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RITOS DE MORTE NA LEMBRANÇA DE VELHOS"

Ana Lúcia Magela de Rezende1


Geralda Fortina dos Santos2
Valda da Penha Caldeira2
Zldia Rocha Magalhaes2

RESUMO: " Ritos de morte na lem bra nça de vel hos" concretizou-se como pesq uisa a partir
do desconforto vivido pelas autoras em suas relações profissionais, o nde a questão da morte
era sempretangenciada. Caracteriza-se como u ma investigaçãode inspiração fenomenológica ,
que utilizando-se do relato oral de sujeitos de terceira idade, procu rou recu perar, decodificar
e interpretar os ritos mortuários. Dos depoimentos surgiram as u nidades de sig nificado :
Sentimentos e Sig nificados diante da Morte; A Hora da Morte; A M o rt e Anu nciada ;
Preparativos do Corpo ; A Sentinela; O Cortejo Fúnebre ; A Ú ltima Morad a ; A Volta para
Casa ; A Mort, e Lem brad a ; e sobre elas incidiu a nossa análise . Esta n os possibilitou a
com preensão do vivenciar a morte, refletir as atitudes dos profissionais de saúde ao assistir
o cliente e seus familiares nesta experiência existencial do ser-para-a-morte. A morte
raciona lizada pelo con hecimento científico , im pessoalizada nos cuidados tecnologizados
esconde novos ritos, transm utados pelas novas representações q ue a sociedade construiu .

UNITERMOS: Atitudes pera nte a morte - Rituais fu nerários - Idosos - Eq uipe de assistência
ao paciente

1. I NTRODUÇÃO

Ritos de morte na lembrança de velhos concre­ req uer, somente, explicações técnico-científicas.
tizou-se como pro posta de pesq uisa a partir da Os ritos presentes em n ossa sociedade mo­
verbalização do desconforto vivido pelas autoras , d e rna , m a l g rado tod a tecn o l ogia e ciê n cia
em suas re lações profissionais, onde a q uestão racionalista , ocupam um espaço fu ndamental­
da morte era sem pre tangenciad a . Enquanto en­ mente legítimo e necessário à eufemização da
fermeiras, sem pre nos preocu pou a dificu ldade angústia do finir. Tais ritos têm caráter protetor da
que os profissionais de saúde e m gera l , particu lar­ sociedade e restau ra m o conj u nto socia l . Apre­
mente osde enfermagem , enfrentam ao lida r com senta m-se com o teatralidades, representações'
a morte, em atividades cotidianas. de crenças, sentimentos e emoções q u e esta be- .
A m o rte , o e n frenta mento do limite, é lece m a agregação social , cimentam as relações,
insuportavelmente angustia nte , e esta angústia construindo elos de ligação, pela pa rticipação de
precisa ser domesticada pelas representações todos e de-cada um, numa m esma representação
simbólico-sociais que a m ediatizam , relativizando, socia l .
a estranheza do evento. As interpretações míticas Por considerar a morte e o seu cortej o de ritos
da morte cum prem esta fu nção : esvazia r a a ngús­ como da ordem do societa l , do pertencimento
tia experimentada dia nte de u m fato ameaçador e grupal , é que tentamos analisá-los como fenômeno
tomaro fe nômeno caótico , familiar. Fazerdele um socia l . A com preensão da morte ê do morrer, e
fato sobre o qual o homem tem alg u m controle não não a sua explicação , coloca-se para o profissi-

Trabalho apresentado como Tema Livre no 46° Congresso Brasileiro de Enfermagem. Porto Alegre, 30 de outubro a 4
de novembro de 1 994.
1 Professora visitante do Departamento de Enfermagem da U FSC. Membro do N úcleo de Pesquisas é Estudos sobre
Quotidiano em Saúde - N U P EQS-SC .
2 Professora da Escola de Enfermagem da U FMG . Membro do N U P EQS-MG.

