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Organização: Por Cristina Pescuma

Lanussi Pasquali e artistas convidados


Lanussi Pasquali é natural de Riozinho/RS. Artista visual, trabalha
com esculturas, instalações e objetos em tecido. Gosta de corte e
costura, bordados e outros afazeres lentos e esquecidos. Mestre em
artes visuais pela UFBA, gosta de dar aulas e de orientar pesquisas
poéticas. Vive e trabalha em Salvador desde 2002.

Cristina Pescuma nasceu em São Paulo/SP. Formada em História


pela Universidade de São Paulo em 1987, lecionou em escolas
públicas e particulares até 2008. Desde 1997 tem freqüentado
cursos e seminários ligados à arte, e vem realizando pesquisas e
estudos neste campo, além de produzir textos de história e teoria
da arte, sobre trabalhos de artistas e para exposições. A partir
de 2006, começou a coordenar grupos de estudos em arte e dar
oficinas e palestras.

Projeto gráfico, ilustrações e capa Manuela Leite


Revisão Elizabeth Souza Sfrizo

Prefixo Editorial: 67099


Número ISBN: 978-85-67099-02-6
Título: Arte Como Jogo
Tipo de Suporte: PAPEL
Apresentação 12

Arte: uma vitória sobre a morte 12

A arte não avança, move-se. Saramago 12

O tempo é uma criança que brinca, 12


movendo as pedras do jogo
para lá e para cá. Heráclito

ÍNDICE
Não conheço outro modo de lidar 12
com grandes tarefas, senão o jogo:
este é, como indício de grandeza,
um processo essencial. Nietzsche

A beleza é questão de experiência 12


e não de formas. Karl Kraus.
você não precisa dele Bibliografia 12

Artista homenageado – Fernando Pião 12

Artistas convidados
Beatriz Nogueira 12
Fábio Magalhães 12
Elias Santos 12
Lucia M. Loeb 12
Este texto deveria fazer uma apresentação deste livro. Mas agora
só consigo agradecer ao meu amigo Pião. Agradecer porque ele
nunca perdeu sua fé na arte, nunca perdeu seu entusiasmo e
porque um dia me disse simplesmente: “você não precisa de
uma apartamento, você precisa de um atelier.”

Sua generosidade e disposição em falar, discutir, pensar, ver


e perguntar sobre arte sempre alimentou minha vontade de
produzir e de continuar produzindo.

Ele e Cristina sempre acolheram e estimularam a vontade de


continuar... de acreditar.... de querer aprender sempre mais.
Este curso, este livro devem muito da sua existência ao Pião que
agora nos observa de outro plano... seja lá o que isto significa!

Agradeço muito a Cristina por ter a coragem de continuar


e de dividir conosco seus estudos e sua vida dedicados ao
pensamento e à arte!

Por tudo isso, dedico este trabalho aos meus queridos amigos:
Cristina e Pião!
amo
só posso amar
os loucos os embriagados
os outsiders os desajustados
os que estão fora de moda
amo só posso amar
os perdidos os drogados
os infames os disparatados
os sem propósito
amo só pode amar
os incuráveis os moribundos os incompreendidos
os suicidas
Não deixe morrer seu trabalho que é tão bonito! Graças a este os sem conjunto
pedido que me comoveu tanto, do meu companheiro-cúmplice amo só posso amar
de vida Fernando Pião, este livro foi escrito, o qual a ele dedico os que se contorcem os vermes os amantes
e também a todo aquele que seja aparelhado para gostar de os desvairados
passarinhos.* os que não tem testa
amo só posso amar
os desordeiros os sonhadores os vagabundos
os marginais
os perdedores
os eremitas
amo só posso amar
os que fazem de si mesmos
uma explosão inaudita
um feixe de incandescência
amo só posso
amar

* Manoel de Barros
Se a vida é algo que vale a pena, é principalmente porque a arte
nos ajuda a não morrer antes de nossa morte, a tornar possíveis
os dias, a escapar do que nos sufoca, desbloqueando o que está
represado, fazendo proliferar em nós tudo que possa ser uma
fuga diante do jugo do intolerável. Ultrapassar o desespero do
mundo. Produzir uma obra de arte ou fazer um encontro com
uma são maneiras muito reais de viver, não um descanso da

ARTE:
dura realidade, uma pausa na vida a qual imaginaríamos existir
fora de nós, onde seríamos apenas um apêndice. Essas atitudes
diante da arte deixam escapar o enigma que uma obra oferece,

UMA
não alcançam o pensamento e as práticas por ela germinados
e inspirados, fazendo se perder a dimensão do belo que ela
forja, aquilo que justamente se torna belo pelas conexões
que são feitas por meio da obra, sempre um processo, uma

VITÓRIA
experimentação de corpo e alma que contamina tudo, abrindo
novas perspectivas, uma promessa de vida, lançando-nos numa
aventura e tornando insatisfatória uma vida que se resume

SOBRE A
às satisfações do organismo. Toda obra quer minar o desejo
de fixação e de estabilidade que nos mantêm reféns, que nos
paralisa e nos entorpece. Numa passagem do livro Mil Platôs,
Deleuze e Guattari afirmam:

MORTE. Mas a arte nunca é um fim, é apenas um instrumento


para traçar as linhas de vida, isto é, todos esses devires
reais, que não se produzem simplesmente na arte,
todas essas fugas ativas, que não consistem em fugir na
arte, em se refugiar na arte, essas desterritorializações
positivas, que não irão se reterritorializar na arte, mas
que irão, sobretudo, arrastá-la consigo para as regiões
do a-significante, do a-subjetivo e do sem-rosto. // Gilles
Deleuze e Félix Guattari

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Por isso, ao pensar a arte, uma pergunta, inesgotável em suas tempos, ainda que alicerçada na experiência cotidiana.
respostas e repetida exaustivamente por todos aqueles que se Sejam eles solidários, hostis, ambíguos ou cristalinos, há
sempre a possibilidade de serem compartilhados. // Beatriz
dedicaram a pensá-la, necessariamente se impõe: o que é a arte Nogueira
afinal? Serve para quê? A cada vez, uma resposta diferente e, no A arte pode ser entendida como um mecanismo/veículo
entanto, suas divergências entram em convergência. Podemos que, através das vias sensoriais, induz deslocamentos/
torções na realidade. // Fábio Magalhães
até fazer uma espécie de coletânea dessas frases. O poeta Paulo A arte eleva, leva e é levada. // Lúcia M. Loeb
Leminski fez um poema-lista desse tipo, referente à poesia: Uma promessa de felicidade. // Sthendal
É na arte que o homem se ultrapassa definitivamente.
“words set to music” (Dante via Pound), “uma viagem // Simone de Beauvoir
ao desconhecido” (Maiakóvski), “cernes e medulas” (Ezra Ninguém alguma vez escreveu ou pintou, esculpiu,
Pound), “a fala do infalável” (Goethe), “linguagem voltada
modelou, construiu ou inventou senão para sair do inferno.
para a sua própria materialidade” (Jakobson), “permanente // Antonin Artaud
hesitação entre som e sentido” (Paul Valery), “fundação do A arte é a mais bela das mentiras. // Claude Debussy
ser mediante a palavra” (Heidegger), “a religião original da O importante na obra de arte é o espanto. // Charles
humanidade” (Novalis), “as melhores palavras na melhor Baudelaire
ordem” (Coleridge), “emoção relembrada na tranquilidade” Não existe verdade universal na arte. Na arte, a verdade é
(Wordsworth), “ciência e paixão” (Alfred de Vigny), “se faz
aquilo cujo contrário é igualmente verdadeiro. // Oscar Wilde
com palavras, não com ideias” (Mallarmé), “música se faz Na arte só uma coisa importa: aquilo que não se pode
com ideias” (Ricardo Reis/Fernando Pessoa), “um fingimento explicar. // Georges Braque
deveras” (Fernando Pessoa), “criticism of life” (Mathew Arnold), Em toda verdadeira obra de arte há o lugar onde, para
“palavra-coisa” (Sartre), “linguagem em estado de pureza aquele que ali se instala, sopra um vento fresco como de
selvagem” (Octavio Paz), “poetry is to inspire” (Bob Dylan), uma aurora vindoura. // Walter Benjamim
“design de linguagem” (Décio Pignatari), “lo imposible hecho A arte oferece-nos a única possibilidade de realizar o
posible” (Garcia Lorca), “aquilo que se perde na tradução mais legítimo desejo da vida - que é não ser apagada de todo
(Robert Frost), ”a liberdade da minha linguagem” // Paulo pela morte. // Eça de Queirós
Leminski
A arte não reproduz o que vemos. Ela faz ver. // Paul Klee
São muitas as listas possíveis. Eis uma outra: A arte não é um espelho para refletir o mundo, mas um
martelo para forjá-lo. // Vladimir Maiakovski
É uma maneira de passar pelo caos, mantendo a lucidez. Por que é bela a arte? Porque é inútil. Por que é feia
//Fernando Pião a vida? Porque é toda fins e propósitos e intenções.
Tudo aquilo que a Arte propõe visa intensificar a vida, // Fernando Pessoa
nos convidando a experimentar novas maneiras de pensar Só a arte é útil. Crenças, exércitos, impérios, atitudes
e de sentir sem as quais cairíamos no mais profundo torpor, - tudo isso passa. Só a arte fica, por isso só a arte se vê,
encurralados em um cotidiano vazio e sem sentido. A Arte é porque dura. // Fernando Pessoa
o que nos salva desse horror. // Elias Santos A obra de arte em si é também um objeto vibrante,
Fazer e pensar arte me levam a circular por outros espaços/ mágico, e exemplar que nos devolve ao mundo de alguma

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maneira mais abertos e enriquecidos. // Susan Sontag sobre a natureza artística ou industrial que eles teriam, e
Arte é aquilo em que o mundo se transformará, não muito custou a se firmarem como expressões verdadeiramente
aquilo que o mundo é. // Karl Kraus
A arte mantém vivo o poder de sentir o mundo comum artísticas. Isto abriu uma brecha significativa para que práticas
em sua plenitude. // John Dewey e conceitos fossem reconsiderados. Assim, na passagem para
Não há, para mim, passado ou futuro na arte. Se uma o século XX, as modificações foram se multiplicando e antes
obra de arte não estiver sempre no presente, então não pode
ser considerada arte. // Pablo Picasso que se esgotassem, essas experimentações já começaram a
extrapolar a si mesmas, fazendo com que se abrisse a caixa
Ao considerarmos o período do Renascimento, por exemplo, de pandora e, assim, tudo transbordou, transladou de um
ou os séculos seguintes, quando se falava de arte, quando se modo tão intenso e plural que chega a nos constranger e
produzia arte, não havia equívocos, o artista estava pintando ou confundir. Já não é mais simplesmente uma modificação nos
esculpindo ou compondo ou escrevendo ou fazendo projetos modos de pintar/esculpir/escrever/compor/dançar/atuar, mas a
de arquitetura. Ninguém tinha dúvidas em apontar uma obra coisa mesma já é outra, o objeto de arte e o fazer do artista, a
de arte, sem levar em consideração quem exatamente era o especificidade do meio aclamada no chamado alto modernismo...
público nessas épocas. E continuou assim, mesmo quando nos tudo isso desandou. E entramos no século XXI num estado
séculos XVII e XVIII o estatuto da arte se modificou, fazendo misto de descrença e de euforia. Tudo é válido? Em meio a
com que ela se tornasse algo separado do mundo, no sentido uma multidão de artistas que surge todos os anos, ficamos
em que ela cada vez mais passa a ser entendida como expressão confusos, como se precisássemos criar sempre critérios para
de um artista, mais do que parte de manifestações religiosas e avaliar o que seria a arte verdadeira entre tantas falsidades
civis. O surgimento dos museus é um indício disso, juntamente e mediocridades. E o que confere a atribuição do predicado
com a mudança no modo de produção dos artistas, que foram verdadeiro a alguma coisa? Baseado em quê? Quais valores? Se
deixando de se organizar em ateliês do tipo corporações de então pudéssemos falar de critérios, quais seriam? O sucesso
ofício medievais, com seus mestres e aprendizes, para entrarem que tal artista ou obra conquistou junto a um público amplo? O
nas academias e liceus, tornando-se profissionais liberais. sucesso financeiro junto ao mercado da arte, nos leilões, feiras,
Ainda, mesmo no século XIX, quando a arte começou a viver bolsas de valores? Espaço em instituições, museus, galerias?
grandes reviravoltas na maneira de produzir uma imagem, um Ter a obra analisada por críticos de renome e publicada em um
texto, uma música, no que era concebido como imagem, como ou vários dos meios especializados que falam sobre arte e que
literatura e como música, uma obra não deixava dúvidas de que também tanto proliferam? Ou simplesmente é uma questão
era uma obra arte. A fotografia e o cinema, meios inventados de experiência estética, de impasse, que uma obra possa vir
no século XIX, deram início a um extenso e acirrado debate a produzir em nossas convicções um efeito qualquer em nós,

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que possa fazer com que nos desviemos de nossa rota certa que possibilidades, adotando diferentes táticas rizomáticas de
até então parecia inquestionável? Então, afinal o que é arte e, produção, inventando novas maneiras de criar por blocos,
mais especificamente, o que é arte contemporânea? fazendo conexão de elementos heterogêneos, desmontagens de
Talvez a questão seja imprópria, talvez se possa dizer que morfemas e sintaxe na poesia e da narrativa linear na literatura,
a própria questão é equivocada. Que tal experimentarmos um incorporando o ruído e outras sonoridades como matéria-
modo de pensar que não seja por definições cuja única coisa prima na música, por exemplo. Problematiza tudo, locais e
que faz é estabelecer categorias, enquadrar tudo em gêneros, maneiras de expor, materiais utilizados, corrompendo o valor
esquartejar o movimento? A arte, vista como categoria, é uma de uso de um objeto, subtraindo-lhe a função útil para lhe dar
coisa abstrata, e não é possível falar em arte contemporânea um valor de experiência, fazê-lo funcionar de outra maneira,
dessa maneira, sem reduzir incontáveis experiências, uma dentro de outras conexões, formando novas composições, o
vasta gama de objetos, ideias e práticas tão diferentes entre ready-made. Ou como quando se encontra um DESOBJETO,
si numa abstração, numa generalização. Tudo muda, se como Manoel de Barros. Com esse gesto de apropriação, o
considerarmos que estamos diante de uma ecologia plural e artista coloca a arte entre a aura e a reprodutibilidade técnica.
mutante, onde convivem inúmeras tendências que se lançaram Considerando que não haja modelo, não pode haver cisão entre
em tão fascinantes aventuras por regiões tão distantes entre original e cópias, portanto somente os simulacros existem,
si, o que torna impossível fazer uma síntese. No mais, aqui sendo estes por excelência a matéria e a própria obra. Sua
nem há intenção de fazer sínteses porque, assim, perder-se-iam poética envolve uma série de operações que podem se valer de
os paradoxos, nivelar-se-ia toda diferença numa massa amorfa vários meios, pondo a arte num movimento dialógico entre
e pasteurizada, destituída de força. É importante manter os artista, matéria, espaço e público, proporcionando uma maior
paradoxos, as contradições, as diferenças, somente assim abertura ao acaso ao considerar a surpresa, a indeterminação
podemos alcançar e sentir a singularidade de uma coisa. Então, e o risco como ingredientes, e mesmo, muitas vezes a obra
pensar a mudança, não como gradual e progressiva, ainda que vai acontecendo ao longo da apresentação ou exposição de
não deixe de ser um crescimento orgânico no interior de novas maneira imprevista, incorporando o acaso e frequentemente
condições, mas principalmente como ruptura que é. Uma o erro. Portanto, há uma ênfase no processo criativo, como a
dobra, um salto. Para isso é necessário pensar em termos de invenção de programas e procedimentos. Às vezes, a obra é o
intensidades, experimentar intensidades, senti-las atravessar próprio procedimento ou a ideia, o conceito do procedimento,
o corpo e a alma, modificando-os e estimulando a própria operando por E/NEM, por cut up e pick up, que manipulam,
produção. Processo de se tornar causa ativa de si mesmo. jogam com elementos móveis e intercambiáveis que vão
O fazer artístico contemporâneo expandiu seu campo de produzindo ou encontrando ao longo do processo. A arte,

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então, adotou a prática de um jogo puro de recombinações o delimitar fronteiras, mas traçar tendências, apontar linhas às
qual, pode-se dizer, tornou-se o paradigma de uma série de quais são breves, pois estão sempre se dissolvendo, mudando de
experimentações na arte contemporânea. direção, produzindo rupturas e entrelaçamentos imprevisíveis,
A crítica mantém-se cindida entre os entusiastas dessas nos conduzindo a regiões novas. A questão não é fazer
linhas que se embaraçam nos mais variados tipos de trabalhos, analogias nem traçar similaridades, mas realçar a diferença. O
e os que negam absolutamente qualquer valor à grande parte pensamento da diferença é composto de encontros da filosofia
das tendências artísticas que se iniciou no século XX, com a arte e a ciência, onde um território arrasta o outro numa
desvalorizando os movimentos de vanguarda e o que chama disjunção lúdica, entrando no domínio do jogo, da festa,
de pretensos movimentos de transgressão, alegando que a arte e também do embate e da resistência. A efetuação de uma
contemporânea é uma arte institucionalizada, arte inócua feita potência nunca é um processo pacífico, pois não se trata de
por artistas que já foram engolidos pelo sistema. Diante dessas adaptações ou justaposições, mas de produzir uma diferença
ideias, temos de deixar claro quais são nossas influências, as de natureza. Esta é a diferença que se pretende explorar
linhas que estamos seguindo, com quais bocados estamos neste livro. E escrever um livro é colocar-se numa espécie de
montando nossa colcha de retalhos. Diferentemente do suspensão, onde coisas e ideias põem-se a flutuar ao seu redor.
conceito kantiano da arte como o belo que agrada sem interesse, Pode-se apanhar qualquer coisa, para atá-las a outras de algum
uma contemplação do belo de maneira desinteressada, a arte outro lugar, fazendo, às vezes, com muita sorte, surgirem desses
está sendo pensada com Nietzsche, para quem a experiência vínculos uma ou outra paisagem inédita. Vai-se construindo aos
da arte tem relação com vivências fortes e singularíssimas, de bocados, aos saltos e retrocessos, com idas e vindas, em zigue-zague,
desejos, surpresas, deleites no âmbito do belo! Se a arte não puder com repetições e variações, ideias que vão brotando pelo meio
produzir esse estremecimento, então estamos condenados às e não se tem como saber de antemão se vão impulsionar ou
banalidades. Portanto, há sempre um interesse e uma potente corroer tudo. Não há diferença entre aquilo de que um livro fala
vontade envolvidos na sua produção e na sua contemplação, e a maneira como é feito. // Deleuze. Há momentos em que as
mesmo que seja a de se livrar de uma tortura, como Nietzsche intensidades fluem e de repente, paradas bruscas interrompem
mostra ser o caso Schopenhauer. Impossível qualquer explicação: os fluxos, e então é preciso ficar construindo pontes sobre
ou a gente aceita à primeira vista, ou não aceitará nunca: a poesia buracos que sempre vão se abrindo e vencer o desespero de
é o mistério evidente. Ela é óbvia, mas não é chata como um uma sensação de impotência, a sensação de que não se vai
axioma. E, embora evidente, traz sempre um imprevisível, uma conseguir terminar; de certa forma nunca se termina. Vai-se
surpresa, um descobrimento // Mário Quintana. descobrindo mundos, tanto terríveis quanto maravilhosos;
Há um pensamento da arte que não pretende explicá-la ou é um processo de aprendizagem, ao mesmo tempo que de

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criação. Acontecimento. E por que a leitura seria um processo
diferente deste? Vai-se seguindo por caminhos inóspitos, porém
instigantes, em todo caso, por onde já outros passaram com
outras problemáticas ou até as mesmas. E é por isso que num
livro há sempre intercalados, discretos burburinhos e gritarias
espalhafatosas. Afinidades e discrepâncias. Fala-se a partir de uma
vizinhança próxima e longínqua, atual e imemorial. E o que vem?
É o que temos de experimentar, senão não é nada. Cada vez
que experimentamos uma obra que nos afeta, sentimos crescer
uma força errática, dançante, que nos maravilha, plena de

A ARTE
alegria e de resistência: a arte é sim uma atividade diferenciada
do resto da cultura, que ultrapassa o senso comum. Uma vitória
sobre a morte.

NÃO AVANÇA,
MOVE-SE.
JOSÉ SARAMAGO

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A arte, a cada vez, faz emergir uma diferença, por isto constitui guiadas por um estruturalismo dialético, trabalha sempre com
um equívoco pensá-la como um movimento contínuo e oposições binárias, como masculino-feminino, adulto-criança,
progressivo, do tipo hegeliano ou marxista, que fala na rico-pobre, nos fazendo pensar em termos de diferença relativa
existência de um caminho pré-estabelecido por leis universais o a partir dos termos, como masculino ou como feminino,
qual leva a um patamar superior em relação a épocas anteriores, num regime dicotômico, sublinhando uma antinomia ou
perseguindo um objetivo a ser realizado, um fim teleológico a contradição excludente: ou isto ou aquilo. Quando a intenção
ser atingido, ou ao contrário, à maneira platônica, como alguns é fazer definições e classificações, recorre-se a tabelas de
sugerem, quando pensam a arte contemporânea como reflexo taxionomia e de filogenia, que reduzem toda diferença, toda a
da decadência da sociedade, como se anteriormente tivéssemos imensa variedade de seres existentes a apenas cinco reinos, por
vivido anos dourados, e agora só nos restasse a degradação. É exemplo, que por sua vez são subdivididos em classe, ordem,
necessário tirar o pensamento sobre a arte do domínio excessivo gênero e espécie. De fato, não se pode esperar outra coisa,
da história, pois ela é uma linha transversal que atravessa a afinal as questões desse pensamento são as generalizações,
história, podendo surgir e ressurgir em qualquer momento, projetar filiações, linhas de evolução das espécies, buscando
não parando de se refazer, de retornar, como podemos ver um assim o que há de comum, o que é semelhante em detrimento
neobarroco que reapareceu com muitos artistas no século XX. do que é diferente, o que é constante e não o que é variável.
Para mim não há passado ou futuro em arte. Se uma obra de arte Só pode ter uma ideia do que seja o indivíduo, como espécie,
não pode estar sempre no presente, então não pode ser considerada como conceito universal. Desejo de estabelecer e se submeter a
como tal. A arte dos gregos, dos egípcios, dos grandes pintores limites. E tem suas funções muito claras e úteis na ciência, não
que viveram em outros tempos, não é uma arte do passado; talvez há dúvida. Contudo, se o propósito é entender um indivíduo,
esteja mais viva hoje do que nunca.// Picasso. Claro que não se que é sempre uma composição singular, plano de embate de
desconsidera que existam movimentos de linha contínua, de forças, há de se mudar os operadores, criar novos conceitos, e
filiações e de gradações, mas não é o essencial, mesmo porque mesmo refazer a própria noção do que seja um conceito, que
não podem nos dar a dimensão da diferença de natureza. Em permita traçar um mapa das potencialidades, dos afetos, das
Hegel, por exemplo, a diferença se dá por um movimento conexões a que esse indivíduo está envolvido, que compõem
negativo, atingida somente por meio da contradição: aquilo que se pretende compreender. Pensamento como prática
primeiramente o Ser precisa negar tudo aquilo que ele não é, e de traçar zoneamentos e redes. Portanto, é possível fazer uma
assim afirmar sua diferença, o que configura um pensamento outra abordagem, esta das relações, da diferença, das conexões
reativo, composto de forças reativas, como veremos adiante. maquínicas. Máquina Rauschenberg-Cunningham-Cage.
Então, o dualismo, que predomina em muitas disciplinas Acontecimento. Pensar o acontecimento implica em considerar

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o paradoxo, admitindo a coexistência de movimentos opostos para entender a arte como diferença.
que ocorrem de maneira simultânea, e voltar-se para as A arte, como tudo o mais, tem uma parte física e uma
relações que se dão entre os termos, formando emaranhados metafísica. Ela faz parte de um devir histórico, não pode ser
complexos, zonas de indiscernibilidade entre coisas distintas, pensada abstratamente, ela está inserida numa realidade
composições que criam uma diferença singular. Agenciamento. concreta, numa conexão maquínica, dá-se no cruzamento de
Então a diferença não se dá em referência ao seu contrário modos de viver e de pensar, numa rede de relações políticas,
(antinomias) ou a algo anterior ou posterior em relação a econômicas, sociais e culturais. Entretanto, há algo que escapa
uma cadeia de eventos. Mas, uma diferença se desdobra em desse plano de espaço-tempo, há uma outra realidade a ser
si mesma. Diferença de natureza, o que não implica num considerada. Embora não tenha relação com a ideia de uma
pensamento essencialista, como veremos adiante. Tudo o que essência eterna platônica, nem com a forma racional aristotélica
existe, só existe numa rede de relações, um corpo em si já é uma ou com a forma a priori kantiana, é de natureza metafísica
rede e é inseparável de todos os encontros que faz. Portanto, há (algo que não é nem físico, nem mental), é uma realidade
um deslocamento dos termos para um ENTRE-DOIS, para as virtual Máquina Abstrata. No entanto, não é questão de
relações. A diferença está sempre sendo reinventada, alterando- simplesmente fazer uma oposição entre duas naturezas
se de uma forma ou de outra: dentro de suas próprias linhas, distintas, a concreta e a abstrata, multiplicidades molares e
como a mudança de estilo entre uma obra do Renascimento e multiplicidades moleculares, pois há sempre uma mistura das
uma do Barroco (reforçando com Wölfflin, que o Barroco não duas linhas, dos dois modos, corpo orgânico e corpo intenso,
pode ser entendido em relação ao Renascimento, como uma porque o que pertence de todo modo ao inconsciente é o
decadência deste, assim muito críticos antes dele afirmavam, agenciamento dos dois, a maneira pela qual as primeiras
pois o Barroco tem seus próprios critérios, sua própria vontade, condicionam as segundas e pela qual as segundas preparam as
é uma diferença); ou radicalmente, como a arte contemporânea, primeiras, ou delas escapam, ou a elas voltam: a libido tudo
que modificou o próprio conceito de arte e de obra de arte. engloba. // Deleuze e Guattari. Uma brevíssima genealogia da
Daí decorre que a forma deixa de ser entendida como causa palavra arte pode nos dar uma ideia das diferentes acepções da
motriz preponderante, que é a base dos conceitos universais, noção e da prática artística, como ela é objetivada, atualizada
o homem por exemplo, passando a ser um efeito temporário de maneiras diversas por diferentes campos sociais. Devir
das relações entre os elementos que compõem o mundo, histórico. A palavra arte comumente esteve ligada ao campo da
estando sempre prestes a se desvanecer. Enfim, seja o que produção humana em geral, que inclui tanto as atividades
for, a forma é fugaz, transitória e não pode explicar nada, artesanais como industriais e também artísticas no sentido que
porque é efeito. E é por isso que o conceito forma não serve damos hoje a esta palavra, ou seja, arte era o conhecimento, a

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técnica, a potência do homem de fabricar e de construir coisas artista no caso da pintura. É a conexão com as academias que
destinadas ao uso social coletivo, seja a produção de vai constituir esse novo devir, da arte, também do que virá a ser
instrumentos e objetos, de templos e catedrais ou de imagens e a arte pela arte, ou seja, uma experiência primária cujo único
estátuas. As letras têm um outro percurso; na Grécia e Roma fim é seu próprio fazer. Assim, a arte passa a ser experimentada
antigas, estavam associadas ao estatuto de homem livre que como força única, falando bem, grosso modo, fruto ora de um
não trabalha com as mãos, e sim faz uso da razão, portanto faz artista inspirado, de uma impetuosidade romântica vigorosa,
parte das atividades de um homem considerado superior nesse monstros de Goya, ora de um artista crítico, de uma clareza e
meio social pois se dedica à vida pública (negócio), sobriedade neoclássicas, liberalismo de Voltaire. Nesse mesmo
distinguindo-se por sua virtude (comedimento) e cultura, sua movimento surge a Estética, como disciplina filosófica
formação literária e valorizado pelo domínio que tem da iluminista, destinada a produzir um saber sobre esta nova
palavra. ainda que a retórica seja tida como a arte de bem dizer, prática, a arte como belas artes (discursos do saber). Desta
ou seja, emprega-se a mesma palavra arte para algo que não forma, fica claro que a perspectiva histórica nos transporta à
implica trabalho manual, e de certa forma, essa noção também cultura de um lugar e de uma época, com seus modos de viver
engloba o teatro e a música. Foi apenas no século XVIII que a e de pensar, seus hábitos, valores e crenças, sua ideia de verdade
arte foi apreendida como belas artes, quer dizer, este termo e de realidade expressa pelos discursos que constituem os
tornou-se uma forma de distinguir aquilo que, então, perdeu a saberes, e às relações sociais, políticas e econômicas que aí
função utilitária, passando a se diferenciar de outras atividades vigoram. E o diagrama como plano dividido por uma linha que
humanas produtivas para se tornar apenas fonte de beleza e de traça um exterior e um interior composto por zonas estratégicas.
fruição cujo lugar por excelência é o Museu, instituição A cada vez são constituídos diferentes campos sociais, frutos
inventada no mesmo período, lembrando que o termo belo, tal dessas relações diferenciais entre as forças informes e móveis,
como o de arte, tem diferentes acepções de sentido em pontos singulares, potências que atravessam o plano cuja
diferentes campos sociais. Assim, é no decorrer desse mesmo função pura (não formalizada) é afetar e cuja matéria pura
século que as práticas artísticas vão se libertar do contexto das (não formada) é ser afetada por outras forças, constante
atividades funcionais, e as academias (dispositivos de poder) agitação entre pontos singulares que se constituem em relações
passam a assumir a direção da formação de artistas num âmbito estratégicas de poder, daí sua instabilidade, sempre em devir. O
universitário. A arte num novo agenciamento: arte-atividade poder como algo descentralizado, porque é um jogo local e
liberal, separando-a do meio artesanal, o que não impede que instável de forças e é essencialmente produtivo, como Marx já
suas práticas tenham mantido forte relação com o trabalho afirmava, sendo repressivo secundariamente, é atualizado em
manual (hand-made) e mesmo com a valorização da mão do dispositivos de poder, as instituições, o visível, efeitos das

