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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE

INSTITUTO DE ARTES E COMUNICAÇÃO SOCIAL

DEPARTAMENTO DE CINEMA E VÍDEO

LUIZA GAMA DRABLE SANTOS

DIREÇÃO DE ARTE E ESTILO NO CINEMA BRASILEIRO:

Uma perspectiva estética

Niterói, Rio de Janeiro


2013
UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE

LUIZA GAMA DRABLE SANTOS

DIREÇÃO DE ARTE E ESTILO NO CINEMA BRASILEIRO:

Uma perspectiva estética

Trabalho de Conclusão de Curso


apresentado à Universidade Federal
Fluminense por Luiza Gama Drable
Santos, matrícula 208.57.053, como
requisito parcial para a obtenção do grau
de Bacharel em Cinema e Audiovisual.

Orientadora: Profª India Mara Martins

Niterói, Rio de Janeiro

2013
AGRADECIMENTOS

Agradeço aos meus pais, que me criaram pra ser a melhor das pessoas que eles puderam
desejar e estiveram ao meu lado em todas as minhas escolhas, apesar de discordar em algumas
delas.

Aos meus irmãos que sempre estiveram ao meu lado em todas as travessuras e todas as
dificuldades da vida.

Ao Lucas, pelo apoio constante em todos os passos, por me fazer acreditar em mim mesma.

À Camila, companheira, irmã de todas as horas, sem ela nada disso seria possível.

À Fernanda, amiga que me conhece mais do que eu mesma, me ensina todos os dias sobre a
liberdade.

À Silvia Rumen, minha amiga e sócia, pelo companheirismo de todos estes anos e a
transmissão de pensamento constante. E todos da Croquete Filmes, pelo conhecimento na
prática que tem me dado, e pela amizade que carrego no peito.

A todos os amigos do colégio que estiveram ao meu lado nesta jornada e que se mostraram
presentes, mesmo que a quilômetros de distância.

Ao Luiz Guilherme, por sua amizade.

A todos os amigos da 2008.1, que apesar de ‘apagadinha’, sempre foi nossa turma querida.
À India Mara Martins, minha orientadora querida, por todos os momentos de orientação
precisa, por todas as conversas, todos os sets, todo o carinho dedicado a mim.

A todos os diretores de arte entrevistados na pesquisa de iniciação científica PIBIC/Faperj,


que cederam seu tempo e conhecimento, principalmente Cássio Amarante, Carla Caffé e
Raimundo Rodriguez.
The human being is all-important in the theatre. The drama on the screen can exist without actors. A
banging door, a leaf in the wind, waves beating on the shore can heighten the dramatic effect. Some
film masterpieces use man only as an accessory, like an extra, or in counterpoint to nature, which is
the true leading character.

André Bazin

Tudo que não invento é falso.

Manoel de Barros
RESUMO

A proposta do presente trabalho é analisar a função do diretor de arte no contexto audiovisual


brasileiro contemporâneo propondo rever seu campo de atuação, com uma visão diferenciada
para o estilo estético que se pode definir através de sua influência na narrativa fílmica. A
pesquisa se debruçará na análise do processo criativo de três diretores de arte atuantes no
período pós-retomada (anos 1990) do cinema brasileiro e suas contribuições. São eles: Cássio
Amarante, Carla Caffé e Raimundo Rodriguez. Finalmente, busca-se investigar como essas
definições de estilo estético propostas pelos diretores de arte podem afetar a narrativa fílmica.

Palavras-chave: direção de arte; design visual; estilo; processo criativo


ABSTRACT

The purpose of this paper is to analyze the role of the art director in the Brazilian
contemporary audiovisual context, proposing to review its field, with a different vision for the
aesthetic style that can be defined through its influence on the cinematic narrative. The
research will address the analysis of the creative process of three art directors who were active
during the brazilian cinema post resumption period (1990’s), and their contributions. They
are: Cassio Amarante, Carla Caffé and Raimundo Rodriguez. Finally, we seek to investigate
how these definitions of aesthetic style proposed by those art directors can affect the
cinematic narrative.

Keywords: art direction; production design; visual design; style; creative process
LISTA DE FIGURAS

Figura 1.1: O Cangaceiro, Lima Barreto, 1953 .................................................................... 20

Figuras 2.1 e 2.2: O Ano em que Meus Pais Saíram de Férias, Cao Hamburger, 2006 ....... 36

Figuras 2.3 e 2.4: O Ano em que Meus Pais Saíram de Férias, Cao Hamburger, 2006 ........ 37

Figuras 2.5 a 2.8: O Ano em que Meus Pais Saíram de Férias, Cao Hamburger, 2006 ....... 38

Figuras 2.9 e 2.10: Xingu, Cao Hamburger, 2012 ................................................................. 40

Figura 2.11 a 2.13: Xingu, Cao Hamburger, 2012 ................................................................ 41

Figuras 3.1 e 3.2: Narradores de Javé, Eliane Caffé, 2003 .................................................. 43

Figuras 3.3, 3.4 e 3.5: Narradores de Javé, Eliane Caffé, 2003 ........................................... 44

Figuras 3.6 e 3.7: Central do Brasil, Walter Salles, 1998 ..................................................... 46

Figuras 3.8 e 3.9: Central do Brasil, Walter Salles, 1998 ..................................................... 47

Figuras 3.10 e 3.13: Central do Brasil, Walter Salles, 1998 ................................................. 48

Figura 4.1: Capitu, Luiz Fernando Carvalho, 2008 ............................................................... 50

Figura 4.2: Capitu, Luiz Fernando Carvalho, 2008 ............................................................... 51

Figuras 4.3, 4.4 e 4.5: Capitu, Luiz Fernando Carvalho, 2008 ............................................. 53

Figuras 4.6, 4.7 e 4.8: Capitu, Luiz Fernando Carvalho, 2008 ............................................. 54
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO...................................................................................................................... 10

1. UMA BREVE PERSPECTIVA HISTÓRICA................................................................ 15

1.1 A direção de arte no Brasil............................................................................................ 15

2. A FUNÇÃO DENTRO DA INDÚSTRIA CINEMATOGRÁFICA BRASILEIRA.... 22

2.1 Elementos visuais de composição................................................................................. 24

2.1.1. A textura da imagem.......................................................................................... 25

2.1.2. A cor................................................................................................................... 26

2.1.3. A composição espacial....................................................................................... 27

3. O QUE DÁ AO DIRETOR DE ARTE UMA VOZ PRÓPRIA?................................... 30

3.1 Modos de olhar: estudos de casos sobre diretores de arte............................................. 33

3.1.1 Direção de arte como expressão de realismo – Cássio Amarante....................... 33

3.1.2 Direção de arte como questão social – Carla Caffé............................................ 42

3.1.3 Direção de arte como instalação – Raimundo Rodriguez................................... 49

CONCLUSÃO........................................................................................................................ 55

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS................................................................................. 59

Monografias, textos e outras publicações........................................................................... 60

Referências da Internet........................................................................................................ 60

Entrevistas feitas pela autora............................................................................................... 62

Filmografia.......................................................................................................................... 62
INTRODUÇÃO

Quando iniciei esta pesquisa e o caminho que viria a ser percorrido, e que ainda
pretendo percorrer no mesmo sentido, percebi o quanto era significativa a falta de material
didático e acadêmico voltado para o estudo de direção de arte. Mais ainda, percebi a
desvalorização da qual esta função padece. Sempre me perguntei por que dentro de uma
universidade que seria uma das melhores em cinema do país não teria uma só disciplina
optativa voltada para direção de arte e apenas uma disciplina que abrange o estudo do tema,
que por acaso começou no ano em que eu deveria iniciar tal estudo. Nunca entendi o porquê
da função ser relegada a um segundo plano, tendo menor importância em relação a outras
funções, como a direção de fotografia, já que a atividade fílmica sempre se deu para mim
como uma atividade de grupo e conjunta.

Até mesmo na Enciclopédia do Cinema Brasileiro, organizada por Fernão Ramos e


Luís Felipe de Miranda, do ano de 2000, na qual se apresentam verbetes relativos aos termos
e funções relacionadas ao cinema brasileiro, não há menção à direção de arte como função,
apenas se define o termo “cenografia” como parte da função do diretor de arte em uma visão
mais global e ainda se cataloga uma lista de mais de sessenta cenógrafos.

Os materiais didáticos publicados no exterior sobre a prática cinematográfica da


direção de arte também revelam pouca profundidade teórica. É o caso de What an Art
Director Does, do estudioso norte-americano Ward Preston. As exceções são os livros The
Filmmaker’s Guide to Production Design, de Vincent LoBrutto, cuja análise do tema
proposto se elabora de maneira mais profunda, se configurando como o manual mais
completo sobre o tema atualmente. Outro conteúdo abordado na pesquisa foi o extenso
Escenografía Cinematográfica, de Mónica Gentile, Rogelio Diaz e Pablo Ferrari; que possui
um estudo significativo no intuito de definir os termos gerais referentes à cenografia e à
direção de arte no audiovisual, levando em consideração também a história do cinema
mundial e do cinema argentino, no qual o trabalho se concentra.

Buscando informações sobre o estudo do processo de criação da direção de arte no


país, podemos encontrar algumas monografias e a dissertação de mestrado mais relevante no
campo, A direção de arte e a imagem cinematográfica. Sua inserção no processo de criação
10
do cinema brasileiro dos anos 1990, de Débora Butruce, que apresenta uma análise apurada e
profunda sobre o processo criativo do diretor de arte, se iniciando pelo estudo da imagem em
si e analisando mais a fundo o processo criativo do diretor de arte.

O primeiro contato com esta bibliografia se deu durante a pesquisa de iniciação


científica intitulada “A influência da tecnologia no processo criativo dos diretores de arte do
cinema brasileiro pós-retomada (anos 90)” e orientada pela Profa. Dra. India Mara Martins. A
pesquisa levou a realização deste TCC, escolha que me pareceu justificada pela necessidade
crescente de um estudo do panorama nacional e do preenchimento da lacuna bibliográfica
existente no campo. O desejo de reafirmar a direção de arte como campo teórico necessário e
pertinente à análise fílmica passou a ser um desafio ao meu estudo pessoal.

DIREÇÃO DE ARTE E IMAGEM

A pesquisa da direção de arte neste campo passa necessariamente por um estudo da


imagem e como ela se constitui. A natureza mesma da imagem cinematográfica se dá em uma
relação abstrata, isto é, sua formação é exclusivamente no momento da projeção na tela.
Dizemos isso porque a imagem fílmica só é capaz de ser reconhecida pelo olho humano
quando projetada na tela, e por isso, como coloca Noël Burch (1973) o quadro deve ser
composto totalmente a cada instante. Partiremos do conceito de quadro como o
enquadramento definido pela câmera quando se concebe a cena. Será possível o entendimento
da imagem cinematográfica se nos apoiarmos no pressuposto que esta é composta por
elementos, mas só se constitui “fisicamente como um fragmento de uma superfície plana, um
objeto que pode ser manipulado, transportado e conhecido materialmente, como, por
exemplo, o quadro, a fotografia e o filme.” (BRUTUCE, 2005, p. 26)

A composição plástica da imagem fílmica depende, portanto, da estruturação e


organização do espaço de representação, onde os personagens irão interagir. A direção de arte
vai exercer este papel de materialização do espaço, compondo visualmente o filme. O termo
‘direção de arte’ se caracteriza por ser um processo de transposição do roteiro escrito em
representações visuais, que são responsáveis pela criação de uma atmosfera. A definição do

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termo “cenografia”, segundo Mónica Gentile, “vem do grego “skenographis”, de
skenographos: cenógrafo, definição de perspectiva de um objeto. Arte de pintar cenários de
teatro. Atualmente, define-se a cenografia como conjunto de cenários de uma obra teatral,
cinematográfica ou televisiva. Arte de realizar cenários.” (GENTILE, 2007, p.17)

No princípio do século XX, quando os realizadores descobriram o contar histórias


através do cinema, sentiu-se a necessidade de se construir esses espaços, onde tais histórias
seriam ambientadas. Para isso, se utilizaram das técnicas e recursos cênicos já avançados da
arte dramática mais antiga do mundo, o teatro.

Partindo do pressuposto que o material mesmo da cenografia, como define Gentile, é


de natureza teatral, podemos supor que está relacionada à sua forma de compor o espaço
visualmente, criando um esquema pictórico que apresente a unidade estética na cena. A
imagem fílmica, que é o conteúdo final da matéria estudada aqui, vai reunir todos os
elementos que compõe essa unidade estética formada pelo espaço, que mais adiante veremos
decomposto em eixos. Entretanto, no cinema, a direção de arte, que é onde esta unidade
estética e visual vai se definir, corre o risco de se apresentar de maneira mais fragmentada, já
que o filme sempre é rodado de forma a otimizar a produção e não com as sequências sendo
filmadas em ordem consecutiva, como está escrito no roteiro; o que problematiza a produção
de arte em certo sentido. Por isso, é necessário que exista um projeto visual muito bem
pensado e organizado, para que se mantenha a unidade estética do filme como um todo. Este
projeto visual vai ser pensado e esquematizado pela figura do diretor de arte.

Apesar de existirem outras formas de realização do processo cinematográfico, a


criação da imagem cinematográfica é possível muitas vezes a partir da realização de um
roteiro, a ideia inicial em palavras que vai dar origem à criação de um projeto visual. O
trabalho do diretor de arte, ou do production designer, designação norte-americana que será
melhor analisada mais adiante, vai permitir a materialização de suas ideias, as do diretor e as
do diretor de fotografia em um projeto visual coeso que envolverá e definirá os personagens.

