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NIETZSCHE NO

PARAISO
Roteiro de Coelho De Moraes pautado sobre Nietzsche e Gerald Thomas e Grotowski
Persona MULHER 1 / MULHER 2 / HOMEM / O SENHOR
1.

CENA 1
EXT. TARDE CAINDO / abre com paisagem / se possível um pano
vermelho que balança com o vento

MULHER 2
amarrada em um poste / triste / roupas esfarrapadas / repete
várias vezes em tons diferentes

Eu não quero ficar magoada.


Eu não quero ficar magoada.

CENA 2
EXT. NOITE. LUAR DENSO
centro de um jardim ou estrada de terra / luz de lua e
azul profundo / Mulher 1 treme / está ajoelhada ou de
cócoras / a seu lado jaz sua mala de roupas e uma bacia com
água onde ela mexe com a mão, fazendo rodopios. A mulher
que está observada para a plateia se volta para a plateia e
vem aos gritos se aproximando. A plateia pode surgir no
primeiro plano, vindo de trás da câmera no formato de um
coro grego.

MULHER 1
Para onde foi Deus?

PLATEIA
Já lhe direi! Nós o matamos —
você e eu.

A MULHER 1 procura no em torno a origem das vozes.

Somos todos seus assassinos!

MULHER 1
Assustada.
A Plateia vem surgindo passo a passo.
A MULHER 1 sempre atenta.

Mas como fizemos isso?


Como conseguimos beber inteiramente o mar?
Quem nos deu a esponja para apagar o
horizonte? Que fizemos nós, ao desatar a
terra do seu sol? Para onde se move ela
agora?
Para onde nos movemos nós?
Para longe de todos os sóis?
Não caímos continuamente?

1
2.

Para trás para os lados, para a frente,


em todas as direções?
Existe ainda ‘em cima’ e ‘embaixo’?
Não vagamos como que através de um nada
infinito?
Não sentimos anoitecer eternamente?
Não temos de acender lanternas de manhã?
Não ouvimos o barulho dos coveiros a
enterrar Deus?
Não sentimos o cheiro da putrefação divina?

PLATEIA
Ao fundo, por detrás da mulher, andando pela estrada vem um
HOMEM, carregando sua mala, enquanto rola a fala.

Também os deuses apodrecem! Deus está morto!


Deus continua morto! E nós o matamos!
Como nos consolar,
nós assassinos entre os assassinos?
O mais forte e mais sagrado que o mundo até
então possuía sangrou inteiro sob os nossos
punhais — quem nos limpará este sangue?
Com que água poderíamos nos lavar?
A grandeza desse ato não é demasiado grande
para nós?
Não deveríamos nós mesmos nos tornar deuses,
para ao menos parecer dignos dele?
Nunca houve um ato maior...
quem vier depois de nós pertencerá,
por causa desse ato,
a uma história mais elevada que toda a
história até então já construída!

Enquanto o Homem se aproxima a plateia se retira.


HOMEM com sua mala / observa atentamente a MULHER 1.
HOMEM se aproxima e afaga os cabelos da Mulher 1.
Ríspido a puxa para si.

HOMEM
O que você quer?
Eu não represento o teu sonho?
Não sou eu o ideal que você deseja na vida
real?

MULHER 1
Sempre tensa.
Olhar um tanto desvairado.

2
3.

Não!
Eu só vim me divertir.
Você tem as respostas?

HOMEM
Por que não me fala da tua felicidade?

MULHER 1
Por que não me faz outra coisa se não me
olhar?

HOMEM
Isso acontece por que esqueço sempre o que
pretendo responder.

MULHER 1 se levanta e olha além como se procurasse a


plateia.

Nada vive que seja digno de teus ímpetos...


a terra não merece um suspiro.
Dor e aborrecimento. Assim é o nosso ser.
O mundo é lama, nada mais que isso.
Fica tranquila.

MULHER 1
Homem e Mulher 1 andam seguindo a estrada.
Caminham até uma casa.

De fato, tudo o que nasce merece


desaparecer. É por isso que seria
preferível que nada nascesse.
Você tem as respostas?
Mas, cuidado!
Aquele que destrói as ilusões em si mesmo e
nos outros, será punido pela natureza que
é...

HOMEM/ MULHER 1

... o mais severo dos tiranos.

HOMEM
Retira-se para dentro da casa.

Tenho sono.

3
4.

