, conhecido por ser um grande admirador de Lovecraft,
consegue com mais sucesso captar a essência lovecratiana em seus filmes. Em algumas
obras, insere elementos do autor para homenagear e até servir como desenvolvimento
principal em alguns casos. A Bruma Assassina (The Fog), de 1980, conta com certa
ambiência lovecraftiana trabalhando a ideia do desconhecido e seus perigos. Na história,
um barco pirata que transporta um tesouro, afunda em frente à costa de uma pequena vila
de pescadores, numa noite de espesso nevoeiro. Cem anos depois, os espíritos dos
marinheiros mortos voltam a aparecer das profundezas do mar. O nevoeiro vai
ascendendo desde a costa envolvendo tudo e dele saem silhuetas fantasmagóricas que
assassinam os bisnetos dos que mataram os piratas e que com o seu ouro, construiram a
cidade. Embora possua uma premissa de uma clássica história de fantasma, a utilização
do nevoeiro, e a ambiência do filme recorrem ao pessimismo cósmico, principalmente
com a constante sensação de desconhecimento do que está ocorrendo e pelas poucas
explicações. Em determinada parte do filme, em uma transmissão de rádio, faz-se menção
a Waitely Point e Arkham Reef (Waitley e Arkham são nomes de locais fictícios criados
por Lovecraft para seu universo). O filme é considerado por alguns fãs como uma
adaptação bem livre de The Doom that Came to Sarnath de Lovecraft.
Embora não seja um fato muito conhecido, três filmes de Carpenter, que,
aparentemente tem pouco em comum fora o gênero do horror, compõe a chamada

448
Trilogia do Apocalipse (Apocalypse Trilogy). O que une esses filmes são, na realidade,
as características lovecraftianas que eles possuem e uma temática central girando no
princípio do “pessismo cósmico” que Lovecraft trabalhava.
O primeiro filme da trilogia, e talvez o mais famoso, é O Enigma de Outro Mundo
(The Thing) de 1982. A história é baseada em um conto de John Campbell Jr., escrito em
1938, intitulado Who Goes There?. Todavia, o conto de Campbell é muito parecido com
o conto At the Mountains of Madness, escrito em 1936 por Lovecraft. Para aumentar os
mistérios em torno de tal coincidência, ambos os autores escreviam para a Astounding
Stories e Campbell havia se tornado editor da revista em 1937. Em alguns fóruns de
longos debates de fãs sobre o assunto é recorrente ler a teoria que Campbell teria escrito
o conto de Lovecraft em uma versão mais “palatável” e “atrativa” para o público. Uma
análise comparando as histórias e destacando a influência de Lovecraft na versão do filme
de John Carpenter 9 é feita pelo já citado teórico Jason Colavito em seu blog 10 . As
possibilidades são muitas, as teorias divergem, mas o fato que prevalece é que o filme de
Carpenter nos lembra Lovecraft em muitos aspectos (sendo ou não através de Campbell).
A ideia de um organismo desconhecido de outro mundo tentando sobreviver, mesmo que
necessite exterminar o humano, nos aponta para a complexidade cósmica lovecraftiana.
Além disso, Carpenter procura destacar seu alienígena de forma tentacular e bem parecida
com os seres de Lovecraft.
O segundo filme da trilogia é Príncipe das Sombras (Prince of Darkness) de 1987,
que já em seu início começa com uma aula do personagem de Victor Wong, o professor
Birack sobre o Horror Cósmico. Ao longo da história vemos algumas aproximações que
Carpenter faz com a mitologia lovecraftiana, revelando a igreja católica como responsável
por propagar uma doutrina menos pessimista para o mundo e guardando a horrível
verdade sobre o destino da humanidade. Satã seria, na verdade, o filho do Anti-Deus e
Jesus membro de uma raça alienígena. Espelhos poderiam servir como portais para outras
dimensões (onde o Anti-Deus esperaria pelo seu retorno). No filme, o nome da
personagem Catherine Danforth vem do nome do personagem Danforth de um dos mais
famosos contos de Lovecraft (At The Mountains of Madness, que acompanha o narrador
na viagem para as Montanhas e aparentemente vê algo que até o narrador não vê quando
saem).

9 Importante destacar que existem três adaptações do conto de Campbell para o cinema, sendo as outras duas: “The
Thing from Another World” (1951), traduzida como “O Monstro do Ártico”, dirigida por Christian Nyby e Howard
Hawks; e a recente “The Thing” (2011), traduzida como “A Coisa”, dirigida por Matthijs van Heijningen Jr..
10 http://www.jasoncolavito.com/blog/who-goes-to-the-mountains-of-madness

449
Para fechar a trilogia, o filme que possui mais similaridades. À Beira da Loucura
(In the Mouth of Madness), de 1994, é uma grande referência ao escritor. O título vai de
encontro ao famoso conto de Lovecraft, At The Mountains of Madness e, assim como nas
histórias do autor, o protagonista é um cético, um investigador contratado para descobrir
algo e fica louco no processo. O filme começa com o personagem louco no hospício, e,
narrando sua história, sabemos que ele foi contratado para encontrar um escritor que está
desaparecido, o qual parece uma versão moderna de Lovecraft misturado com Stephen
King (um grande admirador de Lovecraft), cujo nome é Sutter Cane. A cidade “Hobb’s
End” em que os livros de Cane se passam é fictícia (assim como a cidade de Arkham de
Lovecraft), entretanto o investigador vai até essa cidade procurar Cane. Os títulos dos
livros de Cane fazem referência a contos de Lovecraft (o ultimo sendo o nome do filme).
O hotel em que Trent (o narrador e protagonista) se hospeda é o Pickman Hotel, nome
vindo do conto Pickman’s Model. Os trechos de livros de Cane que são lidos ou
mencionados na história são, na verdade, trechos de contos de Lovecraft. Os monstros do
filme são lovecraftianos. Cane profere uma frase fazendo alusão direta ao Cthulhu Mythos
“Quando as pessoas perderem a habilidade de distinguir fantasia de realidade, os antigos
irão retornar” 11 e a nebulosidade entre real e sonho que perpassa o filme é um traço
característico de Lovecraft. Acima de tudo, o filme trabalha o pessimismo cósmico de
forma brilhante. No final, qunado o protagonista se encontra louco em um hospício,
poucas explicações surgem. Apenas sabemos que a complexidade do universo começou
a ser revelada para esse personagem, e nossa insignificância só não é mais assustadora do
que o aterrorizante desconhecido que se encontra no mundo.
O filme de 2012 de Drew Goddard, O Segredo da Cabana (The Cabin in the
Woods) também referencia Lovecraft e se utiliza da premissa do pessimismo cósmico..
Além de claras referências aos diversos monstros e objetos do horror e uma estrutura
básica similar ao primeiro Evil Dead, a história é sobre deuses superiores que demandam
sacrifícios para não exterminarem a terra. A ideia de tais deidades fica em um plano um
pouco mais místico, se afastando um pouco da perspectiva mais cósmica de Lovecraft,
mas a essência de seu pessimismo, insignificância humana e a não divisão entre “bom” e
“mal” o alinha a Lovecraft.
Event Horizon (1997) de Paul W. S. Anderson amarra gêneros que são importantes
para Lovecraft, o horror e a ficção científica. Mais do que isso, desenvolve o pessimismo

11 “When people begin to lose their ability to distinguish fantasy from reality, the Old Ones begin to come back”

450
cósmico e a sensação de medo do desconhecido em um filme que tem como temas
importantes a relação espaço-tempo e outras dimensões bem ao gosto do escritor de
Providence. A Event Horizon reaparece após 7 anos de desaparecimento. Uma outra nave
decide investigar o que houve e descobre que o suposto sumiço se devia a uma viagem
por por outra dimensão que trouxe algo desconhecido junto com a nave. O mistério
envolto no que está ocorrendo com a Event Horizon é envolto em um tom sobre os perigos
do desconhecido e de forças que o humano não compreende. Embora o filme não faça
referência alguma ao autor, a ambiência, as questões cósmicas e o pressuposto filosófico
se enquadram perfeitamente na premissa do pessismo cósmico lovecraftiano.
Com algumas similaridades ao filme acima, Sunshine (2007) de Danny Boyle traz
o sol como essa potência cósmica. Em sua história, o sol está correndo o risco de
desaparecer e a esperança da humanidade é tentar revitalizá-lo com uma bomba atômica.
Durante a missão, vemos a influência do sol causando a loucura de alguns tripulantes e a
dependência do humano a radiação do astro, assim como a indiferença cósmica do
universo em relação a existência humana. Embora não articule temas lovecraftianos como
espaço, tempo e outras dimensões e um horror desconhecido como na obra de Paul W. S.
Anderson, a ideia do pessimismo cósmico nesse filme se faz presente de forma mais
tangível para nós, através do sol e da indiferença do unverso em nossa sobrevivência.
Ainda em 2007, o diretor Frank Darabont traz The Mist baseado no conto
homônimo de Stephen King. King é uma grande admirador de Lovecraft, e a influência
lovecraftiana em seu conto é clara. Em resumo, o filme traz um nevoeiro misterioso com
criaturas gigantes e desconhecidas que aparentemente teriam vindo de outra dimensão. O
assombro e mistério do filme ficam envolto em uma falta de explicação e pouca
visibilidade do que é a criatura que se encontra no nevoeiro. Ao passar do tempo, vemos
que há um portal que trouxe as criaturas de outra dimensão e que o universo possui seres
desconhecidos e poderosos colocando nossa posição em cheque.
Gravity (2013) de Alfonso Cuarón é uma obra que resume bem a ideia do
pessimismo cósmico sem, necessariamente, recorrer a nenhum elemento da mitologia
lovecraftiana. Com uma premissa bem simples, o filme mostra uma astonauta perdida
pelo espaço. O interessante do filme é a sensação que o diretor nos passa com um espaço
infinito e escuro como indiferente ao que ocorre. A astronauta torna-se apenas um
elemento no meio de um imenso cosmos.
Life (2017) de Daniel Espinosa traz um ser vivo de Marte tomando crescendo em
uma estação espacial, indo de pequeno espécime bonitinho a grande ameaça a vida na

451
Terra. Embora a proposta não seja inovadora, a forma como o alienígena é retratada
dialoga com o pessimismo cósmico. Não com a clássica vontade de conquista ou de
exterminar uma raça, o alienígena do filme apenas quer sobreviver. No entanto, sua
sobrevivência significa a morte do humano. Não há questões morais, apenas a
superioridade de sua espécie. O desconhecido de Marte surge como uma ameaça à nossa
existência.
No mesmo ano de 2017, Justin Benson e Aaron Moorhead dirigem e estrelam The
Endless. O filme conta a história de 2 irmãos atormentados pelo passado em que faziam
parte de uma culto. Já adultos, resolvem retornar ao local onde a comunidade a qual
pertenciam se localizava e lá encontram as pessoas de seu passado que aparentam não ter
envelhecido. A partir desse momento, o filme entra em um complexo desenvolvimento
em que coisas estranhas ocorrem sem a menor explicação. As noções espaço-tempo se
modificam e a sensação da presença de uma espécie de deidade ou ser cósmico é constante
sem nunca ser revelada. A todo momento a sanidade dos irmãos é posta em cheque, o
impossível passa a ser recorrente e um céu cósmico é sempre enquadrado pela câmera
apontado como um motor central da trama. A ideia do filme é de que há algo inexplicável
ocorrendo, um desconhecido bem mais poderoso que não conseguimos compreender e
que somos insignificantes e que nossas noçoes de espaço, tempo e a verdade do cosmos
é bem limitada, mas há um desconhecido aterrorizante muito próximo. The Endless tem
como foco central o desenvolvimento do pessimismo cósmico. Apresenta um horror bem
diferente, bem calcado nas sensações e com poucas explicações coerentes, um horror
tipicamente lovecraftiano.
Considerações Finais
O presente trabalho não tem por objetivo traçar uma análise mais densa das
películas. A proposta é uma profunda conceituação da perspectiva filosófica desenvolvida
na mitologia lovecraftiana para, assim, conseguirmos traçar caminhos especulativos de
mapeamentos em torno dessa ótica em alguns filmes. O pessimsmo cósmico de Lovecraft
é uma visão não-antropocêntrica do universo. Somos apenas poeira em um vasto espaço,
insignificância em uma imensidão. Nossa limitada perspectiva nos protege de nossos
temores e quando ousamos descobrir alguns segredos temos uma leve prova que nos leva
a loucura. O desconhecido é o assustador, não há bem ou mal, apenas indiferença. Somos
pequenos, o cosmos não conspira contra ou a favor de nossa existência, não somos muito
importantes. A grande certeza em Lovecraft é a de que há algo assutador lá fora e que nós
não conseguimos lidar com isso.

452
O levantamento dos filmes citados não compõe uma ampla esfera lovecraftiana
no cinema, é apenas uma mostra de um grande processo que está em vigor. O pessimismo
cósmico de Lovecraft parece estar cada vez mais presente em nossa cultura, e o cinema
acaba sendo, por diversas vezes, um reflexo fiel desse processo. O paradoxo encontrado
na atração por esse pessimismo é um sintoma curioso na cultura. Aqui, não procuramos
compreendê-lo ou analisar a fundo as obras que possuem esse tema, apenas fazer um
breve levantamento para atestar esse curioso fato. De conclusão, podemos apenas apontar
que a forma como o escritor comprendia o mundo tem ganhado mais adeptos. Das páginas
de seus contos ao cinema, o pessimismo cósmico ganha o mundo.

Referências bibliográficas

COLAVITO, Jason. The Cult of Alien Gods: H.P. Lovecraft and Extraterrestrial Pop Culture.
New York: Prometheus Books, 2005.

CONLEY, Greg. Lovecraft’s Terrestrial Terrors: Morally Alien Earthlings. Revista Abusões.
n.4, v.4, 2017. p.7-43.

DÄNIKEN, Erik Von. Eram Deuses Astronautas?. São Paulo: Editora Melhoramentos, 2010.

JOSHI, S. T.. Howard Philips Lovecraft: A Vida de um Cavaleiro de Providence. In: Revista
Megalon: Ficção Científica & Horror. São Paulo: nº 42, nov. 1996.

______. A Vida de H. P. Lovecraft. São Paulo: Editora Hedra, 2014.

KUTRIEH, Marcia G., “The Cosmology of H. P. Lovecraft”. Bulletin of the Faculty

of Humanities and Social Sciences. Qatar University, No. 8, 1985. p.37-49.

LUDUEÑA ROMANDINI, Fabián. H. P. Lovecraft: a disjunção no ser. Desterro,


Florianópolis: Cultura e Barbárie, 2013.

TAYLOR, Justin. A Mountain Walked or Stumbled: Madness, Apocalypse, and H. P. Lovecraft´s


“The Call of Cthulhu”. The Modern Word. 2004. Disponível em:
www.themodernword.com/scriptorium/lovecraft_taylor.pdf

453
Apresentação

Pensando o processo de criação de um roteiro e a relação roteiristas e escritores, a


proposta da Mesa “A literatura como inspiração: histórias de roteiros e roteiristas” teve
por objetivo discutir as influências literárias na produção de uma obra audiovisual e as
estratégias que escritores e roteiristas utilizam para construção de um roteiro, seja para o
cinema ou para a televisão. Para mostrar esse processo de criação, abordamos os seguintes
escritores e roteiristas: Aguinaldo Silva, Lima Barreto, Marcos Bernstein, Jane Austen,
David Lynch, Barry Gifford. De Aguinaldo Silva, escritor e roteirista, analisamos o filme
República dos Assassinos (1979) e a telenovela Fera Ferida (1993/94). Do roteirista
Marcos Bernstein, a telenovela Orgulho e Paixão (2018) foi nosso foco de análise. Do
cineasta e roteirista David Lynch, abordamos o filme Coração selvagem (Wild at Heart,
1989). Especialmente, propusemos mostrar como o romance República de Assassinos, de
Aguinaldo Silva, foi adaptado para o cinema, e como os romances, os contos e as
personagens do escritor Lima Barreto foram misturados para criar o roteiro de Fera ferida.
Em Orgulho e Paixão, apresentamos como Marcos Bernstein, além de misturar as
histórias para a construção de uma só telenovela, inspirou-se nas personagens de Jane
Austen para dialogar com o feminismo dos dias atuais. Por fim, analisamos as liberdades
criativas tomadas por David Lynch em relação ao romance homônimo do escritor Barry
Gifford em Coração Selvagem.

Abaixo, apresentamos três artigos sobre os temas discutidos nessa mesa: República dos
assassinos, do romance-reportagem ao filme: Aguinaldo Silva, escritor-roteirista, de
André Gustavo de Paula Eduardo; Origens de Orgulho e Paixão: a literatura de Jane
Austen na telenovela brasileira, de Camila Souto; e As Diversas Faces do Desejo em A
Dama da Lotação, de Lays da Cruz Capelozi.

profa. Dra. Maria Ignês Carlos Magno

455
República dos assassinos, do romance-reportagem ao filme: Aguinaldo Silva,
escritor-roteirista

Republic of the assassins, from the novel-reportage to the film: Aguinaldo Silva,
writer and screenplayer

André Gustavo de Paula Eduardo1

Resumo: O presente artigo pretende tecer algumas considerações sobre o fenômeno da


adaptação do texto literário para o meio audiovisual, através de reflexões sobre o
romance-reportagem A república dos assassinos, de Aguinaldo Silva, e o filme República
dos assassinos, dirigido por Miguel Faria Jr. e roteirizado por Silva. Pretende-se aqui
algumas explicações sobre a importância do romance-reportagem, e o seu diálogo com o
cinema brasileiro, através das obras estudadas.
Palavras-chave: Aguinaldo Silva – romance-reportagem – República dos Assassinos –
cinema brasileiro – adaptação literária para o cinema

Abstract: This article intends to make some considerations on the phenomenon of the
adaptation of the literary text to the audiovisual medium through reflections on the novel-
reportage The Republic of the Assassins, by Aguinaldo Silva, and the film Republic of the
assassins, directed by Miguel Faria Jr. written by Silva. It is intended here some
explanations about the importance of the novel-reportage, and its dialogue with Brazilian
cinema, through the works studied.
.Key words: Aguinaldo Silva – novel-reportage – Republic of the assassins – Brazilian
cinema – adaptation from literature to the film

Uma geração entre o submundo e a literatura de combate

Em seu clássico ensaio Corpo a corpo com a vida, João Antonio2 (1987, p.317)
resumia o espírito de uma geração de jornalistas que se tornariam literatos, com uma
proposta de denúncia ao espírito de arbítrio do período iniciado pelo Golpe de 1964 e sua
consequente ditadura civil-militar. “O de que carecemos, em essência, é o levantamento
de realidades brasileiras, vistas de dentro para fora. Necessidade de que assumamos o
compromisso com o fato de escrever sem nos distanciarmos do povo e da terra.” Marca-
se uma posição: a literatura para Antonio, tão influenciado por Lima Barreto, pretende-se
uma forma de guerrilha, o combate pela escrita. Será assim sua obra, original e influente,
basicamente composta de contos, como o notável Malagueta, Perus e Bacanaço. Este

1 Doutorando em Comunicação pela Universidade Anhembi Morumbi (área de concentração:


Comunicação Audiovisual). Mestre em Comunicação Midiática pela UNESP/SP. Bacherel em Jornalismo
pela UNESP. E-mail: agpe13@yahoo.com.br
2 João Antonio Ferreira Filho, ou simplesmente João Antonio (1937-1996), jornalista e escritor brasileiro autor
de Malagueta, Perus e Bacanaço e Leão de chácara, entre outros clássicos.

456
conto, fruto da vivência do escritor no submundo e da labuta enquanto repórter, seria
adaptado ao cinema por Maurice Capovilla, em 1977, resultando em O jogo da vida – e
o próprio João Antonio seria convocado para o roteiro, pois afinal, quem seria mais
qualificado para esse processo de mediação?

Essa concepção da literatura como meio de combate e resistência será o estigma


de toda uma geração, que surge e se infiltra nas letras através de suas afinidades com o
jornalismo, tomando força a partir do Golpe; uma literatura que existe como necessária,
como urgente, dispensando, por vezes, recursos estilísticos supostamente sofisticados – o
que não é o caso de João Antonio, conhecido pelo casório literário entre a ambiência do
submundo, o linguajar da escória e o estilo original – será o caso de José Louzeiro, por
exemplo, um dos principais escritores-jornalistas do período. E também o de Valério
Meinel e Aguinaldo Silva, para quem a literatura passa a funcionar, por assim dizer, como
uma espécie de missão3. Outros, como Rubem Fonseca, ingressaram de vez no universo
da ficção com êxito e reconhecimento. E todos eles, após o sucesso de seus livros, seriam
requisitados pelo cinema, a princípio para adaptar seus trabalhos em roteiros de suas
próprias obras; num outro momento, para criar argumentos e se consolidar como
roteiristas profissionais, como será o caso de Louzeiro, dono de diversos trabalhos para o
cinema.

José Louzeiro4 relata a Cristiane Costa (2005, p.155) que tornou-se escritor
“graças ao golpe de 64”, e que havia começado com o caso dos meninos de Camanducaia,
cidade do sul de Minas Gerais na qual surgiam levas de meninos de rua, em geral trazidos
de São Paulo e lá deixados, num ato de higienismo social. A reportagem, que foi
censurada, o levou a escrever Infância dos mortos – em outras palavras, Louzeiro
percebeu que podia traficar conteúdos factuais em forma de romances.
O processo do literato – ou melhor, quase sempre o jornalista-literato,
o repórter-romancista, era o processo de “guerrilha” literária. Valia
camuflar-se, ou camuflar sua reportagem de romance. Importava, como
prioridade, conseguir publicar. O texto emergia, arranhado, mutilado,
mas emergia: tal era a meta. Importava a preocupação com a política no
momento, (…) o combate aos pilares do regime militar, sobretudo a
denúncia da tortura, dos Esquadrões da morte e da miséria perpetuada
pelo governo, isso era o que importava. Se não havia posição
homogênea, clara, (...) pouco importava: o alvo era o inimigo comum,

3 Literatura como missão, referência à obra clássica de Nicolau Sevcenko.


4 José Louzeiro (1932-2017), notório jornalista, escritor e roteirista maranhense, autor, entre outros, de Lúcio
Flávio, o passageiro da agonia, Infância dos mortos, Em carne viva, Os amores da pantera, além de diversos roteiros,
entre os quais as adaptações aqui citadas.

457
o regime, a censura, a delinquência estatal, a miséria. (EDUARDO,
2013, p.35-36)

De Louzeiro, destacam-se Aracelli meu amor, Infância dos mortos, Os amores da


pantera, Lúcio Flávio, o passageiro da agonia – os três últimos transformados em filmes
com roteiro do próprio escritor. Valério Meinel, irmão jornalístico e literário de Louzeiro,
se destaca com Aézio, um operário brasileiro, e principalmente, O sequestro, sobre o
sumiço do menino Carlinhos no Rio de Janeiro; e Porque Cláudia Lessin vai morrer,
sobre a morte da moça do título e suas implicações com a alta sociedade e com o mundo
da política. O sequestro e Porque Cláudia Lessin... tornaram-se filmes, com participação
do próprio Meinel como roteirista; o primeiro, dirigido por Victor di Mello em 1982, com
o mesmo título; o segundo tornou-se O caso Cláudia, de 1979, e além de Meinel o roteiro
conta com colaboração de José Louzeiro, de Álvaro Pacheco e do diretor, Miguel Borges.
Aguinaldo Silva, assim como Louzeiro, havia escrito sobre a morte de Ângela Diniz, a
“pantera de Minas”, morta pelo amante Doca Street, em O crime antes da festa – Louzeiro
em Os amores da pantera. Destacou-se, sobretudo, com A república dos assassinos, de
1976, que pouco depois viraria filme, hoje clássico do policial brasileiro. Escreveria anos
depois A história de Lili Carabina, também baseada em fatos reais, compilações, por
assim dizer, de diversos crimes, e sua adaptação para o cinema novamente teria Silva
como roteirista, em filme dirigido por Lui Farias (1986).

Aguinaldo Silva, assim como Louzeiro e Meinel, certamente não gozava de boa
aceitação da crítica literária, que pouco a pouco se rendia a João Antonio. Deonísio da
Silva (1983, p.20) destaca as críticas negativas ao hoje consagrado Rubem Fonseca, em
um momento inicial, cujas palavras poderiam evocar a tríade Aguinaldo-Louzeiro-
Meinel. No entanto, conforme compreensão de Malcolm Silverman (2000, p. 38-39), o
que importava era “informar ao leitor o papel declarado do jornalismo, mediante estilo
direto e sucinto, junto com uma elaboração factual, tipo diário-policial, que agora se
tornava um modelo para a ficção” – essa seria a fórmula do romance-reportagem. Na
mesma passagem o autor nota que há uma espécie de vocação desse estilo para a
adaptação ao meio audiovisual, uma vez que seria ela dotada de uma afinidade natural
com o ritmo jornalístico, “parente do drama documentário eletrônico, televisão ou
cinema, com sua exatidão explícita na fronteira do visual” (idem, ibidem).
De fato, várias das obras examinadas inspiraram filmes, como Lúcio
Flávio: o passageiro da agonia, Infância dos mortos, de José Louzeiro,
e Porque Claudia Lessin vai morrer, de Valério Meinel. Do mesmo

458
modo, A história de Lili Carabina, de Aguinaldo Silva, foi decalcada
do roteiro de sua novela, Plantão de polícia, enquanto O caso Lou, de
Carlos Heitor Cony, teve origem num roteiro cinematográfico do autor.
(SILVERMAN, 2000, p.38- 39)
Veremos que as constatações de Silverman nada contém de casual – outras obras
literárias do período, como O que é isso, companheiro?, de Fernando Gabeira, seriam,
ainda que muito tempo depois, importantes fontes para o cinema brasileiro. Também
Sérgio Augusto (2010) já havia notado a existências dessas afinidades, desse trânsito
entre reportagem e literatura, e da literatura para o cinema, ao mencionar a importância
de filmes como Lúcio Flávio, Eu matei Lúcio Flávio (Antônio Calmon, 1979), República
dos Assassinos. “As desditas de Ângela Diniz e Cláudia Lessin Rodrigues chegaram à
tela sob enfoques mais (Os amores da pantera) e menos (O caso Cláudia) disfarçados”
(AUGUSTO, 2010, p.673). E Flora Sussekind (1984, p.182) aponta que a televisão
assimilou com muita facilidade a “nova” narrativa de cunho naturalista que surgia nos
anos 70, referindo-se, especialmente, ao Lúcio Flávio de Louzeiro.

