Você está na página 1de 17

(O

SENTIDOS PARA A
DEMOCRACIA
CO
o
o
ue a democracia hoje esteja e m crise, nos vá- órico, essa crise da democracia n o Brasil e n o m u n d o .

Q
rios significados atribuídos a esta p a l a v r a , é N o primeiro artigo, o filósofo V l a d i m i r Safatle ana-
u m a afirmação b a n a l , mas n ã o p o r isso m e - lisa as relações entre justiça e d i r e i t o n o i n t e r i o r de
nos v e r d a d e i r a . " A frase do pensador i t a l i a n o "Estados ilegais" que, sob a falsa aparência d o Estado
M i c h e l a n g e l o Bovero resume o verdadeiro incipit que de direito, b l o q u e i a m o acesso efetivo de seus cidadãos
deu o r i g e m a este dossiê histórico da C U L T . ao exercício democrático de seus atos.
Poderíamos entender " h i s t ó r i c o " , a q u i , sob u m d u - E m seguida, o sociólogo Jorge Z a v e r u c h a explica
p l o aspecto. E m p r i m e i r o lugar, percebemos que hoje seu conceito de " s e m i d e m o c r a c i a " , para m o s t r a r que,
u m a reavaliação dos sentidos de democracia t o r n o u - no Brasil, ainda não há u m q u a d r o político estável que
se exigência f u n d a m e n t a l de cidadania. Os escândalos fortaleça suas próprias instituições democráticas.
corriqueiros que se convertem em n o r m a n o interior de J á o h i s t o r i a d o r G u n t e r A x t descreve alguns m o -
nossas debilitadas instituições democráticas, os perigos mentos f u n d a m e n t a i s da assimilação da ideia de de-
de uma colonização cada vez mais devastadora d o es- mocracia n o Brasil.
p a ç o político pelas leis de mercado e a falsa crença de Por fim, dois artigos longos e inéditos de autores
que liberdade i n d i v i d u a l corresponde a liberdade eco- que se t o r n a r a m decisivos para o entendimento do atual
nómica, as violações sistemáticas aos direitos humanos, estágio da democracia e de suas formas de superação.
são indícios, e n f i m , da precariedade n o r m a t i v a que o Michelangelo Bovero retoma e atualiza, nesse senti-
conceito de democracia enfrenta atualmente. d o , a c o n c e p ç ã o processual de democracia criada pelo
" C r i s e " significa estado de incerteza o u de declínio. filósofo político N o r b e r t o B o b b i o .
Portanto, u m recuo teórico, capaz de nos fornecer sub- O filósofo esloveno Slavoj 2izek trata inicialmen-
sídios para uma compreensão do verdadeiro alcance das te d o vínculo entre democracia liberal e capitaUsmo,
ações efetivamente democráticas, deveria ser entendido usando o e x e m p l o da C h i n a c o m o sinal de fracasso
c o m o tarefa essencial e urgente, até para que direitos dessa ligação, para e m seguida chamar a atenção para
sociais historicamente conquistados não entrem em co- o declínio da ética política de países centrais da Europa.
lapso diante dos excessos de barbárie política que pre- Z i z e k pensa sobretudo n o caso itaUano, cujo p r i m e i r o -
senciamos e m governos ditos, inclusive, democráticos. ministro encaminharia uma concepção renovada de " t i -
M a s este dossiê t a m b é m p o d e r i a ser considerado rania d e m o c r á t i c a " e de barbárie, ao u n i r tecnocracia
histórico porque conseguiu reunir pensadores renoma- e p o p u l i s m o fundamentalista e ao adotar u m p r o c e d i -
dos e de diferentes tradições para focalizar, no plano te- m e n t o cínico de suspensão da ética. (ES)

42 A DEMOCRACIA PARA
ALÉM DO ESTADO
DE DIREITO?
45 o BRASIL É UMA
SEMIDEMOCRACIA? 48 DEMOCRACIA NO BRASIL:
UM BREVE HISTÓRICO

O desafio de pensar a democracia em A Constituição de 1988, tal como a anterior, Séculos de um sistema educacional precário
tudo aquilo que se encontra à margem tornou constitucional o golpe de Estado, inviabilizam o conhecimento das regras do
do Estado de direito desde que liderado pelas Forças Armadas jogo democrático pelos cidadãos

Vladimir Safatle Jorge Zaverucha Gunter Axt

40 BSS n°137
DEMOCRACIA
CORROMPIDA
r/
O O
DEMOCRACIA EM
DEBATE
CULT convidou Michael Lõwy, Fábio Wan-
58 OBSERVAR A DEMOCRACIA
COM AS LENTES DE BOBBIO
A teoria das regras constitutivas como
O potencial autêntico da democracia vem derley Reis e Renato Lessa para debater instrumento de diagnostico do grau
perdendo terreno hoje para a ascensão de algumas das questões candentes da demo- de democracia dos regimes políticos
um novo capitalismo autoritário cracia no atual quadro político nacional e contemporâneos
internacional
Slavoj Zizek Michelangelo Bovero

SEi "°i37 41
DOSSIÊ A DEMOCRACIA E SEUS IMPASSES

A democracia para além


do Estado de direito?
O desafio de pensar a democracia em tudo aquilo que se encontra
à margem do Estado de direito

VLADIMIR SAFATLE

as o Estado democrático excede os limites tra- p a n d o essa p o s i ç ã o : o c r i m i n o s o que v i o l a abertamente


dicionalmente atribuídos ao Estado de direito. a lei que garante a segurança d o Estado de d i r e i t o o u (e
Experimenta direitos que ainda não lhe estão aí as coisas c o m e ç a m a se c o m p l i c a r ) o l e g i s l a d o r q u e
i n c o r p o r a d o s , é o teatro de u m a contestação a f i r m a que, e m situações de e x c e ç ã o , c o m o e m caso de
cujo objeto não se reduz à conservação de u m pacto taci- guerra (mas sabemos hoje c o m o é cada vez m a i s c o m -
tamente estabelecido, mas que se f o r m a a p a r t i r de focos p l i c a d o d i s t i n g u i r estado de g u e r r a e estado de paz) o u
que o poder não pode d o m i n a r i n t e i r a m e n t e . " Q u e m diz de crise (mas sabemos hoje c o m o h á sempre u m a crise
essas frases n ã o é u m adepto da esquerda revolucionária grave à espreita), certos d i s p o s i t i v o s legais p o d e m ser
que estaria à p r o c u r a d o m e l h o r m o m e n t o para solapar suspensos.
as bases d o Estado de d i r e i t o . Essas são frases de Claude N o e n t a n t o , é possível q u e exista u m t e r c e i r o caso
L e f o r t e m A invenção democrática: u m l i v r o largamente de excesso e m r e l a ç ã o a o Estado de d i r e i t o , u m exces-
dedicado, ao contrário, à crítica das sociedades burocráti- so m u i t o b e m p o s t o p o r Jacques D e r r i d a p o r m e i o d a
cas no antigo Leste Europeu. Nessas frases, estão sintetiza- seguinte a f i r m a ç ã o , q u e e n c o n t r a m o s e m Força de lei:
das algumas reflexões maiores sobre a relação i n t r i n c a d a " Q u e r o l o g o reservar a p o s s i b i l i d a d e de u m a j u s t i ç a ,
entre justiça e direito. Relação que ultimamente tendemos o u de u m a l e i , que n ã o apenas exceda o u c o n t r a d i g a o
a ignorar, c o m o se t u d o a q u i l o que acontecesse à m a r g e m d i r e i t o , mas que talvez n ã o tenha r e l a ç ã o c o m o d i r e i t o ,
d o Estado de d i r e i t o fosse necessariamente ilegal e p r o - o u m a n t e n h a c o m ele u m a r e l a ç ã o t ã o estranha que p o -
fundamente a n i m a d o de premissas antidemocráticas. Pois de t a n t o e x i g i r o d i r e i t o q u a n t o e x c l u í - l o " . Pode, p o i s ,
talvez tenhamos p e r d i d o a capacidade de pensar q u a l o a justiça n ã o apenas exceder o d i r e i t o , mas m a n t e r c o m
sentido desta democracia que "excede os limites t r a d i c i o - ele u m a r e l a ç ã o t ã o estranha que p a r e ç a se c o l o c a r e m
nalmente atribuídos ao Estado de d i r e i t o " . U m p o n t o de u m a indiferença soberana? G o s t a r i a de i n s i s t i r que essa
excesso que se m o s t r o u , ao longo da história contemporâ- possibilidade, longe de solapar e fragilizar a democracia,
nea, u m m o t o r f u n d a m e n t a l das dinâmicas d o político. é o q u e a f u n d a e a fortalece. Pois essa p o s s i b i l i d a d e é
Talvez t e n h a m o s p e r d i d o a capacidade de pensar a u m o u t r o nome para aquilo que normalmente chama-
democracia c o m o p o n t o de excesso em relação ao Estado mos de " p o l í t i c a " .
de d i r e i t o p o r q u e a c r e d i t a m o s que t u d o o q u e se c o l o -
ca f o r a d o E s t a d o de d i r e i t o s ó p o d e r i a t e r p a r t e c o m Estados ilegais
o m a i s c l a r o t o t a l i t a r i s m o . Q u e m está f o r a d o Estado Conhecemos situações nas quais a justiça se dissocia d o
de d i r e i t o parece se c o l o c a r e m u m a p o s i ç ã o soberana, d i r e i t o . Trata-se de situações nas quais nos d e p a r a m o s
p o s i ç ã o destes que p o d e r i a m n ã o se submeter à l e i , m o - com u m "Estado i l e g a l " . M e s m o a tradição política liberal
dificar c o n t i n u a m e n t e a lei ao bel-prazer dos c a s u í s m o s a d m i t e , ao menos desde J o h n L o c k e , o d i r e i t o que t o d o
e c i r c u n s t â n c i a s . V e m o s apenas d o i s c a n d i d a t o s o c u - cidadão t e m de se c o n t r a p o r ao t i r a n o , de l u t a r de todas

