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TRÓPICOS
A história não é senão um cemitério de elites, que correm, ao longo do leito secular, como um rio:
a classe dirigente de hoje não será a mesma de ontem. A "lei de bronze da oligarquia"
impõe o domínio de poucos sobre uma base democrática, por força da coesão
e da organização da minoria, amalgamando incessantemente os
contingentes novos, que novas transformações elevam à cúpula”
1. INTRODUÇÃO
1
Mestranda em Economia do Desenvolvimento pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (PPGE-
ED/UFRGS) e bolsista CAPES/CNPq.
O primeiro desses conceitos guarda uma clara influência weberiana. Foi Weber quem
primeiro qualificou a noção de estamento a partir da análise da formação social europeia,
onde as sociedades estariam divididas em três grandes grupos, a saber: o clero, a nobreza e o
povo. Essa divisão não correspondia às classes sociais, pois o critério definidor não
correspondia ao lugar ocupado nas relações de produção, mas sim à função exercida dentro de
uma ordem jurídico-legal, chamada de Estado (absolutista, monárquico, etc). A ordem
estamental viria a ser qualificada de patrimonialista quando o estamento dominante se
utilizasse de sua posição jurídica para exercer poder sobre os demais grupos e as classes
seriam meramente subsidiárias a essa organização.
A consolidação do estado português, para Faoro, estaria estreitamente ligada a essa
ordem estamental patrimonialista, em que a realeza, além de exercer poder sobre os demais
estamentos, também detinha o direito patrimonial sobre todas as riquezas do reino e, através
de sua ação social racional, conduzia o Estado em direção a projetos políticos definidos e
beneficiários a sua posição dentro dessa ordem. Os interesses patrimonialistas e a ordem
estamental do governo português germinariam no Brasil uma estrutura político-social similar,
em que a separação entre o Estado e a sociedade seria uma característica fundamental. Ou
seja, a ordem estamental surgida no Estado português prolongar-se-ia e reproduzir-se-ia no
Brasil.
Do conceito de estamento origina-se a noção de capitalismo político, ou seja, a
intenção racional posta em marcha pelo estamento dominante. Seria um capitalismo distinto,
pois não surgiria como resultado da livre-iniciativa, não seria espontâneo; seria, sim, a
consequência de uma vontade clara e definida dos chamados Donos do Poder. Assim, no
conceito de capitalismo político Faoro novamente resgata a noção weberiana de “ação social
orientada por um fim”: a ação social planejada e executada pelo Estado patrimonialista, cujo
telos seria a construção da ordem capitalista no Brasil. Assim, os regramentos sociais, os
assuntos econômicos, os cargos políticos e tudo o que dizia respeito à organização da ordem
capitalista, era ditado pelo Estado. Evidentemente que este Estado seria estamental-
patrimonialista e, portanto, imagem do grupo político que o dirigia.
Dessa análise – que de maneira clara apresenta um conteúdo normativo – se pode
deduzir a ideia de apropriação do que é (ou deveria ser) público por parte de um grupo
privado. É na noção de ordem estamental e de capitalismo político que reside a origem da
sociedade política brasileira. E é na crítica a essa construção histórica que recaem as críticas
de Faoro aos Donos do Poder.
Feita essa breve revisão sobre os principais conceitos desenvolvidos por Raymundo
Faoro, o presente artigo tem por objetivo identificar em que medida a perspectiva apresentada
na obra Os Donos do Poder, pode ser enquadrada dentro do escopo analítico da Teoria das
Elites, ou seja (i) se a noção de estamento burocrático converge para a noção de Elites
políticas, e (ii) até que ponto as ideias apresentadas em Os Donos do Poder se afasta ou
reproduz o conteúdo normativo exposto pelos autores elitistas. Para tanto, o trabalho se
estrutura da seguinte forma: após esta introdução, será apresentada uma breve revisão sobre o
percurso teórico que conformou o pensamento elitista, passando pelas Teorias das Elites
clássicas (Vilfredo Pareto, Gaetano Mosca e Robert Michels), chegando até ao elitismo
contemporâneo (Joseph Schumpeter, Robert Dahl e Giovanni Sartori). Na seção seguinte, a
partir da noção weberiana de estamento burocrático e sua aplicação para o caso brasileiro,
traça-se um paralelo entre a perspectiva faoriana e o elitismo descrito na seção que a antecede.
