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Voo para lugar nenhum


Voos que dão um rolê e voltam ao mesmo aeroporto são desespero dos tempos de
pandemia

Josimar Melo - 4.nov.2020 às 23h15

Em minha coluna anterior neste espaço eu celebrava a emoção de percorrer 35 quilômetros de


minha casa até as bordas da cidade para ao mesmo tempo “viajar” (pois pegara uma estrada
federal, e chegara a outro município!) e comer fora, num restaurante (que ainda por cima era
arejado e com pinta rural).

Da mesma forma que, na semana seguinte, mas em outra página aqui nesta mesma Folha, eu
comemorava essas primeiras idas a restaurantes depois de meses de quarentena, mesmo que
mediadas por tantos cuidados e apreensões, em parte frustrantes mas mais do que
necessários.

O pouco que vamos paulatinamente recuperando, a esta altura da tragédia mundial, parecem
ganhos imensos. Ao menos ajudam a sonhar com o momento em que (se vier) este horror terá
passado.

Mas me parece um pouco de exagero, e mais patético do que feliz, o que li a respeito de
“viagens” aéreas para lugar nenhum, que entraram em voga na Ásia: voos que partem de um
aeroporto e voltam para ele mesmo, poucas horas ou minutos depois.

Entendo a saudade de voar, tão bem expressa nas brincadeiras dos memes —que nos aliviam
com seu humor— mostrando voos simulados com aspirador de pó fazendo som de turbinas,
tablets imitando janelas de avião... Mas gastar dinheiro para subir num avião, dar um rolê e
voltar... Aí já parece desespero.

Como disse um jornalista americano da revista Afar, avião é diferente de navio: neste pelo
menos há piscina, banquetes, academia de ginástica, boate, cinema, além de cabines e camas
para descansar decentemente. Já o percurso de avião, com centenas de pessoas confinadas no
desconforto, costuma ser o pior momento de qualquer viagem.

No que concordo, embora considere que uma solução mágica, como um teletransporte à Star
Trek, seria muito estranho: o tempo da viagem, o percurso, funciona como um período de
descompressão necessário se a gente quer fazer um pouso suave na imersão em outro lugar,
outra cultura. Seria bem estranho, imagino que até traumático, estar em casa em São Paulo e,
num piscar de olhos, simplesmente estar caminhando numa rua em Bagdá.

As viagens de navio, e mesmo de trem, permitiam esta transição mais suave. O avião encurtou
a distância e o tempo de adaptação, mas não o eliminou. Dormir (ou tentar dormir) uma noite
e acordar em outra cultura, outra língua, outra estação do ano, já é bem estranho. Mas é fato
que a aviação aproximou o mundo e isto é bom, por uma infinidade de motivos.
Ainda assim, o que justifica o desconforto aéreo é o destino que nos aguarda. Pagar para
apenas ficar no ar e voltar parece um desatino. E não é barato. Por exemplo, um voo da
Qantas, a companhia australiana, saindo do aeroporto de Sydney, dando uma volta aérea de
sete horas e voltando para o mesmo lugar tinha passagens com preços entre US$ 566 (R$
3.220) e US$ 2.374 (R$ 13.505) —e esgotou em dez minutos!

Outro sucesso foi o voo lançado pela empresa aérea japonesa ANA, realizado no Flying Honu,
uma aeronave A-380 pintada como a tartaruga marinha da sorte do Havaí (honu).
Normalmente seria um voo de Narita (no Japão) a Honolulu, mas neste caso é de Narita para
Narita mesmo —com coquetéis havaianos a bordo.

A Singapore Airlines também lançou um voo de três horas saindo do (e chegando ao...)
aeroporto de Changi. Sobre o voo da EVA Air em Taiwan, só comento que era temático —e o
tema, Hello Kitty.

Aeromoças da EVA, companhia que tem avião temático da Hello Kitty e lançou voo para lugar
nenhum na pandemia – Divulgação

Tudo isso parece bem louco, ainda mais numa época em que crescem os movimentos
conhecidos como flygskam (termo sueco), algo como “vergonha de voar”. Ele descreve o
hábito, que estatisticamente vinha crescendo na Europa pré-pandemia, de pessoas que optam
por utilizar meios de transporte (notadamente os trens) que sejam menos poluentes que os
aviões, cuja pegada de carbono é gigantesca: a indústria aérea é responsável por dois por
cento da emissão global de carbono.

Para ir do Brasil à China em tempo hábil não há muito como fugir do avião, então que se tente
compensar a emissão de poluentes com outras medidas. Já pegar um avião para ir de um lugar
para lugar nenhum parece uma mera extravagância também em termos ambientais.

Em tempos loucos de pandemia, porém, até isso dá para entender. Que seja um modismo de
exceção, na torcida para que todo este tempo louco —de coronavírus e quarentenas, mas
também de aquecimento global, desmatamentos, bolsonaros, democracias minadas,
fanatismos emergentes— seja também uma exceção em nossas vidas.

Josimar Melo

Crítico de gastronomia, autor do “Guia Josimar”, sobre restaurantes, bares e serviços em São
Paulo.

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