42 n°137
DOSSIÊ I A DEMOCRACIA E SEUS IMPASSES

as f o r m a s c o n t r a aquele que usurpa o poder e impõe u m os que p a r t i c i p a r a m da luta a r m a d a c o n t r a o regime m i -


Estado de terror, de censura, de suspensão das garantias l i t a r brasileiro em " t e r r o r i s t a s " colocam-se aquém de u m
de integridade social. Nessas situações, a democracia re- conceito substancial de democracia.
conhece o d i r e i t o à violência, já que toda ação contra um L e m b r e m o s a i n d a q u e n ã o devemos c o m p r e e n d e r a
governo ilegal é uma ação legal. ideia f u n d a m e n t a l desse direito à resistência simplesmente
Vale a pena insistir nessa questão. Podemos dizer que c o m o o núcleo de defesa c o n t r a a dissolução dos c o n j u n -
u m dos princípios maiores que c o n s t i t u e m a tradição de tos liberais de valores ( d i r e i t o à p r o p r i e d a d e , afirmação
modernização política da q u a l fazemos parte a f i r m a que d o i n d i v i d u a l i s m o e t c ) . N a verdade, e m seu i n t e r i o r en-
o d i r e i t o f u n d a m e n t a l de t o d o cidadão é o d i r e i t o à rebe- c o n t r a m o s a ideia f u n d a m e n t a l de que o b l o q u e i o da so-
lião. N ã o creio ser necessário a q u i fazer a génese da cons- berania p o p u l a r (e temos t o d o o d i r e i t o de discutir o que
ciência da indissociabilidade entre defesa d o Estado livre devemos compreender p o r "soberania p o p u l a r " ) deve ser
e d i r e i t o à violência c o n t r a u m Estado ilegal. N o que diz respondido pela d e m o n s t r a ç ã o soberana da força. Q u e a
respeito ao O c i d e n t e , é b e m provável que sua consciên- democracia deva, p o r meio desse p r o b l e m a , confrontar-se
cia nasça da R e f o r m a Protestante c o m a n o ç ã o . d e que os c o m a q u i l o que G i o r g i o A g a m b e n chama de " o p r o b l e m a
valores maiores presentes na vida social p o d e m ser objeto d o significado jurídico de u m a esfera de a ç ã o e m si ex-
de p r o b l e m a t i z a ç ã o e crítica. Ela está presente, p o r sua t r a j u r í d i c a " , o u , a i n d a , c o m a "existência de u m a esfera
vez, n o a r t i g o 2 7 da D e c l a r a ç ã o dos D i r e i t o s d o H o m e m da a ç ã o h u m a n a que escapa t o t a l m e n t e ao d i r e i t o " , que
e d o C i d a d ã o de 1 7 9 3 , d o c u m e n t o f u n d a d o r da m o d e r - ela deva se c o n f r o n t a r c o m u m a esfera extrajurídica, mas
nidade política. A r t i g o que a f i r m a : " q u e t o d o indivíduo n e m p o r isso ilegal, eis algo c l a r o . Pois devemos insistir
que usurpe a soberania seja assassinado i m e d i a t a m e n t e aqui que, mesmo em situações em que não estamos diante
pelos homens l i v r e s " . A i n d a hoje, ela aparece n o a r t i g o de u m " E s t a d o i l e g a l " , o p r o b l e m a da dissociação entre
2 0 , p a r á g r a f o 4 da C o n s t i t u i ç ã o alemã c o m o " d i r e i t o à justiça e d i r e i t o se coloca.
resistência" {Rechtzum Widerstreit). Encontramos u m d i -
reito similar enunciado e m várias Constituições de estados Uma sociedade que tem medo da política
norte-americanos ( N e w H a m p s h i r e , K e n t u c k y , Tennesse, M u i t o s gostam de dizer que, n o i n t e r i o r da democracia,
Carolina do N o r t e , entre outros). De maneira sintomática, t o d a f o r m a de violação contra o Estado de d i r e i t o é ina-
isso demonstra c o m o aqueles que p r o c u r a m t r a n s f o r m a r ceitável. M a s e se, longe ser de u m aparato monolítico, o

•t
t
I
tf*

PREMISSAS DEMOCRÁTICAS: talvez tenhamos perdido a capacidade de pensar a democracia como excesso em relação ao Estado de direito
QSQ n"l37 43
DOSSIÊ I A DEMOCRACIA E SEUS IMPASSES

d i r e i t o e m sociedades d e m o c r á t i c a s f o r u m a c o n s t r u ç ã o m e n t o s sejam deslocados ( a f r o n t a n d o assim a liberdade