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onal de saúde com o de suma relevância , mas é estudo foi de dez.
também extre m a mente paradoxal . A formação De posse dos relatórios das entrevistas trans­
profission a l , m a rcada pe lo modelo médico-bioló­ critas, as pesq uisadoras iniciara m u m processo
gico hegemônico , confere aos profissionais de de leitura e discussão. Dos discu rsos dos sujeitos
saúde algum pod er explicativo sobre os fenôme­ emergiram as seg uintes u nidades de sig nificado:
nos da saúde-doença , vida e morte, mas não - A hora da morte: com preende o momento
facilita a sua compreensão. mesmo da morte , atitudes, comportamentos
Os ritos d esdobram-se em inúmeras m a nifes­ e manifestações de pessoas q ue participam
tações, e estão relacionados à cultura , idade do daquele morrer.
morto , crenças e religião , mas conserva m u m - A morte anunciada: co ntempla sinais e
núcleo eidético d e ca ráter regenera d o r o u símbolos que expressa m a presença da
terapêutico , diante da angústia d a finitude. morte na com u nidade à qual pertence o
A rit u a l iz a ç ã o está p rese n te n a vid a morto.
contemporânea , em bora sob novas formas "raci­ - Preparativos do corpo: e n g l oba tod o
onalizadas" , como são as exigências d a ciê ncia movimento da com unidade, que se organiza
e da sociedade moderna. para dar contin uidade aos rituais fúnebres,
Enca min har a proposta desta pesq uisa atra­ a partir da morte constatada.
vés da inte rpretação dos ritos mortuários nos - A sentinela: com preende toda forma de
pareceu uma fecunda via de resgate do sim bólico , manifestação com unitária e pública durante
tão su bestimado n a racion a lid ade do m u ndo mo­ a exposição do corpo .
derno. Tal análise pode nos fornecer chaves para O cortejo fúnebre: traduz a ca minhada do
a compreensão do vivenciar a morte em nossa loca l do velório ao loca l da inumação.
sociedade conte m porânea e, pa rticu larmente , Engloba formas de tra nsporte do corpo ,
refletir sobre as atitudes do profissional de saúde comportamentos e atitudes das pessoas
no assistir os clientes e seus fa miliares nesta que pa rticipa m do cortejo fúnebre.
experiência existencial do ser-para-a-morte. Para - A últim a morada: d e s c re ve a s
nos aproximarmos d a fl uidez deste fenômeno, ao características d o cemitério, das sepulturas,
mesmo te m po tão co ncreto e tão amorfo , é preci­ dos túm ulos e da in u mação.
so que em preg uemos a bordagens sensíveis e - A volta para casa: com preende as atitudes
maleáveis mas, nem por isto , menos científicas. e com portamentos dos familiares e demais
Dia nte da preca riedade da vid a , o desejo de pessoas a pós a in u mação.
onipotência de produzir u m a ciê ncia que nos - A morte lembra da : sig n ifica t o d a
tra nscenda, merece ser recolocado. É o q ue esse m a n ifest ação i m p l í cita o u expl ícita
cotidia no insu peráve l , onde se dão as nossas config u rada nos sentimentos e com porta­
peq uenas m o rtes de todos os dias, todas as m e n tos dos fa milia res e pessoas da
perdas em direção à finitude, nos propõe pensar. com u nidade à q u a l pertence o morto.
Assim , nesta investig ação, tive mos como
objetivo compreender a situação da morte enquanto 2. SENTI M ENTOS E S I G N I FICADOS DIANTE
fenômeno social, através d a: DA MORTE
- reconstrução dos ritos mortuários a partir
de depoimentos; Temporalidade da Morte
- tradução dos sig nificados destes ritos;
- interpretação das sim bologias ritual ísticas Tem po linear e tem po cíclico da morte
da morte.
O estudo caracterizou-se como uma a bordagem A morte é , a ntes de tud o , u m a questão de
qualitativa de inspiração fenomenológica dos ritos tem pora lidade. A linearidade d e um tem po que
mortuários. Optou-se pela utilização da técnica de começa e se esvai, até o fim previsto , mas não
História Ora l , através d e relatos de sujeitos de d a t a d o , p recisa s e r e s c a m ot e a d a . E s t a
terceira idade. Estes sujeitos tinham idades acim a precariedade do viver é então afrontada d e maneira
de 55 anos, co m memória preservad a ; era m de ardilosa , pa ra poder se vivenciar, com u m n ível de
am bos os sexos, com vivências em cidades do a ngústia su portável , este tem po que passa . Tem­
interior e metrópole. O g ru po de sujeitos para o se, assim , a il usão d a vitória sobre a morte. Para

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MAFFESOLl (3) , este "afrontamento do destino" vel ho, "se ele arrumar a trouxa dele bem
é sinalizado por algu mas atitudes, tais como a arrumada... Deus perdoa, né ?". A vida é tida como
importência atribu ída ao presente e à repetição. O u m bem maior, de mais valor q ue a morté. Mesmo
"presentelsmo" demonstra u m querer viver com contando com o amor de Deus e, conseqüente­
i ntensidade o agora, o i nstante que "precisa ser mente , ser d ispensada das "boas obras"que, até
consumido, rapidamente consumido em excesso, mesmo por falta de tempo, não realizou, a vida
quando se conhece a sua precariedade" (3.P.25). ai nda é mais desejada . Assim, mesmo que a
Viver como se fôssemos imortais. "Eu nlJo falo em "cidade dos justos" seja delineada como um lugar
morte com os meus filhos (. . . ) e eu sei lá o que vai de vida melhor, é aq ui, no caótico mundo h umano,
ter depois". O que vale é o hoje e este desejo de que se deseja estar. Este futu ro incerto da morte
viver o presente é manifestado tanto nas formas e do além dela não é desejado, sobretudo para um
escapistas do esba njamento da energ ia, do serque poderia m u ito ainda desfrutar das delícias
dinheiro, do sexo; na frivol idade e no consumismo, do mundo humano.
como a contenção e na usura . A morte do velho é reportada como a de
Para o s sujeitos, talvez e m função de suas alguém para q uem chegou a hora: "Já viveu, já fez
idades, a idéia de morte assum e uma relativa tudo': M(. . .) praticamente já nlJo está vivendo muito,
convivencial idade. Para "conformar-se", a pessoa porque perde a sensibilidade, perde os reflexos
"precisa sermuito vivida, muito experimentada da (. . . ) a memória (. . . ) entlJo, vai pra outra". Este
vida, já ter sofrido bastante". Todavia, o "preparo" depoimento, particularmente, atenta para a
para a morte é sem pre relativo, ambíg uo, sempre decrepitude n a vel h i ce, pel a d i m i n u i ção de
"está faltando uma coisinha", e Deus reserva "um possibilidades d e vida participativa, cuja felicidade
lugarpara a gente acabar de completaraquilo que deve agora ser enco ntrada em "outra" vida.
nlJo fez". Demonstra o esgotamento das potencialidades e
A re petição, q uerdas ações q ue "preparam" o uso do tempo do viverque passou . "Já trabalhou
para a transcendência, quer ideal izada em outra a morrer, já viveu a vida"{. . .) "já realizou, já fez
vida, além da terrena, parece del i near a ciclagem alguma coisa". Enquanto o velho "já fez", a
temporal, q ue é mediadora do enfrentamento da criança ainda "nlJo fez nada". Este fazer h u mano
morte. Enquanto o tem po l i near ind ica u m nascer asseg u ra o estar vivo e utilizando o tempo em sua
e u m morrer, o tem po cícl ico, vivido no cotidiano, plenitude. Os sentimentos diante da morte i nfantil
na repetição das boas obras que preparam o demonstram a frustração pelo não uso do tempo
homem para a boa morte, ou na crença numa outra que seria possível aproveitar.
vida, assegu ram a conti n uação, instauram o não­
'
tempo. A repetição cria a i lusão de que nada Espacialidade da morte
passa, roda o relógio ao contrário, i nverte a roda
do tempo. A l i nha reta do tempo l i nearé espichada A morte e a Proxenia
e enrolada, portanto, aumentada de tamanho.
Cada ciclo retom a sobre o a nterior, não numa A proxim idade afetiva, ou consangüínea, faz
repetição mecênica, mas sim e n riquecido pelas com que a perda através da morte seja mais
vivências pretéritas, seg ue seu curso .. . infi n ito. dolorosa e de mais d ifícil enfre ntamento . Este
Alg u ma transformação ocorre, mas é assegu rada sentimento é caracterizado pela i mpotência e m
a idéia da imortalidade, mediadora que dFibla a reverter ou i nterfe ri r n o evento .
insuportável consciência da fin itude. Tem po e espaço aparecem, n os discursos,
como dimensões sign ificativas para os sujeitos e
A idade d o morto demarcadoras de experiências vividas enquanto
singulares, afetivas, i m pessoalizadas e públicas:
Dependendo da idade do morto, os sujeitos "(. . .) porque o povo de hoje nlJo tem aquele
informaram ter sentimentos d iferentes. A morte sentimento': "(. . . ) todo mundo era muito junto,
de uma criança é atribuída maior dor, enquanto o nlJo tinha uma obrigaçlJo forte puxando. (. . . ) A
velho, consideram-no mais próximo dela. morte no interiorera assim, todo mundo sofria,
Embora a criança possa contar com maior até quem nlJo era parente". "(. . .) A gente
com placência d e Deus ". . . a criança, por muito participava (. . .) porque era todo mundo muito
rebelde que seja, Deus ama, né, a criança". O unido, nlJo tinha assim esta vida diferente