MULHER 1
Segue Homem.

É quase certo que acabará dormindo.

HOMEM
Estou cansado.

MULHER 1
Quem tem sono acabará dormindo.
Pode ser uma benção.
A realidade some.

MULHER 1 inspeciona objetos sobre a mesa da sala.

Mas, não durma ainda.


Há muita coisa para dar nome neste jardim.
Não conheço nada do que vejo.

HOMEM
Me deixa dormir.

MULHER 1
Quem tem sono acabará dormindo.
Pode ser uma benção.

HOMEM / MULHER 1
A realidade some.

Repentino barulho ao fundo / Homem e Mulher 1 se precipitam


para segurar a porta da sala / do lado de fora forçam a
entrada / com o barulho há fusão com imagem d’O SENHOR DEUS
ou vários deuses de várias religiões / após a calmaria
depois de muita luta para manter a porta fechada / retornam
à cena / suspeitosos quanto ao resultado / atentos. Então
na calmaria a porta se abre facilmente. Só vemos a maçaneta
girar e ouvimos o som de abertura. Fica uma fresta. MULHER
2 entra na casa carregando uma mala / deixa a mala de lado
/ vem observar o casal. Olha um por um.

CENA 2
MULHER 1 e HOMEM cantam a canção / felizes / olham-se –
PAMÉ DAWORA é a canção que lembre africanismos / pegam
cipós ou cordas. MULHER 2 vem com a mala / anda com passos
rápidos e para e olha / repete esse movimento várias vezes
trocando de canto na estrada, em ações paralelas no plano

4
5.

visual com canto e dança de Homem e Mulher 1 / HOMEM E


MULHER 1 a recebem / puxam-na pela mão / detalhe-se
encontro de mãos / entrelaçam os dedos / reconhecem-se
hominídeos / e a empurram confortavelmente de um lado para
outro / MULHER 2 obedece aos movimentos / deixa-se levar
nos movimentos que fazem enquanto cantam. / Rolam, com ela,
pelo chão, os três... observar e aplicar signos da terra
nos planos da cena.

HOMEM
Rola para o lado, exausto, um tanto contente

A vantagem de ter péssima memória...


é divertir-se muitas vezes com as mesmas
coisas boas como se fosse a primeira vez.

MULHER 2
Grita, não muito contente

Não quero ficar magoada!

HOMEM
Arfa.

Aquilo que se faz por amor...


está sempre além do bem e do mal.

MULHER 1
Que é o amor?
Do que é que você está falando?

MULHER 2
Grita.

Não quero ficar magoada!

HOMEM
Há sempre alguma loucura no amor.
Mas há sempre um pouco de razão na loucura.

MULHER 1
Clichês... você fala por clichês.
O amor pode causar a minha morte...
Aquilo que não provoca minha morte...
faz com que eu fique mais forte.

MULHER 2

5
6.

Grita.
Não quero ficar magoada!

MULHER 2 se levanta e está tonta / desequilibra-se.

MULHER 1
Grita.

Não há fatos eternos!

repete várias vezes intercalando com a fala do HOMEM.


Mulher 2 repete enquanto bamboleia: - Não quero ficar
magoada.

HOMEM
... não há verdades absolutas!

repete várias vezes intercalando com MULHER 1

MULHER 1
Eu posso ser sua amiga, com facilidade.
Mas, para manter essa amizade,
é preciso uma pequena antipatia física.

HOMEM
Seja você mesma.
Não inventa outra pessoa.

MULHER 1
Eu sou isso o que você vê?
Não acredita?
Sou sempre outra pessoa...
A cada instante.

HOMEM
Bate as costas de uma mão na palma da outra.

As convicções são as inimigas mais


perigosas da verdade...
prefiro as mentiras.

MULHER 1
Você tem as respostas?

MULHER 2
Grita.

6
7.

Não quero ficar magoada!

HOMEM E MULHER 1 voltam para a varanda e recomeçam o cantar


Pamé Dawora / MULHER 2 anda claudicando e cai nos braços
das gentes da plateia eu a acaricia voluptuosamente /
Mulher 2 ri tonta / HOMEM e MULHER 1 cantam / aos poucos
MULHER 2 sai do grupo plateia e se junta a Homem e Mulher 1
no canto PAMÉ DAWORA e se esfrega neles como se estivesse
na plateia.