heteróclita, em que leis de várias matizes convivem f o r m a n - de c i r c u l a ç ã o ) , ecologistas que seguem navios cheios de
do u m c o n j u n t o p r o f u n d a m e n t e instável e inseguro? Por l i x o r a d i o a t i v o a f i m de i m p e d i r que ele seja despejado
exemplo, nossa Constituição de 1988 não teve força para n o m a r , t r a b a l h a d o r e s que f a z e m piquetes e m f r e n t e a
m u d a r vários dispositivos legais criados pela Constituição fábricas para c r i a r situações que lhes p e r m i t a m negociar
totalitária de 1967. A i n d a somos julgados p o r tais dispo- c o m mais f o r ç a exigências de m e l h o r i a de c o n d i ç õ e s de
sitivos. Nesse sentido, n ã o seriam certas " v i o l a ç õ e s " d o t r a b a l h o , cidadãos que p r o t e g e m imigrantes sem-papéis,
Estado de d i r e i t o condições para que exigências mais a m - o c u p a ç õ e s de prédios públicos feitas em n o m e de novas
plas de justiça se façam sentir? F o i pensando em situações f o r m a s de a t u a ç ã o estatal, A n t í g o n a que enterra seu i r -
dessa natureza que D e r r i d a afirmava ser o d i r e i t o objeto m ã o : em todos esses casos o Estado de d i r e i t o é quebrado
possível de uma desconstrução que visa e x p o r as superes- em n o m e de u m embate e m t o r n o da justiça.
truturas que " o c u l t a m e refletem, ao mesmo t e m p o , os i n - N o e n t a n t o , é graças a ações c o m o essas que d i r e i t o s
teresses económicos e políticos das forças dominantes da s ã o a m p l i a d o s , que a n o ç ã o de l i b e r d a d e ganha n o v o s
sociedade". Q u e m pode dizer e m sã consciência que tais matizes. Sem elas, certamente nossa s i t u a ç ã o de e x c l u -
forças não agiram e agem para criar, r e f o r m a r e suspender são social seria significativamente pior. Nesses m o m e n -
o direito? Q u e m pode dizer e m sã consciência que o em- tos, e n c o n t r a m o s o p o n t o de excesso da d e m o c r a c i a e m
bate social de forças na determinação d o d i r e i t o t e r m i n a r e l a ç ã o ao d i r e i t o . U m a sociedade que t e m m e d o desses
necessariamente da maneira mais justa? m o m e n t o s , que n ã o é mais capaz de c o m p r e e n d ê - l o s , é
Por essas razões, a democracia admite o caráter "des- u m a sociedade que p r o c u r a r e d u z i r a política a u m me-
c o n s t r u t í v e l " d o d i r e i t o , e ela o a d m i t e p o r m e i o d o re- r o a c o r d o referente à s leis que a t u a l m e n t e temos e aos
c o n h e c i m e n t o d a q u i l o que p o d e r í a m o s c h a m a r de l e - m o d o s que a t u a l m e n t e temos p a r a mudá-las ( c o m o se a
g a l i d a d e d a " v i o l a ç ã o p o l í t i c a " . Pacifistas que sentam f o r m a a t u a l da estrutura política fosse a m e l h o r possível
na frente de bases m i l i t a r e s a f i m de i m p e d i r que a r m a - - l e v a n d o e m conta o que é o sistema político b r a s i l e i r o ,
pode-se c l a r a m e n t e c o m p r e e n d e r o c a r á t e r a b s u r d o d a
colocação).
N o f u n d o , esta é u m a sociedade que t e m m e d o d a
política e que gostaria de substituí-la pela polícia. Pois a
v i o l a ç ã o política n a d a t e m a ver c o m a t e n t a t i v a de des-
t r u i ç ã o física o u simbólica d o o u t r o , d o opositor, c o m o
vemos na violência estatal contra setores descontentes da
p o p u l a ç ã o o u e m golpes de Estado. A n t e s , ela é a f o r ç a
da u r g ê n c i a de e x i g ê n c i a s de j u s t i ç a . É c l a r o que deve-
m o s c o m p r e e n d e r m e l h o r o que devemos c h a m a r a q u i
de " j u s t i ç a " . N ã o se trata de a l g u m a f o r m a de princípio
r e g u l a d o r p o s t o . C e r t a m e n t e , ela está mais ligada à ex-
periência m a t e r i a l d o b l o q u e i o de r e c o n h e c i m e n t o e d o
s o f r i m e n t o social e m r e l a ç ã o às i m p o s i ç õ e s p r o d u z i d a s
pelas condições s o c i o e c o n ó m i c a s e disciphnares de nos-
sas f o r m a s de v i d a .
N o t e m o s c o m o a suspensão da lei em n o m e do s o f r i -
m e n t o social e d o b l o q u e i o de reconhecimento é q u a l i t a -
tivamente distinta d a suspensão da lei feita p o r práticas
totalitárias. Pois a suspensão política é a maneira de dizer
que o d i r e i t o se enfraquece q u a n d o não é mais capaz de
reconhecer suas próprias limitações. E isso é feito a p a r t i r
de u m a o u t r a espécie de " d i r e i t o " (as aspas são de r i g o r )
cujo f u n d a m e n t o , c o m o dizia L e f o r t , " n ã o t e m í i g u r a " , é
m a r c a d o p o r u m "excesso face a t o d a f o r m u l a ç ã o efeti-
v a d a " , o que significa que sua f o r m u l a ç ã o c o n t é m a e x i -
GIORGIO AGAMBEN: a democracia deve confrontar-se com a
gência de sua r e f o r m u l a ç ã o . É só assumindo esse excesso
existência de uma esfera da ação humana que escapa ao direito
que a democracia pode existir. B

44 n'137
DOSSIÊ I A DEMOCRACIA E SEUS IMPASSES

O Brasil é uma semidemocracia?


A Constituição de 1988, tal como a anterior, tornou constitucional
o golpe de Estado, desde que seja liderado pelas Forças Armadas

JORGE ZAVERUCHA

H
á u m a ideia c o m u m e n t e aceita, da q u a l discor- t r a r u m p a d r ã o de medição que possa ser considerado a
d o , de que a democracia brasileira está conso- essência da democracia " s u b s t a n t i v a " . E mais, c o m o de-
l i d a d a . O t e r m o c o n s o l i d a ç ã o deve ser usado c i d i r q u a l das " s u b s t â n c i a s " será escolhida sem v o l t a r a
c o m cautela. Trata-se de u m c o n c e i t o ex post cair n o proceduralismo?
facto. C o n v é m l e m b r a r que a l i t e r a t u r a definia a d e m o -
cracia chilena, até as vésperas d o golpe pinochetista, co- Déficit democrático
m o consohdada. I d e m para o U r u g u a i até antes d o golpe Será que procedimentos e substância devem ser vistos co-
de Bordaberry. A Venezuela p r é - 1 9 9 2 , data da p r i m e i r a m o entidades apartadas que não se i n f l u e n c i a m recipro-
tentativa de golpe de Estado liderada p o r H u g o Chavez, camente.' D e m o c r a c i a deve apenas assegurar os direitos
era tida c o m o a Suíça da América d o Sul. daqueles que querem lutar politicamente por suas deman-
D e f a t o , e x i s t e m v á r i a s definições de d e m o c r a c i a . das, p o u c o se i m p o r t a n d o c o m as desigualdades sociais e
Escolher u m a delas n ã o é p r o b l e m á t i c o . Inclusive h á a jurídicas? É possível obter procedimentos c o m substância
tentação de achar que democracia consiste na confluência e v i t a n d o que a democracia fique " o c a " ? E , simultanea-
de todas as coisas boas, t a l c o m o se fez, analogamente, mente, substância c o m procedimentos i m p e d i n d o que a
c o m o conceito de socialismo nos anos 1 9 6 0 e 1 9 7 0 . democracia seja inócua? C o m o conseguir u m m e i o - t e r m o
O grande desafio a t u a l é c r i a r u m a d e m o c r a c i a que entre democracia c o m o mera lista de procedimentos e de-
consiga concihar o aspecto f o r m a l (procedimento) c o m o mocracia que se identifique c o m a c o n c e p ç ã o substantiva
seu conteúdo (substância). T r a n s f o r m a r u m a democracia das necessidades da população?
de d i r e i t o e m democracia de f a t o , o u seja, u m a democra- A democracia nos países subdesenvolvidos, via de re-
cia que f u n c i o n e para as pessoas c o m u n s . A democracia g r a , f u n c i o n a p a r a u m a m i n o r i a . V a i c o n t r a a lição de
n ã o p o d e estar desligada d o c o n t e x t o s o c i o e c o n ó m i c o Tocqueville segundo a qual a democracia se justifica quan-
em que v i v e m os indivíduos. D o contrário, torna-se, para d o favorece o bem-estar d o m a i o r n ú m e r o de pessoas. J á
m u i t o s , irrelevante. há nos Estados U n i d o s q u e m se preocupe c o m os efeitos
A igualdade f o r m a l (procedural) da democracia liberal políticos da crescente concentração de renda. H á o receio
pode servir de fachada para a manutenção de níveis subs- de que isso cimentará o surgimento de u m déficit d e m o -
tantivos de desigualdade e de violação de direitos civis. A s crático. O u seja, u m a p l u t o c r a c i a c o m o u t r o n o m e .
desigualdades de riqueza e de poder i m p e d e m o alcance H á u m vazio conceituai. As teorias sobre democracias
da igualdade nas oportunidades substantivas. Por sua vez, e sobre democratização n ã o são persuasivas. E m especial
igualdade social sem Uberdade política desemboca em d i - q u a n d o aplicadas a países c o m fraca tradição democrá-
taduras populares p o r falta de c o m p e t i ç ã o eleitoral e de tica, c o m o é o caso d o Brasil. Prefiro observar os fatos,
respeito aos direitos políticos. H á ainda o u t r o óbice, de interpretá-los, t e n d o c o m o referência o h o r i z o n t e meta-
natureza metodológica. Trata-se da dificuldade de encon- político-eleitoral que lhes dá sentido e valor.