Ismail Xavier, ao comentar o cinema brasileiro desse período, se refere ao


“naturalismo da abertura política”, pensando sobretudo em Lúcio Flávio, dirigido por
Hector Babenco, numa fórmula que bem poderia incluir O caso Cláudia e República dos
assassinos, pois “nessa representação, o teatro do mal é identificado com os rituais de
tortura e a ostentação de cinismo como método de repressão de um Estado perverso
(XAVIER, 2003, p.24). Assim, evocar que tais filmes, oriundos de romances-reportagens,
que nascem no período de abertura política, é dado fundamental: funcionam como crítica,
e se amparam no resíduo factual que compõe as reportagens realizadas no submundo do
crime. E a evocação do naturalismo, também nada possui de fortuita.

Ecos naturalistas e literatura enquanto protesto

Flora Sussekind (1984) aponta para uma recorrência do naturalismo em nossas


letras, porém sempre eivado de elementos característicos de sua época. Assinala que, na
década de 70, pós Ato Inconstitucional número 5, o “curativo estético” ou “curativo
romanesco” ressurgia, dessa vez sob a forma de romances-reportagens e “contos-notícia”
– a literatura que busca no jornalismo seu fiador de veracidade, de legitimidade; daí ficção
e jornalismo, naquela década, se tornarem inseparáveis (SUSSEKIND, 1984, p.174).

A cena estava montada. O autoritarismo político forçava, pois, uma geração de


repórteres que se pretendiam escritores, e cuja escrita, frequentemente bem sucedida ao

459
menos do ponto de vista comercial, difundiam casos que poderiam se limitar ao fait divers
tradicional, se não contivessem sua própria dinamite política. Pois que enxergamos,
assim, tanto em Lúcio Flávio, Porque Cláudia Lessin... ou A república dos Assassinos, o
movimento que parte do particular, do caso específico, que vai se ampliando até alcançar
toda uma rede que envolve o poder e classes mais ricas – Aracelli meu amor, de Louzeiro,
foi censurado à época pelas mesmas razões: um crime bárbaro contra uma criança que
cujos autores são filhos de pessoas influentes na política. E não será estranho o fato dessa
literatura, sobretudo da tríade Aguinaldo-Louzeiro-Meinel trazer com frequência a
polícia corrupta, partícipe dos crimes, num contexto político repressivo. Malcolm
Silverman opina, sobre o romance-reportagem:

Na sua forma mais pura, o gênero não é dogmático nem


particularmente escrito para influenciar o pensamento social. É
mais projetado para reproduzir ficcionalmente algum caso
delicado de injustiça comprovada, quase sempre contra os menos
favorecidos. A relação simbiótica entre os criminosos e a polícia
é um alvo especialmente popular e, talvez, uma metáfora inflada
para a conivência da entre uma burguesia cooptada e o governo
militar. É uma mímica que faz suas afirmativas desmitificando,
com licença romanesca, a conduta oficialmente aprovada, extra-
oficialmente tolerada ou convenientemente ignorada.
(SILVERMAN, 2000, p.39)
Pois então que essa literatura de protesto, marcada pelo retorno do naturalismo
em outros moldes, desta vez calcado na busca da factualidade jornalística, será a
expressão deste momento pós- AI-5, ou seja: um e outro funcionam enquanto resposta a
o regime autoritário. Pouco importa, assim, se sua recepção crítica foi no mais das vez
ruim, pois os escritores do período, a sua maneira, se colocavam em posição de
resistência. O romance-reportagem poucas vezes é citado nos estudos da literatura dos
anos 1970, conforme Rildo Cosson (2007, p.47). No entanto, identifica-se como “traços
fundamentais do período a ligação da literatura com o jornalismo e a variedade das formas
que tal ligação assumiu, passando pelo depoimento, pelo testemunho, pela mistura de
gêneros e estilos” (COSSON, 2007, p.47-48). Alguns críticos falam em “migração
jornalística”, e a preocupação principal dos escritores será, sempre, o impacto sobre o
leitor, o que certamente tornará difícil o trabalho da crítica, “que não pode mais se centrar
nos conceitos tradicionais” (idem, ibidem). Cosson (2007, p.82) defende que o romance-
reportagem tem certa vocação para tratar de personagens como marginais, bandidos,
menores de rua, prostitutas, travestis, viciados, “personagens marginalizadas”, que “não

460
têm voz e são sumariamente excluídas da cidadania, da nacionalidade e da cultura
brasileira”.

Para Cristiane Costa (2005, p.131), o jornalista, “assim com o escritor, o padre e
o guerrilheiro, foi o grande protagonista da ficção do período”. Aguinaldo Silva é uma
das figuras-chave desse momento, e A república dos assassinos é um dos casos mais
interessantes no que tange à maneira como foi composto, com uma estrutura singular, que
muito lembra um romance epistolar – seja pela presença de cartas, seja pelos
depoimentos, como veremos a seguir.

A república dos assassinos, romance & reportagem

A primeira edição de A república dos assassinos5 data de 1976, focaliza Mateus


Romeiro6, um dos “homens de aço” do Esquadrão da Morte no Rio de Janeiro, e sua
atuação entre os plúmbeos anos de 1968 a 1972. Sua esposa, suas vítimas, colegas,
jornalistas e o travesti Eloína fazem parte do corpo de personagens.

Poderíamos nos deparar, mediante a singularidade da obra, com problemas de


classificação. Afinal, se enxergamos em Lúcio Flávio, de Louzeiro, o modelo acabado do
romance-reportagem, mais difícil de classificar seria o fragmentado A república dos
assassinos, obra que se apresenta como “romance”, e dotada de estratégias próprias, como
os relatos em primeira pessoa nas cartas entre os personagens, nas entrevistas e
depoimentos. Já no primeiro capítulo, intitulado “Carlinhos (Memória)”, o narrador
onisciente descreve tudo o que se passava na mente do personagem no momento em que
era levado para ser exterminado. Não obstante, tais estratégias, nos deparamos com um
romance, em primeiro lugar, cuja linguagem – que bem poderia ser a de um Louzeiro ou
de Meinel – e as origens no mundo da reportagem bem permitem a classificação: temos
uma romance-reportagem. E sabemos que romance-reportagem não significa a mera
reprodução de uma situação supostamente real, mas antes uma espécie de referenciação,
em que personagens mudam de nome, e podem até ser acrescentados outros ou omitidos
enquanto estratégias narrativas. O mesmo procedimento se dá quando pensamos na obra
romanesca adaptada para a plataforma audiovisual.

5 Sobre o sucesso do livro, Sandra Reimão (2009) recorda que foi uma das obras de Aguinaldo Silva traduzidas
para a Serie Noire da francesa Editora Gallimard. A outra obra foi O homem que comprou o Rio, de 1986.
6 Um pseudônimo para o policial-bandido Mariel Mariscott; assim como em Lúcio Flávio, em que Mariscott
torna-se Moretti.

461
Dentro de uma tradição prescritivista, não causa espanto que
certos produtos com aspectos híbridos pareçam a alguns olhares,
até hoje, algo estranho. Na literatura brasileira recente,
poderíamos navegar de romances como Reflexos do Baile, de
Antonio Callado até República dos Assassinos, de Aguinaldo
Silva, com boas dificuldades em situá-los genericamente. A
obsessão classificatória tem forte analogia com a tendência a
buscarmos fidelidade quando assistimos a um filme. “Irritamo-
nos” quando este não é suficientemente “fiel.”(EDUARDO,
2013, p.67)
Silverman (2000, p.422) alerta que a literatura do período, na qual Aguinaldo
Silva se circunscreve, por seu “realismo forte e intenso”, terminam por dotar os romances
da época de “fortes dimensões alegóricas”. Assim, A república dos assassinos, para
Silverman (2000, p.47), apresenta-se como autêntica metáfora da corrupção no país,
escrita “como uma montagem justaposta e fragmentada de depoimentos à polícia,
pronunciamentos judiciais, entrevistas, notas, cartas, trechos de diário e artigos de jornais,
até então censurados.” O livro de Aguinaldo Silva é um “libelo contra os esquadrões da
morte, especialmente ferozes durante o período coberto pelo romance (1968-1972), e que
ainda agem com impunidade”, conforme Silverman (2000, p.48). E arremata o autor que
“seguindo a dura realidade brasileira, Romeiro é absolvido” (idem, ibidem).

Uma atriz e ex-amante, o repórter Aguinaldo Ribeiro, bem como


um travesti apaixonado, junto com “testemunhas” menores,
desenham, sem querer, um esboço deletério tanto de si próprios
como de [Mateus] Romeiro. Depois de tudo, tentando justificar
seus atos ignominiosos, eles ironicamente desvendam, também,
suas próprias fraquezas (isto é, da sociedade). É neste modo
perceptivelmente teatral que as visões apresentam emoção e
espontaneidade, ajudadas pelo fato de o autor fornecer ao leitor
monólogos (indiretos) interiores, narração onisciente e digressões
em itálico de interlocutores competentes e nada silenciosos.
(SILVERMAN, 2000, p.48)
A síntese acima traz consigo alguns questionamentos: como levar um projeto de
adaptação para o cinema de obra tão singular? Quais as escolhas, os procedimentos, as
invenções necessárias para tentar, por assim dizer, manter a atmosfera do romance-
reportagem? Ou seria a preocupação de outra natureza, agindo menos em nome de uma
suposta recriação e mais em uma aposta nas possibilidades de audiovisual em
transfigurar o romance em um filme com outros propósitos?

De romance a filme: algumas considerações

Podemos começar a responder a questão que encerra o último capítulo com uma
simples questão, spoiler de um (romance-reportagem) e outro (longa-metragem):

462
assistimos ao filme, que termina com o assassinato de Mateus Romeiro (Tarcísio Meira)
por Eloína; como isso acontece no livro? Há uma contradição, por assim dizer,
irreconciliável. Na obra escrita, Mateus está livre, impune. No filme de Miguel Faria Jr.,
é assassinado, ao final, pela travesti Eloína (interpretada por Anselmo Vasconcelos).
Nota-se, se havia alguma ideia de reprodução narrativa, ela cai por terra em um primeiro
exame. No entanto, não podemos simplificar o processo de adaptação para o meio
audiovisual a opções narrativas, já que, nessa chave, sempre há uma tendência a se
realizar a obra cinematográfica de modo a torná-la, digamos, mais atraente ao público.

Podemos advogar, por exemplo, que há um esforço na adaptação em manter (ou


reproduzir cinematograficamente) alguns traços fundamentais do livro. André Bazin
(1991, p.92) já sugeria, ao defender as “impurezas do cinema”, a ideia de que apenas uma
atmosfera seria passível e desejável de reprodução – e neste item, o filme parece bem-
sucedido. As diferentes experiências de ler a obra de Aguinaldo e assistir ao filme de
Miguel Faria Jr. permitem supor todo um clima de degradação, visual, moral, psicológica,
estão no coração de um e outro, no texto literário e no texto fílmico. Para Bazin, os
pressupostos da adaptação – vinculados a acréscimos, supressões, condensações,
escolhas narrativas mas também escolhas de natureza técnica e estilística, tudo isso
caracteriza o jogo das adaptações enquanto um processo positivamente “impuro”, que
não se contenta com a ideia de fidelidade. Ao contrário, a transmigração intersemiótica
que caracteriza esse processo de impurezas tende a enriquecer a obra audiovisual
resultante. A ideia de fidelidade já era rechaçada por Robert Stam (2008, p.20), ingênua,
até mesmo indesejável, pouco provável (na verdade, irrealizável).

O processo de adaptação da literatura para o meio audiovisual pode ser visto como
“a passagem de um texto caracterizado por uma substância da expressão homogênea – a
palavra –, para um texto no qual convivem substâncias da expressão heterogênea”,
conforme definição de Anna Maria Balogh (2005, p.48). Ortiz Ramos (2004, p.160)
elenca algumas características de República dos assassinos bastante preciosas para se
pensa nas estratégias de adaptação realizadas pela dupla Aguinaldo Silva e Miguel Faria
Jr.

República dos Assassinos (Miguel Faria Jr., 1979) começa com o


rosto de Tarcísio Meira congelado, a voz grave de Paulo César
Pereio recordando os crimes do Esquadrão da Morte e a
indignação, em 1970, com os “requintes de violência” da
organização (…). Um filme de ficção, mas que utiliza também

463
elementos do documentário, ou do “cinema verdade” (RAMOS,
2004, p.160)
Ramos percebe que tais expedientes servem ao propósito de adaptar uma
reportagem jornalística para o audiovisual (idem, ibidem), numa tentativa de levar o
espectador para fora do âmbito ficcional e realocá-lo num contexto de realidade.
Percebe-se que há uma tentativa de preservação de uma certa atmosfera presente no
romance, embora isso não implique em uma espécie de reprodução narrativa, pois vimos
que do ponto de vista do enredo, romance e filme já são incompatíveis por natureza (e a
adaptação, ao reconfigurar o final, não apenas acentua a ficcionalidade e portanto, essa
elasticidade do ato criativo, como também faz uma aposta na transfiguração de um
contexto literário para o cinematográfico através da dessemelhança, da diferenciação;
sabemos, de cara, que “adaptação” pode muito bem significar recriação, no sentido de
outra criação, a um só tempo tributária de uma fonte original, e paradoxalmente inédita,
portanto).

Destarte, percebemos certos recursos, por exemplo, de ordem temporal – a morte


de Carlinhos surge no início do romance, mas só surgirá ao espectador do filme com cerca
de vinte minutos de filme. Neste intervalo, outros aspectos do romance surgem num vai
e vem temporal, fragmentado, mais ou menos como na narrativa escrita. Monólogo do
jornalista Aguinaldo Ribeiro (aqui transformado em Gilberto, interpretado por José
Lewgoy) surgem em diálogos no filme. A personagem Regina (Sylvia Bandeira, no
filme), no romance uma espécie de socialite, torna-se a filha do jornalista Gilberto no
longa-metragem, viciada em cocaína por Mateus Romeiro. O espanhol do romance
simplesmente não existe na película. E assim por diante: o jogo da adaptação mostra-se
feito de liquidez, na qual sempre se trabalha num contexto de escolhas. Personagens
somem, outros são criados. E embora possamos defender a tese de que a atmosfera do
texto de Aguinaldo Silva se manteve no filme, ainda assim, como notamos, temos
diferenças de ordem narrativa importantes – como dissemos, a título de exemplo, sobre o
que ocorre no filme do filme. Essa diferença – patrocinada pelo roteirista que é também
o autor do romance-reportagem, lembremos sempre – não chega a quebrar essa
atmosfera.

A fluidez do romance-reportagem com a estrutura que definimos próxima ao


romance epistolar permite uma movimentação temporal e espacial dinâmica, sem que o
filme pareça incoerente. Ramos (2004, p.160) observa que a “narrativa 'explicitamente'
ficcional apresenta algumas sequências calcadas na literatura, ou drama teatral, de forte

464
cunho naturalista”. Podemos, assim, observar que a se há similitudes neste preservar a
atmosfera do romance, ela é muito calcada nesse posicionamento igualmente naturalista,
no qual “elementos de sordidez, violência, machismo” abundam, seja na relação entre
Mateus Romeiro e Marlene, seja no casal Carlinhos e Eloína: duas relações do submundo.

República dos assassinos, de Miguel Faria Jr., é hoje um clássico do cinema


policial brasileiro, contemporâneo de outras obras igualmente importante – parte delas
um tanto esquecida, como que alijada de nossa memória. Além do Lúcio Flávio de Hector
Babenco, devemos incluir Eu matei Lúcio Flávio (1979) e Terror e êxtase (1979) – este
também baseado em obra de Carlinhos de Oliveira, que atua como roteirista do filme –,
Ódio (1977) de Carlo Mossy, Barra pesada (Reginaldo Faria, 1977) e O caso Cláudia
(Miguel Borges, 1979), adaptação do romance-reportagem Porque Cláudia Lessin vai
morrer, de Valério Meinel, um dos roteiristas do filme.

Últimas palavras

Goliot-Lété e Vanoye (194, p.144) defendem que “adaptar é, portanto, não apenas
efetuar escolhas de conteúdo, mas também trabalhar, modelar uma narrativa em função
das possibilidades ou, ao contrário, das impossibilidades inerentes ao meio”. Observemos
que a transposição da obra de Aguinaldo Silva para o filme de Miguel Faria Jr. em muito
responde a este excerto. Uma personagem, Regina, “torna-se” filha do jornalista Gilberto
(Aguinaldo Ribeiro no livro), a fim de promover um efeito dramático familiar, que
inexiste no modelo original – o romance-reportagem. O mesmo jornalista protagoniza
cena antológica no filme, ao cheirar cocaína enquanto Marlene tenta alertá-lo para os
perigos de Mateus em relação a sua filha. “Quer um pouco?”, responde Gilberto. Assim,
notamos que a proposição de Goliot-Lété e Vanoye acima sintetizando o espírito de
recriação das referidas obras, tendo como mediador (ou seja, o roteirista) o mais
insuspeito dos criadores: o próprio autor de A república dos assassinos. Se Flora
Sussekind (1984) fornece subsídios para o entendimento da obra de Aguinaldo Silva
como partícipe de uma estética naturalismo, assim como Cosson (2007), Ortiz Ramos
(2004) corrobora que o filme de Miguel Faria Jr. busca esse sentido, de acordo, ao menos,
com a concepção de “naturalismo da abertura política” apregoada por Ismail Xavier
(2003).

Note-se, também, que existe uma provável assimetria entre as obras, romance e
filme, no que se refere à sua memória na cultura brasileira. O filme de Miguel Faria Jr. é
muito lembrado, ainda que circunscrito a círculos cinéfilos ou estudiosos. Mas alguém

465
mencionará o livro de Aguinaldo Silva como obra que merece a leitura e, por que não?,
uma revisão crítica. Em boa medida até os estudiosos e teóricos do romance-reportagem
enxergam José Louzeiro e Aguinaldo Silva como “subliteratura”, produtos de validade
sociológica, ou que pertence ao campo das comunicações. Arte, jamais.

Em algum momento de A república dos assassinos lemos sobre os embates e


tensões entre Mateus e sua amante, Regina.

Sim, porque durante o tempo em que os dois ficaram em Foz do


Iguaçu, e apesar das muitas vezes que se amaram (é essa a palavra
certa para aquela violência, amor?), não conseguiram ultrapassar
a rigidez de suas próprias couraças; escondidos sob peles macias,
e assim protegidos um do outro, apenas se sondavam, ela e ele.
Mateus Romeiro, ela o sentir, descobrira em Regina um feroz
inimigo. E no exílio, aparentemente livre dos perigos, decidira
enfrentá-la, pior ainda, vencê-la. E ela, após tantos embates,
reconhecia: finalmente poderia ser a derrotada. (SILVA, 1976,
p.119)
E nas últimas linhas do romance, temos a libertação de Romeiro: “Vá, Mateus
Romeiro. Aproveite enquanto o mundo ainda lhe pertence, a você e aos seus: eu sei que
esta posse lhes será dolorosa e breve”. (SILVA, 1976, p.157)

Aguinaldo Silva tinha seu valor, não?

Referências

ANTONIO, João. Corpo-a-corpo com a vida. In: Malagueta, Perus e Bacanaço &
Malhação do Judas carioca. São Paulo: Clube do Livro, 1987.

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COSSON, Rildo. Fronteiras contaminadas: literatura como jornalismo e jornalismo


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adaptação literária para o audiovisual a partir de “Lúcio Flávio” e “Infância dos Mortos”.

466
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SUSSEKIND, Flora. Tal Brasil, qual romance? uma ideologia estética e uma história:
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XAVIER, Ismail. O olhar e a cena: melodrama, Hollywood, Cinema Novo e Nelson


Rodrigues. São Paulo: Cosac Naify, 2003.

Filmografia:

REPÚBLICA dos Assassinos, 1979, dirigido por Miguel Faria Jr.

467
Origens de Orgulho e Paixão: a literatura de Jane Austen na telenovela brasileira.
Origins of Pride and Passion: Jane Austen’s literature in Brazilian telenovela.

Camila Souto7

Resumo: Este artigo apresenta uma análise de Orgulho e Paixão (Rede Globo, 2018),
telenovela brasileira escrita por Marcos Bernstein, livremente inspirada na obra da
escritora inglesa Jane Austen. A partir da análise audiovisual dos teasers e do capítulo
um da telenovela, procura-se identificar o nível de intertextualidade de Orgulho e Paixão
com relação ao romance Orgulho e Preconceito, uma das obras de Austen que inspirou
Bernstein no desenvolvimento do folhetim. O estudo correlaciona a trama principal da
telenovela e suas personagens àquelas presentes em Orgulho e Preconceito e em outros
romances de Austen que também inspiraram o desenvolvimento do principal núcleo de
personagens. Aponta ainda os limites entre a inspiração na literatura de Austen e a criação
de Bernstein, que resulta numa narrativa adequada ao gênero telenovela.

Palavras-chave: análise de produto audiovisual; Jane Austen; Marcos Bernstein

Abstract: This article presents an analysis of Pride and Passion (Rede Globo, 2018),
Brazilian telenovela written by Marcos Bernstein, freely inspired by English writer Jane
Austen’s novels. Based on the audiovisual analysis of the teasers and chapter one of the
telenovela, we try to identify the level of intertextuality of Pride and Passion in relation
to Pride and Prejudice, one of Austen’s novels that inspired Bernstein in writing the
telenovela. The study correlates the telenovela main plot and its characters to those ones
present in Pride and Prejudice and also in other Austen’s novels that inspired the
development of the main characters. It also points to the boundaries between Austen's
literature inspiration and Bernstein's creation, which results in a proper narrative to the
telenovela genre.

Key words: audiovisual product analysis; Jane Austen; Marcos Bernstein

Introdução

A livre inspiração em clássicos da literatura para o desenvolvimento de filmes, séries,


minisséries e telenovelas, e a adaptação de obras literárias inteiras para o cinema e para a
televisão são práticas muito comuns no universo do audiovisual. No repertório de
telenovelas e minisséries brasileiras, por exemplo, encontram-se histórias inspiradas ou
adaptadas de obras de Jorge Amado, Machado de Assis, Lygia Fagundes Telles,
Guimarães Rosa, entre outros. A literatura de Jane Austen, muitas vezes adaptada para o

7 Mestranda pelo Programa de Pós-graduação em Comunicação da Universidade Anhembi Morumbi (UAM) na linha
de pesquisa de Análises de Produtos Audiovisuais, sob a orientação do Prof. Dr. Rogerio Ferraraz. E-mail:
camila_souto@outlook.com. Currículo Lattes: http://lattes.cnpq.br/9214574502628184

468
cinema, também encontrou lugar na televisão brasileira, mais precisamente na telenovela
Orgulho e Paixão, escrita por Marcos Bernstein com a colaboração de Victor Atherino,
Juliana Peres e Giovana Moraes, e exibida pela Rede Globo de março a setembro de 2018,
na faixa das 18h. Livremente inspirada nas obras de Austen, Orgulho e Paixão é o
primeiro produto audiovisual a levar para a televisão brasileira o universo literário da
escritora inglesa, e apoia-se não em uma, mas em várias de suas obras.

A trama principal da telenovela é inspirada em Orgulho e Preconceito (1813), romance


ambientado no final do século XVIII, que conta a história das irmãs Bennet – do ponto
de vista de Elizabeth, uma das irmãs – e da obsessão de sua mãe em casar as cinco filhas.
Bernstein reproduz essa mesma história como trama principal de Orgulho e Paixão e
apoia-se na família Bennet para criar as personagens de seu núcleo central, que passa a
se chamar família Benedito e é formada por Ofélia, a matriarca, Felisberto, o pai, e
Elisabeta, Jane, Mariana, Cecília e Lídia, as cinco filhas do casal para quem a mãe busca,
desesperadamente, pretendentes afortunados que possam desposá-las e dar-lhes uma vida
confortável. Para sustentar a premissa do casamento como única opção de vida para as
mulheres, tal qual ocorria na sociedade inglesa do século XVIII, tempo-espaço da
narrativa literária, Bernstein ambienta Orgulho e Paixão no Vale do Café, cidade fictícia
da sociedade rural paulista do início século XX, quando o casamento ainda mantinha o
mesmo status que lhe era atribuído no romance de Austen. É justamente na questão do
matrimônio que reside o conflito que conduz a trama principal: Elisabeta, a primogênita
dos Benedito, não tem o casamento como prioridade de vida, opõe-se aos planos da mãe,
assume as responsabilidades sobre suas próprias decisões e acaba envolvendo suas irmãs.
Mulheres de personalidades muito diferentes, Elisabeta, Jane, Mariana, Cecília e Lídia
passam então a questionar a condição da mulher e o destino que lhes é imposto, cada uma
a seu modo, tendo Elisabeta como a principal influenciadora.

Outras obras de Austen também ajudaram a compor a narrativa de Orgulho e Paixão:


Razão e Sensibilidade (1811), Mansfield Park (1814), Emma (1815), A Abadia de
Northanger (1818, póstuma) e Lady Susan (1871, póstuma). Mas, tendo em consideração
a visível influência de Orgulho e Preconceito sobre a criação da telenovela, o presente
trabalho tem como objetivo identificar o nível de intertextualidade de Orgulho e Paixão
e da obra literária, concentrando-se no seguinte problema: de que modo Marcos Bernstein
se aproxima da obra da escritora inglesa para desenvolver a trama principal da telenovela?
Para isso, optou-se pela análise audiovisual, cujo corpus é composto por sete peças de

469
divulgação de Orgulho e Paixão, com duração de até 120 segundos, e por cenas
selecionadas do primeiro capítulo, cujo foco está na apresentação das personagens do
núcleo central – família Benedito – e de seus conflitos, permitindo assim, comparar e
fazer correlações com as personagens e os conflitos presentes no romance de Jane Austen.

