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cebeu uma interpretação redutora

na analítica existencial. Deixando


de lado os problemas não respondi-
dos, o que nos importa aqui é cha-
mar atenção para o modo como
Heidegger interpreta as obras da fi-
Martin Heidegger 1998: Heráclito. losofia ocidental. As grandes obras do
Rio de Janeiro, Relume Dumará. filósofo, que despontam com a edi-
Tradução: Márcia de Sá Cavalcante ção da obra póstuma, são, na sua
Schuback. maioria, interpretações de textos de
ISBN: 85-7316-150-7 pensadores da metafísica ocidental e
representam etapas de seu projeto de
ERNILDO STEIN destruição, anunciado em Ser e tempo.
Departamento de Filosofia da Poder-se-ia esperar das incursões
PUC-RS heideggerianas na história da
E-mail: ejstein@pucrs.br metafísica uma espécie de explicitação
conceitual do conteúdo dos textos clás-
Gadamer afirmou alguma vez sicos, feita por um grande conhece-
que não existe a possibilidade de a filo- dor. Ou, talvez, nutríssemos a expec-
sofia ocidental mover-se fora da tativa de encontrar nelas introduções
metafísica. Não existiria, segundo ele, a esses filósofos. Ocupando o lugar de
uma outra linguagem. Mas mesmo as- intérprete, Heidegger, no entanto, não
sim, ele não sabe ao certo como falar se dedica a uma atividade analítico-
hoje desse assunto ou o que hoje ainda crítico-elucidativa que reduziria os
seria metafísica (Gadamer, Obras, vol. textos filosóficos a meros objetos da
10, p. 108). Esse questionamento lhe lógica e da análise da linguagem. O
vem de Heidegger e a afirmação que filósofo não despreza os elementos crí-
explícita é dirigida contra aqueles tico-formais, mas esses estão a serviço
que interpretam de modo equivocado de uma dimensão substantiva: “Ain-
o que o filósofo diz da destruição, da da não foi decidido que a lógica e suas
superação e do fim da metafísica. regras fundamentais possam servir de
O processo de superação da critério para a questão sobre o ente
metafísica, que toma como fio con- como tal” (Introdução à metafísica, Tem-
dutor a questão do tempo, baseia-se po brasileiro, p. 54).
num critério para decidir o que é uma Para Heidegger, a questão subs-
questão metafísica. Esse critério re- tantiva é a questão do ente e esta, por

Natureza Humana 2(2):441-445, 2000


Ernildo Stein

sua vez, é elaborada a partir da ques- bém o volume 55 das Obras Reuni-
tão do ser. O teorema que preside a das de Heidegger, que tem como tí-
interpretação é a diferença ontológica. tulo o nome de Heráclito. Do começo
É dela que toda a interpretação dos dos anos 40, esse texto contém as
textos da filosofia se alimenta. É toda duas últimas grandes preleções de
a filosofia que está presente em cada Heidegger durante a Segunda Guer-
filósofo. Há uma história da metafísica ra Mundial. A primeira é do semestre
que é desvendada em cada leitura. de verão de 1943 e vem com o título
Nisso consiste a tarefa da destruição, “A origem do pensamento ocidental
presente no projeto heideggeriano. (Heráclito)”. A segunda, intitulada
Cada autor interpretado repre- “Doutrina heraclítica do lógos”, foi
senta algum degrau para ascender na desenvolvida durante o semestre de
direção de construir um discurso pró- verão de 1944. Pouco antes de sua
prio sobre o destino da metafísica. Os morte, em 1976, o filósofo confiou a
ensaios e os tratados de Heidegger são Manfred Frings a edição do volume.
o resultado final dessa chave de inter- Em meio a tantos textos inéditos,
pretação. Desde Ser e tempo até Medi- Heidegger tinha por estas duas prele-
tação (Besinnung) e outros tratados, a ções sobre Heráclito um interesse
sua linguagem é o resultado do con- muito particular.
fronto interpretativo que tem esse ca- Precedidas pela preleção
ráter substantivo. Hoje sabemos, da Parmênides, do semestre de inverno
publicação dos volumes do começo dos 1942/43, as preleções sobre Heráclito
anos 20, que mesmo a terminologia situam-se no fim das grandes aulas dos
filosófica de Ser e tempo foi gestada prin- anos 30 e na primeira metade dos anos
cipalmente a partir da interpretação 40, em que foram analisados filósofos
de Aristóteles, ainda que certos pres- como Kant (1930 a 1935/36), Hegel
supostos kantianos também sejam (1930/31), Aristóteles (1931), Platão
determinantes. Heidegger, por vezes, (1931/32), Anaximandro e Parmênides
chama a leitura de Aristóteles de in- (1932), Schelling (1936/41) e, sobre-
terpretação fenomenológica. Ainda tudo, Nietzsche (1936, 1937, 1938,
em 1928 ele escreve um volume so- 1939, 1940, 1941 e 1942) e Hölderlin
bre a Crítica da razão pura e o denomi- (1934, 1935, 1941 e 1942). São todas
na Interpretação fenomenológica da Crí- elas preleções importantes, essenciais
tica da razão pura. para a compreensão do segundo
É com esses pressupostos e nes- Heidegger e do quadro em que toma-
ta moldura que deve ser recebido tam- ram forma os notáveis tratados que se

