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UNIVERSIDADE DE BRASÍLIA

INSTITUTO DE CIÊNCIAS SOCIAIS


DEPARTAMENTO DE ANTROPOLOGIA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ANTROPOLOGIA SOCIAL

A COR VIGIADA:
uma crítica ao discurso racializado de prevenção ao crime

GLÊIDES SIMONE DE FIGUEIREDO. FORMIGA

BRASÍLIA, MARÇO DE 2010


GLÊIDES SIMONE DE FIGUEIREDO. FORMIGA

A COR VIGIADA:
uma crítica ao discurso racializado de prevenção ao crime

Dissertação apresentada como requisito


parcial para conclusão do Mestrado em
Antropologia Social da Universidade de
Brasília.

Orientador: Prof. José Jorge de Carvalho

BRASÍLIA, MARÇO DE 2010


GLÊIDES SIMONE DE FIGUEIREDO. FORMIGA

A COR VIGIADA:
uma crítica ao discurso racializado de prevenção ao crime
Esta Dissertação foi julgada adequada para obtenção do título de Mestre em Antropologia
Social e aprovada, em sua forma final, pela Coordenação de Pós-Graduação em
Antropologia da Universidade de Brasília.

Brasília, 16 de Março de 2010

Banca Examinadora

________________________________________________________________________

Presidente: Dr° José Jorge de Carvalho (UnB)

_______________________________________________________________________

Membro: Dr° Carlos Henrique Romão de Siqueira (IPEA)

_________________________________________________________________________

Membro: Dr° Sales Augusto dos Santos (DEX – UnB)

____________________________________________________________________

Membro suplente: Drª Tânia Mara Campos de Almeida (UCAB)


AGRADECIMENTOS

Gostaria de agradecer, primeiramente, às minhas filhas Herbatha, Ágatha e a alguém


(atualmente em meu ventre) que nem ao menos sei o nome, mas se faz tão presente e
concretizada em mim enquanto afeto, força, inspiração e movimento que me atrevo a
anunciá-la como co-autora desta obra. Obrigada a todas, pelo afeto e compreensão
incondicionais a despeito de qualquer sentido e racionalidade.
Aos meus pais Helena e Antônio e à minha irmã Gleiciane, pelo amor, presença,
companheirismo, dedicação e pela atuação enquanto avós e tia diminuindo o impacto da
minha ausência ao cuidar de meus projetos mais valiosos (minhas filhas).
Ao José Jorge de Carvalho, fonte de inspiração, insights, tranquilidade, humanidade e
senso de justiça. Um intelectual e ser humano espetacular.
Aos Doutores Sales Augusto dos Santos e Carlos Henrique Romão de Siqueira, por
aceitarem compor à banca.
Às professoras Patrice Schuch, Soraya Fleischer e a todos do grupo GEP pelas leituras,
idéias e contribuições valiosas ao texto e estrutura deste trabalho.
À Rita Segato, pelo incentivo primeiro, responsável pela minha conversão à antropologia.
Agradeço, também, a outros professores importantes na minha trajetória de mestranda em
antropologia do DAN – UnB: Christian Teófilo, Marcela Coelho de Souza, Paul Little,
Mariza Peirano, Carlos Emanuel Sautchuck, no Departamento de Antropologia, e Ângela
Almeida, no Departamento de Psicologia.
Dentre todos agradeço, especialmente, à Marcela Coelho não só pelas contribuições
teóricas valiosíssimas, mas pelo apoio e pela figura enquanto Mulher que tanto me inspirou
e me impulsionou.
À Hazel, pelas dicas valiosas e absolutamente norteadoras, pela sensibilidade e sabedoria
aguçadíssimas.
À amiga Simone Miranda, pela companhia em meio à solidão da escrita, pelas conversas
iluminadoras, pela acolhida importante na finalização do trabalho e pelo apoio emocional
de sempre.
À amiga Paula Balduino, pela energia, apoio, carinho e incentivos tão importantes para o
andamento da escrita.
À amiga Fernanda Maidana pelas leituras, insights e contribuições. Agradeço também por
me fazer acreditar no projeto da escrita sempre.
À amiga Larissa Brito, pelo companheirismo, irmandade e apoio emocional.
Às amigas Erli Helena e Sandra Freitas, pelo apoio, incentivo e com quem estou em eterna
falta.
Às amigas Nathalia e Elisa, pelo afeto e amizade tão sinceros e imprescindíveis.
Ao Claudio Vicente, pelas conversas que contribuíram para o germinar das primeiras
idéias sobre o tema e por toda a profundidade construída na trajetória de uma relação, que
testemunha um tempo bom.
Ao Tiago Eli, pelas conversas inspiradoras, pelos toques e leituras tão importantes para a
construção desse texto.
À amiga Adriana pela revisão do texto.
Aos amigos de turma: Carolina, Júlia, Diogo, Pedro, Paula, Fabíola, Larissa, Michel,
Wallison e Camila.
A todos que tive a oportunidade de dividir a experiência do mestrado, nas aulas ou na
Katacumba, principalmente: Mariana Lima, Carlos Alexandre, Marcus Cardoso, Luis
Cayón, Aina, Lilian, Yoko, Júlia, Júnia, Rogério, Erich, Valéria, Tiago Aragão, Pedro
Stoeckli, Martina, Patricia, Tatiane, Josué, Gonzalo e Dona Iracilda.
À EAPE, pelo apoio financeiro.
Aos colegas do C. Ed. 06 de Taguatinga, pelo apoio e, principalmente ao José Edilson
Rodrigues, amigo, humanitário e um grande gestor.
À Adriana e à Rosa, pelo suporte administrativo, mas, principalmente, pelo cuidado e
afeto.
RESUMO:

