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Confesso Este Meu

Capricho
por Pôncio Arrupe
Capítulo 1
Experiência 04 – Início
Preâmbulo
Capítulo 1
Experiência 04 – Início

Preâmbulo

Confesso.
Confesso que este meu capricho, que nasce do meu
aborrecimento por me encontrar só em mim mesmo e em
redor de mim e da curiosidade que tenho naquilo que possa
resultar de uma minha criação inteligente que me seja
exterior, à minha imagem e semelhança, portanto com
vontades e criações próprias e com quem me possa
relacionar, está a dar-me água pelas barbas. Isto para utilizar
uma imagem de mim muito cara a muitos dos livres e
irrequietos humanos e criada por eles à sua imagem e
semelhança. Uma imagem intrínseca e estritamente humana
que é o que lhes pode estar ao alcance; Construída à sua
imagem e semelhança porque esta é a única forma que têm
de me conceberem, e de se relacionarem comigo, que é o
que eu pretendo. Concedi-lhes o livre arbítrio e a capacidade
de pensar, imaginar, acreditar... mas não criei neles um outro
eu. Se o fizesse, estaria a recriar-me a mim mesmo o que
seria nada criar que me fosse exterior, uma vez que sou
tudo, e não é isso que eu pretendo; Pretendo algo que, pelo
menos aparentemente para eles, se comporte como
autónomo de mim e que possa, até, pretender dispensar-me.
Naturalmente, este motivo que de início apresento para ter
criado os humanos visa apenas ser uma justificação
inteligível e emocionalmente apelativa aos olhos da maioria
deles, tendo em conta o seu estado atual de transformação.
No entanto, para alguns, os mais estritamente racionais, esta
justificação é um completo absurdo uma vez que esses me
concebem como uma entidade plena, sem qualquer
insatisfação, ou mesmo necessidade ou anseio. No entanto,
para com eles comunicar, uma vez que os criei
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essencialmente diferentes de mim, preciso de utilizar os seus
conceitos finitos e a sua linguagem. Se assim não o fizesse,
se eu fosse diretamente inteligível por eles – se se desse tal
absurdo! - nem esta escrita seria necessária; Haveria de ser
uma inutilidade, uma redundância. A compreensão da
verdadeira explicação, de momento, está-lhes vedada e, se
um dia deixar de estar, ser-lhes-á servida de outro modo, de
uma forma ainda inimaginável por eles.
Fica claro, portanto, que a estes meus queridos humanos,
ainda em projeto sujeito a alterações, não lhes concedi a
capacidade de conceberem o que quer que seja que vá além
da sua natureza. No entanto, eles encarregaram-se de
desenvolver a crença de que são capazes disso. Este texto é
tangente também a este assunto.
Mas eu sim, embora à minha imagem e semelhança, estou
criando nestes humanos algo que vai para além da minha
natureza; Eles são uma verdadeira criação minha, tal como a
matéria, a luz, o espaço, o tempo. Constelação de elementos
esta no seio da qual os coloquei e da qual não se podem
libertar, embora muitos deles tenham essa ambição ou, pelo
menos, se recreiem sonhando com essa hipotética e quase
sempre vista como remota possibilidade. Remota
possibilidade em vida, uma vez que muitos desenvolveram a
crença de que o conseguirão através da morte; Pelo menos
se se verificarem determinadas condições... por eles
concebidas e cuja autoria, frequentemente, me é por eles
imputada. No entanto, muitas vezes só em segredo, anseiam
e, até, porfiam pela imortalidade… Este assunto e o da sua
ambição da, podemos dizê-lo, imaterialidade estarão também
presentes neste texto, ainda que veladamente.
Do relato simplificado, alegórico, desta minha Experiência
3 pretendo retirar ilações que servirão de ponto de partida
para a Experiência 4. Terei que arquitetar uma forma ao
alcance da sua natureza humana para que sejam capazes de
as integrar, a essas ilações, na sua existência ao longo de