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Martin Heidegger: Heráclito

seguiram ao primeiro deles, Ser e tempo d) pensa o que chama a “verda-


(1927). Estes textos repensam a ma- de do ser” a partir do fragmento 16,
triz de Ser e tempo e introduzem temas cuja ambigüidade permite a combi-
novos, como a história do ser, o desti- nação com outros fragmentos, tais
no da metafísica ocidental e a era da como o 123, o 30 e, sobretudo, com
técnica. Deles já foram publicados: Con- 64, 66, e 124;
tribuições para a filosofia (Beiträge zur e) liga a “alétheia” ao desvela-
Philosophie, de 1936-1938), Meditação mento e à palavra do ser na história
(Besinnung, de 1938/39) e A história do ocidental;
ser, (Geschichte des Seyns, de 1938, 1939, f) passa então para a análise do
1940), nos volumes 65, 66 e 69 da “lógos” e da lógica como disciplina e
Obra Reunida. como tarefa (preleção de 1944);
Já conhecíamos “Lógos” e g) descreve o afastamento do
“Alétheia”, ensaios dos anos 50, e “O “lógos” originário e os caminhos de
Seminário sobre Heráclito”, de 1966/ retorno à região originária da lógica,
67, realizado com Eugen Fink. A que à “verdade do ser”.
vem agora Heráclito? Qual é o conteú- Esses itens não são um resumo
do e o estilo de análise dessas aulas? de Heráclito, eles tão-somente querem
Nessas preleções, seguindo um impul- mostrar uma unidade que não é ape-
so extraordinário do seu pensamento, nas de um tema, mas de vários temas.
o filósofo conjuga, num único movi- Apesar de jogar com o “obscuro”,
mento, os seguintes passos: codinome do filósofo grego, o texto
a) análisa o enigma do pensa- de Heidegger não é obscuro, nem her-
mento ocidental e a relação entre o mético, nem rebarbativo ou artificio-
originário e a palavra; so, como é, por exemplo, Parmênides,
b) evoca todos os filósofos anali- sua preleção anterior.
sados nos anos 30 e mostra como nes- O fragmento 16 e a combina-
ta história da filosofia aconteceu o es- ção entre “alétheia” e “phýsis” permi-
quecimento do ser (da verdade do ser) tem a Heidegger criar uma atmosfe-
enquanto pensamento metafísico; ra de tensão e manter aberto o espaço
c) mostra como pensar a “obs- de jogo de que se serviu seu pensa-
curidade” do pensamento essencial, ao mento durante todos os anos 30. Re-
mesmo tempo que aponta a tomando a labuta obsessiva sobre ou-
inadequação da dialética como meio tros autores, que estudou durante os
para expor a tensão entre o pensamen- 15 anos anteriores, Heidegger esco-
to originário e o encobrimento; lhe dois deles para inseri-los na inter-