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relações entre as forças, agentes de estratificação estabilizam apreendida logicamente pela razão que lhe confere um conceito,
um estado destas relações que, então, assumem formas o universal (homem). Há toda uma dinâmica temporal e
estratificadas, integrando as singularidades, alinhando-as em topológica das superfícies, não somos apenas fruto de um
séries. O saber, constituindo o arquivo com suas duas formas, molde que determina cada indivíduo de modo unívoco, a não
o dizível e o visível, se dá no plano estratificado das formas ser quando estamos submetidos ao molde dos saberes
formalizadas e da matéria formada, dos discursos, com suas estratificados com suas funções formalizadoras, quando nos
disciplinas teóricas, técnicas de saber. Formam um composto declinamos aos poderes instituídos de nosso tempo. O conceito
poder-saber que são inseparáveis, matrizes de transformação, como universal, no entanto, não tem o intuito de pensar as
há uma recíproca suposição, surgem juntos, um determinando singularidades, seus movimentos, metamorfoses, não é sua
o outro num intercruzamento. Não são produtos de um sujeito questão, não acredita que isto seja possível e nem mesmo
da enunciação e sim o inverso. O que pode ser visto e dito desejável do ponto de vista político. Mas, quando pensamos
depende das condições enunciativas de cada momento em termos do diagrama de forças, podemos perceber como
histórico, cada época possui seu Arquivo Audiovisual Molar. A uma figura não se fixa por muito tempo; à medida que algo
contemporaneidade é de uma claridade desconcertante e de toma uma forma aparente, já começa a se desvanecer, a mudar
um falatório interminável, por entre os quais estão passando de configuração, de lugar, incorporando elementos que estavam
singularidades que ainda não podem ser vistas nem ouvidas, fora desse mapa, e excluindo outras coisas que passam a
sempre em disjunção. Assim, convém perguntar o que cabe à não mais fazer parte, daí mudarem a maneira como algo é
arte sob tal estrato, que relações de poder ela integra, como se apreendido e objetivado: de arte como técnica para arte como
relaciona com outras instituições, e em quais linhas divergentes linguagem. É possível sentir o movimento no diagrama que
ela entra, para onde nos leva como linha de fuga. Daí haver ultrapassa qualquer possibilidade estrutural, movimento não
uma modulação contínua e variável ao longo do tempo, porque de um ponto a outro, mas de potencial, entre níveis de
o que é contínuo é a mudança e não a eternidade de uma diferentes diagramas, por isso não é possível fazer uma história
essência, é um entre pontos, o que é considerado aqui é a linha, propriamente dita, de repente não se percebe nem se enuncia
a trajetória, a duração cuja matéria tem uma força intrínseca, é mais da mesma maneira, não se trata de transformações
causa ativa, contrariamente à concepção hilemórfica e responsáveis por modificar formas, como se saíssemos da forma
substancialista, que supõe uma essência como um molde fixo, de uma sociedade disciplinar para uma de controle num
onde se dá um movimento provisório cuja finalidade é atingir encadeamento contínuo, ainda que passem de uma a outra, mas
uma forma, partindo-se de um ponto para chegar a outro, onde não há algo que seja uma essência da loucura, com um conteúdo
a matéria é submetida passivamente a uma forma transcendente, e uma forma única abordada de maneiras diferentes em épocas

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diversas, ela é decorrente do campo social, é objetivada num acuados diante do poder econômico que o sistema das
diagrama, ela acontece nas relações, nos encontros, na imbricação artes exerce sobre eles. Neste caso, a arte é um atributo de
das forças, no reencadeamento entre descontinuidades, distinção e poder na sociedade. O capitalismo submete tudo
substantivada numa instituição e formalizada num saber. a seus axiomas. A produção da arte também é capturada pela
A obra de arte em sua variação estética e conceitual, com suas publicidade que lhe rouba soluções estéticas, absorvidas pelos
operações táticas se inscreve nesse campo, nas relações que se meios de comunicação de massa, criando uma cristalização e
dão nele, ao mesmo tempo em que as modifica, instigando novas embotamento dos sentidos com a vulgarização produzida pelo
sensibilidades e práticas, linhas de ação. Daí a necessidade de se uso recorrente das mesmas imagens, falas, músicas, extirpando-
pensar em termos de uma Microfísica que nos permite entender lhes sua potência de metamorfose, de resistência, fazendo delas
as relações entre as forças, e uma Arqueologia que nos possibilita meios de produzir desejo de consumo, associando-as à venda
entender como algo é objetivado numa determinada cultura. de um produto qualquer, a um status - aqui tem um caráter
Muitas das imagens fotográficas produzidas por Andreas Gursky, simbólico, mas como peça da máquina capitalista, em que a
como um caleidoscópio, nos proporcionam uma visualização arte também fica reduzida a entretenimento para proporcionar
das relações de poder, da composição dos estados de coisas, a prazeres orgânicos, terrível trivialização de tudo, por essa
dinâmica molecular do diagrama, o estratificado (o invisível), máquina totalitária de consumo: um filme se torna acessório de
expressos numa imagem fervilhante, sabemos que tudo muda um jantar; a imagem, fotografia ou pintura, peça de decoração;
em seguida, está sempre em movimento. Chicago, Board of trade II. a música, num amorfo som ambiente - a não ser que este seja
As instituições e seus discursos, no caso da arte, a galeria, o composição de um Brian Eno.
museu, o marchand, os júris, críticos, historiadores, enfim os Na contemporaneidade, temos uma cultura da produção e
especialistas com seus textos em revistas especializadas, livros, da destruição em massa, tudo se dá em gigantescas proporções,
folders, e o que seja, conferem-lhe este ou aquele significado vide os trabalhos do fotógrafo Edward Burtinsky, que mostra
convertido em status e dinheiro, consagrando alguns trabalhos terríveis devastações mundo afora produzidas por práticas
e artistas e jogando outros no ostracismo e no esquecimento. altamente predatória. Vivemos num campo social marcado
Ou seja, a arte tem, por um lado, todo um modus operandi por uma economia de mercado em que as relações se dão pela
que a constitui dentro dessa rede diagramática, produzindo sobrecodificação da vida por valores monetários e simbólicos,
obras, paralelamente ao trabalho de uma crítica produtora em que as coisas são experimentadas, pensadas, medidas
de discursos, teorias que lhe abarquem os movimentos, sem como mercadorias e como aparência. Era do vazio. Com quais
deixar de constituí-la ao mesmo tempo com sua autoridade, forças os artistas estão se conectando? Que artistas? Deleuze
com o poder que exerce sobre alguns artistas, que se veem chama a atenção para o fato de que a organização do tipo

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empresarial está substituindo o sistema de fábrica em todos Controle bioquímico sob uma nova forma de sujeição dos
os setores da vida social, hospitalar, escolar, doméstico… No corpos, enchendo-os de afetos tristes.
sistema de fábrica, tal como Marx o analisou, os trabalhadores Não resta dúvida de que o Capitalismo é atualmente, no
formavam uma massa compacta num meio fechado, sob um diagrama que está em funcionamento, o inimigo a ser combatido,
rígido sistema hierarquizado e disciplinar, com prêmios que com tudo que ele implica. Daí a importância em entender suas
instigavam a desunião. Neste atual regime empresarial de modificações recentes, afinal, ele faz parte do diagrama, move-
organização, a competição entre trabalhadores é extremamente se nele e com ele. Houve uma mudança de natureza tanto em
acirrada, havendo uma rivalidade constante entre os seus dispositivos quanto em seus discursos. No século XIX,
indivíduos, estimulada por uma variação salarial conquistada no cruzamento da física com a sociologia e a economia, foi
por mérito, por desafios constantes, expressos muito bem por elaborado um conceito de trabalho, já considerando um
jogos competitivos, comuns em programas de auditório, para sobretrabalho absorvido, como uma quantidade abstrata
ascender à gerência; não há mais exatamente o dono, somente homogênea, uma força exercida por um homem durante um
acionistas e gerentes, e as atividades artísticas estão se deixando determinado tempo, medida por um valor monetário médio
seduzir por esses estímulos, submetidas a um controle e constante, para que pudesse ser calculado o custo de uma
continuo, entregues nas mãos da empresa. Não é à toa que ela obra pública e da produção fabril com vistas a uma mais-valia,
está à frente de tantos projetos artísticos, principalmente as sendo em seguida aplicado a todas as atividades humanas.
instituições bancárias. Com que intuito? Fruto desse processo Diferentemente, a arte, quando numa linha de fuga, mantém-
de privatização, que aliás é inseparável dessa mudança no se como ação livre independente numa variação contínua
diagrama? O poder estatal desencumbindo-se, aos poucos, singularizante que não pode ser medida como valor abstrato,
da prerrogativa de gerir a vida, transferindo-a para a poder é potência maquínica de uma produção cuja finalidade é uma
empresarial? Parece que sim. Portanto, não há dúvida de que a afirmação da própria atividade, não submetida a nada que lhe
arte faz parte dessa Máquina Capitalista e tem de ser pensada seja exterior. Os agentes do Capitalismo aprenderam muito
também no funcionamento de uma lógica do mercado como com maio de 68, com as reivindicações dos que foram protestar
qualquer outra coisa desta cultura especulativa, de produção nas ruas contra as hierarquias, as autoridades e as estruturas
em massa e de circulação global de dinheiro, de tecnologia, de rígidas. Hoje, ao lado dessas divisões rígidas, passam fluxos
bens em geral, de humanos e de órgãos humanos, de armas, desterritorializados de produção, em que as transnacionais
de drogas, de ideias, de morte. E talvez nunca uma conexão colocaram tudo em circulação acelerada, produção e comércio,
tenha se tornado tão poderosa e mortífera como a da indústria no mundo inteiro, ultrapassando fronteiras dos Estados. Todo
alimentícia e da farmacêutica, pior para nós, pior para vida. um processo de reorganização se deu nestas últimas décadas,

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caminhando para uma maior fluidez e que resultou num novo invadem o mercado, numa tremenda produção de afetos tristes,
tipo de domínio, mais intenso e extenso, ultrapassando os do ponto de vista de uma vida forte, pelo marketing, aliados a
muros das fábricas e dos escritórios. Já não são mais necessários uma prática vil, chamada obsolescência programada, em que os
os meios de confinamento que se abriram em meios móveis, produtos saem de fábrica com uma espécie de bomba relógio
e toda uma tecnologia eletrônica faz conexão com isso, que reduz a durabilidade dos produtos, maneira encontrada
possibilitando um controle ao ar livre. para ampliar o mercado, já que se havia esgotado todos os outros
Falsa ideia de liberdade de ação. As tecnologias da informação meios de expansão. Como diz Milton Santos, o consumismo é o
formam as redes de comunicação e circulação responsáveis maior dos fanatismos, tornamo-nos reféns dele, atolados numa
pela crescente diversificação da economia, principalmente subjetividade submetida aos fluxos de consumo, empenhando
de serviços e aumento do consumo, por meio do marketing, todo nosso tempo numa ânsia de fazer dinheiro. Regime de
que muito se utiliza desses meios de comunicação. Assim, a controle permanente dos fluxos. Nas últimas décadas vimos
informática é uma das peças essenciais dessa nova máquina a ascensão de instituições supranacionais e de conglomerados
capitalista, com seu modelo de gestão em rede, com uma internacionais privados que estão imprimindo um novo tipo de
organização horizontal dos trabalhadores divididos em equipes soberania comunicacional e monetária sobre as sociedades, com
de trabalhos, estas envolvidas em projetos transversais com um imenso arsenal bélico de poder avassalador de destruição
remuneração e tempo de trabalho flexíveis, tendo como base em massa global, sob um discurso democrático que (aliás
uma formação continuada, a necessidade de aprender novas Robert Kurtz já havia mostrado como característica essencial
competências, ampliar sua rede de contatos, pois dela depende desta máquina a conexão democracia-capitalismo, chamada
a participação em novos projetos de trabalho num clima de de Império por Hardt e Negri) não é ideológico, com seus
interação e cooperação. Uma nova servidão se configura que falsos discursos, é o próprio funcionamento da máquina, das
não se restringe à relação propriedade e trabalho, mas numa relações baseadas na opinião pública. Desde que se vislumbrou
divisão entre um sobretrabalho de um lado e sua precarização a decadência do socialismo soviético que, então, não caberia
de outro. Ou seja, a flexibilização em todos os setores significa mais no papel de inimigo a ser temido e combatido a qualquer
uma instabilidade do trabalho e da vida pessoal, tornando a preço, um novo inimigo foi sendo forjado nas últimas décadas,
opressão ainda mais dura do que no Capitalismo Industrial, a partir de movimentos de resistência, a um modo de viver e
em que noções como trabalhador imaterial, competências de pensar capitalista de grupos não ocidentais e não cristãos,
relacionais e aptidão para a comunicação fazem parte dessas e muitos deles acabaram por devir em terroristas no Império.
novas relações de trabalho. Nossa vida está atrelada a um Ao mesmo tempo, os discursos dos saberes foram capturando
incisivo e constante apelo de novos produtos que a cada dia conceitos criados para criticar o Capitalismo, apropriando-se

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cinicamente de termos, banalizando-os, criando novos valores metafísica. É a possibilidade de ir além desses tristes limites
a partir deles, jogando-os contra a vida, aplicando-os a esta traçados por uma cultura, superar o senso comum. Essas duas
terrível máquina, para que ela possa continuar passando, e realidades são inseparáveis, compõem uma realidade mista,
engendrar maior produtividade e riqueza para seus agentes, indiscerníveis, mas de naturezas diferentes. O virtual não é uma
que são todos aqueles que contribuem para sua perpetuação, abstração, nem fenômeno mental ou imaginário, não se trata de
qualquer um de nós que aceda ao desejo capitalista. Diante uma representação do infinito, mas o infinito ele próprio. Caos
desse campo social da contemporaneidade, fica clara a infinito. Portanto, é algo bem real, uma experiência de fato que
importância da prática de desconstrução do senso comum para se atualiza e que abre bifurcações, novas perspectivas, novas
desmontar, peça por peça, essa cultura rendida ao consumo. possibilidades de vida. A subjetivação, grande dobradura do
Revolução molecular: conexões com o fora. plano, consiste na afetação da força por si mesma, produzindo
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo. uma interioridade numa operação topológica de vergar-se
// Fernando Pessoa. À parte isso, podemos tocar o infinito. Devir sobre o lado de fora, incorporando-o, para inventar maneiras
intenso. Há fissuras por toda parte nessa sufocante trama mutantes e singulares de nos conduzir no mundo, criar um
de poder e saber, com suas duas exterioridades, ver e falar, estilo de vida e resistir aos jogos de poder e saber hegemônicos,
e porque as forças afetam e são afetadas umas pelas outras, estabelecendo outros jogos autônomos. Um jogo de vida, capaz
os pontos de singularidade estão sempre em movimento, eles de nos colocar num redemoinho de novidades e intensidades,
constituem um outro exterior, o fora do pensamento, fora muito distante dos lançamentos do mercado. O pensamento é
não em relação às formas de exterioridade, ainda que passe uma tática de combate contra tudo que massacra a vida. E a
entre elas, na disjunção de ver e falar, esgarçando a fissura arte pode expressar tal realidade virtual, pois são forças ativas
entre a palavra e as coisas. Pensar é atingir o fora, a realidade que a atualizam, tornam-na presente. E é aqui que vamos nos
virtual, ou melhor, ser transpassado por ela. Acredito não ater, na arte como expressão desse fora. Um pouco de arte
ser preciso lembrar que não se trata do mundo virtual da para nos tornarmos anjos por alguns momentos, todo anjo é
informática, é uma outra coisa. Não está relacionado à ideia terrível como disse Rilke, o anjo é capaz de muita potência,
de um além transcendente ou de uma razão transcendental é a fissura, o intervalo, o fora, magia que nos atravessa e nos
ou fenomenológica, não pertence a nenhum lugar, não está põe em contato com o infinito. Extemporâneo. Conectar-se à
no interior de uma consciência, não é ser, mas é real e nos exterioridade é resistir, fugir do senso comum. A arte assim
habita, invisível que nos atravessa, está entre as coisas, é um não é representativa, nem simbólica, não significa, é o fora
ENTRE-DOIS, pura exterioridade infinita de forças num jogo que se exprime por meio da obra, que relaciona as coisas e a
de agitação contínua e recombinação. É o que confere um linguagem, duas multiplicidades, as extensas e as intensas. A
estado constante de indeterminação das coisas. Esta é a parte univocidade significa que é a mesma coisa que ocorre e que se diz:

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o atribuível de todos os corpos ou estados de coisas é o exprimível vida a um baixíssimo grau de intensidade, converte-se de fato
de todas as proposições. // Deleuze. em verdade, funciona como tal e passa a reger tudo, práticas,
O processo de desconstrução de toda ordem de significados costumes, leis, discursos, torna-se senso comum, até que por
e estruturas está relacionado com os discursos como efeitos sua vez é substituída por um outro programa de verdade. O
de uma construção. Desconstruir, o processo de desmontagem trabalho enobrece o homem, isso é óbvio. Será mesmo? Assim,
nos reporta aos começos. Por tudo o que foi dito até agora, estamos sempre num estado de misturas, numa rede de
não haveria uma suposta origem como lugar privilegiado conexões, e há toda uma agonística, uma luta entre corpos,
em que um gérmen vai se desenvolvendo progressivamente melhor dizendo, entre forças que querem se impor, criar novos
até o ponto em que a instituição, o costume encontram-se modos (desejo de renovação), segundo o predomínio de forças
tal como os conhecemos, como forma formada. Começos ativas ou preservar os atuais (desejo de conservação), no caso
implica em multiplicidades, estados de coisas, nunca se parte em que as forças reativas tomam a dianteira.
de um Uno, é com um Múltiplo que as coisas começam a Faz parte, portanto, da criação artística questionar
se mexer, um estado de coisas, encontro de corpos. Não há todo e qualquer dogma e hábito, demolindo as certezas e o
uma condição natural, de antes de um indivíduo, ou melhor, despotismo da verdade, o senso comum, ao tornar visíveis as
de uma criança entrar na sociedade, como se fosse possível conexões, sempre artificiais e temporárias, entre os estados
desnudá-la de todo aparato cultural, onde haveria a pessoa de coisas. Como por exemplo, quando num certo momento
pura de qualquer determinação social. Desde o início fazemos o sexo foi associado ao pecado da carne, e Foucault mostrou
parte de uma rede, o primeiro homem é sempre uma multidão. como uma interioridade foi sendo criada nos confessionários
// Teillard de Chardin. Somos as relações às quais estamos medievais, em que aquele que confessa é instigado a falar sobre
inseridos, somos nossas conexões com as outras pessoas, os suas práticas sexuais, descrevendo-as ao confessor, escavando
objetos, o mundo. Assim, a noção de natural é colocada em nas dobras de sua carne os resquícios desse desejo abjeto.
xeque, cercada e iluminada de tal forma a mostrar que, como Postura moral. Tudo uma questão de associação, os poderes
tudo o mais, é também algo construído, forjado numa rede de e os saberes não param de fazer isto, criando ficções que
relações num determinado momento, passando a funcionar nos capturam, nos reduzindo a um gênero, a uma categoria,
dentro de uma lógica quase inabalável, que então, faz parecer a uma forma que se quer fixa e eterna (personalidade,
natural, óbvio e verdadeiro, como se não pudesse ser de outra gênero). A grande tarefa do pensamento é desfazer mitos e
maneira, mas que é apenas um sentido construído. De certa crenças. Isto é feito por meio da desmontagem de conexões
forma, no momento em que se concretiza, não poderia ser que se tornaram senso comum, como foi dito, que estão tão
de outra maneira, é sempre uma afirmação, ainda que leve a imbricados em nosso espírito, de modo a nos fazer crer serem

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verdades eternas, quando são apenas conexões temporárias, beleza e a sexualidade são inseparáveis. Postura nem moral
artifícios da potência de criar. Relações de composição que nem imoral (para fugir aos dualismos estéreis) e sim amoral.
constituem um corpo, este conglomerado de partículas em Arte. Que diferença da conexão sexo-pecado que só serve para
relação, regido por forças. Toda vez que se quer eternizar uma soterrar a alegria de viver! A arte, portanto, faz surgir novas
conexão, é um desejo reacionário de produzir permanências misturas portadoras de novos pensamentos, novas sensações,
que está no comando, com seu gosto pelo mesmo, pela pura potência criadora de vida, de metamorfoses, passagem
identidade, seu desejo de criar uma vil ilusão de segurança e de estados. AFECTOS. Segundo Umberto Eco, Mallarmé dizia
estabilidade, tão daninhos à vida potente. Terrível vontade de que é suficiente soletrar une fleur para evocar um universo de
bloquear não somente o novo, a mudança, mas um modo de perfumes, formas e pensamentos. PERCEPTOS.
vida superior, vigoroso. Toda crença, todo mito é fruto desse A produção artística, então, está sendo pensada em termos
desejo, é a grande ameaça à vida, à saúde. Sobrecodificação transversais, rizomáticos, o que conecta umas coisas a outras,
de corpos, sedimentando formas e atribuindo-lhes funções, associações diversificantes numa dinâmica de contágios. As
especialidades hierarquizadas para extrair mais valia, trabalho coisas vibram pelo meio. E então, já não se pode pensar em
útil. Forja-se um sujeito para a alma, organismo para a matéria interior e exterior como oposições, de forma dialética. E sim,
ou ainda a pergunta do dramaturgo alemão Heiner Müller, em o o ENTRE-DOIS, o meio. É ao mesmo tempo que o mundo é
Medeamaterial: Eu, eu quem? De quem se fala quando se fala interiorizado e o eu é exteriorizado, onde se abolem os limites
de mim? Não há uma resposta definitiva, estamos sempre em fatais entre o dentro e o fora. // Rilke. Não se trata do uno que
devir, uma composição singular. Chance única de um lance de se torna múltiplo, pode-se trabalhar com a ideia de um ovo
dados. Os artistas, por sua vez, também fazem associações, intensivo primordial, sendo ele próprio já multiplicidade, ele
no entanto, conexões com o fora, ligadas à potencialização da é uma realidade virtual, tem em si toda potência de atualização.
vida, por meio da desconstrução do senso comum. Ainda com Tal como eu, quando estou a escrever, necessito estar a ouvir na
relação ao sexo, o escritor D.H. Lawrence conectou-o ao fogo, minha cabeça a voz que “fala”. // Saramago. De certo modo,
calor que transmite brilho, encanto; se ele morre, o que resta pode-se dizer que o modus operandi do artista seja este. É
são uns cadáveres ambulantes, mas se esse fogo resiste, tem o indispensável dizer que cada artista tem sua particularidade,
poder de proliferar, despertando outros fogos, numa conjunção sua própria maneira de produzir um corpo poético e de
de forças que devém em brasas, labaredas, fogueiras. A doença construir um território, mas quanto ao processo de criação,
de nossa civilização, ele aponta, é não ter mantido esse fogo em à desterritorialização, a voz que fala é a do devir, do fora, ela
todos, e assim poderíamos viver inflamados, entusiasmados não é uma imitação de algo ou de alguém, é o próprio algo ou
em todas nossas atividades. Nietzsche diz que na natureza a alguém que se expressa por meio da linguagem, entendendo

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linguagem aqui, como todo e qualquer meio de expressão de movimentos que constituem uma única pétala de uma flor.
artística. O artista é arrastado por essa voz ou vozes à medida Tudo é inconstância e variação contínua. Já disse Foucault que
que essa voz é arrastada pela linguagem. Realidade virtual. uma leitura, e aqui se acrescenta um encontro com uma obra,
Devir literatura, devir música, devir pintura, devir fotografia... só tem sentido se desencaminha aquele que lê, que vê, que
Alguns pesquisadores e teóricos atribuem a falhas neurológicas ouve. Desperta em nós sensações e pensamentos insuspeitáveis
ou fisiológicas, determinadas visões, audições, sensações ditas antes de tal contato. A arte, o pensamento, tem este frescor
estranhas que uma pessoa possa ter eventualmente, como o de nos lançar para fora de nós mesmos, para fora do caminho
déjà vu, por exemplo. Bergson se refere a essas falhas que então que nos parecia tão seguro e conclusivo e que então... o que
não seriam exatamente falhas, como algo que nos possibilita fazer com tudo isto, senão produzir uma dobra sobre a própria
perceber uma realidade que nossos sentidos, em seu estado vida, inventar um novo programa de procedimentos, forjar
usual, não podem perceber. A arte pode ser um outro modo uma outra verdade, sabendo ser tudo isto também provisório
de suspender esse tal estado usual que nos domina no dia a como a vida que passa de relance sem que possamos agarrá-
dia (estado que nos é útil apenas para sobreviver e para nos la. A vida e a arte fazem parte do salto no abismo que eu resolvi
orientarmos por entre as atividades de manutenção da vida), e dar. // Leonilson. Saltar no abismo. Porque, se na vida tudo dura
nos fazer perceber e sentir de outra maneira, pois o encontro lapsos de instantes diante do montante que é a existência,
com uma obra de arte pode nos desviar dessa programação que a arte permanece, conserva, cria vincos naqueles que são
somos, essa forma homem que nos condiciona, para nos fazer tocados por ela, que entram na máquina por ela produzida,
pensar e criar momentos, talvez lapsos de instantes, de uma constituindo-se como peça criadora participante. É causa ativa,
intensidade que escape às limitações do ser, para que possamos vontade de potência. Suscitar desejo, impulsionar a produzir
entrar na intensidade de qualquer outra criatura ou coisa também é o que nos proporciona o contato com a arte. Tudo se
existente e transcender a nós mesmos e às nossas preocupações dá entre duas formas. ENTRE-DOIS. Neste entre vigora uma
cotidianas que tanto nos abatem e oprimem e acabam por nos agitação de forças num processo de compor formas, ainda que
achatar, tornando-nos débeis. O poeta faz-se vidente através de nos pareçam eternas, sempre em transição, ainda que pareçam
um longo, imenso e sensato desregramento de todos os sentidos. fixas. A arte, como realidade vivente que é, pode nos levar a
// Rimbaud. Se a arte tem algo que lhe é próprio é o fato de ser sentir, a perceber esse movimento incessante da vida, porque
uma intensificação da vida, de trazer algo diretamente da fonte ela é produtora de PERCEPTOS. Portanto, pode nos colocar de
da vida, que é o Caos, a realidade virtual, devir borboleta da chofre numa manhã fria de um outono medieval, onde uma
lagarta, AFECTO, por isso ela é sempre produção de realidade, carroça leva para longe a moça que em breve vai encontrar
expressão dos fluxos que constituem o universo, dos bilhões com aquele que se tornará o amor de sua vida; podemos

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sentir todas as nuances com as quais a imagem nos põe em la em outra linguagem, neste caso em escrita, apreender na
contato, como se vivêssemos nós mesmos, podemos até sentir própria obra o que dela emana, qual sua potência, qual a
o frio e o balanço da carroça trepidando sob nós, a qualquer vontade que passa por ela, o que quer suscitar. Abordagens
momento que acionarmos o filme Stealing Heaven de Clive de tendência kantiana têm predominado há algumas décadas,
Donner, versão livre da história de Abelardo e Eloísa. Ou ainda que pensam a arte a partir da ótica do espectador, tantas
com os filmes de Wim Wenders nos lançar em sua incrível vezes medíocre e moralista. Há no mundo uma conjura geral e
modernidade marcadamente pop, com seus figurinos, suas permanente contra duas coisas, a poesia e a liberdade; as pessoas
trilhas sonoras, suas histórias andarilhas, on the road, ao mesmo de gosto encarregam-se de exterminar uma, tal como os agentes
tempo em que nos faz mergulhar numa antiguidade imemorial da ordem de perseguir a outra. // Flaubert. Se o confronto da arte
de antes dos tempos. Com o filme Longe dos homens viajamos é com o senso comum, é justamente contra o que predomina, a
juntos com duas partículas soltas que se encontram sobre o opinião que versa deste mesmo espectador. Falando a partir do
deserto, em meio aos ventos, aos ruídos, às luzes, inventando ponto de vista do artista, da criação artística, Nietzsche atacou
seu destino na bifurcação dos caminhos. Só a arte pode nos essa posição em Genealogia da Moral. Essa inversão possibilita
enlaçar num extremo paroxismo sempre que escutamos aquela fazer com que se perceba como a criação é de uma embriaguez
música que tanto nos afeta, que pode nos fazer cair num choro apaixonada, capaz de fazer surgir o inusitado das coisas,
inconsolável ou dançar e cantar febrilmente ou ainda modificar trazendo à tona aquilo que passa despercebido, o que só pode
instantaneamente um ânimo abatido, cansado, insuflando-lhe ser distinguido sutilmente, o efeito das misturas dos corpos.
surpresa e encantamento. A arte ajuda a não perder a potência O amor e a arte não abraçam o que é belo, mas o que justamente
tão essencial de se surpreender e de se encantar. Só a arte pode com esse abraço se torna belo. // Karl Kraus. Essa concepção
nos mover ou nos pôr paralisados, extasiados, intrigados, nietzscheana da arte como algo apaixonante, aproxima-se do
incomodados diante de uma imagem, de um objeto ou de um que Stendhal descreve como amor-paixão, que faz com que
livro: Jardins de Palavras, de Marilá Dardot, instalação A Origem algo no espírito possibilite ver sinais de novas perfeições e de
da Obra de Arte ou Cidades Invisíveis, visitadas por Calvino, beleza naquilo que se ama em todas as circunstâncias, sejam
ou ainda Arquivos Imaginários de Boltanski. Porque é uma boas ou ruins, tendo a certeza de que o amado ou amada vai
experiência de vida, ou devo dizer, pode ser uma experiência lhe proporcionar prazeres e alegrias que somente essa pessoa
de vida quando somos ou nos deixamos ser afetados pela obra, pode lhe proporcionar, por isso diz ser a beleza uma promessa
que é força pura. de felicidade. Uma luta contra o niilismo, muito diferente do
Ao abordar uma obra de arte é importante captar essa força juízo estético desinteressado kantiano e seus ideais ascéticos.
pura, a realidade virtual que ela traz em si, sem tentar convertê- A arte não se limita a imaginar, ela modifica os valores, é uma

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permanente reavaliação do que é benéfico à vida, do que a e aquelas, levam o pensamento a procedimentos criativos
afirma, do que pode intensificá-la, apontando aquilo que lhe é de afirmação de si mesmo e da vida como diferença. Daí a
perigoso e que lhe ameaça. superioridade e nobreza das forças ativas, enquanto as reativas
Os corpos são a expressão de um conjunto de forças, são uma negação, uma reação a estas forças ativas, pois querem
somos sempre uma pluralidade de forças em relação num barrá-las em seu fluxo ativo e afirmativo, tentando separá-
dado momento, daí a transitoriedade dos estados de coisas. las de sua potência. E aqui é fundamental a advertência que
Quando entramos em contato com um outro corpo, fazemos Deleuze faz com relação aos termos poder e potência, tantas
uma avaliação, privilegiando determinadas forças que o vezes mal entendidos. Vontade de poder não se confunde
compõem, conforme as forças que nos compõem, segundo os com um desejo de dominar os outros, o que seria atrelá-la
valores que carregamos, que já são expressão dessas forças que aos valores dominantes de lutas pelo controle político, social
nos constituem, e fazemos uma interpretação, não no sentido ou econômico, e as forças ativas não têm relação com esses
linguístico, mas praticamos uma atribuição de sentido a esse valores, criados por um modo de vida baixo, não reconhecem
encontro. Esse modo de pensar, de avaliar é inseparável de um seu poder, somente o homem do ressentimento tem este
modo de vida. Os modos de vida inspiram maneiras de pensar, desejo de dominar o outro. Não há um lamento pela perda dos
os modos de pensar criam maneiras de viver. // Deleuze. Nietzsche valores, a questão é entender a tipologia, a qualidade das forças
distingue dois tipos de modo de viver, um nobre e outro vil, que criaram tais valores, e também apontar a existência de um
de onde parte todo modo de avaliar. O tempo todo falamos, desejo de perpetuar tais valores, associando-os a uma verdade
pensamos de um desses lugares. Daí a necessidade de uma universal, eterna e inquestionável que é imposta a todos como
genealogia dos valores que deve ser uma crítica das forças que sendo o único e correto caminho a ser trilhado. Daí as ficções
estão no começo. Não entenderemos nada se não soubermos do bem e do mal. Não é questão de instaurar novas verdades,
que modo de vida criou determinado valor, e de qual ponto um conhecimento mais verdadeiro, isto surge quando as forças
de vista, porque assim como existem maneiras de viver que reativas dão a direção da vida, quando a doença predomina. O
menosprezam a vida, subjugando-a a valores ditos superiores, artista é aquele que perdura na singularidade da sua criação,
há outras que a afirmam. Nietzsche estabelece uma tipologia de criando irrepresentáveis ao perceber e interpretar as diferentes
forças, distinguindo o que chamou de forças ativas ou plásticas, forças existentes, dando-lhes um sentido por meio de seu
que têm o poder de criar novas formas, portanto superiores, e as trabalho. A vontade de poder em Nietzsche é o desejo da
forças reativas ou conservativas, responsáveis pela manutenção força como potência criativa de fazer emergir o novo, inventar
dos estados de coisas, dos valores estabelecidos, por isso novos valores e novas formas. Pensar e viver de outra maneira.
consideradas inferiores. Estas forças exigem do pensamento Mudança constante das relações de forças, portanto de sentido
uma atividade de reconhecimento de identidades e reflexão e valor. Permanente recriação de uma promessa de felicidade.

