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Criação

Crítica &
· eu voltei!· 12
Roland Barthes
 da morte do autor ao seu retorno

Eurídice Figueiredo1

resumo:  O artigo propõe um percurso que passa pela abstract:  This article proposes a path that involves the
leitura de artigos de Maurice Blanchot e Michel Fou- reading of two articles by Maurice Blanchot and Michel
cault para chegar à trajetória de Roland Barthes no Foucault in order to apprehend Roland Barthes’s trajectory
que concerne ao debate sobre a figura do autor, desde concerning the debate regarding the nature of authorship,
o célebre artigo “A morte do autor” até seu curso A pre- from the well-known article “The death of the author” un-
paração do romance II, ministrado no Collège de France til the course The preparation of the Novel II that he gave at
e publicado postumamente. A análise que se faz aqui Collège de France, published posthumously. This analysis
privilegia o livro Roland Barthes por Roland Barthes que focuses on the book Roland Barthes by Roland Barthes whi-
já anunciava a vaga autobiográfica que iria surgir nos ch was a precursor of the autobiographical wave that was
anos subsequentes. to appear his written production in in the following years.

palavras-chave:  Maurice Blanchot, Michel Foucault, keywords: Maurice Blanchot, Michel Foucault, Ro-
Roland Barthes, autor. land Barthes, author.

Prolegômenos: Blanchot e Foucault


Durante os anos 1960 havia a percepção de que não interessava à crítica estruturalista a vida do autor
empírico2. Os dois artigos emblemáticos dessa postura, “A morte do autor”, de Roland Barthes, de 1968,
e “O que é um autor?”, de Michel Foucault, de 1969, tinham um predecessor, Maurice Blanchot, que em
O livro por vir (edição original de 1959), já colocava questões relevantes sobre a morte do autor e da lite-
ratura. No entanto, uma análise desses três textos pode detectar diferenças significativas na abordagem
do assunto, ou seja, de que “autor” cada um deles estava falando. Vou tratar rapidamente de Blanchot e
de Foucault antes de me adentrar na obra de Barthes.
Vou me deter em três dos últimos artigos do livro de Blanchot, “A busca do ponto zero”, “Onde agora?
Quem agora?” e “Morte do último escritor”. Ao analisar O inominável de Beckett, Blanchot pergunta
quem está condenado a falar sem repouso, vivendo uma experiência sob a ameaça do impessoal porque
sem nome. Quem fala, o próprio autor, Samuel Beckett? E ele continua:

Mas quem poderá designar esse nome se, de qualquer maneira, aquele que escreve já não é
Beckett, mas a exigência que o arrastou para fora de si, o desapossou e o desalojou, entregou-o
ao fora, fazendo dele um ser sem nome, o Inominável, um ser sem ser que não pode nem viver,
nem morrer, nem cessar, nem começar, o lugar vazio em que fala a ociosidade de uma fala
vazia e que é recoberta, bem ou mal, por um Eu poroso e agonizante. (BLANCHOT, 2005, p. 312)

Assim, fica claro que o autor que escreve não se confunde com o ser empírico que tem o nome do autor.
Sobre Proust ele escreve algo semelhante:
1
Professora do Programa de Pós-Graduação em Estudos de Literatura da Universidade Federal Fluminense, com bolsa de produtividade do
CNPq. Contato: euridicefig@gmail.com.
2
Uma primeira versão deste texto foi publicada como parte de um capítulo no livro FIGUEIREDO, Eurídice. Mulheres ao espelho: autobiografia,
ficção e autoficção. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2013.

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Mas quem fala aqui? Será Proust, o Proust que pertence ao mundo, que tem ambições
sociais das mais vãs, uma vocação acadêmica, que admira Anatole France, que é cronista
mundano no Figaro? [...] Dizemos Proust, mas sentimos que é o totalmente outro que escreve,
não somente uma outra pessoa, mas a própria exigência de escrever, uma exigência que
utiliza o nome de Proust mas não exprime Proust, que só o exprime desapropriando-o,
tornando-o Outro. (BLANCHOT, 2005, p. 306)

Blanchot está fundamentalmente ancorado na questão da crise da representação e da morte do poeta


