F61 - Hannah Arendt-SLNH PDF

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Material de Apoio

Filosofia
Prof. Daniel Gomes

HANNAH ARENDT
Hannah Arendt (1906 – 1975) foi uma filósofa política alemã de origem judaica, uma das
mais influentes pensadoras do século XX. Orientada por Heidegger e, depois de um episódio
amoroso frustrado com o professor, por Karl Jaspers, iniciou sua carreira com um estudo sobre o
amor em Santo Agostinho. Em 1933 (ano da tomada do poder de Hitler) Arendt foi proibida de
escrever uma segunda dissertação que lhe daria o acesso ao ensino nas universidades alemãs por
causa da sua condição de judia. O seu crescente envolvimento com o sionismo levá-la-ia a colidir
com o antissemitismo do Terceiro Reich o que a conduziria a um campo de refugiados. Em 1941,
seguiu para os Estados Unidos, onde se tornou cidadã em 1951 e viveu até o fim da vida em
dezembro de 1975. O trabalho filosófico de Hannah Arendt abarca temas como a política, a
autoridade, o totalitarismo, a educação, a condição laboral, a violência, e a condição de mulher.

O seu primeiro livro "As origens do totalitarismo" (1951), lançado aos 45 anos de idade,
consolida o seu prestígio como uma das figuras maiores do pensamento político ocidental. O título
inicial do livro era Os Três Pilares do Inferno: antissemitismo, imperialismo e racismo, este último
depois incorporado à parte relativa ao imperialismo. O objetivo do livro era mostrar os elementos
subterrâneos que se cristalizam em uma nova forma de governo, o totalitarismo.

Para ela, é um erro acreditar que o antissemitismo moderno liga-se exclusivamente ao


passado de exclusão cristã: trata-se, agora de uma ideologia “laica”, política, ligada a uma época em
que os judeus tornam-se minorias nas fronteiras bem definidas de Estados nação. Se, no século
XVIII, os judeus financiaram a expansão do Estado, no século XIX imperialista, foram vistos como
portadores de uma riqueza “inútil”, nem produtiva, nem poderosa, que não se traduz como poder
político. Eles eram o único grupo étnico da Europa sem uma região onde fossem maioria. No século
XIX, o primeiro-ministro da rainha Vitória, Benjamin Disraeli, já acusava os judeus de manipularem
a política internacional mundial; na França, o oficial judeu Dreyfus foi acusado injustamente de ser
espião alemão. E os judeus nunca se encarregaram de proteger-se dessa crescente animosidade.

Os desarraigados das grandes cidades, a “ralé” (no original, mob), “grupo no qual são
representados resíduos de todas as classes”. As classes sociais teriam desaparecido, substituídas
pelas massas, grupos que, devido ao seu número ou indiferença, teriam se tornado incapazes de
agir de acordo com o interesse comum, seja num partido político, sindicato ou organização sindical.
A grande caraterística das massas é sua apatia e até mesmo hostilidade em relação à vida pública.
As massas vivem cada vez mais o sentimento de superfluidade, de desarraigamento, de não
pertencer ao mundo e ser absolutamente dispensável. O ódio difuso decorrente da desintegração
geral da vida política agravou a inabilidade das nações para lidar com os apátridas e as minorias, aos
quais foi negado qualquer direito humano universal.

O imperialismo levou para vastas extensões do planeta a quebra das tradições do


humanismo iluminista e o ataque mais arrasador aos direitos do homem de que os povos da Europa
poderiam ser acusados, antecipando o espírito totalitário. Terras e povos inteiros caíram sob o
domínio não da lei, mas do decreto.

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Com efeito, ao final da Primeira Guerra Mundial, a humilhação, a perda de esperança, a
hiperinflação e os níveis desesperadores de desemprego criaram as condições para que um boêmio
de cervejaria promovesse a “abertura do abismo.”