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Ernildo Stein

pretação de Heráclito. São eles mal. Em 1946, ele será excluído da


Nietzsche e Hölderlin, os mais estu- Universidade. Trata-se do ajuste com
dados pelo viés do fim da metafísica e a metafísica e suas conseqüências.
do outro começo. Nietzsche, como o Em 1929/1930, Heidegger rea-
último metafísico, e Hölderlin (Rilke, lizou a preleção volumosa intitulada
por momentos), como o arauto de um Os conceitos fundamentais da metafísica –
outro começo; Nietzsche, com a von- mundo, finitude, solidão, que, numa car-
tade de poder (lógica, técnica) e ta a Elysabeth Blochmann, ele mes-
Hölderlin, com o verso: “Quem pen- mo chamara de “minha metafísica”.
sou o mais profundo ama o que é mais Estava no limiar de um novo tempo.
vivo”. Mas o que ressoa mesmo em Os anos 20 haviam sido a sua “guerra
Heráclito de Heidegger é o conjunto interior” que se encerrava com a “sua
temático dos tratados da segunda metafísica” (um Ser e tempo mais ex-
metade dos anos 30. Neles se fala do plícito e livre). Entrava agora na “ou-
Ereignis (acontecimento-apropriação), tra guerra” – a sua escolha política que
da técnica, da subjetividade, do esque- se encerraria de modo arrasador, em
cimento do ser, da verdade do ser, da 1945, ou, melhor, em 1946, com o
vontade da vontade, da lógica como seu banimento do único campo em
origem do destino ocidental, da falên- que sabia lutar, a Universidade, e onde
cia histórica do cristianismo (“Será apostara todas as suas fichas. Heráclito
necessário ainda uma terceira guerra é um dos melhores textos do segundo
mundial para comprová-lo”? – per- Heidegger. De uma complexidade
gunta Heidegger em 1944. fulgurante. E, contudo, revela uma
Todos os temas caros ao segun- essencial simplicidade. É também
do Heidegger juntam-se na her- a obra que encerra o segundo
menêutica de Heráclito. É do “obscu- Heidegger. O que vem depois é o ter-
ro” que trata a última preleção de ceiro. Sua criação filosófica termina
Heidegger sobre um autor da história com a guerra ou com as guerras. A
da filosofia ocidental (este que é, de atividade solitária da interpretação da
algum modo, o primeiro). Ficamos herança ocidental o levara muito lon-
espantados em ver com que auto-su- ge, a grande obra estava pronta. O
ficiência, distância, orgulho, ironia, projeto de destruição da metafísica con-
desprezo e satisfação Heidegger reali- duziria a resultados que Ser e tempo
za esta obra no início da noite que se certamente não previra.
estende sobre a Alemanha. É também Depois de 1946, quase tudo é
o fim de sua atividade acadêmica nor- conseqüência, seleção, resumos, sínte-

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Martin Heidegger: Heráclito

ses da produção dos anos 30 ou expli- tas escolhas felizes para problemas sé-
cações e auto-interpretação, também rios de tradução. A nova edição deve-
dos anos 30: dos erros e das errâncias. ria, entretanto, rever certas escolhas
Heráclito, que temos agora em portu- – sobretudo o uso dos termos “desco-
guês, é uma espécie de manifesto e tam- brimento” e “desvelamento”. “Sache”
bém uma despedida. A grande filoso- é tarefa ou causa, não coisa, como apa-
fia de Martin Heidegger se encerra aí. rece em geral no texto. “Contréa” é
A tradução brasileira de Márcia um achado de luxo para “Gegend” (re-
de Sá Cavalcante Schuback é uma bela gião). O texto está mundos à frente
surpresa. Lê-se com gosto e quase sem do nível de tradução de Ser e tempo,
o auxílio do texto em alemão. Há mui- pela mesma tradutora.

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