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restrito e delimitado: as aulas de Educação Artística.

Estas podem ser


tanto um espaço para a atividade artística criativa, para o ensino de téc-
nicas diferentes, quanto para a reprodução de modelos, por meio da
Capítulo 12 confecção de "trabalhos manuais", em que o trabalho de uma criança
seja semelhante aos das outras.

O desenho infantil

A professora distribui folhas em Fonte: Nossas crianças. São Paulo: Abril Cultural, 1970. v. 3.
branco, lápis e giz de cera. Uma agitação
toma conta das crianças. É hora de dese- Elemento capaz de proporcionar a livre expressão e a criatividade,
nhar. Elas falam umas com as outras, o desenho se faz presente na escola como exercício da coordenação
contam sobre o que vão desenhar. Uma motora ou treino de habilidades manuais, como ilustração ou apoio para
olha o desenho da outra. Alguém diz que a compreensão de determinados conteúdos ou, ainda, como recurso
não sabe fazer um gato. Gradativamente para a mera ocupação do tempo quando a programação do dia já foi
as marcas no papel vão aparecendo: ga- cumprida.
ratujas, bonecos, casinhas, animais. De- Entretanto, que concepções sobre o desenho sustentam sua
senhos grandes, que ocupam toda a fo- presença na escola? Qual o significado do desenho para a criança?
lha. Desenhos pequenos colocados em Como ele se desenvolve? E qual o seu papel no desenvolvimento
um cantinho do papel. Monocromáticos e na aprendizagem da criança? Esses são alguns aspectos que nos
ou multicoloridos. parecem fundamentais quando se busca a construção de uma prá-
Atividade intensa e envolvente para tica pedagógica cientificamente fundamentada. Este capítulo pre-
as crianças, o desenho na pré-escola tem tende trazer elementos que ajudem a compreensão e a reflexão
uma presença constante. É visto como sobre esses pontos.
possibilidade de expressão, como incen-
tivo à criatividade. Ou ainda como indi-
cador do nível de desenvolvimento
cognitivo e afetivo das crianças. Tendo Quando o traço no papel recebe um nome
em vista a alfabetização, o desenho é
também considerado uma forma agradável de trabalhai" a coordenação Quando observamos uma criança muito pequena rabiscando ou
Desenho: motora das crianças, sua capacidade de atenção e concentração, seus "desenhando", notamos facilmente que os traços não são nada mais que
presença
conhecimentos sobre cores, formas, etc. a fixação no papel de seus movimentos das mãos, dos braços e, às ve-
constante na
Na escola do 1? grau, a escrita, a leitura e os cálculos gradualmente zes, até do corpo todo.
pré-escola.
passam a ocupar o espaço do desenho e a determinar seu novo papel. As Os primeiros desenhos ou rabiscos infantis podem ser vistos mais
crianças desenham para ilustrar um texto, para enfeitar seus cadernos, como gestos que imprimem marcas em uma superfície do que propria-
para compor conjuntos numéricos. Desenham ainda nas aulas de Ciên- mente como desenhos.
cias ou Estudos Sociais, copiando dos livros o ciclo da água ou mapas De acordo com Vygotsky, o desenvolvimento posterior do desenho
geográficos. não é puramente mecânico nem tem explicação em si mesmo: é preciso
O desenho livre, a exploração das diversas possibilidades ofereci- que, num dado momento, a criança descubra que os traços feitos por ela
das pela atividade gráfica, quando ainda se mantém, ganha um espaço podem significar algo.
Rafael, de 3 anos, está desenhando em sua casa. Sentado à A criança desenha o que sabe e não o que vê
mesa, produz com o lápis movimentos mais ou menos circulares,
deixando marcas no papel. Num dado momento, olha para a sua Rabiscos, bonecos formados por um círculo do qual saem dois tra-
produção e exclama, dirigindo-se à sua mãe: "Olha, mãe! Eu fiz ços, carro de perfil com quatro rodas, casinha com chaminé, árvores e