As soluções totalitárias, infelizmente, continuarão uma potencialidade e risco constante


– a liberdade moderna, de um lado, nos torna mais autônomos, mas, de outro, nos angustia com a
insegurança psicológica e econômica, ensejada por esta mesma autonomia. Nessas condições, em
contextos de crise, é quase irresistível refugiar-se nos totalitarismo como soluções, uma verdadeira
“fuga suicida da realidade”. O isolamento dos homens, típico do mundo moderno, destrói a esfera
pública, da coletividade e da política; o totalitarismo aproveita-se desse ponto e destrói também a
vida privada, seja pelo terror que transforma cada cidadão num suspeito, seja por engolfá-lo num
turbilhão que transforma cada homem numa peça descartável de um movimento incessante
sempre em busca de inimigos. Enquanto a tirania se limita a destruir o espaço público, o
totalitarismo destrói também o mundo privado, tornando o homem desamparado e só. O
totalitarismo destrói o domínio público, a pluralidade, a liberdade, a ação e a novidade potencial
que cada ser humano traz em si. O totalitarismo destrói o homem em sua singularidade, fabricando
uma espécie cuja única liberdade consiste em preservar a espécie.

Com efeito, um problema da modernidade é a ênfase no homem como animal laborans:


“Locke descobriu que o labour é a fonte de toda propriedade; prosseguiu quando Adam Smith
afirmou que esse mesmo labour era a fonte de toda riqueza; e atingiu o clímax no system of labour
de Marx, quando o labor passou a ser a origem de toda produtividade e a expressão da própria
humanidade do homem” (Condição Humana). O homem moderno está apequenado na medida em
que identifica felicidade como saciedade, e não como grandeza ou perfeição: “uma sociedade de
consumidores possivelmente não é capaz de saber como cuidar de um mundo e das coisas que
pertencem de modo exclusivo ao espaço das aparências mundanas, visto que sua atitude central
em relação a todos os objetos, a atitude de consumo, condena à ruina tudo o que toca.”

Em Sobre a Revolução ela mostra que, a partir da Revolução Francesa, a necessidade,


assim, atingiu a esfera pública, único domínio em que os homens poderiam ser verdadeiramente
livres; em outras palavras, criou-se a terrível noção de que a política deve resolver a questão social,
quando esta deveria ser papel da ciência e da técnica. Na Revolução Americana, em contra partida,
como os norte-americanos já estavam livres da pobreza (libertados), pode-se fundar a liberdade.
Para Arendt, o totalitarismo é herdeiro da noção jacobina da Revolução Francesa segundo a qual
cabe ao poder político libertar o homem dos grilhões da necessidade. Arendt lamenta que a esfera
pública, reduzida às necessidades, passa a se resumir a “administração das coisas.” Contra a ameaça
totalitária, todos deveriam ser gregos, participar das deliberações, dos negócios humanos, seja num
âmbito maior, seja em nossa vizinhança – enquanto a esfera privada permanece a esfera da
necessidade, a esfera pública deve ser o espaço da liberdade. Afinal, como disse Jaspers, “a própria
verdade é comunicativa e desaparece fora da comunicação. Pensar é antes uma prática entre os
homens que o desempenho de um indivíduo na solidão que escolheu para si”

"O coração humano não é apenas um lugar de trevas, onde seguramente nenhuma razão
humana pode penetrar; as qualidades do coração demandam obscuridade e proteção contra a luz

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do público, para se desenvolverem e permanecerem sendo o que realmente são, motivações
íntimas que não devem ser expostas em público.