45
DOSSIÊ I A DEMOCRACIA E SEUS IMPASSES

Semidemocracia t i v o estatal se m a n t é m em boa parte autoritário, mesmo


H á uma corrente que analisa os países em democratização c o m a existência de u m a democracia de p r o c e d i m e n t o s .
sob o critério de mudança política. A classificação é dico- Isso, t o d a v i a , depõe c o n t r a a circunstancialidade d o ar-
tômica: democracia o u autoritarismo. O u t r a enfatiza as ca- g u m e n t o . É ténue, p o r t a n t o , a perspectiva de u m a d e m o -
racterísticas do sistema político ressaltando as ambiguidades cracia imperfeita c o m seus enclaves autoritários tornar-se
do mesmo. A classificação pode ser quadricotômica: demo- u m a democracia c o m sólidas e responsivas instituições.
cracia, semidemocracia, semiautoritarismo e autoritarismo. N a incapacidade de estipular o tempo necessário para que
A semidemocracia aponta para a existência de u m regime isso o c o r r a , o a r g u m e n t o torna-se teleológico.
híbrido, o u seja, aquele onde coexistem traços democráticos
e autoritários (especialmente nas instituições coercitivas) Forças Armadas: garantir o
Por definição, a semidemocracia é u m processo t e m p o - funcionamento da democracia?
rário r u m o a u m a democracia, e n q u a n t o o s^^minut^ritn- Dificuldades conceituais e metodológicas à parte, o a r t i g o
r i s m o é u m p r o j e t o deliberado de m a n u t e n ç ã o do a u t o r i - 142 da Constituição Federal mantém-se i n t a c t o . De acor-
t a r i s m o sob urna-iciima mais atenuada. C o m o o Egito de do c o m ele, as F o r ç a s A r m a d a s "destinam-se à defesa da
M u b a r a k . O caso brasileiro aproximar-se-ia mais de u m a Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, p o r inicia-
semidemocracia, pois não encontro u m p r o j e t o deliberado t i v a de qualquer destes, da lei e da o r d e m " . M a s , logica-
das elites políticas de m a n t e r esse h i b r i d i s m o indefinida- mente, c o m o é possível às Forças A r m a d a s se submeter e
mente. O hibridismo existente seria m u i t o mais f r u t o das garantir algo simultaneamente? Esse artigo é m u i t o similar
circunstâncias políticas existentes. ao existente na Constituição pinochetista. C o m a diferen-
C o n t u d o , reconheço o fato de essa situação já perdurar ça de que, recentemente, o Senado chileno a b o l i u tal cláu-
n o Brasil p o r quase 2 5 anos, e n ã o haver indícios de m u - sula c o n s t i t u c i o n a l sob o a r g u m e n t o de que a c o n d i ç ã o
dança. E m b o r a tenha h a v i d o r o t a ç ã o partidária no poder histórica que a v a l i z o u t a l d i s p o s i t i v o n ã o existe mais.
político, o p o n t o de equilíbrio é a manutenção de u m a de- De fato, são os militares que têm o poder constitucional
mocracia meramente eleitoral. O u seja, o aparelho coerci- de garantir o f u n c i o n a m e n t o do Executivo, d o Legislativo

«.»

ris:»-'

MOVIMENTO PRÓ-DEMOCRACIA: jovens insatisfeitos com o resultado do segundo turno das eleições no Rio de Janeiro e com a maneira
como as campanhas foram feitas resolveram fundar movimento "Pró-Democracia"

46 n°137
DOSSIÊ I A DEMOCRACIA E SEUS IMPASSES

RIO DE JANEIRO: as Forças Armadas ocupam o Complexo do Alemão para garantir a segurança durante as eleições municipais

e d o Judiciário, a lei e a o r d e m , q u a n d o deveria ser o re- Um golpe de Estado constitucional


verso. O u seja, as F o r ç a s A r m a d a s s ã o baluartes d a lei A Constituição n ã o define q u e m v i o l o u e q u a n d o é que a
e d a o r d e m definidas p o r elas mesmas, n ã o i m p o r t a n d o lei e a o r d e m f o r a m v i o l a d a s . N a prática t e r m i n a caben-
a o p i n i ã o d o presidente da R e p ú b l i c a o u d o Congresso d o às Forças A r m a d a s decidir q u a n d o houve violação da
N a c i o n a l . P o r t a n t o , cabe às Forças A r m a d a s o poder so- lei e da o r d e m . E q u e m as v i o l o u . E o que é mais grave:
berano e c o n s t i t u c i o n a l de suspender a validade d o orde- basta d e t e r m i n a d a o r d e m d o E x e c u t i v o ser considerada
n a m e n t o jurídico, colocando-se legalmente f o r a da lei. ofensiva à lei e à o r d e m p a r a que os m i l i t a r e s p o s s a m
E m u m a democracia, o poder n ã o é deferido a q u e m constitucionalmente não respeitá-la. M e s m o sendo o pre-
t e m força, mas, ao c o n t r á r i o , a força é colocada a serviço sidente da República o comandante-em-chefe das F o r ç a s
do poder. N o Brasil, estabeleceu-se uma Constituição e f o i A r m a d a s . Ou seja, a Constituição de 1988, tal como a
entregue, precisamente aos que são mais tentados a violá- anterior, tornou constitucional o golpe de Estado desde
la, a tarefa de manter sua supremacia. O r a , se os militares que liderado pelas Forças Armadas. Isso, s i m , é f a l t a de
são garantes, t e r m i n a m sendo, também, organizadores da lei e o r d e m .
vida política. As Forças A r m a d a s d e i x a m de ser meio para H á , desse m o d o , u m a espada de D â m o c l e s f a r d a d a
se t r a n s f o r m a r , q u a n d o necessário, em fim d o Estado. p a i r a n d o sobre a cabeça dos poderes constitucionais. Tais
O r d e m não é u m conceito n e u t r o e sua definição ope- poderes estão sendo c o n s t i t u c i o n a l m e n t e l e m b r a d o s de
racional em todos os níveis do processo de t o m a d a de de- que p o d e m i r até onde as F o r ç a s A r m a d a s acharem c o n -
cisão política envolve escolhas que refletem as estruturas veniente. Por conseguinte, repito, em vez de tais p o d e r e m
política e ideológica d o m i n a n t e s . P o r t a n t o , a n o ç ã o de garantirem o f u n c i o n a m e n t o das F o r ç a s A r m a d a s , s ã o
(des)ordem envolve julgamentos ideológicos e está sujeita elas, e m última instância, que garantem o funcionamen-
a estereótipos e preconceitos sobre a conduta (in)desejada t o dos referidos poderes. A f i n a l , elas são as guardiãs da
de determinados indivíduos. Além d o mais, t a l a r t i g o n ã o pátria e dos poderes c o n s t i t u c i o n a i s . A l g o incompatível
especifica se a lei é c o n s t i t u c i o n a l o u ordinária. c o m u m a democracia que faça jus a esse n o m e . B

Q3Q n°137 47
DOSSIÊ I A DEMOCRACIA E SEUS IMPASSES

Democracia no Brasil:
um breve histórico
Séculos de um sistema educacional precário inviabilizam o conhecimento
das regras do jogo democrático pelos cidadãos
GUNTER AXT

A
democracia costuma v i r associada a dois concei- que u m a província liberal abolisse unilateralmente a es-
tos-chave: o de liberdade e o de igualdade. Doses cravidão. Eis o segredo da unidade t e r r i t o r i a l brasileira,
diferentes desenham f o r m a s diversas de d e m o - e n q u a n t o a América espanhola se esfacelava. Eis o l i m i t e
cracia. N u m e x t r e m o , as Uberdades i n d i v i d u a i s da democracia c o r o a d a .
sobrenadam direitos coletivos, n o o u t r o , i m p o r t a a igual- M e n o s de 1 % da p o p u l a ç ã o exerceu efetivamente o
dade entre os cidadãos. d i r e i t o ao v o t o . M a s a grande questão ao l o n g o de t o d o
N o Brasil, fez-se a independência e m nome da liberda- o império f o i a t e n s ã o da c e n t r a l i z a ç ã o . N a c o l ó n i a , as
de. Depois de a famíha real ter, em 1808, f u g i d o da i n v a - províncias n e m sequer t i n h a m tradição de se r e p o r t a r a
são napoleônica, a colónia g a n h o u prestígio e, e m 1 8 1 5 , u m a c a p i t a l . A Inconfidência f o i m i n e i r a , n ã o brasileira.
f o i equiparada à metrópole, c o m o Reino U n i d o . M a s as Os p e r n a m b u c a n o s de 1 8 1 7 d e f e n d i a m u m a confedera-
cortes de Lisboa, e m 1 8 2 1 , pretenderam a recolonização. ç ã o . O tema v o l t o u logo após a outorga da centralizadora
Portugal perdeu o Brasil, que era a garantia de sua i m p o r - Constituição de 1824, c o m a eclosão da Confederação d o
tância. R a r o caso de revolução liberal que t r o u x e atraso, Equador. E m 1828, o U r u g u a i tornou-se independente d o
d a n d o a n o ç ã o das contradições que o l i b e r a l i s m o assu- Brasil. N o Pará, a Cabanagem ( 1 8 3 5 - 1 8 4 0 ) d e r i v o u e m
m i u e m terras lusas. guerrilha r u r a l , m a t a n d o 2 0 % da população. N a Bahia, a
O reconhecimento da a u t o r i d a d e de Pedro I n ã o f o i Sabinada, em 1 8 3 7 , sublevou tropas militares e a miuça-
pacífico. N a Bahia, os portugueses resistiram, à bala. A lha urbana. A Balaiada, no M a r a n h ã o (1838-1841), v i r o u
adesão dos senhores do R e c ô n c a v o deu-se quando se con- g u e r r i l h a p o p u l a r . N o Sul, a F a r r o u p i l h a ( 1 8 3 5 - 1 8 4 5 ) ,
venceram que a independência garantiria o m o d e l o escra- controlada pela elite, constituiu uma república. E há quem
v i s t a . U m levante escravo e m 1 8 1 6 a t e r r o r i z a r a , n u m a diga n ã o ter o Brasil t i d o u m a história cruenta.
região c o m só 2 0 % de p o p u l a ç ã o branca. F o i apenas a
p r i m e i r a de u m a série de revoltas que c u l m i n o u c o m o Democracia de fachada
levante dos Males, e m 1835. O risco de rebelião das massas e de desmembramento era ta-
A m o n a r q u i a c o n s t i t u c i o n a l f o i a d m i t i d a c o m o ins- manho que se aceitou p Poder M o d e r a d o r como árbitro do
t r u m e n t o de preservação d o escravismo. É c l a r o que se sistema parlamentar. O Segundo Reinado conseguiu estabi-
esperava que a casa real europeia ajudasse n o reconheci- lidade, progresso económico e liberdade de imprensa. M a s ,
m e n t o da j o v e m n a ç ã o . M a s a fórmula centralizada f o i sem poder conciliar liberalismo e escravidão, o império nunca
aceita p o r q u e a unidade jurídica era essencial para evitar aprovou u m Código Civil, promulgado apenas em 1917.

