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SENTIDOS PARA A
DEMOCRACIA
CO
o
o
ue a democracia hoje esteja e m crise, nos vá- órico, essa crise da democracia n o Brasil e n o m u n d o .
Q
rios significados atribuídos a esta p a l a v r a , é N o primeiro artigo, o filósofo V l a d i m i r Safatle ana-
u m a afirmação b a n a l , mas n ã o p o r isso m e - lisa as relações entre justiça e d i r e i t o n o i n t e r i o r de
nos v e r d a d e i r a . " A frase do pensador i t a l i a n o "Estados ilegais" que, sob a falsa aparência d o Estado
M i c h e l a n g e l o Bovero resume o verdadeiro incipit que de direito, b l o q u e i a m o acesso efetivo de seus cidadãos
deu o r i g e m a este dossiê histórico da C U L T . ao exercício democrático de seus atos.
Poderíamos entender " h i s t ó r i c o " , a q u i , sob u m d u - E m seguida, o sociólogo Jorge Z a v e r u c h a explica
p l o aspecto. E m p r i m e i r o lugar, percebemos que hoje seu conceito de " s e m i d e m o c r a c i a " , para m o s t r a r que,
u m a reavaliação dos sentidos de democracia t o r n o u - no Brasil, ainda não há u m q u a d r o político estável que
se exigência f u n d a m e n t a l de cidadania. Os escândalos fortaleça suas próprias instituições democráticas.
corriqueiros que se convertem em n o r m a n o interior de J á o h i s t o r i a d o r G u n t e r A x t descreve alguns m o -
nossas debilitadas instituições democráticas, os perigos mentos f u n d a m e n t a i s da assimilação da ideia de de-
de uma colonização cada vez mais devastadora d o es- mocracia n o Brasil.
p a ç o político pelas leis de mercado e a falsa crença de Por fim, dois artigos longos e inéditos de autores
que liberdade i n d i v i d u a l corresponde a liberdade eco- que se t o r n a r a m decisivos para o entendimento do atual
nómica, as violações sistemáticas aos direitos humanos, estágio da democracia e de suas formas de superação.
são indícios, e n f i m , da precariedade n o r m a t i v a que o Michelangelo Bovero retoma e atualiza, nesse senti-
conceito de democracia enfrenta atualmente. d o , a c o n c e p ç ã o processual de democracia criada pelo
" C r i s e " significa estado de incerteza o u de declínio. filósofo político N o r b e r t o B o b b i o .
Portanto, u m recuo teórico, capaz de nos fornecer sub- O filósofo esloveno Slavoj 2izek trata inicialmen-
sídios para uma compreensão do verdadeiro alcance das te d o vínculo entre democracia liberal e capitaUsmo,
ações efetivamente democráticas, deveria ser entendido usando o e x e m p l o da C h i n a c o m o sinal de fracasso
c o m o tarefa essencial e urgente, até para que direitos dessa ligação, para e m seguida chamar a atenção para
sociais historicamente conquistados não entrem em co- o declínio da ética política de países centrais da Europa.
lapso diante dos excessos de barbárie política que pre- Z i z e k pensa sobretudo n o caso itaUano, cujo p r i m e i r o -
senciamos e m governos ditos, inclusive, democráticos. ministro encaminharia uma concepção renovada de " t i -
M a s este dossiê t a m b é m p o d e r i a ser considerado rania d e m o c r á t i c a " e de barbárie, ao u n i r tecnocracia
histórico porque conseguiu reunir pensadores renoma- e p o p u l i s m o fundamentalista e ao adotar u m p r o c e d i -
dos e de diferentes tradições para focalizar, no plano te- m e n t o cínico de suspensão da ética. (ES)
42 A DEMOCRACIA PARA
ALÉM DO ESTADO
DE DIREITO?