iniciada no fim do século XIX por poetas como Rimbaud e Mallarmé. A palavra em Mallarmé não é capaz
de representar o referente; sendo puro significante, ela designa antes a ausência da coisa, ou seja, os ob-
jetos se desvanecem junto com o poeta. No artigo “Crise de vers” em “Variations sur un sujet” Mallarmé
escreve: “A obra pura implica o desaparecimento elocutório do poeta, que cede a iniciativa às palavras,
pelo choque de sua desigualdade mobilizadas; elas se incendeiam de reflexos recíprocos como um rastro
virtual sobre pedrarias, substituindo a respiração perceptível no antigo sopro lírico ou na direção pessoal
entusiasta da frase”3 (MALLARMÉ, 1945, p. 366). Mallarmé é obcecado pelo branco – página branca, cisne
branco, neve, tantas metáforas que apontam para a ausência, o vazio, o silêncio, a impossibilidade de
expressão. O poeta que almeja realizar sua grande Obra, o Livro, é condenado ao fracasso, aos fragmentos.
Ele escreve ainda: “Eu digo: uma flor! E, fora do esquecimento em que minha voz relega algum contorno,
enquanto outra coisa sobre os cálices, musicalmente se levanta, a própria ideia e suave, a ausência de
todos os buquês”4 (MALLARMÉ, 1945, p. 368). Rimbaud é o poeta vidente que abandona a poesia aos 20
anos, desiludido, sem outra explicação senão alguns sinais impressos em seus poemas, como em “Sangue
mau”: “Minha jornada terminou; deixo a Europa. O ar marinho queimará meus pulmões [...]. Vamos! A
marcha, o fardo, o deserto, o tédio e a cólera” (RIMBAUD, 1964, pp. 119-120).5 Ele já não acreditava na força
da palavra poética para transformar o mundo.
É na trilha da poética de Mallarmé e Rimbaud que se situa Blanchot: “A obra exige que o homem que
escreve se sacrifique por ela, se torne outro, se torne não um outro com relação ao vivente que ele era, o
escritor com seus deveres, suas satisfações e seus interesses, mas que se torne ninguém, o lugar vazio e
animado onde ressoa o apelo da obra” (BLANCHOT, 2005, p. 316). Assim, ele imagina a morte do último
escritor, um Rimbaud ainda mais mítico do que o verdadeiro (BLANCHOT, 2005, p. 319), um escritor con-
denado ao silêncio. A crise da representação que se iniciara no fim do século XIX só fez se acentuar em
consequência dos traumas advindos das duas guerras pelas quais passou a Europa. A obra de Beckett
– assim como de outros escritores dos anos 1950 – se situa nesse contexto de desesperança, de distopia,
com o esfacelamento do sujeito e da linguagem. Blanchot vê o desaparecimento da literatura devido ao
“recuo do silêncio” no “grande tumulto das cidades” onde prevalece uma fala vazia, uma “fala secreta
sem segredo” (BLANCHOT, 2005, p. 320). A literatura que surge nessa tagarelice coletiva não é mais aquela
que tirava o autor fora de si, levando-o muitas vezes à desrazão ao buscar a Beleza. Blanchot concebe
o escritor como um ser que sacrifica sua vida porque vive atravessado por fantasmas que habitam seu
mundo imaginário. Ao contrário de Freud, que acreditava que o homem podia sublimar suas angústias
3
Tradução minha. No original: “L’oeuvre pure implique la disparition élocutoire du poète, qui cède l’initiative aux mots, par le heurt de leur
inégalité mobilisés; ils s’allument de reflets réciproques comme une virtuelle traînée sur des pierreries, remplaçant la respiration perceptible
en l’ancien souffle lyrique ou la direction personnelle enthousiaste de la phrase”.
4
Tradução minha. No original: “Je dis: une fleur! et, hors de l’oubli où ma voix relègue aucun contour, en tant que quelque chose d’autre que les
calices sus, musicalement se lève, idée même et suave, l’absence de tous les bouquets”.
5
Tradução minha. No original: “Ma journée est faite; je quitte l’Europe. L’air marin brûlera mes poumons [...]. Allons! La marche, le fardeau, le
désert, l’ennui et la colère”.

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através da arte, Blanchot considera que quanto mais o artista adentra o mundo da ficção, mais obcecado
ele fica, como seriam os casos de Nerval, Hölderlin e Goya (BLANCHOT, 2005, pp. 315-316). Assim, o pensa-
mento de Blanchot se situa muito mais na tradição da Estética que se cruza, naquele momento de crise,
com o domínio da Ética.
Já Michel Foucault era um historiador que usava a arte para pensar questões sociais expressas por todo
tipo de discurso. Ele começa sua argumentação tomando emprestada a frase de Beckett, “Que importa
quem fala, disse alguém, que importa quem fala”, para afirmar que a escrita naquele momento havia-se
libertado do tema da expressão e só se referia a si própria, sem se deixar aprisionar na forma da interio-
ridade. A referência cabe bem aos modelos formalistas e antipsicologizantes do nouveau roman francês
e do teatro do absurdo (de que fazia parte Beckett), que enfatizavam muito mais a aventura da escrita do
que a escrita das aventuras, na célebre boutade de Jean Ricardou. A literatura vivia numa era da suspeita,
conforme o título do livro de Nathalie Sarraute, L’ère du soupçon. Para Foucault, “na escrita, não se trata
da manifestação ou da exaltação do gesto de escrever, nem da fixação de um sujeito numa linguagem; é
uma questão de abertura de um espaço onde o sujeito de escrita está sempre a desaparecer” (FOUCAULT,
1992, p. 35). Tal como Blanchot, ele assinala o parentesco da escrita com a morte, que se manifesta “no
apagamento dos caracteres individuais do sujeito que escreve [...]; a marca do escritor não é mais do que
a singularidade da sua ausência” (FOUCAULT, 1992, p. 36).
Ele afirma que não basta falar da morte do autor, o conceito de obra é tão problemático quanto a indi-
vidualidade do autor. Não basta questionar a intencionalidade do autor (o seu querer dizer), não basta
atribuir à crítica um papel hermenêutico ou exegético, o desaparecimento do autor está submetido “à
clausura transcendental” (FOUCAULT, 1992, p. 41). Para Foucault, trata-se, pois, de “localizar o espaço
deixado vazio pelo desaparecimento do autor, seguir de perto a repartição das lacunas e das fissuras e
perscrutar os espaços, as funções livres que esse desaparecimento deixa a descoberto” (FOUCAULT, 1992,
p. 41). Barthes, em artigo de 1971, também critica o uso do termo “obra”, preferindo sempre falar de texto:
“O texto é plural. Isso não significa apenas que tem vários sentidos, mas que realiza o próprio plural do
sentido; um plural irredutível” (BARTHES, 1988, p. 74). Enquanto a obra estaria presa a um processo de
filiação, em que o autor é o seu pai e proprietário, o texto é lido sem a inscrição do Pai, numa relação com
outros textos (intertextualidade). O autor, ao se colocar no romance, por exemplo, torna-se um “autor de
papel”, “o eu que escreve o texto, também, nunca é mais do que um eu de papel” (BARTHES, 1988, p. 76). Ao
fazer isso, Foucault e Barthes dessacralizavam tanto a figura do autor quanto o estatuto da obra literária.
No entanto, se para Foucault esse esvaziamento se dava em proveito de uma compreensão do discurso
como acontecimento, fazendo parte de um processo muito mais coletivo e histórico, para Barthes essa
dessacralização tirava o foco da produção textual para visar a recepção (o leitor).
Um aspecto que Foucault focaliza com destaque, diferentemente de Barthes e Blanchot, é a questão do
nome do autor, que não é a mesma coisa que o nome de uma pessoa qualquer; um nome de autor exerce
uma função classificatória que serve para delimitar um certo corpus (a obra do tal autor) e determinar a
sua recepção pelo público leitor: “A função autor é, assim, característica do modo de existência, de circu-
lação e de funcionamento de alguns discursos no interior de uma sociedade” (FOUCAULT, 1992, p. 46). O
autor (ou, o que Foucault chama de função autor) surgiu no fim do século XVIII quando se instaurou um
regime de propriedade dos textos: do lado negativo da questão, o autor se tornou responsável por seus
livros, podendo ser punido por suas transgressões (basta pensar nas ameaças aos filósofos como Vol-
taire, Rousseau, Diderot), do lado positivo, ele adquiriu certa aura (até mesmo por suas transgressões).
Também na mesma época operou-se um quiasmo entre a produção científica, que perde a função autor,

