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Capricho
por Pôncio Arrupe
Capítulo 12
Mensagem Post Mortem
Capítulo 12
Mensagem Post Mortem
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Confesso Este Meu Capricho, por Pôncio Arrupe
primeiros porque incorri neles com mais frequência.
Demasiadas vezes, confesso.
O primeiro, o que os outros mais notavam, foi o da Ira. O
segundo, o que, penso, melhor disfarcei, foi o da Preguiça.
Acontece a particularidade de que a maior parte dos meus
desregrados acessos de ira tinham origem, precisamente, em
pecados cometidos, por mim ou por outros, contra a
preguiça. Eu explico este aparente absurdo: Falo de pecados
contra a minha preguiça; Contra, por assim dizer, o meu
direito à preguiça. Bem sei que isto toca as raias da
blasfémia. Mas que posso eu contra esta minha mente ímpia!
Por negligência, incúria, imprudência, irresponsabilidade,
desinteresse, esquecimento... – não sei se deste rol se
aproveitará algo para mais um pecadilho capital – acabava
por muitas vezes desembocar em circunstâncias em que era
forçado a trabalhar muito mais do que queria e em alturas
que não queria. Daí os acessos de ira tão frequentes...
Contra mim e contra os outros, contra o que quer que fosse
que me impedisse de usar o meu tempo da forma que mais
me aprouvesse. Depois, extenuado, requeria períodos, mais
longos do que seria desejável, de puro remanso... E por esta
via cheguei a uma condição perversa de pescadinha de rabo
na boca.
De tal forma isto era assim que todo o meu planeamento e
organização, desde cedo, se subordinou à necessidade de
proteger os meus momentos de exercício da minha preguiça.
No entanto, se me permitem amenizar a questão em defesa
própria, estes não eram momentos de pura inatividade.
Eram, tão só, aqueles momentos em que eu desenvolvia
tarefas e projetos, a maior parte mal os confessei a alguém,
sem qualquer finalidade imediata, sem prever ou desejar
resultados concretos, apenas porque por eles me sentia
estimulado intelectual, emocional e espiritualmente. Ou
somente porque por via deles fugia a… não sei bem o quê…
Enfim, sei que esta argumentação não será boa desculpa
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para muitos de vós; Sei que alguns considerarão este meu
hábito pura e elementar inconsequência; Bem sei que só por
alguns serei encarado benevolamente.
E as minhas relações com os outros em trabalho também
se subordinavam, em grande parte, a esse meu desiderato
da conquista desses meus momentos a sós e
inconsequentes. E sobre isto muito teria a dizer, muito haverá
a dizer...
No entanto, aqui fica: a Inconsequência... Deixo deste
modo o meu contributo para uma possível adenda à listagem
dos pecados capitais. Fica à vossa consideração...
De qualquer modo, voltando ao assunto central, penso que
quando a referida listagem foi elaborada ainda não se falava
em sinergias prá-qui, sinergias prá-li. Logo, primeiro, uma vez
que esta sinergia perversa entre a Preguiça e a Ira que em
mim se alojou não podia estar prevista pelos ancestrais
mestres, segundo, que o seu efeito mutuamente aumentativo
é inegável, e terceiro, que não me podem ser assacadas
responsabilidades porque, precisamente, não me estava
dado prever, pelo menos no início do círculo vicioso que em
mim se gerou, as consequências de tão daninha conjunção
de pecados capitais, concluo, pelos motivos apontados, que
devo ser julgado com bem mais benevolência do que a
ferocidade dos meus muitos ataques de ira poderia justificar
e recomendar. Acrescento ainda que, que me lembre, nunca
cheguei a “vias de facto”.
Sendo assim, espero justiça menos capital.
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Com sobressaltos vários, alguns bem inesperados, como se
impõe a qualquer vida interessante. Obrigado!
Espero, meus caros cunhados, cunhados que já não o sois
e cunhados que haveis de sê-lo…, que não vos tenha sido
excessivamente penoso. Refiro-me à vida de sobressaltos,
uma vez que eu, sei-o, terei sido certamente demasiado...
qualquer coisa!
Espero, meus inúmeros queridos sobrinhos, e queridos
sobrinhos-netos, que estes sobressaltos vos tenham dado
trunfos para as vossas vidas. Perdoem-me a pretensão,
quiçá aproprio-me abusivamente, mas a minha
descendência, o meu legado, também sois vós. Aqueles que
ainda tendes condições, ide e espalhai os meus genes! Sim,
vós também, e não só os meus filhos, tendes muitos genes
igualzinhos aos meus. (Podeis rir à-vontade, é caso para
isso, mas espalhai, espalhai...). Desse modo os avós Pedro e
Beatriz continuam em vós, e eu também. Não tenho forma de
vos dizer, mas sois um orgulho para mim; Orgulho enorme,
da dimensão de como quão feliz, enlevado e elevado fico
quando vos contemplo.
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alarido e sem grandes sobressaltos que eu visse, superaste
as expectativas mais arrojadas; Como sempre foste
excelente, reta e bondosa; Como sempre o serás, as
expressões do teu lindo rosto não enganam. Dá um beijo à
tua mãe.
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que foi interrompido, que fica para sempre em suspenso,
agora: Amo-te! Adoro-te!
Aos demais digo que alijei carga para esta viagem, que
levo só o que de bom tivemos em comum. E foi muito! Peço-
vos, por favor, que fiquem junto dos meus. Obrigado. Eu
ficarei junto de todos, se for esse o vosso desejo. Não sei
como, nem terei forma de vos dizer.
Post Scriptum
Que o teor em alguns momentos irreverente – talvez, até,
desrespeitoso - deste meu pequeno obituário não seja um
óbice ao que vos peço no penúltimo parágrafo do mesmo.
Sei que posso ter sido desconcertante - e muito
inconveniente!, dada a ocasião… –, mas, no entanto, espero
continuar a contar convosco para os meus. (É que ele não
existe. Se existisse, bem mereceria o que acabei de
escrever. E muitas outras coisas teria vontade de lhe dizer!
Mas quem merece ouvir isto não pode ser ele. Logo, ele não
existe. Ou se ele existe, se algo existe, não é certamente
aquilo - e sublinho a expressão “aquilo” - em que as pessoas
acreditam, ou querem acreditar, ou querem fazer-vos
acreditar. Será outra coisa qualquer! Espero que com esta
minha variante sobre o assunto – sobre ele - possa ter-me
acomodado um pouco melhor às vossas mentes e anseios.
Sim assim foi, ficarei mais contente por vós. Mas não sei se
terei forma de ficar a saber…)
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