45 o BRASIL É UMA
SEMIDEMOCRACIA? 48 DEMOCRACIA NO BRASIL:
UM BREVE HISTÓRICO
O desafio de pensar a democracia em A Constituição de 1988, tal como a anterior, Séculos de um sistema educacional precário
tudo aquilo que se encontra à margem tornou constitucional o golpe de Estado, inviabilizam o conhecimento das regras do
do Estado de direito desde que liderado pelas Forças Armadas jogo democrático pelos cidadãos
40 BSS n°137
DEMOCRACIA
CORROMPIDA
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O O
DEMOCRACIA EM
DEBATE
CULT convidou Michael Lõwy, Fábio Wan-
58 OBSERVAR A DEMOCRACIA
COM AS LENTES DE BOBBIO
A teoria das regras constitutivas como
O potencial autêntico da democracia vem derley Reis e Renato Lessa para debater instrumento de diagnostico do grau
perdendo terreno hoje para a ascensão de algumas das questões candentes da demo- de democracia dos regimes políticos
um novo capitalismo autoritário cracia no atual quadro político nacional e contemporâneos
internacional
Slavoj Zizek Michelangelo Bovero
SEi "°i37 41
DOSSIÊ A DEMOCRACIA E SEUS IMPASSES
VLADIMIR SAFATLE
42 n°137
DOSSIÊ I A DEMOCRACIA E SEUS IMPASSES
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PREMISSAS DEMOCRÁTICAS: talvez tenhamos perdido a capacidade de pensar a democracia como excesso em relação ao Estado de direito
QSQ n"l37 43
DOSSIÊ I A DEMOCRACIA E SEUS IMPASSES
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DOSSIÊ I A DEMOCRACIA E SEUS IMPASSES
JORGE ZAVERUCHA
H
á u m a ideia c o m u m e n t e aceita, da q u a l discor- t r a r u m p a d r ã o de medição que possa ser considerado a
d o , de que a democracia brasileira está conso- essência da democracia " s u b s t a n t i v a " . E mais, c o m o de-
l i d a d a . O t e r m o c o n s o l i d a ç ã o deve ser usado c i d i r q u a l das " s u b s t â n c i a s " será escolhida sem v o l t a r a
c o m cautela. Trata-se de u m c o n c e i t o ex post cair n o proceduralismo?
facto. C o n v é m l e m b r a r que a l i t e r a t u r a definia a d e m o -
cracia chilena, até as vésperas d o golpe pinochetista, co- Déficit democrático
m o consohdada. I d e m para o U r u g u a i até antes d o golpe Será que procedimentos e substância devem ser vistos co-
de Bordaberry. A Venezuela p r é - 1 9 9 2 , data da p r i m e i r a m o entidades apartadas que não se i n f l u e n c i a m recipro-
tentativa de golpe de Estado liderada p o r H u g o Chavez, camente.' D e m o c r a c i a deve apenas assegurar os direitos
era tida c o m o a Suíça da América d o Sul. daqueles que querem lutar politicamente por suas deman-
D e f a t o , e x i s t e m v á r i a s definições de d e m o c r a c i a . das, p o u c o se i m p o r t a n d o c o m as desigualdades sociais e
Escolher u m a delas n ã o é p r o b l e m á t i c o . Inclusive h á a jurídicas? É possível obter procedimentos c o m substância
tentação de achar que democracia consiste na confluência e v i t a n d o que a democracia fique " o c a " ? E , simultanea-
de todas as coisas boas, t a l c o m o se fez, analogamente, mente, substância c o m procedimentos i m p e d i n d o que a
c o m o conceito de socialismo nos anos 1 9 6 0 e 1 9 7 0 . democracia seja inócua? C o m o conseguir u m m e i o - t e r m o
O grande desafio a t u a l é c r i a r u m a d e m o c r a c i a que entre democracia c o m o mera lista de procedimentos e de-
consiga concihar o aspecto f o r m a l (procedimento) c o m o mocracia que se identifique c o m a c o n c e p ç ã o substantiva
seu conteúdo (substância). T r a n s f o r m a r u m a democracia das necessidades da população?
