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Vanda Machado1
Resumo: Este escrito trata de um assunto que não se define pelo raciocínio lógico.
Falar de Exu é falar do que há de mais contraditório quando se pensa na relação cultura e
religião no Brasil. Exu é o comunicador, é também o que confunde, o que faz justiça, e o que se
desvela deixando dúvidas. É a força que se instala no mesmo espaço de todas as vidas do
mundo. É o símbolo e o fundamento. Exu está em todas as porteiras de todos os terreiros que
contêm as mesmas premissas basilares do saber que dá significado à vida.
A HERANÇA
Afirma-se que o Brasil deve ter recebido pessoas escravizadas de quase todos os
recantos da África subsaariana. Homens e mulheres atravessaram quase todo continente
antes de chegar aos portos litorâneos. Foram três séculos de tráfico e boa parte dos cinco
milhões de africanos e africanas que chegaram ao Brasil saiu do vasto território
adjacente aos litorais e dos dois Congos estraçalhados sertões adentro. Essa área foi a
maior e mais constante fornecedora de mão-de-obra escravizada para o nosso país. Por
certo, não é possível desconsiderar também a presença dos povos fons e yorubás que
chegaram em grande número de etnias nos séculos XVIII e XIX, impregnando com seu
patrimônio simbólico o Recôncavo baiano, especialmente a cidade de Salvador
agregando força e vigor a cultura já existente. Entenda-se patrimônio simbólico, a
memória cultural da África. A palavra patrimônio encontra no Brasil um lugar próprio.
Na sua etimologia, a palavra herança tem como definição: conjunto de bens que se
recebe do pai. A mesma palavra é também uma metáfora para o legado cultural como
uma memória coletiva de algo culturalmente comum a um grupo.
Na trajetória transversal da história do negro no Brasil, vamos considerar alguns
desvios como arranjos para a re-existência. Trata-se, portanto, de uma forma de atualização
que podemos considerar legítima na essência advinda de uma experiência coletiva e com a sua
própria lógica. Lógica que se faz pela re-existência, como fenômeno de transformação
cognitiva pela inter-relação de seres e saberes compartilhados. Seres que, expatriados pela
diáspora, re-significaram seus papéis, organizando-se em torno de uma identidade ancestral.
Saberes que se imbricaram e se expressam nos enredos da história oral, nos mitos, cantigas,
provérbios e falares que anunciam um éthos epistemológico enraizado no pensamento
africano na sua atemporalidade.
Esse é o sentido para que estejamos sempre atentos a tudo que possa
contribuir para a busca de ser antes de aprender para ter. Ser, numa comunidade de
terreiro, está associado também ao poder, aos postos e aos cargos honoríficos.
Aprender a ser, aprender na vida são valores básicos do povo de santo. A cada tempo,
o saber de cada tempo para ser, para cuidar de si, do outro e da vida. Cada saber tem
um efeito precípuo. No terreiro, pelas vivências, aprende-se ser-sendo, participando
dos fazeres comunitários. Esta é a condição para complementaridade entre os
acontecimentos e a condição do que se é essencialmente. No terreiro, aprende-se pela
rememoração vivenciada seguindo múltiplos códigos de comportamentos específicos
para a vida comunitária comprometida, inclusiva e solidária. Para Sodré,
O terreiro é um território gerado por uma teia cultural que se apresenta como
um conjunto indissociável pela identidade grupal e pela solidariedade que re-une. Isso
não afasta contradições e sérios conflitos que afetam e desequilibram as vivências
comunais. A porteira é o início de tudo. É onde tudo se transforma numa natureza
humanizante, onde tudo e todos se interrelacionam numa dinâmica como Mãe Stella
costuma repetir: todo aquele que entra por aquela porteira se torna imediatamente
um irmão. Uma comunidade de terreiro se organiza como um egbé,uma família no seu
sentido mais amplo.
pertence desde sempre. Daí que considerar o ser na comunidade, inclui seus gozos e
conflitos. Afinal, o mundo e a comunidade somos nós. Para compreendê-lo é preciso
compreender a nós mesmos, nossas vivências individuais e coletivas.
As festas são também idéias que representam uma postura política de exercício
de liberdade de ser. São eventos organizados que se renovam no modo de se realizar e
de entender realidades pessoais e comunitárias. A intenção deve ser compreender a
nós mesmos na vivência presente. Decerto que tanto o gozo como as turbulências do
mundo também são nossos problemas. São fenômenos, são acontecimentos que nos
motivam a repor a memória e proceder à evocação restauradora das lembranças da
comunidade que se reconstrói a cada evento. E tudo nos afeta e nos propicia o
autoconhecimento.