Orgulho, preconceito, paixão: aproximações entre a obra literária e a telenovela

Orgulho e Preconceito é uma das obras mais conhecidas de Jane Austen e, apesar de que
a história seja contada sob a perspectiva de Elizabeth, a segunda das cinco filhas do casal
Bennet, a narrativa não foi construída em primeira pessoa. Com um tom satírico,
característico de Austen, o desenvolvimento da história ocorre por meio da interação entre
as ideias, atitudes e comportamento das personagens e o cerne da trama está nas questões
morais e culturais em torno do casamento, no contexto da sociedade inglesa do final do
século XVIII. O tema central é revelado logo nas primeiras linhas, quando a autora
declara: “É uma verdade universalmente reconhecida que um homem solteiro, possuidor
de uma grande fortuna, deve estar em busca de uma esposa” (AUSTEN, 2012, pos. 302)8.
Em poucas palavras, fica claro ao leitor que a obra trata de relacionamentos e casamentos,
e permite que Austen introduza as personagens de seu romance à luz desse contexto.

No centro da história está a família Bennet. Mrs. Bennet é a mãe de comportamento


frívolo, de pouca instrução e obcecada pela busca de pretendentes afortunados para suas
cinco filhas; Jane, a mais bela das irmãs, é a primogênita e também uma das grandes
preocupações de Mrs. Bennet pelo fato de ter mais de 20 anos e ainda não ter se casado;
Elizabeth, a segunda filha dos Bennet e protagonista da história, é inteligente, sincera e
tende a julgar as pessoas pelas primeiras impressões; Mary é a terceira irmã, prefere os
livros às tarefas atribuídas às mulheres, esforça-se para se instruir, mas tem muitas
dificuldades; Catherine Bennet, ou Kitty, é a quarta irmã e vive à sombra da irmã mais
nova, Lydia, tão tola, teimosa e frívola quanto Kitty. Mr. Bennet completa a família. É
um homem culto que desaprova o comportamento frívolo da esposa e das filhas mais
novas e que parece ter predileção por Jane e Elizabeth, ainda que considere todas as cinco
filhas desprovidas de inteligência. Complementam o núcleo de personagens principais
Mr. Fitzwilliam Darcy, o protagonista masculino da história, jovem afortunado, de
postura séria e sólidos valores morais, que é percebido como orgulhoso; e Mr. Charles

8 No Kindle, não há paginação; o texto é dividido em posições. Cada cinco ou oito posições sucessivas equivalem
aproximadamente ao texto de uma página impressa.

470
Bingley, jovem alegre, bem humorado e de comportamento oposto ao amigo Mr. Darcy,
que muda-se para as redondezas de onde vive a família Bennet e apaixona-se por Jane.

Em Orgulho e Paixão, observa-se que a composição da trama principal apoia-se em


Orgulho e Preconceito, permitindo, inclusive, que se faça uma correlação direta com os
nomes das personagens. Na telenovela, a família ganha o sobrenome Benedito, com
fonemas que muito se assemelham à Bennet. O mesmo ocorre com as personagens, cujos
nomes mantém uma aproximação sonora aos nomes presentes no romance, ou até mesmo
preservam os nomes originais, aportuguesando a pronúncia. É o caso de Jane, que
mantém-se Jane, e de Lydia, que tem apenas uma alteração na grafia e passa a ser Lídia.
Elizabeth se transforma em Elisabeta, Mary passa a ser Mariana e Catherine se transforma
em Cecília, unicamente para evitar conflito com outra telenovela da Rede Globo, exibida
no mesmo período de Orgulho e Paixão9. Muito além dos nomes, características que
ajudam a compor a personalidade de cada personagem e as subtramas que as envolvem
também são fortemente apoiadas em Orgulho e Preconceito.

Ofélia (Vera Holtz), a matriarca da família Benedito, mimetiza Mrs. Bennet e suas
características fundamentais: mulher pouco instruída, de comportamento frívolo e
obcecada pelo objetivo de casar as cinco filhas. No livro, essa condição é dada pela
primeira frase atribuída à personagem, na qual revela interesse num possível pretende a
uma de suas filhas: “Ó! Solteiro, meu querido, esteja certo! Um homem solteiro de grande
fortuna; quatro ou cinco mil por ano. O que é uma coisa boa para as nossas meninas!”
(AUSTEN, 2012, pos. 310). Na telenovela, a mãe, em sua primeira aparição no capítulo
um, revela a mesma intenção com frase semelhante à escrita por Austen na abertura da
história: “Pois bem, todo homem solteiro de posses tem que estar necessitado de uma
esposa”. Trata-se, portanto, de um claro exemplo de intertextualidade evidenciado pela
correlação de dois textos na forma de citação (STAM, 2006, p. 29). A tônica da fala, o
modo como gesticula e a caracterização com doses de exagero contribuem ainda para
clarificar que Ofélia é uma mulher simples, fútil e em desespero para casar as filhas.

A composição da personalidade das irmãs Jane (Pamela Tomé) e Lídia (Bruna Griphão)
e suas respectivas subtramas também se apoiam em Orgulho e Preconceito. No teaser de
divulgação da telenovela, por exemplo, Jane é definida como “a mais bonita”,
característica que é reforçada no capítulo um durante a apresentação da personagem pela

9 No momento em que Orgulho e Paixão foi ao ar, a Rede Globo exibia Deus Salve o Rei, telenovela da faixa das 19h, cuja protagonista se chama Catarina.

471
mãe, Ofélia, que diz que “não existe moça mais bonita que ela em toda a cidade, nem em
toda a região, quiçá no Estado”. A capacidade de só ver o lado bom das pessoas é outra
qualidade de Jane Bennet assumida por Jane Benedito; tal fato é evidenciado pela
semelhança na forma como as personagens Elizabeth Bennet e Elisabeta Benedito
(Nathalia Dill) se referem à Jane Bennet e Jane Benedito, respectivamente. Na obra
literária, num diálogo entre as duas irmãs, Elizabeth diz que Jane é “muito hábil para
gostar das pessoas em geral. Nunca vê falha em ninguém. O mundo inteiro é bom e
agradável aos seus olhos. Nunca a ouvi falar mal de um ser humano em sua vida”
(AUSTEN, 2012, pos. 645); na telenovela, em igual situação dramática, Elisabeta se
refere à irmã utilizando quase as mesmas palavras: “Você é muito boa! Por exemplo,
nunca ouvi você falando mal de ninguém. […] Você é assim, você só vê o lado bom, as
pessoas não, as pessoas só veem os defeitos nos outros. E aí por educação, por
comodidade não falam nada. Mas você não. […] Você não é uma boba. Você é boa!”.
Novamente, tem-se uma clara evidência de intertextualidade entre a obra literária e o
produto audiovisual, a fim de manter a personagem Jane Benedito fiel às características
de Jane Bennet, percepção que é consolidada a partir da observação do ponto de partida
da subtrama que envolve esta personagem; tal qual em Orgulho e Preconceito, Jane
apaixona-se pelo amigo de Darcy – no livro, Mr. Bingley, na telenovela, Camilo
Bittencourt (Maurício Destri). O mesmo ocorre com a personagem Lídia. No livro, o pai
é o primeiro a defini-la, juntamente com a irmã Catherine: “De tudo o que posso reunir
pela maneira de falar, vocês devem ser as duas jovens mais tolas da região” (AUSTEN,
pos. 1131). Na telenovela, a mãe utiliza outras palavras, porém mantém a mesma intenção
quando diz: “a Lídia é a minha boneca travessa, vaidosa como ela só. […] É um pouco
avoada, vá lá […]”. Assim como ocorre com Jane, o ponto de partida da história de Lídia
Benedito remete ao que ocorre à Lydia Bennet: ela se apaixona por um homem
inescrupuloso – que no passado desonrou a irmã de Darcy – e foge com ele.

Universo ampliado: inspiração em outras obras de Jane Austen e a livre criação

Se Ofélia, Jane e Lídia tem bases sólidas em Orgulho e Preconceito, o mesmo não ocorre
com Felisberto (Tato Gabus Mendes), Elisabeta, Mariana (Chandelly Braz) e Cecília
(Anaju Dorigon). Felisberto, o pai, tal qual no livro, reproduz na telenovela o mesmo
desinteresse pelo assunto que move a esposa, porém o afeto pelas filhas define seu caráter
e suas ações, e ele pouco se aproxima da descrição que é feita de Mr. Bennet no livro, no
sentido de ser “uma mescla tão estranha de tiradas, humor sarcástico, reserva e capricho”

472
(AUSTEN, 2012, pos. 393). Mariana, por sua vez, distancia-se de Mary Bennet, tanto no
que diz respeito à personalidade, quanto à subtrama que conduz sua personagem ao longo
de todos os capítulos de Orgulho e Paixão. É definida como aventureira ou, nas palavras
de Ofélia, no capítulo um, é a filha que “quer engolir o universo numa bocada. É meu
furacão. O negócio de Mariana é frio no estômago”. A subtrama que envolve Mariana
Benedito encontra semelhanças em Razão e Sensibilidade, outro romance de Austen, no
qual Marianne Dashwood, uma das protagonistas, rejeita o amor do Coronel Brandon por
considera-lo um homem muito mais velho e incapaz de se apaixonar (AUSTEN, 2014,
pos. 144). Apesar de Mariana Benedito não ter características semelhantes às de Marianne
Dashwood, o conflito que marca o início de sua história em Orgulho e Paixão tem a
mesma natureza do conflito vivido por Dashwood: Mariana rejeita o interesse amoroso
do Coronel Brandão (Malvino Salvador), um homem mais velho que ela julga sério e
incapaz de viver grandes aventuras.

Cecília também se distancia de Orgulho e Preconceito. Sua personalidade não tem


semelhança alguma com Catherine Bennet, tampouco reproduz qualquer passagem de sua
história – que no romance de Austen, tem papel bastante coadjuvante. As características
de Cecília guardam semelhanças com as de Catherine Morland, protagonista de A Abadia
de Northanger, uma jovem leitora de romances góticos que se imagina vivendo aventuras
em antigos castelos (AUSTEN, 2010, p. 124). Observa-se esta aproximação entre as duas
personagens, quando, no capítulo um, Ofélia diz que “Cecília […] quando não está lendo
um livro com a cabeça nas nuvens, está doente. Ou as duas coisas. O problema são as
fantasias que ela cria e não larga”.

De outro lado, Elisabeta Benedito mantém características de Elizabeth Bennet: é a


protagonista da história, a filha que ousa questionar, teimosa, corajosa e inteligente,
afirmação que se pode ver no capítulo um da telenovela, num diálogo entre Ofélia,
Elisabeta e Ema, sua amiga. “Essa aí o pai estragou dizendo que era inteligente, que era
o menino que ele nunca teve”, diz Ofélia. “A menina que ele nunca teve! A menina cheia
de ideias!”, Elisabeta interrompe. Esse curto diálogo reforça uma qualidade que se vê em
Elizabeth Bennet – a inteligência – e, por outro lado, expressa um traço importante e
próprio de Elisabeta Benedito: ao revelar-se uma “menina cheia de ideias”, cria condições
para que a personagem tenha aspirações muito maiores que o casamento, ampliando suas
possibilidades de ação e de conflito, função primária de toda personagem, que é elemento
determinante da ação na narrativa; conduz a ação, produz o conflito (PALLOTINI, 1989,

473
p. 11), move os motores da trama e a faz avançar. Nesse sentido, em Orgulho e Paixão, a
construção de Elisabeta aprofunda-se em características – atrevida, sonhadora – que
permitem coloca-la em situações dramáticas que, diferentemente da obra literária,
desafiam a condição da mulher no espaço-tempo da narrativa e fazem a história avançar
por 162 capítulos. Há, porém, um outro elemento narrativo de Orgulho e Preconceito que
é reproduzido em Orgulho e Paixão: o romance entre Elisabeta e Darcy, trama central da
obra literária e que, no folhetim, constrói-se com muitos outros obstáculos para suportar
a condição extensiva do gênero telenovela. Nota-se que, Darcy Williamson, de Orgulho
e Paixão, preserva características fundamentais de Fitzwilliam Darcy, de Orgulho e
Preconceito, descrito como “[…] inteligente. Era ao mesmo tempo, arrogante, reservado
e fastidioso, e suas maneiras, embora sofisticadas, não eram convidativas. […] Darcy
causava afrontas continuamente” (AUSTEN, 2012, pos. 672). Parte dessa descrição é
corroborada na telenovela por um comentário de Elisabeta sobre o momento em que ela
conhece Darcy: “você precisava ver a arrogância dele!”, diz a moça para sua irmã Jane,
em meio a uma conversa exibida no capítulo um. Além da personalidade de Darcy, esse
breve diálogo também revela – tanto em conteúdo, quanto em ação – as bases do conflito
entre o futuro casal, igualmente presentes na obra literária: o preconceito de Darcy em
relação às diferenças sociais e culturais entre ele e Elisabeta, e o orgulho de Elisabeta em
admitir sua paixão por Darcy.

Livremente inspirada em…

No encerramento de cada capítulo de Orgulho e Paixão, lê-se nos créditos finais:


“livremente inspirada na obra de Jane Austen”. Tal chancela amplia as possibilidades de
criação, pois o uso desse tipo de nomenclatura reserva aos autores uma certa liberdade
sobre a obra original e deixa claro que se trata de uma relação intertextual menos
comprometida do que se espera quando os créditos dizem ‘adaptação de…’ (BALOGH,
1996, p. 38). De fato, é o que se observa em Orgulho e Paixão. Ao desenvolver a história
sob a chancela da ‘livre inspiração’, Marcos Bernstein não se compromete em contar
exatamente a mesma história de nenhuma das obras da escritora e tem permissão para
compor Orgulho e Paixão a partir da articulação de diferentes obras de Austen.

Apesar de que a telenovela mimetize o enredo de Orgulho e Preconceito, observa-se que


a narrativa literária é ampliada e amparada em outros conflitos no produto audiovisual,
fato que pode ser justificado pela necessidade de que a trama seja suficientemente potente
para suportar a condição extensiva da telenovela. O mesmo ocorre com as personagens,

474
cuja aproximação com a obra literária se dá mais fielmente por meio de Ofélia, Jane e
Lídia, que levam para a televisão características e atitudes muito similares às que se lê no
romance. De outro lado, nota-se mudanças importantes nas demais personagens do núcleo
central. Elisabeta, por exemplo, incorpora características de Elizabeth Bennet e ganha
outras qualidades; ela quer conhecer o mundo e é colocada em situações dramáticas que
superam os limites de sua relação com Darcy – foco da obra literária – numa narrativa
que possibilita a criação de um número maior de conflitos, que são desenvolvidos de
acordo com a quantidade de capítulos da história. Mariana e Cecília, coajudvantes de
participação bastante limitada em Orgulho e Preconceito, ganham outras personalidades
– inspiradas em personagens de Razão e Sensibilidade e A Abadia de Northanger – e suas
próprias histórias, que se desenvolvem paralelamente à protagonista. Trata-se, portanto,
de uma estratégia de adequação da história ao gênero telenovela, que como observa
Pallottini, é definido por “uma trama principal e muitas subtramas que se desenvolvem,
se complicam e se resolvem no decurso da apresentação” (PALLOTTINI, 1998, p. 53).

Por fim, a análise empreendida neste trabalho conclui que há uma profunda relação de
intertextualidade entre o romance Orgulho e Preconceito e a telenovela Orgulho e Paixão;
nota-se, porém, que Bernstein se permite ir além do universo literário de Austen.
Transforma, portanto, Orgulho e Paixão em hipertexto de Orgulho e Preconceito no
sentido de que a telenovela modifica, transforma e estende a narrativa da obra literária
(STAM, 2006, p. 33), a fim de desenvolver uma história suficientemente potente e
adequada ao gênero telenovela, e que permita tratar de questões que tenham conexão com
a sociedade contemporânea, do contrário, não seria possível, por exemplo, abordar a
violência contra a mulher e a ascensão feminina no mercado de trabalho, assuntos capazes
de criar situações dramáticas que ajudam a evidenciar os limites entre a inspiração em
Jane Austen e a criação de Marcos Bernstein.

Referências bibliográficas

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____________. Razão e Sensibilidade. São Paulo: Landmark, 2014. Kindle Edition.
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cinema e à TV. São Paulo: ANNABLUME, 1996.

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475
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1989.
STAM, Robert. Teoria e prática da adaptação: da fidelidade à intertextualidade. Ilha
do Desterro, Florianópolis, UFSC, n. 51, p. 19-53, 2006. Disponível em:
<https://periodicos.ufsc.br/index.php/desterro/article/view/9775>. Acesso em:
17/09/2018.

476
As Diversas Faces do Desejo em A Dama da Lotação

The diverse faces of desire in Lady on the Bus

Lays da Cruz Capelozi10

Resumo: O artigo tem como propósito apresentar e discutir as adaptações que foram
realizadas a partir da crônica A Dama da Lotação, do dramaturgo carioca Nelson
Rodrigues, o texto foi adaptado tanto para o cinema como para a televisão. Temos como
objetivo analisar como o desejo feminino é retratado nas adaptações. Nessa perspectiva,
levando em conta todas as diferenças temporais e de produção de cada adaptação,
pretendemos analisar como cada obra foi interpretada e recebida, visto que mesmo que
tenham partido da mesma crônica, as adaptações possuem ferramentas interpretativas
distantes entre si. Para que através dessas adaptações, possamos perceber como a obra de
Nelson Rodrigues, que é classificada como unânime, sofreu modificações.

Palavras-chave: Nelson Rodrigues; A Dama da Lotação; desejo femenino.

Abstract: The purpose of this article is to present and discuss the adaptations that were
made from the chronicle The Lady of the Bus, by the playwright Nelson Rodrigues, the
text was adapted for both the cinema and television. We aim to analyze how female desire
is portrayed in adaptations. In this perspective, taking into account all the temporal and
production differences of each adaptation, we intend to analyze how each work was
interpreted and received, since even if they started from the same chronicle, the
adaptations have distant interpretive tools. So that through these adaptations, we can see
how the work of Nelson Rodrigues, which is classified as unanimous, has undergone
modifications.

Key words: Nelson Rodrigues; The Lady of the Bus;female desire.

Nelson Rodrigues já disse que toda a sua obra podia ser resumida como uma
grande meditação sobre o amor e a morte. Porém, analisando mais a fundo sua obra,
percebemos que outro tema se sobre sai e é tão importante quanto os dois temas que o
dramaturgo havia levantado; o do desejo feminino. O que buscamos nesse artigo é discutir
como o desejo feminino, através da obra A Dama da Lotação, é interpretado pelo
dramaturgo e como as adaptações para o cinema e para a televisão, modificam esse desejo
feminino, levando em consideração a mídia para que foi adaptado, o ano e o público.

A produção intelectual de Nelson Rodrigues é extensa. Só peças de teatro foram


dezessete. Oito histórias de folhetins, que, posteriormente, foram publicados como

10 Doutorando em História pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU), integrante do NEHAC- Núcleo
de Pesquisa em Estudos Culturais em Arte e Pesquisa. E-mail: syalcc@gmail.com

477
romances. São mais de 10 livros publicados com uma reunião de crônicas que abordam
temas como futebol, política e fatos autobiográficos. Também há organizações com as
coletâneas de contos que foram publicados, originalmente, nos jornais: A vida como ela
é... – o homem fiel e outros contos (1992), A Coroa de orquídeas e outros contos de A
Vida como ela é... (1992). Três novelas para a televisão, e um romance publicado. A
maior parte desses escritos foi concebida nas redações de alguns jornais do Rio de Janeiro.

Muitos de seus folhetins foram escritos como pseudônimos femininos, como por
exemplo: Suzana Flag, que rendeu as histórias de folhetim Meu destino é pecar, e a coluna
O Consultório Amoroso de Myrna, que tinha uma coluna para responder cartas do público
feminino. Na década de 1950, Rodrigues recebe um convite de Samuel Wainer, editor-
chefe do jornal Última hora, para que assumisse uma coluna de crônicas diárias que
levava seu nome verdadeiro e, depois de tanta indecisão quanto ao título, o escolhido foi
A vida como ela é..., que foi publicada por 10 anos interruptos (1951-1961). A proposta
inicial era apresentar crônicas que houvesse situações baseadas em acontecimentos reais;
assim Rodrigues começou a escrever do que mais entendia: as vicissitudes das relações
amorosas; assim, em pouco tempo a coluna foi ganhando fama. Segundo Ruy Castro, na
biografia Anjo Pornográfico (1992) o sucesso da coluna se deu muito pelo boca a boca
depois de alguns meses em que a coluna começou a ser publicada, Castro conta que o
burburinho nas lotações cariocas comentando a coluna era grande, em sua maioria
homens de meia- idade que se divertiam ou sofriam junto com aquelas crônicas, a tiragem
do jornal Última hora cresceu, gradualmente, entre os anos 1953 a 1960.

Muito desse sucesso pela coluna, se deu por causa da fácil identificação que a
crônica trazia personagens caricaturais, estereótipos bem presentes no cotidiano, tais
como, o malandro, a mulher fogosa, o marido corno “manso”, a esposa casta e etc. Esses
personagens estavam sempre em situações também cotidianas, uma crise no casamento,
uma traição, uma paixão não correspondida ou uma paixão fervorosa que acabou não
dando certo entre outras situações, ou seja, esses temas faziam que o leitor se identificasse
e se colocasse no lugar do personagem, podendo aceitar, questionar ou duvidar das
atitudes que tomaria diante determinada situação.

Além desta identificação pelos temas abordados, outro elemento que deixava o
texto mais próximo do leitor era o lugar que era ambientado, a Zona Norte carioca, onde
morava a maior parte dos leitores,

478
Os jornais precisam ter o sotaque de suas cidades e Nelson não
demoraria a abrir os olhos para o filão da ambiência carioca. No
que teve o estalo, povoou as 130 linhas diárias de “A vida como
ela é...” com um fascinante elenco de jovens desempregados,
comerciários e “barnabés”, tendo como cenário a Zona Norte,
onde eles viviam; o Centro, onde trabalhavam; e,
esporadicamente, a Zona Sul, aonde só iam para prevaricar.
(CASTRO, 1992; 237)

A coluna ganhou espaço porque tratava de histórias que eram fáceis de se identificar –
quem nunca se apaixonou por alguém e foi enganado? Quem nunca traiu ou foi traído?
Os personagens tinham a marca de Nelson Rodrigues; eram eufemismos puros. A simples
história de um adultério tornava-se uma crise de consciência que devastava a sanidade do
personagem.

Esse é o paradoxo que encontramos nessa obra, um passo entre o


interdito e o desejo, porquanto aquele instaura este. Nesse
sentido, podemos dizer que, perante a obra, há uma castração
simbólica de um objeto imaginário no qual a causa é o Real
(segundo Lacan, sob três formas da falta do objeto – privação,
frustração e castração), já que a parcela de renúncia exigida de
cada sujeito que participa de uma sociedade tende a realizar-se no
imaginário pelos personagens. (VITORELLO, 2009; 39)

O psicólogo Daniel Migliani Vitorello debruçou-se com afinco sobre as crônicas de A


Vida como ela é..., de modo que sua maior preocupação foi encontrar as diferenças da
adaptação do jornal para a televisão. Antes disso, porém, ele tenta responder a outra
questão: por que essa coluna é ainda tão popular? Por que, quando dizemos “Nelson
Rodrigues”, o nome da coluna é a primeira coisa que nos vem à cabeça? Em sua opinião,
a popularidade entre o público masculino não pode ser explicada, pois:

Dito de outra forma, A vida como ela é...,tantas vezes acusada de


trágica e obscena, transforma-se, a partir desse pressuposto, ainda
mais obscena na televisão, ao mesmo tempo em que, por uma
curiosa reviravolta tecnológica, essa mesma obscenidade e
“tragicidade”, em consequência da repetição maciça das imagens,
torna-se um lugar-comum.[...] Por outro lado, a televisão recria
as representações da obra, produzindo, ao mesmo tempo, uma
certa nostalgia do que estava escrito, pois faz com que seja
horrendo o que é da ordem do trágico, faz inverossímil aquela
parte da obra que nos faz tremer, porquanto o telespectador recebe
os fatos sob os aspectos do espetáculo, mesmo sendo A vida como
ela é... uma ficção. (VITORELLO, 2009 ;53)

479
Segundo Vitorello, mesmo atingindo um grande público, a coluna não perdeu o tom ácido
e irônico, pois tinha como objetivo mais incomodar do que entreter o leitor. A adaptação
para a televisão perdeu um pouco dessa acidez, tendo em vista que a série televisiva
apelava mais para o cômico e para a sensualidade. Isso mudava totalmente a mensagem
implícita nas histórias contadas; mesmo que o expectador, assim como o leitor, se
identificasse com as histórias, ele não compartilhava a culpa juntamente com o
personagem.

Portanto, é fácil reconhecer que muito dos dramas dos personagens apresentados por
Nelson Rodrigues tem a fonte nos preceitos cristãos. Mas não é qualquer corrente do
cristianismo que estamos falando, Nelson se espelha no cristianismo do século IX ao
século XIII, no qual a ideia de desejo e culpa são bem determinadas, o artifício ousado
presente no texto é como essas pessoas lidam com um moral “adaptável” do cotidiano.

Tendo recebido a formação cristã de classe média urbana


brasileira, o dramaturgo preservou até o fim a crença na divindade
e em preceitos morais básicos. A dificuldade de observar esses
preceitos aguça a loucura. Na terra o homem vive o
desregramento de uma unidade perdida, inconsolável órfão de
Deus. Há um deblaterar insano em terreno hostil. Resta o
sentimento permanente de logro. A vida prega uma peça em todo
mundo. (MAGALDI, 1987; 67)
Nessa perspectiva, o casamento e o adultério são faces da mesma moeda e é importante
que mencionemos que o casamento, para Nelson Rodrigues, é uma união disforme, feita
por homens e mulheres que se reprimiram, na maior parte das suas vidas, pela promessa
de que realizariam todos seus desejos com os parceiros escolhidos. Porém, quando se
casam, o diálogo desaparece, as discussões tornam-se frequentes, sempre magoando e
ridicularizando o outro, culpando-o por sua infelicidade e impotência diante daquela
situação.