Finalmente, seguem-se as considerações finais em que se apresentam duas conclusões:
primeiro, que a noção de estamento, tal qual exposta por Faoro, não converge,
necessariamente, para o conceito de elites; e, segundo, que ainda que as categorias e conceitos
guardem diferenças, o conteúdo normativo da abordagem faoriana se assemelha àquele
propalado pelo elitismo pluralista.
A Teoria das Elites tem sua origem no final do século XIX e início do século XX. Diz-
se que o pai fundador dessa vertente teórica foi Gaetano Mosca, seguido de perto por Vilfredo
Pareto e Robert Michels. A ideia central da teoria de Mosca e que lança as bases para o
elitismo político é a de que o centro de decisão de toda e qualquer sociedade é ocupado por
uma elite dirigente que será sempre numericamente menor do que o grupo dirigido. Ademais,
para ele, não é a hereditariedade o critério definidor da elite, mas sim as qualidades inerentes
aos indivíduos desse grupo minoritário que depende do período histórico em questão
(guerreiros, donos da riqueza, etc.)2.
Posteriormente, Vilfredo Pareto viria a qualificar a noção de Mosca ao incluir o
ingrediente de circulação das elites, dando a essa teoria um caráter mais dinâmico. Para esse
autor, no jogo do poder há momentos de transformação e momentos de estabilidade que se
dão pela capacidade do que ele chama de derivações por parte das elites que governam, ou
2
“Em todas as sociedades – desde as parcamente desenvolvidas, que mal atingiram os primórdios da civilização,
até as mais avançadas e poderosas – aparecem duas classe de pessoas: uma classe que dirige e outra que é
dirigida” (MOSCA, 1966)
seja, a habilidade de racionalização e de controle dos sentimentos e afetos que tomam conta
dos indivíduos dessa classe dirigente. Quando a classe dirigente não consegue mais fazer as
derivações necessárias (i) parte da classe dirigida passa a fazer parte da classe dirigente, ou
(ii) há uma queda generalizada da classe dirigente e um outro grupo, advindo da classe
dirigida, assume o poder (PARETO, 1923).
A abordagem de Pareto pode ser caracterizada como uma alternativa aos ideários
fascistas em ascensão no momento de germinação do elitismo político na Europa, bem como
uma contraposição às abordagens neomarxistas, encabeçadas por Antonio Gramsci. Assim, a
política deve ser compreendida como uma prática de lideranças, ou seja, de indivíduos que,
em função das condições sociais e históricas, tem aptidão para governar. Colocam-se, assim,
no espectro oposto de Rousseau, para quem a democracia refere-se à ampla participação do
povo. Para os teóricos elitistas haverá sempre uma minoria que se impõe e que torna o
autogoverno das massas uma ilusão romântica.
Finalmente, o último autor que se inscreve na Teoria das Elites clássica é Robert
Michels, com a famosa “lei de ferro das oligarquias”, segundo a qual toda e qualquer
organização política irá engendrar em uma oligarquia, uma vez que as massas além de serem
mais facilmente dominadas, apresentam uma patologia que se caracteriza pela falta de
responsabilidade e pelo irracionalismo3. Ou seja, falar em organização política é,
necessariamente, falar em oligarquia política. No ambiente democrático, há mais espaço para
críticas e disputas, porém não se pode eliminar o mecanismo de oligarquização.
A teoria das elites tal qual desenvolvida por Mosca, Pareto e Michels ganhou muitos
adeptos e foi alvo de inúmeras críticas, mormente pelos autores neomarxistas, como Antonio
Gramsci, os quais enxergavam na concepção de democracia elitista um caráter
determinantemente instrumental – um meio de escolher pessoas encarregadas de tomar as
decisões e impor limites a seus excessos – e individualista, e pregavam um modelo
democrático capaz de promover a formação da consciência política e da emancipação das
massas e não a sua sujeição a uma minoria dominante.
Posteriormente, a Teoria das Elites ganharia um novo fôlego com o desenvolvimento
do elitismo contemporâneo, inaugurado por Joseph Schumpeter. A marca central desse autor é
identificar a democracia como sendo um método de escolha dos governantes, ou seja, um
arranjo institucional capaz de possibilitar as decisões políticas (PATEMAN, 1970). Nesse
sentido, em consonância com a visão elitista clássica, a democracia é um meio e não um fim
3
“Atos e palavras são menos pensados pela massa que por indivíduos ou por pequenos grupos que compõem.