um fusca!". sol com raios. Essas e outras formas tomadas pelo desenho da criança
(Episódio extraído das experiências familiares dc uma das au- são vistas por Vygotsky em sua estreita relação com a linguagem. Para
toras.) ele, "o desenho é uma linguagem gráfica que surge tendo por base a
linguagem verbal" (1984: 127), conforme já observamos.
A criança, ao nomear o seu desenho depois que o fez, relaciona os Os primeiros desenhos infantis, reproduzindo somente aspectos es-
traços que produziu (que podem ou não assemelhar-se a algo real) a um senciais dos objetos, assemelham-se a conceitos verbais. Ao desenhar, a
objeto concreto (no caso, um fusca). E, pelo ato de nomear, seu desenho criança tem a fala como base: ela conta uma história ou o que ela sabe
torna-se significativo. sobre os objetos. Vygotsky diz que a criança não se preocupa com a
A fala tem, assim, um papel fundamental na descoberta que a crian- representação da realidade, com a reprodução daquilo que vê. Ao con-
ça faz de que seus rabiscos podem significar algo, segundo Vygotsky. E trário, ela tenta, por meio do desenho, identificar, designar, indicar as-
importante lembrar que, antes que a criança nomeie seu desenho, ele é pectos determinados dos objetos. Ou seja, a criança não começa dese-
nomeado pelos adultos que a rodeiam (habitualmente perguntam à nhando o que vê, mas sim o que sabe sobre os objetos.
criança o que ela desenhou ou dizem coisas como "Olha, você fez um
menininho!").
Embora a descoberta de que os traços do desenho podem repre-
sentar objetos reais ocorra nos primeiros anos da infância, Vygotsky
observa que essa descoberta ainda não equivale à da função simbólica
do desenho.
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A nomeação, feita inicialmente depois de pronto o desenho,
passa gradativamente a acompanhar o ato de desenhar. E muito co-
mum observarmos crianças que começam a fazer traços no papel e
vão, durante o ato de desenhar, nomeando o que estão fazendo. A
decisão quanto ao que desenhar não é tomada antecipadamente, mas
Fig. 1 «.ta
no decorrer do próprio desenho elas falam e. nomeiam o que estão
fazendo.
Depois, a nomeação começa a se dar no início do processo de dese- Na figura 1, por exemplo, o desenho mos-
nhar. A criança diz "Vou desenhar uma flor" ou "Vou fazer uma casa", tra traços que, antes de representar em deta-
antes de começar a desenhar. lhes o que a criança quis desenhar (um carro-
Essa mudança relativa ao momento da nomeação no desenho de- guincho), indicam aspectos de um carro-guin-
monstra que os primeiros traçados da criança ainda não representam cho: duas formas contendo duas rodas cada
simbolicamente, em si mesmos, os objetos reais. É apenas pelo ato de uma, ligadas por um traço. Na figura 2, pes- Fig. 2
nomeação, pela utilização da linguagem falada que os desenhos ga- soas são representadas por formas que indi-
cam a cabeça, os braços e as pernas.
nham algum significado. Tanto é assim que muitas vezes o significado
passa a ser outro no decorrer do ato de desenhar. A criança pode expli- Isso implica certo grau de abstração, de generalização, do mesmo
modo que a palavra na linguagem verbal. Já vimos, em capítulos anteriores,
car que está fazendo um gato e, antes mesmo de completar o desenho,
que o significado de determinada palavra não é um objeto concreto com
dizer "Isto é uma bruxa".
todas as suas características. O significado da palavra coe/Zio, por exemplo,
Por isso Vygotsky afirma que a "representação simbólica primária comporta uma abstração, uma generalização que poderia ser expressa da
deve ser atribuída à fala" e considera que o próprio desenho torna-se seguinte forma: "pequeno mamífero leporídeo, selvagem e doméstico"
simbólico pela utilização da linguagem oral. O desenho transforma-se (Dicionário Melhoramentos da língua portuguesa). Esse conceito verbal