46 47
Reafirma-se que o contato com uma obra de arte possibilita formando um conjunto de normas, efeitos de verdade. A
uma experiência vívida, e não significativa, nem tampouco singularidade emerge quando se volta para os fluxos das linhas
representativa, porque nos coloca diretamente em contato com que preparam devires e não ao se deter em suas paradas, nas
a realidade virtual. marcações dos pontos, nas formas. Sair dos pontos e entrar
A arte contemporânea, portanto, é um convite à nas linhas. Portanto, o movimento é dado pela diferença, e
especulação. Ela não é clara, não é fácil, é para ser explorada, esta advém da mudança, não da estabilidade. Quando estamos
muitas vezes torna-se necessário fazer um esforço para entrar presos às analogias, ficamos nas similaridades e generalidades
nela, o que também acabou por provocar, por parte das de uma norma, no que é constante em diversos contextos e
instituições ligadas à arte, movimentos de facilitação da obra, circunstâncias, e perdemos a variação, as multiplicidades, a
criando um didatismo, como se houvesse uma mensagem a potência singular dos modos de ser únicos. Uma ontologia da
ser decifrada. Não será uma redução? Não será que se tira da diferença em contraposição à da unidade e da identidade. As
arte isso mesmo que ela está propondo, lançar-nos num estado analogias são interessantes, mas menos que a diferença. // Francis
de desorientação, no mistério da existência e na recusa em Ponge. A arte contemporânea promove assim, em larga escala, o
passar uma mensagem, o que no mais é coisa da propaganda, que a modernista já vinha fazendo, a saber, a desclassificação da
da comunicação, não da arte? Queria que a minha voz tivesse obra de arte, a impostura, impossibilidade de encaixar numa
um formato de canto. / Porque eu não sou da informática: / eu sou tradição, pois é a sem medida, sem modelo, puro simulacro.
da invencionática. / Só uso a palavra para compor meus silêncios. Daí há sempre um certo mal estar quando são forjados
// Manoel de Barros. Não seria mais interessante manter a arte, o agrupamentos de trabalhos a partir de possíveis semelhanças,
contato com a arte como uma espécie de, como diz Waltercio quer em seu processo de produção, em sua finalização, ainda
Caldas, prática de desorientação didática que não pode tirar que seja inacabado, ou na maneira que são apresentados ao
dúvida alguma, mas encher de questões? Assim, a diferença público. Longe se está do desejo de classificar, de limar as
se torna visível, quando nos deixamos arrastar pelos enigmas diferenças em prol de similaridades, às vezes grosseiras, do
de uma obra, quando o pensamento se põe a delinear linhas ideal de organização, do ideal de estabilidades e permanências
errantes, linhas abstratas que não delimitam um dentro ou um que nada mais é que a crença de que as formas são frutos de
fora, fugindo da busca de similaridades e semelhanças entre um desenvolvimento em que uma totalidade partiria de um
diferentes eventos, desviando-se da análise das estruturas princípio para chegar a um fim, no mais previsto. O desejo
para a do entendimento das forças que engendram mutações, aqui é estar sempre no meio. Dura o diamante / dentro da pedra
ao agirem sobre as estruturas as quais são apenas efeitos pura. / De agora em diante, / só o durante dura. // Paulo Leminski.
provisórios da composição de forças num dado período,

48 49
A natureza é uma flutuação permanente, no entanto também
é repetição, o que nos permite fazer previsões futuras segundo
as leis de natureza conhecidas. Para nos orientarmos no dia a
dia, é necessário principalmente que as impressões que temos
do mundo se repitam de forma ordenada e regular, no sentido
em que uma maçã ontem tem de permanecer sendo uma maçã
hoje, para que possamos reconhecê-la pelas suas qualidades
O TEMPO diferenciais, visuais, táteis, olfativas, gustativas e até sonoras,
ao mordê-la e obter dela o que é esperado de uma maçã. O
É UMA CRIANÇA organismo está sempre selecionando, conforme critérios de
uma certa ordem, e a consciência fazendo relações, segundo
QUE BRINCA, sua experiência passada. Tem a necessidade de orientar-se
pelos sentidos e pelo intelecto para poder continuar existindo.
A arte é feita para perturbar. A ciência para tranquilizar. // Braque.
Tal ordem, tal comportamento das coisas e experiência do
MOVENDO mundo não são requeridos na arte, pois ela não está ligada ao
organismo e à consciência, ao reconhecimento dos objetos ou
AS PEDRAS à confirmação de experiências, sua matéria é o desvio (dos

DO JOGO
objetos) e o extravio (da experiência), sua luta é contra o
bom senso, contra as leis da natureza, seu intuito é produzir

PARA LÁ
um corte inédito nas coisas, abrir-se para encontros, para
um fora, fazendo agenciamentos que atravessam os mundos,

E PARA CÁ.
embaralhando os reinos, entretanto, de fato não há separação
entre animais, minerais, vegetais e artefatos. Mecanosfera.
O objetivo da arte é dar a sensação do objeto como visão e não
HERÁCLITO como reconhecimento. // Chklovski. O artista, é com o Caos que
ele trabalha, esgarça uma fissura nessa teia tão tênue que nos
separa do Caos, esse fundo obscuro que nos povoa, para daí
tirar um composto, com elementos díspares e indiferenciados

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que traz diretamente do Caos, cria e povoa um plano de qualidade do corpo, não é sensível, ainda que se expresse pelos
composição anorgânico, fazendo-os vibrarem juntos e emergir seres de sensação. PERCEPTOS e AFECTOS. Aqui penetramos
uma diferença pura, uma variedade, um outro de tudo, um na ontologia, pensando o Caos como plano de imanência,
clarão do Caos. Vacúolos de solidão em Farnese de Andrade gerador de tudo, força genética da natureza, da vida. Bergson
que, com suas assemblagens, nos faz entrever a passagem sinonimiza matéria, imagem e luz que, como conjunto infinito,
do tempo, desfiando a superfície das coisas e revelando em perpétuo movimento acentrado (rizomático) e constante
um pouco de Caos. Então, se a arte pode atingir um grau em velocidade infinita, em meio ao vazio sem referências ou
extremo de intensidade é porque produz algo que extrapola o direção, e o tempo é uma sucessão de instantes descontínuos,
reconhecimento, o senso comum, e também porque vai além numa situação paradoxal em que ação e reação propagam-se
dos materiais ou ideias com os quais são formadas as obras. Ela simultaneamente em todas as partículas, marulho universal,
é feita de seres de sensação que conservam a vibração daquilo sendo assim imediata a percepção na matéria informal, no
que contraíram, fazendo-o ressoar. Este processo não pode ser entanto, nada é retido, tudo escapa nesse estado translúcido
confundido com o esquema sensório motor de percepção e em que se encontra. A vida é imanente a esse Caos, é um
ação ou excitação e reação como qualidade dos corpos, porque gérmen, uma tendência do Caos, intervalo de movimento que
ele é pura contemplação contraente pelo espírito que erige um se instala entre a ação e a reação, que num dado momento
bloco de intensidade: a obra. Ou seja, afirma-se que a arte pode se atualizou, fazendo surgir a duração, uma contemplação
fazer vir algo que é de natureza espiritual: contraente do tempo descontínuo que ganha outras dimensões,
força coercitiva capaz de reter o anterior no seguinte, tempo
Enquanto descobrirmos o sentido de um signo em outra constituindo-se como uma duração contínua, o organismo
coisa, ainda subsistirá um pouco de matéria rebelde ao como uma organização sensório-motora centralizada, ponto
espírito. Ao contrário, a arte nos dá a verdadeira unidade:
unidade de um signo imaterial e de um sentido inteiramente de referência, dobra que coloca o universo inteiro em torno de
espiritual. A essência é exatamente essa unidade do signo si, que se caracteriza por inventar maquinismos para satisfazer
e do sentido, tal qual é revelada na obra de arte. // Deleuze suas tendências, para captar o mundo e agir sobre ele; dessa
forma a percepção e a ação, bem como a inteligência nos
Como entender esse signo imaterial e esse sentido espiritual
humanos, são as forças capazes de manter o vivo na existência,
numa filosofia materialista? O que vem a ser esse imaterial e
é por isso que a inteligência não pode ser confundida com o
esse espiritual? É o que vínhamos falando como realidade
pensamento. Potência de perseverar. A percepção está reduzida
virtual, esse espiritual é a parte não física das coisas e dos seres
em relação à matéria, pois subtrai, apreende seu entorno por
existentes, mas não se confunde com o inteligível, ainda que
meio de seus sentidos (os mais variados, conforme se é uma
só possa ser apreendido pelo pensamento, também não é uma

52 53
bactéria ou um homem), fazendo recortes no mundo daquilo
distintas, o finito e o infinito, são inseparáveis. Caosmo:
que lhe interessa, recebe movimento, para então responder
universo de luz e sombras. Só acontecem nesta conjugação, é
com um outro movimento, agindo, é membrana que recebe
uma mesma linha abstrata que organiza a matéria em corpos
excitações e responde, poder de afetar e de ser afetado,
e a imagem em percepção cada vez mais elaborada. Reaparece
criando uma memória ao longo de sua duração, por isso a
aqui, de outra maneira, o diagrama de forças e o estratificado.
percepção está sempre preenchida pelo hábito, contração
Molecular e Molar.
do que foi vivido, podendo trazer de volta uma lembrança
A realidade atual, ou seja, o presente, pois só existe o tempo
que é uma imagem, garantindo que ela seja eficaz, que seja
presente, é envolvida pela superfície metafísica, ou seja, o
capaz de reconhecimento, o exemplo da maçã já citado, que
tempo virtual. Tratemos primeiramente de entender o presente.
funcione como mantenedora da vida. Daí o vivo arrasta em
O corpo, de espaço-tempo faz emergir o lugar e o presente,
si um passado numa projeção para o futuro. Como foi dito, a
que são então atualizações do tempo e do espaço, em si vazios,
novidade do vivo é o intervalo entre a recepção do movimento
pois não existem, são incorporais. Portanto, há uma extensão
e sua devolução ao mundo, portas da percepção, essa fissura é
tridimensional (lugar) e um corte arbitrário na linha infinita
afecção, em que ocorre um momento de hesitação, onde se dá a
do tempo (presente), introduzidos pelos corpos. Quando deixa
intrusão do acaso ou da indeterminação. Jato de liberdade e de
de ser presente, perde-se no infinito do tempo. Então, essa
criação, bifurcação que pede que, a cada vez, se faça escolhas,
linha do tempo que se estende ao infinito em duas direções
supõe imprevisibilidade: como alguém se tornar aquilo que é.
simultâneas, a chamada superfície metafísica, com os corpos
Dentre uma multiplicidade de movimentos possíveis, apenas
ganha uma certa extensão, um limite, e é o acontecimento que
um é atualizado, de toda uma infinidade de partículas-luz que
lhe dá a dimensão do presente, que implica devir, em produção
piscam nesse Caos germinal, nesse fundo obscuro, onde apenas
de sentido. São efeitos, pois, como já foi dito, as únicas causas
alguns podem ser percebidos, luz rebatida ao longo da vida de
são os próprios corpos. É a superfície metafísica que faz
um indivíduo, porque a percepção seleciona somente aquilo
coincidir passado e futuro no presente, criando essa zona de
que lhe é útil para sua sobrevivência. Entretanto, isso pode
indeterminação que recobre os corpos, é a parte virtual dos
ser expandido, é possível ultrapassar a natureza, o organismo,
corpos, ou seja, o espiritual e o imaterial: diferença pura. E
se voltar nessa fissura e criar novos afetos, defrontar-se com
essa diferença é o que constitui as coisas, o que lhes confere
o Caos, e daí trazer algo, uma nova mistura. E é em razão
uma singularidade, cada indivíduo é uma chance única do
dessa fissura que se diz que os corpos são conjuntos finitos de
lance de dados do universo, ou seja, essa diferença é a causa
partículas constantemente renovadas, recobertos por uma zona
ativa dos corpos, o que nos coloca numa situação paradoxal:
de indiscernibilidade, onde estas duas realidades de naturezas
é efeito do encontro dos corpos, mas ao mesmo tempo é sua

54 55
causa ativa. Era o que se dizia dessa superfície metafísica que na essência que se expressa na arte, ou seja, a arte nos mostra
corre simultaneamente em duas direções: passado e futuro. o tempo original, este fora que se expressa numa obra ao
Ainda outra questão se coloca: se é típico dos corpos essa transmutar a matéria, espiritualizando-a num grau maior,
dupla natureza, se lhe é intrínseca essa força criadora, essa tornando-a suscetível de expressão, tornando-a translúcida ao
diferença pura, o que faz da arte ser algo superior? No livro tempo, passado-presente-futuro contraídos. Células de Louise
sobre Proust, Deleuze mostra sua concepção leibniziana da Bourgeois. Invenção de novos mundos. Um objeto qualquer
diferença, ou seja, cada indivíduo é expressão de uma essência; cuja face visível é a material, a finita, a face útil, está sempre
à diferença de Platão, para quem as essências são identidade nos remetendo a um outro fora de si, pois faz parte de uma
absoluta, para Proust, elas são diferença absoluta, mônada que série, de um encadeamento de relações de causa-efeito e de
carrega em si todo infinito (fissura?), trazendo um ponto de contiguidade, segundo princípios de associação. Enquanto um
vista do mundo, uma diferença, é expressão de uma qualidade ready-made por exemplo, deixa de remeter a uma outra coisa
do mundo, e que então somente a arte tem a potência de nos no fluxo do mundo, dentro da conexão a qual estava inserido,
comunicar tal diferença que a amizade e o amor, a vida social e para remeter-se apenas a si mesmo como expressão de uma
a cultura não têm. Somente por meio da arte podemos ir além diferença, transforma-se em DESOBJETO, tornando visíveis,
de nós mesmos e vislumbrarmos outras paisagens do mundo, audíveis conjuntos de micropercepções do acontecimento,
portanto não é algo fenomenológico, não é mental, pois se trata os quais fazem desabrochar (INFRAMINCE como veremos).
de uma realidade independente, fora de qualquer interioridade, Foco de luz ou onda sonora que passa a se destacar do fundo
de qualquer consciência, sem no entanto ser transcendente. obscuro. Ar de Paris de Duchamp. É o estilo que faz isso, que
Mesmo porque é a própria essência, a força que se contrai, se singulariza pela metamorfose de objetos, dando uma duração
dobra sobre si mesma e constitui uma subjetividade, não se à luta das oposições complicadas numa essência. E a essência
trata de uma subjetividade psicológica; a subjetividade não pré- não podendo ser substituída, sendo diferença, só pode ser
existe à essência, e é ao mesmo tempo em que uma é constituída repetida, daí a analogia não ter poder de expressão, porque
e a outra contrai, sempre depende do diagrama de forças como remete a uma outra coisa. A repetição como gradientes de uma
isto vai ocorrer, ao mesmo tempo em que o próprio diagrama é diferença, e a diversidade como níveis do mesmo. Sobre a obra
criação das essências. A subjetividade então exprime a essência de um grande artista podemos dizer: é a mesma coisa, apenas
e a torna tangível, visível, sonora na arte, produz uma sensação com a diferença de nível; como também: é outra coisa, apenas
real, sem remeter a outro objeto qualquer, sem representar com a semelhança de grau. // Deleuze. O artista, ao se apropriar
outra coisa, além de exprimir a sua própria diferença, que é de um elemento de uso comum do meio social, colocando-o
o espiritual, o Caos contraído. Tempo puro está complicado em evidência, arrancando-lhe do infinito fluxo de coisas

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que passam, espiritualiza-o desmaterializando-o, tornando-o inteligência humana. Afetos de formiga ou afetos humanos. E
transparente, cristal de tempo, potencializa-o ao fazer subir a como um meio nunca está isolado, fechado em si, só sobrevive
essência, tornando-o expressivo, dando-lhe um sentido, daí na mistura, permanece sempre como base para outro ou se
a força evocativa da arte em produzir, por meios variados, estabelece sobre outro, passando ainda por entre outros,
uma duração, uma continuidade intensiva entre elementos atravessado por energias pulsantes, vibratórias, pondo tudo
heterogêneos, o que não é uma analogia, uma metáfora: A em movimento. Por isso permanecem abertos ao Caos, que é
história, a aventura não me interessa. Penso, quando escrevo um uma espécie de meio de todos os meios, ainda que não seja
romance, em expressar uma cor. Um tom. Em Madame Bovary tive um meio, e sim a condição do meio, o plano de imanência,
a ideia de expressar um tom cinza, a cor do mofo da existência criador de ritmos. Mas a ameaça nunca é extinta, fala-se em
enclausurada. // Flaubert. Caos como ameaça, mas é também a única fonte de qualquer
Estamos sempre compondo uma frágil e transitória ilha criação, matriz de todo ser existente, o Caos está sempre nas
em meio ao Caos. Caos, o que não tem dimensões nem passagens, bem como o ritmo que também não tem medida, é
referências, em que há movimento perpétuo de partículas transcodificado. Escapa, está sempre entre meios, é de outra
em todas as direções ao mesmo tempo. Plano de Imanência. natureza, é cósmico. O ritmo não se repete, é o meio que produz
Ajeitamo-nos nessa ilha, instalamo-nos nesse meio, somos nós uma repetição periódica. O ritmo é diferença, é novidade
mesmos um meio, o ser vivo é um bloco de espaço-tempo numa produzida pela repetição que se dá no meio, no organismo,
dinâmica que ultrapassa essas fronteiras, pois depende de uma pela comunicação entre meios, pelas misturas de pedaços de
comunicação perpétua com outros meios, outros seres vivos, códigos diferentes. O território é este conjunto de meios e ritmos
outros organismos e com o próprio Caos. Mas permanece no Caos cujos ingredientes que o compõem, criteriosamente
sempre uma guarida de forças do Caos, da terra, do cosmos. O selecionados, vão se combinando, conferindo-lhe dimensão,
vivo, este bloco de espaço-tempo, é composto por elementos não mais apenas direção e função que é o que constitui os
despregados do Caos e regulado por uma repetição periódica, organismos, ou seja, ele traz essencialmente uma qualidade, e
ou seja, é inteiramente codificado, por isso o organismo, o ritmo torna-se expressivo, não mais funcional. Assim, o que
o esquema sensório-motor, é um meio estratificado. Toda constitui um território não é um meio, é uma composição de
experiência individual supõe, como um a priori, a preexistência códigos-meio e transcodificações territorializados.
de um meio no qual é conduzida a experiência, meio específico ou Assim, o território é uma coleção de porções de meios,
meio institucional. O instinto e a instituição são as duas formas com seus componentes vocais e sonoros, gestuais e motores,
organizadas de uma satisfação possível. // Deleuze. Bifurcação da coloríficos e lineares, luminosos e sombrios, elementos
vida que se atualizou em duas linhas, a instintiva animal e a apropriados de origens distintas, coleção de coisas diversas que

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perdem sua função, tornando-se expressivas, territorializantes, a luz tem de incidir num determinado ângulo, a cadeira que
como o canto de alguns pássaros, as cores de suas plumagens. acolhe, então se pode começar o desenho, a colagem, o bordado,
Portanto, essas marcas estabelecem um território e as funções a pintura, a escritura. Devir solidão. Leonilson é o nome desse
que se darão nele, primeiro se dá a criação de um território, acontecimento. Pode também ser Louise Bourgeois. Quando
depois vêm as funções orgânicas. As marcas como qualidades a tinta e o papel deixam de ser tinta e papel para tornarem-se
expressivas desenham um território, o mapa de fundo, sobre escada. Quando o artista se deixa arrastar por um devir das
o qual se constituirão planos, camadas onde serão traçadas alturas, e a escada se faz em tinta, grafite, gravura, linha não
as linhas, compostos desenhos sem espessura, que vão sendo mais madeira ou metal, quando perde sua função utilitária, se
produzidos de modo errante, sem projeto. É sempre um torna um DESOBJETO. He Disappeared into Complete Silence.
processo, sem objeto nem finalidade, que vai produzindo Devir mundo de Rauschenberg. A questão é fazer com que
agenciamentos entre impulsos internos, forças da terra e todos esses elementos tão diversos entre si entrem numa
circunstâncias externas, forças do Caos. As marcas denominam conjugação, pulsem juntos, que se tornem um jogo jogável,
um lugar de morada, de inspiração, de poses, um espaço de experiência real de alguma coisa, seja lá o que for. Composição
passagem, coreográfico, desenhando linhas diagonais que maquínica singular. Por isso, não será igual para ninguém, é
operam passagens entre grandezas que já não estão submetidas sempre uma experiência singular que pode funcionar para uns,
aos pontos, ultrapassam o sistema de coordenadas, onde um não para outros, e num determinado momento, noutro não.
ponto surge a partir de duas linhas que saem de dois eixos, Porque já se trata de outros agrupamentos, misturar-se a um
um horizontal outro vertical, latitude e longitude: espaço trabalho. O território nunca é um sistema fechado, pois é pleno
estriado. Essas linhas diagonais não têm uma origem nem um de fissuras, brechas que se abrem para fora, num movimento
destino, não partem de um ponto para chegar a outro, não de desterritorialização no qual se entra quando faz estremecer
apresentam uma forma ou limites, estão em processo: espaço o território, quando este vai ficando asfixiante, tolhendo e
liso. É a própria linha numa trajetória não linear, esquiza, que aprisionando partículas, é quando se torna necessário iniciar
vai abrindo seu caminho nos entremeios. Estamos sempre um processo de desfazê-lo, de lançar linhas para fora dele,
entretidos no esforço de produzir territórios, para sobre eles nos vazar pelas frestas, buscar novos materiais, novas maneiras
desterritorializarmos: toma-se uma mesa, uma folha, conjuntos de produzir, desfazer a perspectiva, roubar peças de outras
de lápis de diferentes tipos ao alcance das mãos, tintas, imagens máquinas, de outros territórios, roda de bicicleta fixada sobre
na memória e referências em livros e revistas, pedaços de coisas um banco de Duchamp, colcha de cama de bebê que vai receber
espalhadas na mesa, materiais diversos, coloca-se a música umas pinceladas e enquadradas por Rauschenberg, duas atrizes
adequada, hoje um rock, amanhã pode ser uma música barroca, para uma só personagem em Buñuel ou dois nomes para uma

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mesma personagem em Faulkner, ou ainda um mesmo nome perder o presente, única coisa que existe, mas que também
para vários personagens em Márquez, Yves Klein azulando o não cessa de ser desviado, desterritorializado, colocado em
mundo, bandeiras ou alvos tornados campos intensivos de cor bifurcações. Então, nesse sentido, bom e belo é aquele capaz de
por Johns, verbivocovisual poesia concreta, panos coloridos administrar sua vida de tal forma que ela tenda a ter mais bons
costurados como capas jogados sobre um corpo que dança, encontros do que maus, visto que a existência é feita do acaso
que gesticula, Parangolés de Oiticica, que circulam e rodam, dos encontros, não sendo possível eliminar os maus encontros,
traçando um outro território, sempre precário e efêmero. elevando sua potência, possibilitando uma vida plena e livre,
Desterritorializar. Pintura fora da tela, em êxtase de movimentos tornar-se causa de si, orientada pelas necessidades de sua
improvisados, no arroubo do vento, na rua, em qualquer lugar. própria natureza. Transvaloração. Aprendemos com Espinosa
Vivemos em meio a estados de coisas, estamos sempre a pensar a natureza, substância em si, como causa imanente de
envolvidos numa mistura de corpos, num agenciamento, e um si e de todas as coisas, nada existe fora dela, é constituída por
corpo em si já é formado por tantos outros corpos que, por sua infinitos atributos, cada um dos quais exprime uma essência
vez, também são compostos ainda por outros mais. Espinosa da natureza, e por modos que são suas afecções. O modo de ser
afirma que somente do ponto de vista dos corpos pode-se dizer gato com suas afecções de dormir enrodilhado ao sol, de lamber-
que uma mistura é boa ou má. Bom é aquilo que compõe com se, ronronar, esgueirando-se por entre as pernas é um grau de
nosso corpo, que aumenta nossa potência de agir: Alegria. Mau intensidade da natureza, não cópia de um modelo ideal. Fora
é o que decompõe nosso corpo ou parte dele, diminuindo nossa da causa imanente nada pode ser explicado, a imaginação não
potência: Tristeza. Portanto, as misturas dependem de uma pode estar no comando, pois ela é resultado do encontro dos
ética, ética como um modo de viver, nenhuma relação com corpos, é imagem que fazemos das coisas a partir do contato
regra moral, é uma questão de organizar os encontros, para que com elas que produzem em nós uma afecção, marca que um
se minimizem os maus encontros que não contribuem para encontro com outro corpo deixa em nós. A imaginação projeta
que uma potência se efetue. Então belo e bom não é o que está a si mesma, o seu modo de ser, suas próprias impressões no
conforme um modelo ideal transcendente, aliás equivocada universo inteiro, não podendo assim entender a natureza do
noção esta de modelo ideal, ela própria foi instituída por universo, das coisas, as quais só podem ser entendidas por
relações de forças, que por sua vez são reproduzidas por esta elas mesmas e por sua potência, por seu poder de afetar e de
noção, há toda uma política que esvazia a vida, insuflando serem afetadas, e não segundo alguma norma transcendente
em nós inatingíveis ideais como meta teleológica de vida, um de bondade ou de beleza ideal, uma verdade que nos apresenta
objetivo a ser atingido em algum suposto futuro, sempre saindo um juízo, a partir da proximidade ou da distância em relação
de um ponto de paralisação para chegar a outro, fazendo-nos a este valor transcendente ideal, conforme uma diferença de

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grau em relação a um padrão pré-estabelecido, aliás por forças Um tordo. Uma toda. Seu sopro, avecanora, flauteava com coisa
reativas que estão no comando, segundo Nietzsche, forças as débil. É perdido. Rico som. Eis duas notas numa. Melro que ouvi no
quais mantêm o controle do poder num dado campo social. vale dos pilriteiros. Tomando os meus motivos ele os entrelaçava e
Eis a distinção platônica, diga-se julgamento moral, entre os aprimorava. Eco. Quão doce a resposta. Como não é feito? Tudo
verdadeiros pretendentes ou a boa cópia dos falsos pretendentes é perdido agora. Plangente ele assoviava. Queda, entrega, perda.
ou simulacro, onde tudo o que não confere com o Original, // James Joyce. Mesmo processo que faz essências se atualizarem
que não tem semelhança com o Original ou Identidade, com no corpo e se expressarem na linguagem. Acontecimento que
a Lei, representante do Bem, é um erro, o simulacro como pode ser bom, uma ativação mútua, uma fusão simbiótica
um vagabundear erraticamente, ora se não é exatamente por potencializadora da vida que constitui um foco de criação, um
aqui que os pensadores da diferença vão entrar e reverter o agenciamento, CsO. Mas também pode ser um mau encontro
platonismo, seguindo uma linha errática, fora da lei! Questão que sobrecodifica nossa potência de agir, capturando-a e
moral e política. A moral como algo negativo, porque esta desviando-a para algo externo a nós, servindo a uma finalidade,
impõe à vida um valor e um sentido inferiores, calcados na como o trabalho útil e a produção de mais-valia no Capitalismo,
ficção de um bem supremo que está além da vida, portanto é colocando nossa potência a serviço dos dispositivos de poder,
uma depreciação da vida. Então não se pensa em termos nem separando-nos da possibilidade de produzir novas intensidades,
de um bem nem de um mal absolutos, isto é moralizar, nem de afetando o modo de ver e de sentir. Diz-se do agenciamento
coisas boas e más, a priori, é sempre numa mistura que algo uma conjugação, onde há uma continuidade intensiva entre
se torna bom ou não. Só há boas e más misturas, e sempre do elementos heterogêneos, o que ocorre entre fluxos, entre
ponto de vista dos corpos que se misturam e não de uma lei elementos de diferentes séries. Agenciamento Hitchcock:
transcendente. É sempre uma questão de encontro. Cada vez plano da realização de uma imagem mental, desenrolar de uma
que fazemos um encontro, algo em nós faz eco com algo naquilo mentira que logo expõe as relações em que um personagem
que encontramos e produz um acontecimento, o lindo relato não é exatamente o que parece, sendo que é as duas coisas
de Olivier Messiaen de um pássaro cantando no crepúsculo, ao mesmo tempo. Encontro Philip Glass e a música: tensões
sensações de extasiamento do pássaro diante da beleza de cores, dissonantes e fortes contrastes de uma repetição à exaustão,
luzes, sons, cheiros, uma contratação de essências por uma linha de vento e de água que flui em rodeios e nunca acaba de
subjetividade e expressada pelo canto, forças do pássaro que se se concluir. Devir molecular. Romeu e Julieta, quando Carmelo
encontram com fenômenos da natureza, não tendo nenhuma Bene fez a experiência de subtrair Romeu desse agenciamento,
função orgânica específica nem individual, é uma força estética tudo mudou, não é mais a mesma Julieta, não é possível que
pura. Uma baixa nota incipiente doce duende murmurava tudo. seja, pois só se existe e se efetua nas relações em que entra,

