Você está na página 1de 5

MICHEL FOUCAULT – A Arqueologia do saber

Seminário apresentado à Disciplina Informação e Cultura


Síntese da leitura do livro de Roberto Machado intitulado
A história arqueológica de Foucault (2006, p. 111-167).

Elisabeth Sardelli Mazini


Maio de 2007

I – A ARQUEOLOGIA DO SABER

Escrita em 1970, depois de A Palavra e as Coisas na qual Foucault realiza uma pesquisa história
do discurso da ordem e da representação, esta obra tem como tese principal a noção de
práticas discursivas, explicitada no contraponto discurso e não discurso. O instrumental de
investigação apresentado é a Análise dos Discursos que ele batiza de ARQUEOLOGIA. Segundo
Roberto Machado (2006, p.143-4) nesta obra Foucault faz uma revisão crítica de seus
trabalhos anteriores, procura explicitar suas categorias de análise e a nova direção de seu
projeto teórico. Ele agora se interessa pelo discurso real, pronunciado, existente como
materialidade e define o método arqueológico a partir de seus objetos: o discurso, o
enunciado e o saber.

II – O DISCURSO

Referindo-se aos seus estudos anteriores e procurando definir o que é PRÁTICA DISCURSIVA o
autor adverte que sua compreensão “não pode ser reduzida a uma obra ou disciplina
acadêmica, individualmente. É, antes, a regularidade emergindo no próprio fato de sua
articulação: não é anterior a essa articulação” (FOUCAULT por LECHTE, 2002, p. 130). Essa
afirmação envolve entendimentos que buscamos na leitura dos capítulos 3 e 4 da segunda
parte do livro de Roberto Machado intitulada A história arqueológica de Foucault ( 2006, p.
111-167).

1º - Na Arqueologia do saber o discurso é analisado na sua DISPERSÃO (2006, p. 145-146). O


autor despreza a classificação tradicional em tipos abordando o discurso no nível da parole de
Saussure que gera infinitas combinações discursivas, nenhuma igual à outra. Em outras
palavras, o discurso (em geral) não tem sistematicidade à maneira da ciência, seus elementos
são dispersos, pois são constituídos com objetivos PRAGMÁTICOS, isto é, de uso da língua
como “forma específica de comunicação social, da atividade verbal humana, interconectada
com outras atividades (não lingüísticas) do ser humano” (KOCH, 2006, p.14).

2º - Com objetivo de estabelecer a REGULARIDADE, Foucault investiga o que faz a unidade de


um discurso. Nesse contexto examina quatro hipóteses de unidade (o objeto, os tipos de
enunciado, o conceito, o tema/as teorias) e as rejeita (MACHADO, 2006, 145-153).

a) O discurso não é um SABER que se refere a alguma coisa enquanto objeto, pois o
objeto se constitui no próprio momento de sua ENUNCIAÇÃO. Ex: Não é a unidade do
objeto LOUCURA que constitui a unidade da psicopatologia. Ao contrário é a loucura
que foi construída pelo que se disse dela (Conjunto de formulações).

b) O discurso não se constitui de forma REGULAR: os objetos não são únicos, aparecem
históricamente, co-existem e se transformam. Não se organizam a partir de um
sistema fechado, não apresentam um modo constante de enunciação, um único estilo,
etc. Também os conceitos dentro de um campo conceitual não são fixos, se
transformam e se reordenam em função de novas argumentações. As formulações
variam (dedutivos, narrativos, raciocínios por analogia, etc). Os temas e as teorias
também não servem de princípio de individualização, pois se repetem em várias
épocas e campos conceituais. Ex: o mesmo tema aparece na história natural do século
XVIII e na Biologia do século XIX, e, além disso, em tipos discursivos diferentes.

c) A passagem da dispersão à REGULARIDADE é definida na ARTICULAÇÃO, ou seja:

 No jogo dessas RELAÇÕES entre objetos, tipos de enunciados, conceitos e


estratégias FORMANDO SISTEMA que também possibilita que cada elemento exista
independentemente. Ex: Na História da loucura o objetivo era definir as regras de
formação dos objetos - individualizar o discurso da loucura. Nascimento da Clínica o
interesse era os tipos de enunciação do discurso médico – procura definir a
regularidade. Na Palavra e as Coisas, estudou as regras de formação dos conceitos -
procurava definir a inter-relação dos saberes.