O objetivo deste trabalho é analisar o campo teórico da direção de arte no audiovisual


brasileiro contemporâneo observando as nuances de estilo que podem surgir quando a área de
atuação prática do diretor de arte é levada em consideração como matéria-prima de um
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referencial estilístico. Existe a possibilidade que o diretor de arte, na atual conjuntura do
cinema brasileiro, consiga estabelecer um diálogo tão forte com a narrativa que seu estilo
autoral caracterize uma fala? Há com certeza um conjunto de elementos que determinam essa
potência, que na maioria das vezes são definidos pelos teóricos somente pela fala do diretor
como autor do filme; porém, esse lugar de fala se encontra em perspectivas distintas,
compostas por uma unidade da imagem que obtém sua força nesse conjunto de elementos.

Portanto, o que se pretende discutir nesta pesquisa é o papel do diretor de arte para
construção da narrativa fílmica e com isso, investigar a possível formação de um estilo
próprio para estes atores, assim como observamos e estudamos para os diretores artísticos.

O primeiro capítulo se debruça sobre um breve histórico da direção de arte no cinema


brasileiro, como incursão da temática a um contexto histórico do cinema e problematização da
proposta. Iniciamos o percurso histórico quando a cenografia começou a ser creditada a uma
pessoa definida. Momento este que coincide com o início da tentativa de industrialização do
cinema brasileiro em meados da década de 30, período marcado pela construção de estúdios e
a vontade de equiparar o cinema nacional ao cinema estrangeiro. Depois disto, com o
crescimento desta tentativa de industrialização e do trabalho creditado a este cenógrafo,
vemos gradativamente a mudança dos títulos para direção de arte.

Avançamos para uma análise da função, mais a frente na história do cinema brasileiro,
quando a construção dos estúdios da Vera Cruz nos anos 50 e a determinação mais formal e
técnica de profissionais vindos do exterior que vão influenciar o pensamento e a formação dos
realizadores nacionais, até mesmo daqueles que vão discordar da construção desse modelo
industrial e decidirão ir por um caminho contrário a este.

No segundo capítulo será analisado como a direção de arte trabalha seus mecanismos
no cinema brasileiro contemporâneo, levando-se em consideração os elementos de
composição da imagem visual e conseqüentemente, os elementos que compõe o estilo estético
do filme a partir da teoria formulada por David Bordwell. Faremos uma decomposição dos

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elementos visuais que constroem a imagem cineplástica1 para analisá-los paralelamente à
narrativa fílmica no terceiro capítulo.

Já o terceiro capítulo se debruça sobre uma análise da filmografia de três diretores de


arte ativos no período com o objetivo de ressaltar suas características estilísticas decompondo
em elementos visuais e relacionando-os à narrativa. Neste caminho, algumas perguntas irão
nos nortear: quais são as representações visuais criadas pela direção de arte? Que relação
essas metáforas possuem com a narrativa? Como se constrói esta narrativa visual? A partir
destas perguntas, vamos analisar a narrativa visual elaborada pelos diretores de arte Cássio
Amarante, Carla Caffé e Raimundo Rodriguez.

1
O termo ‘cineplástica’ vem da definição para atmosfera do diretor de fotografia francês Henri Alekan: “A
atmosfera é a integração no complexo plástico de elementos ativos (dinâmicos) - personagens e objetos, e
elementos passivos (estáticos) – lugar e cenário, num clima cuja origem é sempre psicológica. A atmosfera é o
ligante da componente fílmica ou pictórica. É a atmosfera que dá o tom à obra. É através dela que o visual
relembra à nossa memória – que acumulou as nossas experiências vividas, que os pendências psíquicas, que se
traduzem por desconforto, tristeza, mistério, medo, angústia, felicidade, alegria, etc.” (Henry Alekan. Des
lumières e des Ombres, Paris, Le Sycomore, 1984, ´n ; 67) IN MARTINS, India Mara. O Production Design e a
criação de atmosferas no cinema.
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1. UMA BREVE PERSPECTIVA HISTÓRICA

1.1. A direção de arte no Brasil

O advento da direção de arte denota da construção própria da linguagem


cinematográfica desde início do século XX, quando os realizadores descobriam o contar
histórias. Em conseqüência dessa necessidade, começaram a surgir as expressões cenográficas
próprias do cinema, assim como materiais e recursos para construção de mundos fictícios. O
teórico francês Jacques Aumont afirma que

A cenografia foi a apropriação, pelo teatro de uma técnica de expressão do espaço a


partir de um ponto de vista, a perspectiva; no filme, que possui a perspectiva por
construção, a expressão do espaço é um processo sintético em que a atividade
cenográfica se desloca, e ele deve preservar a coerência das vistas sucessivas. Entre
o teatro e o cinema, está toda a história do espaço na pintura, seu descentramento,
sua não-limitação, sua explosão. (AUMONT, 1993, p. 230)

Nos Estados Unidos, já a partir dos anos 20 a cenografia nos estúdios hollywoodianos
torna-se intimamente ligada ao sistema de estúdio. E assim como os estúdios, crescem os
departamentos de arte ligados a eles. Cria-se, dessa forma, uma tendência de estilo por
departamento de arte. Ou seja, cada estúdio acaba criando um estilo próprio. Era o chefe do
departamento quem conduzia seu estilo e por isso, ele era o “cabeça de equipe” e quem
levava o crédito do trabalho de todos os diretores de arte de cada unidade, os artistas de
sketches e os arquitetos das plantas-baixas.

Um bom exemplo desta situação é a história de Cedric Gibbons, que deteve o


controle artístico da Metro-Goldwyn-Mayer durante quase três décadas. Gibbons era chefe
do Departamento de Arte da Metro e foi ele o criador do estilo original e rico do estúdio. É
creditado a ele toda uma evolução da direção de arte hollywoodiana, no sentido de inovar
em grandeza e consolidar o visual de estúdio ao mesmo tempo. Nenhum outro estúdio
manteve tanto tempo um mesmo chefe de departamento no comando. Segundo consta, nem
mesmo a Warner Brothers ou a Twentieth Century-Fox manteve durante tantos anos um
diretor de arte no comando (CORLISS & CLARENS, 1978, p. 23).

Entre os trabalhos mais memoráveis produzidos por Cedric Gibbons podemos citar
cenografias como as dos filmes Terra dos Deuses, com Louise Rainier e Paul Muni, Anna
Karenina, com Greta Garbo e Frederic March e a reconstituição de Maria Antonieta. Os
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figurinos usados no filme foram expostos na década de 1980 em exposição de enorme êxito,
organizada por Diana Vreeland, no Metropolitan Museum of Art, Nova Iorque.

Nos anos 30, se inicia a chamada Idade de Ouro de Hollywood e com isso, um
remanejamento definitivo dos diretores de arte entre os estúdios que estabeleceria um estilo
próprio para cada um deles. Nessa época, por vezes se acreditou que pela forte
departamentalização dos estúdios hollywoodianos, o chefe do Departamento de Arte poderia
estilizar um filme a tal ponto que um filme com mise-en-scène fraca poderia ser dominado
pelo diretor de arte.

Em 1939, pela primeira vez foi outorgado a William Cameron Menzies o crédito de
Production Designer do filme E o Vento Levou, pelo produtor David O. Selznick. A
realização contou com esforços conjuntos de vários diretores, porém Menzies visualizou o
filme como nenhum deles havia feito. Menzies havia desenhado mais de cem sketches para
câmera seguir, inclusive com os efeitos de luz. O seu projeto foi concretizado e ganhou o
Oscar de melhor filme; claro que não foi um esforço de um só homem, mas a visão de
Menzies foi de grande evolução para a direção de arte. A partir daí, a figura do production
designer passou a ser reconhecida dentro do cinema como produtor e designer ao mesmo
tempo.

Enquanto nos departamentos de arte norte-americanos já estava em voga uma


mudança de paradigma da função do diretor de arte, com a valorização do mesmo, no Brasil
o estúdio da Cinédia foi o primeiro a investir na construção de uma estrutura de
“departamento de cenários”, nos padrões hollywoodianos. Com a passagem do cinema
mudo para sonoro, os filmes da Cinédia deram um passo decisivo na tentativa de
industrialização do cinema brasileiro, realizando produções reconhecidas mundialmente
como o filme Ganga Bruta, de 1933 e O Ébrio, lançado em 1946, que obteve um sucesso de
público estrondoso para época, batendo recordes e disputando bilheteria com diversos
sucessos americanos.

Influenciados por uma corrente de cenografia voltada para grandes estúdios


hollywoodianos, os primeiros cenógrafos surgiram no Brasil no começo dos anos 30, época
da criação dos estúdios Cinédia e Brasil Vita no Rio de Janeiro. É com a criação dos
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estúdios e com transição para o cinema sonoro que aparecem as funções técnicas artísticas
mais definidas, seguindo um modelo de cinema industrial, por isso quase sempre, a
delimitação do campo de atuação das diferentes funções é associada a certa
departamentalização.

Oficialmente, Ruy Costa foi o primeiro a ser creditado pela cenografia de Onde a
terra acaba, produzido em 1933 pela Cinédia, e depois por Alô, alô, Carnaval!, filme de
Adhemar Gonzaga, também produzido pela Cinédia em 1936, cuja montagem de cenários é
sua, mas a assinatura dos desenhos de cenários é dos cartunista J. Carlos. A cenografia nesta
época carrega esta característica teatral dos fundos pintados. O cineasta e jornalista Adhemar
Gonzaga é o grande responsável pela construção dos estúdios da Cinédia, empresa fundada
em 1930, que foi fruto das discussões sobre a implantação de um modelo de indústria
cinematográfica no país, em especial as exercidas pela revista Cinearte, dirigida por
Gonzaga, que sugeria uma transformação técnica e estética no intuito equiparar o produto
nacional ao estrangeiro (RAMOS, 2000, p. 130).

O primeiro cenógrafo a fazer carreira no cinema brasileiro é o português Hipólito


Collomb, numa longa parceria com o estúdio Cinédia. O cenógrafo realizou Bonequinha de
Seda, lançado em 1936 e dirigido por Oduvaldo Viana, foi uma das primeiras produções de
maior porte da época e de mais bem acabadas cenografias. No mesmo estúdio, Hipólito vai
trabalhar em Samba da vida (1937) e Tererê não resolve (1938), ambos de Luiz de Barros, e
em Alma e corpo de uma raça (1938), de Milton Rodrigues.

O pintor e ilustrador húngaro Laslo Meitner se radicou no Rio de Janeiro na década


de 40 e trabalhou nas cenografias de O Ébrio (1946), dirigido por Gilda de Abreu, e
Caminho do Céu (1943), de Milton Rodrigues, ambos produzidos pela Cinédia, além de
outros filmes e peças teatrais. É importante destacar a relevância de O Ébrio na filmografia
do cinema brasileiro como uma significativa agregação das características do modelo de
cinema americano como indústria e de sua estética como maneira de atingir as expectativas
do público abarcando os anseios de diversos nichos, aplica a narrativa clássica
hollywoodiana e seus moldes de produção, atingindo um público louvável. E como notado
anteriormente, se aproveita do sucesso do rádio e do astro Vicente Celestino como

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personagem para utilizá-lo como protagonista da trama, se baseando em uma estrutura de
novela radiofônica. O filme é uma adaptação a partir da famosa música homônima de
Vicente Celestino, e contou também com uma prévia encenação nos teatros de revista.

As chanchadas, como ficaram conhecidas as comédias populares produzidas entre a


década de 1930 e 1960 pelos estúdios cariocas, foram as grandes molas propulsoras da
produção cenográfica dos departamentos de arte no início dessa tentativa de industrialização
da produção cinematográfica brasileira. Quando se começou a gravar em estúdio viu-se a
necessidade também da construção dos sets para filmagem. A Atlântida foi um dos estúdios
cariocas que mais se destacou neste nicho de produção do mercado, e apesar de não ter
surgido estritamente com este objetivo inicial, acabou se dedicando à produção de
chanchadas musicais por uma questão de lucratividade.

Estas produções foram bastante desvalorizadas pela crítica cinematográfica por


serem consideradas um cinema de humor ingênuo, por abordar temáticas cotidianas e
parodiar o cinema norte-americano, porém eram sucessos de público. Havia uma intensa
relação de troca entre a estrutura das chanchadas e o meio comunicacional das rádios na
época, os filmes embarcam no poder que o rádio exerce sobre a cultura nacional e se
utilizam deste público que já estava conquistado.

Com a construção da Atlântida e a produção de seu primeiro filme em 1943, aparece


um novo cenógrafo, o português Alcebíades Monteiro Filho, que assina a cenografia de
Moleque Tião, de José Carlos Burle (RAMOS, 2000). Alcebíades já havia realizado a
cenografia de Mulher, um dos primeiros filmes da Cinédia em 1931 e vai assinar a
cenografia de mais de 10 filmes no Brasil, até ser creditado como diretor de arte em 1961
por Teus olhos castanhos, de Ibanez Filho.

A cenografia teatral no país ainda não estava em pleno desenvolvimento, se usava


apenas panos de fundo, chamados de backgrounds. Com a intensa imigração italiana para o
Brasil, este estilo de cenografia foi trazido para o país. Mais tarde, os cenógrafos vão migrar
de um campo para outro. A cenografia teatral vai ser de grande influência para a cenografia
audiovisual e vice-versa.

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Ainda com o intuito de criar uma indústria de cinema no Brasil nos padrões
internacionais de produção, levando-se em consideração não só a técnica, como também a
estética do filme, em 1949, o empresário Francisco Matarazzo Sobrinho e o produtor
italiano Franco Zampari fundam a Companhia Cinematográfica Vera Cruz em São Bernardo
do Campo, no município de São Paulo. A cidade tinha ganhado entre 1940 e 1950, o Museu
de Arte Moderna (MAM), o Museu de Artes de São Paulo (MASP), a Escola de Arte
Dramática (EAD), a primeira Bienal de Artes plásticas, a Cinemateca Brasileira, o Teatro de
Cultura Artística, o Teatro Brasileiro de Comédia (TBC), entre outros. O TBC, o MASP e a
Vera Cruz pertenciam ao mesmo grupo, tinham a mesma estrutura empresarial. Alimentados
por este rigor técnico de que o cinema industrial hollywoodiano estava imbuído e por uma
lei que isentava totalmente de impostos a importação de equipamentos para produções e
pós-produções cinematográficas, os empresários vão construir um estúdio em uma área de
100.000 m2 e importar todo o equipamento necessário para fazê-lo funcionar. Com o lema
“Produção Brasileira de Padrão Internacional”, o objetivo era produzir filmes com temáticas
culturais brasileiras no modelo internacional de produção, utilizando-se para tal bases
industriais.