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toda a próxima experimentação. De facto, ao criar algo que
me é exterior, só pude fazê-lo se, efetivamente, suspendi, em
determinado espaço e durante o tempo de duração da
experiência, as minhas proverbiais faculdades de
omnipresença, omnipotência e omnisciência. Por outras
palavras, necessitei de permitir que os humanos evoluíssem
num contexto em que os acontecimentos que os afetassem
não fossem por mim determinados, mas que resultassem das
suas próprias ações; Ou dos caprichos da natureza, para
utilizar outra expressão que lhes é cara. Enquanto entidade
omnipotente, utilizei esta minha faculdade para me tornar um
simples observador interessado, abdicando da capacidade
de influir no devir. (No entanto, muitos deles acreditam que o
faço amiúde, que determino acontecimentos, e que até o
poderei fazer por sua solicitação.) Naturalmente, tornei-me
também incapaz de prever as consequências das decisões e
ações dos humanos ou, melhor, tão capaz, ou incapaz, de o
fazer como eles próprios. Em síntese, determinei apenas as
condições de partida e o momento do termo da experiência.
Para este efeito, de alguma forma, tornei-me quase humano.
Perdi a faculdade de prever com exatidão, quase que me
limitei a constatar a sucessão de eventos e as explicações a
propósito por eles encontradas. Uma experiência fascinante,
e reveladora uma vez que como que me suspendi. Devo
reconhecer que contactar com a surpresa – ser surpreendido
pelos acontecimentos – foi dos efeitos mais excitantes,
agradáveis e deslumbrantes que senti.
Nesta fase três decidi dotá-los, e deste modo distingui-los
radicalmente dos outros seres vivos, de consciência de si
próprios. Numa perspetiva estritamente humana, e utilizando
uma outra expressão cara a alguns deles mais eruditos, foi
como abrir a Caixa de Pandora. Isto significou dar-lhes, a
cada um deles, a faculdade de se diferenciarem do resto do
universo, dos restantes seres e dos restantes humanos. Ao
tornarem-se, cada um deles, indivíduos a seus olhos,

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passaram a olhar tudo o resto como separado deles próprios
(Para o bem e para o mal, como alguns poderão dizer.).
Passaram a diferenciar-se do meio, incluindo este
absolutamente tudo do mundo material, nomeadamente os
outros humanos, e ainda tudo o que quer que seja que
possam conceber como imaterial. Daqui até à observação
das consequências das suas ações sobre o meio, sobre os
outros seres, sobre os outros humanos, foi um passito, assim
como a constatação dos efeitos dos eventos ocorridos no
meio, incluindo as ações dos outros seres, sobre si próprios.
Deste modo, tornou-se corrente entre eles, embora
frequentemente com imprecisão e por vezes com grande
erro, a antecipação mental por cada um dos efeitos das suas
possíveis ações sobre o meio e sobre os outros e, também, a
previsão dos efeitos dos possíveis eventos ocorridos no
meio, não só os da natureza mas também os das ações dos
outros seres, incluindo dos outros humanos, sobre si
próprios.
Daqui até ao livre arbítrio, foi, de novo, um passito, para
não dizer que emergiu em simultâneo. A previsão dos efeitos
dos seus atos sobre o meio e dos eventos ocorridos neste
sobre si próprios é impossível sem a permanente e constante
consideração de alternativas e escolhas sobre o que fazer.
Sobre o que fazer em função do que é julgado mais
desejável em cada circunstância por cada um dos humanos,
tendo em conta, naturalmente, a busca do bem-estar - do
prazer – e a fuga ao sofrimento - à dor. Compreensivelmente,
logo os humanos se dividiram em grupos, de maior ou menor
dimensão e duração, de acordo com as necessidades de
circunstância, uma vez que inevitavelmente constataram que
quase sempre a cooperação com outros permite com mais
eficiência antecipar os eventos do meio e agir sobre o
mesmo, na perspetiva da tal busca do prazer e, igualmente,
da fuga à dor. E assim emergiram as necessidades uns dos
outros, e os repúdios também, e os amores e os ódios.