Por mais sincera que possa ser uma motivação, uma vez trazida à luz e exposta ao escrutínio público,
ela se torna mais um objeto de suspeita do que de compreensão; quando a luz da claridade pública
incide sobre as motivações, elas aparecem e fulguram, mas, ao contrário das ações e das palavras,
que são feitas para se manifestarem, as motivações subjacentes a essas palavras e ações são
destruídas em sua essência ao se exteriorizarem. No instante em que aparecem, elas se tornam
meras 'aparências', que podem dissimular outras motivações sub-reptícias, como a hipocrisia e a
falsidade." (Da Revolução)

Santo Agostinho disse que “para que houvesse um início o homem foi criado” Arendt
pensava que cada nascimento é percebido no mundo porque todo recém-chegado possui a
capacidade de agir, de iniciar algo novo. Sendo cada homem um indivíduo singular, no nascimento
algo novo singularmente vem ao mundo. O nascimento, assim, renova a condição humana de
persistente inserção de novidade e imprevisibilidade. Os homens são equipados para a tarefa
paradoxalmente lógica de construir um novo começo por serem, eles próprios, novos começos e,
portanto, inovadores, e de que a própria capacidade de iniciação está contida na natalidade, no fato
de que os seres humanos aparecem no mundo em virtude do nascimento.

A ação humana tem duas características: são imprevisíveis e irreversíveis; como cada ação
comporta uma reação e uma ação em cadeia, jamais poderemos controlar o que realmente estamos
fazendo, da mesma maneira que jamais podemos desfazer o que fizemos. Daí a nossa espécie ter
criado dois remédios, que formam um par: “o perdão diz respeito ao passado e serve para desfazer
o que foi feito, enquanto o compromisso, através de promessas, serve para estabelecer ilhas de
segurança no oceano de incerteza futura. Sem sermos perdoados, liberados das consequências do
que fizemos, a nossa capacidade e agir estaria, por assim dizer, confinada a um único ato do qual
jamais nos recuperaríamos; permaneceríamos as vítimas de suas consequências para sempre,
semelhantes ao aprendiz de feiticeiro que não dispunha da fórmula mágica para quebrar o encanto.
Sem estarmos obrigados ao cumprimento de promessas, nunca seríamos capazes de atingir aquele
grau de identidade e de continuidade que, juntas, produzem a ‘pessoa’ acerca de quem uma estória
pode ser contada; cada um de nós estaria condenado a vagar desamparado e sem direção na
escuridão de seu próprio coração solitário, enredado em suas contradições e equívocos e em seus
humores sempre em mudança” (Hannah Arendt, Trabalho, Obra, Ação).

“A essência da ação violenta é regida pela categoria meio-fim, que, quando aplicada a
questões humanas, tem a característica de estar o fim sempre em perigo de ser sobrepujado pelos
meios que ele justifica e que são necessários para atingi-lo” (On Violence). Uma vez que o curso da
ação humana é sempre imprevisível, a violência só se justifica se persegue objetivos a curto prazo.

Acontecimento: em 1960, em Buenos Aires, um comando israelense sequestrou e


embarcou num avião de carga, com destino a Tel-Aviv, Adolf Eichmann, um dos mais importantes
funcionários (embora de baixo escalão) encarregados da chamada solução final para o problema
judeu no extinto III Reich. Magro, altura mediana, meia-idade, quase calvo, dentes tortos e olhos
míopes e com um tique nervoso na boca, Eichmann ficou dentro de uma cabine de vidro.

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Pessoalmente, ele nunca matou um judeu, mas envolveu-se de maneira fundamental na
organização da matança. Em poucas palavras, a Solução final ou solução final da questão judaica
(do alemão Endlösung der Judenfrage) refere-se ao plano nazista de remover a população judia de
todos os territórios ocupados pela Alemanha. Eichmann foi condenado a morte. Na época, em 1962,
Arendt ofereceu-se como repórter do New Yorker para cobrir o evento. A série de artigos que
escreveu sobre o caso foi publicada na forma de livro com o título Eichmann em Jerusalém – Um
Relato sobre a banalidade do mal (1963).

