Você está na página 1de 7

PRÉ-UNIVERSITÁRIO OFICINA DO SABER Aluno(a):

DISCIPLINA: Literatura PROFESSORES: Suéllen da Mata

SEGUNDA ÉPOCA MEDIEVAL TEXTO 5

HUMANISMO
Contexto histórico-cultural
Com o renascimento urbano da Idade Média, surgiram os burgos, que eram pequenas cidades protegidas por muralhas,
torres e portões. Essas povoações se caracterizavam pela mistura das culturas rural e urbana.

Os habitantes dos burgos eram chamados de burgueses; viviam numa situação peculiar no sistema feudal, já que não
eram servos nem membros da aristocracia dos castelos. Eles se dedicavam principalmente ao comércio de produtos rurais
(ovos, frangos, legumes, coelhos, etc.); utensílios domésticos; especiarias; objetos variados; etc. Também exerciam
atividades financeiras e bancárias.

Esses mercadores foram inicialmente desprezados pela nobreza. No entanto, essa nova classe social — enriquecida pela
prática do comércio — começou a adquirir mais poder, infiltrando-se na aristocracia e passando a dominar a vida social,
cultural e econômica a partir do século XVIII.

Além de permitir um contato maior entre pessoas de diferentes lugares (o que contribuiu decisivamente para a
intensificação das trocas culturais), o comércio passou gradativamente a representar uma importante fonte de
enriquecimento, convivendo com a riqueza fundiária, isto é, associada à posse da terra que havia predominado no
feudalismo.

Durante os séculos XIV e XV, a Europa passou por grandes transformações. A burguesia enriquecida teve participação
decisiva nesse processo, favorecendo o desenvolvimento das navegações e a expansão marítima de alguns países, entre
os quais Portugal teve papel de destaque.

O poder político escapou das mãos dos senhores feudais e se concentrou no rei. Um dos primeiros países europeus a
concretizar esse processo de centralização de poder e a ter um reino unificado foi Portugal, no final do século XIV, com a
ascensão ao trono de D. João I, o Mestre de Avis. Em seu reinado, iniciou-se a expansão marítima portuguesa, a partir da
tomada de Ceuta, no norte da África, em 1415.

As justificativas para a expansão marítima eram: a propagação da fé católica, o alargamento das fronteiras do império e o
estabelecimento de lucrativas linhas comerciais. Com o sucesso das navegações, Portugal passou por um período de
grande prosperidade política e econômica.

A cultura humanista
No final da Idade Média, a Europa viveu uma onda de interesse crescente pela cultura antiga. Autores gregos e romanos
da Antiguidade passaram a ser traduzidos e estudados. E os valores clássicos, aos poucos, foram retomados,
principalmente no que dizia respeito ao ser humano: relacionamentos sociais, crenças religiosas, questões morais, etc.
Esse movimento — que recebeu o nome de Humanismo — pode ser considerado uma etapa inicial de uma revolução
cultural mais ampla, o Renascimento (que estudaremos posteriormente).

SAIBA MAIS
A difusão do conhecimento humanista foi possibilitada por uma invenção
revolucionária: a prensa. Por volta de 1450, o alemão Johannes Gutenberg criou um
processo de impressão que daria início à produção de livros em escala maior do que
até então se fazia.

Página da Bíblia, primeira obra impressa


por Gutenberg.
O Humanismo correspondeu a um período de convivência de duas correntes de
pensamento: de um lado, o teocentrismo (teo significa “Deus”), mais espiritualista e
místico; de outro, o antropocentrismo (antropo significa “Homem”), voltado para a
realidade terrena. Não havia uma oposição excludente entre Homem e Deus, mas uma
aproximação entre o humano e o divino. Nesse período, o ser humano passou a ser o
centro e a medida de todas as coisas. Esse novo referencial colocou em evidência a
noção de livre-arbítrio, isto é, livre decisão.

Essa noção de livre-arbítrio supõe a capacidade de fazer escolhas, por intermédio das
quais o ser humano decide sua vida e define opções sobre seu próprio destino —
incluindo a salvação ou a perdição da alma. Essa afirmação do poder humano é um
dos traços mais marcantes do antropocentrismo.

Apesar da valorização da ação humana por causa do Humanismo, a temática religiosa


ainda continuaria por muito tempo: a fé como um referencial individual e o
cristianismo como uma referência cultural importante.

Agora observe a obra O juízo final, de Jan Van Eyck (1390-1441), que apresenta a
mesma temática desenvolvida pelo escritor português Gil Vicente (que estudaremos
ainda neste capítulo) em algumas de suas peças: o julgamento das almas humanas.