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E também nasceram as identidades individuais subsidiárias
dos grupos porque construídas e partilhadas nas vivências
em grupo e em contraste com outros grupos, logo os
sistemas de princípios e valores de pensamento e atuação
para coordenar esforços entre indivíduos do mesmo grupo e
que, aumentando o seu grau de sofisticação e abstração
para agregarem grupos de cada vez maior dimensão e
duração, deram origem ao que os humanos designam por
religiões e por ideologias, e que foram antecedidas por
animismos, magias, mitos... Enfim, aquilo que, muitas vezes,
designam pela verdade, pelo que está certo, e, até, pela
minha vontade.
Deste modo, nesta experiência 3, pus-me pela primeira vez
à mercê da complexidade – uma complexidade que pretendi
simplificada mas, ainda assim, complexidade -, logo, sujeitei-
me à imprevisibilidade e incompreensão, partilhando-as com
os humanos e, por essa via, experimentando a condição
destes; Suspendi a minha presciência, uma vez que tudo
posso, abdicando, como já disse, de interferir no livre-arbítrio
deles. Assim, tornando-me quase humano no espaço e
tempo da experiência, posso dizer que passei por alguns
bem humanos amargos de boca. Mas, apesar disto, pretendo
manter os pressupostos de partida da Experiência 3 na que
se segue. Nesta que se vai seguir, a 4, farei alguns acertos
de princípio.
Um dia, talvez, se a sua evolução for num sentido
apropriado, se se tornarem verdadeiramente capazes de
interagir comigo, se me votarem uma verdadeira amizade
humana, poderei revelar-lhes na íntegra este meu relato, e
outros, tal como, entre eles, só revelam algumas coisas aos
verdadeiros amigos, àqueles dignos de confiança. Aos olhos
deles, no âmbito da sua natureza, será esta a justificação
que lhes darei para eventualmente o fazer; A da verdadeira
amizade humana para comigo, uma vez que estaria a
revelar-me como nunca o teria feito até então.

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Para já, desejo mostrar-lhes apenas o que de essencial
aconteceu ao longo da Experiênca 3, contando-lhes uma
estória em jeito de alegoria, ou de fábula. Sei que as estórias
são do seu agrado. É um dos veículos privilegiados para
difundirem valores e princípios partilhados no seio dos seus
grupos de pertença e da parcial e mutável partilha de
identidades individuais. Falando a linguagem deles, como
que apelo a que me acompanhem porque sinto falta. Espero
assim, com, de novo, esta concessão artificiosa – um
absurdo à luz de uma estrita racionalidade humana! -,
sensibilizar a maior parte. Refiro-me àqueles que lidam
comigo como, somente, pouco mais do que um humano com
capacidades superiores – com virtudes místicas, mágicas,
paranormais..., o que seja! – e com emoções, sentimentos,
desejos, preferências, gostos, etc.. É principalmente a esses
que me dirijo, que são largamente maioritários, que me veem
à sua imagem e semelhança de modo estrito. Desejo aos
outros compreensão e paciência; Àqueles que sabem que
não me descortinam minimamente; E, até, com legitimidade,
duvidam da minha existência... - não é sua culpa uma vez
que sou um absurdo à luz do seu intelecto finito, à luz da sua
racionalidade, embora estrita, imperfeita e incompleta, é
certo. No entanto, por vezes, por breves momentos, derivarei
para algo que lhes é dirigido especialmente. Poucas vezes e
de passagem porque, já o disse, pretendo dirigir-me
principalmente a todos os outros.
Deste modo, repito-me e sublinho, quero criar em primeira
mão as condições de partida para a Experiência 4, que
adicionarei aos resultados finais da Experiência 3.
Resultados estes que serão ilustrados com a referida
estorinha. Utilizarei uma linguagem exclusivamente para
humanos, ao nível da capacidade de compreensão da
maioria dos do início da experiência que se seguirá, uma vez
que, a partir de agora, é com eles que passo a comunicar. A
referida estória será destituída de muitas das nuances que

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acrescentam complexidade e diversidade à condição humana
em favor de realçar, para ajudar à compreensão, aquilo que é
o nuclear. Aliás, como é usual acontecer nas tais fábulas e
estorinhas alegóricas que os humanos por vezes contam uns
aos outros. Portanto, método apropriado, tendo em conta que
é a eles que me dirijo.
Como já o referi, esta minha explicação introdutória ser-
lhes-á facultada um dia, talvez, mas não agora, não neste
momento fundador em que encerro a minha Experiência 3 e
dou início à minha Experiência 4.

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