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e a produção literária, em que se exacerba a função autor. A formação do autor tem a ver com a projeção,
“em termos mais ou menos psicologizantes, do tratamento a que submetemos os textos, as aproximações
que operamos, os textos que estabelecemos como pertinentes, as continuidades que admitimos ou as
exclusões que efectuamos” (FOUCAULT, 1992, p. 51). A prática crítica se aproxima das técnicas usadas na
exegese cristã, com critérios semelhantes àqueles empregados por São Jerônimo (valor, coerência con-
ceptual ou teórica, unidade estilística e momento histórico).
De um ponto de vista mais formal, o texto tem signos que remetem à função autor, como os pronomes
pessoais, os advérbios de tempo, a conjugação verbal. No romance há algumas convenções que atestam
que o eu não remete ao autor real, empírico, mas a um narrador ou a um alter ego: “Seria tão falso pro-
curar o autor no escritor real como no locutor fictício; a função autor efectua-se na própria cisão – nessa
divisão e nessa distância”. Em suma, “todos os discursos que são providos da função autor comportam
esta pluralidade de ‘eus’” (FOUCAULT, 1992, p. 55). A proposta de Foucault em relação ao autor é “retirar
ao sujeito (ou ao seu substituto) o papel de fundamento originário e de o analisar como uma função vari-
ável e complexa do discurso” (FOUCAULT, 1992, p. 70). Como se pode ver, tanto Barthes quanto Foucault
esvaziaram a função autor de sua carga de sujeito pleno e detentor da origem e do sentido do texto, colo-
cando o texto em relação e em circulação com outros textos; ao mesmo tempo, eles esvaziaram a carga
psicologizante da crítica biográfica que buscava explicações vivenciais aos sentidos que emanavam do texto.
No entanto, como assinalou Giorgio Agamben, Foucault parece ter omitido as implicações éticas na
sua formulação da teoria dos enunciados, no livro A arqueologia do saber, no qual retoma alguns pontos
do artigo “O que é um autor?”. Foucault só mais tarde teria começado “a medir todas as consequências
que a dessubjetivação e a decomposição do autor podiam trazer para o próprio sujeito” (AGAMBEN,
2008, p. 143). Segundo Agamben, foi só em “A vida dos homens infames” que Foucault colocou a questão
do sujeito de outra maneira; tratava-se de um prefácio a uma antologia de microrrelatos de pessoas reais
que foram condenadas pela justiça nos séculos XVII e XVIII6. Esses relatos de pessoas infames, cujas
vidas mudaram de rumo devido ao seu encontro com o poder, revelam seres que só saíram do anonimato
devido aos seus crimes, inscritos nos arquivos judiciários.
Diferente da sua postura diante do escritor (que exerce a função autor), Foucault percebe nesses relatos
os homens e as mulheres reais que sofreram no passado e se exprimiram com os meios rudimentares
de que dispunham para contar suas vidas, ou seja, os sujeitos que aqui falam são “pungentes” porque
teatralizam suas próprias existências:

Daí, para nós que olhamos de longe este primeiro afloramento do quotidiano no código
político, as estranhas fulgurações, qualquer coisa de pungente e de intenso, que haverá de
perder-se posteriormente, quando se fizerem, daquelas coisas e daqueles homens, ‘processos’,
actualidades de jornal, casos. (FOUCAULT, 1992, p. 123)

Os sujeitos dos discursos desses relatos não exercem a “função autor”, podendo assim adquirir vida de
carne e osso para Foucault, porque se trata da percepção de suas vidas em momento de crise (o enfrenta-
mento da justiça). Além disso, a defasagem existente entre sua linguagem normal (rudimentar) e aquela
que usam para tentar escrever, de maneira apropriada, às autoridades legais (muitas vezes ao rei), sobre
seus problemas reais, é o elemento que punge, é essa distância que causa a emoção em Foucault e o leva

6
Na edição atual em português, só aparece o texto de Foucault, sem os relatos.

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a ver pulsar a vida dessas pessoas infames. É, no rastro dessa emoção, que ele percebe a dimensão ética
da questão do sujeito nesses microrrelatos.7
O discurso sobre o autor em Foucault se situa no campo da História porque ele trata tanto do autor
de textos literários quanto do autor das Ciências; a discussão está centrada na função-autor, ou seja, no
papel desempenhado socialmente pelo autor enquanto produtor de discursos.