A divisão da obra em duas partes é nítida: a porção superior (em cores claras)
representa o céu, enquanto a porção inferior (com zonas sombreadas) faz referência ao
inferno. Os elementos fortes que compõem a tela tinham um caráter educativo:
impressionar os espectadores, para estimulá-los a evitar o pecado.

A polarização de ideias que está expressa nesta obra (superior × inferior, cores claras ×
zonas sombreadas, céu × inferno, virtuosos × pecadores) recebe o nome
de maniqueísmo. EYCK, Jan Van. O juízo final. c.
1430. Óleo sobre tela, 56,5 × 19,7
Além da perspectiva maniqueísta, a temática da morte também está bastante presente cm. Museu de Arte Metropolitano,
Nova York, Estados Unidos.
na arte medieval, o que inclui a obra de Gil Vicente.

O teatro humanista na Idade Média

Na Idade Média, havia vários tipos de representações teatrais. As principais eram estas:

• Autos — apresentações dramáticas de caráter moral compostas de


apenas um ato, cujas personagens eram figuras de devoção (os
santos, por exemplo) ou alegorias (Virtudes, Vícios, etc.).
• Mistérios — representações de passagens da vida de Cristo.
• Milagres — encenações das interferências de santos e da Virgem
Maria nas ações humanas.
• Farsas — obras de grande apelo popular, principalmente por seu teor
satírico.

No início da Idade Média, as representações cênicas tinham caráter


religioso e aconteciam em igrejas e mosteiros. Em geral, as peças eram
apresentadas por membros do clero e tinham os fiéis como figurantes. Ilustração representativa de um espaço para
encenação teatral na Idade Média. As apresentações
Com o passar do tempo e a crescente valorização da vida na corte, as também ocorriam em praças e pátios de castelos. Na
imagem, os atores estão representando vendedores
peças passaram a ser encenadas para entretenimento de reis e nobres, o orvietanos na feira de Saint-Germain, em Paris.
que diversificou os assuntos. Essas representações em geral se davam Escola francesa, século XVII.
em tablados, por vezes conduzidos por carroças de uma cidade a outra.

Muitos estudiosos afirmam que o teatro português nasceu com Gil Vicente. Apesar de ser inegável a importância desse
autor para a literatura portuguesa, sabe-se que antes dele já havia manifestações teatrais. Provavelmente, Gil Vicente deve
ter assistido a algumas dessas representações, superando-as com seu talento.
Gil Vicente

Não se sabe ao certo a data de nascimento de Gil Vicente, mas acredita-se que ele
nasceu por volta de 1465. Ele desenvolvia trabalho junto às finanças do reino.

Sua estreia em teatro, porém, tem data certa: na noite de 7 de junho de 1502, ele se
apresentou diante da rainha D. Maria para celebrar o nascimento do príncipe D. João.

O episódio passou para a história pelo inusitado da cena: Gil Vicente irrompeu no
espaço real vestido como um homem rústico e recitou o seu Monólogo do
vaqueiro (ou Auto da visitação), saudando o acontecimento.

A iniciativa e o tom cômico dessa saudação chamaram a atenção de toda a nobreza, e o


nome de Gil Vicente começou a circular pela corte.

Ele manteria esse prestígio até sua morte, ocorrida por volta de 1536.
GAMEIRO, Roque. Aquarela. A pintura mostra o próprio
Gil Vicente, no Palácio Real d’Évora, encenando
o Monólogo do vaqueiro.
SAIBA MAIS
Aquarela é uma técnica muito antiga de pintura em que é utilizada tinta obtida por uma massa de várias cores
dissolvida em água. Os suportes variam do plástico ao tecido; o mais comum é o papel.

Personagens: tipos e alegorias

Em suas peças, Gil Vicente oferece um painel da sociedade portuguesa de seu tempo. Suas personagens podem ser
divididas em dois grupos principais:

• Tipos sociais — personagens que apresentam atributos específicos de uma classe ou de um grupo.
• Alegorias — personificações de instituições, como Roma (representação da Igreja Católica), e de conceitos
abstratos, como o Anjo (representação do Bem) ou o Diabo (representação do Mal).

O trecho a seguir foi retirado da peça Auto da feira, de 1527. A “feira” a que se refere o título é um local onde se vendem
virtudes e pecados.

DIABO Se me vem comprar qualquer


clérigo, ou leigo, ou frade
I há de homens ruins falsas manhas de viver,
mais mil vezes que não bons, muito por sua vontade,
como vós muito bem sentis. senhor, que lh’hei de fazer?