CENA 3
MULHER 2 cansada / tonta / vai para o chão / HOMEM e
MULHER 1 tomam Mulher 2 / cada um de um lado / carregam
Mulher 2 com para dentro da casa / MULHER 2 é dobrada /
desdobrada / carregada / passos e pausas entremeados de
texto, vão derrubando os móveis da casa. Ouve-se de fora o
canto Pamé Daworo executado pelo grupo plateia.

HOMEM
Quanto mais nos elevamos...

Executam passos definidos e marcante

MULHER 1
...menores parecemos aos olhos...

Executam um passo definido e marcante

HOMEM
... daqueles que não sabem voar.

Executam um passo definido e marcante


MULHER 1
... A multidão não sabe voar.

Executam um passo definido e marcante.


As quatro frases acima são ditas de modo forte e três
vezes / num crescendo / Em seguida depõe MULHER 2 num pau
de arara ou artefato de tortura / braços envolvendo a
trave / Mulher 2 de joelhos como num pelourinho.

MULHER 2
Não quero ficar magoada.

Pela janela vemos que a plateia se aproxima.


Lentamente aparecem e olham pela janela.

7
8.

MULHER 1
A multidão vem assistir...
e nos seguirá por todo o canto.

HOMEM
A plateia vem ver aquilo que não tem
coragem de fazer.

MULHER 1
A multidão e as platéias são covardes,
pois preferem o falso.

HOMEM
Preferem as comédias e as ficções.

MULHER 1
As multidões não suportam a realidade.

MULHER 2
Não quero ficar magoada.

HOMEM
Dá um tapa na bunda de Mulher 2.

O verdadeiro ser humano...


quer duas coisas: perigo e jogo.

MULHER 1
Eu quero o jogo mais perigoso.

HOMEM
A mulher sempre quer o jogo mais perigoso.

Homem e Mulher 1 caminham por trás de MULHER 2 e lhe dão


vários tapas na bunda como forma de tortura / isso enquanto
falam. A plateia exulta a cada tapa e grita lá fora.

MULHER 1
É no amor que temos mais probabilidades de
ver as coisas tal como elas NÃO são.

HOMEM
Já eu prefiro a má consciência do que
viver com má reputação.

8
9.

MULHER 2
Quem luta com monstros...
deve tomar cuidado para que não se
transforme também em monstro.

MULHER 1
Você tem as respostas?
HOMEM
Temos a arte para não morrer da verdade.

MULHER 1
Temos arte.
Não precisamos da verdade.

Homem e Mulher 1 saem para um quarto mas só podemos ouvir /


sons de roupas retiradas e abraços e beijos e coito /
MULHER 2 repete a frase abaixo, com pausas e modulações,
certamente Mulher 2 percebe o que Homem e Mulher 1 fazem lá
dentro, quantas vezes forem necessárias até a reentrada de
HOMEM - MULHER 1

MULHER 2
Não quero ficar magoada.

CENA 4
MULHER 1 vem vestida de anjo / sobe numa cadeira / óculos
exagerados, lentes grossas, estranhos / óculos de proteção
contra acetileno / vestido longo e branco acetinado / HOMEM
se aproxima como se puxasse um carrinho invisível que
range muito, de modo irritante / HOMEM anda de um lado
para o outro, leva e trás objetos que deposita com o
carrinho / Aproxima-se de MULHER 1 / toca em seus vestidos
/ massageia as pernas de MULHER PRIMA / beija seus braços /
MULHER 1 entremeia Sins e Nãos à vontade, enquanto HOMEM
fala:

HOMEM
Ora, ora, o que termos aqui?
Olá bela mulher.
O que é que você sozinha por aqui?

MULHER 1 sorri agradecida.


HOMEM procura qualquer coisa pela roupa de Mulher 1.
Amarrota bem a roupa

HOMEM

9
10.

Eu acredito que você tem alguma coisa que


me pertença, não é?
Não é?
Se você me der o seu tesouro...
eu te dou um presentinho.

Da janela, o burburinho da plateia que se delicia com a


cena.

Sim... a última tecnologia.

HOMEM tenta beijá-la.


MULHER 1 não deixa.
Movimentos bruscos.

Ouve! Ouve!
Você tem que aceitar o meu presentinho.

MULHER 1
Mostra para mim.

MULHER 2
Ei!
Ninguém vai me tirar daqui?

Homem e Mulher 1 olham para MULHER 2

HOMEM / MULHER PRIMA


Grito.
Não!

