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: PRÁTICAS

Brincadeiras sem teto1


Maria José Vale . Educadora de infância. Agrupamento de Escolas de Miranda do Corvo

“Brincadeiras sem teto” constitui uma refle-


xão sobre um conjunto de experiências de
brincar no espaço exterior do jardim de infân-
cia, iniciadas e desenvolvidas nos últimos anos
letivos com crianças entre os 3 e os 6 anos de
idade. Não escondemos que o nosso envol-
vimento nestas experiências implicou alguns
dilemas pedagógicos, educativos e profissio-
nais com os quais tivemos de aprender a lidar,
levando-nos a uma análise mais profunda e
sistematizada relativamente às brincadeiras
autodirigidas pelas crianças no exterior, aos
materiais para brincar e às potencialidades pe-
dagógicas/curriculares que estes possibilitam.
Compreender a nossa atuação e as motiva-
ções que suportaram as nossas opções só é
possível percebendo como, no último século,
o discurso sobre a infância se foi impondo
sobre a criança, “condicionando”, de certa que se transformaria num organismo perma- ao espaço de recreio e oferece às crianças um
forma, o seu desenvolvimento e liberdade. nente desta organização, com papel de relevo espaço de brincar motivador e estimulante.
Sem querer analisar ou discutir em pormenor na ação e legislação adotada nos diversos pa- Ora, se a este imenso espaço mais ou menos
a construção social do conceito de infância, íses em relação à infância. em estado bruto, com algumas árvores, flo-
certo é que assistimos ao longo do século XX Na sequência desta maior atenção à criança, res, ervas, terra, pedras, areia, equipamentos
à conquista pela criança de um lugar de relevo não obstante as melhorias no seu tratamen- de parque infantil, juntarmos os alpendres,
nas preocupações das sociedades. Ao nível to e bem-estar, assistimos progressivamente onde se guarda a lenha para o aquecimento,
das famílias, a redução do número de crianças ao confinamento da infância a espaços so- móveis e outros objetos em desuso, e pos-
implicou maior quantidade de tempo, afeto ciais condicionados, arquitetados e controla- sibilitarmos a sua exploração, descoberta e
e atenção destinados a estas (Clarke, 2004; dos pelos adultos. Ao mesmo tempo que se (re)invenção, garantimos que muito do que
Heywood, 2004). Ao nível do Estado assume- procura autonomizar a criança em relação ao aqui queremos transmitir poderá ficar ainda
-se, por outro lado, um papel progressivamen- adulto, emergindo esta enquanto objeto de por dizer.
te mais ativo na defesa da infância, lançando- estudo, atribuem-se-lhe características que Quando focámos a nossa atenção no in-
-se programas de intervenção ao nível da fazem supor que as crianças são seres biolo- vestimento que as crianças dedicavam aos
saúde, proteção, educação e desenvolvimento gicamente imaturos, culturalmente ignoran- materiais e objetos em desuso, bem como
das crianças (Clarke, 2004) que enquadram a tes, socialmente incompetentes, moralmen- a outros materiais naturais (lenha, paus, pe-
construção dos sistemas educativos e da rede te irresponsáveis, cognitivamente irracionais dras, folhas, ervas), as questões da defesa,
de apoio às famílias e crianças. Cumulativa- (Ferreira e Sarmento, 2008: 65), privando-as proteção e segurança da criança vieram ao
mente, a nível internacional, testemunhámos de lidar com espaços menos normalizados, de cima, sobrepondo-se, ou mesmo limitan-
a aprovação de diversos documentos relati- menos assépticos, ou seja, potencialmente do, o seu natural interesse pela exploração,
vos à infância, da Declaração de Genebra em perigosos. Perante esta criança superprote- levando-nos a impedir o manuseamento de
1924 e da Declaração Universal dos Direitos gida, imatura e incompetente, contrariando tais materiais. Era recorrente, no dia a dia, as
das Crianças em 1959 até à Convenção dos este progressivo paternalismo, condicio- crianças perseguirem-nos com perguntas in-
Direitos das Crianças em 1989. Neste arco nador da sua “liberdade”, deixámo-la voar, sistentes: «Podemos ir brincar para ali? Pode-
histórico, e para dar resposta ao problema brincar sem teto. mos brincar com o computador velho? E com
da infância afetada pela II Guerra Mundial, Para melhor entendermos a emergência des- o aspirador? E com as cadeiras? E podemos
foi ainda criada pela ONU a UNICEF, em 1947, tas brincadeiras e as suas dinâmicas é essen- fazer uma cana de pesca com os paus?» A
cial ter em conta a localização do jardim de resposta acontecia sempre em sintonia com
1. Comunicação apresentada no IV Encontro Qualidade infância, inserido numa aldeia, a sua envol- um discurso protetor tanto relativo às crian-
em Educação de Infância - a experiência de brincar, que
se realizou em Coimbra no dia 20 de Outubro de 2012.
vente, uma zona rural literalmente no meio ças, como relativo ao nosso trabalho como
do campo que, de certa forma, se estende até educadora: «Não podem brincar aí, está tudo