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daqui, que te chama atenção para uma coisa "até o último minuto", ou entregar o pa rente , o
e pra outra, que se voltava muito pro parente, amigo a mãos estran has, mesmo que tecn ica­
um pro outro'� mente com petentes, n u m momento de tanta
Estas fa las demonstram comparação entre vul nerabilidade? As d úvidas, nas q uais mergu­
um espaço-tem po-soci a l , onde a proxenia era a lham estes discursos, são águas escu ras e pro­
tônica . Um tem po vivido melancól ico e que pas­ fundas e nos permitem a penas i ndagar: quanto de
sou . Um espaço outro , onde "a pessoa dependia racional ismo modern o , a sufocar o desejo em
muito um do outro': onde "não tinha obrigação funçã o da prag maticidade, permeiam estes
forte puxando ", e u m outro momento-lugar, dife­ discu rsos?
rente , menos acolhedor, onde se sentem estran­
geiros. Crença na vida além da morte
Acostumar com a morte e seus sinais é visto
pelos sujeitos, como um processo irreversível dos O além da morte se coloca como u m mistério,
tem pos modernos e das cidades g ra ndes, onde a mas este "outro lado", nos d iscu rsos, é uma
m as s i f i c a ç ã o faz o s s e n t i m e nt o s s e re m espacial idade para a q ual se prepara , leva-se uma
civi lizadamente contidos. A complexidade d a vida bagagem - o que se fez do lado de cá . O
moderna su bstitu iu a proxenia, vivida com i ntensi­ enfrentamento do q u e aguarda o m orto do "outro
dade nos locais de orige m , pe las obrigações e lado" é mediado pelas boas ações que se praticou
demandas múltiplas, d ificu lta ndo às pessoas sen­ enquanto vivo . É i m portante que na prestação de
tirem-se próxi mas. Os ritos tornaram-se ceri mô­ contas, o sa ldo seja positivo para o i ngressa nte no
nias de convivência, maneirismos sociais, e o além .
sentir a morte do outro � relativizado , porq ue ele é Volta a fig u rar' nos d iscu rsos, a idéia da
apenas mais um que morre, no burbu ri n ho m oder­ repetição, do tem po cícl ico, da tra nsformação,
no de cidade g rande. A morte se desloca de su� mas não do acabamento . "Por que eu vejo uma
essência ontológ ica para a rea l idade ôntica , ine­ planta, uma planta que nunca acaba, mesmo que
rente apenas àquele q u e morre u , porta nto , a morra, fica uma semente, fica uma . . . é uma
partici pação dos outros reduz-se à exte rioridade transformação". A meta morfose , tão estudada
da aparênci a . pelos interessados das cu ltu ras orientais, onde as
fronteiras entre os m u ndos natura l e sobrenatural
A morte e o hospital mostram-se tênues, é u m a presença . Esta pre­
sença explicitada na cosmolog i a , nos rituais e
. O hospital é visto não só como o lugaradequado mitos, permite que através de cód igos moventes
para se morrer, mas ta m bém como lugar restrito, a reconstrução ocorra (7) Lá , o o utro lado, é uma