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portanto não são os contornos, as formas que proporcionam o variável. O tempo é uma criança que brinca, movendo as pedras
entendimento de uma natureza, mas as relações entre forças. do jogo para lá e para cá. A raiz tem história e uma evolução que
Esqueçamos as coisas, só consideremos as relações. // Braque. Por implicam em transições, etapas, enquanto em termos de rizoma
isso que se diz que o agenciamento é a unidade real mínima – e, há um salto qualitativo, não havendo um semi-humano por
por mais que se divida um corpo, sempre haverá pelo menos exemplo, o que há é uma mudança de natureza, em que num
duas partes, nunca se chegará a uma unidade primordial, são certo momento torna-se humano. Ou como Adorno refere-se
sempre multiplicidades. O ovo já é um composto intensivo. à modernidade: A modernidade é uma categoria qualitativa, não
Estabelecer alianças é diferente de proceder por filiação. cronológica. Na raiz, há sempre uma instância central, por isso
Enquanto a filiação se dá necessariamente de maneira linear o poder é sempre arborescente com seus tribunais, manifestos e
segmentária, seguindo uma ordem contínua, progressiva/ julgamentos – também se encontra este tipo de organização nos
regressiva, ascendente/descendente, a aliança nunca se conclui, movimentos artísticos: Artaud, excomungado do Surrealismo
vai acontecendo de modo sinuoso, horizontal, descontínuo, por Breton; Lúcio Cardoso, excomungado do Modernismo
sempre mudando de direção e fazendo conexões diversas. E por Mário de Andrade - com um eixo de rotação que organiza
tudo é feito com estas duas linhas: arborescente e rizomática, círculos concêntricos, transmissão hierárquica de comandos.
pois em todo estrato, em todo meio codificado, há infiltrações No entanto, há sempre processos rizomáticos entremeando
rizomáticas e em todo movimento nômade acentrado podem estruturas binárias, linhas de fuga que as atravessam e se
surgir ramificações com pontos de centralização. Caosmo. Há ligam a outras, compondo misturas inusitadas de elementos
um desenvolvimento radicular determinista, onde existe uma heterogêneos, transexualidades por exemplo, que não podem
certa previsibilidade, com um ponto de origem em que uma ser classificados em espécies e gêneros. A prática rizomática
coisa leva à outra, trajetória de um ponto no espaço, numa aproxima-se do conceito de tática, expandido a partir do
relação de causa e efeito, movimento designado por um tempo modelo militar por Michel de Certeau, como um conjunto
periódico, e tempo decorrente do movimento. Simultaneamente de atividades que buscam escapar ao controle dos poderes
há uma dinâmica rizomática que tem os encontros, o acaso constituídos, centralizados hierarquicamente que, por sua vez,
dos encontros, as conexões como força operante do real cujas utilizam métodos estratégicos inflexíveis de ação, com o intuito
implicações entre seus elementos são aleatórias e não previsíveis, de perpetuar-se no comando por meio de seus dispositivos,
numa evolução desequilibrada e aperiódica, e seu estado futuro produtos e discursos que sistematizam todo um modo de viver
depende de micromudanças que vão se dando no presente por e de pensar num campo social dicotomizante, que só sabe
meio de repetições que acontecem ao longo do tempo, em que dividir tudo em dois, homem-mulher, tantas vezes imprimindo
se pode até reconhecer um certo padrão, no entanto sempre um maniqueísmo paralisante. Na tática, ao contrário, há uma

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agilidade e flexibilidade de ações improvisadas diante de permanece absolutamente em aberto, não sendo possível de
situações, tanto corriqueiras como inesperadas, não há desejo antemão prever nem o encontro, é um acaso, nem o desenrolar
de poder, de dominar, nem de conquistar ou de vencer algo, da conexão, no mais improvável, o devir é sempre uma
apenas o de jogar, um devir revolucionário, daí a camuflagem e surpresa, mas uma vez que é colocado em movimento, torna-se
a infiltração pelos desvãos, pelas fissuras do sistema, para fazer necessidade. Bloco intensivo. Que o devir funcione sempre a dois,
passar um fluxo, uma intensidade de qualquer natureza, por que aquilo em que nos tornamos entra num devir tanto quanto
isso a tática pode ocorrer com um só indivíduo ou por pequenos aquele que se torna, é isso que faz um bloco, essencialmente móvel,
grupos temporários, máquina de guerra do tipo do TAZ (zona jamais em equilíbrio. // Deleuze e Guattari. Pensar a arte como jogo
autônoma temporária) que funciona semeando aqui e ali ações se instala nesta abertura, neste cruzamento de séries. É sempre
relâmpagos; podemos ver atualmente a proliferação de grupos de multiplicidades que se trata cuja relação se dá por um E,
de artistas que fazem intervenções urbanas de todo gênero, por uma série de operações de soma ou de subtração. Brotar
como o poético Grupo Poro, ou ações de pixadores e grafiteiros Entre.
(enquanto não são institucionalizados, absorvidos pela máquina E é nesse sentido que é preciso fazer passar com mais
capitalista), realizando movimentos de investida, maneira força um corpo poético-rizomático entre o corpo orgânico-
de resistir a uma determinada situação de constrangimento, raiz, para fazer circularem intensidades que nos permitam
resistência muitas vezes invisível que, embora não seja o sair do organismo, quebrar o esquema sensório-motor, nos
objetivo, pode acabar por corroer tudo. Revolução Molecular. O desumanizarmos para poder devir outra coisa, entrar em
artista é essencialmente tático, o modo de produção da arte é outras vibrações, na fissura, o que, de forma alguma, significa
predominantemente tático. Naturalmente sempre haverá uma destruir o corpo orgânico, isso significaria a morte, é sempre
função-autor, artista capturado pelas estratégias dos agentes do sobre ele que fazemos passar outros fluxos. Não é uma questão
poder, tornado celebridade, mas também existem as funções- meramente contraditória, mas do aspecto paradoxal da própria
criadoras involutivas, que são sempre rizomáticas, linhas de natureza. Transfigurar-se é pensar em cada momento na essência
diferentes domínios que se encontram, promovendo ecos central da pureza da santidade, a respiração faz o resto, ou seja,
umas nas outras, livres de qualquer centro, sem princípio e expande pelo corpo uma nova vida que entra por cada átomo em
fim, sempre no meio, não evoluem nem regridem, criadoras de separado e reage cada partícula infinitesimal passando do corpo
simulacros, cópias sem original. Manual da ciência popular de ordinário a um corpo transfigurado. // Yves Klein. Corpo poético
Waltercio Caldas. Enfim, é possível seguir o desenvolvimento ou corpo transfigurado ou CsO. Plano das forças constituintes
numa série dada, onde até certo ponto dá para fazer previsões e não forma exterior, não se trata das partes extensas de um
probabilísticas, mas o encontro entre duas séries distintas corpo. Há uma linha abstrata de vida que não se confunde

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com a orgânica, é o que faz passar o corpo intenso, que não nos constitui como um ENTRE-DOIS, estamos sempre prestes
tem extensão ou estratificação como no organismo, e sim a passar de uma percepção para outra. Então, para não ficarmos
uma dinâmica de limiares energéticos instáveis que produzem aprisionados na consciência, no senso comum, angustiados
variações intensivas por todo corpo e por uma cinemática com as banalidades cotidianas, em vez de prolongarmos a
dos movimentos, das passagens. Plano dos afetos. Há um percepção em movimento, temos de fazer um esforço para
esforço cotidiano em recriá-lo, está-se sempre num processo nos voltarmos para o intervalo, nos dobrarmos sobre a fissura,
de produção, pois é uma maneira de desfazer a primazia das interrompendo a sequência do esquema sensório-motor,
relações do organismo, com suas estratégias de sobrevivência, forçamos o pensamento a encontrar o virtual, o Caos, o
forças reativas, sempre clamando por mais descanso e mais infinito. Somente assim podemos tornar o pensamento mais
alimentos e mais prazeres, e entrar em diferentes vibrações, potente, e a arte é um meio para nos fazer sair do plano do
penetrar no Caos infinito e infinitesimal, na linha abstrata do reconhecimento, sair da percepção consciente, das forças
tempo puro das essências. Somente o desejo pode construir reativas, do hábito e fazer outras conexões, entrar em outras
um plano de consistência e o povoar de agenciamentos, bem vibrações, nas micropercepções do molecular que constitui
longe se está de um ideal transcendente que viria preencher os corpos, Grande Onda de Kanagawa, ou Celacanto Provoca
um vazio, satisfazer uma falta, conduzido por ideal que nunca Maremoto de Adriana Varejão. Ao lermos a obra-prima nova de
se concretiza, que se perde antes mesmo de ser alcançado. um homem de gênio, é com prazer que encontramos nela todas
Não é com a inteligência ou com a consciência, muito menos aquelas nossas reflexões que tínhamos desprezado, alegrias,
com a imaginação, nem com os sentidos que se faz isso, e sim tristezas que havíamos reprimido, todo um mundo de sentimentos
num processo de desterritorialização de renovação constante desdenhados por nós e cujo valor o livro onde o reconhecemos nos
de CsO que podemos atingir outras intensidades, somente assinala subitamente. // Marcel Proust.
quando o pensamento se defronta com o Caos, se volta para Assim, é preciso nos prepararmos para produzir nós
a fissura, pode tocar o infinito. Cada indivíduo está povoado mesmos uma intensidade própria, sempre em conexão com o
de micropercepções, quer dizer, torvelinhos infindos de fora, campo das relações, dos encontros, a cada vez é preciso
movimentos moleculares, rizomáticos, microacontecimentos selecionar os procedimentos necessários para inventar um tipo
que estão ocorrendo em nós, no universo, que não estão na de corpo poético e entrar em diferentes devires, animal, vegetal,
zona de nossa percepção, pois antes é preciso que tenhamos mineral, cósmico, tanto quanto manter uma constante busca e
um conjunto delas para que algo suba à nossa consciência e esforço para povoá-lo, para fazer algo passar nele, uma energia,
então o percebamos, o reconheçamos. As micropercepções em fazê-lo funcionar, constituindo a cada vez novas maneiras
fazem com que haja uma constante inquietude em nós, que de ser, acontecimentos, metamorfoses. Campo do desejo. Por

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isso, sempre se corre o risco de esvaziá-lo ao invés de preenchê- Só se encontra alguém de fato, quando se encontra com esse
lo, podem ocorrer pontos de bloqueios, fazendo-se necessário conjunto de coisas que o constituem. Somos aquilo tudo com
identificá-los, pois o corpo é feito de partes que se comunicam, o qual nos conjugamos, bloco móvel sempre em mutação, a
e entre elas há mecanismos de abertura e fechamento que cada vez que fazemos um novo encontro, que deixamos algo
possibilitam a passagem de fluxos ou sua retenção, estagnação, para trás, já somos outra coisa, diferente do que éramos até
o que pode achatar o desejo, criando ocos, fazendo com que então. Alguma coisa se passou. Há toda uma dinâmica do
necessite do exterior para preenchê-lo (falta, princípio do ser, que é um plano sobre o qual vivemos, experimentamos,
prazer, a busca doentia do inatingível ideal transcendente). O sobre o qual povoamos com as combinações dos encontros
CsO não é um suporte onde algo acontece, não é um lugar, é uma que fazemos, com estas linhas, tendências, das quais umas
intensidade que faz passar intensidades, é uma constituição de proliferam e outras desaparecem, sempre em devires diversos.
forças, é um funcionamento. Está-se sempre num processo de Viver entre, no meio, a essência das coisas está no meio, não no
diferenciação, onde a forma é sempre um estado de equilíbrio início, é justamente não ter definição, forma fixa, delimitação, é
precário, e no entanto, em termos moleculares isto nunca manter-se enquanto um nevoeiro onde não é possível distinguir
acontece, pois há um movimento incessante de partículas que a figura do fundo, mesmo porque estas noções perdem todo
entram em conjugações diferentes, constituindo modificações. sentido, já que tudo se mistura neste fundo que são puras
Eis o que Foucault chama de atual, que não consiste simplesmente forças que vêm à superfície. Mistura de corpos pelos efeitos
em caracterizar o que somos, senão em seguir as linhas atuais de incorporais, pelo acontecimento que sobrevoa os corpos e os
fragilidade, para chegar a captar o que é, e como o que é poderia nublam e confundem entre si, mesmo porque é para o molecular
deixar de ser o que é. Diferente de pensar por características que estamos apontando. Micropercepções. INFRAMINCE.
pessoais fixas, encarceradas numa personalidade idêntica a si Esta expressão de Marcel Duchamp surgiu a partir de 1914,
mesma que não corresponde à dinâmica da variação constante, assinalada mais tarde em notas escritas por ele, onde registrou
dessas linhas atuais de fragilidade que fazem com que sempre 46 exemplos; refere-se aos acontecimentos mínimos que são o
se deixe de ser algo para se tornar outra coisa, daí o lamento estofo do cotidiano, da vida como acontecimento incorporal,
daqueles que querer paralisar o movimento: ah, você não é mais por isso envolve todos os sentidos, pois esse limiar infinitesimal
a mesma pessoa! Dessa forma, o que faz com que alguém se só pode ser captado como micropercepções, se dá na abertura
torne o que é, é um conjunto de sons, gestos, olhares, ideias, entre os corpos, nos intervalos onde se dá o acontecimento.
tendências, multiplicidades de elementos heterogêneos, se Matéria da arte. Matéria do pensamento. Dentre sua extensa
há uma unidade, e há sempre uma força de coesão, é a que lista, alguns exemplos esparsos de INFRAMINCE, , mantendo
mantém isto tudo junto por um certo tempo, força do estilo. a forma como foram anotados por ele:

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O possível é / um infra mince - / A possibilidade de vários / tubos de arrancando do fundo obscuro uma singularidade. Por assim,
tinta/ se tornar um Seurat é / “a explicação” prática / do possível tudo se dá nessa fissura, nessa abertura do ENTRE-DOIS, há
como infra / mince uma tendência do conjunto de fazer bifurcações e encontros
A implicação do possível / ao chegar a ser - a passagem de / um com o fora, com outros domínios, promovendo alianças que
para outro lugar / no infra mince. desencadeiam desterritorializações. A produção é imanente
alegoria sobre o “esquecimento” (nota 1) ao desejo, e o processo de individuação é essa permanente
“projetor de sombras” / sociedade anônima dos projetores / de produção de si, uma autopoiese que se prolonga ao longo
sombra / representados por todas / as fontes de luz / (sol, lua, da vida, uma potencialidade de metamorfoses e modulação
estrelas, velas, fogo -) acidentalmente : / diferentes aspectos / contínua, sob uma cinemática dos movimentos de dobradura,
da reciprocidade - associação / fogo- luz / luz negra / fogo sem em que se estabelecem dinâmicas entre meios diferentes,
fumaça = certas / fontes de luz os projetores de sombra / trabalham relação indivíduo-meio, agenciamento, que mantêm uma
no infra mince (nota 3) tensão constante entre operações que geram saltos diferenciais
O calor de um banco (que acaba / de ser deixado) é infra-mince em meio a um estado de estabilidade provisório, constituído
(nota 4) por blocos de devires, pela contemporaneidade de todas as
Calças de veludo cotelê - / seu suave barulho (ao andar) pelo / idades, de todos os tempos. Esse vivo, que é simultaneamente
roçar das duas pernas é uma/ separação inframince indicada / mais e menos que a unidade, comporta uma problemática mais
pelo som. (não é? um som inframince (extrato da nota 9) vasta que seu próprio ser. // Simondon.
Quando o fumo do tabaco cheira também a / boca que o exala, os Portanto, a taxionomia de espécie e gênero não pode
2 odores / se casam por infra mince (infra mince / olfativo) (verso da entender esse processo de individuação que nunca acaba,
nota 11) que está sempre em vias de se tornar outra coisa, pois seus
A diferença / (dimensional) entre objetos feitos em / série [tirado operadores não podem alcançá-lo em sua singularidade, como
do/ mesmo molde] / é um infra mince / quando a máxima / (?) / uma realidade pré-individual que é, podem apenas entender
Precisão é / obtido (nota 18) o indivíduo de modo formal, com suas funções orgânicas, a
Carícias / infra minces (nota 28) partir de seus caracteres físicos e psicológicos individuais
Cada um pode fazer sua própria lista. Portanto, o representados pelo conceito como generalidade, conceito de
INFRAMINCE é um ENTRE-DOIS do contato, jogo diáfano homem por exemplo. De onde se conclui que os saberes, a física
das relações entre forças, dos encontros de corpos, com suas empírica e a lógica racional não podem atingir esse processo de
qualidades, ações e paixões, forças que como vimos, se afetam diferenciação, a abordagem universalista toma a matéria como
e são afetadas umas pelas outras, produzindo acontecimentos, passiva e indistinta e por isto apta a ser moldada pela forma a

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qual seria ativa e dinâmica, moldando o indivíduo finalizado, de forças, perpétuo jogo do universo de criar e de destruir,
métrico e definido, seja vivo ou não, molde permanente puro como uma criança que constrói castelos de areia junto
submetendo a matéria a uma forma estável. Já um pensamento ao mar, movimento antagônico do devir que percorre a vida
intuitivo, por outro lado, nos permite pensar esse processo de e a renova a cada dia, conservando sempre um frescor, sem
diferenciação por qual se constitui o vivo, ou melhor, a linha imprimir nenhum julgamento ou rancor, para além do bem e do
abstrata pré-individual, o lado de fora de todo e qualquer mal (a culpa é sempre dos deuses), ou supor uma finalidade
diagrama. prévia, uma predestinação, se há alguma é o devir artista, pois
A noção de jogo pode ajudar a entender esse estado de a realidade do jogo é seu próprio acontecer, é a linguagem que
modulação contínua, o Ser como perspectiva, e não como se diz por si mesma. Portanto é uma questão ética e estética,
essência eterna no sentido platônico ou a substância, porque não moral, jogar implica em processos de transfiguração,
tudo depende das conexões em que um corpo entra, é o que vontade de superar a si mesmo e ao niilismo. O jogo também
lhe dá um sentido e um valor, o devir como parte intensa do é a afirmação do acaso, como elemento primordial neste
ser, são estes os liames que formam um corpo, sempre mutante, círculo de repetição e diferença, que desfaz qualquer chance
porque dos encontros dos corpos surge um efeito incorporal, de determinismo, sendo a necessidade uma consequência, o
que produz um novo atributo, que não é corpo, mas uma resultado de um lance de dados, de uma certa combinação, e
maneira de ser. É jogando que se torna jogador. Acontecimento, não o inverso. Para Nietzsche, a criação artística, impulso lúdico,
novo atributo. Nietzsche introduziu na filosofia uma dimensão agonístico, carrega duas tendências, dois modos distintos de
do jogo como aspecto cósmico, intenso e transbordante, funcionamento do jogo, o do sonho apolíneo, da forma e da
sendo um importante elo entre sua crítica à tradição filosófica medida, uma arte orgânica, e o da embriaguez dionisíaca, da
e sua maneira estética de pensar a existência. O jogo como dissolução das formas e das individualidades em zonas de
atividade alegre, criadora e livre do homem em sua relação variação contínua, uma arte anorgânica. Portanto, dois tipos
com a natureza, comum ao artista, é um meio poderoso de de individuação, uma individuante, de corpos, Molar e a outra,
desmascarar o despotismo dos conceitos universais e da noção individuação sem sujeito, acontecimento, Molecular. Eis os
de verdade que barram a força vital de se expandir. Daí a vida dois tipos de força que compõem o cosmo e que estão sempre
sob a perspectiva inocente do jogo, e não da moral e da culpa. se entrelaçando, que só se efetuam se entrelaçando. Onde há
A morte não é um castigo, é um fato. // Sêneca. Nietzsche atualizou evolução nisso tudo? Não há. Ritornelo é ritmo repetitivo
dos gregos antigos, notadamente de Heráclito, a ideia de agon que produz a diferença, eis tudo. Isso é o que se passa sobre o
como motor da mudança, afirmação da vida como luta dos plano de imanência: multiplicidades povoam-no, singularidades
opostos que nunca se estabilizam, mantendo-se no diagrama conectam-se, processos ou devenires desenvolvem-se, intensidades

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sobem ou descem. // Deleuze. E só pode haver evolução no avanço mandava em nós. A gente era o que quisesse ser só usando esse
dessas linhas que se movem, passando pelo meio. O ritornelo advérbio. Assim, por exemplo: tem hora que eu sou quando uma
é tanto o que produz um território, agenciamento territorial, árvore e podia apreciar melhor os passarinhos. Ou: tem hora que
quanto o que o desfaz, arrastado numa desterritorialização. A eu sou quando uma pedra. E sendo uma pedra eu posso conviver
obra de arte como uma máquina celibatária, uma máquina não com os lagartos e os musgos. Assim: tem hora eu sou quando um
representativa, não simbólica, sai de um estado de coisas dado rio. E as garças me beijam e me abençoam. // Manoel de Barros
para entrar num devir de estados intensivos. Uma máquina
regida por operadores mecânicos é invariável, tomada por um
cego automatismo, reproduz um movimento para fazer ou
produzir sempre a mesma coisa. O maquínico opera ações de
fluxo-corte, compõe um contínuo em que uma peça se conecta
a outra e põe algo em movimento, funcionando por si própria,
sem propósito, produzindo a cada vez uma diferença. A máquina
artística inventa um plano de composição e ao mesmo tempo
o povoa como campo de imanência do desejo, constituindo
consigo e com os elementos dos quais se apropria, um corpo
poético, CsO. Trata-se de conquistar um estado de intensidade
a que nada falta, extrapolando os limites formais entre sujeito
e objeto, onde não se trata mais de um eu e uma outra coisa ou
um outro, da dicotomia do indivíduo e sociedade, do interior
e do exterior, mas faz uma conexão que cria um maquinismo
entre os elementos que o compõem de tal modo a entrar num
funcionamento independente, zona de intensidade que é
alegre, é o próprio processo de jogar, do fazer que é intenso,
portanto alegre, por mais duro que seja, é a alegria da criação.
Por isso, a subversão é da natureza da arte que está sempre
se desalinhando dos códigos, desterritorializando os meios,
inventando novas armas, bifurcando-se em outras paragens,
produzindo devenires sobre os modos existentes. O quando

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A sombra do armário está na parede
ou a parede está na sombra do armário?

Qual relação entre a política e essa questão? Contra o princípio


de contradição, o bom senso nos indica uma direção única
do tempo, que vai do passado ao futuro, trajetória de um

NÃO CONHEÇO ponto no tempo, possibilitando, por exemplo, fazer previsões


futuras, tendo a flecha do tempo como irreversível e o presente

OUTRO MODO como ponto de referência. Portanto, há uma identidade do


bom senso com as leis da natureza. Também a significação

DE LIDAR COM é inseparável do bom senso. No entanto, é certo que, ao


contrário, um rio também pode estar na beira de uma garça.
GRANDES TAREFAS, // Manoel de Barros O próprio termo indica uma moral: bom,
que se contrapõe implicitamente a algum outro que seria o
SENÃO O JOGO: mau sentido. Portanto, não é qualquer sentido que é válido,
apenas um, o bom. Discurso monológico. E o que designa a
ESTE É, qualidade de bom a esse sentido único pré-definido? Relações

COMO INDÍCIO
de poder. Política: jogo entre as forças constituintes de um
campo social, sempre em embates, aquelas que estão no poder

DE GRANDEZA,
têm o intuito de manter as outras sob seu domínio, para isso
produzem afetos tristes, criando mecanismos para separar

UM PROCESSO
as pessoas de sua potência de vida, subjugando tudo aquilo
que ameace seu domínio, para colocar outras forças a serviço

ESSENCIAL. de seus empreendimentos. Questão moral e política. O bom


senso é a afirmação de que, em todas as coisas, há um sentido
determinável; mas o paradoxo é a afirmação dos dois sentidos ao
NIETZSCHE mesmo tempo. // Deleuze. Então, busquemos outros sentidos, não
o do bom senso, e sim o do paradoxo do devir. A polifonia é
um caminho. Bakhtin criou o conceito dialógico para pensar

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a obra de Dostoiévski a qual, segundo ele, traz um novo tipo multiplicidades. Não existe verdade universal na arte. Na arte,
de fissura da palavra que mantém em aberto a possibilidade a verdade é aquilo cujo contrário é igualmente verdadeiro. // Oscar
de diferenciação constante no conjunto da rede de vozes de Wilde. Uma palavra-valise mantém esse jogo fluido da linguagem com
seus romances, constituindo uma obra de autêntica polifonia de um humor lúdico, pois ela é uma palavra que porta outras palavras,
vozes plenivalentes, diferentemente dos discursos monológicos um envelope; Lewis Carroll diz ser uma palavra com dois sentidos
políticos, tecnocratas e religiosos, produtores de um saber simultâneos. Um grau de intensidade que atravessa conjuntos de
único que se impõe autoritariamente. O mesmo acontece com multiplicidades colocados em relação. Ela é montada pela aglutinação
a função-autor, sempre partindo de um ponto de origem, sendo de fragmentos de palavras constituindo um neologismo que, no
um sujeito de enunciação representante de uma classe, o que entanto, não é apenas o resultado de uma soma, e sim uma dobra
é bem diferente das funções-criadoras como agenciamentos de uma palavra na outra, fazendo com que haja uma conjugação
coletivos de enunciação, pois estas dizem respeito a populações de sentidos, um agrupamento de coisas diferentes que pertencem a
que povoam uma obra a qual já não pertence a ninguém séries heterogêneas, por exemplo uma que se refere a uma conexão
em particular, pois se constitui como uma zona comum de entre duas coisas e outra que expressa um sentido incorporal, em
acontecimentos de toda sorte. Que importa quem fala? // Beckett que a distinção entre elas é mantida, na realidade inclui as duas,
É o que se percebe nas vozes na polifonia literária, como na produzindo uma reduplicação e um rizoma dos sentidos originais
música, ganham autonomia e multiplicidade, cada personagem das coisas associadas que ficam ecoando, portanto, sem as nivelar,
carrega em si uma multidão, mônada que contém o infinito, sem produzir uma síntese dialética que superaria a diferença entre
cada um tem em si várias vozes num cruzamento de domínios, os termos. Já na palavra-valise há uma síntese disjuntiva que reforça
como por exemplo um movimento musical dando um ritmo a diferença, subtraindo-lhe qualquer contorno definido, abalando
a uma narrativa literária. Só há intermezzo, intermezzi, como a lógica identitária e dualista que percorre também a gramática,
focos de criação. Cada personagem não é tratado isoladamente, elegendo assim o paradoxo, como é notável na palavra-valise Caosmo
a sua independência se dá no movimento da interação com de James Joyce. Era brilhuz. As lesmolisas touvas/Roldavam e relviam
outros personagens, somente existe na rede que constitui e nosgramilvos / Estavam mimsicais as pintalouvas / e os momirratos
o constitui simultaneamente. Assim, o dialogismo da palavra davam grilvos.// Carroll. Daí se pode dizer que a linguagem tem duas
ocorre na contraposição entre personagens, em que cada um dimensões: uma, designando os limites, as paradas e repousos com
pode se destacar numa tal relação e quase desaparecer numa os substantivos e adjetivos que constituem as identidades apolíneas;
outra. Há sempre um confronto entre as palavras, literatura e uma outra, que restitui o infinito, o verbo o qual se bifurca em
agonística, um incessante jogo barroco de luz e sombra em presente, relacionado a um estado de coisas (agenciamento), ao
seus romances. É um jogo flexível entre contraposições e tempo sucessivo, e em infinitivo do acontecimento e do sentido que