A porta está forçada.


A plateia foge. Vemos pela janela.
Homem e Mulher 1 correm para segurar a porta.
Luta para não permitir que a porta se abra.

HOMEM
Na vingança e no amor...
a mulher é mais bárbara do que o homem.

MULHER 2
Olha bem pra mim.
Você acha mesmo?
Tenho cara de vingativa?

HOMEM / MULHER PRIMA


Lutam contra a porta.

10
11.

Cala essa boca!

MULHER 1
Você está acabando com nosso clima.

HOMEM
Se você não fosse uma perdedora saberia da
resposta.
Nenhum vencedor acredita no acaso.

MULHER 2
Pode acreditar...
Não sou vingativa...
Isso quer dizer que eu valho alguma coisa!

MULHER 1
O mais valoroso dentre todos nós...
raras vezes tem o valor de afirmar tudo o
que sabe.

A porta se aquieta.
Lentamente Homem e Mulher 1 retornam para o centro da sala.
Mulher 1 para HOMEM.

Mostra o meu presentinho, vai.

HOMEM
Se você fosse uma pessoa inteligente já
teria se afastado de mim.

MULHER 2
Vocês podem me tirar daqui...?
ou então acabo no sono.

HOMEM
Abençoados os que têm sono,
pois não tardarão em dormir.

MULHER 2
Eu odeio vocês dois.

MULHER 1
Nunca odiamos aos que desprezamos.

HOMEM
Odiamos aos que nos parecem iguais...

11
12.

ou superiores a nós.

HOMEM / MULHER 1
Você tem as respostas?
Se não tem... cala essa boca.

MULHER 2
Não quero ficar magoada.

HOMEM - MULHER 1 se encaminham para detrás da Mulher 2,


levantam-lhe a sai ou abaixam as calças para observarem sua
bunda. Mulher 1 pega um porrete ou console sexual e mede o
console como se faz para fazer um desenho. O Homem se afaga
no pênis espreitando a bunda.

MULHER 2
Eu não quero ficar magoada.

Homem e Mulher 1 retiram MULHER 2 do pau-de-arara ou


pelourinho e a depositam no chão / MULHER 2 se senta /
Homem e Mulher 1 a afagam e cantam a canção PAMÉ /
repentinamente se levantam e gritam a música, muito forte,
como se acusassem Mulher 2 / MULHER 2 se assusta / dobra
as pernas / segura as pernas / tapa os ouvidos /
repentinamente se levanta / Homem e Mulher 1 param e ficam
a olhar / MULHER 2 vai para a varanda e grita bem agudo /
mãos na cabeça / Lentamente HOMEM se aproxima / MULHER 1
passa a procurar alguma coisa no chão, de gatinhas /
encontra, olha e joga fora / HOMEM põe a mão na cabeça de
MULHER 2 / gira várias vezes, delicadamente, a cabeça de
MULHER 2 / levanta-lhe um braço que cai / levanta o outro
que cai / beija cada uma das mãos / afaga o rosto de MULHER
2 / beija sua boca / MULHER 2 se dobra para frente /
HOMEM a levanta / empurra MULHER 2 / que resiste, mas,
vai à frente, e, esse movimento de empurrar é repetido
várias vezes / repentinamente MULHER 1 vem para a varanda e
puxa MULHER 2 / há uma espécie de cabo-de-guerra ENTRE
Homem e Mulher 1 com MULHER 2 no centro / a roupa de
MULHER 2 tem que esticar bastante pois será muito puxada /
HOMEM e MULHER 1 acabam cada um para um lado com pedaços da
roupa de Mulher 2 / Homem sai para a cozinha / MULHER 1
toma de maçãs que estão em alguma botija / descasca as
maçãs e dá para MULHER 2 que as come / parecem amigas /
lentamente MULHER 2 dorme / enquanto isso HOMEM entra
usando asas / HOMEM e MULHER 1 batem suas respectivas asas
sobre MULHER 2 / HOMEM e MULHER 1 riem desesperadamente /

12
13.

pulam como macacos de um lado para o outro / macacos


batendo as asas / MULHER 2 acorda repentinamente /

MULHER 2
Não quero ficar magoada.

Fala três vezes cada, vez mais forte até o grito.