Outra vertente do casamento abordada em algumas crônicas é a relação entre casamento


e Estado. Na antiguidade romana, o casamento era visto muito mais como um negócio
entre nobres do que uma união de amor. Durante a Idade Média, a Igreja Católica tomou
parte do poder do Estado para ter um maior controle sobre os nobres e entrar nessas
negociações para barganhar terras. Nesse sentido, Nelson Rodrigues assume a dinâmica
de que o casamento ainda é um negócio: se aqui não temos terras para negociar, temos
em jogo a moral de duas famílias, uma rica e outra pobre, e, para as duas, o valor do
casamento é o mesmo; é, assim, um símbolo social de que a família é bem-sucedida.

480
A questão do desejo perpassa toda a obra de Nelson, como um fator que ao mesmo tempo
aprisiona o personagem e liberta o leitor, ou seja, o personagem comete um ato motivado
pelo desejo e pode ser punido por este ato, porém o leitor pode se satisfazer com o prazer
do personagem ao realizar o ato sabendo que nada pode puni-lo.

Seguindo esse raciocínio, quando o desejo feminino aparece em cena como uma força
incontrolável, no qual a mulher não consegue controla-lo sozinha e não possuiu
consciência de seus impulsos, isso por que a ideia baseada no criacionismo da religião
cristã, visto que, quando Adão e Eva foram expulsos do paraíso, recaíram sobre a mulher
as dores do parto e a submissão do seu desejo pelo do marido. De acordo com o historiador
Ronaldo Vainfas, o pecado original tornou-se importante quando foi reinterpretado para
explicitar como o desejo da mulher é abusivo e precisa ser controlado pelo homem para
que Deus não se volte contra a humanidade novamente.

Enfim, como nos lembra Le Goff, a sexualização do pecado


original foi uma invenção cristã, pois, no Genesis, aparecia ligado
ao conhecimento e à obediência devida de Deus, e não ao sexo.
Seria por ceder à tentação de conhecer, por querer-se igualar a
Deus e por desobedecer a ele na busca desse conhecimento que,
na narrativa bíblica, o homem teria pecado pela primeira vez. [...]
A interpretação “sexualizada” do primeiro pecado marcou
decisivamente o conjunto das éticas cristãs, dela resultando a
concepção de um mundo entrevado pelas aflições da carne, a
visão do homem como um ser fragilizado pelo desejo e a
identificação da virgindade, pureza e salvação. (VAINFAS, 1986;
83)
Freud é essencial para pensarmos essa simbiose, desejo e culpa, pois nos alerta sobre o
interdito do desejo na obra literária, pois ao compartilharmos das experiências do
personagem compartilhamos também do prazer obtido por completo, pois não estamos
presos naquela realidade, na realidade do leitor nada acontecerá, pois, o ato pensando não
foi realizado. A repreensão da vida social possibilita esse escape do leitor, o adultério
neste caso, assume a forma dessa experiência.

Não podemos deixar de destacar, que mesmo que Nelson Rodrigues nunca tenha
declarado nada sobre ter lido as obras de Freud, já é dado como óbvio para os estudiosos
de Nelson que a obra do dramaturgo possui um diálogo muito contundente com os estudos
e análises do psicanalista. Os primeiros estudos que relacionaram a obra de ambos foram
com o intuito de analisar o texto teatral das peças míticas de Nelson Rodrigues.

A Psicanálise tornou clara a ideia de que a repressão dos anseios


mais primitivos do homem surgiu decorrente das regras do jogo

481
social. Em Totem e Tabu (1912- 1913), Freud refere-se
justamente a essa questão de controle social dos impulsos,
concluindo que o homem nunca internaliza completamente a
interdição. Daí consiste a necessidade de o grupo social criar um
sistema interno que garanta sua ordem interna, decorrendo disso
o conflito de duas grandes forças que são desejo por uma questão
imposição social. O estudo deveu-se ao interesse de Freud pela
Antropologia, assim como pela inter-relação entre a civilização e
a repressão dos instintos. (...). Nelson Rodrigues não se afasta de
um cunho moralizador, ao contrário do que posso aparentar uma
visão superficial equivocada. (ALBUQUERQUE, 2001; 01)

Em A dama da Lotação, a crônica conta a história do casal Carlinhos e Solange. Casados


há dois anos, o marido começa a desconfiar que sua mulher esta o traindo, o marido leva
suas suspeitas ao seu pai, que nega tudo, afirmando que Solange é a mulher pura que ele
conhecia. Algum tempo se passa desde essa conversa de pai e filho, e Carlinhos flagra a
esposa, acariciando com o pé as pernas de um amigo, por debaixo da mesa de jantar.
Atormentado por suas suspeitas, Carlinhos confronta Solange, que admite sua trair o
marido todos os dias, com homens que ela escolhia na lotação. O argumento da mulher é
que o desejo é tão grande, que parece até outra pessoa quando comete tais atos. A
desolação do marido é evidente, ele se diz um morto-vivo, pois não capaz mais de sentir
nada, veste seu melhor terno, deita na cama e se declara morto, Solange não questiona a
atitude do marido e passa a usar preto como uma viúva, e a velar o corpo do marido.
Entretanto isto não é motivo para que Solange pare com suas traições, ela continua
pegando suas lotações. A culpa de Solange não aparenta atormenta-la, isso por que
Solange encara como se fosse outra mulher quando sai para realizar seus desejos, ela
advoga por seu direito de cometer tais atos para não enlouquecer.

A Dama da Lotação vai ao cinema

Nelson Rodrigues é considerado um dos artistas brasileiros com mais peças encenadas e
filmes adaptado, as adaptações cinematográficas se estenderam por 50 décadas, sendo
que o ápice foi durante os anos 1960 e 1970, o cinema novo e as chanchadas foram estilos
estéticos que mais se apropriaram das obras de Nelson, as tornando filmes que são marcos
do nosso cinema.

Deste modo, temos diversos diretores, olhando para os textos rodriguianos e interpretando
ao seu olhar, como exemplo: Boca de Ouro (1962) do diretor de renome do cinema novo,
Nelson Pereira dos Santos. É preciso mencionar também a adaptação de Leon Hirszman
para a peça A Falecida (1964). Em 1972, Arnaldo Jabor adapta a peça Toda Nudez será

482
Castigada, o filme ganha um reconhecimento da crítica nacional e internacional,
chegando a ganhar o Urso de Prata no Festival Internacional de Berlim. No ano de 1975,
Jabor adapta O Casamento, único romance publicado por Nelson Rodrigues.

A Dama da Lotação (1978) estava inserida no contexto das pornochanchadas, que tem
uma herança nas chanchadas cariocas das décadas de 1940 e 1950. As chanchadas tiveram
muita influencia nas classes baixas e médias do Rio de Janeiro, por isso sua principal
característica era tratar do cotidiano dessa classe média, o que chamamos de “crônica de
costumes” e outra característica era usar toques de sensualidade na trama, como piadas
de duplo sentido, em detrimento da sensualidade, algumas chanchadas usam de números
musicais para atiçar o público.

A pornochanchada começa na década de 1960, que misturou a essência dessas chanchadas


e também algumas inspirações do cinema pornochanchada vieram do cinema europeu,
sobretudo o cinema italiano, que já tinha explorado esse tipo de cinema de baixo
orçamento combinado com toques de erotismo. Como aconteceu no resto dos cinemas,
esses filmes que não possuíam dinheiro para grandes produções atingiram um grande
público em pouco tempo, três anos depois desse mercado cinematográfico, a produção
desses filmes foi transferido para a região conhecida como Boca do lixo paulistana,
localizada no centro da cidade São Paulo, perto da Estação da Luz.

O primeiro destes elementos foi o título. Na fase soft-core, antes


do aparecimento do sexo-explícito, os títulos soavam parecidos
com os filmes, incluindo palavras-chave que causassem
curiosidade e despertassem a imaginação do espectador, tais
como adultério, paquera, cama, etc. Um recurso utilizado também
foi o uso do jogo das palavras, nos títulos, apresentando
referências a filmes de sucesso, que se completavam com as
frases dos cartazes de propaganda. Como exemplo: Motel/Um
filme de alta rotatividade; Cada um Dá o que Tem/Nunca tantas
deram tanto em tão pouco tempo. Guardando as devidas
proporções este recurso também foi utilizado nas chanchadas,
porém com palavras que remetessem à graça e à diversão como
riso, carnaval e samba, por exemplo. (SELIGMAN, 2009; 7)

A Embrafilmes tem um papel fundamental no aumento da propagação desses filmes pelo


Brasil e até mesmo para outros países. Em 1973, a Embrafilme inicia um programa de
coprodução de filmes nacionais, com o intuito de incentivar a produção dos filmes de
pornochanchada, esse programa ajudava na divulgação desses filmes pelo Brasil.

483
Como o texto original de A Dama era um conto de cinco páginas, o diretor Neville
D’Almeida, chama Nelson Rodrigues para desenvolver o roteiro do filme, e além de
participar do roteiro, Rodrigues participou, nos bastidores, das filmagens. A escolha de
Sônia Braga como protagonista, visto que ela vinha de outro sucesso de bilheteria Dona
Flor e seus dois maridos (1976 – direção: Bruno Barreto). Como o marido Carlinhos,
temos o ator Nuno Leal Maia, que já era conhecido das pornochanchadas.

Com essa ampliação do roteiro, vemos no filme cenas do casamento de Carlinhos e


Solange e a lua de mel, que não sai como esperado, Solange não se sente a vontade em
fazer sexo na noite de núpcias, Carlinhos não aceita e acaba estuprando a esposa. Depois
dessa situação, Solange não consegue mais ter relações sexuais com seu marido. Triste,
por achar que pode ter se tornado frígida, Solange entra numa lotação do centro da cidade,
ali seu desejo é despertado, escolhendo ao acaso um homem para que possa convida-lo a
descer no próximo ponto. Como na crônica, ao descobrir que Solange o está traindo, o
homem passa a ser defunto.

Se apontando que na crônica, Solange admite ser outra pessoa quando sobe na lotação,
no filme fica evidente como a protagonista controla os homens ao redor, depois de ser
estuprada por seu marido, Solange não permite que mais nenhum homem abuse daquela
maneira, em suas relações sexuais com desconhecidos, ela é quem esta no comando das
ações. O desejo feminino não retratado como culpa, ao contrário, Solange não tem
vergonha do faz nas lotações e não leva em consideração o que as pessoas ao seu redor
acham. Igual ao que apresentamos anteriormente, o desejo é uma força incontrolável,
porém, a película evidência como é libertador quando a mulher realizada seu desejo, e
que nem todas as consequências desse desejo são negativas.

O filme passou por censura, teve quatro cortes e por isso teve a classificação indicativa
para menores de 18 anos, a maior classificação etária existente,

1º rolo – cena de violação sexual – suprimir a partir do instante


em que Carlinhos termina de rasgar a camisola de Solange, até o
final da cena, quando se focaliza a tomada externa da praia.
2º rolo – cena de lesbianismo – eliminar desde o momento em que
Matilde esbofeteia a amente, até a focalização de uma carta nas
mãos de Alexandre.
4º rolo – Cena de relacionamento sexual entre Bacalhau e
Solange, na cachoeira. Cortar desde quando ele faz menção de
tirar a cueca, até o final da cena, mostrando-se, a seguir, o enfoque
do ônibus.

484
- Cena do cemitério – Suprimir todas as tomadas intercaladas que
mostra Solange, encostada num tumulo, de pé, em
relacionamento íntimo com um, a partir do instante em que ela
começa a desabotoar a saia, até o momento em que se ouve
gargalhar, sendo focalizada a sua expressão facial.
5 º rolo – Cena no interior do ônibus – Cortar do momento em
que a câmara detalha os movimentos do homem comprimindo o
sexo, nas nádegas de Solange, até que os dois são focalizados da
cintura para cima. (Parecer da DCPC – nº 96.796 - 4 Cortes ao
todo - 07/03/1978 – Fonte: http://www.memoriacinebr.com.br/)

Não foi só a censura estatal que o filme sofreu a censura civil também teve relevância
durante o período de exibição, Amea Campos Carvalhal, 48 anos, moradora do Rio de
Janeiro, assistiu o filme e ficou tão horrorizada com a película que escreveu uma carta
para o ministro da Justiça da época, com intuito de alerta-lo de como esse filme fazia mal
para a sociedade e para a moral e os bons costumes vigentes na época. A mulher alega
que o filme é um caso de polícia, e que mesmo não se considerando uma puritana, em sua
opinião, o filme poderia desvirtuar “jovens inexperientes” que invés de se tornarem mães
de família, poderiam virar prostitutas.

O que podemos notar é que além da censura institucional vigente, havia outro tipo de
censura, a censura que vem de uma camada da sociedade, que querendo ou não aprovava
esse regime, já que reafirma algumas condutas e discursos. Em nome de uma moral
vigente, a “censora” civil não consegue enxergar o filme como um todo, só enxerga o que
vai de desencontro com as suas crenças nos bons costumes, deixando de lado todo o
contexto que filme é inserido.

Mesmo sofrendo com essas censuras, o filme foi um fenômeno de bilheterias, estreou em
80 cidades, 40 cinemas e 7,5 milhões de espectadores, até hoje o filme ocupa a quarta
posição na lista de filmes nacionais mais vistos.

Entretanto, mesmo com o sucesso de público, as críticas foram desfavoráveis ao filme,


muitas delas tentavam usar o fato do filme ser classificado como pornochanchada para
diminuir o conteúdo do filme, o reduzindo apenas em uma desculpa para ver cenas de
sexo na sala de cinema comercial, outras críticas procuravam entender como o filme
atingiu o sucesso. Na reportagem intitulada “O Ponto obsceno”, Gilberto Vasconcelos
diz,

Se “A Dama da Lotação” quis despertar a sexualidade do público,


então o efeito saiu pela culatra. Digo por mim. Depois de ver o
filme me deu vontade de ser seminarista, um monge, um asceta,

485
um anacoreta. Tal como a “Sex Life” que os cosméticos e as
psicoterapias de hoje promovem, há nesse filme a dissexualização
do sexo. Me lembra a definição do obsceno: a carne que sobra.
Nesse sentido, Sônia Braga me pareceu uma vó de pijama. Um
horror. O obsceno aqui do excesso do instinto sexual sobre a
genitalidade, da qual recebe força e prestígio. (Folha de São
Paulo, 29/04/1978 - – http://www.memoriacinebr.com.br/)
Dentre as críticas negativas que o filme sofreu, temos a crítica de Jean-Claude Bernardet,
no jornal Última Hora, que nos coloca uma reflexão importante:

Aqui os papéis se invertem. É uma mulher que faz dos homens


objetos sexual. Apesar dessa inversão, se mantem o
relacionamento sexual básico da pornochanchada: o sexo não
implica numa relação entre pessoas, mas entre indivíduos e um
objeto, uma relação de dominação e pose. (Última Hora –
29/04/1978)
Bernardet coloca um ponto interessante, o público pode se incomodar com a mulher como
predadora sexual, argumento que vemos exposto na carta de Amea. O diretor do filme,
Neville D’Almeida, defende nas entrevistas para rebater algumas críticas, seu principal
argumento é a falta de reconhecimento que os filmes nacionais têm com a crítica
especializada, esclarece como é difícil fazer um filme no Brasil com um orçamento
mínimo e lutando com adversidades imensas. Outro ponto que levanta nas entrevistas é
de que o filme vai além das cenas de sexo, que a liberdade sexual da personagem Solange
é uma forma de quebra com alguns discursos pregados pela sociedade para calar o desejo
da mulher, com o sexo Solange consegue transgredir esses paradigmas.

O filme traz discussões importantíssimas, mesmo que Nelson Rodrigues tenha ajudado
com o roteiro, percebemos que o diretor procurou mostrar o desejo feminino sem o
estigma da culpa, e sim o da libertação.

A Dama da Lotação aparece na Televisão

A última adaptação que analisaremos neste artigo, é a que foi para a televisão aberta nos
anos 1990, precisamos levar em consideração alguns fatores como; o barateamento dos
aparelhos televisivos, isto implicava em mais pessoas comprando e de padrões
econômicos diferentes, o surgimento da televisão paga e atingindo as classes mais
abastadas. O efeito “controle remoto” começa no início da década de 1990, quando o
telespectador começou a ter opções de canais abertos e assim poder escolher a
programação que mais lhe agradasse. Todos esses efeitos causam na televisão brasileira
uma reestruturação da programação, pois era preciso abraçar esses diferentes públicos
que estavam surgindo, assim os canais abertos eram organizados desta maneira; no

486
período da tarde os programas eram de auditório e beneficiava-se de dramas cotidianos,
explorando a sensibilidade do auditório e do público que acompanhava o programa,
através de telefonemas ou leituras de cartas, nos finais de semana esses programas
ganham outras atrações, como artistas ou reportagens que dialogasse com crianças ou
público jovem. Ao mesmo tempo, a televisão tinha que pensar em público que possuía
outros interesses, para eles era voltado a programação noturna, com jornais que
contemplava mais a economia do que Jornal Nacional, com minissérie que tocava em
temas que a novela das oito não abordava.

No ano de 1996, a Rede Globo apresentou uma nova grade de programação, que incluía
Não Fuja da Raia, Chico Total, Sai de Baixo, Intercine, o Willian Bonner foi anunciando
novo âncora do Jornal Nacional e a estreia da minissérie A vida como ela é...no Fantástico.

O Fantástico sempre foi pensado para um público amplo, pois ele não se identificava
como um jornal, mas sim uma revista eletrônica, que abordava vários temas, havia
lançamento de alguns clipes de músicas (nacional e internacional), reportagens com
cunho investigativo, reportagens mais emotivas e quadros contendo adaptações de
famosas literaturas brasileiras.

A vida como ela é... para a televisão foi pensada por Daniel Filho e Euclydes Marinho,
ambos já haviam dirigido e roteirizado filmes e séries da obra de Nelson Rodrigues. Ainda
é preciso levar mais documentos para analisarmos como esses dois sujeitos pensavam o
Nelson como adaptação

Com 40 episódios, a minissérie foi ao ar no mês de março de 1996, o primeiro episódio


O Monstro, que contava a história de Bezarra que foi pego beijando a cunhada, todos da
família culpa Bezerra de ser tarado, enquanto Sandra, a cunhada, é vista por todos como
uma santa, e que na verdade é ela quem ataca o rapaz. Todos os episódios se passavam
na década em que foi escrito as crônicas, isto é, década de 1950 e 1960. Os episódios
foram filmados com estética e suporte cinematográfico, Daniel Filho teve todo um
cuidado com cores, luz e enquadramento.

Outro diferencial da minissérie foi elenco que estrelava as histórias semanalmente, atores
como Malu Mader, Maitê Proença, Cássio Gabus Mendes, Antônio Calloni, Laura
Cardoso, Nelson Xavier, Mauro Mendonça, Caio Junqueira, José Mayer, Gabriela
Duarte, Luís Carlos Góes, Marcos Palmeira, Guilherme Fontes, Guilia Gam, entre outros.
A narração das histórias ficou a cargo de Hugo Carvana (no primeiro episódio) e José
Wilker.

487
Não é só a mudança de atriz que configura as mudanças entre o filme e o episódio da
minissérie, nesta adaptação Solange que é interpretada pela atriz Maitê Proença e
Carlinhos interpretado por Guilherme Arantes, levando em consideração a pequena
duração dos episódios, e também o formato em que foi feito, essa adaptação é sútil com
as cenas, mesmo que apareça Solange abordando um homem na lotação. O texto se
mantém fiel à crônica de jornal, e esse elemento é essencial para o dinamismo do episódio,
as frases de efeito característica dos textos de Nelson Rodrigues.

Se anteriormente, discutimos o impacto do desejo e da moral, com a adaptação televisa


esse impacto é redobrado muito por causa das imagens em tela e muito pelos atores que
representavam homens e mulheres que fazia parte do imaginário dos brasileiros, não é à
toa que a minissérie explora os corpos, especialmente o feminino. O debate desejo/culpa
não é aprofundado pelo episódio, o que move a história e o espectador é a curiosidade
que esta história conta.

No caso da televisão um fenômeno engraçado ocorre se ao ler o jornal o leitor se tornava


cumplice dos atos e escolhas duvidosas dos personagens, com a televisão, o telespectador
se torna voyeur desses personagens, acompanhando momentos íntimos daqueles
personagens. A narração de José Wilker ajuda o público a se tornar esse observador. Mais
uma vez, a brincadeira com o imaginário está presente na relação de como essa obra é
recebida, levando em conta que Nelson Rodrigues já tinha sido adaptado para a Rede
Globo um ano antes com Engraçadinha: seus pecados e seus amores (1995) que já
abusou de cenas sensuais e levando ao público segredos íntimos que as famílias faziam
questão de esconder porta afora. Ou seja, uma parte do público que acompanhou a
minissérie A vida como ela é... já sabia o que esperar deste conteúdo.

Podemos perceber, que mesmo que nenhuma das adaptações tenha fugido da crônica
escrita em 1950, cada uma carrega em si, aspectos do seu tempo e questões provenientes
deste, por isso a importância de contextualizar cada adaptação.

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489
Relatos Selvagens: exercício interpretativo do cinema como documento
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Wild Tales: interpretative exercise of cinema as a document of history
Profa. Dra. Rosana Schwartz1

Resumo
Relatos Selvagens: exercício interpretativo do cinema como documento da história, foi
problematizado a partir das bases teórico-metodológicas da pesquisa qualitativa de
cunho sócio histórica, que contribui para a compreensão do texto/filme como
documento da história. Temas como a violência social, a falta de ética, a corrupção, as
negociações sem escrúpulo e a traição na contemporaneidade apareceram nas
descrições das cenas e nas análises dos conteúdos, pela perspectiva de Laurense Bardin.
Entender o filme como documento, possibilitou frequentar o “lugar” e as
“temporalidades” criadas na trama, aproximar-se das emoções, questionar o material
produzido pelos diretores e roteiristas e integrá-los com o social, com o emocional, e
memórias da vida cotidiana.
Palavras-chave: documento da história, interpretação, análise de conteúdo.

Abstract
Wild Tales: interpretative exercise of cinema as a document of history, was
problematized from the theoretical-methodological bases of qualitative research of
socio-historical nature, that contributes to the understanding of the text/movie as a
document of history. Subjects such as social violence, lack of ethics, corruption,
unscrupulous negociations and betrayal in contemporaneity appeared in the scene
descriptions and content analysis, from Laurense Bardin’s perspective. Understandin
the movie as a document, made possible to attend the “place” and the “temporalities”
created in the plot, get closer to the emotions, question the material produced by the
directors and screenwriters and integrate them with the social, the emotional and the
memories of the daily life.

Key words: document of history, interpretation, content analysis

Apresentação
O documento/flme Relatos Selvagens, lançado no ano de 2014, composto por
seis histórias, tece as relações humanas contemporaneas e aponta para as dimensões

1
Doutora em História Social pela PUC/SP, pesquisadora e professora do Preograma de Pós-
Graduação em Educação, arte e História da Cultura da Universidade Presbiteriana Mackenzie.

491
da banalização do ódio e da vingança. Pedro Almodovar e Pablo Carrera, apresentam
um conjunto de seis histórias ligadas por esses temas. As cenas transcorrem
enfocando formas de violência social, a falta de ética, a corrupção, as negociações
sem escrúpulo, até chegar em sua apoteose, na última estória, com a traição.
O que liga as histórias? a vingança, raiva, frustração, violência, traição,
impotência e os sentimentos que estão enraizados e são estimulados nas
circunstâncias em que nosso dia a dia nos submete. Todos os personagens fazem
justiça com as próprias mãos. O filme propõe reflexóes sobre a relação de civilidade
que temos ou não com o outro, que pode ser desde um parceiro (como no caso do
casamento) a um desconhecido (como na briga de trânsito), e o mais importante:
quando esse fio de lógica social se rompe num acesso de fúria descontrolada.
Diante de uma realidade crua e imprevisível, os personagens caminham sobre
a linha tênue que separa a civilização da barbárie contemporânea – da banalidade do
ódio. A incapacidade de entender o próximo, as problematizações voltadas para o EU
construído pela cultura tecem as tramas. A contemporaneidade expandiu a
individualidade ao ponto tornar todos, únicos e o outro cada vez mais passaou a ser
visto como o diferente.
O filme mostra a inteligência usada de forma animalesca e bárbara, quase
sempre com finalidade destrutiva.
A construção do ambiente insere o espectador no suspense, independente dos
acontecimentos que se seguirão.
No espaço limitado de cada história – com aproximadamente 20 minutos – os
personagens conseguem construir motivações para justificar as ações de vingança
que tomarão.
É documento que apresenta para a história cultural aspectos implícitos e
explícitos, relacionais e geracionais que se revelam como pistas para o pesquisador.
O contexto histórico, social, cultural e economico da sua produção, as perspectivas de
quem fez o documento e sua finalidade estão impregnados na obra. Desde a década
de 1970, o historiador Marc Ferro, desvela o potencial de registro/documento da
produção cinematográfica. Pontua que qualquer filme é desvelador da época da sua
produção, dos valores da sociedade a que pertence e de quem o concebeu. É um
testemunho carregado de significações simbólicas, imaginárias, ficcionais e reias
(FERRO,1989). Ferro atenta, ainda para a percepção do filme como fonte, já que não
são feitos apenas de código cinético (imagens em movimento), mas também de outros
tantos códigos, tais como o lingüístico – escrito (legenda) e fala (diálogos dos

492
personagens) – e código musical (trilha sonora). Forma-se um conjunto de
representações visuais e sonoras, cuja análise e decodificação faz parte da função do
historiador (SCHWARTZ, 2010).