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que, para além da padronização e normaliza- sua autonomia, independência e relações in-
ção dos ambientes, espaços e materiais, es- terpessoais. Aprender a conhecer os perigos
tes refletem também o modo de pensar dos e os riscos lidando com eles ensina a criança
adultos que os estruturaram e organizaram, a proteger-se, a conhecer os seus limites e a
transportando crenças, valores e represen- avaliar o ambiente que a cerca, levando-a a
tações que condicionam o modo como se agir de modo mais controlado perante novas
proporcionam as experiências de brincar às situações. Lembra-nos Prott (2010: 20) que
crianças. Ao enquadrarem-se num conjunto uma instituição em que nada acontece pode
de interrogações – é seguro? É saudável? É ser perigosa para as crianças porque lhes dá
higiénico? Está protegido? Está adaptado poucas possibilidades de aprenderem a ser
à idade? –, os ambientes limitam a atuação independentes.
tanto das crianças como dos educadores. O Ao longo do tempo, a nossa atitude perante
que temos vindo a constatar é que, apesar as brincadeiras das crianças que implicam a
de os espaços para brincar serem destinados utilização de espaços e materiais pouco es-
às crianças e ao seu desenvolvimento, estas truturados, diferentes do que é tido como
são quem menos decide e intervém no seu “normal” em jardim de infância, tem poten-
processo de organização e estruturação, sen- ciado as práticas educativas e curriculares
sujo da lenha, é perigoso, podem magoar-se!
do os adultos quem toma todas as decisões. e proporcionado aprendizagens mais signi-
Os vossos pais vão zangar-se connosco se
Estando conscientes do excessivo controlo, ficativas. Destacamos nestas experiências
souberem que brincam aí e com essas coi-
organização e estruturação das brincadeiras um conjunto de fatores cruciais para o de-
sas.» Mais outro dia, e lá estavam as mesmas
das crianças, tentamos contrariar esta atitu- senvolvimento da criança: o seu papel ativo
perguntas e as mesmas respostas. Bom, se
de e arriscamos outra postura, oferecendo às e central na organização e estruturação das
resistimos durante algum tempo, a apetên-
crianças liberdade de decisão e controlo sobre brincadeiras; a forte motivação e envolvimen-
cia por explorar esses espaços e materiais
o seu mundo lúdico, de descoberta e cons- to durante o tempo de brincar e as interações
tornou-se incontrolável e também nós acei-
trução, num equilíbrio entre permissividade, que revelam maior qualidade e consistência,
támos o desafio. Observamos hoje que são
proteção e planeamento educativo, criando possibilitando a mobilização de sentimentos,
imensas as possibilidades que estes espaços
oportunidades para novas experiências de conhecimentos e afetos, concretizando-se
e materiais proporcionam, dando razão a
aprendizagem. Assim, temos proporcionado no modo como resolvem os problemas e
Prott (2010: 20), quando afirma que o jogo
às crianças espaços de brincadeira menos es- constroem projetos comuns. O espaço am-
da criança inclui a descoberta de novos terri-
truturados, com uma “vigilância escondida”, plo do recreio e o acesso aos materiais não
tórios. Se assim não for, o correto desenvol-
onde estas podem explorar materiais “sem estruturados (madeiras, portas de armários,
vimento da criança, e particularmente a sua
uso”, reutilizar objetos, construir e reconstruir eletrodomésticos, caixotes de papelão e ca-
aprendizagem a lidar com situações perigo-
cenários diversos, liderar processos, interagir vacas) transformou o quotidiano pedagógi-
sas, ficará comprometida.
de forma mais livre e autónoma, aprender a co/curricular de forma significativa, estando
Assistimos, cada vez mais, à padronização
lidar com os riscos e perigos inerentes ao es- lá a educadora, observando, participando,
das brincadeiras e brinquedos das crianças,
paço e materiais, aprender o que por vezes fruindo o tempo da infância cheio de viva-
à excessiva preocupação com a oferta de
a intencionalidade educativa/pedagógica não cidade, imaginação e criatividade, assumindo
ambientes assépticos, seguros e sem riscos,
consegue abarcar. Temos vindo a compreen- uma vigilância “escondida”.
destinados ao desenvolvimento das crianças,
der que o nível de vigilância deve ser equili- Estes espaços e materiais pouco estrutura-
que, se por um lado, têm protegido a infância
brado com a finalidade educativa de permitir dos, reinventados, abriram novas possibilida-
dos perigos inerentes aos espaços ou ativida-
à criança exercer as suas capacidades em des, potenciaram a construção e reconstru-
des menos normalizadas, por outro, poderão
evolução e o desejo de agir de forma inde- ção de cenários, permitiram o jogo simbólico
estar a condicionar o desenvolvimento de
pendente e responsável. A vigilância constan- e facultaram a rememoração de experiências
competências que lhes permitam lidar fora
te irá lesar o desenvolvimento pessoal (Prott, passadas, transformando-as segundo a sua
destes ambientes. As crianças não vivem
2010: 21). Tornou-se importante equacionar perspetiva e regras do jogo. Um dia, após
numa redoma, os riscos e os perigos existem
a (in)segurança como objeto educativo, pro- um fim de semana em que tinham assistido
onde menos se espera e nos lugares menos
porcionando espaço e tempo pedagógico às a uma demonstração de motos, as crianças
suspeitos, havendo necessidade de prepará-
crianças (e adultos) para aprenderem a lidar interpretaram a sua experiência real e procu-
-las para construir defesas. Saliente-se ainda
com os riscos e os perigos, promovendo a raram reproduzi-la no seu espaço de brinca-