de d i r e i t o e m democracia de f a t o , o u seja, u m a democra- A democracia nos países subdesenvolvidos, via de re-
cia que f u n c i o n e para as pessoas c o m u n s . A democracia g r a , f u n c i o n a p a r a u m a m i n o r i a . V a i c o n t r a a lição de
n ã o p o d e estar desligada d o c o n t e x t o s o c i o e c o n ó m i c o Tocqueville segundo a qual a democracia se justifica quan-
em que v i v e m os indivíduos. D o contrário, torna-se, para d o favorece o bem-estar d o m a i o r n ú m e r o de pessoas. J á
m u i t o s , irrelevante. há nos Estados U n i d o s q u e m se preocupe c o m os efeitos
A igualdade f o r m a l (procedural) da democracia liberal políticos da crescente concentração de renda. H á o receio
pode servir de fachada para a manutenção de níveis subs- de que isso cimentará o surgimento de u m déficit d e m o -
tantivos de desigualdade e de violação de direitos civis. A s crático. O u seja, u m a p l u t o c r a c i a c o m o u t r o n o m e .
desigualdades de riqueza e de poder i m p e d e m o alcance H á u m vazio conceituai. As teorias sobre democracias
da igualdade nas oportunidades substantivas. Por sua vez, e sobre democratização n ã o são persuasivas. E m especial
igualdade social sem Uberdade política desemboca em d i - q u a n d o aplicadas a países c o m fraca tradição democrá-
taduras populares p o r falta de c o m p e t i ç ã o eleitoral e de tica, c o m o é o caso d o Brasil. Prefiro observar os fatos,
respeito aos direitos políticos. H á ainda o u t r o óbice, de interpretá-los, t e n d o c o m o referência o h o r i z o n t e meta-
natureza metodológica. Trata-se da dificuldade de encon- político-eleitoral que lhes dá sentido e valor.
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DOSSIÊ I A DEMOCRACIA E SEUS IMPASSES
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MOVIMENTO PRÓ-DEMOCRACIA: jovens insatisfeitos com o resultado do segundo turno das eleições no Rio de Janeiro e com a maneira
como as campanhas foram feitas resolveram fundar movimento "Pró-Democracia"
46 n°137
DOSSIÊ I A DEMOCRACIA E SEUS IMPASSES
RIO DE JANEIRO: as Forças Armadas ocupam o Complexo do Alemão para garantir a segurança durante as eleições municipais
Q3Q n°137 47
DOSSIÊ I A DEMOCRACIA E SEUS IMPASSES
Democracia no Brasil:
um breve histórico
Séculos de um sistema educacional precário inviabilizam o conhecimento
das regras do jogo democrático pelos cidadãos
GUNTER AXT
A
democracia costuma v i r associada a dois concei- que u m a província liberal abolisse unilateralmente a es-
tos-chave: o de liberdade e o de igualdade. Doses cravidão. Eis o segredo da unidade t e r r i t o r i a l brasileira,
diferentes desenham f o r m a s diversas de d e m o - e n q u a n t o a América espanhola se esfacelava. Eis o l i m i t e
cracia. N u m e x t r e m o , as Uberdades i n d i v i d u a i s da democracia c o r o a d a .
sobrenadam direitos coletivos, n o o u t r o , i m p o r t a a igual- M e n o s de 1 % da p o p u l a ç ã o exerceu efetivamente o
dade entre os cidadãos. d i r e i t o ao v o t o . M a s a grande questão ao l o n g o de t o d o
N o Brasil, fez-se a independência e m nome da liberda- o império f o i a t e n s ã o da c e n t r a l i z a ç ã o . N a c o l ó n i a , as
de. Depois de a famíha real ter, em 1808, f u g i d o da i n v a - províncias n e m sequer t i n h a m tradição de se r e p o r t a r a
são napoleônica, a colónia g a n h o u prestígio e, e m 1 8 1 5 , u m a c a p i t a l . A Inconfidência f o i m i n e i r a , n ã o brasileira.