Relatos Selvagens.
O filme Relatos Selvagens, enfatiza: a emoção em detrimento ao aspecto
racional na trama, o descontrole emocional é o fio condutor. Seus elementos estéticos,
estilo artístico, estáo carregados de caráter subjetivo e objetivo do homem
contemporaneo. Os movimentos da câmara, planos, enquadramentos, iluminação,
sonoplastia, contribuem para a imersão do espectador na trama e reflexão imediata
sobre violência. Esses aspectos observados são como indícios ou pistas sobre as
questões ditas e não ditas do autor do documento sobre as relações humanas
contemporaneas. A transposição cultural passado-presente, nos seis contos mostram
as multiplas possibilidades de leituras das temporalidade históricas conectadas: filmes
cujas histórias tocam no presente cinstruções históricas, sociais, culturais do passado,
trazer temáticas discursivas instigantes. A dialética passado-presente desempenha
papel significativo na polemização do conhecimento histórico (SCHWARTZ, 2010).
No primeiro conto, intitulado de “Pasternak”, o personagem principal da trama
Gabriel Pasternak reune várias pessoas que interferiram negativamente em sua vida
em um avião. As relações cotidianas desde sua infância são reveladas aos poucos.. A
trama inicia com uma mulher caminhando em um aeroporto, conferindo sua passagem
e saindo de cena. Essa cena é cortada e retorna na parte interna do avião. A mulher,
agora sentada, folheia uma revista. A câmera faz uma tomada de uma das páginas da
revista, na qual aparece uma foto tirada por Grégoire Bouguereau de quatro
guepardos atentos a um flhote de gazela ferido tentando fugir. Proporciona indícios de
que a trama se trata simbolicamente da relação entre caçador e caça. Faz alusão a
uma das palavras do título do flme - selvagens - e ao vislumbre de Pasternak com
relação às próprias pessoas dentro do avião. Dialeticamente a fgura da gazela pode
ser interpretada como sendo a do Gabriel Pasternak e a dos guepardos dos seus
“malfeitores” no passado. Gabriel Pasternak comissário daquele voo, trancado na
cabine, esbraveja de maneira autoritária contra os seus algozes quando estes
percebem a sua estratégia. A lamela discutida por Jacques Lacan em o mito da
“lamela” (lâmina), no filme, é a voz de Pasternak, sem forma, fora do corpo, mas de
um ponto de dentro dele. A lamela é uma multiplicidade de aparências que estão
envoltas num vazio central, representado no contexto de um avião que carrega os

493
desejos de Pasternak em se vingar das fguras castradoras que estiveram presentes
em sua vida. Na última cena um casal de idosos sentados na grama verde do quintal
de uma casa, olham para trás ao ouvir o barulho do avião. O avião se aproxima e se
choca sobre eles. Os pais, são conhecidos como os primeiros castradores, ou seja, os
primeiros a disciplinarem os corpos e desejos do outro na condição de flho.
Em analises de filmes como regostro/documentos, a problemática do
consciente, incosciente e imaginário social é fundamental. O recorte específico de um
momento da história para outros permite ao historiador detectar posicionamentos
conservadores, reacionarios ou seu inverso, valores e princípios éticos, tanto do
público-alvo, quanto dos produtores do filme.
Além das imagens produzidas de forma consciente, existem as de conteúdo
inconsciente, compostas por elementos que ultrapassam as intenções de quem
realizou e produziu o filme. Essas imagens podem ser, tanto elementos de ordem
individual, quanto da sociedade como um todo: contexto social, econômico, político,
cultural e religioso de uma época aparecem sem que se tenham intensionado. Essas
imagens constituem um aspecto complexo de ser analisado pelos historiadores. Marc
Ferro (1989) denomina tais imagens de “zonas” ideológicas não visíveis da sociedade
– juízos de valores e de moral expressos pelas culturas.
Assim, o historiador carece de comparar os conteúdos do filme/documento com
o conhecimento histórico, cultural e sociológico da sociedade em que o filme foi
produzido, com o tema histórico que ele retrata e com outras produções com mesma
temática. A leitura deve encontrar similitudes e representações com os fatos históricos
e com a historiografia escrita.
A abertura extraordinária é comparada a de grandes filmes, seja pela
qualidade, pelo envolvimento dos personagens, pelo ápice posto desde o princípio ou
mesmo pela criatividade. A partir do momento em que o espectador sabe que a
vingança entrará em curso cedo ou tarde, ele a espera.
Pequenos detalhes cotidianos empurram os personagens para um lugar fora de
controle.
O segundo conto, intitulado “As Ratazanas” ou “As Ratas”, foi ambientalizado
em um restaurante. A atendente do restaurante, dirige-se à porta para receber um
cliente, que imediatamente muda de expressão ao encará-lo. Ela se dirige à cozinha e
lá relata para sua colega de profssão que aquele homem era conhecido, um agiota
com o qual seu pai havia contraído uma dívida e, por isto, suicidou-se. Posteriormente,
sua mãe foi assediada por esse agiota até que fugiram para o lugar onde ela estava

494
morando agora. Confessa, então, que desejou por muito tempo encontra-lo e vingar-
se. Precisamente nesse momento a sua colega sugere que ela mate seu oponente
com veneno de rato. O ambiente é uma representação das dimensões da psique
humana: o salão exposto, arrumado, com luzes, decoração, mesas e cadeiras o Ego.
A cozinha, o conflito entre o Id e o Superego, em suas agências ética e obscena. As
cenas trazem o constante conflito entre o Superego e a ética sobre o desejo do Id.
A metodologia histórica e a psicologia se relacionam e consideram a imagem
como produto cultural, fruto de trabalho social e de produção sígnica. Partindo-se
dessa premissa, como fonte histórica, deve passar pelos trâmites das críticas externa
e interna. Dar conta de um universo significativo de imagens, posto que, numa mesma
série de imagens cinematográfica, há que se observar um critério de seleção.
Necessário se faz não misturar diferentes tipos de imagens em uma mesma intenção
de análise histórica. Seleção de corpus é necessária, porquanto cada tipo de imagem
compõe uma série categorial diferente. Na série categorial são vicejados múltiplos
códigos e níveis de codificação que fornecem significados ao universo cultural da
sociedade em que as imagens se instalam. Códigos são construídos na prática social
e não podem ser encarados comoentidades a-históricas, estão sempre situados na
esfera espacial-temporal. Se a classificação de códigos se faz pertinente, sua rede
constitutiva revela o olhar conjuntural sobre as imagens, sede de construção de
sentido. Sendo a produção da imagem um trabalho humano de comunicação, pauta-
se, portanto, enquanto tal, por códigos convencionalizados socialmente, que possuem
um caráter conotativo-funcional que remete às formas de ser e agir do contexto no
qual estão inseridas como mensagens.
Para que o olhar analítico ultrapasse a natureza da imagem de mero
analogonda, outros mecanismos analíticos são acionados: relação entre signo e
imagem; e opções técnica e estética. (SCHWARTZ, 2010)
Na dialética entre imagem e signo, normalmente, a imagem é vista
como algo ‘natural’, ou seja, algo inerente à sua própria natureza icônico – espelho da
realidade –, e o signo passa a valer como uma representação simbólica. Tal distinção
é um falso problema, tendo em vista que a imagem, sem dúvida, pode ser concebida
como um texto icônico, mas que, antes de depender de um código, é algo que institui
um código. Neste sentido, no contexto da mensagem, a imagem, ao assumir o lugar
de um objeto ou de um acontecimento ou ainda de um sentimento, incorpora funções
sígnicas – representação algo. Assume-se, na dialética de imagem e signo, a relação
dos elementos imagéticos expressos com o contexto social em que se inserem, cujos

495
cortes temático e temporal são exigidos. As opções técnicas e estéticas envolvem um
aprendizado historicamente determinado que, como toda a pedagogia, é pleno de
sentido social.
No entrelaçamento dessas vias analíticas, conclui-se que toda imagem é
histórica. O marco de sua produção e o momento de sua execução estão
indefectivelmente decalcados em suas superfícies no filme. A história embrenha as
imagens nas opções realizadas por quem as escolheu – uma expressão e um
conteúdo –, compondo mediante signos de natureza não-verbal, objetos de civilização
e significados de cultura.
O conto apresenta a vingança e o poder da sugestão para influenciar a
uma determinada ação.
No conto “O mais forte”, aparecem tensões entre as classes sociais e relações
de poderes. O conto inicia mostrando um carro luxuoso, cortando uma autoestrada
numa região pouco povoada, cujo motorista aparenta ser rico. A trilha sonora que
acompanha as cenas faz supor um possível romance nas cenas seguintes. No
entanto, a cena seguinte, mostra um carro antigo, sujo, cujo motorista aparenta
desleixo à frente. Ao tentar ultrapassar este carro, o motorista recebe uma fechada do
motorista do carro antigo. Em ritual, descarregar a culpa gerada, para a instância
simbólica de que transgrediu as normas. Passado esse evento, o motorista segue seu
caminho e a trilha sonora volta a tocar. Até que de repente algo sai errado um dos
pneus do carro fura, o motorista encosta, abre o porta-malas, verifca o equipamento
para trocar o pneu e ligar pedindo ajuda. A cena, então, muda para uma outra tomada
na qual se vê que o carro está parado ao lado de uma ponte. É quando, a trilha sonora
muda, indicando que algo terrível irá acontecer. O motorista logo avista o carro que
havia tentado bloquear sua ultrapassagem. Amedrontado, se tranca no carro, embora
ainda suspenso pelo macaco, e é surpreendido pelo motorista em sua janela
perguntando-lhe: “o que houve? Se assustou? ”. Nota-se que a cena da chegada
inconveniente do motorista do carro antigo é a única feita de dentro do carro dele.
Esse fato coloca os espectadores na perspectiva do motorista. Ao mostrar o carro
velho por dentro, em vez de estabelecer empatia entre o espectador e este motorista
com aparência suja e pobre, a dimensão é aterrorizante. O motorista do carro antigo
de forma animalesca e primitiva domina a cena. Quebra os vidros e defeca e urina no
carro do motorista rico. As imagens são reflexos direto da realidade violenta
contemporânea, mostra sistemas de signos independentes da mesma realidade,

496
constituem-se na desconstrução de regras e convenções, conscientes ou
inconscientes que regem a percepção.
Os pontos do conto observados trazem a função da ordem simbólica
na coexistência com o outro na contemporaneidade afim de torna-la tolerável.
Revelam que o eu e o outro, precisam de aprimoramento ético nas relações humanas
para que não exploda a violência. Quando o homem rico a todo o tempo tenta evocar
um outro para acodi-lo e ele não surge, a pista é que a intolerância cotidiana e a
pulsão de morte estão latentes. A pulsão de morte não é uma busca compulsiva por
aniquilação, senão o oposto, é algo que é imortal na própria mortalidade, algo que
quanto mais se combate, mais ela persiste. O que é representado no fato de nenhum
dos personagens morrerem isoladamente, mas um sempre tenta matar o outro de
alguma forma, até quando um deles quase morto, de repente, reage como se voltasse
à vida.
O conto seguinte, Bombinha, é narrado outro obsceno, controlador e corrupto
que na contemporaneidade pode levar um sujeito a ter reação explosiva, Logo no
início o Sr. Fisher, engenheiro que trabalha com a demolição controlada de
edifícios, após um dos seus dias de trabalho, coincidentemente aniversário de sua
flha, tem o carro rebocado por estacionar em zona não permitida, quando estava
comprando o bolo de festas, não obstante, não havia sinalização que o indicasse
dessa proibição. Fisher ao tentar retirar seu carro, a burocracia o levou a atrasar para
a frsta de aniversário da flha. Esses fatos se tornaram gatilhos para que sua esposa
solicitasse o divórcio. Fisher atrasou por que foi ao departamrento de transito
questionar o reboque do carrro e sugeriu que o estado devesse lhe ressarcir
fnanceiramente pelos seus prejuízos. O atendente seguiu o protocolo sem considerar
sua argumentação, justifcando que estava apenas fazendo seu trabalho. Ou seja,
apenas fazia o que o governo lhe impunha. Isso também acontece quando, ao pagar a
multa, o atendente afrma que não há superior para reclamar. Fisher então reage
violentamente, ataca o guichê com um extintor e vai preso. Essa intervenção desse
outro (justiça ou estado). Fisher resolve concretizar um ato de revelia contra o sistema
burocrático e obsceno que interrompe seus planos e interfere em sua vida. Coloca
bombas no carro, estaciona em local proibido e detona os explosivos dentro da
empresa de reboque. Nas cenas seguintes, aparecem matérias de jornal sobre ser
ataque terrorista ou não, discussões sobre a intencionalidade ou não do ato e por fm,
na última cena temos o Sr. Fisher na prisão sendo bem recebido pelos presidiários,
pela família e pelos agentes carcerários. Entre os vários elementos a catástrofe, não

497
foi a explosão do carro na empresa, mas o colapso do sistema governamental. Algo
que na contemponaeidade está visivel.
No conto intitulado como A Proposta aparece uma outra dimensão da maneira
como o sistema judiciário, parte do sistema governamental, funciona em termos de
corrupção. Vê-se a obscenidade do sistema ligada aos próprios interesses de cada
sujeito. O filho de um homem rico atropelou uma mulher grávida e fugiu, ao chegar em
casa, aos prantos, seu pai reclama com a mãe sobre a falta de orientação dada por
ela ao filho e sobre como ele era mimado. Resolve, encontrar uma solução,
superprotegendo-o. Oferece dinheiro para o caseiro assumir o atropelamento e em
uma sequencia de fatos, a corrupção proveniente do sistema aparece. O conto remete
às relações de poder entre os grupos sociais e a corrupção existente em todos.
O último conto, Até Que a Morte Nos Separe, inícia-se com uma festa de
casamento sofsticada. A noiva pega o celular do seu noivo e descobre
que uma moça convidada e presente na festa é ou era amante dele. A cena sugere
uma tentativa de suicídio até que então um dos cozinheiros a encontra e a consola.
Nesse momento, ela o beija, mantém relações sexuais em sinal de vingança.
O noivo ao encontra-la Ariel vomita e Romina volta para a festa, encara a amante e
promove ação contra a moça. A ação leva ao incidente com o espelho, Romina e a
moça são jogadas em um espelho, estilhaçamdo. A fantasia do
casamento, foi subitamente destruída pela descoberta da traição do noivo. Romina
continua com outras provocações até que o noivo pega uma faca, corta
um pedaço do bolo e o come. Em seguida segue até Romina e a leva para uma dança
e então a beija e a leva para a mesa onde mantém relações sexuais.“Até que a
morte nos separe”, mas de quem? O processo de mortifcação não separou o casal
de si mesmo, mas dos pais. Pois ao fm do conto, quando os pais fnalmente não
interferem na vida de ambos. Além disso existe um processo de mortifcação do
feminino que podemos ver na fgura da amante ensanguentada, na noiva com alguns
cortes, toda a energia é destrutiva e contra as fguras femininas. Esse processo de
mortifcação se deve ao fato de que, para que uma mulher possa agradar o homem é
preciso mortifcarse de tal forma que o homem possa ser capaz de se aproximar do
gozo feminino, o qual Lacan afrma que é o gozo místico,.

Considerações.
Estudar o filme sob o ponto de vista histórico é verificar como o homem se vê e
representa a si mesmo e de que forma recria e recria em imagens o seu mundo, a vida

498
cotidiana, desejos e fantasias. Leva em conta o discurso sobre o social, assim,
constituem-se para o historiador um precioso testemunho sobre a sociedade. Por trás
das imagens dos filme delineiam-se fatos reais, pessoas vivas, produto da experiência
pessoal e das observações do autor.

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499
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500
A Literatura de Cordel no Cinema. Uma Análise da Obra de Ariano
Suassuna: O Auto da Compadecida.

The Literature of Cordel in the Cinema. An Analysis of the Work of


Ariano Suassuna: The Auto of Compassionate.

Adriana Maria Gonçalves Chiaradia1

Resumo: Na literatura de cordel, o poeta é considerado transmissor/criador de


acontecimentos. Ele observa, sente e representa as informações por meio das estrofes do
cordel. É a visão do cordelista que ganha forma e rimas na estrutura do folheto. De
forma bastante simples, as produções ganham corpo em impressões, às vezes caseiras,
sem muito recurso. Mas nas telas do cinema, o cordel ganha vida. Tem cores, sons e
interpretações. É possível identificar trejeitos de personagens e se envolver, o que não é
tão fácil nos folhetos. É a mágica do audiovisual que envolve o telespectador. O
presente trabalho faz uma análise da adaptação cinematográfica da peça teatral, do
escritor Ariana Suassuna, O Auto da Compadecida. Obra enraizada na Literatura de
Cordel. A análise observa e compara as características gerais do filme e dos folhetos em
relação a alguns elementos narrativos como caracterização dos personagens, a rima -
seja no estilo literário, seja no roteiro da ficção - e a fotografia, ou seja, o cenário onde a
trama cinematográfica e as histórias dos folhetos acontecem.
Palavras-chave: Literatura de cordel; Cultura popular; Cinema; O auto da
Compadecida; Cordel.

Abstract: In cordel literature, the poet is considered transmitter/creator of events. He


observes, feels, and represents the information by the verses of cordel. It is the vision of
the cordel poet that gains shape and rhymes in the structure of the booklet. In a fairly
simple way, the productions are shaped in prints, sometimes homemade prints, with not
much resource. But in the cinema screens, the cordel comes alive. It has colors, sounds
and interpretations. It is possible to identify gestures of characters and get involved,
what is not so easy in the booklets. It is the magic of the audiovisual that surrounds the
viewer. The present work makes an analysis of the cinematographic adaptation of the
theatrical play, of the writer Ariana Suassuna, O Auto da Compadecida. Work rooted in
Cordel's Literature. The analysis observes and compares the general characteristics of
the film and the booklets in relation to some narrative elements as characterization of
the characters, the rhyme - whether in the literary style or in the script of fiction - and
photography, that is, the scene where the cinematographic plot and the stories of the
booklets happen.

1Formada em Jornalismo pela UNIFATEA – Centro Universitário Teresa D’Ávila, em 2008 e em Direito pela
Universidade Presbiteriana Mackenzie, em 2017. Aluna do programa de Mestrado “Educação, Arte e História da
Cultura” da Unversidade Presbiteriana Mackenzie. Jornalista da TV Mackenzie e Advogada da Consultoria
“Cidadania de Portugal”. Chi.adriana@gmail.com.
501
Key words: Cordel literature; Popular culture; Cinema; O auto da
Compadecida; Cordel.

1. Introdução
A “Literatura de Cordel” ficou conhecida por este nome, pelo modo como eram
vendidos os folhetos, inicialmente. Suspensos em barbantes, os folhetos manifestam –
ainda hoje – e manifestavam, o pensamento e o dia a dia do povo em poesia popular. O
cordel, por décadas, foi a ferramenta encontrada pelas culturas de massas, para se
expressar, para comunicar, informar e formar.

Entretanto, embora as produções de folhetos já fossem comuns no Brasil, o verbete


“cordel” não era conhecido. Não no tempo de Leandro Gomes de Barros, um precursor
deste estilo literário no país. Foi ele quem primeiro publicou folhetos e romances em
escala comercial no Brasil.

O termo “cordel” começou a ganha notoriedade no Brasil “a partir da publicação do


dicionário contemporâneo de Aulete, em 1881”.2 Em solo brasileiro, conhecíamos os
folhetos como “literatura popular” ou “poesia popular”. Mas antes mesmo de
conhecermos a literatura de cordel da forma escrita, ela já se manifestava por outras
formas, “os versos brotavam espontâneos de boca em boca em forma de louvação ou
duelo verbal. Eram os desafios ou combates poéticos”.3 Quase que simultaneamente ao
surgimento do cordel escrito, seus autores foram nomeados como “poetas de gabinete”
ou “de bancada”. Neste sentido, Silva acrescenta:

Peleja, combate, debate, duelo, discussão e desafio. É como se podem


observar os nomes atribuídos genericamente ao encontro entre dois
poetas, e que apareceram com as primeiras e tímidas manifestações
orais. Acompanharam a evolução estrutural da literatura de cordel
(SILVA, 2011; 43)
Na obra Prefácio a Edição Italiana. O queijo e os vermes: o cotidiano e as ideias de um
moleiro perseguido pela Inquisição, o autor define a literatura de Cordel como “cultura

2 SILVA, Gonçalo Ferreira da. Vertentes e Evolução da Literatura de Cordel. Rio de Janeiro. Rovelle, 2011.
3 SILVA, Gonçalo Ferreira da. Vertentes e Evolução da Literatura de Cordel. Rio de Janeiro. Rovelle, 2011.
502
imposta às classes populares” (GUINZBURG, 1976; 18)4, ao se referir ao estudo feito
por Robert Mandrou, que, por sua vez, definiu a literatura de cordel como “evasão”.

Essa literatura [...] teria alimentado por séculos uma visão de mundo
banhada de fatalismo e determinismo, de maravilhoso e misterioso,
impedindo que seus leitores tomassem consciência da própria
condição social e política – e, portanto, desempenhando, talvez
conscientemente, uma função reacionária. (GUINZBURG, 1976;
18)
Na mesma obra, o autor traz outra percepção sobre a literatura de cordel. Guinzburg usa
uma passagem da pesquisadora Geneviève Bollème, para retratar outro ponto de vista
sobre o tema:

A pesquisadora viu na literatura de cordel a expressão espontânea


(ainda mais improvável) de uma cultura popular original e autônoma,
permeada por valores religiosos. Nessa religião popular, concentrada
na humanidade e pobreza de Cristo, teriam sido fundidos, de forma
harmoniosa, o natural e o sobrenatural, o medo da morte o impulso em
direção à vida, a tolerância às injustiças e a revolta com a repressão.
(CARLO GUINZBURG, 1976; 19).5
O Cordel chegou às terras brasileiras junto com as caravelas de Pedro Álvares Cabral.
Foram os portugueses que trouxeram a literatura para o país, embora esse tipo de
literatura já fosse conhecida na Europa desde o “início no século XVI, quando o
Renascimento passou a popularizar a impressão dos relatos que pela tradição eram
feitos oralmente pelos trovadores”.6

Na época dos povos conquistadores greco-romanos, fenícios,


cartagineses, saxões etc., a literatura de cordel já existia, tendo
chegado a Península Ibérica (Portugal e Espanha) por volta do século
XVI.
Na península, a literatura de cordel recebeu os nomes “pliegos
sueltos” (Espanha) e “folhas soltas” ou “volantes” (Portugal).
(SILVA, 2011; 11).7

4GUINZBURG, Carlo. Prefácio à edição italiana. O queijo e os vermes: o cotidiano e as ideias de um moleiro
perseguido pela Inquisição. 5 ed. São Paulo: Companhias das Letras.
5GUINZBURG, Carlo. Prefácio à edição italiana. O queijo e os vermes: o cotidiano e as ideias de um moleiro
perseguido pela Inquisição. 5 ed. São Paulo: Companhias das Letras.
6 MELO, Priscila. Literatura de Cordel. Disponível em www.estudopratico.com.br/literatura-de-cordel/. Último
acesso: 21/04/2018.
7SILVA, Gonçalo Ferreira da. Vertentes e Evolução da Literatura de Cordel. Rio de Janeiro. 5ª Edição. Editora
Rovelle. 2011.
503
A literatura de cordel tem simplicidade na sua estrutura, prestigiando informações do
cotidiano trazidas de forma clara, por meio de um vocabulário descomplicado. É escrito
em forma de poesia rimada, o que facilita a assimilação da informação pelo leitor.

Esse tipo de literatura oportuniza aos homens e mulheres humildes a ocuparem a


posição de autores e receptores desse conteúdo. É através do cordel, que pessoas com
pouca instrução adentram ao universo das letras, seja escrevendo ou vendendo os
folhetos, seja ouvindo ou decifrando a literatura. E é por isso, que a literatura de cordel
atravessa gerações. Ora com histórias sobre o fim do mundo, ora com acontecimentos
políticos, econômicos e sociais. E ao escrever um cordel baseado em algum desses
fatos, o escritor registra um momento, documenta uma época. E a partir daí as gerações
vindouras têm conhecimento sobre os fatos narrados através do olhar do escritor.

Houve-se um tempo que muitos acreditavam que os folhetos estavam condenados à


morte, devido a chegada dos jornais impressos pelos interiores. Os cordéis resistiram a
essa evolução. Depois da década de 1930, os burburinhos sobre a extinção desse estilo
literário voltaram, dessa vez o rádio era o grande vilão. Trinta anos mais tarde, em 1960,
foi a vez da televisão.

Os folhetos não foram extintos, pelo contrário, o universo do cordel continuou


“produzindo” inúmeros folhetos e “fabricando” grandes cordelistas. Teve, inclusive,
produções ganhando as telas do cinema, como “Morte e Vida Severina”, obra de João
Cabral de Melo Neto, por exemplo, que virou animação infantil, uma produção fiel ao
texto original da TV Escola e “O Auto da Compadecida”, uma peça teatral de Ariano
Suassuna em 1955, que foi inspirada em três cordéis e, posteriormente, adaptada para o
cinema.

Para ser mais exata, a trajetória de “O Auto da Compadecida” rumo às produções


audiovisuais começou em 1969, quando a peça foi adaptada para o cinema pela primeira
vez, intitulado com o nome de “A Compadecida”. A segunda adaptação foi em 1987,
com o filme “Os Trapalhões no Auto da Compadecida”. Em 1999, foi apresentada como
minissérie pela Rede Globo de Televisão, se transformando na versão mais conhecida.
Depois do sucesso, em 2000 a minissérie foi adaptada para o cinema. A produção
cinematográfica foi um marco para o cinema nacional, evidenciando o objetivo inicial
do cordel: o entretenimento.

504
2. Os cordéis e o filme O Auto da Compadecida: uma análise da obra de Ariano
Suassuna
Ariano Suassuna “encontrou” o personagem João Grilo em um folheto de gracejo,
escrito por João Ferreira de Lima, em 1932. João Grilo era “o célebre amarelinho
oriundo dos contos populares portugueses, que, no processo de aculturação, ganhou
características idênticas às de outro famoso espertalhão de origem ibérica: Pedro
Malazarte”.8 Em 2000, o filme O Auto da Compadecida, foi dirigido por Guel Arraes. O
enredo se desenvolve no Sertão Nordestino, em um vilarejo chamado Taperoá, em torno
de dois personagens principais: João Grilo, interpretado por Matheus Nachtergaele e
Chicó, interpretado por Selton Mello.