O livro: o livro é apenas uma reportagem sobre o julgamento, e não se propõe a ser nada
além disso. O livro é caracterizado por uma lindíssima riqueza de detalhes e descrições; apôs lê-lo,
sem dúvida alguma, há um aumento incrível de seu conhecimento sobre o nazismo e detalhes pouco
conhecidos pelo público brasileiro, como, por exemplo, o nazismo na Hungria, na Romênia, na
Bélgica ou na Dinamarca. Segundo Hannah Arendt, a Romênia era, antes da 2ª Guerra Mundial, mais
antissemita que a própria Alemanha. Na Romênia, era comum expor corpos de judeus mortos em
açougues judeus. Mas não é desses detalhes que iremos tratar nesse vídeo, os quais deixamos para
os leitores. Hannah Arendt diz, no pós-escrito da obra que a maior lição que podemos retirar do
julgamento de Eichmann é a lição da “banalidade do mal.” Muitos interpretaram isso
equivocadamente, acreditando que ela estaria defendendo o criminoso, o que não é verdade.
Veremos, então, o que ela quis dizer com a ideia de banalidade do mal e o que isso tem a ver com
o mundo de hoje.

Constatação: Eichmann foi acusado de crimes contra o povo judeu, crimes contra a
humanidade e crimes de guerra. “Não sou o monstro que fazem de mim”, havia dito Eichmann.
Arendt, depois de tê-lo visto e ouvido na gaiola de vidro em que estava exposto na sala do tribunal,
concluiu que “nem com a maior boa vontade do mundo se pode extrair qualquer profundidade
diabólica ou demoníaca em Eichmann”. Ao contrário disso: ele era terrivelmente normal, nem
sádico, nem pervertido, nem monstruoso, mas assustadoramente normal. Vários psiquiatras
atestaram que Eichmann era um homem absolutamente normal, que sua atitude com a família era
amável. Não havia nele qualquer traço de ódio insano aos judeus ou algum fanático antissemitismo
e parece, inclusive, que teve uma amante judia. A pergunta que fica é: como um homem
absolutamente normal e banal, sem nenhum traço maligno, foi capaz de contribuir para um dos
maiores crimes da história da humanidade? Vamos abordar essa questão.

Eichmann era um homem medíocre, normal, que sempre obedecia a qualquer comando,
a qualquer voz imperativa; na verdade, em vários momentos ele mostra que, se não há alguém
mandando nele, quando não havia nenhum comando, nenhum regulamento dizendo o que fazer,
ele sentia-se desorientado, desnorteado. Ele respondeu, várias vezes: “sou inocente, no sentido da
acusação” – ele não era criminoso, dizia a defesa, porque seus atos não constituíam crimes, mas
“atos de Estado”, e era seu dever obedecer. Eichmann lembrava que sempre foi um homem, um
cidadão, um respeitador das leis e só ficava com a consciência pesada quando não fazia aquilo que
lhe ordenavam. Ele se orgulhava de nunca fazer muitas perguntas aos superiores e ter uma
“obediência cadavérica”. Ele via a obediência como uma virtude; e a consequência disso é terrível,
sabemos. Ele falava dos campos de concentração em termos de “administração” e dos campos de
extermínio em termos de “economia”, e atos que contribuíram para o extermínio eram colocados
como atos de “rotina.” Fazia parte do nazismo, aliás, tratar o assassinato de forma burocrática,

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usando palavras como “evacuação” para falar de extermínio, por exemplo. Eram criados, dentro do
nazismo, muitos homens como Eichmann: assassinos em massa que nunca mataram, uma criação
paradoxal do nazismo. O que deveria movê-los era a consciência de estarem envolvidos em “algo
grandioso.” Enquanto, no mundo civilizado, a consciência diz “não matarás”, a lei de Hitler ditava à
consciência de todos: “matarás”. O Mal, que no mundo civilizado é uma tentação (você é tentado a
roubar, por exemplo, mas não o faz), aqui é invertido – é o Bem que se torna uma tentação.
Geralmente, os sistemas legais prendem apenas aqueles que tinham a intenção de matar, a intenção
de fazer sofrer a outro; se essa intenção esta ausente, por insanidade mental, geralmente admite-
se que não se merece prisão. Como isso fica no caso Eichmann? Muito provavelmente, no star wars,
os stormtrooper têm tudo a ver com essa estrutura da SS nazista. Um stormtropper pode ser
culpado pela maldade galáctica? Se um stormtroopper é capaz de escapar da tirania, isso não
mostra que os outros todos são culpados?