Barthes e a crítica literária


Barthes se contrapõe à crítica que enfatizava o peso da biografia para a compreensão da obra do escritor,
visão crítica predominante na França na primeira metade do século XX. Na verdade, trata-se de um
movimento pendular que já vinha desde o século XIX: entre os que defendiam o uso da biografia estava
Sainte-Beuve, entre os que o criticavam, destacavam-se Mallarmé, cujo projeto estético privilegiava a
busca da linguagem adequada, perfeita, para atingir a Beleza, e Proust, como se pode ver no seu livro
Contre Sainte-Beuve.
Proust, em sua argumentação contra o método de Sainte-Beuve, indica que o erro do crítico tinha sido
o de buscar descobrir o autor através do estudo do homem, com a ajuda de depoimentos daqueles que o
haviam frequentado. Sainte-Beuve teria avaliado mal os escritores, mesmo os seus contemporâneos, que
conheceu bem (como Baudelaire), tendendo a preferir os medíocres, os que agradavam o público de sua
época. Ora, para Proust (como para Blanchot), há uma distância entre o homem e o escritor, já que “um
livro é o produto de um outro eu, diferente daquele que manifestamos em nossos hábitos, na sociedade,
em nossos vícios. Esse eu, se quisermos tentar compreendê-lo, é no fundo de nós mesmos, tentando
recriá-lo em nós, que poderemos chegar a ele” (PROUST, 1954, p. 127)8.
Além dessa confusão entre o escritor empírico e o escritor-criador, a crítica biográfica tentava detectar
a voz do autor, que faria confidências de maneiras mais ou menos disfarçadas pela ficção. É contra a
escuta dessa voz que se colocou Barthes, preferindo privilegiar, como Mallarmé e Valéry, a linguagem,
ou seja, como o sujeito é falado pela linguagem. Como já dizia o próprio Proust, e que seria retomado por
Barthes, o que conta na literatura não é propriamente o que está nas palavras, mas o que está entre as
palavras (PROUST, 1954, p. 157)9.
Para Barthes a “escritura é a destruição de toda voz, de toda origem. A escritura é esse neutro, esse
composto, esse oblíquo aonde foge o nosso sujeito, o branco-e-preto onde vem se perder toda identidade,
a começar pela do corpo que escreve” (BARTHES, 1988, p. 65)10. Assim, a partir do momento em que o nar-
rado se torna texto e é dado ao público, começa a morte do autor. O estruturalismo de Barthes apoiava-se
fortemente no desenvolvimento da linguística de Benveniste, para a qual só existia sujeito da enunciação
enquanto pessoa verbal: o eu que escreve é vazio, ele só existe enquanto enunciador.
Ao mostrar que “o texto é um tecido de citações” (BARTHES, 1988), as quais, por sua vez, emanam de
outros textos, Barthes dessacralizava a figura do autor como criador único e autoconsciente do texto. É,

7
A questão ética coloca-se de maneira forte nos relatos testemunhais dos campos de concentração, como analisou Agamben em O que resta de
Auschwitz.
8
Tradução minha. No original: “Qu’un livre est le produit d’un autre moi que celui que nous manifestons dans nos habitudes, dans la société,
dans nos vices. Ce moi-là, si nous voulons essayer de le comprendre, c’est au fond de nous-mêmes, en essayant de le recréer en nous, que nous
pouvons y parvenir”.
9
Tradução minha. No original: “Seulement ce n’est pas dans les mots, ce n’est pas exprimé, c’est tout entre les mots, comme la brume d’un matin
de Chantilly”.
10
O tradutor usa a palavra escritura para écriture; eu prefiro usar o termo mais comum da língua portuguesa, escrita, e creio que esta é a ten-
dência atual.

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talvez, bom lembrar que o surgimento do autor está associado ao humanismo moderno, que começou no
Renascimento e deriva da ideia mesma de “pessoa humana” (BARTHES, 1988). Ao tirar o foco do autor,
Barthes privilegiava o leitor, aquele que teria o encargo de dar sentido ao texto no processo de leitura: “o
leitor é o espaço mesmo onde se inscrevem, sem que nenhuma se perca, todas as citações de que é feita
uma escritura; a unidade do texto não está em sua origem, mas no seu destino” (BARTHES, 1988, p. 70).

Os biografemas de Barthes
No confronto das formulações de Barthes e Foucault, percebe-se que nos microrrelatos dos “homens
infames” não há, propriamente, “biografia”, já que criminosos não têm direito a biografia, o que emana
dos textos se restringe ao momento em que cometeram delitos e tiveram seus nomes inscritos nos anais
judiciários. Talvez esses elementos biográficos, percebidos por Foucault como pequenos instantâneos,
fulgurações de pessoas reais, carnais, possam ser aproximados dos biografemas de Barthes.
No livro Sade, Fourier, Loyola, Barthes considera nos três autores estudados apenas alguns traços
corporais11, assim como ele destacara, na biografia de Michelet, a enxaqueca do historiador: “o sujeito é
disperso, um pouco como as cinzas que se atiram ao vento após a morte”. Da mesma maneira, ele sonha
que, após a sua morte, algum biógrafo faça dele uma biografia “esburacada”, reduzida “a alguns porme-
nores, a alguns gostos, a algumas inflexões, digamos: ‘biografemas’” (BARTHES, 2005a, p. xvii).

O prazer do texto comporta também uma volta amigável do autor. O autor que volta não
é por certo aquele que foi identificado por nossas instituições [...]; nem mesmo o herói de
uma biografia ele é. O autor que vem de seu texto e vai para dentro da nossa vida não tem
unidade; é um simples plural de ‘encantos’, o lugar de alguns pormenores tênues, fonte,
entretanto, de vivos lampejos romanescos, um canto descontínuo de amabilidades, em que
lemos apesar de tudo a morte com muito mais certeza do que na epopeia de um destino; não
é uma pessoa (civil, moral), é um corpo. (BARTHES, 2005a, p. xvi)

Barthes retomaria a noção de biografema em outros textos. Em Roland Barthes por Roland Barthes, ao
se referir aos “traços miúdos reunidos em cenas fugidias”, cuja “combinação delicadamente dosada” vai
definir se um amigo é amável ou não (Barthes, 2003, p. 78). Ele associa o biografema ao haicai e à anam-
nese factícia.

