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ESFERAS

No primeiro volume da trilogia das “Esferas”, de Peter Sloterdijk, o filósofo alemão


explana a sua “teoria do espaço diádico” (uma ontologia que não começa no Um mas no
Dois e face à qual a concepção do indivíduo enquanto substância unitária e isolada é
uma visão falida, que já nem como prótese pode subsistir).
Tudo começa no útero e na ressonância entre dois polos, o interior do vaso amniótico, e
o exterior que se joga no espaço intersubjectivo da mãe e que chega ao feto através do
ouvido. E assim se cria a primeira esfera inicial, o primeiro aparato imunológico.
O bebé cresce dentro de uma câmara de ecos, ouve o que lhe é invisível. Mais tarde,
com o corte do cordão umbilical, e à falta dessa relação de protecção configurada pelo
útero, o invisível será suprido pela imaginação e os “seus” elementos subjectivos
reinventam-no, projectando-o noutra esfera completada pelas figuras do anjo da guarda,
do daimon, a do amigo imaginário, ou a do génio, etc.
Contra Lacan, que deu relevo ao estádio do espelho, Sloterdijk promove o ouvido como
premissa fundadora da auto-percepção e reflecte nas consequências disso nas duas mil e
cem páginas da sua trilogia, absolutamente persuasivas.
E ao fazer o elogio da esfera, como explica Paulo Ghiraldelli, faz-se o elogio do “entre”,
o elogio do poroso, campo “em que nada existe que não seja relacional.”
O que os orientais já haviam dito há muito, mas importa realçar que este novo
paradigma, duma penada, salva-nos do isolamento do cogito e da dualidade, que
clivava o mundo em sujeito e objecto, e devolve-nos por outro lado a dimensão do
sagrado, na medida em que faz-nos perceber que “a retirada de Deus” é distinta de uma
“morte de Deus” (esta apenas traduziria um recalcamento do universo simbólico que
constitui o próprio tecido da nossa propensão esferológica, o que acarreta mais
patologias que benefícios), e em que arruma de vez os pressupostos hierárquicos
restituindo-nos a “epifania” como um não-lugar evasivo a todas as formas de lucro (- e
hoje, neste amorfo e desvitalizado reino do signo saturado pelo cálculo, este é o
verdadeiro escândalo e uma coisa mais difícil de aceitar que o incesto, entretanto
convertido em subplot cinematográfico).
Afinal, o que foi sempre exasperadamente equívoco na relação de Deus? A imagem que
os braços políticos das igrejas quiseram cristalizar, a feição patriarcal e autoritária
atribuída a Deus nas Religiões do Livro - quando o relacionamento com o divino pode
adoptar uma via mais libertadora, ecológica e reguladora, tão somente, a de uma tomada
de consciência do “sentido das proporções”.
Numa intuição extraordinária, Sloterdijk comenta que a metafísica começa como uma
metacerâmica. Deus, na criação, teria usado da mais avançada tecnologia da época, a
do oleiro, a do fazedor de vasos. Esta interpenetração, lembra Ghiraldelli, seria
imprescindível à ressonância entre dois polos que, assim vibrando juntos, criam uma
esfera, um campo de autoimunização. Mas, o recurso à olaria, realça igualmente,
acrescento eu, a dimensão histórica de Deus – e isso muda muito.
Pensemos nesta proposição de Martin Buber – filósofo reivindicado por Sloterdijk :
«Não conheço outra revelação para além da do encontro do divino e do humano, no
que o humano colabora com a mesma medida do divino. O divino aparenta-se a um
fogo que derrete o mineral humano. Mas o que resulta daí não é algo que estivesse na
natureza do fogo.»
Deus seria então o que nos melhora, mas o que Ele É também depende da nossa
contribuição. Ou seja, também podemos degradar Deus.
É aliás disto que, como ateu intermitente, acuso a grande massa dos fiéis – merda para a
grande massa dos fiéis, ignara, que faz tábua rasa do que Kant evidenciou há três
séculos: que se é “tão cómodo ser menor”, só em conseguindo dobrar a preguiça e a
covardia acedemos ao nosso próprio entendimento e sairemos finalmente da condição
infantil; sendo esse o lema do Esclarecimento.
O que Sartre repisará dois séculos depois: a necessidade dos homens serem responsáveis
pelos seus actos, sem álibis ou entidades transcendentes que os alheiem de assumir-se
como a verdadeira mola das suas escolhas. É uma evidência que os homens fazem tanto
mais alarde das supostas consciência e identidade, quanto mais querem enjeitar a
autonomia. Adquirir uma pauta de valores e ser activo na responsabilidade social, devia
ser uma ressonância natural da necessidade de espiritualidade, para quem sinta o apego;
seria esse o passo normal na constituição de uma esfera. Mas primeiro, propunha ele,
devíamos arrumar a casa. Enquanto colocarmos toda a nossa segurança no airbag de
Deus, pela frente e nas costas, não cresceremos o suficiente como pessoas para dedicar
espontaneamente amor e respeito aos demais.
Na Índia, Deus é «uma criança eterna jogando um jogo eterno, num jardim sem fim» e
nós humildemente somos os dados – a liberdade relativa dos dados – na sua mão. E
contudo, desse caprichoso lance de dados depende também a “sorte” de Deus. O que
volta a situar-nos na responsabilidade dos nossos actos.
Assim, procurar em Deus uma ordem, uma harmonia, para o caos do mundo é o mesmo
que confundir uma decalcomania com a pele. A crer em Deus, há que aceitar a
fé “apesar” do caos que se incrusta na rugosidade do real, mas o apelo deve levar-nos à
insatisfação que antecipe a decisão e a autonomia.
Os Budistas não falam em Deus, dizem antes que os rios procuram o mar. De facto
parece mais justo realçar que talvez nos espere o oceano fragoroso que antecede as
calamidades, sendo nosso dever não fugir ao repto.
A esferologia de Sloterdijk ajuda-nos a regular as miras e não por acaso o filósofo
concebe a filosofia como uma “medicina da alma”.

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