Suassuna, não só se inspirou no personagem de João Grilo, como traçou sua trajetória
no teatro quase que fielmente ao folheto originário, trazendo para a trama características
do personagem no cordel. Prova disto é o trecho do cordel “As Mazelas de João Grilo”:

João Grilo foi um cristão / que nasceu antes do dia, / criou-se sem
formosura / mas tinha sabedoria, / e morreu depois da hora / pelas
artes que fazia. (...) / Na noite que João nasceu, / houve um eclipse na
lua, / e detonou um vulcão, / que ainda continua. / Naquela noite
correu / um lobisomem na rua. (...)9
Entretanto, O Auto da Compadecida se baseia em três folhetos distintos: “O Cavalo que
Defecava Dinheiro”, “O Dinheiro (O Testamento do Cachorro)”, ambos escritos por
Leandro Gomes de Barros, e “O Castigo da Soberba”, sendo desconhecido o autor deste
último, embora alguns atribuam-no a Silvino Pirauá de Lima.

Ao descrevermos cada um dos folhetos, fica fácil identificarmo-nos na obra


cinematográfica. “O Cavalo que Defecava Dinheiro”, mostra um “malandro” que
consegue enganar um nobre invejoso. O malandro conta que tem um cavalo capaz de
“produzir” dinheiro, logo, o nobre “compra gato por lebre”. No cinema, o cavalo foi
substituído por um gato, que é vendido por João Grilo a Dora (Denise Fraga), que na
trama faz parte de uma classe superior. Dona da padaria que emprega João Grilo. O

8 HAURÉLIO, Marco. O Auto da Compadecida e a Literatura de Cordel. Publicado em

http://acordacordel.blogspot.com/2011/05/o-auto-da-compadecida.html. Último acesso 21/10/2018.


9 Folheto de João Ferreira de Lima. 1932.
505
outro folheto escrito por Leandro Gomes de Barros que inspirou a peça de Ariano
Suassuna, foi “O Dinheiro (O Testamento do Cachorro)”. No cinema, Dora tem uma
cadelinha que vem a óbito e para que esta seja enterrada com um cortejo em latim pelo
padre da cidade (interpretado por Rogério Cardoso), Dora paga um valor ao sacerdote,
referente ao “testamento” do animal. Mais uma das invenções de João Grilo.

“A autoria de Leandro é inquestionável, embora a origem dos motivos


que compõem a estória seja mais difícil de rastrear. O próprio Ariano
reconhece essa dificuldade quando afirma: “- a história do testamento
do cachorro, que aparece no Auto da Compadecida, é um conto
popular de origem moura e passado, com os árabes, do Norte da
África para a Península Ibérica, de onde emigrou para o Nordeste”.10
Por fim, o último folheto que deu base à obra de Suassuna, “O Castigo da Soberba” é
marcada pela presença de Nossa Senhora, que intercede junto ao seu filho Jesus, pelas
almas no juízo fina. Na trama a personagem ganha vida pela interpretação Fernanda
Montenegro. A personagem atua como uma advogada das almas, que recorrem a ela
com a oração Salve Rainha. Nossa Senhora houve os dois lados – as acusações e
defesas feitas por Jesus –, no entanto, sempre decide pela salvação da alma.

Vamos todos nós embora / Que o causo não é o primeiro, / E o pior é


que também / Não será o derradeiro... / Home que a mulher domina /
Não pode ser justiceiro.11
O trecho é do folheto “O Castigo da Soberba”, trata-se de uma fala do Diabo, que
também participa dos julgamentos. “A fala do tinhoso está bem próxima do desfecho do
Auto da Compadecida”.12

Os três folhetos, fizeram parte da obra Violeiros do Norte, de Leonardo Mota. Ao reunir
as três obras, o pesquisador, mesmo que indiretamente, apontou o caminho para Ariano
Suassuna, este, “mesmo apoiando-se em outras tradições populares – especialmente o

10 HAURÉLIO, Marco. O Auto da Compadecida e a Literatura de Cordel. Publicado em


http://acordacordel.blogspot.com/2011/05/o-auto-da-compadecida.html. Último acesso 21/10/2018.
10 Folheto de João Ferreira de Lima. 1932.
11 Cordel O Castigo da Soberba.
12 HAURÉLIO, Marco. O Auto da Compadecida e a Literatura de Cordel. Publicado em
http://acordacordel.blogspot.com/2011/05/o-auto-da-compadecida.html. Último acesso 21/10/2018.
506
Bumba-meu-boi, onde os personagens Mateus e Bastião cumprem um papel semelhante
ao de João Grilo e Chicó na Compadecida”.13

A trama traz aspectos sociais que sempre existiram na civilização e, por muitas vezes,
foram retratadas nos folhetos desde que estes chegaram no Brasil. Temas como
religiosidade, moralidade, corrupção eclesiástica, adultério e desigualdades fizeram
parte do roteiro de O Auto da Compadecida. Estes temas também podem ser vistos nas
produções de Leandro Gomes de Barros (1865 – 1918), Rodolfo Coelho Cavalcante
(1919 – 1987) e Jarid Arraes (1991), por exemplo, embora sejam três cordelistas de
épocas diferentes, eles trazem elementos sociais reais.

Na obra A Presença de Rodolfo Coelho Cavalcante na Moderna Literatura de Cordel,


Curran traz uma passagem do jornalista brasileiro, Ricardo Noblat, que comenta sobre o
fenômeno do “repórter-escritor”, o que seria, em essência, o que esses cordelistas
fazem, ao escrever um folheto baseado em fatos do dia a dia:

Existem dezenas de poetas populares no Nordeste que fazem um


jornalismo muito parecido ao praticado na redação dos jornais: narram
os principais acontecimentos da sua cidade, região, país e mundo;
interpretam-nos; opinam sobre eles; refletem e ajudam a formar a
opinião pública; integram à vida nacional comunidades que ainda não
foram devidamente atingidas pelos veículos convencionais de
comunicação. (CURRAN, 1987; 215 e 216)14
Para Noblat, “o folheto de época é o jornal dos que não leem jornais. (...) Serve também
de avalista das notícias publicadas em jornais ou transmitidas pelas emissoras de rádio,
porque o eleitor, muitas vezes, lhe dá mais créditos”.15

Guel Arraes conseguiu equilibrar uma combinação de diferentes gêneros na produção


cinematográfica em questão. O filme é jocoso quando precisa ser; romântico quando se
trata do romance entre Chicó e Rosinha (personagem de Virgínia Cavendish) e
extremamente dramático, nas cenas que aparecem Nossa Senhora intercedendo pelas

13 HAURÉLIO, Marco. O Auto da Compadecida e a Literatura de Cordel. Publicado em


http://acordacordel.blogspot.com/2011/05/o-auto-da-compadecida.html. Último acesso 21/10/2018.
14
CURRAN, Mark J. A Presença de Rodolfo Coelho Cavalcante na Moderna Literatura de Cordel. Rio de Janeiro.
Nova Fronteira: Fundação Casa de Rui Barbosa, 1987.
15
CURRAN, Mark J. A Presença de Rodolfo Coelho Cavalcante na Moderna Literatura de Cordel. Rio de Janeiro.
Nova Fronteira: Fundação Casa de Rui Barbosa, 1987.
507
almas no julgamento final. A personagem de Fernanda Montenegro “transfere o drama
ficcional para o drama real, falando do flagelo vivido por milhões de nordestinos no
Brasil”. (OROFINO, 2006; 157).16

Outro personagem que merece destaque na trama é Chicó. Um contador de lorotas que
viu na mentira, assim com o João Grilo, uma alternativa para driblar a pobreza e as
dificuldades da vida no Sertão. Rosana Angst, citada por Joice Reitz, comenta sobre
esse comportamento na obra Psicologia e Resiliência: uma revisão de literatura:

Segundo Angst (2009), a resiliência pode ser definida como uma


capacidade universal que possibilita a pessoa, grupo ou comunidade
prevenir, minimizar ou superar os efeitos nocivos das adversidades,
inclusive saindo dessas situações fortalecida ou até mesmo
transformada, porém não ilesa. Essa capacidade se apresenta
claramente em João Grilo e Chicó, uma vez que sempre ao serem
frustrados com os resultados de seus planos, não conseguindo sair da
pobreza que assola suas vidas, conseguem se recuperar rapidamente,
já com novas ideias para o próximo “ataque”. (REITZ, 2018).17
Chicó, com uma mente fértil, cria histórias “por ele vividas” que são inconcebíveis na
realidade. É um personagem um tanto parecido com o guerreiro Ulisses, que traz essa
característica de “inventar” histórias não muito leias à realidade. Ulisses é um herói
caricato que deriva do herói mítico.

O cinema “imita” a literatura de cordel é a recíproca é verdadeira. Em 2005 Chicó foi


parar em um folheto “Os apuros de Chicó e a astúcia de João Grilo”. Em 2008, a obra
foi ampliada e lançada pela editora Luzeiro.

Chicó contava vantagem, / Mas o povo não ligava, / Toda noite para
ouvi-lo / A multidão se ajuntava, / Porém não tinha sequer / Um que
nele acreditava. / João Grilo dizia sempre: / — Chicó, tenha mais
cuidado, / Pois a sua língua grande / Pode deixá-lo enrascado / Se um
dia se deparar / Com algum cabra malvado. / Chicó dizia: — Qual
nada! / Nunca me meto em engano: / Já irriguei o deserto / Com as
águas do oceano, / Mandei fazer uma ponte / Ligando Marte a Urano!
/ Já matei onça de tapa / E leão com pontapés, / Já tirei água de pedra,
/ Como um dia fez Moisés, / Em casa tenho uma árvore / Que produz
contos de réis! / João Grilo disse: — Chicó, / Nem mesmo lá em

16
OROFINO, Maria Isabel. Mediações na produção de TV. Um estudo sobre O Auto da Compadecida. Porto Alegre.
EDIPUCRS. 2006
17 REITZ, Joice. O Auto da Compadecida: a resiliência do sertanejo em meio às tribulações. Publicado em
http://encenasaudemental.net/post-destaque/o-auto-da-compadecida-a-resiliencia-do-sertanejo-em-meio-as-
tribulacoes/. Último acesso em 21/10/2018.
508
Pequim / Um pé-de-pau dá dinheiro / Ou a água do mar tem fim. /
Chicó respondeu: - Não sei; / Eu só sei que foi assim... (...)
(HAURÉLIO, 2008)
Lampião e Padre Cícero – este último, mesmo que de forma indireta –, também
aparecem no filme. Ambos personagens recorrentes na literatura de cordel. Lampião é
representado pelo personagem Severino de Aracajú, o violento cangaceiro vivido por
Marco Nanini no cinema. Severino é devoto de Padre Cícero, em uma passagem do
filme, o cangaceiro retira a tropa da cidade por ordem de seu “padim”.

A produção cinematográfica consiste em apresentar de maneira irônica e engraçada o


cenário nordestino e seus desafios. Assim, como muitas vezes, retratado nos folhetos.
As situações que envolvem os dois personagens principais – João Grilo e Chicó –,
representam uma realidade presente no sertão nordestino, profundamente marcada pela
seca, pela fome e por diversos problemas sociais.

É a arte imitando a vida. Neste caso, a arte imitando a literatura de cordel, que
também imita a vida. Afinal, não é à toa que a literatura de cordel é considerada um dos
meios de maior comunicabilidade popular. “Luiz Beltrão, já nos anos 1960, definiu esse
fenômeno como parte da folkcomunicação por meio dos fenômenos folclóricos. Em
suma, do povo para o povo”. (LUYTEN, 2007; 8).18

3. Considerações finais
É detectável a presença do anti-herói na figura de João Grilo, um personagem que vive
ao sabor do acaso e das aventuras compartilhadas com o amigo Chicó. Na literatura de
cordel existem um monte desses, porém, levam outros nomes. É a forma que os autores
encontram para propor um exame de valor social e moral.

A caracterização dos personagens, desde as vestimentas até o linguajar são elementos


marcantes entre o filme “O Auto da Compadecida” e os folhetos. Outro fator que
merece destaque é o cenário que a produção cinematográfica foi desenvolvida: sertão do
Nordeste, seca, pobreza, artimanhas de sobrevivência, religiosidade e tantos outros
aspectos comuns ao cenário explorado na Literatura de cordel. Por isso, é evidente a

18 LUYTEN, Joseph M. O que é Literatura de Cordel. Coleção Primeiros Passos ; 317. São Paulo. Brasiliense. 2007.
509
relação intertextual do cordel no filme analisado. E é isso que distingue o Auto da
Compadecida com os filmes interessados em apenas retratar as tradições nordestinas.

Assim como o cordel inspira o cinema, o cinema também inspira o cordel. Nos anos 50
e 60, algumas obras do audiovisual e até seus criadores viraram histórias nos folhetos,
uma época em que esse estilo literário era um dos únicos meios de informação dos
moradores do interior nordestino. Por isso, a relação do cinema com o cordel é muito
maior do que se imagina.

A literatura de cordel está longe de desaparecer, pode passar por tantas outras
modificações ao longo dos anos, mas acabar, acredito que não. “Muita gente fica
boquiaberto quando recebe a informação de que o Brasil é o maior produtor de poesia
popular em todo o mundo e em todos os tempos”. (LUYTEN, 2007; 39)19. E graças ao
cinema esse estilo literário pode perpetuar por incontáveis gerações.

Referências bibliográficas
CURRAN, Mark J. A Presença de Rodolfo Coelho Cavalcante na Moderna Literatura de
Cordel. Rio de Janeiro. Nova Fronteira: Fundação Casa de Rui Barbosa, 1987.
GUINZBURG, Carlo. Prefácio à edição italiana. O queijo e os vermes: o cotidiano e as ideias
de um moleiro perseguido pela Inquisição. 5 ed. São Paulo: Companhias das Letras.
HAURÉLIO, Marco. O Auto da Compadecida e a Literatura de Cordel. Publicado em
http://acordacordel.blogspot.com/2011/05/o-auto-da-compadecida.html. Último acesso
21/10/2018.
LUYTEN, Joseph M. O que é Literatura de Cordel. Coleção Primeiros Passos ; 317. São Paulo.
Brasiliense. 2007.
MELO, Priscila. Literatura de Cordel. Disponível em www.estudopratico.com.br/literatura-de-
cordel/. Último acesso: 21/04/2018.
OROFINO, Maria Isabel. Mediações na produção de TV. Um estudo sobre O Auto da
Compadecida. Porto Alegre. EDIPUCRS. 2006.
REITZ, Joice. O Auto da Compadecida: a resiliência do sertanejo em meio às tribulações.
Publicado em http://encenasaudemental.net/post-destaque/o-auto-da-compadecida-a-resiliencia-
do-sertanejo-em-meio-as-tribulacoes/. Último acesso em 21/10/2018.
SILVA, Gonçalo Ferreira da. Vertentes e Evolução da Literatura de Cordel. Rio de Janeiro.
Rovelle, 2011.

19 LUYTEN, Joseph M. O que é Literatura de Cordel. Coleção Primeiros Passos ; 317. São Paulo. Brasiliense. 2007.
510
A imagem dos negros no cinema: Uma breve análise do filme Pantera Negra

The image of black people in movies: An short analysis of the film Black
Panther

Sheila Cristina Silva Aragão Caetano1

Resumo: Historicamente os negros são vistos como inferiores e mais conhecidos por
serem ex-escravos. E o continente africano por ser pobre, sem tecnologia e viver em
guerra. O longa-metragem Pantera Negra mostra Wakanda que fica no continente
africano e seus habitantes que são negros, como guerreiros, unidos e uma nação
tecnológica. Este trabalho visa analisar a representação dos negros no cinema através do
estudo de caso deste filme e mostrar o racismo na sociedade atual. Para isso, será
necessário apresentar a narrativa do longa-metragem hollywoodiano lançado em 2018.
Explanar sobre o racismo, e posteriormente fazer estudo da estrutura do filme e de alguns
personagens. E a partir disso, será possível fazer uma reflexão sobre o racismo.

Palavras-chave: Pantera Negra; Imagem; Negros; Cinema; Racismo.

Abstract: Historically black people are seen as inferior and better known as former
slaves. And the African continent for being poor, without technology and living in war.
The feature film Pantera Negra shows Wakanda on the African continent and its
inhabitants who are black, as warriors, united and a technological nation. This work aims
to analyze the representation of blacks in the cinema through the case study of this film
and show the racism in the current society. For that, it will be necessary to present the
narrative of the Hollywood film released in 2018. Explain about racism, and later study
the structure of the film and some characters. And from that, it will be possible to reflect
on racism.

Key words: Black Panther; Image; Black People; Movies; Racism.

1. Introdução

Culturalmente ainda se tem em prática nas sociedades ideias que foram todas tidas no
passado como cientificistas: as teorias raciais. Que conforme mencionam Almeida e
Ortiz, entre os intelectuais estas são tidas como imorais e ultrapassadas há muito tempo.

1 Bacharel de Desenho Industrial (2008) pela Universidade Presbiteriana Mackenzie. Especialista (Pós-Graduação
Lato Senso) em Moda & Criação (2012) pela Faculdade Santa Marcelina. Aluna do programa de Mestrado
“Educação, Arte e História da Cultura” da Universidade Presbiteriana Mackenzie. Desenvolvendo pesquisas
relacionadas ao racismo no Brasil e História e Cultura do negro. E-mai1: sheila.aragao@icloud.com; e-mail
alternativo: sheila.aragao@uol.com.br.
511
Contudo, por ainda serem praticadas no dia a dia, fica difícil ter o negro em papel de
emponderamento em todas as áreas, inclusive no cinema.

E como Kilomba em Plantation Memories faz reflexão da definição e passagem de objeto


para sujeito de Hooks, escrever a respeito disso se torna um ato político. De forma geral
os negros são vistos pela sociedade como coisas, objetos; e por isso, não tem e não podem
fazer a sua própria história. Ao passo que o sujeito pode criar a sua própria história e
identidade.

“This passage from objecthood to subjecthood is what marks writing


as a political act. It is furthermore an act of decolonization in that one
is opposing colonial positions bt becoming the ‘valid’ and ‘legitimate’
writer, and reinventing oneself by naming a reality that was either
misnamed or not named at all” (KILOMBA, 2016; 10/-11)
“Essa passagem da condição de objeto para a subjetividade é o que
marca a escrita como um ato político. Além disso, é um ato de
descolonização em que se está opondo posições coloniais tornando-se
o escritor "válido" e "legítimo", e reinventando a si mesmo nomeando
uma realidade que foi ou mal nomeada ou não nomeada (KILOMBA,
2016; 10/-11)
Pensando nisso, o filme Pantera Negra se torna ainda mais significativo, uma vez que se
trata sobrea história de um super-herói negro, com roteiro feito por uma pessoa negra
(Ryan Coogler), tendo a maior parte de seus personagens negros e mostrando o negro
com uma visão diferente do colonizador, dando a cada personagem sua própria história e
identidade. Além de, ter sido um blockbuster mundo a fora e ser baseado no primeiro
super-herói negro da história dos quadrinhos.

2. Wakanda e a narrativa do filme Pantera Negra

O filme é a respeito de um personagem negro da Marvel, o herói Pantera Negra. Por se


tratar de revelar a respeito de seu surgimento a maioria do elenco é negra e boa parte dele
se passa no país fictício Wakanda no continente africano, com algumas cenas nos Estados
Unidos, na Inglaterra, na Coreia do Sul e na Áustria.

O início do filme explica a formação da nação. De acordo com o filme há milhões de anos
atrás o continente africano foi atingindo por um meteoro feito do metal vibranium que
alterou a vegetação do local. E a partir do momento que o ser humano passou a existir
cinco tribos se estabeleceram nesse local e o nomearam de Wakanda, essas tribos viviam
512
em guerras constantes entre elas até que um xamã guerreiro teve uma visão que o levou
a erva de coração que dava poderes sobrenaturais. Esse guerreiro virou rei e o primeiro
Pantera Negra - protetor de Wakanda, que uniu quatro das cinco tribos – a tribo Jabari
não aceitou seu reinado e foi viver nas montanhas.

O vibranium é uma substância muito poderosa, e com isso o povo de Wakanda conseguiu
desenvolver avanços tecnológicos surpreendentes prosperando e ficando a frente de todas
as outras nações. Contudo, para se proteger dos acontecimentos fora de Wakanda, a nação
concebeu uma barreira e se escondeu do restante do mundo ficando assim até os dias
presentes.

O rei T’Chaka foi morto no filme Capitão América: Guerra Civil (2016) e com isso, no
longa-metragem Pantera Negra seu filho mais velho, o príncipe T’Challa irá assumir o
trono de Wakanda. Por esse motivo é realizada uma cerimônia em que alguém da tribo
pode desafiar o príncipe, que estará sem os poderes da erva mágica, em ritual de combate
pelo trono. Para surpresa de todos a tribo Jabari vem das montanhas e seu líder M’Banku
desafia T’Challa, a priori o primeiro tem vantagem, mas posteriormente ele a perde e
T’Challa o detêm até que ele se renda ou morra. M’Banku por fim se rendeu. Após ritual
de combate vem o ritual espiritual em que são feitas preces e é dada a erva de coração
para T’Challa que na sequência é enterrado em areia e tem um encontro com seu falecido
pai T’Chaka.

Entretanto, acontece o roubo de um artefacto histórico – uma arma de vibranium de


Wakanda – em um museu em Londres, um dos responsáveis é o Ulysses Klaue que há
quase 30 anos atrás havia roubado grande quantidade de vibranium de Wakanda matando
muitos de seus habitantes. E o outro Killmonger, misterioso wakandano, filho do falecido
principe N’Jobu (filho de Azzuri).

O príncipe N’Jobu era irmão do rei T’Chaka, e havia sido enviado como espião para
Califórnia nos Estados Unidos, sendo o infiltrado que forneceu a localização de Wakanda
e de onde era escondido o vibranium no país. Contudo, ele foi descoberto por Zuri, filho
de Badu, que também era um espião wakandano; e estava convivendo como homem de
confiança de N’Jobu e no momento da revelação desse fato este tenta matar Zuri que é
protegido pelo rei T’Chaka e acaba matando seu irmão, o príncipe N’Jobu, deixando
marca de suas garras de Pantera Negra.

513
Com esse fato Killmonger descobriu quem havia assassinado seu pai e provavelmente por
isso, anseia por vingança contra o rei de Wakanda. O roubo ao artefacto foi uma forma
de Killmonger despertar a atenção do povo de Wakanda para que pudesse executar sua
vingança – conhecer sua terra natal e se tornar rei de Wakanda. Entretanto, esse ocorrido
ficou guardado em segredo entre o rei T’Chaka e Zuri.

T’Challa, Okoye (General, chefe da guarda de Wakanda) e Nakia (espiã e guerreira


representante da tribo do Rio) saem em missão para resgatar o artefato que será vendido
em um cassino em Busan na Coreia do Sul e efetuar vingança a Ulysses Klaue, deixando
a princesa Shuri (irmã de T’Challa e chefe do setor de tecnologia) como reforço
tecnológico em Wakanda. Eles atravessam um contratempo, tendo o agente Ross da CIA
responsável pela compra e porque Klaue apresenta-se com muitos capangas. Após troca
de tiros e perseguição T’Challa consegue alcançar Klaue, mas é impedido por Okoye e
Nakia de eliminá-lo em frente a várias pessoas, e assim é levado a interrogatório na CIA.

No local do interrogatório, Okoye é relutante em deixar o agente conversar primeiro com


o bandido por ele não ser wakandano, e mesmo sabendo falar inglês conversa na língua
natal para que o agente Ross não compreenda e por não respeitá-lo. Durante interrogatório
Klaue alerta o agente Ross sobre a reserva de vibranium e sobre todo o desenvolvimento
tecnológico de Wakanda, mas o agente não acredita por se tratar de um país paupérrimo
na África. Em pausa do interrogatório Klaue é resgatado por Killmonger e sua trupe e o
agente Ross acaba gravemente ferido enquanto salvava a vida de Nakia. Antes de fugirem
em um helicóptero, Killmonger pressiona Klaue para descobrir a localização de Wakanda
e o mata. Na volta a Wakanda os personagens trazem o agente Ross para ser curado com
a tecnologia de vibranium que existe na nação.

No longa-metragem não fica claro que Klaue transmitiu a localização do país, mas
Killmonger revela a ele que é wakandano e chega com ele morto ao país. Enquanto isso,
o príncipe descobre a verdade a cerca do passado com Zuri, que explica que N’Jobu se
apaixonou por uma americana e teve um filho. Além de, ter se radicalizou nos Estados
Unidos depois de presenciar muitas adversidades e mortes dos seus “irmãos” (negros,
descendentes do povo africano que vivem fora de Wakanda), e por isso, ele queria
entregar a eles armas feitas vibranium para que eles derrotassem seus países opressores e
virassem todos súditos de Wakanda. Por isso, ele traiu seu irmão, rei T’Chaka que não

514
concordaria com a ideia e Wakanda; porém como ele tentou matar Zuri, o rei acabou por
matar seu irmão, e para manter este segredo deixou seu sobrinho sozinho.

Com a chegada de Killmonger a Wakanda, o conselho das tribos acaba descobrindo a


verdade e por isso, para legitimar o trono T’Challa devera aceitar o desafio de combate
de seu primo. Durante o combate após árdua luta Killmonger em um primeiro momento
não mata T’Challa, pois Zuri pede para ser sacrificado em seu lugar, visto que o motivo
do pai de Killmonger não estar mais vivo foi ele. Contudo, mesmo após matar Zuri, a
sede de vingança continua em combate com T’Challa até jogá-lo em um penhasco e se
anuncia como o novo rei de Wakanda.