Chamo de anamnese a ação – mistura de gozo e de esforço – que leva o sujeito a reencontrar,
sem o ampliar nem o fazer vibrar, uma tenuidade de lembrança: é o próprio haicai. O biogra-
fema (veja-se SFL, p. 13) nada mais é do que uma anamnese factícia: aquela que eu atribuo ao
autor que amo. (BARTHES, 2003, p. 126. Grifos do autor)

Também em A câmara clara o biografema volta na comparação entre fotografia e História:

Do mesmo modo, gosto de certos traços biográficos que, na vida de um escritor, me encantam
tanto quanto certas fotografias; chamei esses traços de ‘biografemas’; a fotografia tem com a
História a mesma relação que o biografema tem com a biografia. (BARTHES, 1984, p. 34)

11
“o regalo branco de Sade, os vasos de flores de Fourier, os olhos espanhóis de Inácio”.

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Na esteira de Régine Robin, podem-se associar duas noções criadas por Barthes, a de biografema e a de
punctum: não a completude de uma história, não a foto toda, mas pequenos detalhes, algumas inflexões, que
emocionam numa biografia ou numa foto: “O biografema faz emergir um conjunto de objetos parciais,
um infrassaber não categorizado, um imaginário” (ROBIN, 1989, p. 157).12 Vale lembrar que em A câmara
clara Barthes usou dois conceitos para analisar a relação que temos diante da fotografia: o studium seria
aquilo que o sujeito pode compreender com sua bagagem cultural; já o punctum designa aquele pequeno
elemento na foto que provoca emoção, que punge. Barthes, ao olhar as fotos da mãe, recém-falecida, não
conseguia reencontrá-la, pois nenhuma delas lhe devolvia a verdade de sua mãe; de repente, algo numa
foto da mãe menina o emocionou (ela tinha o punctum).

Roland Barthes por Roland Barthes


A volta do sujeito se completa no percurso de Barthes quando ele publica Roland Barthes por Roland
Barthes, um livro de fragmentos, em forma de aforismos, máximas, anamneses, comentários ensaísticos,
no qual predomina o uso da terceira pessoa. Há nele um hibridismo genérico que mistura ensaio, foto-
grafia e recordações pessoais. Não é confessional, trata de alguns assuntos como amor e sexo de maneira
distanciada; em alguns poucos momentos podem-se sentir os afetos que o movem, seu sentimento de ser
marginal quando diz que o natural na França é ser católico, casado e ter um bom diploma, ou seja, tudo
o que ele não era13.
Apesar de todas as denegações, o livro fornece muitos dados autobiográficos através da “encenação de
um imaginário” (BARTHES, 2003, p. 121) em diferentes graus: canhoto, nulo em Matemática, ele era leitor
mais de Literatura do que de Ciências e Filosofia e leu muito menos do que um autor de grande cultura de-
veria ter lido. Algumas lembranças de infância são evocadas: ficou sozinho em um buraco e teve de ser salvo
pela mãe, tomou banho de mar e se queimou com as medusas, rememora os odores da cidade natal, Bayonne.
É verdadeiramente uma autobiografia esburacada, como ele queria, com biografemas selecionados.
O destaque em termos autobiográficos seriam as fotografias presentes no início do livro: através das
fotos o leitor tem a genealogia do autor, os ancestrais, a mãe, o pai, o próprio Barthes em todas as idades,
fotografias que o “sideram” (que pungem?). As legendas se encontram em defasagem em relação às imagens:
ora remetem a um outro tempo (diante das fotos dos avôs jovens, o comentário se refere ao fim da vida
deles), ora remetem ao segundo plano, onde estaria o punctum (a empregada no fundo o fascina, a moita
atrás de sua foto adolescente evoca cenas de sexualidade infantil). Aí está o pai, morto durante a guerra,
assunto que reaparece na passagem sobre o Liceu Louis-le-Grand. A ausência de pai, como no caso de
Sartre (As palavras), teria significado falta de conflito edipiano? As fotos da infância conduzem à obra de
Proust, seu quase contemporâneo, seu duplo ideal: ele gostaria de escrever sua autobiografia “esburacada”,
como Proust (BARTHES, 2005a, p. XVII). Diante de suas fotos mais atuais, simplesmente a impossibilidade
de se reconhecer, colocando o problema da identidade (quem sou eu?). Ele lê em suas fotos tristeza e tédio.
Escrever uma autobiografia é forçosamente passar pelo Imaginário, se imaginar e se representar, o que
Barthes procura evitar através de uma escrita fragmentada e díspar, já que os fragmentos têm caráter
diferente, passando do aforismo à máxima, do ensaio à anamnese, da revisão de sua obra a seus projetos
futuros. E, no entanto, ao se dar conta do sentimento de insegurança que o toma no momento em
que escreve, devido à total liberdade que tem após ter abandonado todos seus mentores e/ou ciências
12
“Le biographème fait émerger un ensemble d’objets partiels, un infra-savoir non catégorisé, un imaginaire.”
13
Apesar de seu brilhantismo e de seu sucesso, Barthes se ressente (talvez) de algumas frustrações referentes aos diplomas e cargos que não
obteve devido à tuberculose que o acometeu em 1934 e o perseguiu ao longo da vida.