o nde os fa m i l i a res têm acesso re l ativo. A continuação do lado de cá, onde o j u lgamento vai
im preg naçãoda morte fica distanciada da moradia se processar a partir das obras rea l izadas aq u i , e
e também dos fa m i l iares. As marcas, os sinais da assi m , será conferido ao entra nte u m l ugar.
morte fi ca m assi m re servados a u m l u g a r A repetição é assim u m a maneira de negociar
i m pessoal , longe d o s l ugares de afeto e convívio. com a morte, domesticando a idéia do "nunca
Se a escolha do l ugar fosse a própria casa , por mais".
ser mais fa m i liar, espaço de proxe m i a , por outro
lado as marcas desta morte i m preg nariam este Morte e mana
loca l de lem branças dolorosas, com as quais a
fa mília teria de conviver: À morte e ao morto são conferidos poderes
"Foi aqui nesta sala que ela esteve (. . .) Para mágicos. Em bora um outro sujeito asseg u re não
meus filhos não guardarem aquela hora triste senti r medo.e que o "morto não faz mal a ninguém,
na casa, parece que o hospital é menos duro tenho medo é de vivo': a associação e ntre a morte
para a família". e o poder mágico é representação sempre presente,
Anular ÓS sinais da morte , mobil izá-los na ao longo da história do homem. MAUSS(4} vai
espacial idade não con h ecida e d ista nciada da denom inar "mana" essa força sobrenatural e
vida cotid iana e , para tal , a bri r m ão do conforto i ndefi n ida e faz dela uma categoria de anál ise
emocional· q u e a casa pode proporcionar àquele sociológ ica: .
que morre. A ambigüi9ade é i nsolúvel. Permanecer "O mana não é simplesmente uma força, um

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ser, é também uma qualidade e um estado (. . . ) mOffer hoje às cinco horas, (. . .) prepara, man­
qualidade mágica de uma coisa, coisa mágica, da fazer biscoito, fazer bolo". .
ser mágico, posse do poder mágico, ser en­ O moribu ndo presidindo à própria m orte, sendo
cantado, agir magicamerite". (4, p . 162) o centro de todas as atenções, isso era conside­
Esta mágica , l igada à rriorte, remete à noção rado a "boa morte". Assi m , todos os parentes,
da impureza e da conspurcação . A morte já foi a m igos e vizi n hos era m convocados a participar
vista como i mpreg nada de miasmas, e chegou-se daquele morrer. N i ng uém pod i a m orrer sozinho.
mesmo, na E u ropa do século XVl I l , a formular-se "(.. .) antes dele mOfferjá estava fazendo quar­
uma "teoria miasmática". to, porque ele ia mOffer qualquer hora e não
A compu lsão da lavar tud o , mesmo que o deixava sozinho" (D. Dedé) .
velório seja "limpinho": (. . .) eu tiro e tomo banho Ar.tigamente a m orte era costumeira , fami l iar,
inteirinho, que tudo que está �m mim vaipra água existia "uma hora da morte'� Uma hora i m portante
(. . .) sinto um pouco de náusea, um pouco de nojo", tanto para aquele que ia morrer, como para os que
demonstra m q u e a representação miasmática ficavam , com o d isse D . Diva :
sobrevive a todo cientificismo explicador. "(. . .) minha mãe mOffeu em casa. Ela mOffeu
A pol uição dia morte é uma representação cercada de todo o carinho, de todos os filhos,
social fortemente m a rcada !'la d iversidade das fizemos tudo o que a gente podia fazer'.
culturas h u manas. Ela remete à idéia angustiante A sensação do dever cu m prido eximia todo
da desordem e do descontr. sentimento de culpa, com o faci l itava a aceitação
desordem é a morte. Ela estraga o pad rão da da morte.
p l e n i t u d e d esej a d a . A o rd e m precisa se r
recomposta e o ba nho, a preocu pação com a A morte anunciada
l i m peza , não estão aq u i atreladas à questão
est,étiça ou meramente higiênica . Tal preocupação A morte era anunciada com vários sinais. Sua
assu me um caráter s i m bólico não trad uzível man ifestação mais sig nificativa era exátamente o
meramente em asseio. DOUGLAS(2) sustenta jeito ou a forma de repica r o sino.
que nossas concepções sobre sujeira não são A comunicação oficial de u m morrer procu rava
somente higiên icas, mas também ritual ísticas, preparar as pessoas da com u n idade para o enter­
i nteg radas a u m sistema de símbolos nem sem pre ro , e as alertava sobre a perda que aquela fam ília
faci lmente expl icitado . acabava de sofrer.
"(. . . ) quando antigamente dava aquele sinal
A hora da morte com o sino o dia inteiro - de hora em hora, de
duas em duas horas, aquele sino fúnebre, né ?
Na Idade Méd i a até meados do século XVI I I , a (D. Raimunda)
morte fazia parte do cotidiano das pessoas, A morte de uma pessoa i m punha a intensifica­
existindo assi m , uma relação de proxim idade ção das relações sociais. Cada g ru po passava a
entre os vivos e os mortos. A imagem que se tinha exigir dos seus sobreviventes o desempenho de
da morte era mostrada através de d uas pri ncipais papéis recristalizadores, que consistiam em privi­
características: a simplicidade fam i l i a r e a sua legiar determ i nadas relações e evitar outras. Afi­
publicidade, sendo que o morrer em público nai,
persistiu até o fi m do sécu lo XIX.(1) "(. . .) a morte de um individuo não é um evento
A morte era reg u lamentada por u m ritual isolado, mas representa tantos eventos quantas
costumeiro, ela não se apoderava , traçoeira , da relações o individuo morto mantivesse: amiza­
pessoas. Sendo assim , algu mas pessoas tinham des, inimizades, paternidade, filiação, aliança,
presse nt i m e ntos sobre o m o mento de sua propriedade. . . Todas essas relações, que cons­
ocorrência. tituem o tecido social, COffem o risco de se
A crença de q u e a rr.iorte avisa , e de que a romper, ou se rompem efetivamente". (6, p 85) ..

