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Guilherme Mazzafera
“Gondolin e Nargothrond foram criadas uma vez, e não recriadas. Continuaram a ser
fontes e imagens poderosas – ainda mais poderosas, talvez, porque nunca recriadas, e
nunca recriadas, talvez, por serem tão poderosas.”
* * *
O volume foi traduzido por Reinaldo José Lopes em sua primeira empreitada de
tradução tolkieniana publicada (descontando, portanto, seu excelente mestrado com a
tradução completa de Árvore e folha), e creio ser justo dizer que estamos em ótimas
mãos, pois o que lemos em A Queda de Gondolin é bem diferente do que o leitor
brasileiro – sobretudo o da tríade principal O Hobbit, O Senhor dos Anéis e O
Silmarillion – já experimentou.
Sem enfastiar o leitor com explicações técnicas, basta dizer que a composição
tais poemas é extremamente complexa, obedecendo a esquemas mais ou menos fixos
em que o ritmo do verso é marcado pela recorrência consonantal. Graficamente, o liame
sonoro fica ainda mais perceptível pela separação do verso em duas metades, chamadas
hemistíquios. Dado o caráter sintético do inglês, a tradução deste tipo de verso é um dos
maiores suplícios a que um tradutor de língua neolatina pode ser submetido. Reinaldo,
no entanto, purgou boa parte de seus pecados. Embora o cotejo verso a verso evidencie
muitas “derrotas” – e a ideia de manter exatamente o mesmo som na tradução é,
obviamente, um despropósito –, os achados são verdadeiramente impressionantes, algo
que a disposição bilíngue do excerto permite visualizar com clareza. Do conjunto de 68
versos, destaco três exemplarmente vertidos:
* * *
O “Conto Original” nos mostra que é preciso acreditar até o fim, não cedendo ao
desespero, como se dá no nobre e obtuso gesto do triste Turgon, que se deixa afundar
com a cidade que parcimoniosamente forjara. É preciso não optar jamais pelo mal,
mesmo quando sua força vertiginosa corrompe a tudo e a todos. É a fidelidade a essa
promessa que permite a Tuor, junto de sua esposa, filho e alguns de seu povo, furtarem-
se à destruição. E de sua união com Idril Celebrindal, filha do rei, nasce a última
esperança de Homens e Elfos, Eärendil, pai do nosso bom e (muito) velho Elrond Meio-
Elfo e personagem central para dar bom termo aos convulsionados eventos da Primeira
Era que vemos em O Silmarillion.
Se um “autor não consegue evitar ser afetado por sua própria experiência, mas
os modos pelos quais os germes da história usam o solo da experiência são
extremamente complexos”, como nos lembra Tolkien no prefácio à segunda edição de
O Senhor dos Anéis (1965), é difícil não perceber a visão mecanicista da guerra, em
todo o seu som e fúria – o “horror animal” da guerra de trincheiras que, segundo
Carpenter, Tolkien jamais pôde esquecer –, na belíssima descrição da batalha travada
em Gondolin. É curioso que o viés moderno e desumano da máquina atinja justamente
criaturas essencialmente fantásticas como os dragões – fantástico aqui em sentido
tolkieniano, ou seja, algo que causa no contemplador um misto de estranheza e
admiração –, criaturas das quais nosso autor tinha verdadeira fome, reconhecendo sem
peias que “o mundo que continha até mesmo a imaginação de Fàfnir era mais rico e
mais belo, não importava o custo do perigo”.
“Alguns eram todos de ferro, tão habilmente encadeados que podiam fluir como rios
lentos de metal ou se enrolar em torno e por cima de todos os obstáculos diante deles, e
esses, em suas profundezas mais recônditas, eram cheios dos mais vis Orques, armados
com cimitarras e lanças; a outros, de bronze e cobre, foram dados corações e espíritos
de fogo ardente e incineravam tudo o que havia diante deles com o terror de seu hálito
ou pisoteavam o que quer que escapasse do ardor de sua respiração; ainda outros
eram criaturas de chama pura que se retorciam como cordas feitas de metal derretido e
levavam à ruína qualquer matéria da qual se aproximavam, e o ferro e a pedra
derretiam diante deles e tornavam-se como água, e sobre eles cavalgavam os Balrogs
às centenas; e esses eram os mais temíveis de todos os monstros que Melko criara
contra Gondolin.”
“Então Tuor viu-se em uma região agreste, nua de árvores e varrida por um vento
vindo do lado do pôr do sol, e todas as moitas e todos os arbustos inclinavam-se para o
lado da aurora por causa da prevalência daquele vento. E ali por um tempo vagou ele
até que chegou aos penhascos negros perto do mar e viu o oceano e suas ondas pela
primeira vez, e naquela hora o sol mergulhou para além da borda da Terra, muito ao
longe, no mar, e ele ficou de pé no topo do penhasco de braços abertos, e seu coração
encheu-se de um anseio de fato grandíssimo. Ora, alguns dizem que ele foi o primeiro
dos Homens a alcançar o Mar e olhar para ele e conhecer o desejo que ele traz, mas
não sei se o dizem corretamente.”
“Dessa forma Tuor cruzou as fronteiras de Nevrast, onde outrora habitara Turgon e
por fim, desprevenido (pois os topos dos penhascos na beira daquela região eram mais
altos que as encostas que levavam a eles) chegou de repente à negra borda da Terra-
média e divisou o Grande Mar, Belegaer, o Sem Margens. E naquela hora o Sol se pôs
além da beirada do mundo, como um fogo poderoso, e Tuor estava de pé, sozinho,
sobre o penhasco, de braços abertos, e um grande anseio encheu-lhe o coração. Diz-se
que ele foi o primeiro dos Homens a alcançar o Grande Mar e que ninguém exceto os
Eldar chegou a sentir mais fundo a saudade que ele traz.”