Para o cargo de produtor geral foi contratado Alberto Cavalcanti. O cineasta


brasileiro havia trabalhado em produções na França e participado do grupo de John
Grierson, da escola britânica, que revoluciona a maneira de se fazer documentário na
Inglaterra. O cinema brasileiro ainda estava engatinhando, comparado ao cinema europeu ou
hollywoodiano, e a Vera Cruz, com os técnicos europeus trazidos por Cavalcanti, formou
profissionais brasileiros em várias áreas da produção cinematográfica, como a fotografia, a
montagem, o som, a produção e a cenografia. Esta formação de profissionais ligados à
técnica cinematográfica vai influenciar diretamente o fazer cenográfico e sua concepção.

O Cangaceiro, lançado em 1953 e dirigido por Lima Barreto, é considerado um dos


melhores filmes produzidos pela Vera Cruz, sendo ao mesmo tempo um sucesso de público
e de crítica. A obra conquistou o público internacional e o prêmio de melhor filme de
aventura no Festival Internacional de Cannes. Lançado em 82 países, o longa teve em seus
créditos o pintor e pesquisador argentino Carybé como desenhista de produção e figurinista

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e o artista plástico ítalo-brasileiro Pierino Massenzi como cenógrafo e construtor, que na
época devia ser uma designação semelhante a cenotécnico.

Diretor de arte, artista plástico e cenógrafo, radicado no Brasil em 1947, Massenzi


vai realizar mais de 40 longa-metragens no Brasil, dentre eles Tico-tico no fubá (1952), de
Adolfo Celi, e Assalto ao trem pagador (1962), de Roberto Farias. Já o renomado artista
Carybé vai realizar para O Cangaceiro 1.600 desenhos de cena (storyboards), projetando
toda a composição visual do filme, como ilustra a Figura 1.1. Segundo consta, foi a primeira
vez a se utilizar este recurso na história do cinema brasileiro. Deste modo, podemos
perceber a relevância deste filme para a construção de uma história da direção de arte no
audiovisual brasileiro, assim como para destacar a importância da função na concepção da
narrativa fílmica.

Figura 1.1

Storyboard de O Cangaceiro, 1953, desenhado por Carybé

A obra vai inaugurar um novo estilo estético de expressão no cinema brasileiro, o


chamado ‘nordestern’, que se utilizava de alguns dispositivos de linguagem do cinema
norte-americano western aliados a uma temática da cultura nordestina brasileira. Em pouco
tempo, o sonho de construir um cinema baseado no modelo internacional de produção caiu
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por terra, já que a concorrência com os filmes estrangeiros era bastante desleal e era
contínua a dificuldade de distribuição dos filmes nacionais. Por isso, a Vera Cruz entra em
processo de falência, deixando como legado uma escola de técnicos e profissionais da
indústria cinematográfica que mais tarde irão trabalhar no setor da televisão, da publicidade
e do próprio cinema.

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2. A FUNÇÃO DENTRO DA INDÚSTRIA CINEMATOGRÁFICA BRASILEIRA

A direção de arte no cinema é a área responsável pelo aspecto visual da obra. O diretor
de arte é encarregado por criar junto ao diretor e ao fotógrafo uma atmosfera2 na qual o
espectador será lançado pela história. Há um conjunto de elementos que compõe o design
visual de um filme, determinados por seu contexto histórico, social, político, estético e
imagético. A partir deste trabalho de contextualização que será realizado com base no roteiro
e nas intenções do diretor com o filme, o diretor de arte irá harmonizar elementos como a
cenografia, o figurino, a maquiagem e os efeitos especiais, criando um desenho de produção.
Isso significa que seu trabalho consiste na organização do espaço da mise-en-scène onde se dá
a ação, no qual composição de cor, texturas e ambientação interajam e produzam um estilo
singular.

O processo é dividido em quatro fases: pré-pré-produção, pré-produção, produção e


pós-produção. Na primeira parte está a fase de pesquisa, onde o diretor de arte irá coletar
informações sobre o projeto conforme a leitura do roteiro sugerir orientações de cunho
histórico, social, econômico e político. Tendo isto como base para iniciar sua pesquisa, o
diretor de arte vai levantar informações em centros de busca como museus, arquivos
fotográficos, livros, revistas, internet e até em sua própria coleção de dados.

Nos Estados Unidos o título de mais alto escalão da equipe de arte é de production
designer, o que equivale ao diretor de arte nos filmes brasileiros. Isso quer dizer que para as
produções norte-americanas o “cabeça de equipe” da arte é também produtor; e deveria ser,
porque ele pensa o filme junto com o diretor e tenta solucioná-lo da melhor forma possível,
estética e financeiramente. A definição de production designer, segundo Vincent LoBrutto, é
de que ele concebe toda a visualidade da imagem fílmica, sendo não só responsável pela
criação dos cenários e coordenando equipes de figurinistas, maquiadores, cenotécnicos e
contra-regras. Ele é responsável, portanto, pela criação de uma paleta de cores, a definição de
detalhes periódicos e arquitetônicos relacionados ao roteiro, a seleção de locações em função
disto e de outras questões, como o desenho e decoração de set.

2
Trabalha-se aqui com a definição de atmosfera que é apresentada nos estudos de Inês Gil, cuja característica é
dialogar com o espaço, que é “composto por forças visíveis e invisíveis , que têm o poder de desencadear
sensações e afetos nos receptores”.
22
Uma das funções do diretor de arte é colocar idéias visuais no papel através de
desenhos conceituais, ou seja, desenhos dos sets de filmagem que imaginou junto ao diretor.
Depois de aprovados esses desenhos, que em um primeiro momento podem ser somente
rascunhos, são desenvolvidos e detalhados, além de plantas baixas para construção dos sets,
fotos e plantas baixas das possíveis locações, que serão adaptadas para o filme.

É importante observar que trabalhamos aqui com a realidade de produção de filmes


com médio a alto orçamento, que possuem um projeto visual bem elaborado e podem se
dedicar a este departamento. Nota-se que filmes de baixo orçamento ou universitários não
apresentam esta realidade de produção, pois em sua maioria há um uso maior de locações com
o objetivo de baratear os custos de produção com o departamento de arte. Esse intuito acaba
por prejudicar o departamento de arte, porque engessa suas possibilidades e não permite que
sua capacidade criativa esteja atingindo seu máximo.

Como já vimos anteriormente, em algumas produções norte-americanas, a função de


realizar o storyboard (ou desenho de cena) cabe ao production designer ou ao diretor de arte
na designação nacional. O storyboard é o documento que permite a visualização do filme
plano a plano; mostra a relação entre o ambiente e os personagens, não só o enquadramento,
como também a iluminação e a atmosfera, refletindo a visão do diretor e do diretor de arte. É
importante frisar que esta característica de produção de storyboard como foi descrito está
mais presente na indústria cinematográfica norte-americana, como foi apontado por LoBrutto
em seus estudos. Para direção de arte, o storyboard indica como a visão do diretor atua na
imagem, em termos de cor, textura, espaço e como este espaço é preenchido no plano.

Tendo em vista o colocado acima, é interessante observar que antes de investir na


produção, o production designer deve participar de um período de pré-produção junto ao
diretor e ao fotógrafo, no qual irá criar junto a esses um projeto de concepção visual para o
filme. Este projeto deve aliar as idéias que o diretor possui sobre o roteiro mais o que o diretor
de arte vai propor para compor visualmente a obra criando uma narrativa visual. Isto vai
depender de escolhas na forma de abordagem dos ambientes e como este estilo estético
dialoga com a narrativa, construindo significado.

23
Além de pensar em todas essas características, o diretor de arte deve elaborar um
plano orçamentário desde a pré-produção até a pós, cujas escolhas levarão em consideração
não só a estética, mas também o que é mais vantajoso na relação custo-benefício. Por isso,
podemos perceber que a função do diretor de arte combina a concepção criativa do projeto
com a organização da estrutura orçamentária que será necessária para realizá-lo. Sendo assim,
o termo production designer se faz mais adequado para definir a margem de trabalho na qual
o diretor de arte atua dentro do filme, levando-se em consideração que o alcance da função no
Brasil é o mesmo.

No Brasil, a definição production designer ainda não é muito adotada, apenas em


algumas co-produções e produções que possuem maior alcance no mercado internacional
como Tropa de Elite, filme de 2007 dirigido por José Padilha, ou Cidade de Deus, de 2002
dirigido por Fernando Meirelles. Os departamentos de arte em todas as produções dependem
sempre do tamanho do projeto e da conjuntura que se apresenta o orçamento no mercado
audiovisual. Por isso, estes irão trabalhar em conseqüência do contexto apresentado. Podemos
observar no contexto atual um crescimento da produção independente brasileira, o que nos
permite dialogar com a possibilidade de surgimento de novas formas de representação e
assim, novos modos de fazer cinema. Vê-se, dessa forma, a concepção de coletivos de cinema
independentes, que possuem na sua fluidez a forma de trabalho para lidar com a rigidez do
mercado industrial convencional.

Há, portanto, uma dificuldade de delimitar a função do diretor de arte no contexto


nacional, já que não possuímos bibliografia voltada para o nosso contexto de produção.
Sendo assim, este trabalho irá se voltar para uma definição de conceitos teóricos, que serão
posteriormente aplicados, em uma pesquisa qualitativa, ou seja, depoimentos de diretores de
arte que atuam nestes diferentes contextos. Para isto, partiremos da definição dos elementos
visuais de composição da imagem cinematográfica.

24
2.1 Elementos Visuais de Composição

Segundo Donis A. Dondis (1991), os elementos visuais básicos que constituem a


matéria-prima do que vemos são: o ponto, a linha, a forma, a direção, a cor, o tom, a textura, a
escala, a dimensão e o movimento. A autora afirma ainda que “o que a luz nos revela e
oferece é a substância através da qual o homem configura e imagina aquilo que reconhece e
identifica no meio ambiente”. Isto quer dizer que, o valor tonal dos elementos constitutivos
das experiências visuais são essenciais neste processo, ou seja, podemos relacionar este
processo visual com o processo mesmo de criação da imagem cinematográfica, que depende
da luz para surgir.

Em Escenografía Cinematográfica, Mónica Gentile define composição como o


processo onde se coloca em mútua relação os elementos gramaticais, elementos estes que se
encontram na gramática visual, com o fim de criar um todo harmônico. Ela ainda afirma que
“o ponto, a linha, a forma, o espaço, o equilíbrio, o valor, a textura e a cor são consideradas
como elementos que fazem a composição de uma obra visual.” (GENTILE, 2007, p. 145) 3

Vamos trabalhar aqui com a definição de três conceitos visuais: textura, cor e uso do
espaço. Definindo estes conceitos poderemos determinar mais facilmente a matéria em si da
direção de arte, delineando as funções figurativas e dramáticas dos conceitos apresentados. Se
o diretor parte de um espaço tridimensional vazio de sentido que é o set de filmagem e a partir
daí projeta e constrói todo um conceito para direção de arte para que os personagens se
movam neste ambiente, como este processo criativo se desenvolve? Para Jacques Aumont

A representação do espaço e do tempo na imagem é quase sempre, portanto,


uma operação determinada por uma intenção mais global, de ordem
narrativa: o que se trata de representar é espaço e tempo diegéticos, e o
próprio trabalho da representação está na transformação da diegese, ou de
fragmento de diegese em imagem.(...) Toda construção diegética é
determinada em grande parte por sua aceitabilidade social, logo por
convencões, por códigos e pelos simbolismos em vigor numa sociedade.
(AUMONT, 1993, p. 248) 4

3
No original: “el punto, la línea, la forma, el espacio, el equilibrio, el valor, la textura e el color se consideran
como elementos que hacen a la composición de una obra visual.”, tradução nossa.
4
Grifos do autor.
25
2.1.1 A Textura da imagem

Qual a importância da textura na construção da imagem fílmica e na composição da


direção de arte? A textura é elemento que contribui para evocar sensações e reflete o uso e a
passagem do tempo naquela superfície. Através do uso de materiais e texturas em prédios,
tecidos ou móveis se adiciona uma sensação tátil à direção de arte, por isso estes são eficazes
dispositivos de narratividade, informando status econômico, social e político. LoBrutto diz
que “materiais podem virar metáforas” (LO BRUTTO, 2002, p. 89),o que nos remete a
produção de textura como maneira de atingir o espectador através da construção de
significado. É através desta construção de significado que os materiais e a textura vão
funcionar como artifícios para contar a história.

Dondis explica que “a textura, óptica ou tátil, transmite um caráter de superfície dos
materiais visuais” (DONDIS, 1991, p. 23), acrescentando a esta definição uma característica
de superfície, fazendo alusão à aparência de real criada pela direção de arte quando trabalha
com materiais cenográficos, que nem sempre são os materiais verdadeiros usados na
arquitetura de construção, mas são necessários para dar realismo ao ambiente, sem a
necessidade de serem materiais de uso perpétuo.

LoBrutto aponta a importância do envelhecimento de materiais em várias


circunstâncias para conduzir a direção de arte em um estado e uma atmosfera específicas no
ambiente. Como já citado anteriormente, Henry Alekan define a atmosfera cineplástica do
filme como aquele elemento responsável pelo tom da obra, constituída de um “complexo
plástico de elementos ativos (dinâmicos) – personagens e objetos, e elementos passivos
(estáticos) – lugar e cenário, num clima cuja origem é sempre psicológica” (ALEKAN, 1984,
p. 67). Segundo essas definições, a atmosfera seria composta na memória afetiva do
espectador, que é conduzido por esses elementos nos processos de identificação com a
imagem.