efetivamente em representação simbólica quando a nomeação passa a não faz referência a todas as características de um coelho concreto, determi-
se dar no início do ato de desenhar e a criança torna-se capaz de decidir nado, como cor, tipo de pêlo, tamanho, formato da cabeça, etc.
antecipadamente o que vai desenhar.
O desenho da criança é uma espécie de conceito verbal: ele não O segundo estágio, do realismo fracassado,
reproduz todas as características de um coelho determinado, mas os as- caracteriza-se pelas primeiras tentativas da crian-
pectos mais relevantes para identificá-lo, como se pode observar nas ça de reproduzir algumas formas. Os elementos
figuras 3 e 4. de seu desenho são muitas vezes justapostos, em
Se a criança dese- vez de coordenados: um chapéu pode ser dese-
nha o que sabe, um coe- nhado muito acima da cabeça, por exemplo. É
lho sem as quatro patas nessa fase que aparecem os primeiros desenhos de
(figura 3) significa que figuras humanas, como aqueles em que há apenas
a criança não sabe que a cabeça e as pernas (figura 6).
um coelho tem quatro O terceiro estágio, que começa mais ou me-
patas? A afirmação de nos aos 4 anos e pode estender-se até os 10 ou 12
Vygotsky de que as anos, é o do realismo intelectual. Durante esse
crianças desenham o período, aparecem o plano deitado (figura 7) e a
que sabem não quer di- transparência (figura 8). Esses recursos demons-
zer que tenham tão tram que, de fato, a criança desenha o que sabe
pouco conhecimento sobre os objetos, e não o que vê.
quanto seus desenhos Na figura 7, vêem-
o iwte ffte
poderiam fazer supor. se inúmeros detalhes
Eles mostram, isso no desenho de uma ma, S.
sim, um elevado grau embora as formas do
de generalização, pró- skatista, da moto, dos
prio do conhecimento humano, que, como vimos, é sempre elaborado pedestres e dos prédios
na forma de conceitos, de significados. (representados deita-
A idéia de que a criança desenha o que sabe, e não o que vê, não é dos) não correspondam
exclusiva de Vygotsky, tendo sido defendida também por Luquet, um ao modo como são vis-
dos mais conhecidos estudiosos do desenho infantil, que distinguiu tos na realidade. Na fi-
quatro estágios na evolução dessa atividade. gura 8, as roupas do
condutor de trem são
transparentes, revelan-
O realismo do desenho infantil: a perspectiva de Luquet do traços do persona-
gem que não poderiam
O primeiro estágio ser vistos em alguém
identificado por Luquet, vestido. Desenhos co-
o do realismo fortuito, mo o de um feto dentro da barriga da
começa por volta dos 2 mãe ou o de uma árvore atrás de
anos. A criança descobre uma casa, da qual se vê o tronco (e
;W uma semelhança qual-
f ' não só a copa), também são exem-
„* quer entre seu traçado no plos de transparência.
papel (feito sem intenção
O quarto e último estágio, pró-
de representação) e um
objeto. Então, depois que prio da adolescência, é o do realismo
fez o desenho, ela o no- visual. Caracteriza-o o aparecimento
" meia. da perspectiva: a criança (ou o ado-
Rafael, aos 3 anos e lescente) passa a representai" o que vê
meio, chamou de "gira- a partir de determinada perspectiva.
gira" o desenho acima, depois de marcar sobre o papel o movimento de Assim, uma árvore atrás de uma casa
girar daquele brinquedo (figura 5). tem apenas sua copa desenhada; os
objetos mais distantes são desenhados em tamanho menor. Um rosto de Para considerar um objeto cle determinado ponto de vista, não
perfil é desenhado com apenas um olho, e um caminhão de lado com é necessário estar consciente dele. Em compensação, representar-
apenas duas (ou três) rodas (figura 9). se ou representar graficamente o mesmo objeto em perspectiva su-
põe que se tem consciência, simultaneamente, do ponto de vista
sob o qual é percebido e das transformações devidas à intervenção
desse ponto de vista.