48
DOSSIÊ I A DEMOCRACIA E SEUS IMPASSES

A b o l i d a a e s c r a v i d ã o , a u n i d a d e jurídica p e r d e u r a - r i a m democráticas. O estado de sítio e a a m e a ç a golpista


z ã o de ser. U m golpe p r o c l a m o u a república e m 1889. tornaram-se recorrentes, coroados p o r 1964, que se pre-
Instituiu-se a f e d e r a ç ã o , mas a a u t o n o m i a só v a l e u pa- t e n d e u r e v o l u ç ã o d e m o c r á t i c a . Verdade que a esquerda
r a estados r i c o s e a r m a d o s . E a r e m o ç ã o d o P o d e r n ã o era santa: B r i z o l a defendera e m 1963 o fechamento
M o d e r a d o r expôs t o d a a b r u t a l i d a d e da fraude eleitoral. d o Congresso. M a s havia avanços. A R e v o l u ç ã o de 1930
Sem válvula de escape, a elite se engalfinhou. A Revolução m o d e r n i z a r a a b u r o c r a c i a e t r o u x e r a a legislação t r a b a -
Federalista (1893-1895), conectada à Revolta da A r m a d a , lhista u r b a n a , mas t a m b é m a Justiça E l e i t o r a l . A i n d a as-
b o m b a r d e o u o R i o de Janeiro, c o n f l a g r o u três estados, s i m , e m 1962, apenas 2 4 % da p o p u l a ç ã o a d u l t a v o t o u .
e n v o l v e u nações estrangeiras e f o r m o u u m g o v e r n o pa- Entre o nazismo e o s t a l i n i s m o , Getúlio Vargas acha-
ralelo na hoje Florianópolis. va o seu Estado N o v o l i b e r a l . O regime p ó s - 1 9 6 4 cen-
Presidencialismo c o m d e m o c r a c i a de fachada. Basta s u r o u , cassou e t o r t u r o u , mas c o n v i v e u c o m e l e i ç õ e s .
dizer que a pena de m o r t e e os castigos c o r p o r a i s c o n t i - Prova n ã o ser o v o t o universal c o n d i ç ã o suficiente p a r a
n u a v a m aplicados na s u r d i n a , c o m o i n f o r m a a R e v o l t a a democracia.
dos M a r i n h e i r o s , de 1910, e a tragédia d o n a v i o Satélite,
q u a n d o os oficiais se v i n g a r a m dos a m o t i n a d o s j o g a n d o - Anos 1980
os ao m a r o u a b a n d o n a n d o - o s na selva. M a s o que espe- O país chegou aos anos 1980 desesperança-
rar de u m a república que, e m 1897, se lançara a massa- d o . E m e r g í a m o s d a d i t a d u r a , d a q u a l os m i l i t a r e s
crar o p o v o p o b r e e sertanejo de C a n u d o s , p o r temê-los s a í a m a r r a s t a n d o andrajosa sua veleidade t a u m a t u r g a .
restauradores? M e r g u l h á v a m o s n u m a crise e c o n ó m i c a , c o m i n f l a ç ã o ,
O p e r í o d o m a i s l i b e r a l d a e c o n o m i a b r a s i l e i r a fez m o r a t ó r i a e recessão. M a l dialogávamos c o m o exterior,
l o g o sua p r i m e i r a v í t i m a : a l i b e r d a d e de i m p r e n s a . E e o país do futuro era u m fracasso.
implantou a oligarquia. M a s n a década perdida, entre erros e acertos, h a v i a
A república i n a u g u r o u o m i t o de que as r u p t u r a s se- v o n t a d e de m u d a r . A sociedade se o r g a n i z a r a razoavel-

BQS n''137 49
DOSSIÊ i A DEMOCRACIA E SEUS IMPASSES

mente e o país se urbanizara. Indústrias e cidades c r i a v a m norar a pobreza. Dentre os grandes emergentes, conseguiu
seus p r o b l e m a s , mas g o l p e a v a m o homem cordial e ain- concihar modernização e estabilidade i n s t i t u c i o n a l . N ã o
distinção entre espaços público e p r i v a d o . é p o u c o ter hoje u m processo eleitoral mais confiável d o
E m 1985, a Lei da Ação C i v i l Pública reconheceu direi- que o dos Estados U n i d o s .
tos indisponíveis, difusos, coletivos: u m n o v o p a r a d i g m a V i o l ê n c i a ? M e n o s d o que n o M é x i c o . C o r r u p ç ã o ?
para a cidadania. A Constituição de 1988 a m p l i o u direitos M u i t o menos d o que n a A r g e n t i n a , n a í n d i a , n a C h i n a
sociais, sendo a previdência e o habeas data dois exemplos e n a R ú s s i a . A q u a l i d a d e dos p o l í t i c o s cai? M e n o s d o
d o universo descortinado. O Ministério Público g a n h o u que n a Itália. I m a g e m r u i m d a p o l í t i c a ? T a n t o q u a n t o
garantias e atribuições na área c i v i l , tornando-se i n s t i t u i - nos E U A . Intolerância e racismo? Bem menos d o que n a
ção única n o m u n d o . O STF f o i empoderado e m u n i c i a d o m a i o r i a das sociedades europeias. Discurso único c o m o
c o m o sistema de controle da constitucionalidade das leis na Venezuela? N e m pensar.
à brasileira, híbrido. N ã o menos i m p o r t a n t e é o substrato H á múltiplos fóruns na sociedade: empresas, sindica-
infraconstitucional que veio em seguida, c o m o Estatuto da tos, o terceiro setor e uma imprensa razoavelmente l i v r e .
Criança e do Adolescente (ECA), o Código do Consumidor, A p o l i a r q u i a de R o b e r t D a h l . C l a r o que h á m u i t o que
a Lei da I m p r o b i d a d e e o Código do M e i o A m b i e n t e . melhorar, mas nada autoriza o pessimismo.
Se n o c a m p o político o país amadurecera, afastando O que está d a n d o errado? Para D a h l , o entendimen-
a m i r a g e m da r u p t u r a i n s t i t u c i o n a l , n o e c o n ó m i c o t a m - to esclarecido - a m p l o conhecimento das regras d o j o g o
bém cansou das mágicas, reconciliou-se c o m o mercado e pelos cidadãos - é essencial. Séculos de u m sistema edu-
c o n s t r u i u consenso em t o r n o das reformas m a c r o e c o n ó - c a c i o n a l p r e c á r i o i n v i a b i l i z a m a q u i essa c o n d i ç ã o . Sem
micas. A moeda estável fortaleceu a autoestima. O cres- educação de verdade não qualificaremos o debate público.
c i m e n t o f o i r e t o m a d o . O espectro d o e l i t i s m o e o t e r r o r D e m o c r a c i a , c o m o diz Stephen H o l m e s , n ã o é simples-
ideológico f o r a m afastados c o m a eleição de u m operário mente o governo da m a i o r i a , mas é, sobretudo, o governo
á Presidência. Programas sociais têm contribuído para m i - que se dá pela discussão pública. B