O presente estudo apresenta uma análise da noção de prevenção a partir de situações em


que o objetivo é a prevenção ao crime. Exploro fontes de natureza variada, observando as
interpretações que os sujeitos fazem da violência e da proposta preventiva enquanto
solução para a diminuição de crimes. Analiso o modo como discursos e práticas da
prevenção projetam-se nas relações e se articulam produzindo tecnologias e estratégias de
proteção que vão além do material – muros, alarmes, blindagem de carros etc, sugerindo
comportamentos, técnicas de identificação de sujeitos e situações potencialmente
perigosas, a fim de poder evitá-las ou modificá-las. A partir desse comportamento,
multiplicam-se as regras de evitação e a exclusão, produzindo práticas, relações, bem como
diferenças hierarquizadas e identidades. Sugiro que o princípio da prevenção gira em torno
de possibilidades evitáveis e que tal premissa não só parte de uma realidade ―X‖, reagindo
a ela, mas é produtora de comportamentos de evitação, exclusão e de mais violência.
Observando a incidência de um modelo de comportamento entendido como ideal – o
preventivo – e de práticas justificadas mediante um contexto de violência, afirmo que este
comportamento traduz uma ―metonímia de expansão da violência‖ – termo cunhado pelo
antropólogo José Jorge de Carvalho – e que os elementos que acionam a evitação e a
exclusão de determinados sujeitos tidos como suspeitos, bem como a identificação de
outros compreendidos enquanto prováveis vítimas, estão inscritos em seus corpos enquanto
signos sociais. Tais signos são contextuais – espaciais, históricos, circusntanciais –
apresentando inclusive especificidades individuais, mas também, e principalmente por
mim enfocados, estruturais, denunciando poderes e saberes históricos e naturalizados de
constituição de relações e sujeitos. Mediante a grande quantidade de signos e marcas
estruturais que apresentam esses sujeitos suspeitos e prováveis vítimas, escolhi trabalhar
com um deles, especificamente, a raça/cor como signo de suspeição ou vitimização. Para
tanto, utilizo como uma das fontes do trabalho a descrição de um caso, veiculado
midiaticamente, em que um sujeito negro foi acusado, no estacionamento do hipermercado
Carrefour de uma grande cidade (São Paulo), de roubar seu próprio carro.
Palavras chave: violência, medo, prevenção, exclusão social, identidades e racismo
ABSTRACT:

The following study presents an analysis of the notion of prevention from situations in
which de goal is crime prevention. I explore several sources, observing the interpretations
that subjects do of violence and of the preventive proposal as a solution to crime reduction.
I analyze how discourses and practices in prevention are projected in relationships and
produce technologies and strategies of protection which go beyond walls, alarms, armored
cars and so on, suggesting behaviors, potentially dangerous situations and subject
identifications, in order to avoid or modify them. From these behaviors rules of exclusion
and avoidance multiply, producing practices, relations, as well as identities and
hierarchical difference. I suggest that the bases of prevention treat avoidable possibilities
and that such an assumption comes not only from an ―X‖ reality, reacting to it, but is
producer of avoidance behaviors, exclusion and more violence. Observing a model of
behavior understood as ideal – the preventive one – and of justified practices in a context
of violence, I state that this behavior translates a ―metonymy of violence expansion‖ – an
expression created by the anthropologist José Jorge de Carvalho – and that the elements
which trigger avoidance and exclusion of certain subjects regarded as suspect, as well as
the identification of other subjects understood as potential victims are inscribed on their
bodies as social signs. Such signs are contextual – spatial, historical, circumstantial –
showing individual specificities, but also, and mainly by me emphasized, structural,
showing historical and naturalized knowledge of relationships and subjects. Through the
great deal of structural marks and signs that these suspect subjects and potential victims
show, I chose working with one of them, specifically, race as a suspicion or victimization
sign. For this, I use as one of the sources of this paper the description of a case, shown in
the media, in which a black subject was accused, on the parking lot of a supermarket in
São Paulo, of stealing his own car.
Key words: violence, fear, prevention, social exclusion, identity, racism.
SUMÁRIO
Introdução 9
Em busca de um outro olhar sobre a prevenção e sobre as relações sociais e
intersubjetivas brasileiras 14
Cap. I: Medo/Insegurança, prevenção, evitação/exclusão, identidades
deterioradas: Violência cotidiana e a teia metonímica de reprodução da
exclusão. 19
1.1 - Medo/insegurança e suas implicações no âmbito da violência 23
1.2 - Sobre a ambivalência da noção de prevenção: o ―se‖, as possibilidades, e a
ação estratégica 27
1.3 - Evitação/exclusão e as construções identitárias 31
1.4 – A expansão metonímica da violência e a configuração de identidades societais
na associação entre colonialidade e modernidade 33

Cap. II: Novas tecnologias de segurança: identificação de suspeitos,


informação, técnica e treino corporal no discurso da prevenção ao crime. 41
2.1 - O desenrolar dos eventos 47
2.2 - A violência como espetáculo e o discurso ambíguo da prevenção pela educação:
O caso do encerramento do curso Proerd no Distrito Federal. 48
2.3 - Violência: a individualização dos problemas e a busca por solução na habilidade
corporal Krav Maga e autodefesa via online 56
2.4 – Considerações parciais 67

Sobre corpos, técnicas, relações e signos: os hábeis, os candidatos a vítimas e


potenciais suspeitos 72

Cap. III: Dolo anunciado: A cor como signo de suspeição - 80


3.1 - Raça/cor como elemento estruturante da suspeita: Descrição do caso Januário 83
3.2 - A estrutura colonializada/moderna e a História das relações racializadas no 90
Brasil.
3.3 - Percepções a flor da pele: auto e alter caracterizações a partir da cor da pele 99
Considerações finais 103