2.1.2 A Cor

Na historia das artes visuais, a luz tem uma estreita relação com as cores criadoras de
atmosfera. A utilização de cores cria narratividade através de um contexto tonal, se
26
apresentando como um modo de expressar ou definir um mundo dentro do filme, na
construção de atmosferas. O diretor de arte vai definir uma paleta de cores para o projeto
visual do filme e partir daí, criar significado com estas cores. É através da escolha de uma
dominante de cor, ou seja, de um matiz, que o diretor de arte irá definir um papel expressivo
da cor com claras intenções dramáticas para o roteiro. Donis A. Dondis define a cor como a
“contraparte do tom com acréscimo do componente cromático, o elemento expressivo visual
mais expressivo e emocional” (DONDIS, 1991, p. 23).

A cor aparece, então, em um ambiente cenográfico como um veículo aglutinante de


todos os outros elementos visuais: linhas, formas e texturas, todos estes elementos da
gramática visual se encontram conjugados dramaticamente. A direção de arte possui desta
forma o poder de construir espaços que podem ser modificados por estas cores. Entendamos
que um aspecto muito importante a levar em consideração é que um estudo da relação entre as
cores utilizadas no cenário e no figurino, bem como na maquiagem a ser utilizada durante o
processo de filmagem, é essencial para que todo o projeto visual funcione. Para isso, é
necessário a criação de rascunhos e sketches de cada área artística, desde a cenografia até a
maquiagem, discutindo a paleta de cores criada pelo diretor de arte, chefe do departamento de
arte.

No momento de criação do matiz que tenderá a película, o diretor de arte vai trabalhar
com a definição de uma paleta de cores como elemento expressivo para contar história.
Segundo Gentile, isto “constitui um recurso estético que não só unifica a obra, como também
funciona como reforço dramático da obra” (GENTILE, 2007, p. 154) 5. A importância aí está
no papel metafórico da cor, como criadora de significado dramático. LoBrutto afirma que a
cor “não é só um meio de atingir verossimilhança nas imagens; cor pode comunicar tempo e
espaço, definir personagens, e estabelecer emoção, estado expressivo, atmosfera, e uma
sensibilidade psicológica. Em uma narrativa visual, cor é um dos melhores recursos do
realizador.” (LOBRUTTO, 2002, p.77).6

5
No original: “contituye un recurso estético que no solo unifica la obra, sino también funciona como refuerzo
dramático del relato.” , tradução nossa.
6
No original: “Color is not only used to archieve verisimilitude in the images; color can communicate time and
place, define characters, and establish emotion, mood, atmosphere, and a psychological sensibility. In a visual
storytelling, color is one of moviemaker’s greatest assets.”, tradução nossa.
27
2.1.3 A Composição Espacial

Em seu livro Escenografia Cinematográfica, Mónica Gentile define espaço


abordando-o a partir de três eixos fundamentais: o espaço pictórico, o espaço arquitetônico e
o espaço fílmico. O espaço pictórico seria aquele composto na imagem por recursos ceno-
plásticos, como a cor, a forma, a textura, a harmonia, o equilíbrio, o ritmo visual, a
profundidade e a luz incidente no ambiente, cuja característica está na interferência de
definição de todos os outros elementos. Já o espaço arquitetônico, também pertencente ao
espaço de representação composto na imagem cinematográfica, é definido pela influência da
arquitetura sobre os estudos de cenografia, assim como sua contribuição na linguagem interna
da direção de arte. Apesar de se constituírem como profissões completamente distintas,
principalmente pela função primordial da cenografia de construir ambientes dotados de
significado, o espaço arquitetônico aqui referido está dentro do conceito de espaço
cenográfico, através de locações e montagens de set. Há ainda o conceito de espaço fílmico,
que abarca as noções de enquadramento, montagem e som; o que nos permite dizer que o
espaço fílmico será composto pelas intenções estéticas e narrativas do diretor, junto ao diretor
de arte e ao diretor de fotografia. A imagem cinematográfica possui duas características
materiais fundamentais que consistem na imagem plana (bidimensionalidade) e na
delimitação do quadro.

O uso do espaço na tela pode simbolizar emoções e atmosferas, baseados nas relações
entre os personagens e seus ambientes. Já o uso da perspectiva cria uma terceira dimensão
para dentro da tela que faz o espectador acreditar na imagem e entrar no filme.

O teórico francês Christian Metz diz que

A cenografia (de teatro), por exemplo, não tem o efeito de criar um universo
diegético, não passa de uma convenção dentro do próprio mundo real.
(Poderíamos acrescentar, na mesma perspectiva, que a assim chamada
‘ficção’ no cinema é a diegese, enquanto no teatro a ‘ficção’ só existe como
‘convenção’ [...].) O espetáculo cinematográfico, pelo contrário, é
completamente irreal, ele se desenvolve num outro mundo [...]: o espaço da
diegese e o da sala (que envolve o espectador) são incomensuráveis, nenhum
dos dois inclui nem influencia o outro, as coisas ocorrem como se houvesse
uma parede invisível, porém intransponível. (METZ, 1972, p. 26)

28
Isso quer dizer que no cinema, o espaço tridimensional criado para dentro da tela, o
torna verossimilhante conforme convenções que se desenvolvem na construção desta imagem;
e por isso dependem da composição de recursos ceno-plásticos para fazer com que o
espectador acredite naquela realidade imaginária. Já o espetáculo teatral tem em sua forma
mesmo sua matéria de criação do espaço, que se encontra mais atual para o espectador.

Apesar destas limitações da imagem, encontramos em sua composição o que Jacques


Aumont define como “impressão de realidade” (AUMONT, 1994), o que permite ao
espectador acreditar naquele espaço imaginário criado na imagem plana projetada na tela,
como uma representação muito realista. Analisamos a partir daí a concepção de espaço fora
do quadro, ou espaço fora da tela, que tem origem na noção de que o espaço composto dentro
do quadro vai além dos limites da imagem. Aumont define este espaço fora do campo como
“o conjunto de elementos (personagens, cenário etc.) que, não estando incluídos no campo,
são contudo vinculados a ele imaginariamente para o espectador, por um meio qualquer”
(AUMONT, 1994, p. 24). Estes e outros elementos, como os índices de profundidade,
determinam a criação de uma segunda tridimensionalidade para dentro da tela mediada pela
câmera. Sobre o tempo é importante ressaltarmos sua conexão com espaço, já que este “é
explorado no e com o tempo” (AUMONT, 2004, p. 80).

A direção de arte envolve a criação do espaço cênico destinado à ação, onde os


personagens irão habitar. Não só o espaço físico, mas tudo que vai caracterizar sua
espacialidade, como a cor, o figurino e os objetos. Este espaço cênico, portanto, pode ser
constituído através de uma produção física do espaço, ou seja, na criação de cenário ou na
filmagem em locação; ou mesmo na produção de imagens geradas por computador na pós-
produção. Na atual conjuntura do cinema hollywoodiano, a composição do espaço por meio
de CGI (imagens geradas por computador) combinada ao cenário real é muito utilizada em
diversos filmes. No cinema brasileiro contemporâneo, esta realidade está se tornando cada vez
mais freqüente. O uso de chroma-key combinado a outros efeitos de computação gráfica,
como a modelagem em 3D de personagens e cenários virtuais inteiros, já é bastante utilizada
no mercado comercial de produção. A importância da direção de arte aí está em encontrar a
dosagem do que é real e do que pode ser reproduzido ou encaixado por imagens geradas de
computador, e conseguir encaixá-las de maneira que seja crível para o espectador.

29
A partir desta breve exposição de alguns elementos que constituem a composição
visual, é essencial destacar a integração entre os elementos como importante meio de
constituição da imagem.

30
3. O QUE DÁ AO DIRETOR DE ARTE UMA VOZ PRÓPRIA?

De acordo com a teoria formulada pelo teórico britânico John Gibbs, o conceito de
estilo visual identifica uma intenção autoral por parte do realizador que visa à produção de
sentido através da interação dos elementos que compõe a mise-en-scène. O termo mise-en-
scène vem do francês, e literalmente, quer dizer “colocar em cena” e está atrelada a função
diretor. Como conceito que concerne estilo visual, mise-en-scéne abrange os elementos que a
compõem e que são organizados para formar uma unidade visual e estética. Assim sendo, os
elementos que compõem a mise-en-scène, segundo Gibbs, são: iluminação, figurino, cenário,
objetos de cena e atuação dos atores.

Há diferentes formas visuais com as quais o realizador pode trabalhar e essas formas
vão se definindo conforme esses elementos se relacionam com a produção de significado para
contar a história, ou seja, para elaborar a narrativa. É importante notar, portanto, como os
conceitos de forma e o conteúdo são organizados dentro da imagem. Como explica Mónica
Gentile (2007), cada diretor de arte vai desenvolver seu conceito de cenografia partindo do
lugar em que trabalha, o teatro, o cinema, a televisão, porém concordando que todas estes
lugares tratam de uma forma visual de trabalhar um roteiro. Sendo assim, cada um deles vai
desenvolver sua prática de compor visualmente o espaço de representação, aqui fundamental
para nosso estudo, partindo de sua própria matéria.

O teórico americano David Bordwell define estilo estético e mise-en-scène levando em


conta as características da encenação como forma de potencializar a análise fílmica. Ele
define sua área de pesquisa como: “O estilo é, minimamente, a textura das imagens e os sons
dos filmes, o resultado das escolhas feitas pelo cineasta em circunstâncias históricas
particulares”. Ele explica ainda que no sentido mais restrito, “ele toma o estilo como o uso
sistematizado e significante do filme e de técnicas do meio” (BORDWELL, 1997, p. 4). É a
partir deste conceito que iremos delimitar as características do estilo, para utilizarmo-nos
delas na análise fílmica proposta, debruçada sobre a matéria da direção de arte em si. Sendo
assim, será necessário observar a importância do diretor como formulador primário deste
estilo, porém destacando-se a relevância da figura do diretor de arte no processo de criação do
mesmo, com base na pesquisa dos elementos compositores do estilo estético que provém da
31
atuação do diretor de arte na imagem. Estas técnicas, citadas por Bordwell, se dividem em
domínios amplos: mise-en-scène (encenação, iluminação, interpretação e ajuste);
enquadramento, foco, controle de valores da cor, e outros aspectos cinematográficos: edição e
som. Portanto, a mise-en-scène compõem-se, segundo Bordwell, por aspectos como cenário,
figurino, iluminação, maquiagem e atuação dos atores.

Neste sentido, vemos a direção de arte como uma potente porta de comunicação de
estados expressivos, possibilitando a criação de atmosferas através do estilo proposto com
uma intenção autoral, já que o design visual é parte integrante do processo narrativo
contribuindo com vários elementos de composição da mise-en-scène, como a cor, o cenário, o
figurino e os objetos de cena.

Como o curso da história influencia o desenvolvimento da estética visual? Como os


elementos constituintes do estilo são construídos na história visual do cinema? Bordwell guia
sua pesquisa para responder como as mudanças e a continuidade de padrões estilísticos são
relevantes para a análise fílmica, e como estes padrões podem ser explicados. Como a
percepção artística do diretor de arte influencia em suas escolhas para o visual do filme?

Mise-en-scène se estabelece como um potencial para formação de um estilo próprio


conforme percebemos que o diretor de arte pode carregar consigo uma bagagem de
referenciais, que partirão de sua pesquisa individual mais a pesquisa destinada a cada projeto.
Criar junto à fotografia um desenho cênico que permita guiar o espectador pelo cenário,
através de luzes e sombras que possam dizer alguma coisa sem tirar atenção da ação, se esta
não for a intenção, passa a ser o desafio do diretor de arte. A composição cine-plástica
pretende guiar a atenção do espectador para a ação dramática, onde se encontrará o
significado do projeto visual.

(...) a tarefa que realiza o diretor de arte, quem deve criar, no espaço
tridimensional, um mundo de formas, cores, luzes e sombras que rodeiam e
definem os personagens, onde o diretor do filme possa mover os atores de um
lado para o outro, enquadrando-os com liberdade dentro deste mundo que
agora pertence a eles. (GENTILE, 2007, p. 139)7

7
No original: “(…) la tarea que realiza el director de arte, quien debe crear, en un espacio tridimensional, un
mundo de formas, colores, luces y sombras que rodee a los personajes y a la vez los defina, donde el director del
filme pueda mover a los actores de un lado a otro, encuandrándolos con libertad dentro de ese mundo que ahora
les pertenece a ellos.”, tradução nossa.
32
Partimos do pressuposto, portanto, conforme analisou Bordwell, que a história
percorrida pelo estilo no cinema pode nos dar suporte teórico para pesquisar as diferentes
formas com que este vem sendo utilizado e comparar a sua formação nos dias atuais,
definindo padrões e a importância dos mesmos.

3.1 Modos de olhar: estudo de casos sobre diretores de arte

Para melhor compreendermos a situação deste departamento de atuação no cinema


brasileiro foi preciso comparar a pesquisa teórica formulada a partir da análise dos elementos
compositivos da linguagem visual, assim como da investigação dos processos de estruturação
da imagem através da definição do conceito de estilo estético, com a pesquisa qualitativa
realizada por meio de entrevistas com os diretores de arte mais atuantes no período. Ou seja,
realizamos aqui a análise de fontes orais, os diretores de arte, baseando sua percepção em uma
pesquisa teórica. Consideremos, portanto, as entrevistas realizadas durante a pesquisa
PIBIC/Faperj “A influência da tecnologia no processo criativo dos diretores de arte do cinema
brasileiro pós-retomada (anos 90)”, orientada pela Profa. Dra. India Mara Martins, com os
diretores de arte Carla Caffé, Cássio Amarante e Raimundo Rodriguez.