Mulher 2 vai toma de uma bacia na cozinha / enche com água


/ Homem e Mulher 1 continuam seu bater de asas / Mulher 2
carrega para a bacia para a sala / HOMEM e MULHER 1 param
de bater asas, observam / MULHER 2 deposita a bacia no
centro do palco / inicia uma oração para a água / levanta e
abaixa os braços, lentamente / MULHER PRIMA se aproxima.

MULHER 1
Odeio as almas estreitas,
sem bálsamo e sem veneno...

HOMEM
... feitas sem nada de bondade...
e sem nada de maldade.

MULHER 2
Para HOMEM e MULHER 1 num grito repentino.

Maior punição nos atrai as nossas virtudes.

HOMEM
Cala tua boca!
Você tem as respostas?

MULHER 1
Pensa bem!...
Nossos pensamentos são as sombras de nossos
sentimentos...

HOMEM
Pensa bem...
Sentimentos sempre mais obscuros,
mais vazios, mais simples.

MULHER 2
Para HOMEM e MULHER 1 num grito repentino.

Não quero acreditar em vocês...


Há sempre algo de demência no amor.

13
14.

MULHER 2 passa a lavar o rosto, lentamente, amorosamente,


mas, a cada frase de HOMEM e MULHER 1 ela reage gritando
rosnados.
HOMEM / MULHER 1
Olham-se e entram num acordo, como se lembrassem de um
código social, e, gritam várias vezes nada amorosos, mais
mecânicos do que amorosos.

Nós amamos você. Eu amo você.

HOMEM e MULHER 1 começam a gritar um para o outro ‘EU AMO


VOCÊ!” até a frase perder o sentido por causa da repetição
exaustiva / MULHER 2 se mantém rosnando e lavando o rosto /
HOMEM e MULHER 1 vão perdendo a altura normal e se
ajoelhando, um na frente do outro. Lutam de joelhos,
gritando e gesticulando, grita, que se amam até se
abraçarem e caírem ao solo / MULHER 1 se levanta e vai
pegar um grande livro / caminha com o livro pelo palco.

MULHER 1
Nós sabemos mentir com a boca,
mas os gestos dirão a verdade.

HOMEM
Perdoa!
O amor perdoa mesmo o desejo do ser amado.

MULHER 1
Não sou eu quem perdoa.
É teu pai quem pode perdoar.

HOMEM
Mesmo que eu tenha sido criado
e me veja em tudo a todo tempo...
tudo evolui;
não há realidades eternas:
tal como não há verdades absolutas.
Você tem as respostas?

MULHER 1
Talvez a resposta seja a criação e
evolução. Tudo junto. Tudo ao mesmo tempo.
Sem nenhuma relação moral.

Pausa.

14
15.

Pergunta pro teu pai...


ele explicará tudo direitinho.

HOMEM
Não posso acreditar num pai...
que deseja ser louvado o tempo todo.

MULHER 1
Quem tem medo louva.
Não te encha de ar:
a menor picada te esvaziará todinho.
Segura tua onda, rapá.

Mulher 1 sai da sala.


O Homem observa Mulher 2 que rosna.

CENA 5
EXT. TERRENO. NOITE
A plateia coro grego se reorganiza.

PLATEIA
Nem Moral, nem Religião têm qualquer ponto
de contato com a realidade.

Gritam aleatoriamente.

Deus’, ‘alma’, ‘eu’, ‘espírito’, ‘livre


arbítrio’, ‘não-livre arbítrio’, ‘pecado’,
‘salvação’, ‘graça’, ‘punição’, ‘remissão
dos pecados’. ‘arrependimento’, ‘peso na
consciência’, ‘tentação do demônio’,
“creio”, ‘presença de Deus’; ‘reino de
Deus’, ‘o juízo final’, a ‘vida eterna’,
‘jardim´, ‘eden’, ‘mundo lá fora’.

Junto a essa gritaria há música ritmada e pulsante.


Muita percussão afro.
Cada atriz/ator da plateia desenvolve seu movimento
aleatório e livre / então vem o cansaço. Diminuem a
velocidade de fala e movimento até se deitarem / ainda
deitados mantêm as últimas repetições do texto até o
silêncio total.

CENA 6
INT. SALA. NOITE

15
16.

MULHER 2
Para de rosnar.
Observa a janela como referência ao silêncio de fora.
Mulher 1 retorna sem asas.

A vantagem de ter péssima memória...


é divertir-se muitas vezes com as mesmas
coisas boas como se fosse a primeira vez.

MULHER 1
Eu descobri, depois de muita observação...
que também na demência há algo de razão.