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libera o devir ilimitado dionisíaco, o tempo que corre para dois lados um espaço próprio (tabuleiro, quadra, mesa), podendo ser jogado
simultaneamente, passado e futuro. Não há bom senso, apenas jogo novamente a qualquer momento. É marcado principalmente por
dos paradoxos. elementos de repetição e de ordem, com suas regras próprias e
A noção de jogo como entendemos, segundo Huizinga, é algo preexistentes, dividindo-se em jogadas fixas que determinam um
bem recente historicamente, havendo uma grande variação de termos resultado ou outro, mas também comporta o acaso, com elementos
e práticas conforme a cultura abordada. Mas, de forma geral, o jogo de alternância e de desvios que se abrem a uma multiplicidade de
sempre teve um lugar importante nas sociedades humanas, sejam elas combinações e de destinos. As práticas de jogos não estão ligadas
quais forem, e mesmo entre os animais. Segundo perspectivas diversas, diretamente à manutenção da sobrevivência, embora tenham uma
o jogo pode ter diferentes objetivos, seja biológico, psicológico ou contrapartida nela, há uma nítida supressão da vida cotidiana, mas
social, tendo modelos implícitos, moral e econômico por exemplo. mesmo assim ou, exatamente por isto, o jogo é bem real em seu faz de
Pode funcionar como descarga de energia vital ou de impulsos conta, há uma incorporação de seus pressupostos pelos participantes
negativos, restaurador de energia e meio de relaxamento, de distração que se propõem a lutar fielmente em suas prerrogativas. Os jogadores
e de divertimento, modo de exercitar o autocontrole e desenvolver estabelecem uma relação interior ao jogo. Assim, o jogo produz em
aptidões físicas e um sentimento de competitividade, preparar e nós efeitos bem concretos, é uma experiência real que exerce um
educar os jovens para futuras funções sociais e culturais. Em todas fascínio com seu ritmo e harmonia, e a incerteza e o imprevisto que
essas definições, o jogo está sendo pensado como se tivesse um objeto marcam sua natureza criam um alto grau de tensão, em virtude da
e uma finalidade, porém, além de considerar esses aspectos exteriores luta que se estabelece para conquistar algo, não simbolicamente,
que se constituem como seus modelos, é necessário pensar o jogo esta coisa tão frouxa circunscrita num encadeamento infinito
em sua potência e força subjacentes, como vimos com Nietzsche, o de significâncias vazias, em que um signo remete a outro, e sim
jogo agonístico que percorre a natureza, força operativa do real, com sensivelmente, pois transporta os participantes para fora da vida
a alegria, a graça e a tensão que o acompanham. Huizinga afirma que comum, para zonas de intensidade, de arrebatamento. Também a
reconhecer o jogo é, forçosamente, reconhecer o espírito, pois o jogo, seja arte contemporânea é uma mistura de um método rigoroso e de uma
qual for sua essência, não é material, e deste modo, vai além da repetição experiência lúdica, com sua multiplicidade combinatória criadora de
mecânica e determinista do cotidiano, abrindo a vida para o acaso e a bifurcações, aberta ao acaso, num jogo móvel e mutante de criação
novidade. Sua invenção está ligada à da linguagem, expressividade, ao e de experimentação, cujas regras mudam a cada jogada, são criadas
dar expressão à vida, o homem cria um outro mundo, um mundo poético, a cada lance, exatamente por ser constituído por multiplicidades
ao lado do da natureza. O jogo, uma atividade espontânea cujas regras de peças heterogêneas que se combinam de modos variados, não
são reconhecidas e aceitas pelos participantes, tem uma duração sendo possível determinar o que vão ser no momento seguinte. Devir
(movimento, mudança, alternância, sucessão, associação, separação) e louco. Jogo de croqué em Alice no país das maravilhas. A principal

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dificuldade que Alice encontrou no início foi como segurar seu flamingo: sentidos. Novas composições singulares. No início do século XX,
ela poderia manter o corpo dele sob seu braço com razoável conforto, grupos modernistas como os cubistas, os futuristas, os surrealistas
com as pernas da ave penduradas. Mas, geralmente quando conseguia e, principalmente os dadaístas, com a invenção da fotomontagem
esticar o pescoço do flamingo e ia fazê-lo chutar o ouriço com a cabeça, e assemblagens, passaram a incorporar às suas obras elementos
ele virava-se e olhava para Alice com uma expressão tão confusa que ela estranhos à tradição da história da arte. A imagem achada na esteira do
não conseguia parar de rir. Depois, quando desvirava a cabeça dele e se objeto achado (do francês object trouvé, termo cunhado por Duchamp,
preparava para começar tudo de novo, era irritante perceber que o ouriço o mesmo que ready-made), DESOBJETO, foi uma forma de desfazer
tinha se desenroscado e fugia. Além disso, sempre havia uma saliência ou uma pretensa verdade e obviedade icônica, por meio de abalos
sulco no caminho em que ela queria mandar o ouriço e os soldados-arcos dos sentidos, desmontando e remontando de outra maneira novas
estavam sempre se levantando e mudando de lugar. Alice logo chegou à composições singulares, usando materiais de diversas procedências e
conclusão que aquele era realmente um jogo muito difícil. // Carroll fragmentos de imagens e textos recortados de revistas, jornais, livros,
Estamos sempre começando pelo meio. Novas composições são embalagens de produtos industrializados, qualquer coisa poderia se
criadas a partir de processos de repetição e de variação. Quando tornar um material a ser utilizado, para enfatizar o caráter construtivo
Cézanne pintava, estava traçando um trajeto singular, no entanto, não da imagem e as relações políticas encobertas pela objetividade de
deixava de trazer para suas telas tonalidades românticas, luminosidades um certo tipo documental de fotografia e de texto. Também ao
impressionistas. Assim, Erik Satie na música, transgredindo as fundirem imagem e texto, criaram um espaço heterogêneo, onde
formas para ganhar uma nova fluidez e simplicidade, com a repetição coabitam vários pontos de vista e temporalidades, traçando assim
de traços mínimos e uma concisão, sem desenvolvimento de uma descontinuidade no espaço e uma simultaneidade no tempo.
temas, os traços são seus temas, como o pontilhismo na pintura, ao Uma lógica não linear de fragmentos de textos que também são
mesmo tempo em que investe num certo lirismo de reminiscência imagens e de imagens entrecortadas que levam o olhar a deslizar
popular e de elementos medievais que o inspiravam. Aqui, ali algo ao acaso, fazendo uma montagem de sentidos entre tais imagens
roubado de outras obras e de outras coisas, peças que entram em desconexas. Sentido que opera pela aglutinação ou justaposição
outras composições. Nesse sentido, a arte contemporânea com seus de imagens, palavras e ideias. Eis que a fotografia e o texto deixam
procedimentos de pesquisar, selecionar, acumular, juntar, colar, cut de ser linguagem expressiva e tornam-se objetos manipuláveis e
up, pick up, acirrou essa prática, ao mesmo tempo em que colocou recortáveis, combinações de estado de coisas que efetuam um novo
a produção artística num outro plano, ao girar alucinadamente em acontecimento. Dessa forma, eles colocaram em evidência o intervalo,
torno de todo o repertório da arte de todos os tempos e da cultura trazendo tudo para a superfície sem profundidade do acontecimento,
em geral, sua matéria-prima para roubar, muitas vezes partes ampliando por sua vez o modo de produção artístico, introduzindo
inteiras, entrelaçando-as numa outra obra, e dando a tudo novos uma certa espontaneidade e o acaso. Assim, ao longo do século XX,

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foi promovida uma expansão da natureza da matéria e dos materiais pondo à vista um mundo dominado pelos símbolos, como peça
utilizados na produção de uma obra de arte, e o artista, colecionador importante nessa máquina de consumo. De certa forma se dá
de objetos, de imagens e, principalmente, de ideias, produz trabalhos, o mesmo com as bandeiras (símbolo nacional) e os alvos, são
no mais das vezes de natureza mista, que tanto pode ser ready-made, objetos ou pinturas? Ao mesmo tempo, são experimentações de
quanto hand-made (feito à mão) ou um entrelaçamento dos dois, em técnicas e puros estudos pictóricos: contraste de cor, disposição de
que as ideias, ações, prescrições, instruções, programas, podem ser linhas, composição geométrica. Um jogo entre pintura, fotografia e
eles mesmos a matéria da obra ou a própria obra. impressão gráfica foi explorado, Lichtenstein com suas reproduções
A inquietação artística não se acomoda nunca, por mais longe que falsas de histórias em quadrinhos sobre telas, pois fazia significativas
se vá, nunca se atinge um limite, um esgotamento, há sempre uma alterações nos pontos que formam as imagens, num jogo entre o
pressão sobre as fronteiras, o artista está sempre produzindo novas pictórico e o impresso. Assim, Gerhard Richter com sua pintura
dobras, criando novas vias, problematizando a produção e o mundo. fotográfica borrada, desfocada, richterizada, quer tensionar a relação
Com a intensificação do uso da imagem pelos meios de comunicação entre a figura e o abstrato, manter-se no meio, realçando assim a
em massa, a partir do final da segunda guerra, toda uma geração ambiguidade entre o visível e o invisível, os contrastes do jogo das
de artistas cresceu em meio a imagens de todo tipo, fotográfica, forças em luta, captar a vida em sua precariedade, a passagem entre
cinematográfica, videográfica, televisiva, impressa, a chamada a formação e a dissolução das coisas, por isso se posiciona no limite
picture generation, tendo em comum a característica de serem frutos entre o pictórico e o fotográfico. Chuck Close segue por outros
da reprodutibilidade técnica. Daí uma série de experimentos têm caminhos, conferindo um hiper-realismo à pintura que se quer
sido feitos desde então, investigando a natureza de tais imagens, mais fotográfica que a própria fotografia, ao interferir na natureza
fazendo-se apropriações e entrelaçamentos entre elas. Jasper Johns, imagética dos dois meios, selecionando algumas linhas da imagem
jogando com as noções de ready-made e hand-made, invertendo os fotográfica, podendo ainda incorporar elementos enigmáticos, daí a
sentidos e desafiando os valores clássicos estabelecidos de material pintura não ser uma simples cópia da fotografia, mas uma máquina
nobre (bronze) e forma de apresentação (pedestal), simulou um de somar e subtrair, colocando tudo em proporções inusitadas:
ready-made, fundindo em bronze latas de cerveja ballantine, dimensão, cor, brilho, nitidez absolutamente irreais. Nessa linha
colocando-as sobre uma base, como uma escultura clássica, pondo de trabalho, também a pintura de Fábio Magalhães é marcada por
em evidência a ambiguidade agônica que perpassa a atividade diferentes procedimentos: inicia com a construção de um estado de
artística, confundindo o objeto industrializado e a escultura, numa coisas, produção de simulacros, realizando fragmentações do próprio
apropriação não somente da imagem, mas da marca registrada, eis corpo, muitas vezes uma torção às avessas. Em seguida, faz um
a natureza morta da contemporaneidade. Latas de sopa Campbell, registro fotográfico para então a imagem se efetuar no meio pictórico,
garrafas verdes de Coca-Cola, o díptico de Marilyn de Andy Warhol, dando o efeito de uma espécie de still pictórico, uma imagem com

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um máximo de definição, característica típica do meio fotográfico, o artes visuais, a música, o teatro, a dança, num amálgama intensivo
que acentua a força ambígua de seu trabalho. Tem por desejo criar, que é a instalação, a performance, as ações, ideias e objetos os mais
não um mimetismo de uma suposta realidade, mas incômodas e variados num campo de jogos de linguagens, como convergência de
indefinidas realidades orgânico-sintéticas que jazem num ambiente fluxos de séries diferentes, convertendo as obras, muitas vezes, em
angustiantemente estéril, mais insólitas ainda se tornam com a processos de movimentos, ações, ideias. Uma arte multissensorial.
dimensão hiper-realista que o artista confere à finalização do trabalho. O nevoeiro dá às coisas aspectos maravilhosos. // Oscar Wilde. A outra
Há duas noções bem interessantes liberadas por críticos da modificação ocorrida no modo de produção naquele momento,
chamada arte moderna, que podem nos ajudar a montar alguns afirma Leo Steinberg, foi que também a condição do plano pictórico
pontos de vista desse quadro craquelado da arte contemporânea: a como verticalidade, como plano de projeção, campo ótico, começou a
noção de campo expandido e de produção flatbed. A noção de campo perder seu lugar para um plano horizontal, principalmente por obras
expandido, desenvolvida por Clement Greenberg, está ligada ao como as de Rauschenberg e de Dubuffet, pois não mantinham as
ápice da arte moderna. Refere-se à exploração da especificidade do coordenadas da postura humana ereta, mas debruçavam-se sobre um
meio, mais especificamente ao Expressionismo Abstrato, no tocante plano horizontal, plano de vista aérea, mapa, que Steinberg chamou
à criação de superfícies indefinidas, constituídas por cores, linhas e de flatbed, buscando este termo na prática tipográfica que tem relação
pontos os quais não produzem contornos, nem corpos e portanto, com atividades de manipulação de tipos e de impressão sobre uma
não delimitam um interior e um exterior, compondo uma imagem prancha, o que implica o trabalho sobre uma mesa, onde os elementos
anterior a qualquer forma, fazendo aparecer o próprio infinito; é participantes, de natureza a mais variada, são colocados sobre uma
como se extrapolasse o quadro, pintura aérea, diferentemente do superfície, centro de operações ou máquina de assemblagem, que
enquadramento renascentista que tinha a janela como paradigma. vai recebendo camadas de materiais e compondo algo que não
Nas últimas décadas, essa noção foi ampliada, surgindo termos como pode ser inserido em uma linguagem específica, daí o nome dado a
cinema expandido, fotografia expandida, utilizados para falar de estes trabalhos, no caso pelo próprio Rauschenberg, de Combines, já
trabalhos que não exploram apenas o próprio meio, pelo contrário, que são uma mistura e compõem um campo nômade de produção
que se lançam para o entorno, roubando procedimentos de outros rizomática, não podendo mais ser pensados e experimentados apenas
meios, um extenso processo em que um meio se desterritorializa em como pinturas ou esculturas. São outras as coordenadas, como mostra
outro, como mostra o estudo sobre a escultura feito por Rosalind este comentário de John Cage a respeito da obra de Rauschenberg:
Krauss no que ela chamou escultura no campo ampliado. Então, (…)Isto não é uma composição. É um lugar onde as coisas estão, como
juntamente com essa mistura de linguagens, houve uma expansão que sobre uma mesa ou sobre uma cidade vistos do ar: qualquer uma
do tipo de matéria-prima utilizada pelos artistas, levando à invenção delas poderia ser removida e uma outra vir ocupar sob circunstâncias
de novas expressões artísticas que podem envolver a literatura, as análogas ao do nascimento e à da morte, viagem, arrumação da casa,

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ou bagunça. Portanto, como um jogo, sobre um plano/tabuleiro, como que invólucros, ambos construíam espécies de palavras-
camadas de tinta, emplasto de coisas heterogêneas, peças, tornadas valise de objetos e palavras, onde faziam vibrar juntos elementos
DESOBJETOS colhidas (pick up) nas ruas e amalgamadas num variadíssimos, abrindo frestas que nos permite entrever o infinito.
Combine ou numa assemblagem. Há um malabarismo criando um Daí se afirmar que a arte contemporânea significou uma expansão
vácuo, uma mobilidade entre as peças desse maquinismo, que vai do movimento dialógico próprio da arte, e de procedimentos de
se rearranjando indefinidamente, porque muitas vezes se apresenta intertextualidade que já vinham ocorrendo, e que ganharam uma
ao público de maneira inacabada. Ainda antes disso, entre 1923 e maior intensidade e abrangência, entre diferentes domínios que
1937, o artista dadá Kurt Schwitters construiu uma obra intitulada entraram em processos de desterritorialização de todos os meios,
Merzbau que foi crescendo de tal maneira que abarcou todo o seu um entre-meios, cada um se desterritorializando no outro, com traços
estúdio em Hannover, unindo vários objetos recolhidos por ele, que já não são nem de um nem de outro, duplo roubo ou pick up.
formando o que hoje chamaríamos de instalação e site specific . O Essa é uma noção interessante para entender o funcionamento
termo Merz surgiu de um de seus trabalhos de colagem, em que dessas produções, é um procedimento de seleção, de apanhar ideias,
aparecia o fragmento da palavra comércio em alemão (kom)merz, duplo roubo, de sorteio ou de chance única a cada vez que combina os
que então foi usada brilhantemente por ele, como um conceito para heterogêneos // Deleuze, como a palavra-valise É um ENTRE-DOIS,
expressar o como se dá o processo criativo em arte. Produção Merz é um encontro de ideias, de singularidades, de multiplicidades, não de
um processo que consiste em criar relações por meio de operações de pessoas, encontro de algo que há em um com algo que há no outro,
selecionar, acumular, conectar e transformar materiais com a junção podendo ser absolutamente qualquer coisa que atravesse alguém, um
de coisas variadas, geralmente descartadas como papéis, bilhetes som, gestos, olhares, ideias, tendências, todo um conjunto que faz
de bonde, pedaços de tecido, madeiras toscas, resquícios do mundo com que alguém se torne o que é. Pick up é esse encontro de linhas,
urbano encontrados em lugares quaisquer. Uma anti-estrutura. que então, já não é mais uma nem outra, desse encontro compõe-
Todas estas operações já implicam o plano horizontal - flatbed. É se uma terceira linha que se desenrola independente das que lhe
um processo de imbricação de multiplicidades, avizinhamento de deram origem, mas que só pôde existir, vir à tona, ser constituída
elementos díspares, por isso se diz dobra, pois junta duas pontas, a partir desse encontro, portanto não é uma mera reunião das duas
duas superfícies que estavam em regiões distantes uma da outra cujo linhas, é uma desterritorialização de uma na outra. Agenciamento.
desafio é conseguir alcançar o brilho fugidio de estados momentâneos, Deleuze cita um ótimo exemplo de produção por pick up, diz que
infundir-lhe o mesmo movimento frenético e incessante da vida, este Guattari estava estudando uma noção de astronomia, o buraco
jogo ativo interior à existência. Joseph Cornell e Farnese de Andrade negro que é o que o capta e não deixa mais sair (como escapar de
em tendências que se aproximam, produziram assemblagens em um buraco negro?) Ele próprio andava às voltas com a noção de
caixas, no caso de Farnese tipos diversos de objetos que se tornavam muro branco, tela branca (como limar o muro e fazer uma linha de fuga

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passar?), entenderam que não era questão de apenas juntar estas duas de fotografia. Por exemplo, John Baldessari faz uso de vários meios,
coisas, mas que uma tendia à outra, produzindo uma terceira coisa: agregando palavras, imagens, espaços vazios para formar outros
muro branco-buraco negro que fez surgir o conceito de Rostidade. O sentidos, está sempre colocando a questão o que é arte? e respondendo
esburacado, o estratificado. Uma espécie de função às avessas, pois a com fotografias, vídeos, pinturas, material impresso e esculturas.
rostidade não é resultado da soma ou da justaposição dos dois termos, Jorge Macchi tem desenvolvido trabalhos numa linha conceitual,
e sim algo que se passa entre um e outro, que escapa aos dois termos, fazendo um cruzamento entre a palavra escrita e falada, a música
fazendo com que um desterritorialize o outro, produzindo distintas e a imagem em instalações, como em Música Incidental, na qual
e estranhas germinações: o rosto e suas funções de subjetivação, ele criou um mecanismo rigoroso, mas com lances aleatórios para
comunicação e socialização, somente daí que se pode pensar as fazer transposições da escrita para a imagem, e desta para a música.
linhas de fuga, entender os movimentos de derivação para fora do Lucia M. Loeb monta espécies de puzzles com imagens sucessivas
rosto, a arte por exemplo. Portanto, numa obra contemporânea há de uma mesma coisa, abrangendo vários aspectos dela, ou uma
uma quebra de linearidade interior pela conjugação de elementos mesma imagem repetida, colocada numa relação própria consigo
díspares que de maneira alguma formam uma síntese, mas conjuntos mesma, assim o meio fotográfico torna-se uma matéria para integrar
de blocos heterogêneos, fazendo emergir novas visualidades e outros meios, pois não é apenas a imagem em si propriamente que
sonoridades com diferentes sentidos. O movimento rap na música tem importância, mas também como esta interage com sua própria
por exemplo inventou uma técnica de sampling, de mixagem, prática repetição e com o suporte, daí o livro-objeto expressar por excelência
de apropriação de trechos de músicas fazendo recombinações, este lugar de encontro, coisa a ser manipulada e explorada, folheada,
produzindo uma música plena de fragmentações e descontinuidades, onde acontecem as imagens, em sua maioria apropriadas do álbum
quebrando assim uma esperada linearidade e harmonia, nos deixando de família, que ganham um ritmo singular com sua repetição.
à deriva, sempre numa expectativa de que algo se dê, e que parece Outros artistas, com a vontade de desvencilhar-se do sistema de
sempre estar sendo empurrado para depois, fatores que fizeram com arte, inventaram ações como jogos para, por meio da arte, fazer
que, ainda hoje, uma certa crítica extremamente conservadora e uma intervenção direta no cotidiano das pessoas, com o intuito de
tacanha negasse-lhe o estatuto de arte. intensificar a vida ao fundi-la com a arte. Desejo de ampliar o alcance
Jacques Rancière fala numa mudança de regime da arte, que da arte no combate às forças que enfraquecem a vida, num confronto
então não pode ser repartida em gêneros distintos e hierarquizados direto com as forças mortíferas da máquina capitalista e fascista. É o
com seus grandes temas. Esse acontecimento, esse novo regime da caso de Cildo Meireles que realizou uma série de ações politizadas
arte, tornou ineficientes as classificações tradicionais, incapazes de a partir dos anos 70, como por exemplo, carimbar em notas de um
nomear tais obras híbridas, as quais são tão abrangentes que não é cruzeiro a frase Quem matou Herzog? e Inserções em circuitos ideológicos
possível saber se se trata de literatura ou de música ou de vídeo ou em que escrevia em garrafas retornáveis de Coca-Cola, devolvendo-as à

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circulação. Arte como meio de democratização, daí ter gravado a frase série de atividades de singularização do cotidiano, e seu trabalho de
a reprodução dessa peça é livre e aberta a toda e qualquer pessoa em desconstrução arquitetônica, onde literalmente cortava pedaços de
alguns trabalhos desse período, num embate com a jurisdição dos casas e de prédios condenados, abrindo uma fissura de luz em seus
direitos de propriedade. Paulo Bruscky, também desde os anos 70, é interiores. Rikrit Tiravanija cujo trabalho se situa no fazer, seja lá o
um dos artistas que mais tem contornado as instituições, com uma que for, geralmente propondo situações de vivência para um público,
extensa obra extremamente política e suja, fazendo uso de diversos o mais variado, por não ser apenas o que frequenta exposições. Ações
meios, muitos dos quais não fazem parte da tradição do mundo efêmeras do Grupo Poro de intervenções urbanas, tornando visíveis
da arte, como máquina fotocopiadora, fax e aparelhos de exames de modo sutilmente poético, detalhes que passam despercebidos em
médicos, selos e cartões postais, carimbos, outdoors, anúncios em meio à correria das cidades, colocando em discussão os problemas do
jornal, transmissão radiofônica, intervenções urbanas em que os modo de vida contemporânea.
transeuntes são incorporados no trabalho e, muitas vezes, convocados Expansão de uma Arte Menor, anti-representativa, que faz com que
a montar as peças espalhadas do jogo inventado pelo artista, que vai o comum, quase invisível por ser corriqueiro, torne-se extraordinário,
acontecendo no espaço público. Lygia Clark afirmava que o objeto de micropercepções que sobem, ampliando nossa sensibilidade e,
arte é a própria ação, o que pode ser visto com os desdobramentos simultaneamente, provocando uma instabilidade nessa realidade.
tridimensionais dos estudos topográficos das superfícies, que a INFRAMINCE. Vêm à tona o ruído, o zumbido, o rabisco, o borrado,
levaram a trabalhos de puro fluxo de linhas, como o Caminhando, que o fragmentado, o corte, o esquecido, o ignorado, o ínfimo, toda
consiste em ir recortando uma Fita de Moebius (infinito), ação que o uma população de microexistências, de micromovimentos tornados
público executa. Por fim, as sessões de Massagens que oferecia para sensíveis, abafando as emissões dos poderes e da comunicação.
fazer o corpo vibrar, corpo-ovo pleno de estados larvares intensivos, Fernando Pião, na instalação Atrás da Porta: topologia dos lugares
não seria um processo de produção e intensificação de CsO ? Instruções inacessíveis, instala câmeras de segurança em lugares de pouco ou
de Yoko Ono, telas pintadas com frases sugestivas de ações, em que nenhum acesso, transmitindo a imagem por elas captadas em tempo
o próprio expectador pode realizar. Explorando a metamorfose da real, em monitores colocados no espaço expositivo. Ao desviar as
linha da fala que não para de voltear e se quebrar, a ação Telefone sem câmeras de sua função, destaca acontecimentos dos interstícios,
fio de um grupo de sete artistas brasileiros, realizada e registrada em voltando nossa atenção para o inesperado, microacontecimentos,
vídeo, simulava o jogo onde uma frase inicial inventada pelo primeiro evidenciando paisagens inabituais, estranhas. Quase uma anti-
participante e, passada de ouvido em ouvido, vai corrompendo-se imagem.A arte torna visível o invisível // Paul Klee. Com tudo isso, pode-
ao longo do percurso. As intervenções-relâmpago de Matta-Clark se dizer que a prática artística contemporânea intenciona fazer do
nos anos 70, com sua anarquitetura, rituais de compartilhamento comum, do insignificante, às vezes mesmo do asqueroso, uma aura,
de força criativa, onde programava, com grupos de artistas, uma metamorfoseando em duração, o contingente, o evanescente,

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singularizando-os, dando-lhes uma expressividade. INFRAMINCE, subjaz ao jogo do tempo no incessante movimento de fazer e desfazer
jogo diáfano dos encontros. Portanto, é também com esses formas. São as mesmas linhas fugidias que se fazem tangíveis tanto
acontecimentos mínimos que a arte contemporânea faz suas em sóbrias esculturas, como nas assemblagens que devêm estranhos
composições, eles são sua matéria-prima que, por meio de mundos onde muitas vezes se instalam seres enigmáticos. Sempre
conjuntos de regras inventadas para cada trabalho, a cada essa proliferação, essa multiplicidade, essa qualidade de se replicar
lance, o artista executa ou propõe operações a si mesmo ou aos ao infinito, e a cada vez, uma diferença, uma ambiguidade. A sombra
expectadores participantes tal qual um experimento científico, do armário está na parede ou é a parede que está na sombra do
mas sem a pretensão de estabelecer uma lei física, química, armário? A bipartição de domínios da filosofia entre o formal que só
assinalada pela repetição dos resultados, e sim, ao contrário, pode ser abstraído pela razão, e o sensível que só pode ser captado
marcar uma diferença na repetição, oscilação inquietante entre pelos sentidos, não dá conta de entender este paradoxo que perpassa
pequenos gestos, discretos traços que podem subverter o senso o ENTRE-DOIS, que só pode ser expresso pela arte, entendido pelo
comum, uma tradição sagrada, e desestabilizar os significados pensamento.
e as interpretações, a verdade instituída. É do âmbito do sutil, Assim, foi colocada em movimento febril uma máquina,
pois que advém da fusão para devir outra coisa, diferente dos cujo recurso de bricolagem de fluxos rizomáticos comporta
termos envolvidos em tal fusão, pois é de outra natureza. Torna- elementos diversos, estabelecendo ligações entre épocas e obras
se outra coisa. Transição que escapa, é imperceptível, pois está na diferentes, fazendo-os entrar num cofuncionamento, numa simbiose,
passagem de um para outro, no entanto já não se pode mais pensar multiplicando suas possibilidades expressivas e exacerbando uma
e sentir como antes. A virgem que se torna noiva. Duchamp, nas multisensorialidade. Novas composições singulares. Desta forma,
notas do Grande Vidro, fala dessa passagem. É um AFECTO. Estado constrói espécies de antiambientes que, segundo McLuhan, é um
pré-individual, em via de se constituir, portanto cria uma zona de poderoso meio de apurar a percepção, produzindo em nós novos
indiscernibilidade, onde se misturam os estados, já se deixou de ser afetos, antecipando a atualização de novos meios no campo social,
virgem, mas ainda não se é noiva. Passagem estoica, marcada pela fazendo também com que possamos sentir os efeitos constrangedores
ambiguidade, condição intrínseca do devir, onde coabitam a virgem e que muitas vezes um ambiente produz sobre nosso corpo e espírito.
a noiva, a menina e a mulher. Não importam os pontos de referência, A arte então como uma linha real de fuga, uma desterritorialização
apenas as linhas de conexão. Assim são as figuras híbridas, plenas da segmentação operada tanto pelos meios culturais automatizantes
de franjas virtuais, que flutuam num plano aberto e indefinido, como pelo próprio organismo. Esses conglomerados enigmáticos,
trazidas por Elias Santos do fundo do imemorial, numa aventura A casa é o corpo: Labirinto de Lygia Clark e Penetráveis de Hélio
de linhas que se dobram, percorridas por vibrações, fazendo ressoar Oiticica prolongam e complexificam a percepção e, principalmente,
polifonias de multidões que povoam cada ser e a instabilidade que vibram nos corpos, produzindo sensações. CsO. Christian Boltanski

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coleciona fotos, roupas, objetos, espécie de vestígios deixados por para poder compor os trabalhos que então vão brotando do lugar,
aqueles que se foram, que encontra, e com eles monta arquivos- sendo ao mesmo tempo uma intrusão de forças do exterior, em que
instalações, inventários de vidas que nunca se sabe se são reais ou marcas e materiais estrangeiros acabam por se inscrever e se instalar
fictícios. Entre duas datas, a de nascimento e a da morte, sua questão nas paredes, no chão, no teto, transitando de forma incerta e irregular,
é com o que se passou no meio. O entre-meios, esta mistura de numa crescente germinação, multiplicando-se, aglomerando-se,
meios, coloca em operação procedimentos de E/NEM, máquina de num movimento rizomático de incorporação ao ambiente onde
apropriar, citar, reciclar, dobrar, rasgar, passar, apagar, cortar, queimar, acontecem, traindo o subjétil.
costurar, copiar, colar, montar, construir... A lista de procedimentos Obra em movimento é outro conceito fundamental para pensar a
é infindável. É um embaralhamento de acontecimentos socados, arte contemporânea. Criado por Umberto Eco a partir de algumas
prensados num único suporte ou numa traição dos suportes. produções musicais contemporâneas cujo modo livre de organização
Jacques Derrida, num lindo estudo sobre Artaud, põe o subjétil em e de relação que elas apresentam entre as notas e conjuntos de
questão, termo usado pelos renascentistas que significa suporte nota musicais (constelações) gera uma maior abertura do campo
(tela, parede, papel), portador de impressões, infinitamente plástico de possibilidades, fazendo proliferar na obra as incógnitas e
e matriz geradora aparentemente estável, porque na realidade variações, pois não se pode contar com uma certa previsibilidade
nunca está vazio, está em repouso e em movimento ao mesmo de desenvolvimento numa composição serial contemporânea.
tempo, num entre jazer e lançar. Assim, mostra como Artaud, em Por exemplo, não há uma sucessão esperada conforme regras de
desenhos-escrituras produzidos principalmente nos anos 40, se pôs probabilidades como no sistema tonal e segundo ele, também
a enlouquecer o subjétil, num ato pictográfico de torcer as linguagens, no dodecafônico, nenhuma indicação do músico que oriente a
ultrapassando o suporte, o material, perfurando, percutindo som, expectativa de uma continuidade na execução, nada que estabeleça, a
grito, ritmo, imagem, escrita, movimento numa mesma obra, para priore, determinadas sequências, o que há é múltiplas possibilidades
expressar algo que não seja de um eu, mas de uma outra coisa. O de relacionar e organizar os sons. Assim também se dá na poesia
fora? A essência de Leibniz? De qualquer forma, o subjétil tem de ser e na literatura, quando o escritor não se atém a uma posição fixa
perseguido e traído o tempo todo. Inimigo oculto ou A arte da fuga das palavras, dos conjuntos de palavras e textos, nem mantém uma
de Kátia Fiera ou Bólides de Oiticica ou Trouxas Ensanguentadas de relação de interdependência e de subordinação dos enunciados,
Artur Barrio. É o que também acontece na obra híbrida de Beatriz mobilidade que se estende à leitura que, a cada vez, pode se dar numa
Nogueira que trabalha em diferentes meios, passando pelo desenho e sequência diferente. É exatamente esse processo que observamos até
pela instalação, em que a ação e o movimento, a escritura do tempo aqui nas artes visuais e plásticas em tantos desdobramentos, com
são traços constituintes de suas produções, muitas vezes efêmeras, a integração entre todas essas linguagens, uma coisa implicando a
geralmente feitas a partir do próprio espaço em que estão expostas, outra e vice-versa. Enlouquecer o subjétil. Há uma arbitrariedade, uma
onde a artista passa a habitar, numa relação entre corpo, espaço e luz, descontinuidade intrínseca a esse modo de produção, que lhe confere