 No estabelecimento de RELAÇÕES com ACONTECIMENTOS NÃO DISCURSIVOS, de


ordem técnica, social, economica, política etc. (discurso / não discurso). Não é a
atividade de um sujeito, designa a existência de um código ao qual o sujeito se
submete desde o momento que o enuncia. É um EMPREENDIMENTO DE
INSTITUIÇÕES. Para o autor o homem é o seu discurso, o produto de todas as práticas.
O homem não existe, ele aparece no discurso, opondo-se à ANÁLISE SIMBÓLICA (à
noção de sujeito como mediador e referência de todas as coisas) e à ANÁLISE CAUSAL
(as práticas determinam a consciência dos homens e influenciam seus discursos).

 Como articular essas duas ordens de coisas? Foucault não respondeu e por isso A
Arqueologia do Saber não elabora uma teoria (Idem, p. 149)

III- O ENUNCIADO

É uma FUNÇÃO DE EXISTÊNCIA dessa articulação, não uma unidade. “Uma função que cruza
um domínio de estruturas e de unidades possíveis e que as faz aparecer com conteúdos
concretos, no tempo e no espaço” (FOUCAULT por MACHADO, p. 151).

1º) O enunciado não é a mesma coisa que uma frase ou uma proposição, quer dizer,
não corresponde ao mesmo nível de análise, gramatical ou lógica. Para que os signos verbais
existam como enunciado é preciso fixar a relação do enunciado com seu correlato, isto é, com
aquilo que ele enuncia. Foucault chama o correlato de REFERENCIAL e o define como Conjunto
de regras que dão existência a um domínio ou campo de objetos possibilitando que
determinados objetos possam ser mencionados.
2º) O enunciado NÃO EXISTE ISOLADAMENTE como existe a frase por exemplo.
Precisa estar integrado a um conjunto de enunciados e se SITUAR no espaço adjacente ou
colateral. O enunciado para ter existência depende da existência de um domínio a ele
associado.

3º) A relação do sujeito com o enunciado é uma FUNÇÃO VAZIA onde sujeitos
diferentes podem co-existir; os enunciadores. Assim sendo, o sujeito do enunciado não é o
sujeito da frase, nem o autor, mas todos que vierem a interagir com a formulação.

4º) O enunciado tem que ter existência material e se distinguir da enunciação. Tem-
se uma enunciação toda vez que alguém formula uma frase, uma singularidade que impede a
repetição. Um enunciado é passível de REPETIÇÃO. Duas enunciações podem conter um único
enunciado, ser repetidas por pessoas diferentes, em locais e épocas diferentes. Por isso a
repetição de um enunciado depende de sua MATERIALIDADE que é sempre de ORDEM
INSTITUCIONAL, no sentido de estrutura de poder (MACHADO, p. 151-2).

Essas regras mostram que na obra A Arqueologia do Saber “mais do que estudar a história das
idéias, onde as idéias são anteriores ao material em estudo ou o jeito pelo qual as ideologias e
teorias expressam condições materiais, o autor analisa o Regime de práticas” (LECHTE,2002,
p. 130), ou seja, as regras de formação discursiva, já que o discurso é definido como um
conjunto de enunciados.

IV – O SABER

Na Arqueologia do saber o autor introduz o conceito de HISTÓRIA ARQUEOLÓGICA em


oposição à noção de DESCONTINUIDADE ESTRUTURAL, ou seja, de cortes ou rupturas
comentadas nas obras anteriores. Ela se distingue das histórias das idéias, do pensamento ou
das ciências (descritiva) porque é uma história conceitual que se define em continuidade com
a história epistemológica, dos modelos e dos instrumentos conceituais. A base da história
arqueológica é o CONCEITO DE DOCUMENTO (MACHADO, 2006, p.153-4) que:

 Não é mais considerado o signo de outra coisa (imagem de polir o espelho para
aparecimento do sentido).

 É tratado como MONUMENTO, considerado na materialidade de seu tecido


documental, constituído de unidades e de relações. Interessa ao autor determinar as
condições de construção dos discursos tomados como acontecimento em relação a
outros acontecimentos, discursivos ou não.

Para ilustrar a visão de documento na análise arqueológica, recorremos à definição de regime


de práticas citado por LECHTE (2002, p.130) sobre Foucault: “Não é uma forma-histórica de
fazer ou praticar e dizer, reduzido ao reino da teoria. Tudo o que temos são efeitos materiais e
atos materiais: não existe significado essencial nas coisas – nenhum sujeito essencial por trás
da ação; nem existe uma ordem essencial na história. Antes, a ordem é a própria escritura da
História.”

Como regime de prática, analisa os discursos a partir dos documentos; delimitando as regras
de formação dos objetos, das modalidades enunciativas, dos conceitos, dos termos, das
teorias com o objetivo de estabelecer o tipo de POSITIVIDADE que os caracteriza. Essa
positividade é a de um SABER, não de uma CIÊNCIA. Os saberes são independentes das
ciências (estão também em outros tipos de discurso), mas toda ciência se localiza no campo do
saber (MACHADO, 2006, p.154).