Uma caixa é lançada na sala / deve vir do nada / Homem


observa atônito / MULHER 1 e MULHER 2 tomam da caixa /
MULHER 1 abre / puxa de dentro uma máscara grande como uma
cabeça / pode ser uma característica máscara grega / Mulher
1 põe a máscara em MULHER 2 / MULHER 1 ri de Mulher 2, sem
emitir som, tapando a boca.

MULHER 2
O inimigo...
O inimigo mais perigoso...
que você poderá encontrar...
será sempre você mesmo.

Homem permanece atônito.


Mulher 1 para rir.

Mas também na demência há algo de razão.


Viver quer dizer ser cruel...
e implacável...
contra tudo o que em nós se torna fraco e
velho.
Já dei tudo.
Nada me resta de tudo quanto tive,
exceto a esperança!
Quando amei,
queria que nossos defeitos permaneçam
ocultos,
não por vaidade,
mas porque o amado não deve sofrer.
Eu sei...
aquele que ama deseja aparecer como um
deus, mas, não é por vaidade.
É por carência...
O medo de perder a pessoa amada.

16
17.

Eu não quero ficar magoada.


Eu também quero a volta à natureza,
voltar ao jardim.
Mas não pode significar ir para trás,
e sim ir para a frente.
Vocês tem as respostas?
Eu tenho perguntas,

MULHER 1 / ríspida / toma da mala que Mulher 2 trouxera,


com e repetidamente põe a mala no chão, retira as roupas da
mala / Põe de lado / cheira uma e outra roupa / fecha a
mala / Mulher 2 faz que vai sair do lugar / retorna / abre
a mala / põe todas as roupas de volta / cheira uma e outra
/ fecha a mala e via sair e repete toda a cena várias vezes
sempre aumentando a velocidade) / MULHER 2 , com a máscara
/ caminha pelo segundo plano / tristemente / balançando a
cabeça/ paralela a essas cenas da mala / HOMEM toma de
outra mala e sobe e desce escadas em terceiro plano,
carregando a mala, com muita dificuldade. Repetidamente.
Então irrompe a cena da porta. Dessa vez os três seguram
para que a porta não se abra. Luta forte e intensa. Até que
tudo silencia.
Os três Vão para a varanda, observados pela plateia que se
levanta do torpor., Homem, Mulher 1 e Mulher 2 fazem o
seguinte movimento: pernas abertas / em pé / levantam o
braço fazendo círculos no alto, com os braços, e vocalizam
como um mantra 4 ou 5 vezes:

HOMEM / MULHER PRIMA


Aspirando profundamente.
Não pretendo ser feliz,
mas verdadeiro(a).

Repentinamente, trovões e barulho de chuva, HOMEM , MULHER


1 e MULHER 2 se assustam, correm de um lado para o outro /
fazem sinal para taxi ou ônibus imaginários, fazem sinal
para carona, a plateia faz o mesmo / a Plateia param sob
algum beiral imaginário / de vez em quando correm para o
meio da rua imaginária para fazer sinal ao taxi / voltam /
sob o beiral / retiram de si os pingos de chuva /

VOZ OFF
Voz divina.

Vocês sabem as respostas?


Elenco todo, plateia e atores negam, se abraçam, e têm
medo. Fica a escutar, um grudado no outro.

17
18.

CENA 7
Enquanto se desenvolve o texto falado, a plateia toma das
malas que estão escondidas no mato / pegam guarda-chuvas,
cada um de uma cor forte / protegem-se da chuva / tentam
correr / o relâmpago os assusta / grande movimento /
tentam, escapar / quando conseguem a chuva para / todos com
guarda-chuva na mão / se afastam cobertos pelo guarda chuva
/ assim cobertos / enquanto isso MULHER 1 se deita sobre
uma mesa na sala como morta / HOMEM se esconde atrás da
mesa na sala / MULHER 2 sai para o terreno olhando os céus
que ainda relampagueiam e trovejam.