Referências Bibliográficas 106


INTRODUÇÃO

As máximas ―um homem prevenido vale por dois‖ ou ainda ―é melhor prevenir que
remediar” tornam-se cada dia mais atuais, enquanto ditos populares, que informam e
traduzem um princípio ordenador de condutas consideradas ideais. Direcionada para
diferentes segmentos sociais, essas condutas se voltam para a resolução de problemas dos
mais diversos, dentre eles os que dizem respeito à violência e as sensações que ela
provoca. O discurso1 preventivo tem sido em seu enunciado propalado com um sentido
absolutamente positivado e inovador. Adquire esse sentido, principalmente, na busca de
legitimidade nos princípios, preocupações e diretrizes dos Direitos Humanos2. Os projetos
que prevêem ações preventivas de segurança são entendidos, no contexto de direitos e
espaços democráticos, enquanto resoluções não invasivas, mas sim humanitárias e
inclusivas. A receptividade do pensamento preventivo perpassa diversas dimensões sociais,
a saber, saúde, educação, segurança etc. Fórmulas, técnicas e equipamentos de segurança
estão sendo elaborados para prevenir praticamente tudo desde uma crise financeira
familiar, um trauma psicológico infanto-juvenil até problemas de segurança institucional,
nacional, dentre outros.
No âmbito da segurança, projetos de políticas públicas são desenvolvidos.
Discursos especializados - demonstrando as vantagens de prevenir a violência trabalhando
o indivíduo desde a mais tenra infância, educando-o para a paz, ou ainda ressaltando a
importância de investimentos em qualidade de vida da população tida carente - são
frequentemente encontrados nos discursos seja acadêmicos, estatais, ou midiáticos.
Unindo-se a esse esforço social, de prevenção ao ―mal‖, são diariamente desenvolvidas
tecnologias de segurança que prometem evitar o encontro, de quem as adquira, com
situações cotidianas de violência e seus agentes.

Sabe-se que os investimentos em prevenção são muito mais eficazes e


permitem resultados mais sólidos do que aqueles derivados da repressão e
da persecução criminal (...) (BRASÍLIA, 2005, p. 8).

1
Analisar discursos, para Foucault (2000), passa por captar suas condições de possibilidade, as suas
vinculações históricas e sua materialidade. Dito de outra forma, como são produzidos os efeitos de verdades
no interior dos discursos. Para o autor, um enunciado, parte do discurso, não é só uma afirmação lógica ou
um ato de linguagem. O enunciado só constitui sentido se possuir um conjunto de condições de existência.
2
Segundo Moraes (2005, p.2), ―Os direitos humanos colocam-se como uma das previsões absolutamente
necessárias a todas as Constituições, no sentido de consagrar o respeito à dignidade humana, garantir a
limitação de poder e visar ao pleno desenvolvimento da personalidade humana‖;
―O respeito aos direitos humanos fundamentais é a pilastra-mestra na construção de um verdadeiro Estado de
direito democrático‖ (idem, ibidem, p. 3)
9
Menos vigilância, mais crimes – se as pessoas não estão mais nas praças e
nas ruas, teremos menos vigilância natural no bairro. Ou seja, aqueles que
estiverem predispostos ao crime, à violência e à desordem poderão agir,
agora, com muita tranqüilidade, porque não precisam mais se preocupar
com eventuais testemunhas. Assim, se a praça – antes freqüentada pelas
famílias, pelos namorados e pelas crianças – está agora vazia, ela poderá ser
um lugar ideal para o tráfico de drogas e, assim, sucessivamente (Idem,
Ibidem, p. 14).3

Basta ligar a TV em um noticiário, abrir um jornal ou até mesmo ensaiar uma


conversa com algum desconhecido, enquanto se toma um cafezinho, que logo nos
deparamos com o tema recorrente do crescimento alarmante da violência no Brasil.
Acompanhados de taxas estatísticas, gráficos e fundamentados por estudos de diversas
especialidades, os discursos sobre a violência crescem proporcionalmente ou até de forma
mais rápida e variada que os acontecimentos que o fundamentariam. Em suas múltiplas
dimensões, o que se diz sobre violência penetra o senso comum ganhando o caráter de
rumor4, mas habilmente fundamentado cientificamente. A sociedade brasileira tem sido
apresentada, portanto, por esses analistas (especialistas ou não) como uma sociedade cada
vez mais violenta.
Taxas de homicídios, mesmo com todas as abstrações numéricas difíceis de
decifrar, entender ou testar/validar, passaram a ser utilizadas. Enquanto ―saber‖, elas são
apropriadas como referência para estabelecer um diagnóstico da violência no país e para
justificar o alerta individual, coletivo ou estatal com suas respectivas possibilidades de
intervenção. Políticas públicas de segurança são sugeridas, tanto preventivas como
punitivas, assim como um lucrativo mercado de segurança privada é aberto sob o
argumento de tentar solucionar um problema que atinge a sociedade moderna de forma
global. Somando-se a isso, os novos significados que a violência assume, atravessando
todos os aspectos do cotidiano dos indivíduos desde situações como humilhação,