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deira, integrando o mundo real e imaginário, competências de motricidade global na uti- Sem dúvida que estas experiências têm con-
com a construção de uma rampa e de um lização de triciclos e bicicletas; a construção tribuído para que a intencionalidade educativa
circuito/pista para andar com os triciclos. Para de plantas de casas com as madeiras permi- vá ao encontro das motivações e necessida-
além da rampa e da pista, outras brincadeiras tiu desencadear atividades de representação des do grupo de crianças e nos vão exerci-
e cenários de brincar foram surgindo por ini- gráfica, observar e “ler” plantas reais; a oficina tando na “arte de lidar com os riscos e não de
ciativa das crianças: casas, mobiliário e túneis dos trabalhadores levou-nos à integração e os evitar”. Assumir esta postura envolve, claro
construídos com caixotes de papelão; plantas utilização de ferramentas, aos cuidados com está, riscos profissionais ligados ao conceito
de casas desenhadas com cavacas de lenha, a sua manipulação e a um conhecimento mais e representação de segurança que os vários
traçadas num espaço (alpendre) do qual se pormenorizado de que são feitos os objetos agentes educativos que interagem com as
apropriaram e que apelidam de prisão; a ofici- e como funcionam, ao mesmo tempo que crianças transportam. As posturas muitas ve-
na dos trabalhadores que implicou a aquisição desenvolvem competências na manipulação zes “superprotetoras” destes agentes são um
e integração de uma mala com ferramentas e controle dos movimentos finos; a constru- obstáculo a novas abordagens, cabendo-nos
reais, utilizadas para consertar e desconsertar ção de vários objetos com caixas de papelão, a nós, profissionais da educação de infância,
bicicletas e triciclos; e o computador avariado a utilização de materiais de grande dimensão equacionar com eles as mais-valias de outras
que anima sessões de karaoke. (maiores que as crianças), com grande plas- experiências de aprendizagem, integrando as
Estas brincadeiras espontâneas, autónomas e ticidade, possibilitou imaginar, construir e re- vozes das crianças nesta reflexão.
autodirigidas pelas crianças têm-nos facultado construir variadas situações de jogo sensório- Os testemunhos das crianças quando ques-
informação valiosa para o planeamento curri- -motor e dramático. Constatámos que o facto tionadas sobre onde gostavam mais de brin-
cular, que sucintamente expomos: a constru- de a criança ter oportunidade de decidir, agir car no espaço exterior e porquê, mostraram
ção da rampa facilitou a abordagem dos con- e brincar com espontaneidade e autonomia, que «(…) gosto de brincar lá atrás com a lenha,