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tutelares (marxismo, psicanálise, linguística, semiologia) ele afirma que cai no pior imaginário, o psico-
lógico (BARTHES, 2003, p. 118).
O sujeito desdobrado que busca assinar seu imaginário no livro se esforça para se desviar da imagem
fixa, joga com lucidez com aspas, parênteses, ironias, mas percebe que “o imaginário vem a passos de
lobo, patinando suavemente sobre um pretérito perfeito, um pronome, uma lembrança, em suma, tudo
o que pode ser reunido sob a própria divisa do Espelho e de sua Imagem: Quanto a mim, eu” (BARTHES,
2003, p. 120-121).
A relação autobiografia e imaginário aparece assim: há um constrangimento do autor em falar de si e,
de outro lado, há o fantasma do leitor presumido, cuja complacência não pode ser medida de antemão.
Uma certa vergonha ou timidez do autor se manifesta também em função da probabilidade de um olhar
(voyeur) que o objetaria. O jogo do olhar pode ser tanto de reconhecimento quanto de reificação e o autor,
ao produzir sua autobiografia, não controla as reações de seus prováveis leitores.
Régine Robin (a partir de um estudo de Françoise Gaillard) considera que se trata de “um biográfico
sem biografia, de um imaginário esvaziado de toda imago”; se o eu tem dois aspectos, o si (soi) e o eu (moi),
o si corresponde ao fixo e ao acabado, o eu é aberto ao inacabado, ao biografema, ao indecidível (ROBIN,
2004, p. 63). Robin assimila assim o si (soi) ao studium e o eu (moi) ao punctum, o si (soi) à biografia (na sua
completude) e o eu (moi) ao biografema (ao fragmentário, ao detalhe). Para Barthes, a subjetividade não
se confunde com o narcisismo, nem se opõe à objetividade: “o sujeito se coloca alhures, e a ‘subjetividade’
pode voltar num outro trecho da espiral: desconstruída, desunida, deportada, sem ancoragem: por que
eu falaria mais de ‘mim’ já que ‘mim’ não é mais ‘si’?” (BARTHES, 2003, p. 185). Gaillard também acentua
que o livro não é propriamente uma autobiografia, mas uma biografia do eu, restituindo à palavra bio-
grafia o seu sentido etimológico, em que bio designa a “vida no que tem de mais orgânico: o corpo” (apud
DOSSE, 2009, p. 308).
Em oposição à metafísica clássica, que não tinha medo de falar de dois homens dentro de si (que aca-
bavam se reconciliando), Barthes afirma que falar do sujeito dividido hoje significa outra coisa: “é uma
difração que se visa, uma fragmentação em cujo jogo não resta mais nem núcleo principal, nem estrutura
de sentido: não sou contraditório, sou disperso” (BARTHES, 2003, p. 160). A questão que se coloca aqui
diz respeito não propriamente ao sujeito-autor, mas ao sujeito tout court, o sujeito fragmentado, que vai
além da simples contradição porque são muitas as pontas que constituem seu ser, o eu é uma invenção
constante em seu devir: “Não digo: ‘Vou descrever-me’, mas: ‘Escrevo um texto e o chamo de R.B.’. Dis-
penso a imitação (a descrição) e me confio à nominação. Então eu não sei que no campo do sujeito não há
referente?” (BARTHES, 2003, p. 69).
Há certo pudor de Barthes em falar de si, como se não fosse realmente autorizado a fazê-lo, como se
isso fosse reservado ao espaço do diário (ou do romance, quando mediatizado por uma personagem).
Aliás, a primeira frase do livro (no verso da capa da edição francesa) é: “Tudo isto deve ser considerado
como dito por uma personagem de romance”, ou seja, ele toma distância de si, ou melhor, pede que o
leitor tenha um recuo em relação à identidade autor-narrador-personagem. O livro seria uma exposição
de seu Imaginário: “Em seu grau pleno, o Imaginário se experimenta assim: tudo o que tenho vontade de
escrever a meu respeito e que finalmente acho embaraçoso escrever. Ou ainda: o que só pode ser escrito
com a complacência do leitor” (BARTHES, 2003, p. 122).
Pergunta de Barthes no artigo “Deles a nós”, publicado nos Inéditos, vol. 2. Crítica: “como escrever
sem ego? É minha mão que traça, não a do vizinho” (BARTHES, 2004c, p. 224). O que não é mais possível
na modernidade: o ego, a narrativa. Mas Barthes deixa isso um pouco para trás e sem querer voltar ao

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sujeito clássico, ele abandona a atitude arrogante do passado: “Sem renunciar a ser moderno, Barthes
defende uma volta ao sujeito cuja ambiguidade de certas formulações vela a plena epifania”14. Ou seja,
há “uma verdadeira reabilitação da subjetividade” (COSTE, 2009, p. 40). É impossível escrever sem ego.
Para Coste, o ego faz uma volta através da palavra corpo, que lhe dá uma forma aceitável, diferente do
cogito cartesiano e do “ça parle” de Lacan, sujeito do inconsciente: “Mas, sobretudo, graças ao corpo, é
justamente o ‘sujeito’ como totalidade que se encontra restaurado na sombra vergonhosa de um ego que
não disse sua última palavra”15 (COSTE, 2009, p. 41).
E já que é o corpo que define o novo sujeito barthesiano, há um ponto do corpo que trai a precariedade
da felicidade: a dor de cabeça. A cabeça: lugar simbólico da vida intelectual. No caso de Barthes: a hipera-
tividade intelectual, próxima da autoanálise e da lucidez de Valéry: “Meu corpo só existe para mim mesmo
sob duas formas correntes: a enxaqueca e a sensualidade” (BARTHES, 2003, p. 74). Esses dois polos, da
dor e do prazer, individualizam seu corpo. O conhecimento e o sentimento passam pelo corpo, um corpo
que impõe desejos, impulsos e limitações. O sujeito não controla seu inconsciente, não controla sua fala,
não podendo, portanto, ter qualquer certeza sobre a autenticidade do que diz. A inocência de Rousseau,
que acreditava poder dizer toda a verdade nas Confissões, foi perdida na avalanche das considerações
teóricas de Freud, Marx, Nietszche com as quais Barthes está em sintonia profunda:

Este livro não é um livro de ‘confissões’; não porque ele seja insincero, mas porque temos
hoje um saber diferente do de ontem; esse saber pode ser assim resumido: o que escrevo de
mim nunca é a última palavra: quanto mais sou ‘sincero’, mais sou interpretável, sob o olhar
de instâncias diferentes das dos antigos autores, que acreditavam dever submeter-se a uma
única lei: a autenticidade. Essas instâncias são a História, a Ideologia, o Inconsciente. Abertos
[...] por esses diferentes futuros, meus textos se desencaixam, nenhum vem coroar o outro;
este aqui não é nada mais do que um texto a mais, o último da série, não o último do sentido:
texto sobre texto, nada é jamais esclarecido. (BARTHES, 2003, p. 137)

O livro inova em termos genéricos porque hibridiza romance, ensaio e autobiografia, à semelhança
de Proust, na análise que ele próprio faz da obra de Proust. No artigo “Durante muito tempo, fui dormir
cedo”, Barthes assinala, de um lado, o hibridismo genérico que advém da hesitação de Proust entre as
formas do ensaio e do romance, cuja resultante seria a criação de um terceiro gênero; por outro lado, o
desvio dos fatos vividos: “Essa desorganização da biografia não é a sua destruição. Na obra, numerosos
elementos da vida pessoal são conservados, de maneira identificável, mas esses elementos estão de certo
modo desviados” (BARTHES, 1988, p. 287). Talvez o desvio mais significativo seja o do eu enunciador:
trata-se de um eu que não se lembra da vida passada como na autobiografia tradicional, o eu enuncia-
dor narra seu desejo de escrever, não sua vida propriamente dita. Assim, as relações entre os dois estão
esgarçadas, deslocadas. Em outro artigo, “Vidas paralelas”, inspirado pela biografia de Proust escrita por
George Painter, Barthes estabelece um paralelismo entre a vida vivida e a vida escrita: entre as duas não
há analogia, mas homologia. Ao contrário do que afirma a doxa, que a arte imita a vida, “não é a vida de
Proust que encontramos em sua obra, é sua obra que encontramos na vida de Proust” (BARTHES, 2004c, p. 173).

14
Tradução minha. No original: “Sans renoncer à être moderne, Barthes plaide pour un retour du sujet dont l’ambigüité de certaines formula-
tions voile la pleine épiphanie [...], c’est une véritable réhabilitation de la subjectivité qu’il nous propose”.
15
Tradução minha. No original: “Mais, surtout, grâce au corps, c’est bel et bien le ‘sujet’ comme totalité qui se trouve restauré dans l’ombre
honteuse d’un ego qui n’a pas dit son dernier mot”.

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O que ele diz de Proust pode ser aplicado a Roland Barthes por Roland Barthes com a diferença que o
romance de Proust tem intrigas e personagens, que se entrelaçam de maneira a atingir uma completude
(aliás, interminável e inatingível devido à morte que chega) enquanto no livro de Barthes só há fragmentos
que, se montados, não fecham o puzzle. Em vez de personagens, o que se vê é o desdobramento de vários
Barthes: doravante o sujeito só pode ser pensado em sua multiplicidade e dispersão. Até o Je est un Autre
de Rimbaud foi ultrapassado pelo estilhaçamento do espelho: o eu são vários outros.

Embora feito, aparentemente, de uma sequência de ‘ideais’, este livro não é o livro de suas
ideias; é o livro do Eu, o livro de minhas resistências a minhas próprias ideias; é um livro
recessivo (que recua, mas também, talvez, que toma distância). Tudo isso deve ser conside-
rado como dito por uma personagem de romance – ou melhor, por várias [...]. A substância
deste livro, enfim, é, pois, totalmente romanesca. A intrusão, no discurso do ensaio, de uma
terceira pessoa que não remete entretanto a nenhuma criatura fictícia, marca a necessidade
de remodelar os gêneros: que o ensaio confesse ser quase um romance: um romance sem
nomes próprios. (BARTHES, 2003, p. 136)

O retorno do autor
Em O prazer do texto (2004a, p. 35), Barthes afirma que apesar da declarada “morte do autor”, o leitor
deseja o autor, que não é sua representação nem sua projeção. Em outra passagem, Barthes postula que
uma pesquisa sobre o sujeito pode passar por várias fases, e acaba por concluir que finalmente o sujeito
volta não como ilusão, mas como ficção, o que o aproxima mais da concepção do sujeito da autoficção
contemporânea: “Talvez então retome o sujeito, não como ilusão, mas como ficção. Um certo prazer é
tirado de uma maneira da pessoa se imaginar como indivíduo, de inventar uma última ficção, das mais
raras: o fictício da identidade” (BARTHES, 2004a, p. 73. Grifos do autor). Ele declara, com efeito, no curso
A preparação do romance II dado no Collège de France (1979-1980), que a volta do autor se dá a partir de
O prazer do texto, momento em que há o “desrecalque do autor”:

Pareceu-me que, também à minha volta, um gosto se declarava, aqui e ali, por aquilo que
poderíamos chamar – para não abordar os problemas das definições – a nebulosa biográfica
(Diários, Biografias, Entrevistas personalizadas, Memórias etc.), maneira, sem dúvida, de
reagir contra a frieza das generalizações, coletivizações, gregarizações, e de recolocar, na
produção cultural, um pouco de afetividade ‘psicológica’: deixar falar o ‘Ego’, e não sempre
o Superego e o Isso – A ‘curiosidade’ biográfica desenvolveu-se então, livremente, em mim.
(BARTHES, 2005b, p. 168. Grifos do autor)