3
Trechos do ―Guia para prevenção do crime e da violência nos municípios‖, elaborado pelo departamento de
políticas, programas e projetos, na coordenação-geral de ações de prevenção em segurança pública.
4
Os rumores ―são parte de um complexo sistema de comunicação oral e caracterizam-se pelo impacto
provocado por onde circulam, pela velocidade com que são disseminadas e pelas conseqüências resultantes
do ato de contar‖. (FILHO, 2002, p.89). Este sistema de comunicação é, portanto, importante na produção da
metonímia de expansão da violência, uma vez que, ao circular gera um forte impacto na sensação de
segurança do indivíduo ocasionando medo e levando a tomada de atitudes cotidianas que busquem retomar a
segurança.
Segundo Gilles Deleuze e Felix Guattari (1995, p.14), ―A linguagem não se contenta em ir de um primeiro a
um segundo, de alguém que viu a alguém que não viu, mas vai necessariamente de um segundo a um
terceiro, não tendo nenhum deles visto‖. O rumor aí seria parte elementar do diálogo e uma modalidade
discursiva e de produção de verdade.
10
desrespeito, exclusão etc, corroboram para uma consciência de que a violência está em
toda parte permeando nossas vidas.
A sensação de que a violência nos espreita em qualquer esquina gera um
sentimento de insegurança e medo cotidiano. Tal desconforto foi e é eficientemente
alimentado pela mídia e pela Academia, sendo utilizado pela elite brasileira para ―a
capitalização de um discurso que desloca o clima de insatisfação popular por violências
como a exclusão e injustiças sociais crônicas colocando-se na posição de vítima dos
conflitos letais interpessoais e sociais no país‖ (CARVALHO, 2001, p.87,88). É
importante ressaltar que o próprio discurso sobre a violência é quase sempre um discurso
violento e que apresenta um caráter de contágio convocando à paranóia coletiva e a
intolerância, cujos efeitos negativos se traduzem em reações e buscas por soluções
igualmente violentas (Idem, ibidem, p.91).
Paranóia e insegurança que se desenvolvem também a partir de dados e notícias que
apontam a ineficácia do Estado em combater a violência. O próprio envolvimento de
pessoas - que teoricamente deveriam proteger os indivíduos - no uso da força em situações
de conflito e até mesmo na transgressão às leis corrobora para o medo generalizado. Os
discursos se diversificam entre os diagnósticos mil. Não se sabe ao certo se a violência
aumentou ou se apenas tornou-se mais visível; o fato é que ganha concretude em práticas e
opiniões informadas por taxas, tratados de criminologia, vitimologia etc. Também está
presente nas notícias diárias dos telejornais, jornais impressos, internet entre outros
veículos de comunicação de amplo acesso da população; Ou ainda em projetos de
organismos internacionais com suas respectivas metas que fazem parte, de uma forma ou
de outra, do cotidiano da população brasileira informando um hábito nacional, quiçá global
de ―falar da violência com ―V‖ maiúsculo como uma defesa contra o medo‖ (FREIRE
COSTA, 1993, p.86).
O medo é um componente importante na difusão paranóica que acomete a
sociedade brasileira contemporânea. Segundo Bauman (2008, p.9), essa sensação não
precisa ter vínculo com experiências reais, mas pode ser um ―medo derivado‖ que tem
capacidade de autopropulsão e se assenta no pressuposto de vulnerabilidade, na falta de
confiança nas defesas disponíveis. Dentre as ameaças que podemos elencar estão ―as
ameaças ao corpo, a propriedade e o lugar da pessoa no mundo, sua posição social,
identidade etc‖ (Idem, ibidem, p.9). Para o autor, existe uma ubiqüidade dos medos
provocando uma sensação de hipervulnerabilidade pessoal às pessoas e situações

11
perceptíveis ou não. Essa sensação está intimamente associada a um ―mundo líquido
moderno‖ (idem, ibidem, p.14), que apresenta duas características importantes a serem
ressaltadas neste trabalho: a primeira é uma falta absoluta de certezas pela constante
mudança em todas as esferas sociais; e a outra é o esforço em mascarar e silenciar os
sentimentos de medo gerados pela incerteza diária, justificado pela busca da ordem e de
uma vida tolerável, apesar de tudo.
O medo e a insegurança como característicos de uma sociedade moderna e fluida; a
prevenção enquanto discurso e práticas inovadores e positivos que visam a diminuição dos
riscos e perigos assinalados pela academia, pela mídia ou pelos rumores; as tecnologias de
segurança, tendo como uma de suas expressões técnicas o mapeamento de situações ou
pessoas que proporcionem riscos às pessoas de bem; o desenvolvimento de técnicas que
ajudem pessoas de boa “índole” a evitar as situações e indivíduos arriscados, promovendo
a evitação e a conseqüente exclusão e afastamentos sociais dos mesmos de espaços
específicos. Toda essa seqüência se constitui num enredo social e é encarado, como já
assinalado, de forma natural, positiva e até enquanto conduta humanitária em comparação
a uma demanda punitiva vista como mais violenta.
Duas assertivas foram determinantes na elaboração do argumento que
apresento em minha análise, são elas:
1. A afirmação de que ―a expansão das tecnologias de segurança incide diretamente
sobre a desigualdade social brasileira e ajuda a expandir a violência ao invés de
domesticá-la (CARVALHO, 2001, p.86).
2. A noção de raça como signo, em que ser negro significa exibir os traços que
lembram e remetem à derrota histórica dos povos africanos perante os exércitos
coloniais e sua posterior escravização (...). Portanto, é o contexto histórico da
leitura e não uma determinação do sujeito o que leva ao enquadramento, ao
processo de outrificação (SEGATO, 2005, p.4).

É a partir do que foi assinalado acima que pretendo problematizar o caráter


unicamente positivo das condutas preventivas, analisando discursos5 que apresentam esse