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uma multidirecionalidade, estabelecendo uma tendência assintática, atividade sem objetivo que inclui todo o entorno, que incorpora
descodificada, formada por conjuntos móveis, constelações, blocos parceiros, pois há uma fissura que requer ser preenchida ou
intensivos de sons/palavras/imagens/movimentos/objetos, podendo cavalgada, que se faça uma construção por meio de uma participação
ser agrupados em qualquer ordem de forma rizomática cujo risco de ativa no jogo. Bloco Rauschenberg-Cunningham-Cage, máquina de
cair no Caos indiferenciado é muito grande, daí o desafio de manter produzir acontecimentos imprevisíveis, funcionando de maneira a
uma coesão consistente e singular entre tais disparidades, manter fazer fugirem as linguagens participantes, em que a música, a dança
uma linha melódica singular passando entre estas multiplicidades. e as artes plásticas coexistiam, mantendo uma independência, pois
Esse esgarçamento da fissura nas obras, plenas de franjas virtuais, cada artista trabalhava autonomamente, sem saber o que os outros
disponibiliza matéria para a construção de outras, as quais contêm estavam fazendo, resultando numa construção disjuntiva, não
nelas mesmas a possibilidade de atualização de muitas outras, no havendo um esforço em traçar correspondências entre as diferentes
entanto, continuam sendo a mesma obra, obra em devir, esta é sua linguagens, deixando-as dissociadas: a dança não segue o ritmo da
ambiguidade, desafio de. Essa multidirecionalidade rizomática música nem a configuração dos elementos do palco, a música não
acontece na construção de uma mesma obra em níveis diferenciados, descreve os movimentos da dança nem inspira as imagens, e a parte
que também implica diferentes reconstruções a cada encontro com plástica não ilustra as outras duas, e a cada novo espetáculo faziam
ela. Bichos e Trepantes de Lygia Clark , obras das topologias e ações. novas combinações entre essas três expressões, uma montagem que
Obra como espaço liso, não subdividida em partes, mas constituída se dava num movimento de variação, pois cada parte era produzida
por blocos nômades que se distribuem de maneiras diversas. Nesse em constelações móveis de sonoridades, de elementos plásticos, de
sentido, o que está em jogo aqui não é o fato de uma forma desandar luz, de dança, para serem rearranjadas de maneiras diferentes a cada
num informe, mas o de uma composição de forças, um agenciamento, vez, ao sabor do acaso. Pick Up
perder a potência de expressar uma essência e transmitir intensidade. Com o predomínio de um meio mecânico ou geométrico
Nessas construções de blocos móveis intercambiáveis há todo tendemos a uma espacialização do movimento e do tempo divididos
um jogo de vai e vem, de zigue-zague num redemoinho alucinado, em instantes parciais, atemo-nos às partes fragmentadas que desfilam
Maëlstrom de Edgar Alan Poe, que traz à superfície ou afunda no uma após outra numa sequência linear, como por exemplo, a escrita
abismo sem retorno num ritmo dinâmico. Este do jogo. Ritornelo. impressa, desenvolvendo-se uma percepção visual que percebe os
Repetição e variações se dão juntas. Esta é a força ativa dos processos espaços como encadeamentos homogêneos e uniformes. Num meio
artísticos contemporâneos que se efetua na obra de arte e é expressa predominantemente eletroeletrônico ou oral há uma integração
por ela (mesmo enquanto ideia ou ação), e se prolonga no tipo de intensa entre tudo, que ocorre de modo simultâneo e rizomático.
relação que se dá entre a obra e o espectador, convocado a entrar Dado de uma só vez. Essa prerrogativa colocada por Marshall
nela, jogando-o num labirinto, cabendo a ele inventar percursos. Por McLuhan, com sua emblemática frase o meio é a mensagem,
isso se diz a arte como jogo, como um movimento em si mesma, no sentido em que é o meio que configura e controla a proporção, e

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a forma das ações e associações humanas, pode ajudar a entender Para fazer um poema dadaísta / Peguem num jornal /
questões que perpassam as poéticas contemporâneas. Na era digital, Peguem em tesouras / Escolham no jornal um artigo com
o tamanho que pretendam dar à vossa poesia/ Cortem o
o HIPERTEXTO abriu imensas possibilidades de renovação da artigo/ Cortem depois com cuidado cada palavra que o
escrita e da leitura de textos que o meio impresso dificulta, por sua forma e metam-nas num saco/ Agitem devagar/ Extraiam
característica de linearidade textual, bem como significou uma maior por fim cada pedaço, um de cada vez/ Copiem-nos
conscienciosamente/ Segundo a ordem em que saíram do
expansão da produção no tocante à mistura de meios, de hibridismos. saco/ A poesia aparecer-vos-á/ E eis que sois um escritor
No entanto, como temos visto, antes mesmo da expansão dos meios extremamente original e de uma fascinante sensibilidade
eletroeletrônicos e sua apropriação pelos artistas, houve várias linhas apesar de contida pelo vulgar.
de experimentações estéticas que se colocaram num estado de jogo,
fazendo cruzamentos de linhas rizomáticas. Na literatura, alguns Ainda nessa linha de hibridismos de palavra-imagem-objeto,
poetas e escritores experimentaram maneiras não lineares de escrever nos ecos do lance de dados de Mallarmé, há o Caligrama, palavra-
e de se ler um texto impresso. Cada leitura do poema Um lance de valise, contração de caligrafia e ideograma, inventada por Guillaume
dados de Mallarmé leva a resultados diferentes, pois o poeta pensou Apollinaire em 1918, embora seja uma maneira de escrever que
o texto como imagem, utilizando diferentes fontes e espalhando pode ser encontrada em vários lugares desde a antiguidade, tendo
palavras e frases de modo não linear, incorporando os espaços vazios uma inspiração na escrita ideográfica. É uma poesia gráfica, modo de
como áreas de silêncio, formando conglomerados que podem ser desenhar com palavras, não obedece à organização tradicional linear,
conectados seguindo variadas ordens, conferindo um movimento pois assume a forma daquilo de que fala, ou seja, por meio de sua
dinâmico de leitura, colocando a própria linguagem para falar que, disposição tipográfica produz a visualização do tema abordado no
liberada de uma instância central, ganha sua autonomia, e por isso poema, logo, é uma obra tipográfica imbuída de poesia, caligrafia,
não é um sujeito que fala, mas a própria linguagem que se exprime. pintura e filosofia. Maneira de burlar a sintaxe em prol da imagem.
Ele também projetou escrever um livro infinito, intitulado Livre, que Assim, o caligrama fala com as palavras aquilo que é mostrado
permaneceu inacabado, experiência que se propunha a abrir múltiplas com o desenho formado pelas palavras, há uma redundância, um
possibilidades de leitura, daí o complexo emaranhado de relações cruzamento de linguagens afirmando e reafirmando algo. Duração
entre palavras e textos que se pode observar nas notas que ficaram. e instantaneidade coligadas. Imagem e som. A palavra delineia
O trabalho de Mallarmé tornou-se referência para a introdução do a imagem da coisa e esta entra no discurso da palavra num eco.
acaso numa obra de arte, tanto do ponto de vista de sua produção Replicar-duplicar, fazendo coincidir palavra e figura. No entanto, não
quanto de sua fruição. Propondo ainda um outro tipo de movimento há uma plena coincidência, enquanto se vê a figura não se lê o texto,
para uma obra, Tristan Tzara, idealizador do movimento Dadá, em enquanto se lê, não se vê a figura. Por astúcia ou impotência, pouco
1921 prescreveu uma fórmula para construir poemas onde a imagem importa, o caligrama não diz e não representa nunca no mesmo momento;
se torna um poema, e o poema uma coisa: essa mesma coisa que se vê e se lê é matada na visão, mascarada na

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leitura. // Foucault. Tradução de Sérgio Caparelli de Il pleut, caligrama O livro Cem milhões de poemas de Raymond Queneau, integrante
de Apollinaire inscrito abaixo: Chovem vozes de mulheres como se do grupo OuLiPo como veremos, formado por blocos combinatórios
estivessem mortas mesmo na recordação/ Chovem também encontros e manipuláveis de maneira aleatória, eleva a um nível extraordinário
maravilhosos da minha vida ó gotículas / E estas nuvens empinadas a multiplicidade de leituras potenciais. Cada página do livro é
começam a relinchar um universo de cidades mínimas / Escuta se chove recortada linha a linha de modo a proporcionar leituras transversais,
enquanto a mágoa e o desdém choram uma música antiga / Escuta caírem não se passa de uma página a outra, mas de uma linha numa página
os elos que te retém em cima e embaixo. a qualquer outra linha de qualquer outra página ou da mesma. Pode
ser considerado um HIPERTEXTO, assim o conceituou Ted Nelson,
como blocos de textos que podem ser conectados em qualquer
sequência. Seu modelo não é a folha, crítica aliás que ele faz ao
sistema de Internet que utilizamos atualmente, onde o link só tem
um sentido (bom senso?). Segundo ele a folha é um enquadramento
que aprisiona os fluxos e a mão única do link, não proporcionando
uma criação e leitura rizomática, continua na raiz, propõe a produção
de listas entrelaçadas como por zíper, zippered lists, que permitiriam
compor textos-imagens-músicas-sons de modo que fossem formados
de pedaços de outros textos-imagens-música-sons, transclusão,
maneira rizomática de pensar, polifonia, ao mesmo tempo criando
vias abertas de idas e vindas. Por isso, o corte operado nos versos
do poema por Queneau abre brechas por todos os lados para que as
palavras fujam e que se possa fazer leituras transversais. Pierre Levy
mostra o HIPERTEXTO não apenas como instrumento valioso de
experimentações na arte, mas como um modo de funcionamento
que amplia a possibilidade de participação a todos os envolvidos,
criando os mais variados tipos de associação em rede, constituídos
pelo entrecruzamento dinâmico de multiplicidades heterogêneas.
O cut up inventado por Brion Gysin, desenvolvido e refinado por
William Burroughs, pode ser pensado como uma experiência nessa
linha do HIPERTEXTO. É um procedimento de composição de textos

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tal qual a produção merz de fotomontagem e colagens, onde trechos Este procedimento de cut up exerceu grande fascínio entre
de textos de fontes diversas, artísticas ou não, vão sendo misturados, músicos da geração pop mundial, que o têm utilizado largamente.
compondo uma nova escritura com uma antinarrativa, pois vai Desde os anos setenta, as letras de muitas canções de David Bowie,
conectando aleatoriamente qualquer coisa, sem estar organizados segundo ele, quarenta por cento delas, surgiram de um processo
numa sequência temporal, de encadeamento de acontecimentos, o em que ele escrevia uma espécie de listas de temas numa folha,
que lhe dá um movimento entrecortado e fragmentado, de um vai recortando sentenças de quatro ou cinco palavras, em seguida as
e vem alucinado, realçando a transitoriedade dos acontecimentos. É misturava, recombinando-as num texto; e em seu álbum Outside, em
questão de abertura de sensibilidade, destacando elementos imersos colaboração com Brian Eno, foi utilizado o procedimento cortar-e-
num caos de inúmeros acontecimentos simultâneos. Enfim, envolve colar de programa de computador. Kurt Cobain, que fez trabalhos
operações de sortear, cortar e colar sobre uma mesa de montagem, colaborativos com Burroughs, selecionava trechos de diferentes
flatbed. E como se pode notar pela descrição de Burroughs, esta poemas de sua própria autoria, fazendo surgir um novo, muitas vezes
composição é de zippered lists zippered lists de Ted Nelson: sem um tema específico. Também Thom Yorke da banda Radiohead
compôs as letras do álbum Kid A , sorteando de um chapéu frases
O método é simples. Eis um caminho para praticá-lo.
Pegue uma folha de papel. Como esta página. Agora recortadas escritas por ele.
corte-a ao meio. Corte no meio das duas partes. Você Julio Plaza, Décio Pignatari e os irmãos Augusto e Haroldo
tem quatro pedaços: 1 2 3 4... um dois três quatro. de Campos produziram poemas, usando táticas combinatórias e
Agora rearranje as partes colocando a parte quatro com
a parte um e a parte dois com a três. E você tem uma aleatórias de composição poética com tendências icônicas, ou seja,
nova página. Algumas vezes isso acaba dizendo a mesma há uma simultaneidade de leitura verbal e visualização de imagem.
coisa. Outras vezes, algo muito diferente -o recorte de Assim, a poesia Concreta ou verbivocovisual (outra palavra-valise de
falas políticas é um exercício interessante -em qualquer
caso você acabará por considerar que isso diz alguma James Joyce) pode ser pensada na linha dos Caligramas e também
coisa e alguma coisa bem definida. Pegue algum poeta dos Topoemas de Octavio Paz, caracterizada por experimentações
ou escritor de sua admiração. Poemas que você tenha dos aspectos sonoros e visuais das palavras, decompondo palavras,
lido muitas vezes. As palavras acabaram perdendo
significação e vida através de anos de repetição. Agora fazendo divisões diferentes das dos versos, dispondo rigorosamente
pegue o poema e digite alguns trechos selecionados. elementos linguísticos e gráficos, para formar imagens e estabelecer
Encha um papel com esses excertos. Agora corte a conexões inusitadas entre letras e palavras, abrindo o poema a
página. Você tem um novo poema. Como acontece com
muitos poemas de Shakespeare e Rimbaud, se você os variados trajetos de leitura, sem bom-senso. Para isso, a recursividade
aprecia. Tristan Tzara disse: “A poesia é para todos”. E é uma operação fundamental, ao trabalhar palavras, letras e sons;
André Breton chamou-o de policial, expulsando-o do inserindo a repetição nesses elementos, faz vir outros sentidos, uma
movimento. Diga de novo: “A poesia é para todos”. A
poesia é um lugar, e livre para todos os cut-ups Rimbaud repetição que traz a diferença, duplicando e reduplicando os sentidos
e você está no lugar de Rimbaud. por ecos, mas também por reflexos e sombras e muitas vezes fazendo

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não tem significação (universal) nem referência (individual),
o conjunto todo entrar num looping, labirinto. Pode-se perceber esse
que produz uma diferença singular. Nas palavras do poeta -
recurso agindo no poema Sem um numero de Augusto de Campos,
A poesia é um ‘silenciofone’, o poema um local de operação, no
infinito que se expressa em palavras e imagem, que comporta o nada
qual a palavra é submetida a uma série de mutações sonoras; cada
e tudo, e eis novamente a fita de Moebius.
uma de suas facetas libera a multiplicidade de sentidos de que
sem um numero elas estão carregadas. - ele compôs muitas palavras-valise e fez
um numero uso constante de associações paronomásticas, repetições de
numero fragmentos sonoros, palavra que brota da anterior, reforçando
zero o movimento errático de sonoridades puras, como os gritos de
um Artaud, em sussurros, espasmos, que fazem com que o poema
o escape num transe, como se pode perceber neste trecho:
nu
mero
“A morte, a morte-folia, a morfologia da meta, a metamorte,
numero
a metamorfose ou a vida, a vida vil, a vida-vício, a
um numero vivissecção da vida” espanta, espanta e e e é um nome,
um sem numero um nome de diesel, um nome de 16 orbes-dejetos, de 16
objetos contra, contra a, contra a morte ou, para dizer
melhor, para a morte da morte ou para contra, contra,
Essas experimentações poéticas tanto levaram a uma controle-a, sim é meu aviso, contra a, contra a vida sete,
materialização, como é o caso de Poemobiles e Caixa Preta ou seja, ou seja para, para uma vida no indo esvaindo,
esvaindo, indo esvaindo vazio e esvaído, a vida na, na,
de Augusto de Campos e Julio Plaza, poemas-objetos onde
por uma vida na vida (...).
desaparece a bidimensionalidade da página, e a palavra torna-se
a um só tempo imagem e concretamente manipulável, quanto a
uma arte sonora, com gravações e performances da leitura dos Nanni Balestrini começou a compor a partir de 1961 poemas
poemas, pura sonoridade. Ghérasim Luca levou a poesia a um permutacionais. Tape Mark 1 foi considerado o primeiro poema
estranhamento absoluto, fazendo, como disse Deleuze, um uso feito com um programa algoritmo para computador, composto
menor da língua com seu prodigioso gaguejamento , violando-a por frases de outros textos, a cada vez organizadas numa
numa ampla subversão do uso das palavras, ao separá-las de ordem diferente, podendo-se compor vários poemas com as
sua denotação, sem lançar sobre elas nenhuma conotação, mesmas frases. Recentemente, reescreveu a lenda de Tristão
trabalhando os fonemas para sair do estado de coisas atual, e Isolda , dividindo a história em blocos e fazendo diversas
entrando num plano fonológico virtual, como traço distintivo que combinações por meio de um programa de computador,

110 111
publicando diferentes versões do mesmo livro. Cada livro é um peça por peça, vão se encaixando, formando aos poucos a
cut up eletrônico. O meio digital, portanto, só potencializou um imagem de um prédio com seus moradores, apartamentos,
desejo, um modo de pensar e uma prática que já existiam, que compartimentos, mobiliário, objetos, quadros, usando de
já tinha forjado maneiras de se efetuar. O meio é a mensagem apropriações de textos literários, cartas, receitas, revistas,
, no entanto, um meio surge e se estabelece segundo uma placas, bilhetes... Todo um interminável conjunto de detalhes
demanda da pesquisa artística, científica, filosófica, é o meio mínimos, coisas, hábitos, manias, que parecem insignificantes,
social que cria as condições para o surgimento de uma nova mas que compõem a vida de cada um de nós. Ítalo Calvino
linguagem, se apropriando de uma nova tecnologia. Portanto, fez uso das restrições em vários de seus objetos-livros ; em O
muitas experimentações desse tipo foram feitas na literatura castelo dos destinos cruzados partiu dos princípios do jogo de
antes de se recorrer ao computador. O grupo OuLiPo (Ouvroir tarô para construir uma máquina narrativa combinatória da
de Littérature Potentielle, que pode ser traduzido por Oficina de associação das cartas com seus movimentos intercambiáveis,
Literatura Potencial), criado nos anos sessenta na Europa por abrindo, então, múltiplas possibilidades que envolvem tanto a
escritores e matemáticos, tornou-se uma importante referência escrita como a leitura do livro. Apresenta histórias diferentes
de experimentações de escrita cujo espírito se espalhou por e independentes, articuladas pelo cruzamento de dois tipos
vários lugares, inclusive contaminando outros meios, como as de narrativas, a do tarô, onde a carta funciona como uma
artes plásticas e visuais. A prática consiste em inventar regras operadora distributiva de acontecimentos, e a do narrador-
e restrições para a composição de textos, na contramão da leitor e personagens que estão em torno de uma mesa num
associação automática de palavras surrealista. As restrições mais castelo, o que promove deslocamentos constantes de focos,
comuns de natureza linguística não resultaram numa limitação conforme o personagem que conta sua história, associada pelo
da escrita, são desafios que levaram a uma ampla pesquisa do narrador às cartas, tiradas aleatoriamente do baralho, as quais
potencial literário, revolucionando a sintaxe e a semântica, vão entrelaçando as histórias. Há uma interdependência mútua
sendo essencial nesses programas a álgebra, a topologia, a teoria entre personagens-histórias-cartas, formando uma rede, ainda
dos números e a combinatória matemática criadora de jogos. assim, mantendo um jogo aberto de sentidos, conforme se
Um dos seus participantes mais proeminentes, Georges Perec, percorre a rede multidirecionalmente. Os pontos de encontro
fez pleno uso das restrições de aspectos linguísticos (escreve um são decorrente dos movimentos e cruzamentos das linhas, e
livro sem a letra E ) e do funcionamento de jogos (go, xadrez) em não o contrário. É um rizoma.
seus livros. A vida modo de usar, por exemplo, é um complexo Julio Cortázar, que segundo Arrigucci quis dar à escrita
quebra-cabeça, cheio de enigmas, cuja narrativa descontínua movimentos de improvisação de jazz, desenvolveu uma
é feita por fragmentos de histórias que se entrecruzam e, narrativa entrecortada, multidirecional, cheia de silêncios, que

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comporta diversas perspectivas da vida, do mundo. Seu livro O pôs em andamento uma máquina literária de falsificar, por meio
jogo da amarelinha é dividido em duas partes, a primeira pela de operações de simulação da escrita de outros escritores, de
história propriamente dita, a outra, a parte prescindível que o tradutores, de leitores, de análise de livros inexistentes, pondo
leitor pode ou não ler segundo sugestão do escritor, é cheia de em destaque a problemática da função-autor para destituí-la de
colagens de assuntos diversos, zippered lists. Esse livro abre um qualquer importância, produzindo uma literatura polifônica,
espaço de experimentação, propondo um itinerário de leitura, com uma multiconexão intertextual e rizomática, em que
ou deixando-o em aberto, diferente do caminho da escritura, vigoram as funções-criadoras sempre uma enunciação coletiva,
formando um jogo de linhas, de idas e vindas, de saltos, de sempre plural, composta por tribos e populações as mais
desvios, de paradas e de impasses, funcionando como o diversas. Por meio da repetição, da cópia do falso, mímesis às
próprio jogo de amarelinha, onde há uma clara distinção entre avessas, produziu abalos na noção de verdade e do princípio
o caminho traçado no chão e o percurso que cada jogador por de identidade, fazendo emergir uma diferença singular. Em A
sua vez vai fazer, e uma espécie de troca constante de ponto invenção de Morel, Adolfo Bioy Casares monta uma narrativa
de referência. Em termos gerais, esse jogo de leitura pode multifacetada, tal jogo de espelhos, criando duas realidades
parecer ingênuo e inócuo, mas produz o efeito de quebrar a paralelas que entram numa estranha e sinistra interconexão,
narrativa, além de introduzir variados elementos que estão nos do narrador em seu interminável e solitário monólogo e da
capítulos prescindíveis, os quais podem mudar o ponto de vista personagem Faustine. O encontro entre os dois se dá em dois
com relação aos personagens e acontecimentos e vice-versa, níveis, o primeiro quando o narrador fugitivo aporta na ilha e
abrindo a uma pluralidade de sentidos. Jorge Luís Borges em a vê dias depois, e o segundo quando usa a máquina de Morel
sua admirável metaliteratura fez da escrita e da escritura um em si mesmo, criando cenas fictícias entre ele e Faustine, cenas
labirinto, mas labirinto do tempo, não espacial. O tempo é o que irão acontecer repetidamente, pelo menos enquanto durar
grande produtor de paradoxos, abundantes em Borges, com o aparelho e o isolamento da ilha, portanto um encontro que de
suas bifurcações, numa conjunção de passado-presente-futuro, certa forma nunca ocorreu, ganhando uma força de eternidade.
e suas eternidades e seus infinitos, terrível vertigem de estar Se o cinema, quando surge com os irmãos Lumière, é pura
diante de algo que nunca começa nem acaba, está sempre no produção de imagens, o que na contemporaneidade volta
meio, está sempre retornando. Curvatura infinita. Rede de à cena, logo em seguida torna-se multimídico ao agregar
tempos, e a cada escolha que fazemos de forma consciente ou diversos meios. Griffith e Méliès associam o cinema à literatura
ao acaso, a linha se bifurca fazendo surgir novos universos que e ao teatro, usando suas técnicas narrativas, e quando surge o
coexistem de forma paralela ao nosso, onde viveríamos as outras cinema sonoro a música também é incorporada, sonoridades
possibilidades de vida que declinamos neste mundo. Borges diversas, fazendo surgir toda uma arte de sonoplastia. Assim

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como aconteceu com a fotografia e a pintura, o cinema uma criação híbrida, volátil, fazendo vir o delírio, o abismo,
e a literatura entraram num movimento complexo de o labirinto... Composições feitas da aglutinação, pick up, ou
interinspiração e intermodificação, agindo um sobre o outro, da justaposição, cut up, de matérias e materiais variados de
um se desterritorializando no outro. Há um entrosamento, própria autoria ou fruto de apropriação, com integração de
não adaptações, nem analogias ou correspondências, e meios diferentes numa mesma obra: matéria sonora (e não se
sim operações de pick up e cut up. Mais recentemente Peter faz distinção entre som e ruído), matéria plástica, imagética
Greenaway com The Tulse Luper Suitcases fez uso de vários (não importando se pictórica, fotográfica, videográfica,
suportes como cinema, televisão, Internet, DVD, livro e cinematográfica ou impressa), gestos e movimentos (banais
instalação, para montar uma narrativa fragmentada a partir ou não), palavras e textos (literários ou não). Transitividade
do conteúdo de 92 malas espalhadas pelo mundo, da história de meios pulveriza ainda mais qualquer possibilidade de
de um escritor que passou por várias prisões, possibilitando, representação, pois essas passagens invocam o que cada arte tem
a cada vez, conforme o modo de interagir com estas facetas, de mais específico, nem imóvel nem móvel, podendo tornar-se
ter-se uma visão diferente da obra. Uma obra que se multiplica tudo isso, estabilizando-se numa e movendo-se noutra. Modo
em várias outras. E, por sua vez, a literatura como técnica de de construir por blocos, de montar essas matérias heterogêneas
montagem caleidoscópica, trazendo o movimento incessante, em diversos meios de modo a fazê-los conspirar, mesmo de
com uma narrativa fragmentada que compõe o conjunto da forma disjuntiva. A abertura a diversas possibilidades e
obra , multiplicidade de histórias que se tecem a partir do bifurcações rege esse regime de produção por bricolagens. Arte
amplo leque de vozes, prontas para serem colhidas por um em movimento, onde coisas heteróclitas são arrastadas numa
ouvido atento, é que pode ajudar a suportar o peso da solidão, desterritorialização sobre um plano, compondo algo de outra
do anonimato, da pressão sufocante dos exageros de um natureza. Novas composições singulares. Se isto ocorrer, então
universo em que tudo é marcado pela velocidade, em que a temos uma obra de arte contemporânea. Sempre em aberto.
euforia diante dos avanços do progresso capitalista esmaga E que se derramem safiras, ametistas e esmeraldas no obscuro
as individualidades em prol do sistema avassalador que, erotismo da vida plena: porque na minha escuridão enfim treme o
ostensivamente, vai se impondo nas metrópoles. Os escritores grande topázio, palavra que tem luz própria. // Lispector
sempre tiveram a ambição de fazer cinema sobre a página em
branco: de dispor os elementos e deixando que o pensamento
circule de um a outros // Godard.
Essas são algumas das linhas de experimentações artísticas
dessa estética de um lance de dados. Então, pode-se afirmar que
o jogo torna-se o paradigma de todas essas experimentações,
um recurso que proporciona a mobilidade necessária para

116 117
Numa inversão criadora e provocativa, foi dito que a arte
não imita a vida, é a vida que imita a arte, porque esta não
reproduz, não representa os seres e as coisas, sendo um meio
direto de experimentação das essências expressas por ela. A
arte não é um espelho para refletir o mundo, mas um martelo
para forjá-lo. // Maiakovski. Diferença e repetição são as duas
potências da essência, e seu poder de criação se dá por meio da

A BELEZA
arte, é somente em seguida que a repetição torna-se mecânica
e a diferença, imóvel, e espalham-se pelo mundo, pois a vida
reproduz as essências no nível mais baixo. As conexões,

É QUESTÃO
os agenciamentos não são o objeto de uma representação,
mas os meios de uma atividade. // Deleuze 2008. Por isso a
representação é sempre segunda, realizando-se sobre objetos

DE EXPERIÊNCIA e sujeitos produzidos pelo campo social, pelos agenciamentos


naturalizados. O artifício é da natureza da vida cuja potência

E NÃO DE
é produzir seres e por meio deles, coisas. A cultura é então
uma natureza engendrada. Já o devir é uma sensação pura que
nos aproxima de intensidades de outros seres. Devir outro de

FORMAS.
si. Portanto, a manifestação artística só se efetua por meio da
experimentação, e aqui podemos incluir tanto do ponto de
vista do artista, do processo criativo, quanto do espectador.
A obra expande nossa percepção, produzindo em nós um
KARL KRAUS poder de sermos afetados pela beleza e pela força ígnea das
coisas ao nosso redor e da natureza, que até então estavam
invisíveis, inaudíveis, insensíveis. Portanto, nesse processo de
experimentação da arte ocorre um acréscimo, diferentemente
da percepção ligada ao esquema sensório-motor que faz
subtrações, onde a percepção só capta o que há de útil na
coisa, para agir sobre ela. Forças reativas, conservativas. Há
uma mais valia da arte. Ler um poema, ouvir uma música,