pessoa q u e va i morrer, é quem com u n ica a sua As pessoas não morrem mais em casa e sim
própria morte, aparece no depoimento de D. nos hospitais. E nestes observamos m u ita dificu l­
Ra i m u nd a , q u a ndo ela busca , na memóri a , as dade para se a n u nciar a presença da morte. Em
lembranças da morte .de sua avó . gera l , não fica claramente defi n ido a quem cabe
"De manhã ela disse: Olha, prepara que eu vou fazer esta com u n icação. Então ela passa a ocor-

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rer qe várias formas: o pessoal de enfermagem A s descrições da feitura dos caixões são, da
entra em contato com o serviço social, quando ele o mesma forma que as mortalhas, bastante varia­
existe, 'para providenciar a comunicação aos fam i­ das. Eram forrados por pano de várias cores que
liares; quando a morte ocorre à noite é a própria i ndicavam a idade, o sexo e as posses do morto.
enfermagem que procura fazer a comunicação Seg u ndo Debret, apud REIS(5) , o branco e o rosa
diretamente aos parentes, ou então, passa a cobriam caixões de crianças; o azul-celeste, os
i nformação à funerária para que ela o faça . das moças; o preto, os de ad u ltos. Os panos
Existe ainda, uma o utra forma em que o anún­ podiam ser tafetá , seda, veludo, decórado� com
cio da morte nos h ospitais se faz e que talvez seja galões de prata ou ouro .
a mais dolorosa: é a do leito vazio. Não m uito raro A importância que o caixão representava
o sistema de com u n i cação falha, por não ter naquelas comun idades está expressa , como d iz
atribu ído a tarefa a pessoas certas. Ao chegarem REI S(5,p 149) M,
• • • entre os acessórios funerários,
ao hospital para visitar o seu doente, os familiares aquele em que conduzia o cadáver era o que
surpreendem-se com o l e ito vazio . Buscam definia a dignidade da morte " .
i nformações e se defrontam com o falecimento do Aos nossos e ntrevistados não fa ltou a
seu ente q ue rido. comparação entre a sua vivência dos ritos fúnebres
Aos familiares, nesta situação, cabe fazer no i nterior, e o que ocorre em nossos d ias, com a
com unicações às pessoas das relações do morto. influência de uma cidade com grande concentração
Por sua vez, essa com u n i cação mais ampla, populacional :
dirigida a todos os que compõem o círculo social "(. . .) quando vai pro hospitaljá vem preparado,
d o morto, ta m bém fica restrita po r l i m ites né ? se mOffeu em casa, leva pro hospital, lá o
econômicos. corpo vem preparado, né ? ... inclusive acho
que já vem até dentro do caixi1o, né ? (D .
Preparativos do corpo Custódia).
Os ritos fúnebres do preparo d o corpo, foram
Ao longo da h istória, a necessidade do cumpri­ transferidos para dentro do hospitais para serem
mento de ritos para o enfrentamento da morte executados por quem? De que forma? Essa ou
pode ser observada através do preparo do corpo . essas pessoas con hecem os rituais, os quais a
Existiam as pessoas que se i ncubiam de pessoa q u e morre u g ostaria q u e fossem
determinadas tarefas pelo ritual estabelecido cumpridos? Elas conhecem o ritual que os seus
como, por exemplo, as pessoas que lavavam o fam iliares lhe ofereceriam?
corpo , costuravam rou pa para o defu nto e que
faziam os caixões. A sentinela
Lavaro corpo é o q ue se i m punha após a morte
: constatada . Sobre isto os nossos entrevistados O velório e ra feito na casa do falecido e o que
o nos contaram, com uma riqueza de detalhes: o marcava era a sol idariedade. As pessoas que
( ..) se a pessoa mOffeu, elas vinham [as
" . não estavam presentes, fazendo "quarto" ao
comadres] buscava a água fria e a{ jogava, moribundo, ao saber da morte , deixavam as
punha uma gamelona debaixo da cama (. . .) "obrigações" e iam velar o morto. Passavam a
virava um vidro de creolina na água da bacia e noite toda "vigiando"o morto, fazendo senti nela.
(...) enxugardefunto pra quê? Deixava ele lá, na Na salo a pri ncipal ou no q uarto maior da casa ,
cama (. . .) (D. Dedé) . o corpo ficava , geralmente , sobre a mesa . Se a
Na vivência dos nossos entrevistados era co­ família tinha menos recursos, uti lizava-se uma
mum o uso da mortalha para vestir o corpo do cama ou mesmo uma esteira . Quando o falecido
morto.·A mortalha identificava o morto, falava por era muito grande, i mprovisava-se uma porta como
ele e dele enquanto sujeito social . Dizia de sua mesa. O ambiente era de recolh imento , de tristeza ,
idade, sexo e posição social. de reza e cantoria o tempo todo.
A decisão sobre o tipo de mortalha para vestir Do lado de fora , o a m b i ente era mais
o morto era tomada pelos parentes, vizi nhos, que descontraído. Para passar o tempo, as pessoas,
participav am daquele rito fúnebre . M u itas vezes a predominantemente os homens, tomavam cacha­
pessoa teria escolhido, antes de morrer, a rou pa ça , contavam piadas, contavam histórias. H istóri­
com a qual gostaria de ser enterrada . as de morte, de assombração.