Vamos analisar estas entrevistas através de três perspectivas diferentes, todas elas tendo
como postulado o que os próprios diretores de arte consideram essencial em seu processo
criativo. A partir daí, faremos um diálogo entre a teoria trabalhada e a construção narrativa
construída através a direção de arte. A metodologia utilizada aqui será a análise de dois filmes
ou obras audiovisuais de cada diretor de arte proposto no discurso, que tenham relevância no
percurso da obra destes diretores. No caso de Cássio Amarante, analisaremos os filmes O Ano
em que Meus Pais Saíram de Férias (2006) e Xingu (2012), ambos dirigidos Cao Hamburger,
cada um por seu destaque no cenário contemporâneo do cinema audiovisual brasileiro.

Para abordar os projetos visuais de Carla Caffé, vamos considerar a direção de arte de
Narradores de Javé (2004), de Elianne Caffé e Central do Brasil (1998), dirigido por Walter
Salles, no qual ela divide a assinatura com Cássio. Este último foi significativo no contexto
pós-retomada do cinema brasileiro, tanto quanto para história do cinema brasileiro como um
todo, como por sua notoriedade no cenário internacional. Já a análise da obra de Raimundo

33
Rodriguez tem a excepcionalidade de não referir-se a um filme, mas sim a uma minissérie da
TV Globo, chamada Capitu (2008), dirigida por Luiz Fernando Carvalho e baseada na obra de
Machado de Assis, Dom Casmurro. Pretendíamos desta maneira também abordar outras
janelas de exibição, que mantém a direção de arte e o projeto visual como ponto importante
para construção da narrativa.

3.1.1 Direção de arte como expressão de realismo – Cássio Amarante

Analisando a entrevista realizada com o diretor de arte Cássio Amarante, podemos


perceber que o histórico pessoal influencia bastante no rumo de sua carreira. Arquiteto de
formação, Cássio iniciou sua carreira em cenografia como assistente da Daniela Thomas em
1992, na Companhia de Ópera Seca, dirigida por Gerald Thomas. Teve seu primeiro contato
com cinema como assistente de arte de Daniela Thomas, no filme Terra Estrangeira (1995),
dirigido por Walter Salles. Desde então, o estilo mais documental do diretor influencia a sua
formação como diretor de arte, assim como seu contato direto com Daniela Thomas desde o
inicio da carreira.

Carla Caffé veio a trabalhar com Cássio dividindo a direção de arte do filme Central
do Brasil, também dirigido por Walter Salles. Assim sendo, de uma forma ou de outra, desde
o inicio de sua carreira, ele sofreu a influência de cineastas que tiveram um conhecimento
prévio de documentário muito forte, o que provocou uma série de inspirações neste sentido,
como podemos perceber neste depoimento:

Eu quando caí dentro do cinema, caí nas mãos do Walter Salles e do Walter
Carvalho, fotógrafo, ambos documentaristas, ambos com um background de
documentário muito forte. Então quando eles vieram para ficção para fazer
no início dos anos 90 o “Terra Estrangeira”, eles não conseguiam se
desassociar dessa condição, então eles não queriam vender barato nada. E a
Daniela estava vindo do teatro, e ela é uma pessoa com uma visão muito
aguçada das coisas, ela não estava vindo com nada estereotipado. E nem o
trabalho dentro de teatro dela tinha a ver com o teatrão que tem por aí, quer
dizer, era um trabalho visceral, com uma outra pegada. Então, essa ligação
com o teatro da Daniela e essa disposição documentarista dos dois, pra mim
foi uma escola de cinema. Porque eu passei a fazer as coisas para que elas
parecessem de verdade. Essa experiência de que a película do filme funciona
como a minha retina, quer dizer, a sensação que eu tenho dentro da sala de
cinema é de que eu estou vendo aquelas coisas pra mim. Eu fiquei preso a
essa obsessão, de que as coisas parecessem verdadeiras, de que as coisas
parecessem que já estivessem lá. (AMARANTE, 2012, não publicada)

34
De acordo com o depoimento de Cássio Amarante, percebemos que os fundamentos
do documentário instigaram o processo criativo do diretor de arte para que mais tarde ele
pudesse criar seu próprio estilo.

O estilo é definido pela forma como se pratica a ação ou pelo conteúdo da ação
praticada? Se for pela forma como se pratica tal ação, definir-se-á o estilo como um caminho
a se seguir, na sua relação com o outro no coletivo de trabalho? Em Sintaxe da Linguagem
Visual, o ponto de vista de Donis A. Dondis é que “qualquer acontecimento visual é uma
forma com conteúdo, mas o conteúdo é extremamente influenciado pela importância das
formas constitutivas, como cor, o tom, a textura, a dimensão, a proporção e suas relações
compositivas com o significado.” (DONDIS, 1991, p. 22)

Levando-se em consideração o acima citado, podemos dizer que a forma como se


apresenta um projeto irá implicar no conteúdo do projeto, ou seja, não se dissocia forma e
conteúdo. Sendo assim, o significado do projeto em si também está na forma como este se
apresenta: textura, cor, sombras, dimensões. Em se tratando de imagem em movimento, a
influência do diretor de arte, como production designer, sobre o projeto como um todo é fala
ativa e eloqüente no processo narrativo.

No conjunto dos filmes criados por este diretor de arte pudemos perceber uma unidade
na relação estética com a imagem e com sua formação pessoal como personagem atuante no
espaço. Como se define esta fala na imagem? Observemos projetos como O ano em que meus
pais saíram de férias (2010) e Xingu (2012): ambos tiveram a direção de arte de Cássio
Amarante, e apesar dos diferentes meios de produção e planos orçamentários, os dois projetos
visuais possuem este teor documentarista de um cinema que tem o potencial de nos oferecer
“mundos a serem explorados e contemplados; ou podemos simplesmente nos deliciar com o
prazer de passar do mundo que nos cerca para esses outros mundos de possibilidades
infinitas” (NICHOLS, 2001, p. 26). Nichols diz que “mesmo a mais extravagante das ficções
evidencia a cultura que a produziu e reproduz a aparência das pessoas que fazem parte dela”
(ibid), relacionando a narrativa ficcional com histórias que necessitam transmitir significado e
valores, através da criação de mundo plausível e aproximação do espectador do contexto
explorado, que é exatamente o que o Cássio propõe na sua concepção da direção de arte.

35
Podemos ressaltar essa correlação da experiência fílmica como processo de construção
de um estilo para o diretor de arte em projeto como Xingu e O ano em que meus pais saíram
de férias quando observamos a criação de uma dinâmica entre espaço e personagens, onde os
mesmos se percebem e atuam no espaço de acordo com a composição de valor simbólico,
estados expressivos e atmosferas. A direção de arte, como ferramenta eficaz no processo
narrativo, possui a função de interpretar a cidade e construir uma cidade que fala por si só,
para expressar um ponto de vista não só visualmente como também social, econômica e
politicamente. Cássio Amarante ressalta a importância deste papel da cidade em uma de suas
falas:

É através da direção de arte que a gente consegue transformar a cidade em


personagem. E eu acho que isso é fundamental para a formação da nossa
identidade. Quando você vai atrás da geografia de um país, eu acho que você
tem que mostrar algumas coisas, não é só a paisagem. A gente acabou de
fazer o Xingu, que é um filme que trata disso, de geografia física e geografia
humana. E essa geografia humana está no campo e na cidade tão viva como
em qualquer outra cidade do mundo, ela tem que ser registrada. E essa
geografia física da paisagem, ora ela é realmente o rio com os índios andando
na canoa naquela imensidão, ora é uma rua do Bom Retiro. (AMARANTE,
2012, não publicada)
Vê-se, portanto, a necessidade de construção de um espaço diegético plausível e
verossimilhante e que possua as metáforas intrínsecas à construção de significado dentro da
narrativa. LoBrutto analisa que o “espaço pode expressar poder, opressão, liberdade, medo,
alegria, paranóia, e um misto de emoções, estados, e atmosferas baseados na relação entre os
personagens e seus ambientes.” (LoBRUTTO, 2002, p. 99)8. Aqui o autor se refere à
capacidade do espaço de agir como potência narrativa na imagem fílmica, possuindo uma
função direta de transmissão de sensações e significados. Assim sendo, notamos a
importância do papel do diretor de arte como figura atuante no processo de composição da
visualidade fílmica.

As duas obras analisados na filmografia de Cássio Amarante foram dirigidas pelo


mesmo diretor brasileiro, Cao Hamburger. No filme O Ano em que Meus Pais Saíram de
Férias observamos como a direção de arte vai contribuir na construção da geografia da
cidade, que foi (re) produzida especificamente para contar a história. O filme conta as

8
Do original: “Space can express power, oppression, freedom, fear, joy, paranoia, and a myriad of emotions,
moods, and atmospheres based on the relationship between the characters and their enviroment.”, tradução
nossa.
36
transformações na vida de um menino, que durante a ditadura militar no Brasil, é deixado
com o avô, enquanto os pais, um casal de militantes políticos fogem do governo militar.
Desde o inicio do filme, percebe-se o clima de tensão em relação à policia: ao passar pelo
carro do exército enquanto os pais levam o menino para casa do avô, eles tentam disfarçar e
viram o rosto. Quando ele chega em sua casa temporária, descobre que seu avô morreu e
acaba ficando hospedado com um vizinho judeu solitário e ranzinza, Schlomo. Pela ótica
ingênua de um menino de 12 anos, a ditadura militar e a repressão se transformam em um
pano de fundo da história, que na verdade se concentra na espera pelos pais e na expectativa
pelo Brasil na Copa do Mundo, quando os pais prometeram voltar para buscá-lo.

A história se passa no bairro judeu de Bom Retiro, em São Paulo, no ano 1970, ano
em que o Brasil venceu a Copa do Mundo. O contexto é importante para localizar histórica e
socialmente os personagens desta narrativa. Podemos iniciar a análise observando a paleta de
cores criada para o filme, que se baseia em uma evolução dos personagens no curso da
história, o que é essencial para a construção da característica tonal da obra. Em um primeiro
momento podemos perceber que Mauro, o personagem principal, se sente sozinho e
abandonado ao ser deixado pelos pais na casa do avô e ainda por cima ao descobrir que o avô
faleceu. Neste, a utilização de cores mais sóbrias e sem muitas variações tonais nos apresenta
o mundo como o menino vê agora, sem graça e sem excitação; estes sentimentos também são
passados para o espectador através da cor na imagem fílmica, como ilustrado pelas figuras 2.1
e 2.2.

Figura 2.1 Figura 2.2

O Ano em que Meus Pais Saíram de Férias, Cao Hamburger, 2006

37
Nestes primeiros momentos, portanto, percebemos poucas variações tonais, com o uso
de cores sóbrias e frias, alguns marrons e azuis; sem a utilização de cores vivas. No
reconhecimento deste novo espaço (esta nova cidade, porque ele vai de Belo Horizonte para
São Paulo) para onde Mauro é levado, ele percebe os caminhos e as pessoas que encontra.

Passada a primeira metade do filme, Mauro está mais ambientado ao bairro e já


conheceu Hanna, a menina que lhe fará companhia nessas férias forçadas. Sua atitude começa
mudar e junto a isto, as cores do filme se tornam mais abertas também. Ele inicia sua jornada
de convívio com a comunidade judaica, conhece alguns hábitos de seus vizinhos e com isso,
se distrai da dolorosa espera por seus pais. A paleta de cores acompanha sua trajetória e se
transforma com o personagem até chegar a Copa do Mundo; o figurino de Mauro nesta
passagem é a camisa amarela da seleção brasileira e o ambiente que envolve o personagem se
torna mais aconchegante. A esperança de Mauro na chegada dos pais e na vitória do Brasil
também fazem parte desta construção simbólica da atmosfera do filme. Inclusive, é bastante
significativo o gesto do personagem de limpar a casa e retirar os tecidos que cobrem os
espelhos, tecidos estes que Schlomo coloca nos espelhos assim que o avô de Mauro morre, e
significam a passagem do luto. (Figuras 2.3 e 2.4)

Figura 2.3 Figura 2.4

Junto a isso, elementos que lembram o personagem da presença dos pais e do avô,
como o álbum de figurinhas e o futebol de botão, irão carregar a carga semântica da saudade
de casa. Estes objetos de cena, como também o telefone, fazem parte do imaginário que se
constrói em volta do menino. O telefone (Figuras 2.5 e 2.6), que está presente em muitas
cenas, é parte importante deste imaginário, pois este elemento (objeto de cena integrante da
mise-en-scène) liga o personagem à imaterialidade da ausência dos pais e ao mesmo tempo ao
38
lugar que está no presente. Portanto, no mecanismo criado através deste objeto de cena, o
telefone ganha importância semântica na expectativa que Mauro tem no retorno dos pais.

Figura 2.5 Figura 2.6

Em relação à composição do espaço, em O Ano em que meus pais saíram de férias,


Cássio vai criar o bairro do Bom Retiro com seus personagens próximos na definição da
geografia espacial. É através desta e na relação de forças que compõem a imagem que os
personagens vão se relacionar. O diretor de arte vai utilizar a perspectiva espacial para
evidenciar a solidão e o medo de Mauro naquele lugar que ele desconhece e é colocado
forçosamente, como ilustrado pelas Figuras 2.7 e 2.8.

Figura 2.7 Figura 2.8

Além disso, a direção de arte vai compor o filme de época, contribuindo para a
contextualização da década de 70. É desta forma que o espectador é jogado no contexto da
ditadura, acreditando na conjuntura do filme, sem que o cenário lhe pareça falso, por ser
extremamente trabalhado, seja nas cenas internas ou externas. É possível para o espectador
39
perceber o exterior, sem o receio de que a qualquer momento a câmera abra o enquadramento
e o espectador já não possa mais acreditar no espaço. É na necessidade do personagem
principal de aprender a conviver com a casa do avô falecido e no ambiente externo
desconhecido por ele, aliado a sua necessidade de transformação, que o filme contribui para
esta construção de um cenário bem apurado nesta década de 70. É um filme que fala sobre a
passagem e o descobrimento da adolescência, e a perda da inocência e da ingenuidade. Para
isso, a narrativa se utiliza dos artifícios da história (do Brasil e dos pais de Mauro)
descortinando as verdades da repressão para o menino entender um pouco do que se passava
com os pais. Como ressalta Cássio no making of do filme: “a cidade é um personagem do
filme de época. E tudo que permeia a vida na cidade: os carros, as pessoas, os hábitos.” Com
certeza, foi na pesquisa que se pôde conceber este mundo verossimilhante, tanto para os
personagens como para o espectador. A dificuldade em reproduzir esta realidade (ou recriar
uma realidade que seja verossímil) dos anos 70 sem torná-lo idealizado está justamente em
torná-lo palpável para os espectadores, aí entra um trabalho de pesquisa intensa, tão ressaltado
por Cássio Amarante.