f o i equiparada à metrópole, c o m o Reino U n i d o . M a s as Os p e r n a m b u c a n o s de 1 8 1 7 d e f e n d i a m u m a confedera-
cortes de Lisboa, e m 1 8 2 1 , pretenderam a recolonização. ç ã o . O tema v o l t o u logo após a outorga da centralizadora
Portugal perdeu o Brasil, que era a garantia de sua i m p o r - Constituição de 1824, c o m a eclosão da Confederação d o
tância. R a r o caso de revolução liberal que t r o u x e atraso, Equador. E m 1828, o U r u g u a i tornou-se independente d o
d a n d o a n o ç ã o das contradições que o l i b e r a l i s m o assu- Brasil. N o Pará, a Cabanagem ( 1 8 3 5 - 1 8 4 0 ) d e r i v o u e m
m i u e m terras lusas. guerrilha r u r a l , m a t a n d o 2 0 % da população. N a Bahia, a
O reconhecimento da a u t o r i d a d e de Pedro I n ã o f o i Sabinada, em 1 8 3 7 , sublevou tropas militares e a miuça-
pacífico. N a Bahia, os portugueses resistiram, à bala. A lha urbana. A Balaiada, no M a r a n h ã o (1838-1841), v i r o u
adesão dos senhores do R e c ô n c a v o deu-se quando se con- g u e r r i l h a p o p u l a r . N o Sul, a F a r r o u p i l h a ( 1 8 3 5 - 1 8 4 5 ) ,
venceram que a independência garantiria o m o d e l o escra- controlada pela elite, constituiu uma república. E há quem
v i s t a . U m levante escravo e m 1 8 1 6 a t e r r o r i z a r a , n u m a diga n ã o ter o Brasil t i d o u m a história cruenta.
região c o m só 2 0 % de p o p u l a ç ã o branca. F o i apenas a
p r i m e i r a de u m a série de revoltas que c u l m i n o u c o m o Democracia de fachada
levante dos Males, e m 1835. O risco de rebelião das massas e de desmembramento era ta-
A m o n a r q u i a c o n s t i t u c i o n a l f o i a d m i t i d a c o m o ins- manho que se aceitou p Poder M o d e r a d o r como árbitro do
t r u m e n t o de preservação d o escravismo. É c l a r o que se sistema parlamentar. O Segundo Reinado conseguiu estabi-
esperava que a casa real europeia ajudasse n o reconheci- lidade, progresso económico e liberdade de imprensa. M a s ,
m e n t o da j o v e m n a ç ã o . M a s a fórmula centralizada f o i sem poder conciliar liberalismo e escravidão, o império nunca
aceita p o r q u e a unidade jurídica era essencial para evitar aprovou u m Código Civil, promulgado apenas em 1917.
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DOSSIÊ I A DEMOCRACIA E SEUS IMPASSES
BQS n''137 49
DOSSIÊ i A DEMOCRACIA E SEUS IMPASSES
mente e o país se urbanizara. Indústrias e cidades c r i a v a m norar a pobreza. Dentre os grandes emergentes, conseguiu
seus p r o b l e m a s , mas g o l p e a v a m o homem cordial e ain- concihar modernização e estabilidade i n s t i t u c i o n a l . N ã o
distinção entre espaços público e p r i v a d o . é p o u c o ter hoje u m processo eleitoral mais confiável d o
E m 1985, a Lei da Ação C i v i l Pública reconheceu direi- que o dos Estados U n i d o s .
tos indisponíveis, difusos, coletivos: u m n o v o p a r a d i g m a V i o l ê n c i a ? M e n o s d o que n o M é x i c o . C o r r u p ç ã o ?