Este é um fato incontestável. Ele é uma manifestação da patologia das massas. A multidão anula o indivíduo, e,
desse modo, sua personalidade e seu sentimento de responsabilidade” (MICHELS, 1982).
em si mesma e a democracia direta não só é utópica e idealista como é, também, irrealizável
no âmbito prático. O papel do cientista, portanto, deveria ser o de compreender a maneira pela
qual a democracia funciona e não discorrer sobre como a democracia deveria ser.
Uma vez que nem todas as pessoas estão no mesmo nível de desenvolvimento social e
cultural, depreende-se que os cargos políticos tendem a ficar sob responsabilidade de
especialistas e de grandes oradores, uma vez que o cidadão comum é desinformado,
desinteressado e, muitas vezes, irracional. Desse modo, para Schumpeter, a democracia não é,
como em Rousseau, participação direta, mas sim uma simples escolha sobre quais os agentes
irão, de fato, participar das decisões, ou seja, a livre competição através do voto livre. Para
essa perspectiva, portanto, o sufrágio universal não configura uma necessidade, mas deve ser
suficiente para conseguir estabilizar a máquina eleitoral (PATEMAN, 1970).
Da abordagem schumpeteriana surge uma série de contribuições, sendo a teoria
pluralista uma das que alcançou maior abrangência no campo político durante a década de
1940, cujo maior porta-voz foi Robert Dahl, com a Teoria das Poliarquias. Segundo o autor,
nenhum Estado moderno conseguiu atingir o ideal de democracia. Os países política e
economicamente avançados foram, sim, capazes de desenvolver um sistema conhecido como
Poliarquia, a qual não representa a regra da maioria, mas sim a contínua incorporação de
novos atores na arena política. Nesse caso, há a distinção entre o governo “da minoria”
(Teoria das Elites clássica) e o governo “das minorias”.
Dahl (1989), no desenvolvimento da Teoria da Poliarquia, percebeu que, enquanto o
método democrático representasse a maximização de suas condicionalidades (sufrágio
universal, igualdade política, decisão majoritária, eligibilidade para cargos políticos,
informação idêntica e plural, etc.), a democracia configuraria uma utopia. Por isso, a
Poliarquia propõe a utilização de um método descritivo, em que há um limite mínimo para as
condicionalidades definida por meio de consenso. Por esse motivo, sua existência, além do
consenso mínimo, pressupõe a ação política a qual, por sua vez, é inversamente proporcional
ao grau de consenso. O que Dahl (1989) quer dizer é que (i) consenso e atividade política são
pressupostos da Poliarquia, e (ii) quanto maior a atividade política, menos o consenso e vice-
versa. Por esse motivo, a Poliarquia pode ser compreendida como uma sociedade organizada
em diversos centros de poder, porém sem nenhum soberano.
Finalmente, na perspectiva de Giovanni Sartori a Poliarquia não representa somente o
governo das minorias, mas sim uma ordem de elites em competição. Para este autor, há uma
enorme distância separando a teoria democrática clássica – marcadamente idealista em sua
noção de participação – e a realidade. Tal separação é um elemento que deve ser reconhecido
pelos teóricos da democracia sob pena de que o ideal democrático, ao invés de resolver,
agrave as dificuldades existentes nas sociedades contemporâneas (PATEMAN, 1970). Dessa
forma, pode-se dizer que os pluralistas opõem-se à concepção participacionista da teoria
democrática clássica, relativizando os ideais de governo da maioria e de sufrágio universal.
No seu lugar, reivindicam a ideia de pluralidade dos pontos de pressão, de multiplicidade dos
centros de poder, de contestação pública e de inclusividade. Tais condicionantes se coadunam
com os sistemas de mercado pulverizados e descentralizados.
Nas teorias da democracia, as correntes de pensamento originadas pelas contribuições
de Mosca, Pareto, Michels Schumpeter, Dahl e Sartori ganharam uma porção de adeptos. Não
apenas no que diz respeito ao seu caráter descritivo e analítico, mas também – e, sobretudo –
no que tange ao seu aspecto normativo. Particularmente, para os autores da teoria
contemporânea acima analisados, a estabilidade do sistema político antecede a participação
como objetivo a ser perseguido pela teoria e pela prática política e, nesse sentido, o poder da
maioria deve ser limitado por arranjos institucionais capazes de manter a solidez do método
democrático (PATEMAN, 1970). Para esses autores, no entanto, o reconhecimento da
necessidade de certo grau de autoritarismo e da limitação do poder do “homem ordinário” não
significa ser conivente com o despotismo. A saída para tal contradição, portanto, foi possível
através da elaboração da teoria pluralista que nada mais é do que uma revisitação e
atualização da teoria clássica das elites.