A história arqueológica não apresenta INCOMPATIBILIDADE com a história epistemológica


porque é possível fazer a DISTINÇÃO entre o limiar de cientificidade, que somente alguns
discursos alcançam, e o limiar de positividade, indispensável para individualização e
autonomia de qualquer discurso. A EPISTEMOLOGIA (normativa) estabelece a LEGITIMIDADE
de conhecimentos e a ARQUEOLOGIA, neutralizando a questão da cientificidade, interroga as
CONDIÇÕES DE EXISTÊNCIA DE DISCURSOS, até dos científicos (Idem, p.155).

Na obra A Arqueologia do Saber Foucault reformula o conceito de EPISTEME, agora


identificada com “o conjunto das relações que se pode descobrir, em determinada época,
entre as ciências quando são analisadas no nível das regularidades discursivas” (Idem).

V – O CONJUNTO DA OBRA DO AUTOR

As obras do autor referem-se a dois momentos: A Arqueologia do Saber, de 1961 a 1969 e A


Genealogia do Poder, de 1970-1984. Conforme LECHTE (2002, p.130-1), que resumimos daqui
para frente, o entendimento desses momentos depende da apreensão dos seguintes
conceitos-chaves que se inter-relacionam:

1 - O PRESENTE - Oferece problemas a serem estudados historicamente. A Palavra e as Coisas


(66) foi motivada pelo surgimento do estruturalismo nos anos 60; Vigiar e Punir (75) pelos
distúrbios em prisões de 1970. Inspirado em Nietzsche defende que a história é sempre escrita
na perspectiva do presente. Para que essa orientação se concretize é preciso que o conceito de
causa predomine sobre o efeito (material); que a continuidade sobrepuje as descontinuidades
que o nível da prática revela; que o passado assuma novos sentidos à luz de novos eventos.

2 - A GENEALOGIA – Também inspirado em Nietzsche, explica que a história é escrita de


acordo com um compromisso com as questões do momento presente / escrita com uma
intervenção atual.

3 - A EPISTEMOLOGIA - Inspirado em Bachelard, Canguilhem e Cavaillès. Estrutura de


conhecimento e modos de compreensão estão sempre mudando. Epistemologia estuda essas
alterações como a “gramática” da produção do conhecimento e é revelada pela prática da
ciência, da filosofia, da arte e da literatura. É também um modo de vincular eventos materiais
ao pensamento.

4 - A TECNOLOGIA (ciência) - Inspirado em Mauss. Não há forma de ação humana que não
esteja vinculada a uma estrutura de repetição. Uma regularidade de ações pode emergir de
uma técnica, tão naturalmente que parece não ter sido apreendida. Nas análises de poder que
realiza, de 1970 em diante, está preocupado em revelar a regularidade não reconhecida de
ações, que é a marca de uma técnica.

VI - REVENDO AS ESTRUTURAS: na Arqueologia o homem não existe como categoria


As obras A Palavra e as Coisas e A Arqueologia do Saber apresentam muitas questões que
motivam debate, contudo, em função da temática do nosso seminário Revendo as estruturas:
o fim do sujeito soberano, racional e estável perece-nos interessante assinalar a mudança de
posição do autor sobre o papel do sujeito no trajeto que compreende as duas obras. Na
Arqueologia, obra em que procura explicitar seu projeto teórico sobre os saberes, o autor
renega a idéia marxista de que o homem é o motor da história (“Não há sujeito nenhum atrás
da história...as práticas determinando a consciência dos homens e influenciando seus
discursos) tanto quanto refuta a noção de sujeito como mediador e referência de todas as
coisas adotada na obra anterior. Segundo Foucault na arqueologia o homem não existe: o
enunciador é uma categoria vazia. Assim sendo, como produto de todas as suas práticas
discursivas, o homem se constrói como sujeito de seu tempo (solo instável e mutável) na
interação discurso/ não discurso ou na articulação saber/poder. Um debate?

VII – REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas. São Paulo:
Martins Fontes, 1966.

GUAZZELLI, Iara. O conceito de solo epistemológico. Disponível em


http://www.sedes.org.br/centros/filosofia Acessado em 21-04-2007

KOCH, I. G. V. Introdução à lingüística textual. São Paulo: Martins Fontes, 2006.

LECHTE, John. 50 pensadores contemporâneos essenciais: do Estruturalismo à Pós-


Modernidade. Rio de Janeiro: Difel, 2002.

MACHADO, Roberto. Foucault, a ciência e o saber. 3.ed.rev. E ampliada. Rio de Janeiro: Zahar,
2006.

Você também pode gostar