LULA: o espectro do elitismo e o terror ideológico foram afastados com a eleição de um operário à Presidência

50 BOS n°137
DOSSIÊ I A DEMOCRACIA E SEUS IMPASSES

Democracia corrompida
O potencial autêntico da democracia vem perdendo terreno hoje para a
ascensão de um novo capitalismo autoritário

SLAVOJ ZIZEK

^ 0 ^ ^ filósofo alemão Peter Sloterdijk (que, definitiva- dição e m o l a p r o p u l s o r a do desenvolvimento e c o n ó m i c o ,


• mente, não é u m de nós e tampouco u m comple- mas seu obstáculo?
to idiota) observou que, se há uma pessoa para
quem farão monumentos daqui a cem anos, ela é Salto adiante
Lee Kuan Yew, o líder de Cingapura que inventou e colocou H á aqui ainda u m p a r a d o x o a d i c i o n a l : existe, para além
em prática o chamado "capitaUsmo de valores asiáticos". de todos os c o m e n t á r i o s maliciosos e analogias superfi-
O vírus desse capitalismo autoritário tem se espalhado de ciais, u m a p r o f u n d a h o m o l o g i a e s t r u t u r a l entre o per-
maneira vagarosa porém certeira pelo globo. manente a u t o r r e v o l u c i o n a m e n t o maoísta, o permanente
Antes de dar início a suas reformas, D e n g Hsiao-Ping combate c o n t r a a ossificação das estruturas estatais, e a
v i s i t o u C i n g a p u r a e enalteceu expressamente aquele país dinâmica inerente ao capitalismo. A q u i torna-se tentador
como u m modelo que toda a China deveria seguir. Essa m u - parafrasear o t r o c a d i l h o de B e r t o k Brecht " o que é o r o u -
dança tem u m significado histórico m u n d i a l : até agora, o bo de u m banco se comparado c o m a fundação de u m no-
capitalismo parece inextricavelmente ligado à democracia - v o b a n c o ? " : o que são os ímpetos violentos e destrutivos
viu-se, é claro, de tempos em tempos, o recurso da ditadura de u m m e m b r o da Guarda Vermelha durante a Revolução
direta, mas, depois de uma década ou duas, a democracia se C u l t u r a l se comparados à verdadeira Revolução C u l t u r a l ,
impôs de n o v o (lembre-se, por exemplo, apenas dos casos a dissolução permanente de todas as f o r m a s de v i d a ne-
da Coreia do Sul e do Chile). A g o r a , n o entanto, a ligação cessárias à r e p r o d u ç ã o capitalista? H o j e , a tragédia d o
entre a democracia e o capitaUsmo está r o m p i d a . Grande Salto A d i a n t e [campanha de M a o Tsé-tung para
D i a n t e da atual explosão do capitalismo na C h i n a , os t o r n a r a C h i n a u m a n a ç ã o d e s e n v o l v i d a e socialmente
anaUstas c o m frequência perguntam-se q u a n d o a demo- justa e m t e m p o recorde] está se r e p e t i n d o c o m o a c o m é -
cracia política, c o m o a c o m p a n h a m e n t o político n a t u r a l dia d o acelerado G r a n d e Salto A d i a n t e capitalista para
do capitaUsmo, se fortalecerá. N ã o obstante, u m a análi- a m o d e r n i z a ç ã o , c o m o velho slogan " f u n d i ç ã o de f e r r o
se mais detida rapidamente desfaz essa esperança - e se o em cada v i l a r e j o " ressurgindo c o m o " u m arranha-céu em
p r o m e t i d o segundo estágio democrático que se segue ao cada r u a " . O u , para dizer de u m a m a n e i r a b r u t a l m e n t e
autoritário vale de lágrimas nunca chegar? Talvez seja is- irónica, a liquidação dos i n i m i g o s nos expurgos m a o í s -
so o que h á de mais inquietante sobre a C h i n a de hoje: a tas dá lugar à liquidação t o t a l dos estoques nos centros
suspeita de que seu capitaUsmo autoritário n ã o é apenas de c o m é r c i o .
u m a sobra d o nosso passado, a repetição d o processo de
a c u m u l a ç ã o capitalista que, na E u r o p a , deu-se d o século Mao Tsé-tung, o grande capitalista?
16 ao 18, e sim u m sinal d o nosso f u t u r o . A l g u n s esquerdistas ingénuos a l e g a m q u e o legado d a
E se " a perniciosa c o m b i n a ç ã o do açoite asiático c o m R e v o l u ç ã o C u l t u r a l e o m a o í s m o e m geral a t u a m c o m o
a bolsa de valores e u r o p e i a " (a velha c a r a c t e r i z a ç ã o de força contrária ao capitaUsmo desenfreado, evitando seus
T r o t s k i da Rússia tsarista) provar-se economicamente mais piores excessos, m a n t e n d o u m m í n i m o de soUdariedade
eficiente que o nosso capitaUsmo Uberal? E se ela sinalizar social. E se, entretanto, o caso f o r exatamente o oposto?
que a democracia, c o m o a entendemos, n ã o é mais c o n - E se, n u m a espécie de m a l a n d r a g e m involuntária e, p o r

QQQ n°137 51
DOSSIÊ A DEMOCRACIA E SEUS IMPASSES

isso m e s m o , ainda mais cruelmente irónica, a R e v o l u ç ã o desenfreada que visava deslegitimar todas as f o r m a s de
C u l t u r a l , c o m seu apagamento b r u t a l de tradições passa- a u t o r i d a d e , de m o d o que, n o f i m , M a o teve de c h a m a r
das, f o i u m " c h o q u e " que c r i o u as condições para a sub- o exército para restabelecer a l g u m a o r d e m . O p a r a d o x o
sequente e x p l o s ã o capitalista? E se a C h i n a tiver de ser é t a l que a batalha-chave d a R e v o l u ç ã o C u l t u r a l n ã o se
a d i c i o n a d a à lista de N a o m i K l e i n de Estados nos quais deu entre o aparato d o P a r t i d o C o m u n i s t a e os i n i m i g o s
uma catástrofe n a t u r a l , m i l i t a r o u social a b r i u o c a m i n h o t r a d i c i o n a i s d e n u n c i a d o s , mas entre e x é r c i t o e P a r t i d o
para u m a nova e x p l o s ã o capitalista? C o m u n i s t a e as forças que M a o havia i n v o c a d o .
A suprema i r o n i a da história é t a l que f o i o p r ó p r i o
Mao q u e m c r i o u as condições ideológicas para o rápido Confrontar a limitação da democracia parlamentar
desenvolvimento capitalista d e m o l i n d o a base da socieda- Isso não significa, é claro, que devamos renunciar à demo-
de t r a d i c i o n a l . Q u a l f o i o seu c l a m o r para o p o v o , espe- cracia em favor do progresso capitalista. M a s deyeríamos
cialmente para os jovens, na R e v o l u ç ã o C u l t u r a l ? " N ã o confrontar a limitação da democracia parlamentar represen-
esperem que o u t r a pessoa lhes diga o que fazer, vocês têm tativa, bem f o r m u l a d a p o r N o a m C h o m s k y quando disse
o d i r e i t o de se rebelar! E n t ã o pensem e a j a m p o r si pró- que " é apenas quando a ameaça de participação p o p u l a r é
prios, destruam relíquias culturais, denunciem e ataquem superada que formas democráticas podem ser contempladas
n ã o apenas os mais velhos, mas t a m b é m o g o v e r n o e o f i - com segurança" e, dessa f o r m a , destacou o núcleo "apassi-
ciais do p a r t i d o ! V a r r a m do mapa o mecanismo repressor v a d o r " da democracia parlamentar que a torna incompatível
estatal e organizem-se e m c o m u n a s ! " E o c l a m o r de M a o com a auto-organização política direta do p o v o .
f o i o u v i d o - o que se seguiu f o i u m a e x p l o s ã o de p a i x ã o W a l t e r L i p p m a n n , o ícone d o j o r n a l i s m o n o r t e - a m e r i -
cano n o século 2 0 , desempenhou u m papel f u n d a m e n t a l
na compreensão da democracia estadunidense. Apesar de
p o l i t i c a m e n t e progressista (tendo defendido u m a relação
justa c o m a U n i ã o Soviética e t c ) , propôs u m a teoria d a
mídia pública que t e m u m arrepiante efeito de verdade.
Ele c u n h o u a expressão " m a n u f a t u r a do c o n s e n t i m e n t o " ,
mais tarde tornada famosa p o r C h o m s k y - mas L i p p m a n n
a p e n s o u de u m a m a n e i r a p o s i t i v a . E m Public opinion
ele escreveu que " u m a classe g o v e r n a n t e " deve se
erguer para enfrentar o desafio - ele via o p o v o à maneira
de Platão, c o m o uma enorme besta o u u m rebanho perple-
x o - debatendo-se n o "caos das opiniões l o c a i s " .
A s s i m , o rebanho de cidadãos deve ser governado p o r
"uma classe especializada cujos interesses n ã o se l i m i -
tem à sua l o c a l i d a d e " - essa elite deve agir c o m o u m a
m a q u i n a r i a de c o n h e c i m e n t o que remedia o defeito p r i -
m á r i o d a d e m o c r a c i a , o i d e a l impossível d o " c i d a d ã o
onicompetente".