118 119
assistir a um filme, a uma peça de teatro ou a um evento de vários efeitos não conhecidos, e corre-se sempre um risco de
dança, performance, ver uma imagem: um revigorante e alegre entregar-se e se deixar arrebatar por esse encontro que traça
despertar para a vida cintila em nós. Por isso, a experiência e preenche o campo de composição, constituindo entre os
da arte nos coloca diante do espetáculo, dentro dele, nos elementos que o compõem um corpo poético. CsO. Trata-se
possibilita a experienciação imediata e direta da essência, de conquistar um estado de intensidade a que nada falta, uma
não remete a uma lembrança, não depende de nada dado diferença que não é a da alteridade, pois extrapola o sujeito,
previamente, nem se dá de maneira imaginária ou simbólica. este ser do aprisionamento, não se trata mais de um eu e um
Porque é experimentação, atua diretamente nos corpos, produz outro. Também não é a diferença das repartições binárias,
uma metamorfose, um vir a ser. Virgem que se torna noiva. É entre oposições, dicotomia do interior e do exterior, do sujeito
um acontecimento real que produz um extraviar-se. Mesmo e do objeto ou de gêneros. Muito menos a da negação. Mas a
porque, entre o elaborar um trabalho em arte e realizá-lo há diferença que surge no meio, nas relações, de uma conexão que
uma distância, e é neste vácuo que transita o sentido, neste cria um maquinismo entre os elementos que a compõem de tal
espaço de indeterminação, melhor, nesta fissura é que se dão modo a entrar num cofuncionamento independente, criando
os PERCEPTOS e AFECTOS. Espécie de transubstanciação, uma zona de intensidade, de indiscernibilidade cuja natureza
pois tal obra, mesmo sendo uma ideia, não remete a algo fora é alegre, é o próprio processo de jogar, de experimentar, da
dela, a uma outra coisa, há nela algo presente que a transborda, metamorfose que é intenso, portanto alegre. A arte, então,
distinguindo-a de qualquer outra produção, fazendo dela um remete a estados de conjugação dos fluxos, por isso não há
meio ativo de vivência plena. O cometa me traz o anúncio de metáforas, mas diferentes conjugações, quando uma palavra
outros mundos / e de noite eu não durmo / atrapalhado com o ganha outro sentido pode-se estar certo que ela cruzou outro fluxo
mistério das coisas visíveis. / No rabo imenso do cometa / passa a ou se introduziu em outro regime de signos. // Deleuze.
luz, passa a poesia, todo o mundo passa! // Murilo Mendes. É então, Uma instável e irrequieta linha percorre a arte, o que a
no revés de toda massificação e vulgarização, do torpor dos coloca numa dinâmica onde uma produção instiga outra, é
sentidos e do pensamento, e do discreto charme da burguesia, inspiração para novos dobramentos e desdobramentos. São
que nos leva à aventura da arte. Intempestiva. frequentes produções que partem de outros trabalhos, uma
A arte produz um estado que nos impõe seu tempo próprio. obra revisitada, como é o caso de Sexta-feira ou os limbos do
Entrar em sua duração é uma experiência múltipla e rica do Pacífico de Michel Tournier, história reescrita a partir de Robson
ENTRE-DOIS, INFRAMINCE, ingressando no mistério dessa Crusoé de Dafoe; ou algo derivado de trabalhos clássicos,
fissura que se entremeia nos seres existentes, experiência do como L.H.O.O.Q de Duchamp, em que ele interfere numa
fora, do indeterminado contraído na obra. E graças a isto, reprodução da Mona Lisa, ou ainda Autorretrato com El Greco
ela nos proporciona ir além de nós mesmos, abrindo-se a de Albano Afonso. Processo inquietante que tem os afetos

120 121
como critério. Lógica da intensidade. Lygia Clark descreveu do sujeito, daquele que produz, que escreve, que pinta, que
fascinada a descoberta que fez, após completar seu trabalho compõe, que atua ao se misturar ao mundo, ao se lançar no
intitulado Espaço Modulado nº 6 que, por sua vez faz parte do Caos infinito, apagando os contornos entre si e as coisas. A
desdobramento de descobertas de trabalhos anteriores: O que questão do artista não é com a história ou com a sociedade, e
então vi, fez com que a Fita de Moebius tivesse vida pra mim, coisa sim com a vida, levando a extremas experimentações do corpo,
que antes só compreendia intelectualmente. – transmissão de CsO, para produzir uma obra.:
potência do artista para a obra e desta para o participante. Todo
o processo artístico como um fio condutor de intensidades. Por Comecei progressivamente a me distanciar do realismo
que eu tinha praticado desde La ferme La ferme para, em
isso, experimentar é bem diferente de julgar! É uma relação 1925, me pôr a desenhar quase inteiramente a partir de
com as forças do fora, é ir além do hábito, do organismo. Não alucinações. Na época, eu vivia de alguns figos secos por
há necessidade de sair da sala. É suficiente sentar-se à mesa e dia. (...) A fome era a grande fonte destas alucinações.
Ficava assim durante longos momentos a olhar os muros
escutar. Nem sequer é necessário escutar, é só esperar. Nem sequer nus de meu ateliê, tentando captar estas formas sobre o
é preciso esperar, é só aprender a ficar em silêncio. O mundo se papel ou sobre a tela de juta. // Joan Miró
oferecerá a você livremente para ser descoberto. Kafka. Processo
de desumanização, o que só é possível com a produção de Na arte há sempre uma espécie de inacabamento e, graças
um corpo poético O artista perde-se a si mesmo no âmbito de à recente expansão das possibilidades de experimentação, os
produzir uma obra. Liga-se ao inconsciente e à compreensão do componentes de uma obra ganharam uma mobilidade incrível,
invisível, do molecular que são as forças. São quase cinco horas podendo ser manipulados e recombinados, o que muitas vezes
da madrugada. E a luz da aurora em desmaio, frio aço azulado e promoveu um apagamento das fronteiras entre produção,
com travo e cica do dia nascente das trevas. E que emerge à tona do execução e apreciação. São dois os processos: uma constelação,
tempo, lívida eu também, eu nascendo das escuridões, impessoal, ou bloco, é constituída por fluxos, e a conjugação entre os
eu que sou it. // Lispector. Experimentar é entrar numa relação blocos, perfazendo uma obra, dá-se por outro nível de fluxos.
com forças involutivas, não se trata de evolução nem regressão. Opera com uma multiplicidade, em que a combinação torna-
E assim, pode-se dizer que a prática artística constitui-se como se, ao mesmo tempo, um princípio de composição, e a obra um
uma ação livre que vai de uma atividade a outra numa variação plano aberto a várias possibilidades combinatórias. Deus cria
contínua e rítmica, onde tudo está interligado segundo um o mundo como quem joga xadrez, trata-se de escolher a melhor
valor singular, não abstrato como no trabalho capitalista, e combinação // Leibniz, citado por Deleuze. Poética rizomática, que
assim procede por defasagem e descentramento, colocando prima pela indeterminação e incompletude, em que a concepção
em movimento funções criadoras, descentralizadoras, que não da obra e os processos de desmontagem-remontagem fazem
têm sua origem num autor, em que acontece um apagamento parte de um programa operacional transgressivo, de um jogo

122 123
proposto pelo artista ao talhar uma maior abertura para o acaso, práticas desviantes de perambulações ao acaso. Não somente a
em que a obra, muitas vezes provisória, desdobra-se ao longo arte funciona assim, mas também há uma tendência da ciência
do tempo, conforme vai sendo executada e experimentada, o contemporânea que assume tal maneira instável de pesquisar
que pode lhe dar uma continuação imprevista. Daí a produção e produzir teoremas. Abertura para o acontecimento. Jogo que
artística contemporânea constituir-se de programas de caráter cria a cada vez novas regras, transpõe do campo do comum
aleatório que não cria padrões, fazendo com que nunca se para o campo estético, em outras misturas, desfazendo as regras
saiba o que esperar a seguir, é uma construção aberta a uma que o governam, inserindo-o em outras aventuras. O artista
variedade de resultados possíveis, nada está definido de rouba variados elementos e os reagencia em outros agregados,
antemão. Acreditamos apenas em uma experimentação de Kafka, num cruzamento de fluxos, tática pick up, entra no meio de
sem interpretação nem significância, mas somente protocolos uma onda, por isto inventa procedimentos, e muitas vezes os
de experiência. // Deleuze, Guattari. Essa prática de invenção apresenta como obra.
de protocolos de experiência tem um lugar singular na arte Já há décadas, o fazer artístico interfere em tudo, qualquer
contemporânea, responsável pela realização de obras em todas coisa pode ser intensificada, pode se tornar uma peça na
linguagens com seus hibridismos cujo procedimento consiste máquina artística, desde um pneu em volta de um bode
em criar operadores táticos que vão se ajustando, de um trabalho empalhado de Rauschenberg, pilhas de balas de hortelã
a outro, conforme exigências internas ao processo criativo e enroladas em papel celofane azul de Felix Gonzalez-Torres, mil
externas das novas junções que vão surgindo à medida que pequenos homenzinhos de gelo de Néle Azevedo, um jantar,
o trabalho avança, gerando um estado intensivo envolvente pilhas de imensas pedras em forma de espiral numa praia de
e contagioso, dando impulso a outros encadeamentos de Robert Smithson, convidar pessoas para dormir em sua cama
intensidades e mobilizando a criação de novas combinações e como fez Sophie Calle, dar instruções de como produzir uma
variações. A obra confunde-se com a produção, como processo obra, de Yoko Ono. Cada vez mais a arte faz incursões pelo
a ser construído continuamente, muitas vezes permanecendo cotidiano, mas para singularizá-lo, para nos arrancar do dia
inacabada. Jogo de quebra-cabeça com peças que não foram a dia massacrante e repetitivo. Daí sua postura ético-estética,
recortadas para se encaixar devidamente, que não tiveram colocando em evidência problemáticas da vida cotidiana,
como fonte uma imagem prévia, mas são peças aleatórias que dirigida por movimentos de serialização que incrementou os
podem ser associadas de maneiras variadas a qualquer outra processos homogeneizantes dos comportamentos, dos gostos,
que faça parte do conjunto, da seleção feita pelo artista. Um do desejo, planificando toda diferença em perfis de consumo,
programa estimula o devir, fazendo insurgir na superfície o extraindo a potência de experimentar outras coisas. Movemo-
inesperado, lance de dados, a partir de associações rizomáticas, nos por entre um excesso de estímulos vazios, que, nos últimos
muitas vezes tão esquisitas e improváveis, raros encontros, e de

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anos, nos insuflam de aparelhos eletrônicos, responsáveis por devir, o eterno jogo de forças que se chocam. O mundo todo é um
uma generalização de uma apatia anestésica, entregues que ovo // Deleuze. Mundo como encontro da matéria com forças, a
estamos a atividades automatizantes. As relações de poder com forma sendo apenas um efeito provisório, da ação constante
todo seu conteúdo de saberes metrificam a vida, fabricando das forças que produzem uma deformação contínua das formas
represas para cada movimento, com o intuito de paralisá-los, por meio de operações de dobrar, torcer, esticar, que revelam a
disciplinando-os para mantê-los sob controle. Toda vez que conectividade inerente das coisas, girando em torno do fluxo
um movimento é liberto dessas medidas e contenções, toda num movimento de vórtice, abrindo-se para velocidades e
vez que se colocam em circulação fluxos, é um ato político de acelerações, topologias e superfícies, laços e dobras, brumas
resistência, de fuga. E aqueles que foram vistos dançando foram indefinidas e diferenciadas. A morfologia está ligada ao mundo
julgados insanos por aqueles que não podiam escutar a música. // visível, apto à descrição, matéria formada tridimensional num
Nietzsche. Daí haver uma íntima ligação entre política e arte, é estado de equilíbrio temporário de forças, marcada por um
sempre um ato político. Vimos que o sistema de arte atual trata contorno que constitui o indivíduo. Desta forma, os conceitos
de organizar as multiplicidades, nivelando-as, produzindo não podem estabelecer limites, pois não estão relacionados ao
cortes ordenados nas expressões artísticas, sob o princípio visível, e sim às relações, portanto não pode fixar algo cuja
capitalista da mais valia, do lucro, do vendável, que independe natureza é móvel, sempre em metamorfose. Por exemplo,
da singularidade de cada obra. É assim que as classificações quando se diz mãe, a cada vez é uma mãe diferente, e não é a
são incapazes de entender os agenciamentos e, no caso, a mesma mãe para outra pessoa, não apenas porque a mãe é outra,
produção artística como um quanta, pacotes de energia que não mas porque nunca se fala de uma coisa, mas das relações que
podem ser medidos nem divididos, nem submetidos a espaços a compõem, relações tais que mudam e desenham uma coisa
estanques, apenas podem ser experimentados. diferente conforme o contexto em que se encontra. Por isso,
O pensamento é o que passa entre o intelecto e a sensibilidade, não é a coisa, mas uma coisa. Uma mãe. Coisa-agenciamento.
não vem nem de um nem do outro. A linguagem tem duas Sim, como diz Nietzsche, as coisas não preexistem, surgem do
dimensões: designação das coisas e expressão do sentido, assim embate e composição das forças, portanto, pensar é retraçar
pensar é passar da relação de designação para a do sentido. as linhas que nunca formam uma figura exata, é fazer uma
Criar contornos não é sua tarefa, o entendimento não tem genealogia desses movimentos/relações que compõem tal
relação com o desdobramento da ação, também não é reflexão. coisa em tal momento. A arte então é um modo de pensar. A
Pensar implica em barrar o esquema sensório-motor, ou seja, comunicação não é função da arte, enquanto uma propaganda
em vez de prolongar a percepção em movimento, volta-se para usa imagens e sons e palavras empregadas de forma persuasiva
o virtual, para o Caos infinito, só então se pode compreender o

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para passar uma mensagem de um produto, a arte se volta música ou um filme... Os AFECTOS e PERCEPTOS estão lá, inteiros,
para a vida, para a intensificação da vida, pura criação, é neste conservados, intensos: a música, a literatura, o filme, o poema, a
sentido que é gratuita, nunca se repete, não tem conteúdo, fotografia, a pintura... questão apenas de entrar nessas ondas e ir
é pura expressão, cria novos afetos, novos modos de ser. junto. Todo campo social, em maior ou menor grau, segmenta a
Ritmo Nascemos no meio, estamos sempre no meio dos vida, capturando multiplicidades, colocando-as a serviço dessas
acontecimentos, no meio da vida. Não dá para fazer tábula rasa. segmentações. Pode-se dizer que quanto menos é a intensidade com
Podemos superar o século XIX, do homem especializado, detentor de que exerce este poder sobre a sociedade, mais respirável torna-se a vida,
um saber. Estamos num mundo em rede, temos que subverter tudo. e quanto maior este controle, mais inviável se torna a vida. Em todo
Experimentamos a arte desde que nascemos. Sempre estamos sendo caso, é sempre esta questão que precisa ser colocada: como escapar
tocados por essa experiência intensiva. Assim, o que um jovem pode das sobrecodificações do saber significante? Como não se deixar
fazer numa periferia qualquer, em termos de música, grafite, dança, submeter a esta terrível máquina domesticadora de multiplicidades
vídeo, fotografia é tão arte quanto a obra Pelo amor de Deus, crânio que enfraquece a força criativa, organizando-a, enclausurando-a num
incrustado de diamantes de Damien Hirst. Mesmo que o mercado corpo orgânico útil, separando-a de seus afetos, para lançar sobre ela
domine tudo, não é o valor monetário ou o lugar em que se encontra, uma unidade totalizadora, um significado? Por que é que as pessoas
museu, galeria ou mansão de um colecionador, que torna algo arte, e não param de ser amáveis / ou de pensar que são amáveis ou de querer
sim seu poder de potencializar a vida, de tirá-la de seu lugar comum, ser amáveis e passam a ser um pouco mais elementares? // D. H. Lawrence.
esmagar o bom senso, criando novos afetos, fazendo algo, por menor A criação artística é um processo de invenção e ocupação de um
que seja, vibrar. A arte não deve ser concentrada em santuários mortos território, formando blocos de duração que tem um modo único de
chamados museus. Ela deve ser espalhada por toda parte: nas ruas, ocupar o território e sair dele, numa linha de desterritorialização que
nos bondes, nas fábricas, nas oficinas e nas casas dos trabalhadores. // nos possibilita entrar em processos de desautomatização e escapar
Maiakovski. De qualquer forma, há um imenso abismo entre comer a todo esse apagamento da diferença, porque pode nos conectar
batatas fritas e experimentar uma obra de arte. São de naturezas com um fora de toda normatização e nos devolver a sensação de vida.
diferentes. Talvez seja aí mesmo que vamos encontrar vitalidade, Só estamos vivos enquanto pudermos manter as fissuras abertas,
atingir o real, fugindo do plano mental, das armadilhas do si mental, enquanto pudermos fazer um pouco do infinito, uma porção de
de uma subjetividade subjugada a um poder dominante e subscrita Caos entrar em nossa vida, abrindo-nos à promessa de vida contida
a uma forma de saber (rostidade), à devastadora trivialização de tudo nas micropercepções, conectando-nos à promessa de felicidade da
da máquina totalitária do consumo. Vivemos o dia a dia, tantas vezes arte, ao nos colocarmos nesse desvão de expectativa do infinito,
num automatismo, e quando abrimos um livro, colocamos uma porque sabemos que é daí, dessas fissuras, do Caos, que tudo vem.
Um lanche nu nos é natural, / comemos sanduíches de realidade. / Porém
alegorias não passam de alface. / Não escondam a loucura. // Ginsberg.

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https://boardilla.wordpress.com/ Denise F. Adams
http://www.interzona.com.br/
http://claudioulpiano.org.br.s87743.gridserver.com/ Fernando era ágil no seu estar no mundo. Pensamento e
http://www.lygiaclark.org.br/defaultpt.asp
http://www.tate.org.uk/art/artworks/gursky-chicago-board-of-trade-ii-p20191 olho rápidos, ácidos e atentos. Observador crítico da cidade
http://www.edwardburtynsky.com/
http://petergreenaway.org.uk/tulse.htm e sempre à disposição de viver com alegria o que ela oferecia
FILMES como possível. Também assim era o amigo: generoso do seu
STEALING heaven. Direção: Clive Donner. Inglaterra e Iuguslávia, 1988. 115min. tempo, companheiro e excelente conversador.
LOIN des hommes. Direção: David Oelhoffen. França 2015. 110 min.
ASAS do desejo. Direção: Wim Wenders. Alemanha e França, 1988. 128 min.
ENCONTRO com Milton Santos ou O mundo global visto do lado de cá. Direção: Sílvio Tendler. Brasil, Caliban, 2006. 89min.
THE TULSE luper suitcases. Direção: Peter Greenaway. Part 1: The Moab Story. Inglaterra, 2003. 127min.
João Pereira e Lanussi Pasquali
¬¬____________________________________________. Part 2: Vaux to the Sea. Inglaterra, 2004. 108min.
_____________________________________________. Part 3: From Sark to the Finish. Inglaterra, 2004. 120min.
Entre a secura do sertão e a aridez do concreto situa-se o
trabalho do Fernando Pião. Um olhar que liga dois pontos
distantes do mapa geográfico do Brasil, mas próximos pela
condição humana solitária, sofrida e abandonada. No sertão,
a imensidão isola... na metrópole, a aglomeração isola...
realidades antagônicas intimamente ligadas pelo olhar do
artista que já não pertence à terra seca e nunca pertencerá à
cidade. Flutua entre lugares... por isso vê o que não se vê...
Imagens do sertão na cidade, imagens da cidade no sertão.

Mário R. V. Cassettari e Kiyoe Iizuka


O suporte convidava a sua estética, mas o discurso se descolava
da obra. Do grão ao pixel, do micro ao macro, do ordinário ao
extraordinário a pergunta sempre estava lá, crua, pronta, direta
e sem dó. Uma arte aflita como uma perna que nunca para
quieta.

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Cristina Pescuma Virginia Gil
fernando pião Fernando Pião, artista inquieto muito interessado nas imagens
aura acre doce, científicas. Mas, nem por isso, abriu mão da linguagem poética
trêmulas mãos fortes nos trabalhos fotográficos. Sentia que ele queria compartilhar
deslizaram linhas tanto seu olhar que era como se recebêssemos dele esse sentido
de encanto, de pertencimento.
de ruína. Colocou o seu olhar nas nossas mãos.
na concretude de um sopro
num peso abstrato Fernando Pião formou-se em Sociologia pela Universidade
sublime e infame, tudo translada: Federal da Bahia. Vivia e trabalhava em São Paulo desde
arte da escamoteação! 1996. Participou de grupos de estudo e pesquisa, exposições
em branco em preto em cor e coletivos de arte. Coordenou várias oficinas de fotografia
marcando um velado profundo e arte. Em 2000, foi selecionado para o 8º Salão de Arte
ou estridente sol socado Contemporânea de São Bernardo do Campo/SP. Participou
cujos desequilíbrios evaporam leveza, das exposições coletivas “Corpo estranho”, no Museu da
escavando turbilhões de tempos Imagem e do Som - São Paulo/SP, e “Artifício ar do tempo”,
em labirintos de planos disformes, na FUNARTE – São Paulo/SP. Em 2001, participou da coletiva
enigmáticos vagos mundos transparecem “Políticas pessoais”, no Museu de Arte Contemporânea, em
nos interstícios dos seres Americana/SP. Ganhou o Prêmio Aquisição no 29º Salão de
na quietude das coisas que espiam impassíveis, Arte Contemporânea de Santo André/SP. Em 2003, montou a
sonoridade do riso num olhar apertado exposição de fotografia “Outra margem”, no Espaço Cultural
Oswald de Andrade – São Paulo/SP. Em 2004, expôs na
Ricardo Vieira coletiva “Discordâncias”, na Galeria Virgílio – São Paulo/SP.
O trabalho do Pião é sobre o ser humano, onde ele habita, Entre 2005 e 2006, participou da ocupação no Estrela do Pari
a natureza de onde ele veio, a célula da qual ele é feito, os Futebol Clube, sob a coordenação de Jean-Philippe Isnard, e do
caminhos por onde ele transita, a esperança que o motiva e as Projeto Pari que ocupou a Biblioteca Adelpha Figueiredo – São
afinidades entre tudo isso. Paulo/SP. Em 2007, fez parte do ateliê aberto “Trânsito”, no
SESC Vila Mariana, dentro do projeto Circulações – São Paulo/
SP. Em 2009, realizou uma exposição coletiva “O artista e a

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cidade”, com direção e curadoria de Marcos Moraes, na Escola e, nesse perambular, encontro várias “Intervenções prontas”,
São Paulo – São Paulo/SP; participou da 7ª Bienal do Mercosul, as das constantes obras que fazem parte da paisagem urbana.
na Curadoria Projetáveis, em Porto Alegre/RS. Em 2010 e Então, me aproprio dessas imagens, por meio do registro
2011, integrou a mostra “Nós precisamos” – Cachoeira/BA e fotográfico ou videográfico. Quando viajo para o sertão,
Vitória da Conquista/BA. Participou em 2012 das exposições levo um tipo de tela que é usada pela construção civil e faço
“Enquanto tempo”, curadoria de Galciane Neves, na Oficina uma intervenção no meio da mata; nesse caso, a fotografia é
Cultural Oswald de Andrade – São Paulo/SP, e “Escala humana também registro dessa ação. Assim, essa série “interditos”
em elipse”, curadoria de Paulo Myada e Paulo Galina, no revela também que desejo cada vez mais fazer intervenções.
Espaço Cultural Porto Seguro – São Paulo/SP. Embora faça uso principalmente da fotografia, desejo produzir
mais do que apenas uma imagem, quero algo tridimensional,
ENTREVISTA PARA TW Jonas e Ricardo H. Rodrigues da algo que ocorra no espaço e implique certa duração, como uma
REVISTA ELETRÔNICA INTERZONA – SINTETIZADOR instalação. Carrego comigo essas duas paisagens, o sertão e
DE CABEÇAS – MARÇO DE 2014 o urbano. A cerca, o cercamento, que remete ao predomínio
da propriedade privada sobre a vida, que codifica as relações
Interzona: Na sua exposição “Interditos”, você cerca locais sociais em todo o interior brasileiro e mais especificamente
não usuais, como árvores, descampados isolados etc., com no sertão nordestino. A tela na cidade está relacionada às
aqueles cercados que são usados por prefeituras para isolar contenções de fluxos, ao controle dos fluxos. Essa série ainda
um local de obra, uma reforma ou qualquer outra intervenção está em processo, há muito a ser feito sobre esse assunto, a
urbana. Aparentemente não há preocupação com a imagem. interligar e a distinguir estes dois mundos: a caatinga e a
A fotografia é só mais um suporte, o registro de algo, uma metrópole.
parte do processo? Você é como aqueles artistas que utilizam a Interzona: Na sua exposição, “A escala humana”, as ampliações
fotografia para registrar uma performance ou como um artista e as coisas fotografadas são enormes, o que está ausente é
plástico que a utiliza para divulgar suas obras? justamente a escala humana. O espaço urbano está deixando,
Fernando Pião: De certa forma, sim, pode-se dizer que cada vez mais, de ser pensado para o homem?
essa série tem algo de registro de um processo, mas também Fernando Pião: A paisagem urbana contemporânea tem uma
posso dizer que é mais do que apenas um registro, pois minha escala inumana. As grandes cidades trazem essa desproporção,
intenção é produzir uma imagem a partir de uma intervenção pois não estão preocupadas com o humano, mas sim com o
ou de algo que vejo. O produto final é sempre uma fotografia fluxo de grande contingente de pessoas, de coisas, de capital.
ou um vídeo. Gosto muito de caminhar pelas ruas da cidade O espaço urbano tornou-se uma questão de fluxo, de grande
fluxo, e é uma escala não humana, um problema que vai

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também refletir na dimensão das imagens, nas questões que a pensamentos do autor. O valor desses pensamentos se encontra
arte tem que acentuar. Você tem que gritar para ser ouvido e ou na matéria, portanto naquilo sobre o que ele pensou, ou
também sussurrar para produzir um desvio na paisagem. Isso na forma, isto é, na elaboração da matéria, portanto naquilo
tudo é discutido pela exposição, com minhas grandes paisagens que ele pensou sobre aquela matéria. O tema sobre o qual se
impessoais e as grandes imagens de miniaturas produzidas por pensa é bastante diversificado, assim como o mérito que ele
Denise Adams, que conduzem a um intimismo, a uma relação concede aos livros. Toda a matéria empírica, portanto tudo
consigo mesmo nesse mundo contemporâneo. Essa questão o que é histórico, ou físico, todos os fatos, tomados por si
da escala é algo que chama muito minha atenção, pois São mesmos ou num sentido mais amplo, estão incluídos nesse
Paulo, como todas as grandes cidades, parece inesgotável, é um caso. A particularidade de tais livros diz respeito ao objeto,
Leviatã, nós nunca damos conta dela. Talvez por isso mesmo, por isso um livro pode ser importante seja quem for o autor.
procuro dar ênfase ao espaço urbano sempre em reconstrução, Quanto ao que é pensado, em contrapartida, a particularidade
pretendo captar esse “entre” de uma cidade que está sendo diz respeito ao sujeito. Os objetos podem ser conhecidos e
posta abaixo e de outra que está sendo levantada. Por isso os acessíveis a todos os homens, mas a forma de concebê-los, o
grandes formatos, a falta de referência, que torna indistinguível que é pensado confere aqui o valor e diz respeito ao sujeito. Por
o espaço, os vazios que perpassam esse “cheio”, esse caos. Nos isso, se um livro desse tipo é excelente e sem igual, o mesmo
trabalhos dessa exposição, algumas questões que permeiam vale para seu autor. (...)” Poderíamos utilizar esse conceito na
toda minha produção aparecem: espaço, tempo e escala. No fotografia? Por exemplo, um fotojornalista seria aquele cuja
trabalho “Atrás da porta – topografia dos espaços inacessíveis” atividade de produção de imagens é relevante como registro de
tento chamar atenção para esses espaços que são invisíveis, “objetos”. O autor não é importante, qualquer fotógrafo com
inacessíveis, que estão escondidos, embaixo do tapete, em bom domínio técnico poderia produzir uma imagem de uma
escala menor. Já a série “Variações de um mesmo tema” se determinada coisa (pessoas, catástrofes naturais, guerras etc.).
constitui de fotos de espaços com construções, estruturas que Ainda que as imagens produzidas por fotojornalistas variem
estão espalhadas pela cidade, precárias, provisórias, ou que em termos técnicos (uma abertura específica, uso ou não de
estão sendo destruídas para dar lugar a outra coisa. Algumas flash, enquadramento), elas seriam documentais, registros de
têm um apelo de monumento, outras de uma estética de um objeto dado. Já o fotógrafo conceitual seria aquele que
deterioração. O que lhes é comum é o fato de que elas estão em concebe um objeto de uma forma particular, singular, única;
trânsito, estão deixando de ser uma coisa para ser outra, daí mesmo registrando o mundo, ele lutaria para imprimir suas
essa atemporalidade... concepções, sua estética, para imprimir uma “forma” particular
Interzona: No livro “A arte de escrever”, Schopenhauer – o que o caracterizaria como artista. Concorda com essa visão?
diz: “Um livro nunca pode ser mais do que a impressão dos Fernando Pião: Concordo em parte, pois todo criador

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acaba por imprimir algo de si em seu trabalho. Usando suas anterior, será realmente que todo fotógrafo imprime sua
próprias palavras, “fotógrafo conceitual” seria aquele que usa “forma”?
o suporte fotográfico para desenvolver os conceitos, resolver Fernando Pião: Cada um fala do seu lugar, do seu tempo,
suas questões estéticas, mas não consigo generalizar assim; do seu campo social; o que posso dizer é que meu trabalho está
acho que há fotógrafos ou artistas que têm como suporte a entre o lirismo de um (Cartier-Bresson) e a sociologia do outro
fotografia, que querem falar do cotidiano, trazer o singular (Salgado), nesse “entre”, o que procuro é a fissura, entreformas,
que está no ordinário. O que para mim muda nisso tudo é o entre-escalas, entretempo... Não busco uma forma, mas sim um
trajeto e a intenção de cada um; o trabalho artístico, por mais pensamento, uma ideia. Embora essa ideia sempre resulte numa
importante que seja, não é pensado para exercer uma função, forma, não é o mais importante. Quero, no meu trabalho, o
ainda que depois possa ser incorporado pela cultura e por outros “entre outras coisas”... Trazer a problemática do espaço-tempo.
discursos. Não acredito que toda produção artística seja em si Só o tempo vai dizer se um trabalho é importante na história.
sempre uma forma singular e única, no entanto o que ela busca Quanto ao dualismo: contempladores ou ativistas, não os vejo
é uma singularidade, uma diferença ou mesmo pluralidades. como uma coisa excludente, eles vão juntos, é dialógico. Trago
Nem sempre é possível pensar a produção fotográfica a partir comigo diversos tempos, desde minha infância em Brumado/BA
de uma imagem; ao contrário, essa produção resulta de um até hoje. De qualquer forma, muitas das questões da fotografia
conjunto de imagens, de um agenciamento. A questão é como clássica já se esgotaram. O artista já não é mais visto como
essa produção se articula, é preciso pensar no conjunto de uma um produtor de formas, ele lida com o que já está dado, ele se
produção e no momento em que ela se dá, daí a importância da apropria do que já está aí para trazer à tona algo que ninguém
edição. tinha percebido, mas, principalmente, algo que interesse à sua
Interzona: Cartier Bresson dizia que a fotografia se pesquisa.
apresentava para ele. Uma situação específica provocava nele Bem, não acredito que as coisas sejam tão bem definidas
uma emoção intensa, o que o fazia clicar. Ele dizia que para como parecem. O fotojornalista e o fotógrafo conceitual estão
fotografar era preciso ter os olhos, as mãos e o coração em dentro de um mesmo campo social, e por isso acredito que
absoluta ressonância. Sebastião Salgado disse certa vez que um contamina o outro. O que difere um do outro é a função,
essa era uma visão demasiadamente romântica. Para Salgado, o fotojornalismo tem uma função bem específica, precisa
um homem sempre traz um mundo, uma história, uma cultura informar, comunicar algo. Quanto ao artista, ele pode ter como
quando se depara com uma situação que resultará numa objetivo sua pesquisa, que vai estabelecer relações com outros
imagem. Um fotógrafo é um contemplador ou alguém que meios, outros saberes, mas sua linguagem é a artística, que visa
intervém ativamente numa situação, que introduz na imagem a si mesma.
sua história, sua cultura? Retomando o tema da pergunta Interzona: “Aqueles que escrevem sobre fotografia escrevem