Na perspectiva de O Ano em que meus pais saíram de férias, a direção de arte tem um
papel de concepção de uma atmosfera que, apesar de construída a partir do ponto de vista de
uma criança, não é infantilizada, pois é na transformação desta criança que se dá a narrativa e
na dimensão não onírica e mais real do mundo. Dito isto, observamos o que podemos
compreender de fato como sugestão de estilo estético, uma busca por identidade. Como
função da cenografia observamos também a construção ambientes ligados a identidade e
características dos personagens, dotando-os de significado, como aponta Gentile (2007) em
seu estudo.

Já em Xingu (2012), filme mais recente dirigido por Cao Hamburger e com direção de
arte de Cássio Amarante, verificamos a construção do projeto visual baseado na idéia de que a
aldeia também é cidade, com toda sua complexidade. Xingu aborda a trajetória dos irmãos
Villas-Bôas, quando decidem partir em direção ao Brasil Central, na Marcha para o Oeste (de
caráter militarista) em 1943. Os irmãos se deparam com os índios e descobrem sua cultura e
seus costumes, e acabam se envolvendo na defesa dos direitos indígenas. Para isto, querem

40
construir um parque ecológico e reserva indígena, que na época, era o maior do mundo. No
meio da história, se envolvem em diversas batalhas e obstáculos, até conseguir seu objetivo.

Com base nesta concepção de que a própria aldeia é uma cidade, a intenção de
simular uma parte da cidade indígena parecia pouco e se preferiu filmar as próprias aldeias
reais, com os índios enquanto personagens ‘reais’ em sua própria casa, como coloca Cássio
em seu depoimento:

A cidade deles tem um urbanismo diferente e uma arquitetura muito peculiar.


Mas nem por isso, deixou de ser cidade. Essa idéia de que é uma aldeia, de
que não é cidade, foi por terra na minha primeira visita àquele local. (...) E
tratando a aldeia como cidade, a gente conseguiu explorar a aldeia como
cidade, a grandiosidade da cidade que fala por isso. (AMARANTE, 2012,
não publicada)

Neste ponto, podemos perceber que este valor humano como modo de absorção
daquela realidade, além da assimilação da ‘cidade indígena’ enquanto espaço a ser
descoberto, acrescentou verossimilhança ao projeto. Apesar da superficialidade em tratar da
complexidade e dificuldade operacional das aldeias, o filme mostra de perto e por dentro as
ocas, feitas de palha e folhas de palmeiras, com colunas de sustentação e redes para dormir.
(Figura 2.9 e 2.10)

Figura 2.9 Figura 2.10

Xingu, Cao Hamburger, 2012

Por conter muitas cenas em externa na floresta amazônica, a paleta de cores compõe-
se de tons esverdeados e marrons, revelando o solo de cor avermelhada e rios de águas claras.
Esta composição de cores quentes se equilibra e estrutura com figurinos de cores leves e
41
claras, e as próprias ocas que possuem cores puxadas para tons de bege (da palha e da folha
palmeira seca). Esta paleta cromática é essencial para criar a atmosfera proposta para o filme
e dar o aspecto necessário para que o espectador acredite nos personagens e naquele
ambiente, como ilustrado nas Figuras 2.11 e 2.12.

Figura 2.11 Figura 2.12

Xingu carrega enquanto característica principal do projeto visual a apreensão do


espaço como matéria de observação e identificação da geografia física, construindo um
paralelo com a geografia humana e as temáticas trabalhadas pelo filme; cuja particularidade
está na discussão da questão indígena como problema e na colocação dos personagens como
heróis. Como podemos observar na Figura 2.13, os irmãos Villas-Bôas assim que partem em
sua aventura para o Oeste do país são apresentados para o espectador como “desbravadores”,
a câmera nos revela três personagens que já parecem estar a frente da expedição como líderes.

Figura 2.13

42
Este conceito do projeto visual, de se destacar pelo diálogo entre a geografia física
daquele ambiente e o material humano, faz parte da característica de estilo do diretor de arte
de abordar o processo criativo a partir de viés realista. Cássio Amarante aponta que:

(...)o Walter Salles me ajudou muito nisso, de criar um conceito. Não é que
ele veio e me deu uma aula sobre isso. Mas o processo com ele de trabalho,
me obrigou a construir um raciocínio no qual eu acreditasse antes de atacar o
problema, quer dizer, realmente construir um universo na minha cabeça
primeiro. E aí começar a tirar as conclusões, criar um conceito a respeito
disso e com esse conceito me aproximar. Claro que isso tem a ver com
realismo, que isso tem a ver com honestidade com aquilo que você está
contando, honestidade com os personagens de quem você está falando.
(AMARANTE, 2012, não publicada)

3.1.2 Direção de arte como questão social – Carla Caffé

Com outro viés, temos a perspectiva da diretora de arte Carla Caffé, que realizou
filmes como Narradores de Javé e Central do Brasil, o último dividindo a direção de arte
com Cássio Amarante. Nos dois projetos, o que norteou seu trabalho foi a necessidade de
criação de uma interação entre a comunidade onde se produziria o filme e a forma de
produção. Ou seja, para ela, parte importante da função é:

(...) inserir a direção de arte na comunidade. E extrair quem são as pessoas


que podem ajudar a criar o universo do filme. Como relacionar a equipe e as
necessidades do filme com as cidades e as comunidades que a gente ia
encontrando pela frente. Meu trabalho também é muito mais voltado com o
ator, eu tenho uma ligação com o ator, com a dramaturgia. Então, eram
trabalhos que se complementavam dessa maneira. Meu trabalho é muito
vinculado realmente com o material humano que o filme pode desenvolver.
(CAFFÉ, 2012, não publicada)
Como podemos notar neste depoimento, a elaboração de um estilo está atrelada a idéia
de que forma e conteúdo caminham lado a lado, e de que a forma como se produz o filme vai
influenciar diretamente na composição da direção de arte e na imagem final.

Ao analisar a direção de arte do filme Narradores de Javé, dirigido por Eliane Caffé,
destacamos a intenção do projeto de arte de criar a atmosfera voltada para a palavra e a
memória. O filme é narrado por Zaqueu, que conta a história do povoado do Vale de Javé,
que está prestes a ser inundado para a construção de uma hidrelétrica. A comunidade se
reúne para decidir uma saída para a situação e vendo-se diante de um discurso oficial das
autoridades que afirmam só ser possível salvar a cidade se ela for patrimônio histórico a ser

43
preservado, Zaqueu tem a idéia de criar um documento sobre memória das histórias
contadas sobre a cidade. Eles são obrigados a chamar para empreitada o único morador da
cidade que sabe escrever, o que já demonstra a carência social do local. A partir daí,
desenrola-se um choque de versões da narrativa da tradição oral da comunidade, que são
subjetivas e coletivas ao mesmo tempo; contrastando com a história da cidade em si e
formulando muito mais do que só uma memória coletiva e “científica”, como muitas vezes
os personagens falam.

As paisagens são importantes ferramentas para formular o ambiente árido do interior


baiano que a imagem necessita para se constituir como metáfora daquela situação. A
construção de um ambiente familiar, onde todos ou quase todos os personagens se
conhecem, se estabelece através de dispositivos como a textura e a cor, cujo aspecto
dominante está no uso de tons terrosos. A paleta de cor se constitui, portanto, como
importante mecanismo visual de motivação das sensações. A concepção de uma sensação da
aridez no espaço é fornecida pelas texturas que se produzem: no chão de terra batida, nas
pequenas casas com tinta descascada, nos figurinos (Figuras 3.1 e 3.2). É neste processo de
desenvolvimento dessa atmosfera que se faz acreditar que naquela terra, essas personagens
são mais fracos que o poder dos empreiteiros. Como visto anteriormente, “para autores
como James J. Gibson (apud Arnheim, 1980, p. 264), o gradiente de textura, entendido
como “a mudança gradual de densidade do grão ou da sombra, a textura mais grossa
relacionando-se com a proximidade, a mais fina com a distância” é entendido como um dos
principais elementos para a apreensão do espaço.” (in BRUTUCE, 2004, p. 24).

Figura 3.1 Figura 3.2

Narradores de Javé, Eliane Caffé, 2003


44
As imagens como diálogos entre espaços temporais distintos produz uma interposição
de valores sociais e históricos diversos, que irão constituir esses ambientes como um real e
outro constituído no campo da memória. Esta memória acaba por se formar em um campo
onírico do que poderia ter acontecido. A contação de histórias, onde o filme vai buscar o
suporte para a narrativa, relativiza e joga com a questão da verdade, porque todos os fatos do
filme são uma versão de alguém. Esta concepção norteou a projeto visual da paleta de cores,
que tem como característica as mudanças cromáticas entre o tempo real e as reconstituições
da memória dos personagens. A diretora, Eliane Caffé, explica que “cada narração tem sua
característica. Uma é mais truncada, outra é linear, cada uma tem sua característica. A
alteração das cores foi uma forma de evidenciarmos isso”.9 As três fotos abaixo (Figuras
3.3, 3.4 e 3.5) evidenciam três momentos em que personagens distintos contam suas versões
sobre a história do surgimento de Javé. Podemos observar como a mudança cromática é
utilizada para contribuir criativamente para o roteiro.

Figura 3.3 Figura 3.4

Figura 3.5

9
EM ENTREVISTA, cineasta Eliane Caffé fala do seu segundo longa, Narradores de Javé. Revista Época, Rio
de Janeiro, Globo Editores, ed. 296, 19 jan. 2004.

45
Para facilitar a produção e como forma de integrar a população local à realização, a
diretora de arte acabou absorvendo as costureiras locais ao projeto; também com este
objetivo, realizaram-se oficinas para a incorporação da comunidade na produção do filme.
Além disso, utilizaram-se processos de trocas de roupas e objetos, que como explica Carla já
possuíam uma vivência do próprio local:

A gente pegou roupa de São Paulo, compramos roupas feitas aqui e fomos
pro interiorzão, fomos pra roça e aí a gente trocava roupa velha por nova.
Nisso daí, a gente já resolvia milhões de coisas, a gente já resolvia paleta de
cor, porque a roupa que vem da roça ela tem cor de terra, já vinha pronta,
com camadas, com rasgos.(...) E isso também ajudou a gente a criar esse
universo imaginário, pouco previsível. Então, na verdade, em “Narradores”
toda a parte de memória, imaginativa, a gente acabou fazendo com as pessoas
de lá, através de oficinas. (CAFFÉ, 2012, não publicada)
Um recurso utilizado pela diretora de arte para suavizar as interferências negativas e
ampliar as positivas da realização do projeto naquele local foi introduzir na comunidade uma
maneira diferente de lidar com o lixo. Esta questão demonstra como o método coletivo de
produção junto à comunidade e a forma como ela vai produzir no local, que se delineia como
a maior marca de estilo de Carla, vai definir o processo criativo:

Porque era uma cidade que não sabia o que fazer com o lixo, não tinha
logística de como lidar com o lixo. E ao mesmo tempo, eu via que eu
precisava limpar aquela cidade, pra primeiro, filmar; depois, pra conviver
naquele espaço e terceiro, porque a gente ia produzir muito lixo. (...) eu gosto
de inserir a direção de arte na comunidade. E extrair quem são as pessoas que
podem ajudar a criar o universo do filme. Como relacionar a equipe e as
necessidades do filme com as cidades e as comunidades que a gente ia
encontrando pela frente. (CAFFÉ, 2012, não publicada)
A pesquisa iconográfica para este filme foi, portanto, essencial para composição
visual. A utilização de materiais próprios da região para compor os figurinos, mesmo nas
seqüências de reconstituições lúdicas, foi uma das saídas para baratear os custos e trazer
texturas próprias ao local.

Em Central do Brasil, dirigido por Walter Salles, e com a direção de arte de Carla
Caffé e Cássio Amarante, o composição do espaço na imagem é um elemento essencial para a
construção da narrativa. Por se tratar em parte de um road movie, cujos personagens se
deslocam da metrópole para interior do país, numa migração inversa a socialmente comum no
Brasil, as paisagens são relevantes ferramentas de composição da narrativa visual, como
ilustram as Figuras 3.6 e 3.7.

46
Figura 3.6 Figura 3.7

Central do Brasil, Walter Salles, 1998

O filme é sobre o encontro entre Dora, uma professora aposentada que escreve cartas
para analfabetos na estação Central do Brasil, e Josué, um menino que acaba de perder a mãe
em um acidente de carro. E é na jornada da procura pelo pai de Josué no interior, que Dora e
Josué criam um vinculo de amizade que vai fazê-los superar os obstáculos do caminho. Com
o decorrer da viagem, Dora vai se humanizando e o menino vai se apegando a sua
companheira. É na forma de elaboração deste road movie que as paisagens se compõem como
importantes dispositivos de apreensão de descoberta: do país e dos personagens.