A volta do autor se afirma através desse gosto declarado pelas escritas de si, tanto em relação a seus
autores prediletos (notadamente de Proust) quanto a seus próprios textos autobiográficos. Se no artigo
“Deliberação”, de O rumor da língua, ele se indaga sobre a validade de se escrever diários, hábito que ele
tinha de maneira esporádica, por não reconhecer valor literário ao diário (como Blanchot), depois de
sua morte alguns de seus diários foram publicados. Além de Diário do luto que, como o título indica, tem
fragmentos sobre o sentimento de dor após a morte da mãe, saiu o livro Incidentes. Trata-se de um diário
escrito em 1968 e 1969, quando vivia no Marrocos, e estava pronto para impressão na revista Tel Quel,

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segundo a nota dos editores. Nele, o diarista capta instantâneos da vida cotidiana, com ênfase no olhar
que se dirige aos corpos dos jovens marroquinos. Já “Noites de Paris”, diário publicado no mesmo livro
Incidentes, foi escrito entre 24 de agosto e 17 de setembro de 1979, logo após a redação do texto teórico
“Deliberação”. Nessas curtas anotações escritas seis meses antes de sua morte, vemos um homem bastante
melancólico, que busca na noite um prazer sempre insuficiente, insatisfatório.
Deixando alguns fragmentos de diários, Barthes constrói o seu futuro como fantasma para os que
virão: da mesma maneira que André Gide representou o fantasma do escritor para ele, que seguia seu
percurso, suas viagens, seus escritos, ele poderá se constituir no fantasma para os seus leitores: “Pois
aquilo que o fantasma impõe é o escritor tal como podemos vê-lo em seu diário íntimo, é o escritor menos
sua obra: forma suprema do sagrado: a marca e o vazio” (BARTHES, 2003, p. 92. Grifos do autor).
Barthes postula que se deve “substituir a história das fontes pela história das figuras: a origem da obra
não é a primeira influência, é a primeira postura: copia-se um desempenho, e depois, por metonímia,
uma arte: começo a produzir reproduzindo aquele que eu gostaria de ser” (BARTHES, 2003, p. 115). Gide
foi esse fantasma para ele: protestante, filho de pais de diferentes regiões da França (Normandia e Lan-
guedoc no caso de Gide, Alsácia e Gasconha, no caso de Barthes), escritor de profissão e pianista como
hobby, “sem contar o resto”, ou seja, homossexuais que gostavam de ir aos países do Magreb nas férias em
busca de uma vida mais simples com os jovens árabes: “O Abgrund gideano, inalteravelmente gideano,
forma ainda em minha cabeça um formigamento teimoso. Gide é minha língua original, meu Ursupe,
minha sopa literária” (BARTHES, 2003, p. 115).
Esses últimos livros e artigos de Barthes já apontam para as mudanças de paradigma que estavam
se processando tanto nele enquanto autor quanto no mundo literário francês. Ele deixava para trás as
fórmulas mais duras do estruturalismo em favor de uma valorização da subjetividade. Data do mesmo
período o livro Le pacte autobiographique, de Philippe Lejeune, que considera que Roland Barthes por Roland
Barthes “propõe um jogo vertiginoso de lucidez em torno de todos os pressupostos do discurso autobio-
gráfico – tão vertiginoso que acaba por criar no leitor a ilusão de que não está fazendo o que entretanto
está” (LEJEUNE, 2008, p. 65).

Considerações finais
A questão do autor continua central nos debates atuais sobre as escritas de si. Se, na perspectiva da
narratologia, há uma preocupação de distinguir o sujeito empírico daquele que fala de si nos relatos
autobiográficos, no senso comum perdura uma certa confusão entre narrador e autor, sobretudo quando
se trata de narrativas em primeira pessoa. Mas, como diz Proust, a pessoa não é um bloco único, ela
se compõe de várias pessoas superpostas, o que se acentua no caso dos poetas (PROUST, 1954, p. 169).
Barthes também separa o sujeito empírico do eu que escreve e da própria obra: “eu não seria nada se não
escrevesse. No entanto, estou em outra parte, que não é aquela em que escrevo. Valho mais do que aquilo que
escrevo” (BARTHES, 2003, p. 186. Grifos do autor). Essa afirmação de Barthes remete a Nietzsche que dis-
tingue o que ele é daquilo que ele escreve, uma coisa não se confundindo com a outra (apud DERRIDA,
1984-2005, pp. 73-74).
Quando Blanchot se indagava para onde ia a literatura e anunciava a morte do último escritor, ele se
baseava na sua percepção do fim da poesia em benefício do romance que triunfava. A predominância do
romance significava para ele que o autor vinha se refugiando no gênero mais domesticado para fugir do
perigo. Tal risco ameaça o autor que busca uma verdade que o joga fora de si. Ao se tornar inofensiva, a

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literatura morre (BLANCHOT, 2005, p. 299). Com o florescimento das escritas de si, em que o EU passa a
reinar absoluto, em que o autor busca exibir sua vida íntima sob a forma da extimidade, a alta literatura,
tal como a concebia Blanchot, talvez esteja realmente próxima do fim. Mesmo Barthes, que parecia se
interessar pelo novo, tinha como modelo autores clássicos como Tolstoi e Proust no seu horizonte de
expectativa ao pensar em si mesmo como autor de romance no curso A preparação do romance II. No
mundo de hoje já não há, entretanto, lugar para autores como Tolstoi e Proust, Kafka e Joyce. A mão que
digita no teclado de um computador já não é igual à mão que escrevia no papel, o corpo que se deixava
fotografar algumas raras vezes já não é o mesmo corpo do autor midiático que dá entrevistas, comparece
a feiras e bienais, dá depoimentos em programas de televisão e sites ou blogs da Internet. Ao retornar,
triunfante, ele enterra o lado secreto e ameaçador da literatura.

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Recebido em: 03/02/2014 Aceito em: 23/04/2014


Referência eletrônica: Figueiredo, Eurídice. Roland Barthes:  da morte do autor ao seu retorno. Rev.
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