ceitos de força e movimento (brochura de ci- num ambiente estimulante, de curiosidade, a fazer pista e rampas e as casas, e gosto da
ências da DGIDC-ME) e uma leitura estimulan- explorando, exercitando, resolvendo proble- prisão, tem o cadeado, nós fazemos lá as ca-
te do “Livro Inclinado”; na construção da pista mas, lhe permite um forte envolvimento e sas, não faz mal brincar com aquelas coisas e
foram aplicadas as medidas não padronizadas aprendizagens significativas. eu gosto porque brincamos a sério (…)».
para medir a sua largura, desenvolveram-se Presentemente volta a estar em análise a É porque brincam a sério que continuamos
vantagem da utilização de materiais comuns, com estas brincadeiras e esperamos que ou-
diferentes, naturais, menos estruturados, que tras se inventem!
imprimam novas dinâmicas e possibilidades
aos momentos de brincadeira, potenciando bibliogrAfia
a dimensão funcional destes “brinquedos”
Clarke, J. (2004). Histories of Childhood. In D. Wise (Ed.),
reais que muito contribuem para a formação Childhood Studies: an Introduction (pp. 3-12). Liverpool:
da criança. Estes materiais/objetos não es- Blackwell Publishing.
truturados, utilizados pelas crianças nas suas De Conti, Luciane; Sperb, Tânia Mara (2001) O brin-
brincadeiras, ativam níveis elevados de imagi- quedo de pré-escolares: um espaço de ressignificação
cultural, in http://www.scielo.br/pdf/ptp/v17n1/5406.
nação e criatividade (De Conti e Sperb, 2001; pdf,consultado em 20 de setembro de 2012.
Poletto, 2005), não deixando de ser brinque- Ferreira, Manuela e Sarmento, Manuel Jacinto (2008),
dos, pois brinquedo é qualquer objeto que “Subjetividade e Bem-Estar das Crianças: (In)Visibilidade
a criança usa no ato de brincar. A utilização e Voz”, Revista Eletrônica de Educação, v. 2, n. 2, nov.
2008 60-91.
destes materiais pode implicar riscos; no en- Heywood, Colin. (2004). Uma História da Infância: Da
tanto, procuramos eliminá-los, falamos com Idade Média à Época Contemporânea no Ocidente. Porto
as crianças sobre eles, ensaiamos formas de Alegre: Artmed Editora.
Poletto, Raquel Conte (2005) A ludicidade da criança e sua
manipulá-los, percebemos como os podemos
relação com o contexto familiar, in http://www.scielo.br/
utilizar e os cuidados que devemos ter, mas pdf/pe/v10n1/v10n1a08.pdf, consultado em 20 de setem-
mesmo assim, há sempre situações que não bro de 2012.
podemos antecipar, como nos lembra Prott Prott, Roger (2010), Pedagogia: a arte de lidar com os riscos
e não de os evitar, Infância na Europa, n.º 19, 2010, 20-21.
(2010: 20): ninguém se deve magoar, mas
toda a vida comporta riscos. Porém, estamos
convictos de que os benefícios ultrapassam
os constrangimentos.

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