Cada cidadão é um rei


É assim que f u n c i o n a m nossas democracias: c o m nosso
consentimento. N ã o há mistério n o que L i p p m a n n estava
dizendo. É u m fato óbvio; o mistério reside no fato de que,
cientes disso, nós jogamos esse j o g o . A g i m o s como se fôs-
semos livres e estivéssemos d e c i d i n d o livremente, n ã o só
aceitando silenciosamente, mas até mesmo exigindo que
uma injunção invisível (inscrita na própria f o r m a de nos-
so discurso livre) nos diga o que fazer e pensar. C o m o h á
m u i t o j á sabia M a r x , o segredo está na própria f o r m a .
MAO TSÉ-TUNG: criador das condições ideológicas para Nesse sentido, n u m a democracia, cada cidadão o r d i -
o rápido desenvolvimento capitalista demolindo a base da n á r i o é efetivamente u m r e i - mas u m r e i n u m a d e m o -
sociedade tradicional cracia c o n s t i t u c i o n a l , u m r e i que decide apenas f o r m a l -

52 BIQ n°137
DOSSIÊ I A DEMOCRACIA E SEUS IMPASSES

mente, cuja função é a de assinar medidas propostas pela to mínimo de poUdez: os que estão no poder educadamente
a d m i n i s t r a ç ã o executiva. É p o r isso que o p r o b l e m a dos fingem não reter o poder e nos pedem que decidamos livre-
rituais democráticos é h o m ó l o g o ao grande p r o b l e m a da mente se queremos dar-lhes o poder - uma f o r m a que imita
democracia constitucional: como proteger a dignidade a lógica de u m gesto que se espera que seja recusado.
d o rei? C o m o m a n t e r a a p a r ê n c i a de que o r e i de f a t o O u , p o s t o e m t e r m o s da V o n t a d e P o p u l a r : a d e m o -
decide, q u a n d o t o d o s sabemos que isso n ã o é verdade? cracia representativa e m sua própria n o ç ã o envolve u m
T r o t s k i estava, p o r t a n t o , c e r t o e m sua r e p r o v a ç ã o d a apassivamento da V o n t a d e Popular, sua t r a n s f o r m a ç ã o
d e m o c r a c i a p a r l a m e n t a r , que n ã o se deve ao f a t o de ela e m n ã o v o l u n t a r i e d a d e - a v o l u n t a r i e d a d e é transferida
d a r demasiado p o d e r às massas i n c u l t a s , mas, p a r a d o - para o agente que representa o p o v o e que exerce a v o n -
x a l m e n t e , a o f a t o de ela apassivar d e m a s i a d a m e n t e as tade e m seu lugar.
massas, d e i x a n d o a i n i c i a t i v a p a r a o a p a r a t o de p o d e r Q u a n d o alguém é acusado de c o m p r o m e t e r a d e m o -
estatal (diferentemente d o que o c o r r e r i a nos " s o v i e t e s " , cracia, deveria e n t ã o responder c o m u m a p a r á f r a s e d a
nos quais as classes t r a b a l h a d o r a s se m o b i l i z a m de m a - réplica à s i m i l a r a c u s a ç ã o (de que os c o m u n i s t a s estão
neira d i r e t a e exercem o p o d e r ) . c o m p r o m e t e n d o a família, a propriedade, a liberdade
etc.) n o Manifesto comunista: a própria o r d e m d o m i -
A crise da democracia nante j á os está c o m p r o m e t e n d o . D a mesma f o r m a que
O que chamamos "crise da democracia" não ocorre, portan- a l i b e r d a d e (de m e r c a d o ) é n ã o l i b e r d a d e p a r a aqueles
to, quando as pessoas deixam de acreditar em seu próprio que v e n d e m sua f o r ç a de t r a b a l h o , d a mesma m a n e i r a
poder, mas, ao contrário, quando deixam de confiar nas eli- que a família é c o m p r o m e t i d a pela família burguesa sob
tes, naqueles de quem se espera que saibam por elas e que as a f o r m a de prostituição legalizada, a democracia é c o m -
orientem, quando experimentam a ansiedade que indica que p r o m e t i d a p o r sua f o r m a p a r l a m e n t a r c o m seu c o n c o m i -
" o (verdadeiro) t r o n o está v a g o " , que a decisão é agora de t a n t e apassivamento da grande m a i o r i a e os crescentes
fato sua. H á , assim, nas "eleições livres" sempre u m aspec- privilégios executivos i m p l i c a d o s pela contagiosa lógica
de estado de emergência.
BiQ] n-137 53
DOSSIÊ I A DEMOCRACIA E SEUS IMPASSES