Eichmann era um homem incapaz de “pensamento”, isto é, de um diálogo consigo mesmo


rumo a independência, incapaz de se colocar do ponto de vista de outra pessoa; pelo contrário, ele
repetia as perguntas que lhe eram feitas com clichês, frases prontas, códigos de expressão e
condutas padronizadas Certa vez ele disse: “minha língua é o oficialês.” As palavras de Eichmann
eram vazias; mas ele não dizia palavras vazias para encobrir outros pensamentos. De fato, incapaz
de pensar sozinho, ele sempre falava clichês e frases de efeito prontas. Quando foi enforcado em
Jerusalém, ele disse: “viva a Alemanha, viva a Argentina, viva a Áustria. Não as esquecerei.” Essa
frase, absolutamente patética, é um clichê, uma frase pronta; mesmo no fim de sua vida, Eichmann
foi incapaz de pensar sozinho. É a irreflexão, a banalidade de Eichmann que permitiu a ele ficar tanto
tempo contribuindo para os genocídios nazistas. Eichmann sempre lembrava nunca maltratou ou
matou pessoalmente um judeu, mas apenas “ajudou” no planejamento, deportações e transporte.
Diante da violência do nazismo – que ele conhecia – Eichmann dizia ter uma sensação de Pôncio
Pilatos, aquele que lava as mãos: quem era ele para ter “as próprias ideias sobre o assunto?”

Ele poderia ter sido um diligente servidor de qualquer outro regime que lhe pagasse o
salário: o sonho de Eichmann era alguém que desejava ascensão social, desejava que alguém
reconhecesse seus méritos, lhe oferecesse uma carreira, pagasse aposentadoria – era um homem
banal, que não fez nada a não ser “cumprir ordens”, organizar um sistema eficiente de transporte.
Ele entrou na SS ( "Tropa de Proteção", organização nazista liderada por Himmler) não por convicção
ou ideologia, mas por vontade de construir uma carreira, por ascensão social. Eichmann não tinha
motivações malignas, nunca percebeu o que estava fazendo; sua única motivação era o sucesso
pessoal. No julgamento, ele conseguia lembrar detalhes dos grandes momentos de sua carreira;
mas, em contrapartida, não conseguia relacioná-lo aos momentos terríveis do regime nazista. O “pai
de família” normal ou banal, que tolerou ou aderiu aos horrores nazistas é o “grande criminoso do
século”, posto que, para defender sua aposentadoria, seguro de vida, segurança da esposa e dos
filhos se disporia a sacrificar honra e dignidade. Eichmann admirava Hitler por ele ser um caso de
“sucesso pessoal”, um cabo que tornou-se um dos homens mais poderosos do mundo; para
Eichmann, o que importa não é a moral, não são os valores, mas o “sucesso.”

O mal de Eichmann, portanto, é um mal moderno: não é o mal do pecado, de que falam as
religiões, nem o mal dos vilões da literatura, movido por inveja, traumas ou ressentimento, mas um
mal que, por não ter motivos especiais, pode ser um mal infinito. Em seu diário na Sibéria,

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Dostoiévski já contava que, em meio a multidões de assassinos, estupradores e ladrões, nunca
encontrou um único homem que confessasse ter agido mal. O que era, para os judeus, uma tragédia
terrível, o fim do mundo, para Eichmann era uma rotina, um trabalho, uma carreira. Nasce um novo
tipo de criminoso, para o qual é impossível saber ou sentir que esta agindo de modo errado. A
maldade não é uma condição necessária para fazer o mal: “Minha opinião é de que o mal nunca
é ‘radical’, é apenas extremo e não possui profundidade nem qualquer dimensão demoníaca. Ele
pode cobrir e deteriorar o mundo inteiro precisamente porque se espalha como um fungo na
superfície (...) Essa é sua banalidade. Apenas o bem tem profundidade e pode ser radical.” Em
resumo, a irreflexão, o lugar comum, a vontade de sucesso, a banalidade podem causar mais mal
do que os planos diabólicos de um vilão qualquer.