A maioria com temor e tristeza, o aceita como rei. Dessa forma a rainha-mãe e sua filha
Shuri ficam em perigo e Nakia as encoraja e as ajuda a fugirem. E apesar, de o coração
de Okoye não concordar com o ocorrido, sua lealdade a quem quer que esteja no trono
prevalece e ela não ajudara Nakia a destronar Killmonger e a salvar o país de um alguém
que acabou de chegar, mesmo que ele tenha sangue real; e nesse momento Nakia admite
que amava T’Challa. Antes de fugir ao encontro da rainha-mãe e Shuri, ela leva o agente
Ross junta a elas e retorna e afana uma erva de coração, que traz consigo na fuga. Juntas
foram buscar abrigo e ajuda do chefe da tribo Jabari, M’Baku. Antes que chegassem lá a
rainha-mãe pede que Nakia ingira a planta, mas a mesma se nega, visto que ela se diz
uma espiã sem exercito e que por isso, não teria chances de resgatar o país.

Estando no poder Killmonger quer vencer os colonizadores, que tem oprimido por tanto
tempo seus “irmãos”, explica que Wakanda já tem cães de guerra (espiões) infiltrados
mundo a fora, e que eles receberão armas de vibranium para ajudar nessa empreitada,
entregando armas aos oprimidos, assim eles poderão se rebelar e matar os que estão no
poder. E dessa forma, Killmonger diz: “É hora deles saberem a verdade sobre nós. Somos
guerreiros! O mundo terá um novo começo e, dessa vez, nós estamos no comando. O sol
nunca vai se pôr no império Wakandano” (PANTERA Negra. Direção de Ryan Coogler.
Estados Unidos: Disney/Buena Vista, 2018. Digital. (90 min.)).

Com isso, se instaura discussão interna sobre esse procedimento que vai contra a tradição
de Wakanda deixando a General Okoye que concorda com isso contra o marido W’Kabi
guerreiro da tribo da Fronteira, que apoia o pensamento inovar de Killmonger e que quer

515
que os Wakandanos sejam conhecidos na História por estar do lado dos conquistadores e
não dos conquistados.

Na tribo Jabari, como era imaginado o líder M’Baku nega ajuda, mesmo lhe tendo sido
oferecido a erva de coração, não deixando o branco – agente Ross – dirigir a palavra por
respeito a eles. Na sequencia surpreende a todos mostrando que resgataram sem querer o
corpo de T’Challa que estava entre a vida e a morte, e Nakia entrega a erva de coração a
ele, em tentativa de trazê-lo de volta a vida, fazendo o ritual espiritual. Nesse encontro
com o pai, este diz que está na hora dele se reunirem novamente. Mas T’Challa o
questiona por sua escolha de ter abandonado seu primo, e diz que ele errou e que todos
os seus antepassados erraram ao darem as costas pro resto do mundo:

“Deixamos o medo de nos descobrirem impedir que fizéssemos o que é


certo! Não mais! Não posso ficar aqui com você. Não posso ficar em
paz enquanto ele estiver no trono. Ele é um monstro que nós mesmos
criamos. Tenho que recuperar o manto. Eu tenho! Tenho que corrigir
esses erros.” (PANTERA Negra. Direção de Ryan Coogler. Estados
Unidos: Disney/Buena Vista, 2018. Digital. (97-98 min.)).

Havendo um resultado positivo na tentativa, o príncipe T’Challa volta a vida e conversam


sobre o perigo de Killmonger estar no poder. Querendo que sua mãe, sua irmã e Nakia
saiam de Wakanda enquanto ele termina o desafio de combate, mas é convencido de que
precisa da ajuda de Shuri e Nakia, e o agente Ross se prontifica em ajudar também. Após,
tem conversa séria com o líder M’Baku, em que este diz que pagou sua dívida de vida
com ele, pois salvou sua vida, T’Challa pede que ele proteja sua mãe e pede para que ele
e sua tribo os ajudem a reaver Wakanda, que foi negada e o primeiro pedido aceito. E
explica como eles são um só e que ele e seu povo estarão em perigo no caso de derrota
deles, e que ele não tem culpa dos erros dos outros reis; e ainda assim a ajuda lhe foi
momentaneamente negada.

Shuri, Nakia, Agente Ross e T’Challa voltam a Wakanda. O príncipe pede que o desafio
seja completado uma vez que ele nem morreu e nem se rendeu, mas Killmonger não
concorda. W’Kabi guerreiro da tribo da Fronteira novamente entra em confronto de ideias
com sua esposa a General Okoye, e acaba seguindo o então rei Killmonger e o exercito
das Dora-Milaje comandado por Okoye defende o príncipe T’Challa.

Uma grande luta começa entre os wakandanos com diferentes frentes e apesar de estarem
em menores números o lado de T’Challa alcança um bom resultado. Contudo, com a

516
chegada de grandes rinocerontes afetados por vibranium a situação se complica do lado
de Killmonger pela tribo da Fronteira. T’Challa vendo Killmonger na iminência de matar
sua irmã, vai ao encontro dele para salvá-la e ambos caem no depósito de vibranium e
começam luta entre eles. Enquanto isso, na parte superior os aliados de T’Challa estão
quase perdendo quando recebem ajuda da tribo Jabari. W’Kabi cavalgando um dos
rinocerontes vai correndo ao encontro de M’Banku (líder da tribo Jabari), mas é
surpreendido pela aparição de Okoye bem na frente do rinoceronte que a reconhece e lhe
dá afagos. No momento seguinte pede que ele se renda, e W’Kabi pergunta se ela, seu
amor teria coragem de lhe matar, e Okoye sua esposa diz que por Wakanda sim e com
isso, ele se rende e sua tribo se rende também.

Enquanto isso, em manobra arriscada T’Challa atinge gravemente Killmonger, e por


desejo dele o leva para ver o por de sol de Wakanda que segundo seu falecido pai é o
mais bonito do mundo; e o oferece cura com a tecnologia do vibranium. Entretanto,
Killmonger prefere ser queimado e jogado no mar junto com seus “ancestrais que
pulavam dos navios. Pois sabiam que a morte era melhor do que a prisão.” (PANTERA
Negra. Direção de Ryan Coogler. Estados Unidos: Disney/Buena Vista, 2018. Digital.
(118 min.)).

Com isso, tudo volta ao normal e T’Challa reassume seu posto de rei, e agradece toda a
ajuda de Nakia e ela finalmente aceita o pedido do rei que permaneça no país sabendo
que terá uma forma de seguir ajudando o próximo. Despois leva Shuri para California
aonde o pai deles matou o tio e mostra onde será construído o primeiro Centro de Ajuda
Internacional Wakandano e que Nakia será responsável pela parte de assistência social e
Shuri a troca de informações e ciência.

Após a exibição dos créditos o longa-metragem mostra uma passagem dos integrantes de
Wakanda na Austria, no escritório das Nações Unidas, comunicando o fato inusitado de
pela primeira vez na história do país, eles estarão compartilhando os recursos e
conhecimentos da nação com o mundo exterior, e diz:

“Wakanda não observará mais das sombras. Não podemos. Não


devemos. Trabalharemos para sermos um exemplo de como nós como
irmãos e irmãs nesta terra devemos tratar uns aos outros. Agora, mais
do que nunca as ilusões de divisão ameaçam nossa própria existência.
Nós todos sabemos a verdade. Há mais coisas que nos conectam do que
nos separam. Mas em tempos de crise os sábios constroem pontes
enquanto os tolos constroem barreiras. Devemos encontrar uma forma
517
de cuidarmos uns dos outros como se fossemos uma única tribo.
PANTERA Negra. Direção de Ryan Coogler. Estados Unidos:
Disney/Buena Vista, 2018. Digital. (125-126 min.).
E quando questionado do que um uma nação fazendeira poderia oferecer ao mundo, o
filme acaba com ele dando uma risada sarcástica.

3. Racismo

O racismo tão presente em nações como Estados Unidos e Brasil, bem como em tantas
outras, é um assunto que precisa ser tratado para que haja uma maior conscientização
sobre o tema.

No passado o racismo era tido como algo individual, sendo apenas uma ação de um
individuo contra outro; passando a ser visto como institucional, sendo parte das
organizações hegemónicas e por isso, algo “normal”; até chegar na teoria de Almeida do
racismo estrutural.

Mas antes disso, baseado em Almeida, é necessário lembrar que antigamente não se
faziam distinção de raças até o século XV, e a partir do século XVI com a cultura
renascentista se constrói através da filosofia o homem universal, que é baseado no
europeu e dessa forma, deixa todos os outros que povos que não sejam eles como menos
evoluídos. Fato esse, que foi de certa forma piorado com o colonialismo, deixando espaço
para criações das famigeradas teorias raciais.

No Brasil, conforme menciona Ortiz, elas ganharam espaço com os nossos primeiros
cientistas socias Nina Rodrigues, Silvio Romero e Euclides da Cunha. Sendo utilizadas
para justificar a não evolução do brasileiro baseado no clima e em especial pela presença
dos negros que se faziam inferiores e atrapalhavam o desenvolvimento do país.

No início do século XX as teorias raciais perderam força na Europa tornando se obsoletas,


mas persistindo no Brasil. E:

Ainda que hoje seja quase um lugar comum a afirmação de que a


antropologia surgida no início do século XX e a biologia –
especialmente a partir do sequenciamento do genoma – tenham há
muito demonstrado que não existem diferenças biológicas ou culturais
que justifiquem um tratamento discriminatório entre seres humanos, o
fato é que a noção de raça ainda é um fator político importante, utilizado

518
para naturalizar desigualdades, justificar segregação e o genocídio de
grupos socialmente considerados minoritários. (ALMEIDA, 2018; 24)

Mas considero que esse fato não se valha apenas para o Brasil, uma vez que em 2001 em
Durban aconteceu a Conferencia Mundial contra o Racismo, Discriminação Racial,
Xenofobia e Intolerância Correlata; organizado pela ONU, que determina que todos os
tipos de teorias raciais, formas de racismos, preconceitos e conceitos que impliquem a
inferioridade de todos os tipos de minorias sociais ao qual os negros fazem parte, sejam
abolidas. Tendo sido montada uma plataforma de ação para de forma geral a desigualdade
seja evitada.

Bom, ainda segundo Almeida, como o racismo ainda se faz presente no momento atual
e faz parte das instituições que estão no poder, e estas são ligadas a ordem de poder que
precisam manter e com isso, “as instituições são racistas porque a sociedade é
racista”(ALMEIDA, 2018; 36) e por isso, faz parte da estrutura das sociedades, variando
de acordo com cada formação social. E:

Em resumo: o racismo é uma decorrência da própria estrutura social, ou


seja, do modo “normal” com que se constituem as relações políticas,
económicas, jurídicas e até familiares, não sendo uma patologia social
e nem um arranjo institucional. O racismo é estrutural.
Comportamentos individuais e processos institucionais são derivados
de uma sociedade cujo racismo é regra e não exceção. O racismo é parte
de um processo social que ‘ocorre pelas costas dos indivíduos e lhes
parece legado pela tradição’2. Nesse caso, além de medidas que coíbam
o racismo individual e institucionalmente, torna-se imperativo refletir
sobre mudanças profundas nas relações sociais, políticas e económicas”
(ALMEIDA, 2018; 38).

4. Estudo da Estrutura do Filme e de Alguns Personagens

O filme tem como diretor Ryan Coogler que é negro norte americano, e consegue fazer
um longa-metragem hollywoodiano de sucesso que tem como personagens principais
africanos, mostrando todos os aspectos culturais com vestimentas, rituais, respeito a
ancestralidade, música e fala, ao mesmo tempo que constrói uma nação inteligente,

2 Aqui o autor parafraseou Marx “quando este afirma que “[...] as diferentes proporções em que os diferentes

tipos de trabalho são reduzidos ao trabalho simples como sua unidade de medida são determinadas por meio de um
processo social que ocorre pelas costas dos produtores e lhes parecem, assim, ter sido legadas pela tradição”. MARX,
Karl. O Capital: crítica da economia politica. São Paulo: Boitempo, 2013. V. 1. (ALMEIDA, 2018; 168)
519
desenvolvida e tecnológica. Dessa forma, não rejeita sua negritude e fala a língua do
colonizador, indo contra ao pensamento de Fanon que diz que:

Todo povo colonizado — isto é, todo povo no seio do qual nasceu um


complexo de inferioridade devido ao sepultamento de sua originalidade
cultural — toma posição diante da linguagem da nação civilizadora, isto
é, da cultura metropolitana. Quanto mais assimilar os valores culturais
da metrópole, mais o colonizado escapará da sua selva. Quanto mais ele
rejeitar sua negridão, seu mato, mais branco será. (FANON, 2008; 34)
Aqui tomo como linguagem não só a língua falada do colonizador, mas também a
linguagem cinematográfica do mesmo. Além disso, mostra situações em que os negros
não estão fazendo papel de oprimidos e por isso, estão escrevendo a sua própria história,
são sujeitos. O filme na visão de Kilomba pode ser considerado um ato político, uma vez
que está sendo dada voz e subjetividade ao povo negro.

O filme também mostra em alguns momentos como os africanos são vistos e de certo
forma, os negros de forma geral, quando o personagem Ulysses Klaue chama os
wakandanos de selvagens e que por isso, não merecem ter posso do vibranium.

O longa-metragem demonstra o tempo todo mulheres fortes, independentes e de igual


importância que os homens. Apesar de o personagem principal ser T’Challa que
personifica o Pantera Negra, existem outras três personagens femininas que são tão
importantes quanto ele na trama: Okoye – General e chefe da guarda do rei (as Dora-
Minaje) -, a princesa Shuri - chefe do departamento de tecnologia de Wakanda - e Nakia
-espiã, e guerreira escolhida da tribo do Rio. Além de ter, a defesa do rei composta por
mulheres, as Dora-Milaje e não por homens, que ainda é a forma tradicional apresentada
na sociedade atual – quando se pensa em exército e força, essa imagem é ligada aos
homens, como é possível perceber nos filmes: O resgate do Soldado Ryan (1998),
Dunkirk (2017), Até o último homem (2016) e Fúria em alto mar (2018). Sem contar que
por exemplo no Brasil o alistamento militar é obrigatório para o género masculino quando
completa 18 anos3.

Mas o filme vai além, quando Nakia ex-namorada de T’Challa e ainda apaixonada pelo
mesmo, escolhe seguir sua vontade de ajudar o próximo em suas missões como espiã; ao

3BRASIL. Lei no 4.375, de 17 de agosto de 1964 que decreta e sanciona a Natureza, Obrigatoriedade e Duração do
Serviço Militar no Brasil. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccIVIL_03/LEIS/L4375.htm>. Acesso em:
27/10/2018.
520
invés de ficar em sua terra natal ao lado do príncipe. Fato que só muda no final da pelicula,
após quase morte do personagem e quando este consegue encontrar uma função para
Nakia permanecer no país e ao mesmo tempo seguir ajudando a quem precisa e vive fora
de Wakanda, sendo responsável pelo departamento de assistência social do primeiro
Centro de Ajuda Internacional Wakandano.

E segue em algumas divergências dos irmãos, como por exemplo quando Shuri
desenvolve um uniforme novo, superior ao anterior criado por T’Challa. Este a princípio,
não vê necessidade para aprimorar algo que já funciona, contudo, ele não se nega a testar
o uniforme novo criado pela irmã. E após uso, faz a troca no uso dos uniformes ao
perceber que desenvolvido pela irmã era melhor que o dele sem relutância alguma.

E ainda expondo uma situação crucial de confrontos de ideias entre Okoye e seu marido
W’Kabi (guerreiro da tribo da Fronteira) na batalha final de T’Challa versus Killmonger
pelo trono. Em que ela luta pelo que acha certo, apoiar T’Challa para terminar o ritual de
combate ao trono, uma vez que como o príncipe não faleceu e nem pediu clemencia, o
ritual não foi terminado. Enquanto seu marido apoia a permanência de Killmonger no
trono sem que haja a finalização do ritual. Com isso, marido e mulher lutam de lados
opostos, até que chega o momento em que Okyea pede que W’Kabi largue sua arma,
estando disposta a matá-lo para defender o reino de Wakanda.

Foram citados apenas alguns momentos em que é possível perceber a força, a liberdade e
a igualdade da mulher perante o homem, entretanto, restam mais tantos outros exemplos
que demonstram esse feito.

A representação da imagem das mulheres negras nesse filme não mostra as mesmas como
inferiores. Daves (2016), explana a respeito do advento do maquinário industrial que
trouxe a ideologia da feminilidade e deixou as mulheres (brancas) aprisionadas a
economia doméstica, ou seja, excluídas da vida pública; e por isso, inferiores aos homens.
Entretanto, as personagens possuem traços que segundo a autora foram possíveis nos
Estados Unidos em função da escravidão:

Os arranjos econômicos da escravidão contradiziam os papéis sexuais


hierárquicos incorporados na nova ideologia. Em consequência disso,
as relações homem-mulher no interior da comunidade escrava não
podiam corresponder aos padrões da ideologia dominante” (DAVES,
2016; 25)

521
A autora menciona isso, porque as mulheres escravas eram tratadas da mesma forma que
os homens, recebendo o mesmo trabalho pesado, punição e tendo os mesmos atos de
resistência que os homens, não havendo exceção nem para o período de gravidez. E ainda
tendo o agravante da exploração sexual. Além disso, as tarefas domésticas eram
importantes na vida social de escravas e escravos, sendo que nesse momento:

Podiam vivenciar verdadeiramente suas experiências como seres


humanos. Por isso – e porque, assim como seus companheiros, também
eram trabalhadoras -, as mulheres negras não eram diminuídas por suas
funções domésticas, tal qual acontecia com as mulheres brancas. Ao
contrário dessas, aquelas não podiam ser tratadas como meras ‘donas
de casa’. Daí a afirmar, porém, que, por causa disso, elas dominavam
seus homens é basicamente distorcer a realidade da vida sob a
escravidão. (DAVES, 2016; 29).
Contudo, é um tanto extraordinário, que em um filme que valide em vários momentos a
igualdade entre homens e mulheres, apenas mostre a ancestralidade por parte paterna e
exclusivamente na apresentação de personagens masculinos. Como por exemplo: Zuri,
filho de Badu ou N’Jobu, filho de Azzuri. Mas quando faz essa apresentação demonstra
respeito a ancestralidade, que é mais uma característica do filme.

Esse respeito é possível ser notado no ritual espiritual da toma da erva de coração, que o
rei que está assumindo o poder tem um encontro com seus ancestrais e recebe uma
mensagem de um deles. E também quando mostra que os líderes das tribos no geral são
em sua maioria idosos.

E além de todos esses fatos, mostra o ideal de união entre as nações em cena final pós
créditos quando T’Challa fala a outros povos nas Nações Unidas, que pode ser um
exemplo para a vida real e mostra que apesar do filme ter o negro e sua história em papel
de destaque, ele não quer ser superior ao branco, apenas ser tratado de forma igualitária.

5. Considerações Finais
O longa-metragem é inspirador para a sociedade atual em vários sentidos: ele mostra os
negros como sendo importantes e em papel igualitário que os brancos, sendo exemplo de
emponderamento para negros mundo a fora, sendo ferramenta para ensinar aos brancos
mesmo que inconscientemente que os negros não são inferiores a eles, mostrando que as
mulheres não são inferiores aos homens, passando a mensagem de união das nações, e
dando exemplo de que os ancestrais são importantes e devem ser respeitados. Além disso,

522
pode ser uma ferramenta potente ao combate ao racismo e claro, deixa espaço para
diversos outros tipos de analises e recortes

Referências bibliográficas

ALMEIDA. Silvio Luiz de. O que é racismo estrutural?. Belo Horizonte: Letramento, 2018.

CAPITÃO América: Guerra civil. Direção de Anthony Russo e Joe Russo. Estados Unidos:
Disney/Buena Vista, 2016. Digital. (146 min.)
DAVES, Angela. Mulheres, raça e classe. CANDIANI, Heci Regina. 1. Ed. São Paulo:
Boitempo, 2016.
______. Mulheres, cultura e política. CANDIANI, Heci Regina. 1. Ed. São Paulo: Boitempo,
2017.
Declaração e Programa de Ação adotados na III Conferência Mundial de Combate ao Racismo,
Discriminação Racial, Discriminação Racial, Xenofobia e Intolerância Correlata. Disponível em:
<
https://www.oas.org/dil/port/2001%20Declara%C3%A7%C3%A3o%20e%20Programa%20de
%20A%C3%A7%C3%A3o%20adotado%20pela%20Terceira%20Confer%C3%AAncia%20Mu
ndial%20contra%20o%20Racismo,%20Discrimina%C3%A7%C3%A3o%20Racial,%20Xenofo
bia%20e%20Formas%20Conexas%20de%20Intoler%C3%A2ncia.pdf >. Acesso em:
06//7/2018.
FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. SILVEIRA, Renato da. Salvador: EDUFBA,
2008.
KILOMBA, Grada. Plantantions Memories: Episodes of everyday racism. Alemanha: Unrast,
2016.
LOPES, Romildo Sergio. Representação da identidade negra nas histórias em quadrinhos. In:
XVII Congresso de Ciências da Comunicação na Região Sudeste, 2012, Ouro Preto. Anais
eletrônicos. Disponível em:<
http://www.intercom.org.br/papers/regionais/sudeste2012/resumos/R33-0769-1.pdf >. Acesso
em: 27/10/2018.
ORTIZ, Renato. Cultura Brasileira & Identidade Nacional. 5 a edição. 13 a reimpressão (2011).
São Paulo: Editora e Livraria Brasiliense, 2006.
PANTERA Negra. Direção de Ryan Coogler. Estados Unidos: Disney/Buena Vista, 2018. Digital.
(135 min.).

523
SESSÃO

RODADAS DE PROJETOS
Sessão - Rodada de Projetos

Nesta sessão, publicamos os resumos dos participantes das Rodadas de


Projetos, uma atividade onde os autores proponentes, um roteirista e um
docente se encontram para discutir as propostas apresentadas, com o
propósito de dar impulso às criações, a tirar dúvidas, à exposição para testar
os respectivos projetos. Os projetos podem ser de qualquer formato, duração,
gênero, estilo e veiculação.

1_Sessão de RESUMOS EXPANDIDOS

O Segundo Gênese - Tratado dos Manequins


Agnan Siqueira de Oliveira
e-mail: agnansiqueira@usp.br; agnanutfpr@hotmail.com
Filme
Experimental
Sinopse: O roteiro foi criado em processo colaborativo* pelo núcleo fixo do Laboratório
de Interpretação para Audiovisual (LABINT), da Universidade Estadual do Paraná
(UNESPAR), que tem idealização e direção artística de Agnan Siqueira e coordenação de
Salete Machado. A pesquisa do grupo foi dividida em dois momentos:
2017
Durante o ano de 2017, dedicamos nossos esforços a compreensão dos mecanismos
básicos de criação do ator, privilegiando procedimentos que permitissem tanto ao elenco
quanto a equipe técnica um papel ativo na construção do roteiro, envolvendo o estudo de
mecanismos dramatúrgicos da tradição teatral e cinematográfica e sua relação com
diferentes registros interpretativos presentes na produção contemporânea.
2018
Em 2018, damos continuidade a essa pesquisa a partir do roteiro de média-metragem “O
Segundo Gênese – Tratado dos Manequins”, tendo como recorte a relação da
interpretação com os demais elementos da encenação, assim como as práticas em set de
filmagem.

* O processo colaborativo é um modo de criação oriundo das Artes Cênicas que tem por
premissas principais a criação de material cênico a partir das proposições de todos os
criadores, prezando por uma relação de maior horizontalidade e contaminação entre as
diversas funções. O principal representante dessa vertente no teatro brasileiro é o grupo
paulista Teatro da Vertigem.
O Segundo Gênese – Tratado dos Manequins é um conto de fadas contemporâneo
livremente inspirado no romance “Lojas de Canela” do romancista polonês Bruno Schulz.
A narrativa se passa em Curitiba, no ano de 2014, e apresenta uma família judia
tradicional que tem seu cotidiano modificado por acontecimentos que transitam entre a
realidade social e política do país e um mundo fantasioso retratado pelos olhos de Bruno,
o filho mais velho. Gradativamente, conforme Bruno e sua irmã mais nova Romana vão
descobrindo o que existe para além dos portões de sua casa, diferentes momentos da
narrativa do povo Judeu vão se sobrepondo aos acontecimentos cotidianos da família de

525
forma a alimentar a saga em busca da conservação da memória, única alternativa viável
para impedir o processo de repetição da história.

O Segundo Gênese: colaboração e pesquisa de linguagem no


Laboratório de Interpretação para Audiovisual

Agnan Siqueira1

Os ensaios do Laboratório de Interpretação para Audiovisual da Universidade


Estadual do Paraná (LABINT – UNESPAR), iniciaram em abril de 2017, no barracão do
Campus de Curitiba II da UNESPAR. A proposta objetivava uma subversão completa
daquilo que comumente se aprende como o fluxo criativo cinematográfico em que o
roteiro é escrito antes das outras etapas de criação e geralmente é feito por uma única
pessoa. Entramos em sala de ensaio; atores, técnicos e diretor, sem saber qual era o filme
que gravaríamos, tendo como única premissa a vontade de constituir um grupo que
pudesse pensar o seu fazer artístico de forma coletiva e horizontal. O processo criativo
teve como disparador inicial duas cartas escritas por mim para toda a equipe. Na primeira,
estava transcrito a mão um trecho do capítulo “Tratado dos Manequins ou O Segundo
Gênese” do romance Lojas de Canela do autor polonês Bruno Schulz. A segunda carta
trazia uma mensagem criptografada que, após ser decodificada, levava para diferentes
notícias na internet relativas ao caso do “Menino do Acre” que correu os meios de
comunicação no início de 2017. Após a entrega de cada carta cada integrante do grupo
foi convidado a apresentar um material individual que funcionasse como resposta àquilo
que os textos haviam despertado neles. O objetivo era que cada participante se
posicionasse livremente acerca do material textual das cartas em diferentes suportes
artísticos. Assim, gradativamente passamos a nos conhecer através dos exercícios práticos
de interpretação e das cenas individuais que iam sendo transformadas semana após
semana a partir do feedback coletivo.
Do trabalho sobre as cenas individuais, surgiu um conjunto de materiais que
incluíam todos os aspectos da produção cinematográfica (texto, iluminação, sonoplastia,
figurino, cenografia e diferentes tipos de interpretação...), e que apontava para uma série
de temáticas que poderiam começar a estruturar o argumento do filme. De modo a

1 Bacharel em Artes Cênicas pela Universidade Estadual do Paraná (UNESPAR), onde também cursa o Bacharelado
em Cinema e Audiovisual. É mestrando no Programa de Pós-graduação em Artes Cênicas (PPGAC) da Universidade
de São Paulo (USP) e Idealizador e Diretor Artístico do Laboratório de Interpretação para Audiovisual da Universidade
Estadual do Paraná (LABINT – UNESPAR).