Na seção seguinte, serão analisados alguns elementos sobre a obra de Faoro a fim de
traçar um paralelo entre a interpretação da formação política do Brasil e as teorias das elites
aqui apresentadas.
Sobre a sociedade, acima das classes, o aparelhamento político – uma camada social,
comunitária embora nem sempre articulada, amorfa muitas vezes – impera, rege e governa
em nome próprio, num círculo impermeável de comando. Esta camada muda e se renova,
mas não representa a nação, se não que, forçada pela lei do tempo, substitui moços por
velhos, aptos por inaptos, num processo que cunha e nobilita os recém-vindos, imprimindo-
lhes os seus valores (FAORO, 1995, p. 737)
O poder minoritário, não envolvido, não interiormente arejado pela avalancha majoritária,
adquire um caráter pétreo, independente da nação. Afirma na hipótese, por força de seu
isolamento, conteúdo estamental. É dele – e não de uma elite – que tratam Manheim e
Toynbee, quando denunciam as minorias dominantes, que em certas circunstâncias, se
fecham sobre si próprias, esgotadas de energia criadora, meras intermediárias do
pensamento universal num círculo nacional. O grupo, a comunidade, restrita e selecionada,
provê a sociedade de sua concepção de mundo, unificando as tendências e as correntes em
curso numa constelação coerente de ideias, sentimentos e valores. Estamento será seu
conceito, quer se denomine elite, classe dirigente, classe política intelligentsia (FAORO,
1995, p. 93).
Para José Murilo de Carvalho (1979) de maneira contrária, o modo através do qual se
constituíram os grupos dominantes no Brasil não foi através da estamentalização, mas através
da disputa entre setores – como em uma versão schumpeteriana do processo democrático –,
assim, o estamento faoriano seria, na verdade, uma elite política. Diz o autor:
[O estamento] não é, adverte Faoro, uma “elite”, nos termos de Mosca, Pareto ou Michels,
pois não é uma camada heterônoma e aberta, surgida da “composição patrício-plebéia” que
operou nos países capitalistas a partir do século XIX. Ao contrário, é uma estrutura social
autônoma e fechada, típica de um “Estado patrício”, em que não há uma circulação de
baixo para cima (CAMPANTE, 2003, p. 154).
5
Sobre a incapacidade da sociedade civil de controlar o poder tutelar, Campante afirma: “Abúlico, o povo
brasileiro não constituiu uma sociedade civil contraposta ao Estado. Confrontadas com uma fraqueza popular
congênita, as rusgas entre o estamento e o rei (ou o presidente da República) são, na melhor das hipóteses,
deixadas em segundo plano, quando não simplesmente ignoradas. (CAMPANTE, 2003, p. 164)
Assim, o conteúdo normativo da obra aproxima-se da crítica à centralização estatal e
adquire um caráter marcadamente liberal e descentralizante que sobreleva a sociedade civil
frente ao estado e desdenha a trajetória nacional comparando-a com outros exemplos
históricos6. Para Faoro, a construção do capitalismo no Brasil, diferentemente do capitalismo
europeu, em que há uma prevalência do mercado sobre o Estado, se inverte, sendo o Estado –
patrimonialista – o responsável primeiro pela implantação do capitalismo. Sendo assim, a
construção no Brasil de uma ordem burguesa “plena” fica comprometida pela ação dos
estamentos e pela sua vocação pelo poder.
Outro aspecto relevante na análise do autor é a distinção entre modernidade e
modernização. Enquanto a última pode se fazer presente em um capitalismo politicamente
orientado7, a primeira representa a coexistência do liberalismo, da democracia, da
racionalidade formal, e de uma economia não orientada pela política. É dizer, o caminho para
a modernização passa pela ampliação da cidadania liberal-burguesa, ou seja, pela
insubordinação da economia frente à política, do mercado frente ao Estado.
Assim, a condenação da sobreposição do público sobre o privado na análise de Faoro
demonstra que seu posicionamento não é nem um elitismo absolutista (devido a sua herança
liberal) nem favorável a uma radicalização da democracia (que tem em Rousseau seu grande
porta-voz), visto que a noção de sociedade civil que subjaz seu pensamento, aproxima-se da
noção hegeliana de relações privadas e da livre-iniciativa do mercado, capaz de governar a si
própria (AGUIAR, 2000) – diferentemente de Rousseau, para quem a sociedade civil, o
republicanismo, é o espaço público de tomada de decisão. É, portanto, um pensamento elitista
pluralista, mais próximo à perspectiva dahlniana.