para a cidadania. A Constituição de 1988 a m p l i o u direitos M u i t o menos d o que n a A r g e n t i n a , n a í n d i a , n a C h i n a
sociais, sendo a previdência e o habeas data dois exemplos e n a R ú s s i a . A q u a l i d a d e dos p o l í t i c o s cai? M e n o s d o
d o universo descortinado. O Ministério Público g a n h o u que n a Itália. I m a g e m r u i m d a p o l í t i c a ? T a n t o q u a n t o
garantias e atribuições na área c i v i l , tornando-se i n s t i t u i - nos E U A . Intolerância e racismo? Bem menos d o que n a
ção única n o m u n d o . O STF f o i empoderado e m u n i c i a d o m a i o r i a das sociedades europeias. Discurso único c o m o
c o m o sistema de controle da constitucionalidade das leis na Venezuela? N e m pensar.
à brasileira, híbrido. N ã o menos i m p o r t a n t e é o substrato H á múltiplos fóruns na sociedade: empresas, sindica-
infraconstitucional que veio em seguida, c o m o Estatuto da tos, o terceiro setor e uma imprensa razoavelmente l i v r e .
Criança e do Adolescente (ECA), o Código do Consumidor, A p o l i a r q u i a de R o b e r t D a h l . C l a r o que h á m u i t o que
a Lei da I m p r o b i d a d e e o Código do M e i o A m b i e n t e . melhorar, mas nada autoriza o pessimismo.
Se n o c a m p o político o país amadurecera, afastando O que está d a n d o errado? Para D a h l , o entendimen-
a m i r a g e m da r u p t u r a i n s t i t u c i o n a l , n o e c o n ó m i c o t a m - to esclarecido - a m p l o conhecimento das regras d o j o g o
bém cansou das mágicas, reconciliou-se c o m o mercado e pelos cidadãos - é essencial. Séculos de u m sistema edu-
c o n s t r u i u consenso em t o r n o das reformas m a c r o e c o n ó - c a c i o n a l p r e c á r i o i n v i a b i l i z a m a q u i essa c o n d i ç ã o . Sem
micas. A moeda estável fortaleceu a autoestima. O cres- educação de verdade não qualificaremos o debate público.
c i m e n t o f o i r e t o m a d o . O espectro d o e l i t i s m o e o t e r r o r D e m o c r a c i a , c o m o diz Stephen H o l m e s , n ã o é simples-
ideológico f o r a m afastados c o m a eleição de u m operário mente o governo da m a i o r i a , mas é, sobretudo, o governo
á Presidência. Programas sociais têm contribuído para m i - que se dá pela discussão pública. B
LULA: o espectro do elitismo e o terror ideológico foram afastados com a eleição de um operário à Presidência
50 BOS n°137
DOSSIÊ I A DEMOCRACIA E SEUS IMPASSES
Democracia corrompida
O potencial autêntico da democracia vem perdendo terreno hoje para a
ascensão de um novo capitalismo autoritário
SLAVOJ ZIZEK
QQQ n°137 51
DOSSIÊ A DEMOCRACIA E SEUS IMPASSES
isso m e s m o , ainda mais cruelmente irónica, a R e v o l u ç ã o desenfreada que visava deslegitimar todas as f o r m a s de
C u l t u r a l , c o m seu apagamento b r u t a l de tradições passa- a u t o r i d a d e , de m o d o que, n o f i m , M a o teve de c h a m a r
das, f o i u m " c h o q u e " que c r i o u as condições para a sub- o exército para restabelecer a l g u m a o r d e m . O p a r a d o x o
sequente e x p l o s ã o capitalista? E se a C h i n a tiver de ser é t a l que a batalha-chave d a R e v o l u ç ã o C u l t u r a l n ã o se
a d i c i o n a d a à lista de N a o m i K l e i n de Estados nos quais deu entre o aparato d o P a r t i d o C o m u n i s t a e os i n i m i g o s
uma catástrofe n a t u r a l , m i l i t a r o u social a b r i u o c a m i n h o t r a d i c i o n a i s d e n u n c i a d o s , mas entre e x é r c i t o e P a r t i d o
para u m a nova e x p l o s ã o capitalista? C o m u n i s t a e as forças que M a o havia i n v o c a d o .