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As fronteiras eram tênues, demarcando a do na alça porq uatro pessoas, com sentimento de
espacialidadedo sagrado edo profano, relativizando sol idariedade . , o que amenizava o sofrimento pela
uma e outra d i mensão. O morto era ponto de perda.
l igação entre os ritos - cânticos e rezas - num Na roça , no mato , os corpos e ram transporta­
espaço sag rado , e a festa - as com idas, bebidas, dos em padiolas, redes, carroça , carro de boi ,
namoro - que se desenrolava num espaço profano. bangüê. Bang üê consistia e m :
No espaço sag rado - a sala onde se "guardava"o "(. . . ) amarrava o lençol e m dois paus compri­
defu nto - não eram servidas as comidas e bebidas . dos, punham o cadáverassim no meio e quatro
A elas era reservado u m espaço d iferenciado - na pessoas nas quatro' pontas dos paus. Na
rua , onde se acendia uma foguei ra , ou no fundo da cidade colocava o caixl1o". (D . Diva)
casa , na cozi nha. Todavia, estes espaços esta­ Dependendo da posição social do morto , usa-
vam integ rados a uma espacial idade maior - a vam:-se outros meios para transportar o corpo :
casa'do morto� "Agora aqueles fazendeiros, aquele pessoal
Nos velórios atuais, o espaço não é mais o da que tinha uma possezinha, tinha carro de boi,
casa , mas sim um velório contratado , pago . Em outra hora era charrete e maiorparte do povo ia
geral, anexo , existem os bares e cantinas. Aq ueles a cavalo". (D . Custódia)
que desejam comer ou beber algo, deslocam-se Nas cidades e em suas proximidades, termi­
ta mbém até este outro espaço e pagam o que nado o velório, o corpo era colocado no caixão, e
consome m . então ia para a m issa de "corpo prpsente"
'
A demarcação entre o s espaços sagrado e encomendação da alma a Deus. Isto possi bilitava
profano se absol utiza m . Estes, já não i nteg ram a a sua entrada no céu e, ao mesmo tempo, garantia
espacial idade maiorda casa . Embora geografica­ a sua saída deste m u ndo, seu não retorno à terra
mente aproxi mados, não guardam mais a antiga dos vivos.
relação. Talvez o com portamento de i r à ca ntina Antigamente o enterro era feito com m u ito
para beber e abandonaro morto e sua fam ília, já no sacrifício . A maioria das pessoas ia a pé , caixão
restrito tem po em que ocorre o velório, seja visto ca rregado por quatro pessoas. H oje, mesm o nos
como desrespeitoso . lugares onde não há m u ito recu rso, o enterro é
O velório, hoje anexo aos hospita is, ou aos mais fáci l :
cem itérios, mantém algu mas características dos "Isso agora já tem carrinho; já· tem uma
antigos velórios. Não tem mais cantoria, não tem empresinha lá, nesse lugar pequeno, entl1o,
mais reza a noite tod a , mas continua sendo uma cada um empurra um bocado, empurra na
ocasião de encontro coletivo e de reag rupamento estrada, a Rio-Bahia". (Sr. João)
de pessoas, que, m u itas vezes, só se encontram
nessas ocasiões, devido a amigos comuns. Apesar A ú ltima morada
da lanchonete, conti n ua-se servindo cafezi nho,
leite, biscoito , não j u nto ao cadáver, nãe para Os cem itérios eram sempre no alto de u m
todos, mas ainda existe "para dar mais conforto". morro , peq uenos, afastados da cidade, m u ro pin­
No d izer de RODRIGUES (6,p. 95) tado de branco, separando o m u ndo dos vivos do
"Os funerais sl10 as principais ocasiões de m u ndo dos mortos. A inumação simbol izava a
encontro coletivo e de reagrupamento dos saída defi n itiva do morto da sociedade dos vivos
individuos. (. . . ) Ocasiões em que os vivos e sua entrada no rei n o dos mortos.
fazem um espetáculo para si mesmos, do qual I ndependentemente do papel desempenhado
cada pessoa é ao mesmo tempo ator e espec­ pelo morto na sociedade, todos tinham seu espa­
tador, compondo um sistema de signos em ço delimitado pela cova (ou túmu lo) , e pela cruz
que se exprime a posiçl1o social do morto e a (ou lápide) identificando o "proprietário"daquele
de todos os participantes em relaçl10 ao grupo espaço .
familiar e à sociedade global". Atualmente os cem itérios são ainda n u m mor­
ro , mas, cada vez mais d isfarçados de acordo com
o cortejo fúnebre as representações q u e hoje se tem da morte.
M úsica am biente , vista para u m lago, colinas com
Os e nterros, naquela época , eram m u ito sim­ árvores, sem aq ueles sinais da morte, de a ntiga­
ples, populares: ca ixão feito sob medida, carrega- mente - sepultura , cruz, mausoléus, lápide de