E estes hão de comprar E se o que quer bispar


disto que trago a vender, há mister hipocrisia,
que são artes de enganar e com ela quer caçar;
o que deviam lembrar; tendo eu tanta em porfia,
que o sages mercador por que lha hei de negar?
há-de levar ao mercado [...]
o que lhe compram melhor;
porque a ruim comprador ROMA
levar-lhe ruim brocado.
[...]
[...] Pois se eu aqui não achar
Se eu fosse tão mal rapaz, a paz firme e de verdade
que fizesse força a alguém, na santa feira a comprar,
era isso muito bem; quanto a mim dá-me a vontade
mas cada um veja o que faz, que mourisco hei-de falar.
porque eu não forço ninguém.
VICENTE, Gil. Auto da feira. In: SPINA, Segismundo (Org.).
Obras-primas do teatro vicentino. São Paulo: Difel/Edusp, 1970. p. 207-209. (Fragmento).
.........................................................................................
O riso e a crítica

Em muitas de suas peças, Gil Vicente explorava o efeito cômico no enredo e nos diálogos. A abordagem bem-humorada
de personagens como o camponês simplório, a moça que tem pressa para casar e o velho com comportamentos juvenis
deu muita popularidade aos seus autos.

Contudo, isso não quer dizer que seu teatro não fosse sério. Ele tinha uma intenção ao provocar o riso. Através do humor,
tratava de questões importantes da sociedade portuguesa. Assim, Gil Vicente desenvolveu uma obra teatral de grande
poder crítico.

Um exemplo desse uso crítico do humor está no Auto da Índia, que critica o adultério como consequência das viagens
marítimas. O enredo dessa peça gira em torno de Ama, uma mulher cujo esposo viaja para a Índia.

Leia, a seguir, dois trechos da peça: no primeiro, observe a reação da esposa quando o marido parte e, no segundo, a
reação dela quando ele retorna.

Texto 1 Texto 2

AMA AMA

Mas que graça que seria, Ora como vos foi lá?
Se este negro meu marido
Tornasse a Lisboa vivo MARIDO
Para minha companhia!
Mas isto não pode ser; Muita fortuna passei.
Qu’ele havia de morrer
Somente de ver o mar. AMA
Quero fiar e cantar, E eu oh, quanto chorei,
Segura de o nunca ver. Quando a armada foi de cá!
VICENTE, Gil. Auto da Índia. In: Obras de Gil Vicente.
E quando vi desferir,
Porto: Lello & Irmão Editores, 1965. p. 324. (Fragmento). Que começaste de partir,
Jesu! eu fiquei finada;
Três dias não comi nada,
A alma se me queria sair.

VICENTE, Gil. Auto da Índia. In: Obras de Gil Vicente.


Porto: Lello & Irmão Editores, 1965. p. 326. (Fragmento).

Moralidade católica

Gil Vicente seguia em suas peças a orientação ideológica da Igreja Católica. Para ele, os exemplos de vida estavam
registrados na Bíblia. Mas segui-los, ou não, era uma opção humana.

No Auto da alma, há uma referência a essa forma de pensar. Na peça, a Alma humana procura seu caminho, dividida
entre as tentações do Diabo e as oferendas do Anjo. Em certo momento, este último se dirige a ela, enfatizando a noção
de livre-arbítrio, que aparece na expressão “livre alvedrio” do primeiro verso transcrito a seguir.

ANJO vosso estado.


Deu-vos livre entendimento,
Vosso livre alvedrio, e vontade libertada
isento, forro, poderoso, e a memória,
vos é dado que tenhais em vosso tento
pelo divinal poderio fundamento,
e senhorio, que sois por ele criada
que possais fazer glorioso para a glória.
VICENTE, Gil. Auto da alma. In: SPINA, Segismundo (Org.).
Obras-primas do teatro vicentino. São Paulo:
Difel/Edusp, 1970. p. 140. (Fragmento).

Auto da barca do inferno

O Auto da barca do inferno (c. 1517) é uma das peças de teatro mais conhecidas de Gil Vicente, sendo encenada até hoje.
Parte desse sucesso se deve ao fato de tratar de assuntos que ainda despertam nosso interesse. Duas outras peças do autor
seguem a mesma temática: o Auto da barca do purgatório (1518) e o Auto da barca da glória (1519). No seu conjunto, as
três obras formam a chamada Trilogia das barcas.