Ao longo do livro, Arendt não poupou críticas a outros, o que causou bastante incômodo.
Nesse sentido, Arendt lembrou dos Conselhos Judaicos, muitos líderes que ajudaram os nazistas sob
a ameaça de que “poderia ser muito pior”. Ela lembrou também da complacência ou colaboração
de muitos países europeus com a perseguição aos judeus (com a notável exceção da Dinamarca).
Indústria alemãs, como a Krupp ou a Siemens, da mesma forma, colaboraram com o nazismo e
abriram fábricas próximas aos campos de concentração. Hitler causara um colapso moral na
sociedade. Eichmann foi capturado por tropas israelenses em território argentino, sem aprovação
do governo Argentino; muitos dizem que isso seria justo, pois se tratava de um criminoso contra
humanidade. Mas o que aconteceria se um país africano, como Gana ou o Congo, mandasse para o
sul dos Estados Unidos, onde ainda existia segregação racial, sequestrasse um líder racista norte-
americano e o matasse na África? Seria menos justo?

Muitos interpretaram o texto de Arendt de maneira absolutamente equivocada; pensaram


que ela estaria defendendo Eichmann ou algo do tipo. De maneira alguma. Eichmann poucas vezes
esteve em perigo de morte imediata e nada a tinha a ver com aquele soldado que, se não
obedecesse, seria fuzilado; Eichmann poderia, por exemplo, ter feito coisas para minimizar seus
crimes, mas não o fez. Ele presenciou as matanças do 3º Reich, ficou “chocado”, mas isso não o fez
abandonar seu trabalho. Segundo Arendt, a “maioria esmagadora do povo alemão acreditava em
Hitler”.

O que Hannah Arendt quer nos lembrar é que, em política, nunca se esqueçam disso,
obediência e apoio são a mesma coisa. A Dinamarca é um exemplo que deve ser lembrado. Na
Dinamarca, por exemplo, a população declarou que não iria colaborar com o antissemitismo dos
nazistas e o rei se dispôs a usar a estrela de Davi, emblema que marcaria os judeus. Hanna Arendt,
profundamente liberal, opõe-se ao determinismo e defende a liberdade. Só existe justiça se
considerarmos que os homens agem em liberdade, que eles poderiam ter feito outra coisa do que
fizeram. Hitler certa vez disse que em seu Reich sonhava com o fim da profissão de jurista. Por quê?
O sonho dos regimes totalitaristas é destruir a liberdade dos homens, e, assim, destituí-los de
responsabilidade, destituí-los de consciência, destituí-los da capacidade de diferenciar o certo e o
errado. Todos seriam engrenagens desumanizadas, e a justiça, assim, seria impossível. Leia com
atenção essa passagem: “Se o acusado se desculpa com base no fato de ter agido não como homem,
mas como mero funcionário cujas funções podiam ter sido realizadas por outros, isso equivale a um
criminoso que aponteasse para as estatísticas do crime e declarasse que só fez o que era
estatisticamente esperado”

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Em todas as suas obras, Arendt, opõe-se aos diversos tipos de totalitarismo; é preciso
lembrar, em todas as circunstâncias, a manutenção de nossa liberdade, de nossa dignidade e de
nossa humanidade. Os homens têm a liberdade de agir de modo diferente, e muitos o fizeram na
Alemanha nazista. É verdade que em ditaduras ou regimes totalitários muitas pessoas se
conformam e aceitam; mas algumas pessoas não a tirania. E isso basta para mantermos a esperança.

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