VOZ OFF
Qualquer grande pessoa... possui força...
possui o tempo...
milhares de segredos do passado saem de
seus esconderijos para se iluminarem à sua
luz. Ninguém pode prever o que acontecerá.
O passado talvez ainda continue por ser
explorado!
Necessitamos ainda tantas forças!
Precisamos parar!
Precisamos pensar!
Precisamos refletir sobre o que pensamos!
Precisamos ter paciência com a música,
com a arte, com o teatro.
Hoje a pessoa é pobre,
mas não porque lhe tenham tirado tudo,
mas, sim pela recusa de tudo.
Que lhe importa?!
Os pobres compreendem mal sua voluntária
pobreza.
Aceitam a pobreza. Não reagem.
Mesmo os pobres de espírito.
Uma visita ao hospício mostra que a fé não
prova nada.
Mas devo dizer que sou nacionalista,
admito, mas admiro a Palestina,
e toda aquele gente que eu mandei matar.
Ou uma das minhas imagens mandou matar...
e, qualquer filho desta bela nação;
uma vez, me perguntaram, o que eu gostaria
de ser, e eu respondi:
Gostaria de ser Palestino.
A essência da felicidade é não ter medo.
Na verdade, o único cristão morreu na cruz.

18
19.

Rufar do tambor.
O Homem observa a Mulher 1 sobre a mesa.

A mulher que ele ama.


E eu sou seu pai.
No meio dos animais todo o parentesco,
amigos e toda a família da mulher que ele
ama. Como se vê, ela está em boa companhia.
Ela está morta como se fugisse, ou
melhor... por ter fugido do paraíso... está
morta.

HOMEM se ergue, detrás da mesa, com um serrote e chapéu de


piloto ou com protetor de orelhas, o que for pior e
ridículo.

Ele não.
Ele não tem ninguém.
Nem mesmo um macaco, ou um cachorro.
HOMEM se enternece por MULHER 1 / deixa o serrote / olha
para ela com pena / passa sua mão por todo o corpo de
MULHER 1 que não se move / HOMEM está triste. Mulher 2
aparece na porta, molhada.

Nosso herói é um ator.


Um político. Um coreógrafo. Um filósofo.
Um musicólogo.
Um apreciador de uma bela pincelada,
mas, neste momento,
atravessa uma crise severa.
Finge que é dor a dor que nunca sentiu.
Como poderá saber se é dor deveras?
Por essa razão a pessoa se torna artista.

HOMEM toma de uma imensa tela de pintura / carrega a tela


para uma posição na sala / põe ao fundo / e vai pintá-la.
Pega potes de tinta. Livremente. Depois de um tempo MULHER
2 se aproxima, observa a Mulher 1, observa a tela. HOMEM
toma do serrote e a corta / Espirra sangue sobre a tela /
HOMEM toma aquilo como o golpe de mestre sobre a tela.
Mulher 2 cambaleia sobre a tela. Homem usa Mulher 2 como
pincel.

Ele tomou da mulher que estava à mão.


A mulher que saiu da semente que os livros
chamaram costela.

19
20.

A mãe da humanidade. Isso.

MULHER 2 , como um boneco, gira e roda nas mãos de HOMEM /


deitam-se / giram e rodam no chão / entra intensa música,
que serão trechos de cada autor citado.

Escapar pela música.


Fugir para outro mundo através da música e
dos sons.
Deixa ver.
Beethoven.
Não! Beethoven não. Muito poético.
Poético demais e poetas deixam lágrimas...
lágrimas de raiva.

Pausa.

Schoemberg! Sim!
Não, não.
Inteligente demais e intelectuais deixam
pistas e não servem para coisa alguma.

Pausa.

Wagner... isso... Wagner.


A obra de arte total... total escapismo.
Música. Luz. Som.
Não!
Wagner destrói as almas pobres e pequenas.
Wagner deixa danos demais.

MULHER 1 começa a se mover da morte, muito lentamente / se


eleva até ficar em pé como se buscasse uma luz no céu.

Ela tentava representar a morte da Musa.


Ela ainda busca seu verdadeiro marido.
Mas, resolveu interromper a metáfora.
Quem era ela? Quem era ela?
Quem era ela?

MULHER 1 toma de um chicote, após se erguer sensualmente, e


passa chicotear por todo lado. HOMEM se aproxima como um
cãozinho / HOMEM se ergue para beijar os pés da Mulher 1 /
ENTÃO...
A porta se abre num estrépito dramático.
Turbulências e trovões.

20
21.

Um ANCIÃO adentra a sala e senta-se à ponta da mesa, sob a


observação de Homem em Mulher 1. ANCIÃO passa a ouvir HOMEM
/ MULHER 1 cessa o chicotear.

HOMEM
Mestre?
É o senhor?
O senhor trouxe as respostas?