Para entender o que se passa na obra Auto da barca do inferno, imagine esta cena: em um porto, duas embarcações
esperam os passageiros, enquanto os timoneiros (isto é, aqueles que manejam o timão, o leme) acertam os últimos
preparativos. Pouco a pouco, chegam os passageiros. Depois de trocarem algumas palavras com os timoneiros, eles
sobem em uma das embarcações. Ao final, as naus partem.

Esse enredo possui um sentido alegórico, isto é, tudo parece ser uma coisa, mas representa outra. Cada elemento
simboliza algo que não está tão explícito e à vista do espectador.

O porto é um local de recepção das almas humanas. Uma das barcas vai para o céu, e seu timoneiro é um Anjo, que
representa o Bem; a outra vai para o inferno e tem por condutor um Diabo, que representa o Mal. Os passageiros
simbolizam as almas cujas ações em vida recebem ali o seu devido pagamento: os virtuosos entram na Barca do Céu e os
pecadores, na Barca do Inferno.

As personagens encarnam tipos da sociedade portuguesa, apresentados sob uma perspectiva crítica. E também funcionam
como alegorias de valores morais positivos (os virtuosos) e negativos (os pecadores).

Os condenados ao inferno são:

• Fidalgo — era explorador, além de vaidoso;


• Onzeneiro — emprestava dinheiro e cobrava juros abusivos;
• Sapateiro — enganava seus fregueses;
• Frade — não seguia os preceitos católicos;
• Brísida Vaz — era alcoviteira, isto é, gerenciava a prostituição;
• Corregedor e Procurador — eram membros do sistema judiciário acusados de corrupção;
• Enforcado — era acusado pelos crimes cometidos.

Há ainda o Judeu, condenado simplesmente por sua fé — o que revela uma visão preconceituosa.

O trecho a seguir mostra o diálogo entre o Diabo e o Corregedor, no momento em que este tenta escapar da condenação
infernal.
CORREGEDOR CORREGEDOR

Hou da barca! No meu ar conhecereis


que eles não vêm de meu jeito.
DIABO
DIABO
Que quereis?
Como vai lá o direito?
CORREGEDOR
CORREGEDOR
‘Stá aqui o senhor juiz!
Nestes feitos o vereis
DIABO
DIABO
Ó amador de perdiz,
quantos feitos que trazeis! Ora, pois, entrai, veremos
que diz í nesse papel.
CORREGEDOR [...]

E onde vai o batel? DIABO

DIABO Quando éreis ouvidor


non ne accepistis rapina?
No inferno vos poremos.
[...]
CORREGEDOR
CORREGEDOR
Como?! À terra dos demos
há-de ir um corregedor?! Domine, memento mei!

DIABO DIABO

Santo descorregedor, Non es tempus, bacharel!


embarcai, e remaremos! Imbarquemini in batel
quia judicastis malicia.
Ora entrai, pois que viestes
CORREGEDOR
CORREGEDOR
Semper ego in justicia
Non est de regulae juris, não! fecit, e bem por nível.
VICENTE, Gil. Auto da barca do inferno.
In: SPINA, Segismundo (Org.). Obras-primas do teatro vicentino.
São Paulo: Difel/Edusp, 1970. p. 126-127. (Fragmento).

Os virtuosos, recompensados com o céu, são: o Parvo Joane, camponês simplório, humilde e inocente; e os Cavaleiros,
guerreiros que morreram nas Cruzadas.

Lembre-se
As Cruzadas eram expedições militares em que os cristãos lutavam contra os muçulmanos nas chamadas “guerras
santas”.

Quando os Cavaleiros entram em cena, o Anjo os recebe na sua barca, que parte, encerrando a peça. Leia a fala do Anjo
dirigida aos Cavaleiros.

Vêm quatro Cavaleiros cantando, os quais trazem cada Ó cavaleiros de Deus,


um a cruz de Cristo, pelo qual Senhor e A vós estou esperando,
acrescentamento de sua santa fé católica morreram em Que morrestes pelejando
poder dos mouros. [...] Por Cristo, senhor dos Céus!
Sois livre de todo o mal,
[...] Mártires da Madre Igreja,
Que quem morre em tal peleja
ANJO Merece paz eternal.
VICENTE, Gil. Auto da barca do inferno. In: SPINA, Segismundo (Org.).
Obras-primas do teatro vicentino. São Paulo: Difel/Edusp, 1970. p. 134.
(Fragmento).

_________________________________________________________________________________________
_

Fonte bibliográfica:

COUTO, Fernando Marcílio Lopes. Literatura: Formação do leitor literário – São Paulo: Moderna, 2017.

(Texto adaptado)

Você também pode gostar