5
Os eventos discursivos trabalhados nesse texto, não podem ser vistos de forma dissociada da linguagem. O
discurso, aqui, está intimamente associado à produção de efeitos, tanto no mundo quanto no outro ou nos
outros. E a linguagem enquanto discurso não deve ser entendida em sua função referencialista apenas, como
a concebe muitas teorias Ocidentais. ―A fala enuncia algo a alguém em determinado contexto que, a
princípio, a estruturaria juntamente com os atos de referência ou descrição, a fala consiste em atos
12
encadeamento narrativo – violência, risco, insegurança, prevenção e afastamento.
Interessa-me o que tal discurso expressa e produz enquanto auto e alter caracterizações
sobre a pessoa e a sociedade. Em outras palavras, o que há de característico nas novas
formas de enfrentamento da violência, a saber, a prevenção? Que sujeitos se formam nesse
jogo de relações e conflitos? Que tipo de sociedade se expressa/produz nesses
discursos/condutas? Que saberes permeiam e justificam essas noções, relações e
mecanismos? Essa investigação busca elucidar tais perguntas.
Minha análise defende que no jogo de relações e conflitos presente no discurso
preventivo, especificamente, aqueles que propõem técnicas para evitar situações e pessoas
perigosas, apesar de sempre afirmarem em sua superfície discursiva o respeito aos
princípios de Direitos Humanos, apresentam um caráter ambivalente. Ao localizar no
“Outro” o perigo, a impureza e ao evitá-lo, afastá-lo promovem exclusão e violências sutis
ou não. A auto e a alter caracterizações6 construídas nesse contexto acabam por constituir
identidades deterioradas, sentimento constante de inadequação social, reprodução da
violência, pejorativização da diferença e manutenção de desigualdades raciais e sociais.
Essas caracterizações estão assentadas em elementos e características estruturais, de uma
construção histórica nacional, no qual alguns princípios são reatualizados em outros
formatos narrativos. Elementos de uma estrutura colonializada, combinadas com
características da modernidade, racializadas e que reproduzem assimetrias de poder
constituindo em violência ―real‖ e ―simbólica‖.
A análise que empreendo tem como desdobramento:
1. A individualização do problema da violência apontando a resolução deste como
responsabilidade de cada indivíduo;
2. A importação de soluções relativas à violência generalizando-as como se os
contextos locais e as condutas individuais obedecessem a padrões globais e a
resolução pudesse se dar através do aprendizado de fórmulas universais;

concomitantes de indexição de produção das fronteiras da comunicação, sem descrevê-las necessariamente


num modo referencial‖ (SILVERSTEIN, 1997, p.120)
6
O discurso pode ser entendido pela forma como as pessoas agem em relação ao mundo e aos outros
indivíduos. Os discursos teriam enquanto característica a produção e imbricação do desejo e do poder.
Portanto, o poder não traduz os sistemas de dominação apenas, mas o pelo que se luta, o poder pelo qual nos
apoderar (FOUCAULT, 2000, p.10). Dito de outra forma, a relação entre poder e discurso está no poder de
textualizar o outro e de textualizar-se pelo outro sob o estado de verdade. Esta faz parte de estratégias de
poder e saber. Outro aspecto importante da filosofia foucaultiana, e que se relaciona ao que acabo de apontar,
é o estudo da relação existente entre a verdade, ou o saber, e o poder. Segundo Foucault, onde há saber, há
poder. A rede dos saberes/poderes estende-se a toda sociedade moderna. O poder é produtivo, ele atinge a
realidade concreta dos indivíduos, produzindo subjetividades.
13
3. A espetacularização da violência ao se tentar vender a idéia de projetos e
conhecimento técnico preventivo utilizando a mídia e a propaganda;
4. A visão dualista das relações presente nas narrativas, a partir da qual, numa
situação de violência, pode-se definir e enquadrar pessoas como boas e más,
vítimas e criminosos, traduzindo para a linguagem da prevenção, entre potenciais
suspeitos e vítimas. E apesar dos imponderáveis assumirem uma tônica ambígua
nas narrativas, ainda assim a narrativa dualista sobrevive e impera;
5. A violenta condenação e punição antecipada de pessoas à exclusão e ao isolamento
pela possibilidade anunciada por uma pretensa técnica pautada em conhecimentos e
informações ―legítimas‖ –leia-se científica – de que venham a infligir violência a
outrem;
6. O situar a diferença sempre como elemento de risco, do qual o indivíduo atento e
informado deve evitar e combater;
7. A auto e alter definição, caracterização7 dos potenciais suspeitos e vítimas. Tal
caracterização pautando-se em elementos raciais e sociais constitutivos de uma
estrutura colonializada brasileira, cada vez mais negada numa tentativa de
invisibilizar as assimetrias de poder presentes no cotidiano dos sujeitos.
8. A reatualização dos discursos na forma de novas linguagens, ou sob novas
dinâmicas tecnológicas, mas submersos em princípios estruturais conhecidos e
herdados historicamente.

Em busca de um outro olhar sobre a prevenção e sobre as relações sociais


e intersubjetivas brasileiras.

Foi apontado no início do texto o recorte que me proponho a analisar, qual seja,
situações que tenham por princípio a promoção da prevenção através da identificação de
situações e indivíduos que ofereçam risco e a conseqüente tentativa destes de evitar
envolver-se nelas. Optei por desenvolver meu argumento a partir da apresentação de

7
Sobre a caracterização do Self., Crapanzano (1992c), afirma que este se constitui em um momento
apreendido no movimento dialético entre o ―eu‖ e o ―outro‖. Essa apreensão existe quando o eu ou o ego
toma consciência de si diante do outro, intermediado pelo Terceiro7, elemento que garante seu significado.
Esse Terceiro corresponde a uma estabilização na relação tensa gerada pela constituição do self quando o eu
e o outro se deparam no mundo em um encontro dialógico. É a figura da convenção, da lei, a qual tipifica as
representações demarcando as representações possíveis, mascarando a instabilidade inerente ao processo de
caracterização de si. (CRAPANZANO, 1992b)
14
descrições etnográficas não restritas a um grupo X ou a um evento específico, mas em
situações que se conformem como apontamentos, indícios de relações decorrentes de uma
estrutura social e histórica. Dito de outra forma, minhas fontes são diversas8.
Foi assinalado também o contexto e algumas categorias que envolvem o recorte
como: quais são os discursos hegemônicos sobre a noção de prevenção, como são
difundidos e veiculados e quais os desdobramentos deste discurso – mecanismo de controle
corporal, construção de identidades em meio a relações. Para tanto é que proponho um
olhar sobre a prevenção como não desvinculada da estrutura social – colonialista e
moderna – menos ainda dos dispositivos9 de poder subjacentes a ela - sendo a própria um
mecanismo de controle dos corpos -, bem como dos códigos culturais que os sustentam.
Sugiro que essa forma de construção discursiva – falas e ações preventivas – estão
pautadas em uma teia metonímica de reprodução da exclusão (CARVALHO, 2001) e se
constitui na reatualização dos mecanismos de controle inserida em um código cultural que
se pretende humanitário - de Direitos Humanos.
A construção de identidades e os seus desdobramentos sociais, subjetivos etc
podem ser percebidos no contexto das relações que envolvem prevenção e por isso faz
parte também da análise desse trabalho. A partir das noções de pureza e impureza de Mary
Douglas (1976), de sujeito abjeto de Kristeva (1986), de reconhecimento social e a
construção de identidades de Taylor (1993), estigma de Goffman (1975) e do self-
caracterizacion de Crapanzano (1992 a, b, c) é possível apreender a produção identitária
em meio a essas relações. Traz-nos a convicção de que relações extremamente desiguais
permeadas por poder, com capacidade de subjugar o outro, produz identidades desgastadas,
negativizadas, além de mais desigualdade. Todos esses conceitos serão trabalhados de
forma mais detalhada no corpo do texto, mas é importante que se diga que esse sujeito