A suprema i r o n i a da história é t a l que f o i o p r ó p r i o
Mao q u e m c r i o u as condições ideológicas para o rápido Confrontar a limitação da democracia parlamentar
desenvolvimento capitalista d e m o l i n d o a base da socieda- Isso não significa, é claro, que devamos renunciar à demo-
de t r a d i c i o n a l . Q u a l f o i o seu c l a m o r para o p o v o , espe- cracia em favor do progresso capitalista. M a s deyeríamos
cialmente para os jovens, na R e v o l u ç ã o C u l t u r a l ? " N ã o confrontar a limitação da democracia parlamentar represen-
esperem que o u t r a pessoa lhes diga o que fazer, vocês têm tativa, bem f o r m u l a d a p o r N o a m C h o m s k y quando disse
o d i r e i t o de se rebelar! E n t ã o pensem e a j a m p o r si pró- que " é apenas quando a ameaça de participação p o p u l a r é
prios, destruam relíquias culturais, denunciem e ataquem superada que formas democráticas podem ser contempladas
n ã o apenas os mais velhos, mas t a m b é m o g o v e r n o e o f i - com segurança" e, dessa f o r m a , destacou o núcleo "apassi-
ciais do p a r t i d o ! V a r r a m do mapa o mecanismo repressor v a d o r " da democracia parlamentar que a torna incompatível
estatal e organizem-se e m c o m u n a s ! " E o c l a m o r de M a o com a auto-organização política direta do p o v o .
f o i o u v i d o - o que se seguiu f o i u m a e x p l o s ã o de p a i x ã o W a l t e r L i p p m a n n , o ícone d o j o r n a l i s m o n o r t e - a m e r i -
cano n o século 2 0 , desempenhou u m papel f u n d a m e n t a l
na compreensão da democracia estadunidense. Apesar de
p o l i t i c a m e n t e progressista (tendo defendido u m a relação
justa c o m a U n i ã o Soviética e t c ) , propôs u m a teoria d a
mídia pública que t e m u m arrepiante efeito de verdade.
Ele c u n h o u a expressão " m a n u f a t u r a do c o n s e n t i m e n t o " ,
mais tarde tornada famosa p o r C h o m s k y - mas L i p p m a n n
a p e n s o u de u m a m a n e i r a p o s i t i v a . E m Public opinion
ele escreveu que " u m a classe g o v e r n a n t e " deve se
erguer para enfrentar o desafio - ele via o p o v o à maneira
de Platão, c o m o uma enorme besta o u u m rebanho perple-
x o - debatendo-se n o "caos das opiniões l o c a i s " .
A s s i m , o rebanho de cidadãos deve ser governado p o r
"uma classe especializada cujos interesses n ã o se l i m i -
tem à sua l o c a l i d a d e " - essa elite deve agir c o m o u m a
m a q u i n a r i a de c o n h e c i m e n t o que remedia o defeito p r i -
m á r i o d a d e m o c r a c i a , o i d e a l impossível d o " c i d a d ã o
onicompetente".