No ato de viajar juntos, e ainda mais em condições adversas, os personagens


descobrem um ao outro e a si mesmos. Walter Salles indica: “Central é um filme sobre a
busca. Uma mulher que busca se sensibilizar, um menino que busca um pai desconhecido.
Um país mais humano, afetivo e solidário do que o país das estatísticas oficiais, formado de
indiferenças e impunidade.” (SALLES in Cinemais jun. 1999, p.148)

Observando os ambientes internos, o apartamento de Dora no Rio de Janeiro denota a


decadência da personagem e do espaço, um cenário que parece conter objetos com qualidade,
porém degradados pelo tempo e pela má conservação (Figura 2.8), assim como na estação
Central do Brasil. Na paleta de cores, predomina a utilização de cores mornas e tons terrosos
no cenário, com uso de materiais como madeira e couro, criando um ambiente aconchegante,
porém pesado e pobre. Já a estação, que se apresenta também como personagem da história,
se caracteriza principalmente por sua dimensão espacial grandiosa e por seus diversos e

47
infinitos passantes, que se tornam objetos (pois promovem o teor caótico do local) e sujeitos
ativos (pois também contam suas histórias) na narrativa, como ilustra a Figura 3.9.

Figura 3.8 Figura 3.9

Analisamos ainda, mais uma vez, a importância da pesquisa de campo para realizar o
road movie. Como ressaltou Cássio Amarante, o cenário da romaria, que teve como
característica principal sua pré-produção e montagem, contou com um extenso material de
pesquisa para ser realizado:

Esse processo de troca, que é orgânico, que não é de invenção, é de


descoberta, é que possibilita construir cenários como aqueles lá. Aquilo lá ele
é construído com elementos verdadeiros, então ele fica com aquela cara de
que já estava lá. Mas é uma instalação e tanto que é necessária ser feita.
Agora, a gente só conseguiu fazer aquilo e a Carla conseguiu tão bem por
causa das nossas visitas e pesquisas: chegar perto, tirar foto, ir em um e em
outro, olhar as coisas como elas são. (AMARANTE, 2012, não publicada)
Questões religiosas perpassam o filme a todo instante: no momento em que a mãe de
Josué morre na estação, mais tarde quando eles estão na estrada (Fig. 3.10) e, especialmente
na casa dos milagres (Fig. 3.11) onde são depositadas os ‘ex-votos’, que foi cenografada com
material real trazido de uma romaria. Só foi possível realizá-la com uma produção que
montasse uma igreja em uma cidade do interior do nordeste. Em seu depoimento sobre
Central do Brasil, Carla Caffé expõe que:

Decidimos não filmar nessas áreas, porque essas áreas oscilam muito com a
romaria. É um evento que o cinema não tinha como se posicionar, nem como
absorver, porque é monumental mesmo. E aí a gente se deslocou pra uma
cidade de chão de terra e resolveu deslocar os pertences, deslocar os objetos
das salas de ex-votos. E já é uma coisa difícil, porque são objetos que tem seu
sentido, e é muito forte. Tem uma importância para aquela cidade, para
aquelas pessoas. (CAFFÉ, 2012, não publicada)

48
Figura 3.10 Figura 3.11

Nas cenas externas, se destacam as linhas e formas da arquitetura da cidade como


características relevantes da cenografia do filme. Observamos janelas e traçados marcantes
que desenham a cidade, principalmente nas sequências que se passam no Rio de Janeiro, cujos
personagens se enquadram, se protegem e se projetam nestas formas. Como nota Gentile, “os
volumes são usados, porque eles criam espaços com perspectiva denotando profundidade.”
(GENTILE, 2007, p. 205). Esta é uma definição que nos aponta como estas formas são
ferramentas utilizadas também pelo diretor de arte para criar profundidade e ritmo visual na
cena, como ilustrado pelas Figuras 3.12 e 3.13.

Figura 3.12 Figura 3.13

É importante observar que a criação de significado também passa pela maneira como
o diretor de arte vai dar o seu olhar a obra. Neste ponto, a contribuição de Carla Caffé
atravessa a concepção do projeto, para ir além, concebendo um vinculo com o material
humano e com a maneira que se produz. A diretora de arte salienta que:

49
O que acho que é mais importante para um diretor de arte é o olhar. É o olhar
que ele pode trazer pra uma realidade. Você pode ambientar, maquiar, mas
você não precisa necessariamente só fazer isso. Você pode também fazer
uma leitura específica e trazer isso pro filme. Sem que isso seja ambientação,
sem que isso seja cenografia. (CAFFÉ, 2012, não publicada)

Caffé atenta para o mesmo processo de descoberta do espaço e da comunidade que


aconteceu no Morro do Chapéu Mangueira, onde foi filmado parte de Central Brasil, e na
própria estação que dá nome a obra. Esta ligação com o trabalho local pode inserir camadas
na direção de arte do filme e corroborar para criação do espaço como um lugar verossímil.

3.1.3 Direção de arte como instalação – Raimundo Rodriguez

Raimundo Rodriguez é artista plástico e diretor de arte e iniciou sua trajetória no


audiovisual com Luiz Fernando Carvalho em Hoje é Dia de Maria, minissérie produzida pela
Rede Globo de Televisão em 2005, onde foi convidado a fazer uma participação como artista
plástico. Luiz Fernando Carvalho gostou de seu trabalho e o chamou para realizar a direção de
arte de A Pedra do Reino (2007), minissérie de comemoração pelos 80 anos do escritor
Ariano Suassuana. Rodriguez tem como inspiração para seu trabalho artístico a utilização de
materiais que seriam “descartados” aos olhos de outros, assim como um processo de
ressignificação do objeto. Este olhar com certeza é passado para o projeto visual de
materialização do espaço e dos figurinos. Capitu, seu terceiro projeto com o diretor, é uma
minissérie odisséica, também produzida pela Globo, baseada na obra Dom Casmurro, de
Machado Assis, que se passa no séc. XIX no Rio de Janeiro.

Em Capitu, o uso de mecanismos estilísticos e teatrais para contar a história vai guiar
o projeto visual. A trama é narrada por Bentinho, já velho e caracterizado como um
melancólico clown10, ele vai nos conduzir por suas memórias tendo como ponto de partida a
noticia de que seria mandado para o seminário por uma promessa de sua mãe e teria que
deixar Capitu, seu amor de adolescência. O set de filmagem foi um único galpão (que foi

10
A tradução literal de do termo clown, em inglês, é palhaço. Porém, a definição de clown, segundo Federico
Fellini, é de “uma caricatura do homem como animal e criança, como enganado e enganador. É um espelho em
que o homem se reflete de maneira grotesca, deformada, e vê a sua imagem torpe. É a sombra.”. In "Fellini por
Fellini", L&PM Editores Ltda., Porto Alegre, 1974, págs. 1-7.
50
construído em um galpão na sede do Automóvel Clube, no centro do Rio de Janeiro) onde
todos cenários foram desenvolvidos e trabalhados. As paredes do local foram revestidas com
muitas camadas de papel, para fornecer uma textura própria de ruínas. Aparecendo como
espectador e personagem de suas próprias lembranças, Bentinho vai conduzir o espectador
pela estética de toda minissérie, permitindo que houvesse uma abertura para o lúdico e que a
direção de arte e a cenografia corroborassem para construção dessa estética. Todo o espaço
cenográfico foi construído no mesmo local sem divisão de paredes, ou seja, todas as cenas
aconteciam no mesmo espaço, porém ocupando lugares distintos.

Na minissérie, a casa de Bentinho e Capitu são vizinhas, só se separam por portas


móveis que os próprios atores carregam. Este tipo de liberdade cênica e a teatralidade, como
expostas no piso pintado de preto e desenhado a giz (onde Capitu nova e Bentinho velho
dançam e onde é desenhado o quintal e o muro que separa a casa dos dois vizinhos) permite
que a direção de arte invente soluções, cuja característica recai sobre questões metafóricas.
Por exemplo, o muro desenhado a giz que os dois amantes adolescentes brincam de rabiscar
(Figura 4.1), onde Capitu escreve Bento e Capitolina, pode simbolizar o mundo que os dois
querem traçar e imaginar juntos. Assim como o giz na lousa pode representar a grafia e a
palavra escrita, concepção na qual todo projeto se baseia, já que o personagem de Bentinho é
o narrador do livro que está escrevendo.

Figura 4.1

Capitu, Luiz Fernando Carvalho, 2008

Os figurinos foram trabalhados com referência aos trajes utilizados no séc. XIX, tal
como os móveis da casa de Bentinho e Capitu. Porém, a atemporalidade é uma característica
51
que perpassa todo trabalho, cujo teor está em ressaltar atualidade da temática da obra
machadiana. O tempo parece ser tratado como um personagem de composição da narrativa. O
uso de elementos que não pertencem ao espaço temporal da história demonstra mais uma vez
que a liberdade cênica permite a criação deste tipo de jogo: imagens atuais combinadas a
imagens arquivos, músicas atuais, mp3, a tatuagem de Capitu são alguns exemplos destes
elementos.

Na cenografia foram utilizados inúmeros elementos que remetem ao universo da


escrita, como por exemplo, as cortinas feitas de jornal, o trem construído de papelão e jornal,
os figurantes de papelão ou a técnica de colagem utilizada para fazer alusão às cenas de rua
(sobreposição de camadas de papel com diferentes rasgos e interferências chamada afiche)
(Figura 4.2). Estes elementos estéticos também auxiliam na narrativa visual, pois
proporcionam texturas e gradientes de cor, além de neste caso, produzir sentidos simbólicos.
Mónica Gentile aponta para a relação entre a composição da atmosfera visual e a imagem
final:

Ao planejar uma determinada atmosfera visual – que se materializará através


das texturas, de uma certa gama de cor e de valor, das formas e
características próprias de cada elemento do cenário e sua disposição no
espaço conforme critérios compositivos –, se está definindo o estilo pictórico
que terá e, em conseqüência, também a imagem final. (GENTILE, 2007,
p.200)11

Figura 4.2

11
No original: “Al planear una determinada atmósfera visual – que se corporizará a través de las texturas, de una
cierta gama de color y de valor, de las formas y características propias de cada elemento del decorado y su
disposición en el espacio bajo criterios compositivos –, se está definiendo el estilo pictórico que tendrá el
decorado y, en consecuencia, también la imagen final.”, tradução nossa.
52
O figurino abarca a escolha do projeto de criar um ritmo visual. Durante sua fase
adolescente, a personagem de Capitu segue com roupas de cores mais claras e vestidos mais
leves, com colagens que seguiam os padrões florais da própria cenografia. A delicadeza da
personagem transparecia em seus figurinos, penteados e maquiagem; assim como em seus
hábitos de costura (Figura 4.3). A representação do olhar de “cigana oblíqua e dissimulada”
aparece melhor quando mais velha, quando a personagem de Capitu ganha cores mais quentes
no figurino e seus vestidos também se tornam mais pesados e chamativos (Figura 4.4). Os
figurinos de uma forma geral têm como característica a assimetria, como podemos observar
na Figura 4.5, que mostra o figurino da mãe de Bentinho logo depois da morte do pai. Esta
fragmentação propõe um exercício constante de observação por parte espectador.

Figura 4.3 Figura 4.4

Figura 4.5

A paleta de cor proposta para cenografia da minissérie, de uma forma geral, é


majoritariamente amarelada com tons próprios ao papel envelhecido, utilizando como
contraste algumas cores como o bordô, o que nos remete a um ambiente aconchegante e até

53
amoroso. Porém, em alguns momentos-chave da trama, esta característica tonal destoa
completamente da usual, utilizando-se de recursos estéticos para propor uma releitura da
historia, tal qual é o caso do enterro de Escobar, melhor amigo de Bentinho, onde a sala toda
branca com o caixão no meio intensificam as desconfianças de Bentinho em relação à Capitu
e Escobar. (Figuras 4.6 e 4.7)

Figura 4.6 Figura 4.7

A criação de recursos estéticos para simbolizar momentos da história só é possível por


causa da já discutida liberdade cênica, garantida pelo olhar que o narrador tem de suas
memórias. A cena em que Capitu dança, faz um traçado no chão a giz e faz Bentinho segui-lo;
diz muito sobre a trama e é toda elaborada por meio de um sentido metafórico. Bentinho
sempre fez as vontades de Capitu e seguiu seus passos, só parou de fazê-las quando começou
a sentir ciúmes. Também na morte de Escobar foi utilizado um recurso estético criativo para
dar conta do mar de ressaca onde ele se afoga. Além de se tratar de um elemento simbólico e
metafórico, este enorme mar de plástico azul também compõe a narrativa, contando a história
da trágica morte de Escobar e criando ritmo visual, como ilustrado pela Figura 4.8.

Figura 4.8
54
O termo “instalação”, apesar de bastante debatido no cenário da arte contemporânea
atual, conta ainda com uma definição instável. Tentei aqui chegar a um conceito que pudesse
abarcar o estilo deste artista plástico/diretor de arte, que tem por inspiração uma vasta criação
em arte contemporânea. Por isso, acredito que exista um teor experimental de desconstrução
do espaço em seus projetos, próprio de uma possível definição de instalação, que permite
dizer que sua marca estilística estaria justamente nisto. Rodriguez ressalta, desta forma, a
importância do processo criativo:

O meu processo é um processo artístico mesmo, de descoberta de material e


que precisa atender a um texto, a um roteiro, às condições físicas de um ator,
precisa atender a tudo. Então precisa ter uma disponibilidade do ator, precisa
ter uma disponibilidade do próprio artista, no caso eu, precisa ter uma
disponibilidade de todo mundo interessado em que aquilo aconteça.
(RODRIGUEZ, 2013, não publicada)

55
CONCLUSÃO

Assim sendo, podemos concluir que a definição de estilo visual para a imagem
fílmica consiste em uma interação de elementos capazes de produzir sentido implicando na
organização da mise-en-scène, criando potencial para uma intenção autoral por parte do
realizador. Como coloca Gibbs, “mise-en-scène é um pré-requisito para que se façam outros
questionamentos sobre o cinema, e qualquer argumento que você quiser realizar, qualquer
motivação para sua discussão, um senso de como estilo se relaciona ao significado necessita
ser central à sua inquisição.”(GIBBS, 2002, p. 100)12.