8
Sobre o caráter diverso das fontes utilizadas nessa pesquisa, penso que o que elas têm em comum, e que
coincide com uma preocupação antiga de alguns antropólogos, é a tentativa de apreender e apresentar de
forma correlacionada e não dicotomizada palavras e ações, o pensado e o vivido etc. São apresentadas a
observação de três situações e, por fim, narrativas midiáticas sobre o episódio em que um homem foi
colocado em situação de suspeição (suspeito de roubar o próprio carro), no estacionamento do hipermercado
Carrefour, em São Paulo. Nestas situações, as palavras e ações estão interligadas, tanto uma quanto outra
fazem parte dos princípios organizativos dos grupos ao mesmo tempo em que não são meras palavras nem
ações, apresentam-se como ―encarnações ativas de uma genealogia de relações de poder‖ e construções de
sujeitos Valentine Daniel (1996).
9
Dispositivos, mecanismos, para Foucault (1979), são estratégias de poder, diversos elementos relacionados
entre si: os objetos, as enunciações, as forças em exercício, os sujeitos. Os dispositivos são normalizantes, na
medida em que estabelecem normas, definem e constituem quais normas são verdadeiras. Além disso, eles
são constituintes, ou seja, eles acabam por serem produtores de verdades. Sendo assim, eles são de caráter
tanto macro quanto microssocial. Cada episteme possui, desse modo, os seus próprios dispositivos.
15
excluído, estigmatizado como impuro, sujo, abjeto tem suas marcas assentadas em sinais
estruturais e históricos como a racialidade, sexualidade, classe social, idade etc.
Determinados sinais – cor preta e seus derivados, baixa renda, masculinidade,
adolescência, por exemplo – são caracterizados e relacionados com a desordem, a não-
forma, e passíveis de contaminação. O restabelecer a ordem é empreendido através da
evitação e exclusão – o que algumas propostas de prevenção fazem com maestria –
demonstrando não a falta de reconhecimento social, ao contrário, um reconhecimento
social negativo traduzido em exclusão e afastamento. Tais marcas são como signos10
sociais em ação, ou ainda como indícios11. Acionam códigos estruturais que vão
permeando comportamentos, ações e as relações como um todo. Os signos em determinado
espaço e tempo acionam significados, caracterizações, gerando a identificação de um
criminoso, por exemplo.
A colonialidade oculta na modernidade traz consigo determinados códigos
culturais, signos sociais que, por exemplo, definem a marginalidade, o perigo, o eu
hegemônico e o outro abjeto que deve ser excluído e evitado. Por “Colonialidade do
padrão de poder” entende-se as especificidades na relação de poder que tiveram origem na
experiência colonial e que se estendem até as relações atuais mantendo todos os seus
princípios. Em outras palavras, é um padrão de poder marcado pela colonialidade. Para
Quijano (2004), os principais produtos da relação colonial são a ―racialização‖ produzida
para naturalizar as relações de dominação; a criação de um ―sistema de exploração‖ que
reúne todos os outros sistemas históricos de controle do trabalho; o ―eurocentrismo‖, como
modelo de produção do sujeito e do conhecimento, mais conhecido como modernidade e
por fim, o ―Estado‖ a que o autor entende como agente privado de controle da coletividade.
É, então, que mesmo reconhecendo a diversidade de signos envolvendo as situações
em que analiso, me restrinjo a desenvolver um especificamente, a saber, a cor. Minha
escolha se justifica pela relativa ausência deste enquanto temática desenvolvida na
Antropologia brasileira atual e pela complexidade da discussão que os envolve, tanto em
dimensões acadêmicas quanto de senso comum na atualidade. Justifica-se, também, pelo