52 BIQ n°137
DOSSIÊ I A DEMOCRACIA E SEUS IMPASSES
mente, cuja função é a de assinar medidas propostas pela to mínimo de poUdez: os que estão no poder educadamente
a d m i n i s t r a ç ã o executiva. É p o r isso que o p r o b l e m a dos fingem não reter o poder e nos pedem que decidamos livre-
rituais democráticos é h o m ó l o g o ao grande p r o b l e m a da mente se queremos dar-lhes o poder - uma f o r m a que imita
democracia constitucional: como proteger a dignidade a lógica de u m gesto que se espera que seja recusado.
d o rei? C o m o m a n t e r a a p a r ê n c i a de que o r e i de f a t o O u , p o s t o e m t e r m o s da V o n t a d e P o p u l a r : a d e m o -
decide, q u a n d o t o d o s sabemos que isso n ã o é verdade? cracia representativa e m sua própria n o ç ã o envolve u m
T r o t s k i estava, p o r t a n t o , c e r t o e m sua r e p r o v a ç ã o d a apassivamento da V o n t a d e Popular, sua t r a n s f o r m a ç ã o
d e m o c r a c i a p a r l a m e n t a r , que n ã o se deve ao f a t o de ela e m n ã o v o l u n t a r i e d a d e - a v o l u n t a r i e d a d e é transferida
d a r demasiado p o d e r às massas i n c u l t a s , mas, p a r a d o - para o agente que representa o p o v o e que exerce a v o n -
x a l m e n t e , a o f a t o de ela apassivar d e m a s i a d a m e n t e as tade e m seu lugar.
massas, d e i x a n d o a i n i c i a t i v a p a r a o a p a r a t o de p o d e r Q u a n d o alguém é acusado de c o m p r o m e t e r a d e m o -
estatal (diferentemente d o que o c o r r e r i a nos " s o v i e t e s " , cracia, deveria e n t ã o responder c o m u m a p a r á f r a s e d a
nos quais as classes t r a b a l h a d o r a s se m o b i l i z a m de m a - réplica à s i m i l a r a c u s a ç ã o (de que os c o m u n i s t a s estão
neira d i r e t a e exercem o p o d e r ) . c o m p r o m e t e n d o a família, a propriedade, a liberdade
etc.) n o Manifesto comunista: a própria o r d e m d o m i -
A crise da democracia nante j á os está c o m p r o m e t e n d o . D a mesma f o r m a que
O que chamamos "crise da democracia" não ocorre, portan- a l i b e r d a d e (de m e r c a d o ) é n ã o l i b e r d a d e p a r a aqueles
to, quando as pessoas deixam de acreditar em seu próprio que v e n d e m sua f o r ç a de t r a b a l h o , d a mesma m a n e i r a
poder, mas, ao contrário, quando deixam de confiar nas eli- que a família é c o m p r o m e t i d a pela família burguesa sob
tes, naqueles de quem se espera que saibam por elas e que as a f o r m a de prostituição legalizada, a democracia é c o m -
orientem, quando experimentam a ansiedade que indica que p r o m e t i d a p o r sua f o r m a p a r l a m e n t a r c o m seu c o n c o m i -
" o (verdadeiro) t r o n o está v a g o " , que a decisão é agora de t a n t e apassivamento da grande m a i o r i a e os crescentes
fato sua. H á , assim, nas "eleições livres" sempre u m aspec- privilégios executivos i m p l i c a d o s pela contagiosa lógica
de estado de emergência.
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DOSSIÊ I A DEMOCRACIA E SEUS IMPASSES
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DOSSIÊ I A DEMOCRACIA E SEUS IMPASSES
N ã o é essa a m e s m a a t i t u d e d o s a t u a i s g o v e r n o s
europeus ao l i d a r c o m a " a m e a ç a i m i g r a n t e " ? Depois de
r i g o r o s a m e n t e rejeitar o racismo p o p u l i s t a d i r e t o c o m o
" i r r a c i o n a l " e inaceitável para nossos padrões d e m o c r á -
ticos, eles endossam medidas " r a z o a v e l m e n t e " racistas
e p r o t e t o r a s . . . o u , c o m o Brasillachs de hoje, a i n d a que
alguns deles sejam social-democratas, nos d i z e m :
BERLUSCONI: uma democracia daqueles que ganharam graças à (Tradução: Abílio Godoy)
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