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apenas para aqueles que escrevem sobre fotografia”, disse que o ato fotográfico. Boa parte do processo se dá no computador,
Helmut Newton em uma entrevista. Os textos sobre fotografia a edição e outras manipulações, mas a fotografia sempre
(desconsiderando os técnicos, claro) interessam aos fotógrafos? implicou essa pós-produção. Então, o risco é se apaixonar pela
Fernando Pião: Isso é um problema em quase todas as técnica, lhe dar toda a primazia, ao invés de usá-la a favor da
áreas de conhecimento, falar para seus pares. Mas quando linguagem artística, do que se pretende expressar. Claro que
você coloca um problema real, seja na arte, na biologia, na há um grande fascínio pela técnica, que se dá pelo acesso fácil,
física, na sociologia ou na filosofia, ele extrapola, se torna o que nos leva ao perigo de uma produção pautada só por
uma questão para todos que se interessam pelo pensamento, ela. Temos que usar a técnica e as tecnologias como aliadas
que buscam compreender as coisas, seu funcionamento, pois em nossa pesquisa e não como um fim em si mesmo. Vemos
a produção e o pensamento sobre esta produção fazem parte muitas imagens belas, porém vazias, imagens que não trazem
de um campo social, são o ar do tempo, sempre apontam uma problemática, que não revelam nossas urgências – como a
para outras possibilidades de vida, para saídas dos impasses de produzir uma nova maneira de ver. Precisamos de imagens
que atingem toda a sociedade. De qualquer forma, quando se que tragam questões do próprio meio e que também possa
fala da fotografia, é importante precisar de qual fotografia se nos levar além. Porém, há, sim, uma produção excessiva de
está falando ou em qual fotógrafo se está pensando. Jeff Wall imagens. Já nos anos 1980, o artista alemão Joachim Shimidt
e Sebastião Salgado, ambos são fotógrafos, no entanto eles têm chamava atenção para a necessidade de editarmos o que já está
mais diferenças do que similitudes. Às vezes me interesso mais aí, não seria mais necessário continuar produzindo imagens.
por um texto de física do que de fotografia, porém tenho muito No entanto, hoje temos obras que só são possíveis graças a
interesse por textos de fotógrafos e artistas, e geralmente seus esse excesso de imagens, são artistas que se apropriam do que
textos têm uma força similar a de sua produção artística. já está aí ou produzem trabalhos que trazem muito mais um
Interzona: Antigamente, mesmo que fossem usados diversos procedimento, um registro diário, do que “uma boa foto’’,
rolos de filme, nunca se chegava à quantidade de cliques que calcada sobre a abundância de recursos.
hoje se chega numa sessão fotográfica com câmeras digitais. A Interzona: Há atualmente uma sobrevalorização da técnica?
edição se tornou uma coisa extremamente trabalhosa, e o acúmulo A perfeição excessiva das imagens digitais, talvez seu excesso
de dados ocasionou novas questões sobre armazenamento. A falta de realidade, seria sinal de empobrecimento da arte? “A arte
de rigor quanto ao que fotografar seria o preço a ser pago pela é uma mentira. O papel do artista é convencer os outros da
abundância de recursos? Quais seriam os desafios e os riscos veracidade de suas mentiras”, dizia Paul Klee. A “mentira”, a
em relação a esses novos instrumentos (e procedimentos)? “imprecisão”, o “erro” e o “defeito” não seriam o fundamento
Fernando Pião: Cada época coloca seu problema. Hoje há da concepção artística?
certa ênfase na pós-produção que, às vezes, é mais importante Fernando Pião: A técnica está aí para todos; a diferença está

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na pesquisa, nas questões levantadas por cada um. A pintura Interzona: Ao mesmo tempo o digital parece ser capaz de
passa pelo mesmo problema. Você pode ser um virtuoso num levar a imagem para além da fotografia; no mundo digital, não
determinado instrumento musical, na pintura ou na fotografia, há limites para o delírio imagético. O trabalho de manipulação
mas só isso não basta, é ficar refém da forma. Trata-se de uma das imagens pode vir a se sobrepor à tarefa de concepção/
herança platônica, essa busca insana pela forma perfeita, pelo produção fotográfica. Certa pós-produção masturbatória seria
corpo perfeito. O conhecimento da técnica é fundamental inevitável, portanto, para se chegar a novos tipos de imagem, a
em qualquer área de conhecimento. Há sempre os radicais, novas texturas. Nesse mundo, há ainda lugar para o negativo?
os fascinados pela técnica. Na arte, mesmo que se use um Fernando Pião: Há lugar para todos os tipos de técnicas e
procedimento científico, que implica numa repetição, procura- aparelhos. É a necessidade colocada pela pesquisa que deve
se a diferença; para isso é preciso sair do padrão, desviar o definir o uso de uma técnica ou de outra, seja ela antiga ou
código da imagem, romper com esse domínio excessivo da avançada. Mas, como já foi dito, a produção não se sustenta
técnica, com os clichês, com essa grande produção de clichês. apenas com efeitos de manipulação, não se abre para outras
E a imprecisão e o defeito, considerados isoladamente, não têm questões. Ao contrário, ela se fecha sobre si mesma. Esses
força artística. Portanto, não basta apenas ter um grande domínio conflitos sempre existiram e vão continuar existindo. A
da técnica ou apenas investir no erro. Daí a importância de um fotografia traz consigo essa ambiguidade. No início, no século
trabalho de pesquisa. O artista persegue algo, cada um traz uma XIX, a imagem fotográfica precisava ser manipulada para
problemática, que é tanto pessoal como coletiva, pois extrapola conquistar o estatuto de arte. Mais tarde, ela teve que ser pura
as individualidades, é um vetor, é sempre um problema de sua e direta para ser reconhecida como fotografia moderna. O que
época. E também, como já disse, é um trabalho de edição. Ver os importa hoje é que vivemos vários tempos simultaneamente. A
agenciamentos, ver quais imagens, ao serem colocadas juntas, todo momento temos atualizações de tempos a fazer, avatares.
podem evidenciar seu pensamento e se tornar um conjunto É um mundo que está sempre sendo reiniciado, reinventado;
que tenha consistência, força. No entanto, tenho dúvidas se há isso não quer dizer evolução, mas sim mudança, quer dizer que
mesmo uma sobrevalorização da técnica pelos fotógrafos, pois podemos conviver com vários mundos, o que nos abre toda
eles a utilizam em prol de seu trabalho. Vejo isso acontecer uma vertente de possibilidades, quer dizer que podemos viver
mais na indústria do entretenimento, a incorporação da técnica no digital e no analógico ao mesmo tempo. Podemos conviver
como mais um produto. Tudo que antes era pesquisa árdua não só com o negativo, mas também com o daguerreótipo, o
dos fotógrafos, agora já vem embutido nos equipamentos e cianótipo, etc. Mas essa questão do negativo não é relevante. Não
aplicativos. Fotografia hoje é uma indústria de entretenimento, podemos é ficar refém da indústria, da moda, da “obsolescência
uma das maneiras de se ter “uma boa foto” é no instagram, mas programada”. O negativo traz algumas questões que são
o que é o instagram? importantes no meu trabalho, como a imprevisibilidade, a falta

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de controle, o não imediatismo. Preciso de tempo: tempo para
fazer uma foto, tempo para levá-la a um laboratório, tempo
para pensar aquelas fotos, a edição, o tamanho, o suporte...
Interzona: Muitos fotógrafos manifestam certo temor quanto à
banalização da fotografia. A princípio, em razão da facilidade
de acesso aos equipamentos fotográficos e aos programas de
edição, qualquer um pode produzir imagens de certa qualidade
técnica e se considerar fotógrafo. Essa banalização é realmente
um problema? Ou é uma ameaça apenas aos fotógrafos
profissionais, que podem perder seus empregos?
Fernando Pião: Essa banalização da fotografia é e não é um
problema. Um pequeno grupo de fotógrafos que tem privilégios
perde uma fatia de mercado, mas uma imensidão de fotógrafos
é beneficiada. A natureza da fotografia é ser um meio de
reprodução em grande escala. E isso é o ar do tempo. Em vários
outros segmentos da vida atual, há esse excesso. Somos todos
consumidores. Essa questão de “imagem bonita” e tecnicamente
bem resolvida não é o que norteia uma pesquisa artística.
Num trabalho são colocados problemas, que não implicam
necessariamente a produção de um belo. Se repararmos nas
publicações diárias (acho que essa nomenclatura “diária” não
dá mais conta, pois as postagens são de minuto a minuto) nas
redes sociais, só há “fotos lindas”. É uma produção vazia, por
isso uma imagem logo é substituída por outra. São apenas
experiências narcísicas, um amor em demasia por si mesmo.
Não é possível encontrar aí uma problemática, que é parte
essencial da produção fotográfica.

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ARTISTAS
CONVIDADOS

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BEATRIZ NOGUEIRA seu processo, encontra-se sua motivação e também seu risco,
Deliberação e Cumplicidade ingredientes precisos para dar início à relação que tanto anseio
Aí está. Lá. Aqui. Ali. tramar com o espaço. Imbuída desse meu não saber e ancorada
Fecha. Abre. Encerra. nos materiais que elegi, levo essas premissas como uma espécie
Começa a medida do corpo. de vocabulário ainda desprendido de um significado específico,
Movimento distâncias. mas impregnado de simbologia e familiaridade.
Sobre a artista: Beatriz Nogueira, 1973, vive e trabalha
Acantonar. Espalhar. Empilhar. em São Paulo. É formada em Licenciatura em Artes Plásticas
O som do risco. Fricção. pela Fundação Armando Álvares Penteado (FAAP). Entre as
principais exposições que participou destacam-se a individual
Entre-Paredes, na galeria El Container, em Quito, Equador,
A madeira, o carvão, o giz, o grafite.
2010. No mesmo ano participou da Bienal do Recôncavo,
Textura-cor, forma, volume, em São Félix, Ba. Participou da exposição VERSO,em 2013,
temperatura. no Sesc Pinheiros, SP, com curadoria da artista Edith Derdyk,
e da exposição Desenho – Estado. Ação Acontecimento., no
Lâminas. Cortes, incisões. Sesc São Carlos, SP. Artista e arte-educadora, atua no ensino
Nas paredes, a tinta removida. O pó. formal e informal em diversas frentes, como na capacitação de
educadores em artes visuais, com arte e cultura em hospitais,
com portadores de distúrbios mentais e na elaboração e edição
No espaço, o espaço.
de material didático.
Na ação, o tempo.

Ao desenvolver um trabalho atrelado à alguma localidade


específica, procuro detectar suas ondas arquitetônico-afetivas e
assim, me lançar na construção de uma trama propositora de
outras tramas-espaço-temporais. Algo que se configure como
uma espécie de jogo com o próprio lugar. Jogo de corpo, de
memória, de percepções, de ideias e sentimentos.
Os trabalhos se desenvolvem in loco sem um plano fechado
de antemão, embora já sejam conhecidas as diretrizes para cada
obra. No desconhecimento do resultado final e de partes de
Foto # 01: Danielle Felicori Foto # 02: Danielle Felicori

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ELIAS SANTOS
Junções/disjunções.
Nos trabalhos tridimensionais que venho produzindo
atualmente, estou interessado em explorar o potencial
expressivo dos mais diversos materiais com os quais busco
estabelecer correlações que de alguma maneira liberem
elementos perceptivos, sedimentados em torno das formas
habituais. Quase sempre parto do encontro com algum
objeto ou situação que desencadeia um fluxo de associação
de imagens, num processo por meio do qual as exigências da
matéria vão modelando minha intencionalidade à medida que
se deixa modelar por ela. As tensões que são colocadas por
Foto # 03: Beatriz Nogueira esse processo têm, para mim, um sentido polimórfico que não
pode ser resolvido inteiramente num único trabalho, restando
sempre um fio a ser retomado em outros desdobramentos.
Nos trabalhos da série Junções, iniciei esculpindo em pedaços
de giz uma série de pequenas cabeças cujas expressões faciais
foram se definindo à medida que certos acidentes próprios da
matéria foram introduzindo a necessidade de fazer alterações
nas linhas originalmente buscadas. Como o giz abriga em seu
interior bolhas de ar e impurezas outras imprevistas, o ato de
esculpir nessa matéria tem a cada instante que incorporar um
elemento novo, abrindo espaço para a produção de desvios
que levam o processo de criação a um limite que tangencia
os riscos de que as peças venham a perder a sua integridade,
Foto # 04: Beatriz Nogueira
fragmentando-se definitivamente. Paradoxalmente, esse risco
é assumido como um momento essencial de um processo
Habitante II, 2014 // Obra site specific
Materiais: madeira, grafite, giz pastel. // 800 cm (dimensão aproximada)
de criação que extrai sua energia das tensões estabelecidas
Exposição DESENHO – estado. ação. acontecimento, 2014 entre os limites seguros da matéria e a tênue membrana que
SESC Sesc São Carlos - SP

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o aproxima de uma zona de ruptura que entra nos domínios série que dei o nome de Junções. Em alguns desses objetos
da morte. De fato, as melhores cabeças que esculpi com essa busquei criar espaços cenográficos miniaturizados a partir de
frágil matéria foram aquelas que acidentalmente vieram a ser materiais provenientes de sucatas de aparelhos eletrônicos
destruídas pelo próprio fazer, não deixando nenhum fragmento descartados, dentre outros materiais que fui juntando ao longo
viável para a sua continuação. Digo melhores, não porque essas do tempo. Nesses cenários em miniatura, iluminei as peças
cabeças tivessem qualquer particularidade expressiva que as esculpidas em giz com a instalação de pequenas lâmpadas
distinguissem das outras, mas porque, ao serem destruídas no de LED para enfatizar o congelamento de uma cena, fazendo
próprio fazer, cumpriram um circuito completo de nascimento ressoar indefinidamente as intensidades de um grito de dor,
e perecimento que inscreveram sua breve existência na ordem ou o silêncio contido de um luto suspenso na vastidão de
dos fatos percebidos não pela sua materialidade, mas pela sua uma noite que espera o seu fim. Procurei abordar esses temas,
duração. aproximando-me de uma dramaturgia que busca maximizar
Para além dessa disjunção entre duração e materialidade, seus efeitos expressivos, encerrando uma única figura num
todo o processo de criação de cada uma dessas esculturas se espaço de interioridade, onde a solidão aprofunda-se na
caracteriza como uma performance privada cujos registros das imobilidade de um gesto que esboça uma ação, mas detém-se
intensidades vivenciadas podem ser a persistência das próprias impotente diante do inexorável.
cabeças esculpidas – no caso de sua realização se resolver em Velhos gabinetes metálicos de computador foram
tempo hábil, antes de entrar na zona de ruptura que leva à sua utilizados na produção desses dioramas nos quais essas cenas
desintegração; ou a narrativa de um acontecimento – no caso foram compostas segundo um ordenamento assimétrico
desse processo vir a ocasionar a própria destruição do trabalho, que se destaca em relação a um fundo escuro obtido por
restando apenas as impressões que se pode reter na memória. meio da colagem de tecidos emborrachados. Mas há outros
De algum modo são esses registros que irão servir de matéria trabalhos dessa série nos quais resolvi o problema expositivo,
para um outro momento desse processo de criação, ao qual concebendo caixas emolduradas em pequenos formatos, onde
outros elementos irão se juntar, num acúmulo crescente de a organização simétrica da composição coloca essas figuras
vivências reunidas na forma de objetos e assemblagens. numa frontalidade que encara o espectador, projetando para
Uma vez que esses registros materiais constituem uma fora do quadro os movimentos intensivos das emoções que
coleção de cabeças, cuja duração se estende para além do as animam. As placas de vidro instaladas na frente desses
tempo envolvido na feitura de cada uma delas, a necessidade trabalhos – que no caso dos dioramas tem a função de isolar
de providenciar um contexto expositivo para essas peças as figuras no espaço cenográfico de sua agonia – têm, nessa
é que me levou a conceber esses objetos e assemblagens da série emoldurada, o sentido de um filtro que comporta uma

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abertura para outros espaços de solidão, onde as experiências
de interioridade podem ser compartilhadas.

Foto: Alessandra Nohvais.

Sobre o artista: Formado em Artes Plásticas pela Universidade


Federal da Bahia, Elias Santos, 48 anos, é natural do município
de Cairu, Bahia. Ao longo de sua carreia, realizou cinco
exposições individuais e participou de diversas coletivas,
recebendo prêmios em três edições do Salão Regional de Artes
Visuais da Fundação Cultural do Estado da Bahia e em duas
edições da Bienal do Recôncavo, promovidas pelo Centro
Cultural Dannemann, em São Félix, Bahia. No exterior, o
artista participou de três exposições coletivas, uma em Portugal Gabinete, warranty void if removed (detalhe), 2011. Assemblage: escultura
(cópia em gesso pedra), gabinete de computador, caixa de fonte de computador,
e duas em Londres. Atualmente vive e trabalha em Salvador, napa, tela sintética, canutilho, vidro, imã, instalação elétrica com leds, etc. 38,5
Bahia. - http://eliassantosportfolio.blogspot.com.br/ x 40,0 x 21,0 cm. (foto: Elias Santos)

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FÁBIO MAGALHÃES
Fábio – Oi, Eriel, tudo bem? Recentemente fui convidado
por Lanussi para participar do curso “Arte Contemporânea
e o Pensamento da Diferença” o qual terá uma publicação dos
participantes. Eu estava pensando em publicar aquele artigo que
você escreveu sobre o meu trabalho, no “Congresso Sobre Outros
Artistas”, este ano em Portugal, no qual o artista fala sobre o
trabalho de outro artista. Eu gostaria de saber se você aceita que
esse mesmo texto seja publicado aqui no Brasil. Você concorda?
Eriel – Fábio, como o texto foi publicado em Portugal, acho
que seria melhor criar um outro texto para esse curso. Eu poderia
discutir sobre uma outra série da tua obra, pois eu falei sobre a
Gabinete, warranty void if removed (detalhe), 2011. Assemblage: escultura
série “Retratos íntimos”.
(cópia em gesso pedra), gabinete de computador, caixa de fonte de computador, Fábio – Sim! O texto foi publicado em Portugal, penso que o
napa, tela sintética, canutilho, vidro, imã, instalação elétrica com leds, etc. 38,5
x 40,0 x 21,0 cm. (foto: Elias Santos)
mesmo seria inédito aqui no Brasil.
Eriel – Cara, eu insisto que poderíamos preparar um outro
texto, pois a publicação de Portugal será impressa e on-line, logo
todos teremos acesso. Além disso, essa é uma oportunidade para
falar de outros trabalhos seus. Afinal de contas, você sempre está
criando novos trabalhos.
Fábio – Tudo bem! Como faríamos então? Você tem tempo
para produzir um novo texto?
Eriel – Quantas laudas foram disponibilizadas?
Fábio – Lanussi me falou de quatro laudas.
Vocifera (detalhe), 2011,
Eriel – Esse número é tranquilo. Para quando?
Assemblage, escultura
(cópia em gesso pedra), Fábio – Ela disse que será para o dia 30 de maio.
placa mãe, pelúcia, plugs, Eriel – Temos tempo, pode contar comigo. Pra começar, você
plásticos, metais e foamboard.
26,0 x 26,0 x 5,0 cm. poderia me dizer algo sobre seu trabalho atual, pois já venho
(foto: Elias Santos) acompanhando tua produção e gostaria de ver o que você está

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produzindo agora. por mais que meu trabalho seja uma pintura realista de uma
Fábio – Cara, ultimamente venho perseguindo certos determinada cena, tudo que está ali é o resultado de um conjunto
devaneios... (risos) de ações e procedimentos acumulados em camadas de tempos e
Eriel – Sim! Mas isso tem resultado em quê? Sempre temos imagens, entrelaçadas por ideias e sensações criadas a partir de
devaneios em nossas vidas, o que você faz com os seus? pulsões, das condições psíquicas e substratos de um imaginário
Fábio – Para mim, o devaneio é um lugar de liberdade para pessoal.
a produção artística. É como se os devaneios fossem uma matriz Eriel – Mas as imagens parecem uma espécie de espelhamento?
embrionária. O que você pensa sobre espelhamento, reflexo e reflexão de uma
Eriel – Hummm! Acho que entendo o que você quer dizer. realidade? Seu trabalho seria um reflexo do quê? E por que a
Poderia falar um pouco mais sobre o que você pensa sobre “matriz pintura realista?
embrionária”? Fábio - A pintura para mim é uma escolha, uma decisão.
Fábio – Bem! Quando penso em minha obra é como se eu Semelhante a outros artistas que escolhem outras técnicas, a
estivesse andando numa estrada que não sei aonde vai chegar, pintura realista é uma escolha que acredito atender minhas
mas sei exatamente qual direção seguir, que atitudes tomar. propostas, diferentemente de artistas que usam ou usaram a pintura
Como se estivesse afastado do pensamento lógico, então uso como mera representação do mundo real, eu escolho a pintura
os devaneios como substrato para produção de imagens, uma como uma necessidade, uma espécie de catalisador para coroar o
“matriz embrionária”. Sei exatamente como elas devem ser resultado final do trabalho. Eu gostaria que as pessoas entendessem
construídas, consigo até visualizá-las em pensamentos, mas que acompanho os processos que a Arte tem passado, e então
não tenho conhecimento total do seu significado, não sei o que escolho a pintura como uma atitude artística. Sei que existem
é isso. Talvez essas imagens já estejam processadas em mim, na tendências; contudo, eu tomo a pintura realista como uma atitude
minha mente. E é no estágio de devaneio que elas simplesmente consciente. Para mim, essas imagens devem ser dessa maneira.
começam a surgir. Faz algum tempo que percebo isso, pois antes Elas, por exemplo, poderiam ser apresentadas por uma fotografia,
meu trabalho era construído dentro de um pensamento lógico, tranquilamente, mas defendo que elas devem ser apresentadas
amarrado em conceitos antes de sua realização, e nesse momento como pinturas que emergem de construções sensitivas, logo, não
estou dando mais vazão a esses devaneios sem essas amarras se trata de um espelhamento do real fotografado, mesmo quando
durante a produção desses novos trabalhos. construo cenas para serem fotografadas, pois estas são simulações
Eriel – Então antes você representava uma ideia, e agora quer de ideias oriundas do meu imaginário. Uma realidade interna,
dizer que o devaneio deixa você mais livre? impossível de ser espelhada, e sim pintada.
Fábio – Pô! É bom você tocar nessa ideia sobre representação, Eriel – Poderíamos então levantar uma discussão sobre

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apresentação, representação e interpretação, pois acho que esses equivalente em imagens, criadas para ocupar esse lugar. Eriel, a
conceitos estão juntos na tua obra. Penso que se trata de uma aparência pode até ser de uma pintura clássica, mas não se trata
apresentação em pintura que representa uma interpretação das de cumprir as regras do classicismo entre outras doutrinações
suas ideias como artista. acadêmicas. Venho descobrindo um jeito próprio de pintar
Fábio – Talvez você tenha razão, pois pensando como eu minhas ideias através de especulações construídas em cada etapa
trabalho no ateliê, inicialmente tento apresentar uma ideia a partir do processo.
de uma determinada interpretação. Como você já acompanha Eriel – Fábio! Venho pensando que a arte contemporânea se
meu trabalho, sabe que meu processo criativo parte de uma Tríade encerra no indivíduo. Algo que nos torna livres para construir uma
(Simulação do Ato/Ficção – Fotografia – Pintura). Inicio com o obra descolada de diretrizes impostas por Escolas, movimentos,
simulacro de um ato ou cena no ateliê, onde recorro à ficção, ideologias entre tantos outros mecanismos que dirigiram a
em seguida, uso processos fotográficos para capturar algumas produção artística do passado. Hoje, mesmo trabalhando com
imagens, que por fim desemboca no universo da Pintura onde a uma técnica criada há muito tempo, como o óleo sobre tela, o
obra se concretiza. indivíduo contemporâneo subverte a técnica pela poética. Percebo
Eriel – Ah! E o que você me diz da aparência clássica de sua que você se coloca em muitos dos seus trabalhos. Como se dá o
pintura? Mesmo atual parece uma pintura realista clássica. Eu em sua obra?
Fábio – Realmente é uma pintura a óleo, como sempre Fábio – Cara, como falei anteriormente, eu crio uma cena com
se fez. Mas não é tão convencional assim, a técnica é o velho um determinado personagem humano ou não. Há uma outra
óleo sobre tela; contudo, os temas das minhas pinturas dão as tríade (o Corpo – o Eu – o Ser) que se estabelece na busca pela
costas às convenções. Inclusive há nas minhas produções uma imagem/corpo, às vezes uso meu próprio corpo ou não como
assepsia proveniente das fotografias publicitárias, algo incomum uma matéria-prima. Contudo, o Eu (identidade) se faz presente
da produção artística clássica. Até chegar à pintura, muitas em imagem, porém este é atravessado por algo até atingir o Ser.
coisas acontecem, pois eu construo vários procedimentos até Minha Imagem/Corpo torna-se na pintura uma espécie de avatar
chegar às imagens, que para mim são tão importantes quanto a para o Outro, por mais que parta de condições de um universo
obra finalizada, porém o público só vê a pintura pronta, todo o particular, sempre esbarro no senso comum da Natureza Humana.
processo fica no atelier. Talvez, o que você esteja querendo dizer Eriel – Percebo certas contradições presentes em seu trabalho.
seja a aparência realista das imagens. Porém, esse realismo não Você já pensou sobre a existência do antagonismo em sua obra?
corresponde a uma imitação do real. Uso a pintura realista para Fábio – Sim, noto a presença em vários aspectos, por exemplo,
falar de sensações e condições psíquicas. A questão é, como tornar quando procuro apresentar imagens figurativas que tratam de
visível algo que é sentido? Tento com a pintura apresentar um assuntos abstratos. Em outros momentos a imagem é carregada de

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sedução e repulsa ao mesmo tempo. Também buscar no particular
para falar do coletivo, entre outros.
Eriel – Por que a carne “viva” sempre está presente nas imagens
que você produz?
Fábio – Penso que se trata do indivíduo, do humano, pois afinal
somos constituídos de carne. Na carne encontra-se o sentido de
estar no mundo, onde “mora a pulsão”
Fábio – E ai, você tem mais alguma questão que queira
esclarecer, para a produção do texto?
Eriel – Fábio, o que você acha de apresentar essa nossa
conversa como o próprio texto?
Fábio – Não sei! Preciso falar com Lanussi. Gosto da ideia.

Sobre o artista: Formado em Artes Plásticas pela


Universidade Federal da Bahia, Fábio Magalhães, 1982, vive
e trabalha em Salvador. Realizou exposições individuais, em
2008, na Galeria de Arte da Aliança Francesa, em Salvador,
BA. Em 2009, “Jogos de Significados”, na Galeria do Conselho
– Salvado, BA. Em 2011, “O Grande Corpo”, prêmio Matilde
Mattos/FUNCEB, na Galeria do Conselho – Salvador, BA.
Em 2013, “Retratos Íntimos”, na Galeria Laura Marsiaj – Rio
de Janeiro. Foi selecionado para o “Rumos Itaú Cultural
2011/2013”. Entre as mostras coletivas estão: em 2012,
“Convite à Viagem– Rumos Artes Visuais 2011/2013”, no Itaú
Cultural – São Paulo/SP, com curadoria de Agnaldo Farias; “O
Fio do Abismo–Rumos Artes Visuais, 2011/2013” –Belém/PA,
com curadoria de Gabriela Motta; “Territórios”, Sala FUNARTE/
Nordeste – Recife/PE,com curadoria de Bitu Cassundé. Entre
outras. Em 2015, foi indicado ao Prêmio Pipa. É representado
pela Galeria Marsiaj Tempo – Rio de Janeiro/RJ

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LUCIA M.LOEB
Sobre a artista: Lucia M.Loeb, 1973,vive e trabalha em São
Paulo. Formou-se em Design Gráfico no Centro Universitário
Belas Artes, São Paulo, em 2010. Mestra em poéticas visuais
pela Escola de Comunicações e Artes (ECA) da Universidade
de São Paulo, USP, orientada pelo professor Marco Butti, em
2014. Entre as principais exposições que participou, destacam-
se: Memória Fotográfica (individual), Galeria Marilia Razuk,
São Paulo, SP, em 2014; A Tara por Livros ou A Tara por
Papel, Galeria Bergamin, São Paulo, SP, em 2014; Artist’s Books
(Imagine Brazil), Astrup Fearnley Museet, Oslo, Noruega, em
2013; Retorno/Cruzeiro (individual), Centro Universitário da
USP Maria Antonia, São Paulo, em 2011/2012; Panoramas do
Sul, 17º Festival Internacional de Arte Contemporânea, SESC
Belenzinho, São Paulo, SP, em 2011; Piratas, Mapas e Tesouros,
Itaú Cultural, São Paulo, SP, em 2010.
Trabalha com fotografia desde 1991. Buscando um novo
suporte para as imagens,começou a investigar e experimentar a
construção de uma série de livros e livros objetos que utilizam
procedimentos tais como repetição de imagens, deslocamentos,
sobreposições, cortes e furos, entre outros.

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Apoio

Realização Apoio Financeiro

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