10
Será utilizada neste texto a tipologia dos signos de Pierce (2000, p.74). Para o autor ―um signo é um ícone,
um índice (índex) ou um símbolo. Um ícone é um signo que possuiria o caráter que o torna significante,
mesmo que seu objeto não existisse, tal como um risco feito a lápis representando uma linha geométrica. Um
índice é um signo que de repente perderia seu caráter que o torna um signo se seu objeto fosse removido, mas
que não perderia esse caráter se não houvesse interpretante. Um símbolo é um signo que perderia o caráter
que o torna signo se não houvesse um interpretante‖.
11
Pierce (1972) foi quem primeiro cunhou a noção do signo como tendo um caráter indéxico, seguido por vários
outros autores como: Silverstein (1976), Sapir, Malinowski e Jakobson. Nesta perspectiva, a relação entre
linguagem e cultura é repensada ao que se faz uma distinção entre referência e índex nos usos da linguagem.
16
argumento assinalado acima, dos teóricos da pós-colonialidade, de que a racialidade é um
dos principais produtos da relação colonial e, por isso, também a raça/cor negra-
pejorativizada nesse constructo e relações racializadas e colonializadas - funciona enquanto
um dos signos que aparece em cena como frequentemente associado ao perigo, a sujeira e a
desordem. Os adjetivos correlacionados a cor negra e mais comuns são: inferiores
intelectualmente, muito mais dados a atividades físicas e por isso brutais e, além disso, as
nossas estatísticas afirmam que a maior parte dos criminosos são homens negros, os jornais
e a TV também comprovam isso com imagens. Além do que são insultados diariamente
com adjetivos estigmatizante que fazem parte da representação social sobre os negros,
como ―ladrão‖, ―folgado‖, ―safado‖, ―sem-vergonha‖, ―aproveitador‖, ―pilantra‖,
―maconheiro‖, ―traficante‖ etc (GUIMARÃES, 1999).
No empreendimento de textualizar meus argumentos divido o texto em três
capítulos articulados entre si. O primeiro tem como intuito a reflexão e discussão do que
permeia a noção de prevenção, do que forma a idéia de teia metonímica – violência, medo,
prevenção, exclusão e auto/alter caracterizações - que provoca exclusão, mais injustiças
sociais, desigualdades e violências. A partir da análise das situações descritas nos dois
últimos capítulos, observo a incidência recorrente de elementos que sugerem um
encadeamento de circunstâncias pensadas e sentidas no dia-a-dia dos indivíduos compondo
uma narrativa coerente com a forma como as pessoas organizam seu mundo, seu cotidiano.
Sugiro, a partir disso, a metonímia de expansão da violência enquanto ferramenta analítica
e explicativa deste contexto. Aponto, também, como os fenômenos que a compõem estão
intimamente imbricados e continuam a se reproduzir. Esse encadeamento narrativo, além
disso, é entendido aqui como o que justifica e motiva as noções e ações preventivas
coletivas e individuais, tanto quanto permeia, produz e transforma as relações dos
indivíduos.
No segundo capítulo, descrevo três situações em que o discurso preventivo é o eixo,
a saber, a formatura do programa PROERD, para alunos do ensino infantil e fundamental
de escolas públicas do DF; um curso de auto-defesa denominado Krav-Magá, na Asa Norte
– DF e um curso de defesa pessoal veiculado na internet12. Apresento o discurso
preventivo propalado nas situações descritas como um mecanismo de controle dos corpos.
Delineio os elementos que servem de justificativa para suas ações, bem como as auto e
alter caracterizações construídas a partir das relações, marcas inscritas nos corpos e

12
Todas as três situações estão detalhadas e referenciadas no capítulo dois desta dissertação.
17
códigos culturais estruturais em que participam os indivíduos. Sugiro ainda que essas
situações evidenciam a individualização do problema da violência; a importação de
soluções relativas ao tema, generalizando-as e desconsiderando os contextos; a
espetacularização da violência banalizando-a, na forma de show (no caso da formatura do
PROERD); a visão dualista das relações presente nas narrativas e a condenação e punição
antecipada de pessoas à exclusão e ao isolamento pela possibilidade do cometimento de
um crime.
A partir da afirmação do caráter dualista, ao mesmo tempo em que ambivalente das
narrativas dos sujeitos e até mesmo dos discursos ditos especializados que deles tratam, me
proponho no terceiro capítulo a analisar um caso em que um sujeito é considerado suspeito
de roubar o próprio carro (um Ecosport) no estacionamento do hipermercado Carrefour,
em São Paulo. O suspeito é entendido aqui enquanto uma categoria não estanque, mas
delimitada nos discursos, por vezes de forma explícita e por vezes de forma sutil. Identifico
sinais da racialidade, bem como de questões de classe, gênero etc, em que, no entanto, por
uma questão de recorte são sinalizados, mas não exaustivamente tratados, ficando
enquanto sugestão para trabalhos futuros. Opto, portanto, por apontar como a cor é um
signo, como constitui e funciona de forma estrutural na sociedade brasileira, como é
construída historicamente e legitimada cientificamente como, por exemplo, dentre outros,
pelo discurso da criminologia. Com isso, elejo nesse trabalho, a título de análise, a cor
negra como um signo e apresento ainda como os corpos negros são significados e
caracterizados de forma pejorativa, estigmatizada e associados à criminalidade. E por fim,
aponto a violência que depreende da relação que os caracteriza e como nessas relações são
construídas suas identidades, a percepção do eu que não por acaso são negativizadas.

18
CAPÍTULO 1:

MEDO/INSEGURANÇA, PREVENÇÃO, EVITAÇÃO/EXCLUSÃO,


IDENTIDADES DETERIORADAS: VIOLÊNCIA COTIDIANA E A
TEIA METONÍMICA DE REPRODUÇÃO DA EXCLUSÃO.

“A fala e o medo organizam as estratégias cotidianas de proteção e reação que


tolhem os movimentos das pessoas e restringem seu universo de interações. Além
disso, a fala do crime também ajuda a violência a proliferar”
Teresa Pires do Rio Caldeira, Cidade de Muros, 2003

19
A violência urbana e os eventos que de alguma forma remetem às experiências que
a tomam como base são ricos em classificações, assim como apresentam elementos de uma
visão de mundo compartilhada e, por isso, reveladores de códigos culturais dos indivíduos
e grupos observados. No contexto atual, a preocupação com a violência e a criminalidade
está na pauta de prioridades de diversos governantes mundiais. O medo, sensação
intimamente ligada à noção de violência, também tem se generalizado, até mesmo em
sociedades nas quais os índices de criminalidade são baixos. O discurso da lei e da ordem
tem sobressaído nas grandes cidades. O conhecimento especializado, nas últimas décadas,
aponta para um crescimento exorbitante da violência no Brasil, sendo dessa forma a
sociedade brasileira tida pela população como uma sociedade violenta.
Beli (2004), mencionando os EUA, chega à conclusão de que mesmo com a queda
dos índices de criminalidade, as políticas de segurança pública ainda exercem certo
fascínio junto à população e à mídia, sendo fonte inesgotável ao cinema e seriados de TV.
Também presente nas conversas cotidianas, a criminalidade é tema de campanhas eleitorais
e pauta do diálogo entre eleitores que cobram mais segurança dos seus governantes, e estes
não podendo ignorar os pleitos acabam por produzir um discurso especializado, estatístico
que justifique e embase suas políticas públicas de segurança.