Utilizamos essa definição para delimitar uma possível atuação da figura do diretor de
arte como production designer neste processo de construção da composição da visualidade
da obra. É através deste viés que notamos na análise das entrevistas propostas na pesquisa,
que a criação de um estilo próprio é baseada na produção de um conceito único para a
composição da visualidade pelo diretor de arte, que procura um convergir em um amálgama
de visões um projeto visual coeso para a obra como um todo e uma conexão poética entre o
conteúdo e a forma. Esta perspectiva única se forma, portanto, numa combinação de
elementos como a bagagem pessoal que o diretor de arte vai trazer para o filme, sua
pesquisa em relação ao roteiro e seu processo criativo, definindo desde a pré-produção os
rumos da direção de arte para o projeto.

Através da análise elaborada neste trabalho pretendíamos expandir o material


dedicado ao estudo da direção de arte no país, já que notamos a escassez de bibliografia
voltada especificamente para o contexto de produção do audiovisual brasileiro. Desta forma,
o objetivo é contribuir para efetivação do lugar de fala do diretor de arte como ativo no
processo de construção da narrativa fílmica e na valorização da sua figura no campo de
trabalho. A principal dificuldade no desenvolvimento do trabalho foi encontrar caminhos
que pudessem aliar teoria e prática e mostrar a realidade da atividade no Brasil. E mesmo
tendo em mente que esta realidade está condicionada a certas circunstâncias do mercado,
conseguimos nos aproximar de alguma ‘realidade possível’ no contexto nacional. Para

12
Do original: “mise-en-scène is a prerequisite for making other kinds of claims about film, and, whatever
argument you want to make, whetever the motivation for your discussion, a sense of how style relates to meaning
needs to be central to your enquiry.” , tradução nossa.
56
atingir esta finalidade, a pesquisa de iniciação científica PIBIC/Faperj, intitulada “A
influência da tecnologia no processo criativo dos diretores de arte do cinema brasileiro pós-
retomada (anos 90)” foi um grande estopim e serviu de base para o processo de trabalho de
campo.

Tendo como característica de pesquisa, a vontade de encadear o projeto visual e a


narrativa, ressaltando os aspectos estilísticos que a direção de arte pode carregar, o presente
trabalho pretendia discutir as relações entre elementos de composição da mise-en-scène que
fazem parte da direção arte (como cenografia, figurino, cor) e a composição de estilo
estético. Ou seja, como o que eu chamo de marca de estilo dos diretores de arte pode
transparecer em suas obras através de dos elementos de composição da mise-en-scène e se
isso é possível.

Através da análise realizada de cada um dos diretores de arte e seus projetos visuais,
foi possível observar que o estilo estético parte de diferentes motivações. E apesar do que se
acredita usualmente, que somente o diretor tem voz nesta criação de um estilo que fala
ativamente, acredito que se possa dizer que esta produção também está em outros pólos
criativos. Neste caso, defendi o lado da autonomia da direção de arte como discurso. Entende-
se, portanto, a direção de arte como meio de expressão dos sentidos narrativos e estéticos da
imagem.

A escolha do diretor de arte certo para cada projeto vai fazer diferença nos caminhos
estilísticos seguidos pelo diretor. Quero dizer, dependendo do diretor este caminho a ser
seguido vai depender de uma escolha por parte também de que equipe o acompanhará. Talvez
então, por isso, diretores que mantém um estilo mais autoral e autêntico na maior parte de
suas carreiras mantenham o mesmo diretor de arte por tanto tempo, como é o caso de Woody
Allen nos Estados Unidos, cuja direção de arte de muitos de seus filmes é de Santo Loquasto;
ou Jorge Furtado, que possui como diretor de arte de várias de suas obras Fiapo Barth.

A pergunta que se coloca agora é de que maneira, no Brasil, os diretores de arte e


membros da equipe de arte podem se organizar para que a área seja valorizada como campo
relevante ao estudo e à prática, sem que se perca de vista a noção de que a narrativa também
depende da composição visual como meio de transmissão de valores dos personagens.

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Assumir o diretor de arte como visionário, que conserva uma estética bem definida,
desenhando e construindo espaços necessários para fornecer contexto às ações que
apresentam o roteiro, proporcionando elementos que acentuam os traços psicológicos dos
personagens e viabilizando uma localização espaço-temporal da ação dramática. Além de
desenhar um projeto conceitual de todo o aspecto artístico do filme sem abandonar a
viabilidade econômica do mesmo. Para isso, como colocou William Cameron Menzies

O diretor de arte deve conhecer a arquitetura de todos os períodos e todas


regiões. Deve ser capaz de tornar interessante o tratamento visual de uma
casa ou de uma prisão. Deve ser desenhista, maquetista, costureira, pintor de
mares e paisagens, projetista de barcos, decorador de interiores e inventor.
Deve saber de dramaturgia, de história e agora também ser perito em som.
(MENZIES in GENTILE, 2007, p.133).

A afirmação de Menzies, apesar de ter sido feita em 1929, continua muito atual.
Através desta podemos observar que o diretor de arte deve estar presente em todas as etapas
do fazer audiovisual, e se desdobrar em atividades distintas para atender a todas as demandas
do mercado de compor visualmente a imagem.

Podemos constatar, portanto, baseado na análise das obras Cássio Amarante, que o
processo criativo de um diretor de arte como este parte de uma natureza realista, já que ele
procura sempre estar em um diálogo constante com a realidade, fazer pesquisas apuradas
sobre o tema do filme, além de sempre procurar uma característica física da geografia do
espaço da cidade para trabalhar em seus projetos, o que também acaba trazendo um caráter
mais realista para a visualidade fílmica, o que vai delinear a sua forma de aproximação da
temática. Além disso, o processo de Cássio também se determina por uma tentativa de
elaboração de um caráter identitário para o projeto, aliando às suas expectativas de construção
da imagem cinematográfica.

Já a diretora de arte Carla Caffé possui uma abordagem diferenciada, cuja


característica está na busca pela integração do material humano capaz de colaborar para
materialização da obra, não só constituindo a equipe de direção de arte em si, como por
exemplo no uso de mão de obra local nos projetos; mas também na assimilação dos atores e
da dramaturgia como parte daquele projeto visual. O estilo estético aí vai se delinear pela

58
formação de uma fala mais voltada para a forma como se atua naquela região e para
dramaturgia.

Raimundo Rodriguez tem como marca de estilo seu modo de apreensão do espaço
diferenciado, que se caracteriza por uma desconstrução das formas habituais de uso de
materiais, pela invenção e elaboração de recursos cênicos, pela fragmentação da lógica
espacial e dos elementos que a constituem, assim como de um resgate do trabalho manual do
artista. Estes aspectos compõe o que seria a inspiração do artista plástico também para suas
obras.

Desta forma, podemos notar uma intensa ligação entre a intervenção destes diretores
de arte na imagem e o que se percebe como uma marca de estilo estético, o que caracteriza e
diferencia cada obra produzida, influenciando a narrativa e até mesmo a visão do diretor.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

AUMONT, Jacques. O olho interminável (cinema e pintura). São Paulo: Cosac & Naify,
2004.

________________. A imagem. Campinas: Papirus Editora, 1993.

________________. A Estética do filme. Campinas: Papirus Editora, 1994.

BILL, Nichols. Introdução ao documentário. Campinas: Papirus Editora, 2005.

BORDWELL, David. Figuras traçadas na luz. Campinas: Papirus Editora, 2005.

DONDIS, Dondis A. Sintaxe da linguagem visual. São Paulo: Martins Fontes, 2a edição,
1997.

GENTILE, Mónica; DÍAZ, Rogelio; FERRARI, Pablo. Escenografía cinematográfica.


Buenos Aires: La Crujía, 2007.

GIBBS, John. Mise-en-scène: Film Style and Interpretation. London: Wallflower Press, 2002.

LOBRUTTO, Vincent. The Filmmaker's Guide to Production Design. New York: Allworth
Press, 2002.

METZ, Christian. A significação no cinema. São Paulo: Editora Perspectiva, 1977.

PRESTON, Ward. What an art director does: an introduction to motion picture production
design. Los Angeles: Silman-James Press, 1994.

60
RAMOS, Fernão E MIRANDA, Luís Felipe De. Enciclopédia Do Cinema Brasileiro. São
Paulo: Editora SENAC, 2000.

Monografias, textos e outras publicações:


BRUTUCE, Débora Lúcia Vieira. A direção de arte e a imagem cinematográfica. Sua
inserção no processo de criação do cinema brasileiro dos anos 1990. Dissertação de
Mestrado, Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2005.

Cinemais Revista de cinema e outras questões audivisuais. Conceição a 40 graus.


Carnavalização, a lógica do espetáculo e a palavra-chave do Século 20. Número 17,
maio/junho de 1999.

REFERÊNCIAS da Internet:

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<http://www.contracampo.com.br/85/dvdoebrio.htm>. Acesso em 10 de outubro, 2013.

CRUZ, Alessandra; FREITAS, Ana Maria; PAIVA, Patrícia e MORAES, Renata. Assim eram
as chanchadas. Os filmes que mudaram a cara do cinema brasileiro. Eclética, jan./jun. de
2002. Disponível em: <http://puc-riodigital.com.puc-rio.br/media/17%20-
%20assim%20eram%20as%20chanchadas.pdf>. Acesso em 18 de outubro, 2013.

VALENTE, Eduardo. Cinema Crítica do filme O Ano em que Meus Pais Saíram de Férias, de
Cao Hambuger (2006). Cinema narrativo, muito prazer. Disponível em:
<http://www.revistacinetica.com.br/anoemquecartaz.htm> Acesso em: 20 de novembro, 2013.

61
SÍTIO da Empresa Cinédia. Disponível em: <http://www.cinedia.com.br/>. Acesso em 12 de
agosto, 2013.

SÍTIO da Empresa Vera Cruz. Disponível em: <http://www.veracruzcinema.com.br/>. Acesso


em: 14 de agosto, 2013.

SÍTIO Gazeta do Povo. Disponível em:


<http://www.gazetadopovo.com.br/cadernog/conteudo.phtml?tl=1&id=1079245&tit=Um-
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SÍTIO IMDB, base de dados sobre cinema. Disponível em: <http://www.imdb.com>. Acesso
em: 20 de setembro, 2013.

SÍTIO Wikipedia, enciclopédia online. Disponível em:


<http://en.wikipedia.org/wiki/Main_Page>. Acesso em: 22 de setembro, 2013.

SÍTIO de imagens sobre o making of do filme Xingu. Disponível em:


<http://www.youtube.com/xinguofilme>. Acesso em: 25 de novembro, 2013.

SÍTIO Memória da TV Globo, sobre a minissérie Capitu. Disponível em:


<http://memoriaglobo.globo.com/programas/entretenimento/minisseries/capitu/cenografia-e-
arte.htm> Acesso em: 23 de novembro, 2013.

SÍTIO do Museu Arte Contemporânea de da USP. Disponível em:


<http://www.macvirtual.usp.br/mac/templates/projetos/seculoxx/modulo5/instalacao.html>.

Acesso em: 25 de novembro, 2013.


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Entrevistas feitas pela autora:

AMARANTE, Cássio. Entrevista. Setembro 2012, São Paulo.


Formado pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo na USP. Assinou a direção de
arte de vários filmes brasileiros, dentre eles Ação entre amigos (1998), de Beto Brant, Bossa
Nova (2000), de Bruno Barreto e Onde a Terra acaba (2001), de Sérgio Machado. Em abril
de 2008, ganhou o prêmio de melhor direção de arte no Grande Prêmio do Cinema Brasileiro
por seu trabalho em O Ano em que Meus Pais Saíram de Férias (2006), de Cao Hamburger.

CAFFÉ, Carla. Entrevista. Setembro 2012, São Paulo.


Formada pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo na USP no início da década de
1990. Atuou como diretora de arte em diversos filmes (dentre eles, Central do Brasil e
Narradores de Javé) e mantém um ateliê em São Paulo no qual exerce atividades diversas:
desenho, arquitetura e direção de arte.

RODRIGUEZ, Raimundo. Entrevista. Setembro 2013, Rio de Janeiro.


É artista plástico e pintor, atua como cenógrafo de shows, peças teatrais e realizou a
direção de arte das minisséries A Pedra do Reino (2007) e Capitu (2008), ambas do diretor
Luiz Fernando Carvalho.

Filmografia:

ANO em que Meus Pais Saíram de Férias, O. Direção: Cao Hambuger. Elenco: Michel
Joelsas, Germano Haiut, Daniela Piepszyk, Caio Blat, Paulo Autran. Brasil : Globo Filmes,
Lereby Produções, Gullane Filmes, 2006. (110 min.), DVD, son., cor.

CAPITU. Direção: Luiz Fernando Carvalho. Roteiro: Euclydes Marinho, baseado na oba de
Machado de Assis. Elenco: Maria Fernanda Cândido, Michel Melamed, Eliane Giardini,
Letícia Persiles, César Cardadeiro, Bellatrix Serra, e outros. Brasil, Rede Globo. Minissérie 5
capítulos de aprox. 30 min., 2008. DVD, son., cor.

CENTRAL do Brasil. Direção: Walter Salles. Roteiro: João Emanuel Carneiro e Marcos
Bernstein. Elenco original: Fernanda Montenegro, Vinícius de Oliveira, Marília Pêra e Othon
Bastos. Brasil. (113 min.), vídeo, son., cor.

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NARRADORES de Javé. Direção: Eliane Caffé. Roteiro: Eliane Caffé e Luis Alberto de
Abreu. Elenco original: José Dumont, Gero Camilo, Rui Resende, Luci Pereira, Nélson
Dantas, Nélson Xavier, e outros. Brasil, 2003. (100 min.), DVD, son., cor.

XINGU. Direção: Cao Hamburger. Produção: Fernando Meirelles, Andrea Barata Ribeiro e
Bel Berlinck. Produção executiva: Bel Berlinck e Andrea Barata Ribeiro. Roteiro: Elena
Soárez, Cao Hamburger e Anna Muylaert. Elenco original: João Miguel, Felipe Camargo e
Caio Blat. Brasil: O2 Filmes e Globo Filmes, 2012. (102 min.), DVD, son., cor.

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