4. CONSIDERAÇÕES FINAIS
6
Aqui, evidentemente, Faoro tem em mente a trajetória estadunidense como exemplo ideal de formação social, o
que lhe rendeu críticas de autores como Jessé de Souza e Werneck Vianna, os quais, segundo Campante (2003,
p. 183) são autores que “se recusam a absolutizar o atraso” do Brasil. Diz Faoro: “O predomínio dos interesses
estatais, capazes de conduzir e deformar a sociedade – realidade desconhecida na evolução anglo-americana –
condiciona o funcionamento das constituições, em regra escritos semânticos ou nominais sem correspondência
com o mundo que regem” (FAORO, 1995, p. 739)
7
Há um papel representado pelo o estamento-burocrático-patriarcal na modernização (ocidentalização,
europeização, revolução passiva, via prussiana, revolução pelo alto, revolução de dentro). Porém, a
modernização não pressupõe alteração na estrutura social, nos valores; por isso, mudam os atores do estamento,
mas a lógica estamental permanece existindo. (BARRETO, 1995)
esforço residiu na análise da compatibilidade entre a categoria estamento burocrático e o
conceito de elites de poder, bem como no conteúdo normativo subjacente a esta perspectiva
teórica em comparação à interpretação faoriana.
De maneira sucinta, verificamos, primeiro, que a compatibilização entre as noções de
estamento e elites de poder não é clara. Tanto em Os Donos do Poder quanto na teoria
clássica das elites (Mosca, Pareto e Michels) identifica-se um fatalismo analítico (estamento)
e teórico (elites/grupos dominantes), respectivamente. No entanto, se por um lado há quem
defenda que o conceito de estamento é equivocado e que, na verdade a “estamentização” é, no
limite, um processo de formação de elites, há quem diga que a categoria e o conceito não
convergem. A causa disso é o fato de a categoria estamento – ainda que nebulosa quanto aos
agentes que a compõem – resguardar um caráter estático (mesmo quando se permite
renovação, está se dá dentro dos círculos de poder minoritários, sem ameaçar a lógica
estamental), ao passo que o conceito de elites possui uma dinamicidade marcadamente
processual, permitindo a circulação de baixo para cima.
No que diz respeito ao conteúdo normativo, pode-se dizer que o telos que alimenta a
concepção elitista e a obra de Faoro mais convergem do que se afastam. Nesse sentido, o
propósito de construção de uma sociedade descentralizada, com uma sociedade civil – não
rousseauniana, mas hegeliana – fortalecida compreende um conteúdo normativo comum à
vertente teórica e à interpretação empírica aqui analisadas. Ao fim e ao cabo, o problema para
Faoro não é o estamento em si, mas a lógica que o estamento instaurado no Brasil deu à
atividade econômica. Uma lógica tutelada, controlada e definida pelos donos do poder. Uma
dinâmica que limitou o desenvolvimento da estrutura liberal-burguesa tal como se deu na
Europa e nos Estados Unidos.
Por fim, ainda que Os Donos do Poder teça críticas severas à formação político-social
edificada no Brasil, e embora apresente claramente um ideal de sociedade (e de mercado) a
ser perseguido – a saber, o modelo estadunidense de sociedade – percebe-se no final da obra a
ausência de um programa político claro para o futuro do Brasil e o excesso de dramaturgia e
pessimismo por parte de Raymundo Faoro, o que o colocam no panteão dos intelectuais
brasileiros mais céticos e derrotistas que os trópicos produziram. Ainda assim, a obra em
questão segue sendo de extrema relevância para se compreender um período específico da
sociedade brasileira – mormente a etapa imperial mediada pelas regências –, bem como para
identificar a origem dos privilégios que se perpetuam na realidade do Brasil contemporâneo.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
AGUIAR, Neuma. Patriarcado, sociedade e patrimonialismo. Sociedade e
Estado. vol.15 no.2 Brasília June/Dec. 2000
BARRETO, Katia. Um projeto civilizador: revisitando Faoro. Lua Nova: Revista de Cultura
e Política, nº 36, 1995.
DAHL, Robert. Um prefácio à teoria democrática. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1989.
MOSCA, Gaetano. A classe dirigente. Trad. Alice Rangel. In: SOUZA, Amaury de (org).
Sociologia política. Rio de Janeiro, Zahar,1966, pp. 51-70.