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família. exteriorizado - o uso da cor preta no vestuário­
Hoje estes espaços são confu nd idos com a varia de acordo com o g rau de estreitamento do
natureza , e até mesmo aten uados por ela. As vínculo social com o morto. É o que nos falaram os
sepulturas, quando visíveis, são d iscretíssimas. nossos entrevistados:
Assim , como diz RODR I G U ES (6,p.1 "Quando o parente era muito próximo, pai,
A morte é maquilada e por isso dificilmente mIJe, filho, vestia o luto fechado, (. . .) quando
visfvel em sua verdadeira fisionomia. Ele [o era distante punha uma tarja preta no chapéu
cemitério] co"esponde à versIJo moderna da . ou no braço". (Sr. Petrônio) .
imposiçIJo de silêncio à morte. " A partir das representações si m bólico sociais
do luto , observamos que, de u m lado, era deverdo
A volta para casa enlutado manter u m isolamento do convívio social ,
e este isolamento só pod ia ser quebrado q uando
Terminado o enterro, as atenções dos presentes fosse-para participar de ritos de cu nho religioso .
se deslocam do morto para os fam iliares: Isto porque os ritos de expressão relig iosa , nas
"Depois do enterro, o pessoal costumava voltar situações de morte , já fazem parte do ritual fúne­
para casa juntos, para dar assistência à famf­ bre. E a Igreja passa a ser um espaço para
lia. "(D. Raimunda) consternação individual e coletiva, onde as pesso­
O "voltar para casa juntos': "a uniIJo" nos traz as podem l i berar suas reações emocionais, pro­
à memória a noção de socialidade que expressa vi ndas das lem branças daq uele que morreu recen�
"uma solidariedade de base que une os habitantes temente . Por outro lado, a cor preta do vestuário
de um mesmo lugar' (3,p52). No pensamento de incorporava , ou deveria incorporar, todas as mani­
MAFESSOLl(3) , a noção de sócialidade u ltrapassa festações detristeza e dor, mostrando, si m bolica­
a noção de social (racional) e i ncorpora todas as mente para todo o grupo, ou com un idade, o estado
min úsculas situações vividas no cotidiano societal. de espírito da pessoa que perdeu um pa rente
Nesse sentido, o "ser-junto-com" assume u m próxi mo. Se alguém não se vestia de preto , era
caráter med iador entre o que é rea l , uma situação sinal de que "(. . . ) nIJo tá ligando pra pessoa que
de morte, de perda, e o que se imagina, que se morre u" (Sr. Petrônio) .
pode fazer diante de tal situação. E, neste S e h á meio século atrás, n a lembrança dos
momento, o que i m porta é "nIJo deixar a gente entrevistados, a morte era mostrada e lem brada
sozinho", em q ue "a gente"que é o outro hoje, pode em todas as suas manifestações e dimensões,
ser o "nós" amanhã. hoje ela perdeu o espaço para sua exteriorização
Por outro lado, o m ito da i mortalidade e o tabu dando lugar a novos "ritos racionalizados". A cor
da morte, marcas da sociedade moderna ocidental, preta , por exemplo, passa a sim bol izar o "luxo" e
e n g e n d ra m n o v o s r i t o s q u e d i n a m i z a m o l uto permanece e se transforma num senti mento
comportamentos e atitudes d e pessoas e g ru pos contido , não exteriorizado .
sociais consona ntes com os valores modern istas. "(. . . ) a pessoa tem que ter luto é por dentro, é
Daí, surgem formas diferenciadas, "racionalizadas" no coraçIJo. "(Sr. Petrôn io)
condizentes com a sociedade atual, como nos "O luto [vestuário] nIJo representa o sentimen­
mostra a fala de D. Auxi liadora: to, o sentimento está dentro da pessoa, está lá
"Depois do ente"o aqui a pessoa esquece [a dentro escondido, ninguém vê". (Sr. Reservindo)
morte] com mais facilidade. Acho que é a
ocupaçlJo, a vida é mais agitada, parece que o 3. CONSI DERAÇÕES FINAIS
pessoal distrai melhor. No interior ficava dias e
dias, ninguém tinha outro' assunto, ninguém A morte, enquanto fenômeno extremo, para
comentava outra coisa, só a morte da pessoa. ser i nteg rada socialmente, exige que dela se
E aqui, nIJo; você vai ao enterro, depois que sai elaborem representações. Racional izada pelo
do cemitério cada um vai viver sua vida normal" co n h e ci m e nt o c i e nt ífico , m o d e rn izada na
construção das manifestações, i m pessoalizada
A morte lemb rada nos cu idados tecnologizados, esconde novos
ritos, transmudados pelas novas representações
O que pudemos o bservar é que a prática do que a sociedade desenvolveu da morte.
luto, principalmente n o que se refere ao seu sinal Os ritos p e rs i st e m o b sc u re ci d o s p e l a