€l YTATicttt ( (Mercdieu, 1974: 57.)

Assim, embora a criança pequena tenha um conhecimento prático


do espaço que a cerca, sabendo se localizar nos cômodos da casa, reali-
zar sozinha pequenos trajetos na rua, prever a distância entre dois pon-
tos para ir de um a outro, reconhecer a sua casa a partir de diferentes
perspectivas e distâncias, ela ainda não é capaz de representar, mental-
Fig. 9 aAoi mente ou graficamente, essas relações espaciais.
No plano das ações práticas e das percepções, ela tem um conheci-
mento do espaço que ainda não se traduz em uma compreensão concei-
tualizada das relações espaciais. A evolução do desenho seria, então,
A criança é realista na intenção: a perspectiva concomitante ao processo de construção do conhecimento relativo ao
de Piaget espaço. Seus diferentes estágios estariam, de acordo com Piaget, vincu-
lados aos diferentes níveis de estruturação do conhecimento espacial,
Piaget também admite na evolução do desenho infantil os estágios de compreensão das relações espaciais. É importante lembrar que a
identificados por Luquet. Ele considera que até os 8-9 anos o desenho estruturação do conhecimento espacial, por sua vez, é simultânea ao
da criança "é essencialmente realista na intenção, [...] o sujeito começa desenvolvimento do pensamento.
desenhando o que sabe de um personagem ou de um objeto, muito antes Tanto Piaget quanto Luquet supõem que, embora durante a maior
de exprimir graficamente o que nele vê". parte da infância as crianças desenhem o que sabem, e não o que
Assim como Vygotsky, Piaget considera que o desenho constitui vêem, chega-se ao realismo visual, tido como a etapa final do desen-
uma espécie de conceitualização, antes de se tornar cópia do real. (E volvimento do desenho. Eles consideram que as crianças, ao dese-
importante não esquecer as diferenças entre as concepções de Piaget e nhar, são realistas na intenção, ou seja, têm como objetivo a represen-
as de Vygotsky sobre a formação de conceitos.) Como elemento da fun- tação realista do real. O fato de, apesar dessa intenção, elas não dese-
ção simbólica, o desenho representa um esforço de imitação do real, nharem aquilo que vêem deve-se ao seu nível de maturidade ou de-
estando submetido ao desenvolvimento do próprio pensamento da senvolvimento cognitivo. Portanto, chegar a desenhar o que se vê
criança. Isso quer dizer que, embora realista na intenção, a semelhança seria, para Piaget e Luquet, o resultado natural do processo de desen-
entre o desenho da criança e a realidade é determinada pelo nível de volvimento do desenho.
conceitualização atingido, em cada estágio, pelo seu pensamento.
Piaget vê, portanto, a evolução do desenho como concomitante ao
desenvolvimento do pensamento e, principalmente, à evolução do co- O realismo visual é aprendido: a perspectiva
nhecimento sobre o espaço. Isso porque o desenho envolve sempre a de Vygotsky
representação de relações espaciais. Relações de vizinhança, de envol-
vimento ou de limites, de perspectiva ou de profundidade, todas impli-
cam uma forma de organizar o espaço gráfico. Florence de Meredieu, pesquisadora francesa de artes, em seu
Vejamos, por exemplo, a representação da perspectiva, que, con- trabalho sobre o desenho infantil, argumenta que a aprendizagem da
forme os estágios propostos por Luquet, só aparece no desenho in- perspectiva (necessária ao realismo visual) não pode ser encarada
fantil por volta dos 10 ou 12 anos. Se no plano perceptivo ela tem como natural. Ela considera que, "da Renascença até o Impres-
noção de perspectiva muito antes dessa idade, por que demora tanto sionismo, a pintura esteve reduzida à representação do espaço per-
a representá-la? ceptivo, considerado como o único espaço verdadeiro" (1974: 40),
chamando a atenção para a concepção de ensino do desenho baseado
De acordo com Piaget, é porque existe uma diferença fundamental
na observação e imitação do real.
entre ver em perspectiva e representar a perspectiva.
A representação do real pelo desenho passa a ser considerada algo
natural, não se reconhecendo seu caráter convencional. A representação
do espaço perceptivo é apenas

[...] um dos aspectos de um modo de expressão convencional,


baseado em certo estado das técnicas, da ciência, da ordem social
do mundo em determinado momento. Cumpre então situar a pers-
pectiva de maneira correta, tomando-a pelo que é: uma "simples
montagem " estética e não uma categoria do espírito.
(Meredicu, 1974: 41.)

Vygotsky também observa que a capacidade de desenhar o que se


vê não é algo que se desenvolve espontaneamente. Ele demonstra, em-
pregando dados de outros pesquisadores, que a idade normalmente
identificada pelas teorias como aquela em que se chega ao realismo
visual coincide com o momento em que os desenhos começam a desa-
parecer.
De fato, poucas crianças atingem esse "último estágio" do desen-
volvimento do desenho sem terem recebido algum tipo de treino ou
instrução especial. A maioria gradativamente abandona a atividade do
desenho e, quando desenha, não chega a ultrapassar as formas próprias
do estágio que Luquet denominou realismo intelectual. Quantos de nós
mesmos dizemos que não sabemos desenhai? E, se nos vimos obriga-
dos a fazê-lo, produzimos geralmente algo que se assemelha ao dese-
nho de uma criança de 8 ou 9 anos.
Ao que tudo indica, o realismo visual equivale, de fato, a um pa-
drão estético convencional socialmente valorizado, não tendo sua
aprendizagem nada de natural. A partir de determinada idade, a criança
já não se contenta com seu desenho, como aponta Vygotsky. Seja por
não conseguir corresponder aos padrões socialmente valorizados, seja
por já não ser suficiente para atender às necessidades expressivas da
criança, o desenho acaba por ser abandonado.
A partir de certo momento, torna-se fundamental a aprendizagem
de técnicas, pois é apenas quando a criança ou o adolescente passam a
conhecer as diferentes técnicas e os diversos padrões estéticos consti-
tuídos culturalmente que sua própria habilidade poderá continuar a se
desenvolver, ajudando-a a expressar sua visão de mundo.

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