526
aprofundar a pesquisa sobre esses temas, realizamos em junho de 2017 o “Ciclo de
Palestras Filosofia e Criação”, onde pesquisadores vinculados ao departamento de
Filosofia da Universidade Federal do Paraná (UFPR) discorreram sobre conceitos chaves
da filosofia contemporânea que dialogavam com o material que havia sido gestado em
sala de ensaio. As palestras serviram para embasar uma segunda fase do processo, onde
as cenas solo produzidas anteriormente começaram a se reconfigurar por sucessivas
improvisações, sempre atentando para todos os elementos do tripé interpretação,
dramaturgia e encenação de forma conjunta. Todas as escolhas relativas a seleção do
material que seria aprofundado e do material que seria descartado foram feitas de forma
coletiva, sendo que a minha direção buscava apontar sempre os motivos pelos quais uma
opção estética estava sendo realizada. Nesse sentido, o processo criativo passou muitas
vezes por procedimentos pedagógicos, já que, se fazia necessário introduzir o grupo em
um repertório diferenciado do realismo psicológico, por exemplo. A análise de filmes em
seus aspectos formais (e não só narrativos), a leitura de textos relativos a estilos
dramatúrgicos e o trabalho fora da sala de ensaio, como visitas ao Museu do Holocausto
de Curitiba e improvisações gravadas em locação permearam a última fase do processo
de escrita.
Desse processo de investigação coletiva de linguagem resultou o roteiro de média
metragem O Segundo Gênese – Tratado dos Manequins, finalizado em março de 2018.
O grupo então abriu inscrições para o ingresso de novos participantes que, divididos em
equipes (arte, som, fotografia, direção...) integram uma nova fase da pesquisa relativa a
elaboração mais precisa dos elementos da encenação, como figurino, cenografia,
decupagem e edição, que permitirá que a obra seja gravada e finalizada, sempre no
registro da pesquisa de linguagem que tem por base o fazer artístico compartilhado.

Anexos

527
1° e 2° disparadores – Cartas enviadas pelo diretor
aos membros do elenco e equipe técnica

Cartaz de divulgação das


atividades LABINT 2017

Quebra-cabeça apresentado como Cartaz de divulgação do Ciclo de


resposta a 2ª carta – disparador Palestras “Filosofia e Criação”

528
Núcleo Fixo do LABINT junto ao palestrante Romano Zattoni no Ciclo de Palestras Filosofia
e Criação. Da esquerda para a direita: (Superior) Johann Amaral, Agnan Siqueira, Romano
Zattoni, Bernardo Schaffer, Mariana Dantas (Inferior), Lucca Lemos, Bruna Cason e Bárbara
Coghi. Foto: Gui Morilha

Cartaz de divulgação das atividades


LABINT 2018

529
2_Sessão de RESUMOS SUBMETIDOS
para participação nas rodadas

“A CASA” – webserie documental realizada com celulares


Rosângela Fachel de Medeiros e Alexsandro Funck Ramires
e-mail rosangelafachel@gmail.com; fachel@uri.edu.br
Websérie Documentário
Realização com celular: captação de imagens realizada por alunos de graduação em
fotojornalismo e por moradores de rua
Resumo:
Contar e mostrar a história das “casas” criadas e habitadas por moradores de rua na cidade
de Porto Alegre é o grande propósito desse projeto. WebSerie Documental “A Casa”,
realizada por meio de celulares, será produzida, divulgada e gerida nas plataformas de
conteúdo audiovisual, por alunos da disciplina de Fotojornalismo, do curso de Jornalismo,
do Centro Universitário Metodista IPA, Porto Alegre, RS, sob a orientação dos
professores que criaram e coordenam o projeto. O trabalho de criação dessa narrativa
episódica será imersivo narrativo, com profundidade, apurando os fatos, mas com
tratamento e linguagem imagética documental. A proposta principal de construção da
narrativa é imbricar imagens (vídeos e fotos) captadas por estudantes e imagens captadas
próprios moradores das casas, processo que será realizado pelos alunos na edição. Se por
um lado o projeto quer instigar um olhar atentivo sobre um grave problema social, por
outro, ele busca adentrar as histórias sem ideais socioculturais e estéticos preconcebidos.
Além da realização e divulgação, o projeto se preocupa como gerenciamento do conteúdo
e tem como objetivo a derivação transmidiática da discussão apresentada pela webserie
por meio de outras mídias e linguagens. A perspectiva transmidiática do projeto promove
sua expansão transdisciplinar, surgindo como um fio condutor de interação e integração
entre outras disciplinas e cursos.

"ATROFIA"
Wllyssys Wolfgang Reis Dias Araujo e Geisla Fernandes
e-mail: contato@wwfilmes.com.br; wllyssys@hotmail.com
Minissérie
Ficção/ suspense/ terror
Resumo:
"Atrofia" se passa num futuro distópico, num mundo pós-apocalíptico, habitado por dois
tipos de seres humanos: os atrofiados, que perderam os órgãos do sentido (tato, paladar e
olfato), e os humanos que se mantêm normal. Não há mais a estrutura social como a
conhecemos hoje em dia e uma luta para sobreviver. Os atrofiados estão cada vez mais
animalizados, com instinto apenas de caça, como uma onça, que busca apenas se
alimentar pra sobreviver. Neste turbilhão, outros seres humanos podem virar comida. O
foco está nas relações humanas estabelecidas a partir do zero, num mundo destruído, sem
leis. Os personagens lembram perfis conhecidos em nossa sociedade, mas com a dose do
desconforto ao qual são submetidos nesse novo mundo. A minissérie "Atrofia" teve seu
desenvolvimento e o piloto financiados pelo 10º Edital Audiovisual do
Funcultura/Fundarpe e deverá ser rodada totalmente na caatinga, bioma único no mundo,
preenchido predominantemente por plantas retorcidas, secas e atrofiadas, como os
personagens principais da trama.

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“A TELA MÁGICA”
Camila Souto Camargo de Almeida
e-mail: camila_souto@outlook.com; camisouto@gmail.com
Série infantil
Ficção/ Aventura
Resumo:
Nina é uma menina inteligente e esperta, que adora aventuras. Quando chegam as férias
escolares, ela não tem onde ficar e é obrigada a acompanhar o irmão Raul em seu trabalho
no Cine Odeon, um decadente cinema de rua. Lá, ela descobre um segredo: no cinema,
há uma tela mágica que traz à vida mulheres extraordinárias que fizeram história. Com
sérios problemas financeiros, o cinema está prestes a ser vendido, mas Nina está decidida
a impedir que isso aconteça. Com a ajuda de mulheres extraordinárias como a pintora
Frida Kahlo, a matemática Ada Lovelace, a aviadora Amelia Earhart, a juíza Maria Rita
Soares, a soldada Maria Quitéria e a compositora Chiquinha Gonzaga, ela embarcará
numa grande missão para manter o cinema funcionando.

“BIBELÔ E BILISQUETE”
Carolina Amaral
e-mail: carolinaoamaral@gmail.com
Filme de longa metragem
Comédia Romântica
Resumo:
O filme se passa nos dias atuais, mas têm uma atmosfera de screwball comedy
Bibelô e Bilisquete é uma comédia romântica que une Tito e Kelly. Tito é de uma família
de golpistas, mas não tem muito talento para seguir a tradição familiar. Seu único talento
é penetrar festas sem ser percebido. Kelly é uma menina do interior, inocente e cheia de
sonhos, que veio para o Rio de Janeiro para tentar casar com algum ricaço. Ela realmente
acredita que a felicidade só é possível com bastante dinheiro e por isso sonha com esse
casamento que traria uma mansão com um banheiro cheio de produtos de beleza e um
maquiador disponível todo o tempo para deixá-la linda. Seu nome completo é Grace
Kelly, escolhido pela mãe que sempre sonhou com um “conto de fadas” para a filha. Na
vida real, o mais perto que ela chega de ser uma princesa é quando faz bico em festas
infantis. Kelly é assistente de palco num programa de TV de variedades com sorteio
semanal. Kelly faz de tudo para chamar a atenção do patrocinador: o obscuro empresário
Carlo Limpini, um italiano que mora há 30 anos no Brasil. Envolvido com outros jogos
ilegais, Carlo usa o sorteio para lavagem de dinheiro e para onde vai, está cercado por
seguranças de terno. Kelly acha isso um charme.
No último golpe – um esquema envolvendo um tio corrupto funcionário público, um falso
doente, seu pai, e uma pensão vitalícia – Tito, que deveria apenas dirigir o carro, sem
querer, entregou todo plano para o policial à paisana. A polícia prendeu toda a quadrilha
graças à “denúncia” de Tito e a imprensa o transformou em herói momentâneo.
Por conta de sua fama meteórica de bom-moço, Tito é convidado para uma entrevista no
programa em que Kelly trabalha e lá eles se conhecem. Na entrevista, Tito tenta justificar
os atos da família, mas a apresentadora sempre interpreta como a história triste de um
menino bom, criado por criminosos. Sua intenção era limpar a barra com a família, mas
depois da entrevista todos os parentes se recusam a falar com ele. Para provar a eles que
não cometeu uma traição e que ainda tem jeito, Tito decide aplicar um grande golpe. E
para conseguir, ele precisará da ajuda de Kelly. O alvo: Carlo Limpini. Tito acredita ter

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criado o plano infalível, porque como diz seu pai: as pessoas são como cofres, você
precisa apenas descobrir a combinação certa para acessar.

MEMÓRIA IMPURA - O FILME


Roberto Gustavo Reiniger Neto
e-mail: roberto.reiniger@gmail.com; roberto@sinergiapublicidade.com.br
Tese de Doutorado / Roteiro de Longa-Metragem
Ficção / Experimental
Resumo:
Este roteiro faz parte de uma tese de doutorado em andamento na Universidade Anhembi
Morumbi que propõe uma metodologia alternativa para adaptação da literatura no roteiro
cinematográfico contemporâneo.
Apresentação: Houve um tempo em que um império, de uma época qualquer, fora
devastado por tempestades de areia. Seu poder, suas tradições e costumes próprios,
deixaram de ter qualquer função social. Aos que sobrevivem nestas cruéis condições, só
lhes restam realizar seus desejos mais íntimos, vindos de suas lembranças, de suas
memórias mais impuras.
Sinopse: Em frontes de batalhas épicas sempre há vencedores e perdedores. Impérios e
territórios são tomados. Homens são mortos ou escravizados pelo poder, por uma política
opressora. Mas e quando não há as preliminares destas condições? Quando o sofrimento
é omnipresente, o que fica do passado? O que fica da História? Memória Impura vai a
uma época qualquer, em um império devastado pelas forças da natureza, consumido por
intermitentes tempestades de areia. Um local desértico, com ínfimas condições de
sobrevivência; um império estagnado por anos, aonde o status social cedeu lugar à
anarquia do inconsciente coletivo.
Nesse império, não há mais nada a ser feito. Há apenas uma letargia que consome e corrói,
principalmente, nossos principais personagens: Lívia, Eucadímio, Failandes e Tarpeia.
Só lhes restam realizar os seus desejos mais íntimos, mais impuros, que carregam há tanto
tempo em suas memórias. Há quem diga que essas forças naturais, sejam neste império,
responsáveis por uma sinestesia epifânica, promotora de uma catarse que leva cada um a
simplesmente, sobreviver. Assim, normas, padrões, ou status sociais cedem espaço para
a busca incessante de respostas que até então eles não tinham solucionadas.
Todos têm a necessidade de agir, de se descobrirem e formarem-se enquanto sujeitos,
mesmo que sem rumo, mesmo que sem um futuro traçado. Aqui, aqueles que tem
memória impura não medem as consequências de seus atos. Agem. Sem medir as
consequências, ainda que tenham que tirar a própria vida, ou a vida de seus próximos.
Caberá a nós, espectadores, lidarmos com estes fatos, dos quais, não sairemos ilesos.
Levaremos como lembranças, que quando menos esperarmos, ecoarão em nossos nervos
do presente, como fatos que marcaram nossas histórias, como fatos que passaram por
nossas memórias. Ainda que guardados em nossos íntimos, como que encobertos por uma
devastadora tempestade de areia.

“OUVINDO IMAGENS: UMA EXPERIÊNCIA SONORA”


Klediógenes Fernandes Nóbrega
e-mail: dionobre@gmail.com; klediogenes@gmail.com
Webserie
Experimental
Vídeo Inclusivo

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Resumo: Em 1982 Agnès Varda, documentarista francesa, lançava no circuito televisivo
o primeiro de seus 170 ensaios cinematográficos da série “Une minute pour une image”.
Varda constatou como pode ser diferente o modo como cada um vê uma mesma
fotografia. Daí surgiu seu projeto: veicular uma foto por dia, sempre no mesmo canal, por
15 segundos silenciosos que precediam a descrição de um minuto feita por um convidado
desconhecido do público. Apenas ao final do vídeo, quando o telespectador já havia
considerado, reconsiderado ou desconsiderado o comentário anônimo, eram revelados os
autores da fotografia e da narração.
Inspirados por este experimental formato audiovisual e pela sensível capacidade
descritiva dessa série, criamos a webserie Ouvindo Imagens, em sua primeira temporada,
intitulada Mulheres do Brasil, com cinco episódios, a partir de fotografias feitas ao longo
de duas décadas. A webserie pode ser apreciada por pessoas com diferentes níveis de
capacidade visual, proporcionando a todos, uma experiência sonora baseada em um
elemento visual artístico.
Observando algumas fotografias por nós selecionadas, algumas feitas com máquinas
analógicas e outras com máquinas digitais, notamos em seus conteúdos a constante
presença de figuras femininas. Então criamos a primeira temporada da webserie com o
tema Mulheres do Brasil. Esse tema retrata suas histórias, suas emoções, algo muito além
de simples imagens de mulheres, mas um sentimento expresso através de sons, palavras,
um universo além dos traços, formas e cores das fotografias. Essa experiência sonora, a
partir de imagens, oportuniza aqueles que possuem algum nível de deficiência visual, a
possibilidade de ter contato com as artes visuais, apreciá-las, experimentá-las. E para
aqueles que não possuem níveis de tal deficiência, a webserie proporciona a percepção
visual através de uma linguagem sonora poética, semiótica. Uma imersão sensorial, com
palavras que nos despertam novas compreensões das imagens. Como se o texto sobre a
foto a desnudasse de uma cortina. A tornasse mais clara. Mais visível. Ou mais profunda
de sentidos.

“POST MORTEM”
Marcio Tadeu dos Santos
e-mail: marcio-tadeu@uol.com.br; marciotadeusantos@gmail.com
Série
Ficção seriada
Thriller psicológico com elementos de drama e suspense.
Resumo: Duas mulheres se juntam para caçar o homem que destruiu suas vidas, quando
a única sobrevivente dos ataques de um serial killer desperta do coma. O assassino recria
nas cenas de crime macabras fotografias do século XIX, conhecidas como post mortem.
Evanescência desperta do coma e reacende a esperança da arquivista Helena em conseguir
identificar o Assassino Post Mortem, que matou sua filha. Dez anos atrás, ele deixou a
cidade em alerta ao recriar nas cenas de seus crimes as mórbidas fotos antigas de post
mortem, um hábito macabro, mas muito comum no fim do século XIX e início do XX. O
criminoso sequestrava suas vítimas, matava e preparava os corpos para ficarem iguais às
fotografias que o inspiravam, que eram encontradas no local do crime ou enviadas à
polícia ou à imprensa.
Única sobrevivente de um dos últimos ataques, mas sem nenhuma lembrança do que
aconteceu ou de qualquer coisa de antes do coma que a manteve por uma década numa
cama, Eva quer reconstruir sua vida com a nova chance que ganhou. Mas não vai ser tão
simples, pois ela tem diante de si um dilema – ou se entrega ao recomeço, sem redescobrir
seu passado; ou ajuda a polícia e identificar o criminoso, sofrendo com fortes crises de

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pânico, que colocam sua sanidade mental em cheque.
Tudo piora ainda mais quando novos crimes voltam a acontecer. O Assassino Post
Mortem volta a atacar justamente quando Eva desperta para uma nova vida, o que levanta
mais suspeitas.
Ela não imagina que o criminoso se vê como um herói, seu salvador, que imortaliza suas
vítimas ao transformá-las em post mortem e assim as faz “transcender”. Para o Assassino
Post Mortem, ser uma de suas vítimas é um prêmio. Em sua mente distorcida, o que ele
faz na verdade "salva" as pessoas, que ganham a eternidade por serem transformadas.
Essa visão do assassino será contada aos poucos, embasada por seu próprio autor, o
psicoterapeuta Saulo, que não resiste à egotrip de falar sobre o que faz, mas sob o disfarce
de quem finge que está ajudando Eva e Mari em sua investigação informal. A mente por
trás dessas mortes considera que Eva é a sua musa, sua obra perfeita e ela sequer suspeita
que nem todos os que a cercam nesse recomeço falam a verdade. Eva pode estar vivendo
com o inimigo.

REDENÇÃO E CHUVA
João Pedro Marchi
e-mail: jpmarchi@hotmail.com
curta metragem
Ficção
Resumo: "Redenção e Chuva" é um roteiro de curta-metragem de baixo orçamento.
Sinopse: Gadanha, um jovem de origem humilde que perdera os pais durante a
adolescência, ingressa por meio de Jonas, seu irmão mais velho, no submundo do crime
organizado. Relutante, em meio a um trabalho que pode colocar seu futuro em risco, ele
reflete sobre a chuva ao mesmo tempo em que contempla suas escolhas do passado.

SEREIAS INVISÍVEIS (TRACING MERMAIDS)


Monica Toledo Silva
e-mail: bloop.monica@hotmail.com; monica1605@gmail.com
Video instalação
ficção, documentário, ensaio, arte, experimental.
Resumo
"Sereias invisíveis" é o projeto de uma video instalação em andamento que teve sua 1a
edição na residência artística Mudhouse, na ilha de Creta, na Grécia, em julho de 2018, e
que tem como características a coleta de materiais audiovisuais locais para a criação de
sonoridades e séries de pequenos videos de paisagens em fluxo que constituam um
imaginário site specific para a recriação de rotas realizadas por refugiadas em fuga. O
projeto tem início em São Paulo em 2016 durante estágio pós doutoral no PPGCOM da
UNIP, quando começo a investigar paisagens femininas na situação de refúgio e/ou no
contexto do nomadismo. "Tracing mermaids" teve início em Atenas, quando coletei
imagens de posters espalhados pela capital com ilustrações e fotos de mulheres com o
rosto coberto e/ou armadas, como sírias e palestinas; a coleta de imagens teve
continuidade na ilha de Kos - uma das principais rotas de chegada dos botes de refugiados
em fluxo desde a Líbia e Turquia - onde refiz trajetos imaginários realizados por elas
desde a Antiguidade, em ruínas helênicas, e por fim na ilha de Creta, em praias e trilhas
em montanhas. A impossibilidade de encontros presenciais com as refugiadas, visto sua
condição de invisibilidade e reclusão nos campos de refugiados, fez com que a evolução
da obra se desse de maneira intuitiva, corpórea, imaginária e performada.

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TÚNEIS DO TEMPO
Anderson Silva
e-mail: anderson_money@hotmail.com; anderson.riahcomicshop@gmail.com
Curta Metragem - Animação
Ficção
Ciclo da vida, Drama, familiar
Resumo:
Menina estava numa enrascada. Por sorte e mais uma vez, seu tio salva seu pescoço e
decide a levar para casa de carro. A menina rebelde não gosta de admitir, mas com o
tempo percebe que as ações do tio são de um pai que nunca existiu, um amante zeloso e
desiludido. A sacada é que após passarem da rua que a levaria pra casa, a cada túnel que
passa, a discussão permanece mas a fase da vida da garota avança, atribuindo aspectos no
seu discurso que aparenta ser o mesmo, porém reflete sua personalidade que vem sendo
moldada e lapidada conforme a vida passa. No último túnel ela está adulta e continua
falando, porém ela é quem está dirigindo e sozinha, desejando-o ao lado para continuar
esse percurso de anos de vida. Ao fazer o retorno, o efeito de passar pelo túnel inverte,
ficando novamente mais jovem, porém, se dando conta novamente na sua época o quanto
é grata por ter alguém como ele ao lado mas triste por não achar que conseguirá retornar
tal gesto. Mas isso não importa para o seu tio.

UTOPIAS DO PRESENTE
Márcio Henrique Melo de Andrade
e-mail: marcioh.andrade@gmail.com; marcioh.andrade@gmail.com
Série
Documentário
Resumo:
Pode a arte contribuir com a reabilitação de um sujeito encarcerado – em uma prisão, em
um manicômio ou em qualquer instituição que o afaste do convívio social? Será possível
liberdade criadora além dos limites impostos por essas instituições? Utopias do Presente
é uma série documental com 10 episódios de 24 minutos que acompanhará as narrativas
em torno de experimentos cênicos a partir de oficinas teatrais com grupos de sujeitos
(homens e mulheres) em instituições carcerárias e manicomiais, a fim de entender como
a criação de realidades imaginárias desvela ou contradiz trajetórias de vida marcadas por
diversas formas de violência – física, simbólica, psicológica etc. Utopia (ou+topos = lugar
que não existe) é o pensamento de que possa existir uma civilização ideal, fantástica e
imaginária. Assim como as salas de estar habitados por crianças se transformam, por
alguns momentos, em altíssimas torres em que princesas podem resgatar a si mesmas de
um vilanesco dragão, os espaços de convivência diária entre sujeitos encarcerados podem
abraçar a concepção de “espaços outros” que coabitam os ambientes “reais”. Em meio à
dura realidade dos sistemas prisional e manicomial, esses sujeitos podem criar para si
utopias em que não sejam sofredores e perpetradores de violências? A série possui como
temática principal a construção de ideias de direitos humanos e de violências sofridas e
reproduzidas por esses sujeitos, apresentando como dispositivo a realização de oficinas
de teatro com detentos e/ou detentas do sistema carcerário e manicomial de diversos
estados brasileiros. Nestas oficinas, arte/educadores realizarão exercícios de
improvisação de cenas surgidas a partir de histórias reais de opressão vivenciadas pelos
participantes dos grupos e debaterão sobre os desdobramentos éticos e estéticos dessas
narrativas. Enquanto que o programa piloto a ser produzido será uma compilação dos
personagens e histórias de vida que melhor condensam a complexidade de questões como

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violência e direitos humanos, pretende-se que, na temporada a ser articulada, cada um dos
episódios alterne os improvisos teatrais com depoimentos individuais dos participantes e
de outros entrevistados relacionadas às temáticas, de modo a permitir a análise das
variáveis que se relacionam aos imaginários da violência. A intenção é que estes
experimentos estéticos de teatro se configurem como disparadores de reflexões sobre as
imagens em torno dos direitos humanos e das possibilidades de resistência, ampliando e
diversificando as formas de visibilizar a violência e seu enfrentamento por meio do gesto
criativo teatral e, por sua vez, audiovisual.

3_Sessão de STORYLINE para participação nas Rodadas de Projetos


“DIVA”
Alexandre Bernardo Silva de Araújo Vicente
ale_araujo@globo.com
Filme
Ficção
Storyline:
Atriz decadente de teatro relembra sua carreira enquanto prepara seu retorno aos palcos.

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MEMÓRIAS

PROGRAMAÇÃO
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PALESTRAS
As palestras do evento têm um viés mais acadêmico, quanto às
abordagens dos temas a partir do conhecimento sistematizado e
aprofundado na área do palestrante.

Guilherme Ranoya
27/09/2018 14h00 Auditório RW

Construção narrativa por processos gráficos-visuais


LINK para o Currículo Lattes
LINK para o SITE do Autor

Letícia Passos Affini


Pelópidas Cypriano de Oliveira Pel
28/09/2018 14h00 Prédio 45
Artemídia e transmídia: histórias em metalinguagem
Link para Currículo Lattes (Letícia)
Link para Curriculo Lattes (Pelópidas)

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WORKSHOPS
“VIVÊNCIAS E EXPERIÊNCIAS”
O “Vivências e Experiências” é um momento especial em que
profissionais da área do roteiro e do audiovisual traz e compartilha suas
experiências com o público, numa conversa aberta.

Flávio Queiroz
27/09/2018 19h00 Auditório RW

Roteiro: expectativa X Realidade


"O papel aceita tudo. Mas a produção não! O caminho que as
palavras fazem das ideias até a tela é cheio de curvas, obstáculos e
surpresas. E nessa jornada, o mais criativo nem sempre é quem tem
a melhor sacada e, sim, aquele que se adapta melhor"

Com mais de 20 anos atuando em televisão, o roteirista Flavio Queiroz vai


relatar suas experiências na ficção, nos realities shows e até mesmo na
elaboração de novos projetos, mostrando como uma ideia pode ser afetada na
linha de produção do entretenimento. Para ele, tudo vira aprendizado. E existe
espaço para todo mundo. O segredo é encontrar a plataforma e as ferramentas
de roteiros que traduzam melhor seus objetivos e, a assim, transformar cada vez
mais a sua expectativa na sua realidade.
LINKEDIN: https://www.linkedin.com/in/flavio-queiroz-
5a88a0185/?originalSubdomain=br

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Marta Nehring
Matheus Colem
Organizado por

David Mendes
Fernanda Nardy Bellicieri

ABRA na 9ª edição
28/09/2018 19h00 Edifício João Calvino
Link para site de Marta Nehring: http://martanehring.com/

Link para ORIGINA CONTEÚDOS: https://originaconteudo.com.br/

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