demonstrada p o r fenómenos a n ó m a l o s c o m o as eleições


Tipos de corrupção na democracia britânicas de 2005: apesar da crescente impopularidade de
B a d i o u p r o p ô s u m a d i s t i n ç ã o entre d o i s t i p o s ( o u , a n - Tony Blair (ele era constantemente eleito a pessoa mais i m -
tes, níveis) de c o r r u p ç ã o n a d e m o c r a c i a : a c o r r u p ç ã o popular do Reino U n i d o ) , não houve meio de esse descon-
empírica de f a t o e a c o r r u p ç ã o que é inerente à própria t e n t a m e n t o encontrar u m a expressão política efetiva.
f o r m a da democracia c o m sua r e d u ç ã o da política à ne- H a v i a algo de o b v i a m e n t e p r o b l e m á t i c o nesse caso -
g o c i a ç ã o de interesses p r i v a d o s . Essa separação torna-se não que as pessoas " n ã o soubessem o que q u e r i a m " , mas,
visível nos casos (raros, admita-se) e m que u m político antes, a resignação cínica as i m p e d i u de agir de a c o r d o
" d e m o c r á t i c o " honesto l u t a c o n t r a a c o r r u p ç ã o empíri- c o m essa vontade, de m o d o que o resultado f o i o estranho
ca a o m e s m o t e m p o e m que a p o i a o e s p a ç o f o r m a l d a desencontro entre o que as pessoas pensavam e c o m o elas
c o r r u p ç ã o . ( C l a r o que t a m b é m ocorre o caso o p o s t o d o agiram (votaram).
p o l í t i c o e m p i r i c a m e n t e c o r r u p t o que age e m f a v o r d a J á P l a t ã o , e m sua crítica à d e m o c r a c i a , mostrava-se
d i t a d u r a da V i r t u d e . ) t o t a l m e n t e ciente desse segundo t i p o de c o r r u p ç ã o ; e es-
T e n d o e m vista a d i s t i n ç ã o b e n j a m i n i a n a entre v i o - sa crítica t a m b é m é claramente discernível n o f a v o r e c i -
lência constituída e c o n s t i t u i n t e , seria possível dizer que m e n t o j a c o b i n o da V i r t u d e : na democracia n o sentido de
estamos l i d a n d o c o m a distinção entre a corrupção cons- representação e n e g o c i a ç ã o d a p l u r a l i d a d e de interesses
tituída (casos empíricos de violação da lei) e a c o r r u p ç ã o p r i v a d o s , não há espaço para a V i r t u d e . E p o r esse m o t i -
" c o n s t i t u i n t e " da própria f o r m a de g o v e r n o : vo que, na revolução proletária, a democracia t e m de ser
substituída pela d i t a d u r a d o p r o l e t a r i a d o .
"Se a democracia é u m a representação, em p r i m e i r o
lugar ela representa o sistema geral que sustenta sua for- Eleições não são um meio de Verdade
m a . E m outras palavras, a democracia eleitoral só é re- N ã o h á r a z ã o p a r a desprezar as eleições d e m o c r á t i c a s ;
presentativa n a m e d i d a e m que é antes a representação deve-se apenas insistir que não existe u m a indicação per
consensual d o c a p i t a l i s m o , hoje c h a m a d o de 'economia se da Verdade - c o m o regra, elas tendem a refletir a doxa
de m e r c a d o ' . T a l é a sua c o r r u p ç ã o em p r i n c í p i o . " ( A l a i n p r e d o m i n a n t e determinada pela ideologia hegemónica.
B a d i o u , De quoi Sarkozy est-il le nom?) T o m e m o s u m e x e m p l o que certamente n ã o é p r o b l e -
m á t i c o : a França e m 1940. Até Jacque Duelos, o segun-
Essas linhas de B a d i o u d e v e r i a m ser tomadas e m seu do h o m e m do Partido C o m u n i s t a Francês, a d m i t i u n u m a
sentido mais estritamente transcendental: é c l a r o que n o conversa p a r t i c u l a r que se, àquela altura da história, elei-
nível empírico a democracia liberal multipartidária "repre- ções livres tivessem o c o r r i d o na França, o marechal Pétain
senta" - espelha, registra, mede - a dispersão q u a n t i t a t i - teria g a n h a d o c o m 9 0 % dos v o t o s . Q u a n d o D e GauUe,
va das diferentes opiniões das pessoas, o que elas pensam em seu ato histórico, recusou-se a reconhecer a rendição
sobre os programas propostos pelos partidos e sobre seus aos alemães e c o n t i n u o u a resistir, alegando que apenas
candidatos e t c ; n o entanto, mais importante que esse nível ele, e n ã o o regime de Vichy, falava em n o m e da verda-
empírico e n u m sentido m u i t o mais " t r a n s c e n d e n t a l " , a deira F r a n ç a (em n o m e da verdadeira F r a n ç a c o m o t a l ,
democracia liberal muhipartidária "representa" - institui não apenas em n o m e da " m a i o r i a dos franceses"!), o que
- uma certa visão de sociedade, política e do papel que os ele estava dizendo era p r o f u n d a m e n t e v e r d a d e i r o ainda
indivíduos nela têm. que d o p o n t o de vista " d e m o c r á t i c o " fosse n ã o apenas
ilegítimo c o m o t a m b é m claramente oposto à opinião d a
A indiferença política das pessoas m a i o r i a d o p o v o francês...
A democracia l i b e r a l multipartidária " r e p r e s e n t a " u m a Pode haver eleições democráticas que sancionem u m
visão m u i t o precisa d a v i d a social n a q u a l a política se evento de Verdade - u m a eleição na q u a l , contra a inércia
organiza em partidos que c o m p e t e m p o r meio de eleições cético-cínica, a m a i o r i a "desperte" momentaneamente e
para exercer o controle sobre o estado legislativo e o apa- vote c o n t r a a opinião ideológica d o m i n a n t e - , porém, o
rato executivo etc. Deve-se sempre estar ciente de que essa caráter bastante excepcional de u m t a l surpreendente re-
" m o l d u r a t r a n s c e n d e n t a l " nunca é neutra - ela privilegia sultado eleitoral p r o v a que as eleições c o m o t a l n ã o são
certos valores e práticas. u m m e i o de Verdade.
Essa n ã o neutralidade torna-se palpável nos m o m e n -
tos de crise o u i n d i f e r e n ç a , q u a n d o e x p e r i m e n t a m o s a A ascensão do capitalismo autoritário
incapacidade d o sistema d e m o c r á t i c o de captar o que as É esse p o t e n c i a l a u t ê n t i c o d a d e m o c r a c i a que v e m per-
pessoas de fato querem o u pensam - essa incapacidade f o i dendo terreno para a ascensão do capitalismo autoritário.

54 línSJ n°137
DOSSIÊ I A DEMOCRACIA E SEUS IMPASSES

cujos a r r o u b o s se a p r o x i m a m cada vez mais d o Ocidente Itália: laboratório da barbárie futura?


- de a c o r d o , é claro c o m os " v a l o r e s " de cada país. O ca- A imagem de u m Berlusconi como u m líder " h u m a n o , de-
p i t a l i s m o de P u t i n c o m "valores russos" (demonstração masiado h u m a n o " aqui é crucial, já que a Itália de hoje é
brutal de poder), o capitalismo de Berlusconi c o m "valores uma espécie de laboratório experimental do nosso f u t u r o .
italianos" (uma postura cómica)... Se nossa cena política se d i v i d i r entre a tecnocracia permis-
T a n t o P u t i n q u a n t o Berlusconi g o v e r n a m e m u m a de- siva Uberal e o fundamentalismo populista, a grande faça-
mocracia que é cada vez mais reduzida para sua casca va- nha de Berlusconi f o i a de unir os dois, de ser os dois ao
zia e r i t u a l i z a d a e, a despeito da situação e c o n ó m i c a que mesmo tempo. Talvez seja essa combinação que o torne i n -
se degrada r a p i d a m e n t e , ambos g o z a m de a m p l o (acima vencível, ao menos no f u t u r o próximo: os remanescentes da
de dois terços dos votos) a p o i o p o p u l a r . N ã o a d m i r a que "esquerda" italiana agora o aceitam resignadamente como
sejam amigos pessoais: cada u m deles apresenta tendência seu Destino. Essa silenciosa aceitação de Berlusconi como
a escândalos ocasionais e " e s p o n t â n e o s " (que s ã o , pelo Destino é talvez o mais triste aspecto do seu reino: sua de-
menos n o caso de P u t i n , p r e p a r a d o s c o m antecedência mocracia é uma democracia daqueles que ganharam graças
p a r a que se a d é q u e m a o " c a r á t e r n a c i o n a l " russo). D e à inércia, que reinam p o r meio da desmoralização cínica.
tempos em tempos, P u t i n gosta de usar u m palavrão v u l - A fórmula do "antissemitismo r a z o á v e l " f o i mais bem
gar o u de soltar u m a a m e a ç a obscena - q u a n d o , h á a l - elaborada em 1938 p o r R o b e r t BrasiUach, que se v i u co-
guns anos, u m jornalista ocidental lhe fez u m a pergunta m o u m antissemita " m o d e r a d o " :
desagradável sobre a Chechênia, Putin retrucou que, se ele
ainda n ã o fosse c i r c u n c i d a d o , estava c o r d i a l m e n t e c o n v i - "Nós nos permitimos aplaudir Charlie Chaplin, um
d a d o a visitar M o s c o u , onde há excelentes cirurgiões que meio judeu, nos cinemas; admirar Proust, outro meio
p o d e r i a m c i r c u n c i d a r seu pênis c o m u m corte u m p o u c o judeu; aplaudir Yehudi Menuhin, um judeu; e a voz de
mais p r o f u n d o que o h a b i t u a l . . . Hitler é carregada por ondas de rádio que receberam seu
nome do judeu Hertz (...) Nós não queremos matar nin-
guém, nem queremos organizar nenhum pogrom. Mas
também pensamos que a melhor maneira de conter as
sempre imprevisíveis ações do antissemitismo instintivo
é organizar um antissemitismo razoável."

N ã o é essa a m e s m a a t i t u d e d o s a t u a i s g o v e r n o s
europeus ao l i d a r c o m a " a m e a ç a i m i g r a n t e " ? Depois de
r i g o r o s a m e n t e rejeitar o racismo p o p u l i s t a d i r e t o c o m o
" i r r a c i o n a l " e inaceitável para nossos padrões d e m o c r á -
ticos, eles endossam medidas " r a z o a v e l m e n t e " racistas
e p r o t e t o r a s . . . o u , c o m o Brasillachs de hoje, a i n d a que
alguns deles sejam social-democratas, nos d i z e m :

" N ó s nos p e r m i t i m o s aplaudir os esportistas africanos


e europeus orientais, os doutores asiáticos, os p r o g r a m a -
dores de s o f t w a r e i n d i a n o s . N ó s n ã o q u e r e m o s m a t a r
ninguém, nós não queremos organizar n e n h u m p o g r o m .
M a s t a m b é m pensamos que a m e l h o r maneira de conter
as sempre imprevisíveis e v i o l e n t a s m e d i d a s defensivas
anti-imigrante é organizar uma proteção anti-imigrante
razoável."

Essa visão de d e s i n t o x i c a ç ã o d o V i z i n h o apresenta


u m a clara passagem d o b a r b a r i s m o d i r e t o para o barba-
rismo berlusconiano c o m rosto h u m a n o . B

BERLUSCONI: uma democracia daqueles que ganharam graças à (Tradução: Abílio Godoy)

inércia, que reinam por meio da desmoralização cinica

SSS n°137 55

Você também pode gostar