Viver no terreiro sendo feito ou não é estar pronto para construir seus saberes a
partir de um novo espaço interno. Um espaço vivo e estimulado para aprender com
todos os acontecimentos. A aprendizagem inclui atos celebrativos que estimulam e
agregam tudo que dá vida à vida comunitária. A educação das crianças da comunidade
3
Afonjá passa por essa experiência vivenciando as possibilidades de compreender o
mundo como algo que se move dentro e fora de nós mesmos. É um lançar-se além de
si para o encontro de outras vivências, outras leituras e da compreensão de outros
códigos experienciais. No Afonjá, vive-se um mundo africano tradicional onde tudo
existe em potência. Tudo está para acontecer ou dissipar-se. Vive-se o mundo das
possibilidades.
vivo possa inflamar as palavras dos homens e das mulheres para darem o significado
das ondas sonoras que dançam e se movem em qualquer direção.
Para que se cumpra esta função comunicante, antes de qualquer ritual público
ou privado, a comunidade se reúne para o padê. É o momento de encontro entre o
passado, o presente e o devir, devotado a Exu, elemento dinâmico, propiciador da
comunicação entre os seres humanos e as diferentes dimensões cósmicas. Padê ou
ipadê remete às percepções pessoais e coletivas numa lógica plural de sentidos regidos
por memórias da comunidade; É um ritual que dá significado às relações peculiares
entre as entidades de todos os mundos, e de Exu com a comunidade. É um ritual
interno, com a finalidade de reiterar o respeito e a consideração pelos incontáveis
serviços que Exu presta à comunidade e a cada um, em particular.
3 Desde 1998, foi implantado o Projeto Político Pedagógico Irê Ayó na Escola Municipal Eugenia Anna
dos Santos, na Comunidade do Ilê Axé Opo Afonjá.
Falamos anteriormente que, em tempos remotos, Exu teria conquistado a
confiança dos homens, aprendendo e ensinando os segredos do jogo divinatório, para
que estes pudessem dialogar com os orixás apresentando as suas queixas, buscando a
cura para os seus males e a realização dos seus mais íntimos desejos. Isto significa que
os homens, ao se darem conta dos acontecimentos imanentes pelo jogo dos búzios ou
Ifá4, vão se comunicando com os orixás, fazendo-lhes oferendas que alimentam as
possibilidades da vida com alegria.
5 Trata-se da Lei 10639 de 9 de janeiro de 2004, que obriga o ensino de História e Cultura Afro-brasileira
e Africana.
nomundo, sendo diferente. Que pedagogia nos daria um caminho? Urge que sejam
reabilitados e dinamizados valores cosmológicos, vivenciais num mundo aberto para
um jeito de educar sem fronteiras.
Conta-se que certa vez um homem muito rico tratava mal os seus
trabalhadores. Por conta de muitos desagrados, todos juntos resolveram fazer
reivindicações. Para humilhar seus empregados, ele deu um pedaço de terra a
cada um. Com a intenção de manter a subalternidade a que estava
costumado, ofereceu-lhes milho torrado para semear nos seus próprios
campos. Os seus trabalhadores plantaram e o local passou a ser vigiado dia e
noite para garantir que a plantação não nasceria. Então, Exu se deu conta da
maldade e não suportou a injustiça. Resolveu dar o troco àquele falso
benemérito criando uma bela estratégia. Exu chegou ao centro da cidade e
começou a fazer brincadeiras e travessuras. Somente isso. Nas suas divertidas
pintanças, as vacas começaram a voar, cavalos falaram, a lua dançou e o sol
rodopiou.... Foi tanto movimento que não ficou quem não corresse para ver o
que estava acontecendo. Mais rápido do que a luz Exu entregou novos e
férteis grãos de milho aos empregados que se apressaram em plantar, e para
o desespero daquele homem. Nunca se viu plantação mais próspera .
Com todo respeito a este precursor dos movimentos dinâmicos dos caminhos
virtuais, ele pode até ser comparado aos seres humanos. Mas não a todos. Só aqueles
que jogam com o poder da imaginação e sabem onde, como e quando interferir.
Aqueles que correm de um lado para o outro criando caminhos para encontros e
celebrações. Aqueles que agem como cantou Raul Seixas como os olhos do cego ou
como a cegueira da visão 6 ou os que sabem tencionar poetizando e jogando com a
vida; os que se entregam a uma ressonante gargalhada. Aqueles que não param de
traçar caminhos novos, e que cada dia fazem um traçado diferente do outro. Traçados
que não simplesmente se cruzam, mas que criam caminhos de encontros, mesmo que
sejam encontros transitórios.
Exu se desloca com a velocidade da luz ou com o cuidado protetor de uma dona
de casa. É ele quem desmancha com habilidade de artesão, o que precisa ser
desmanchado ainda na sua imanência. Ele constrói do nada o que precisa ser
construído. Consideramos, deste modo, porque vivemos como tradição a
complexidade do cotidiano que se alimenta da própria tradição. Os fundamentos
estão no fato de existir uma cadeia dialógica entre as próprias energias dos fenômenos
míticos repetidos e as pulsões grupais.
REFERENCIAS BIBLIOGRAFICAS
2. FORD, Clyde W. O herói com rosto africano: mitos da África. São Paulo: Selo
Negro, 1999.
8. PETROVICH, Carlos R.; MACHADO, Vanda. Irê Ayó: mitos afro-brasileiros. Salvador:
EDUFBA. 2004.