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praticidade do m u nd o modern o . S u bsistem l iga­ d istanciamento d o ó bito poderia ser com preendi­
dos ao imaginá ri o coletivo com o rico aceNo da d o comQ u m tipo de com portamento h i po , que se
história da h umanidade. coloca como uma forma aliviadora e terapêutica
A i mortalidade dos ritos mortuários, a vitalida­ desta angústia d ia nte da morte, tal como as
de com que perfu ram a camada densa da razão , explosões de e moções "exageradas" em h i per.
demonstra q u e conservam, n a sua reatualização , Assim , a aparente ausência de ritos, na morte
seu forte potencial tera pêutico. As representações hospitalizada , pode ser vista como ritos às
sociais da morte , manifestada n os ritos, restau ram avessas. A n egação dos ritos assegu ra as suas
o tecido social por ela fragi lizad o . presen ças, persegu i nd o os m esmos efeitos. "
Avan ços tecnológ i cos e de conhecimentos O desejo, que sustentou a trajetória deste
médico-biológicos determinararn a medicalização trabalho, foi tocar o i ntocável , soltar a voz aprisio­
social," e fizeram do ser humano um consumidor nada no mal-estar q u e o tema sempre causa,
de cuidados de saúde . Todavia, não afastaram a reafirmar o lugar privilegiado do rito na compreen­
angústia do homem d iante da morte , apesar da são d o vivido h u mano.
parafernália da tecnologização da saúde. A ciência Acreditamos que, ao final d este trajeto , o texto
não pode curara homem da m o rte , nem do medo se coloca com o a i ncidência de luz em uma
que ela suscita. Nestas frestas os ritos se insinuam, perspectiva do fenômeno, enquanto outras faces
co mo m ed iadores para este e nfrentamento. contin uam obscurecidas. Desvelarcada pequeno
Recompora perda, geren ciara desordem ca usada ângulo, tendo certeza de que a i nteireza da morte
pela morte, i ntegrá-Ia no cotidiano, ajudara aceitar " sempre continuará desconhecida, é tarefa na q ual
o fenômeno com sua estranheza , são fu nções desejamos q u e os profissionais de saúde se
das ritual ísticas mortuárias. envolvam . Estas aproximações sucessivas podem
N os rituais, gerenci ad os pel as poderosas criar interlocuções enriquecedoras que não elimi­
instituições hospitalares, os proflSS i onaisde saúde narão o mal-estar, mas q u e construi rão formas
assu m e m os papéis d a �oci edade . · A mediadoras do seu enfrentamento. No vivido,
i mpessoalidade i nstitu cional. apenas cam ufla o enquanto matéria-prima para o d esvelamento do
ser-aí d os profissionais. A a pare nte frieza com fenômeno, delineia-se u m a trajetória i mportante
que recebem esta onerosa carga de prestar os para esta aproximação, i mpondo�se como via
úJtimos cuidados ao moribundo, ao corpo morto, e < metodológica de eleição .
aos familiares, possibilita outras leiturasque devem Ouvir o s velhos, dar voz a este silêncio, tão
ir além do estereótipo. E é tam bém , como seres rico e subestimado, revelou-se para nós como u m
humanos, que se deparam com a morte do outro , caminho fascinante. U m pouco da h istória d o
e esta explicita a s suas pró prias mortes. homem , da nossa história , ficou registrada . Os
Todavia, esta carga desagradável do lidar com sujeitos sent i ra m-se tão valorizad os que se
a morte é atenuada pela i nd iferença constru ída do mostraram perplexos. Por q u e as pessoas da
profissional de saúde. Estereoti pado na i magem universidade estavam precisando deles, d ispu­
daq uele "acostumado" a esta tarefa , i mpõe-se a nham-se a ouvi-los? O que de i mportante teriam
ele (e ele mesmo se i m põe) , a repressão das eles para n os ralatar? Na riq u eza deste acesso
m a n ifestações e m ocio nais, escondendo n o escondido, tão pouco consu ltado, repousa a
energismo, na aparente d u reza e praticidad e , o sabedoria de quem viveu m u ito e tem m u ito a
vitalismo humano d o se r-aí-com-os-outros. d izer, basta perg untar-lhes. A alteridade destas
A paixão, que se manifesta n os sentimentos experiências i l u minou o ca m i n h o , alargou nosso
p uros, se exterio riza nas várias máscaras, dentro olhar e n os fez desvestirmo-nos de nossas
da teatralidade social. MAFFESOLl (3) reporta , ao armaduras de profissionais, para captar o o"lhardo
analisar a sexualidade, aos comportamentos hipo­ o utro , diferente d o n osso e tão necessário à nossa
sexuais dos mártires e devotos da cristandad e , complementaridade.
onde o corpo erasupliciado para a bafaros desejos Mais que entrevistados, eles foram nossos
"
carnais. N esses supl ícios podem ser identificadas g u ias, receberam-nos em suas casas e com suas
verdadeiras manifestações org iásticas, e nas de­ falas simples com o é a sabedori a , e ntrecortadas
m onstrações da fé em C risto , através dos de troPf;lços de l inguag e m , de emoção , de espan­
supl ícios, os d esejos corporais também eram to , de prazer em se sentire m úteis, eles nos
aten d idos. O profissionalismo exp l icitado no legaram pedaços importa ntes do seu viver. Confi-

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a ram a nós u m pouco das histórias de suas vidas curva do tempo vivido, os sujeitos nos mostrara m ,
que unimos em config u rações coloridas pelo nos­ carinhosamente, que a m o rt e é dizível e que os
s o e n t u s i a s m o e refre a m o s , n o ri g o r ritos falam dela, mesmo no silêncio i m posto pela
epistemológico , sem todavia e m pobrecê-Ias. Na racionalid ade.

ABSTRACT: This a phenomenologial study rites i n the memory of elderly people , orig inated
from the discomfort lived by the a uthors in their professional life dealing with death and dying .
Verbal i nformation from elderly people was collected with the objective of recovery a nd
decod ing mortuary rites. N i n e themes orig inated from these informations: feel i ngs a nd
meanings i n relation to death , the time of death , the a n n unciation death , the body's
preparations, the watcher, the fu nera l procession , the g rave, the ret u m to home, the
remembered death. The resu lts gave the a uthors opportun ity to understand better the
attitudes of health professionals in ca ri ng for patients and their fam i l ies i n this existencial
experience of to - be - for - death . The death rational ized by scientific knowledge a nd
nonpersonal tech nolog ical care h ides new rites, transmuted by new representations which
the society built.

KEYWORDS : Attitude to death - Funera l rites - Ederly - Patient care team

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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sociedades complexas. Rio de Janeiro: Zahar, 1 994.


4 - MAUSS, M. La priêre. I n : Oeuvres. Paris: P U F , 1 950.
Encaminhado para publicaçao em 4/1 1 / 94.
Aprovado' para publicaçao em 20/2/95.

16 R. Bras. Enferm. Brasília, v. 48, n. 1, p. 7- 1 6, jan.lmar. 1 995

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