O ANCIÃO se mantém calado / olha o Homem, de vez em quando


/ Vê a Mulher 1 / remexe numa mochila velha que trouxe.
Procura algo.

É o Senhor...?
mas, não é o Deus vingador,
da propensão universal ao pecado?
da predestinação pela graça e do perigo de
uma condenação eterna...,
não é?

Pausa.
Homem fica mais opinativo.

Tal Deus...
seria um sinal de fraqueza de espírito...
e seria falta de caráter não se fazer
padre, apóstolo, evangélico ou missionário,
e, não trabalhar com o temor dos fiéis...
pobres fiéis que desejam a salvação.

Pausa na fala.
O ANCIÃO procura algo na mochila.
Acha uma lousinha de criança com giz.

Seria absurdo perder assim de vista a


vantagem eterna em troca da comodidade
temporária.

Pausa.
O ANCIÃO para de escrever.
Vai á mochila, retira um lenço.
Assoa o nariz, estrepitoso.
Sem olhar para o Homem volta a escrever.
Homem fica mais comedido,
mas vai crescendo, em ênfase, no texto.

Senhor, me ouve...

21
22.

Supondo que tenha fé,


o cristão que encontramos nas ruas a cada
dia é uma figura lamentável,
um homem que, realmente,
não sabe contar até três...
e que, de resto,
justamente por causa de sua incapacidade
mental de calcular,
não mereceria ser castigado tão duramente
como lhe promete o cristianismo.

O ANCIÃO aprova o seu escrito. ANCIÃO olha o HOMEM e


MULHER 1. HOMEM se mostra mais animado e se aproxima.
ANCIÃO leva o corpo um pouco para trás, observando.

HOMEM
Senhor... estamos juntos nessa?
Você sabe as respostas?
Todas?

A plateia se aproxima das janelas.

Eu preciso falar...
ainda hoje na inócua interpretação cristã-
moralista que relaciona os eventos pessoais
à glória de Deus e salvação da alma...
... essa tirania, esse arbítrio,
essa extrema e grandiosa estupidez educou o
espírito;
ao que parece, a escravidão é,
no sentido mais grosseiro ou no mais sutil,
não sei mais, a escravidão é o meio
indispensável para a disciplina e cultivo
espiritual...
Somos muito injustos com Deus.
Não Lhe permitimos nem pecar.

O ANCIÃO faz sinal que precisa de um lápis / HOMEM, sem


parar de falar, lhe dá o lápis / o ancião começa a escrever
num papel amarrotado que cata do chão / de vez em quando o
ancião ri do HOMEM ou para o Homem.

HOMEM
Não concorda?
O Senhor não concorda?
Ó Senhor... não concorda?

22
23.

HOMEM e ANCIÃO riem a valer / HOMEM olha para MULHER 1 como


se manifestasse que se entenderam / ANCIÃO anota.

HOMEM
Fala como se desabafasse.

Estamos criando aqui algo genial.


Somos gênios. Eu também.
Quando o raio de uma idéia genial me atinge
numa esquina qualquer eu paro. Paro na
hora!
Eu anoto.
Nós os gênios temos que anotar tudo.
A inspiração é divina...
não acontece a todo momento.
Por isso, odeio seguir alguém,
Odeio ser líder...
odeio conduzir.
Obedecer? Não! E governar, nunca!
Quem não se mete medo não consegue metê-lo
a ninguém.
Somente quem inspira medo é capaz de
comandar.
Já eu... detesto comandar a mim mesmo!
Gosto, como os animais...
animais das florestas e dos mares...
de me perder durante um tempo...
... gosto de permanecer a sonhar num
recanto encantador...
... gosto de forçar-me a regressar de longe
ao meu lar...
...atrair-me a mim próprio…
de volta para mim mesmo.

O ANCIÃO lê o que escreveu / chama o HOMEM / faz sinal


para que a platéia espere / sorri para a plateia, cúmplice
/ Homem pega as anotações / com cuidado, orgulho,
respeito, reverência, retira umas lágrimas da emoção /
levanta as anotações, procura uma luz para ler, sorri
emocionado...

HOMEM
Por favor...
Homem olha a plateia e sorri...

Escreva tudo o que falar...


não entendo o que você fala...

23
24.

não ouço nada... sou surdo!

Homem olha para o ANCIÃO, desanimado.


ANCIÃO aponta a própria orelha.

desvanece
fim

24

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