(...) no Estado de São Paulo, levantou em um único trimestre a estimativa de


1,33 milhão de crimes, o que representou três vezes o número de crimes
registrados pela Polícia paulista no mesmo período. A primeira pesquisa de
vitimização realizada no Rio Grande do Sul ocorreu em agosto de 2004, na
cidade de Alvorada, região metropolitana de Porto Alegre. Esta pesquisa
encontrou taxas médias para roubo e furto 10 vezes superiores aos crimes
registrados pela Polícia no período dos 12 meses anteriores (BRASÍLIA,
2005, p.16).13

Teresa Caldeira (2003), ao falar de São Paulo, comenta que os paulistas assustados
pelo aumento do crime violento e incrédulos quanto à eficácia da polícia ou da Justiça
procuram se proteger o mais que podem. Constroem muros, reforçam as grades e
fechaduras, compram armas, consomem as mais diversas tecnologias de segurança e
contratam seguranças privados. Também se expõem menos, mudam-se para condomínios
fechados, trocam as compras e o lazer nas ruas pelos shoppings e, conforme o poder
aquisitivo, abandonam os transportes coletivos para se mover apenas com seus carros.

13
Dados de vitimização presentes no ―Guia para prevenção do crime e da violência nos municípios (2005)‖, elaborado pelo
departamento de políticas, programas e projetos, na coordenação-geral de ações de prevenção em segurança pública.

20
Além disso, são mais predispostas a apoiar medidas violentas para lidar com a
criminalidade.
(...) As conseqüências da nova separação e restrição na vida pública são
sérias, a arquitetura e o planejamento defensivos promovem o conflito em
vez de evitá-lo, ao tornarem explícitas as desigualdades sociais. (...)
(CALDEIRA, 2003, p.340)

Outra forma de utilização da tecnologia, com o intento de evitar o crime ou as


interpelações violentas, são projetos com fins educativos ou cursos que através da
informação e conhecimentos prometem formar um indivíduo ―autônomo‖ e ―ativo‖, pronto
para rastrear e evitar os perigos lá fora, ou ainda seguranças privados – um indivíduo que
vende seus serviços, qual seja, o de promover o mesmo afastamento de eventos violentos
para um outrem. Neste jogo de relações e evitações, a narrativa dos sujeitos tem
características duais em um discurso ambíguo. Tentam não relacionar de forma direta o
crime com categotias como classe social, raça, gênero, diluindo-as na figura do ―Outro”14,
o diferente. No entanto, ao marcar diferenças entre eles e o Outros fazem vir à tona as
percepções negativas de indivíduos e grupos que carregam marcas históricas de diferenças
de forma estigmatizada. Ao inquirir alguns seguranças do meio privado, um deles que
trabalha na portaria de um curso de línguas da Asa Norte, sobre quais as situações que o
deixaria alerta e geraria suspeita, disse-me: ―aquilo que é diferente, que a gente não vê toda
hora, né! Por exemplo, uma pessoa chega fica olhando, com um olhar perdido, sem
conhecer o lugar, não parece com as pessoas dali, não parece que é aluno da escola, você já
fica de olho‖. O ―diferente‖ em sua fala não tem características claras textualmente. O
Outro aparece de forma abstrata, mas ao perguntar se ele poderia me apontar alguém na rua
que se enquadraria com esse perfil estranho ao local, logo me apontou um perfil que se
relaciona às categorias acima citadas: adolescentes, negros, de boné, bermudão.
O medo do contato é um dos desdobramentos dessas marcas e estigmas
concretizadas nas relações. Marcas e exclusão não são novidades na história das relações
no Ocidente, no entanto, o que muda, se observarmos a partir do contexto de modernidade
e pós-modernidade fluida e líquida15, é a forma e os mecanismos de controle que são

14
O processo de atribuir ao outro, ao diferente, atributos pejorativos, lugares sociais e identitários desiguais e
hierarquicamente inferiores pode ser denominado processo de Outrificação. Segundo Segato, ―esse processo
é o contexto histórico da leitura e não uma determinação do sujeito que leva ao seu enquadramento‖ (2005,
p.4).
15
Conceito desenvolvido por Zygmunt Bauman para caracterizar um tipo de vida de inseguranças, desafios,
mudanças constantes e rápidas. A tendência dos episódios é terem vida curta. E uma vida em que não se tem
controle sobre as ameaças que causam medo. ―A luta contra os medos se tronou tarefa para a vida inteira (...)
e essa passou a ser uma longa luta, impossível de vencer contra os impactos dos medos (...). (2008, p.15)
21
assentados nas marcas. A fluidez, sutileza e a tentativa de diluir as marcas, mascarando-as
em meio a discursos de Direitos Humanos é um novo formato estratégico de poder
enquanto mecanismo de controle dos corpos.
A noção de prevenção, suas ações e projetos vão sendo gradualmente formuladas, e
não somente com base em simples fatos, como querem crer as estatísticas de homicídios,
mas nas múltiplas dimensões que assumem a idéia de prevenção – projetos educativos,
objetos tecnológicos, investimento em infraestrutura etc. As marcas, sinais corporais e
comportamentais – que incluem marcas sociais, raciais e comportamento supostamente
desviante – são constitutivos dessas várias dimensões da prevenção. Nesse jogo,
mascarado por discursos humanitários, a ―singularidade reside na forma encontrada para se
estabelecer uma rede de relações, na qual o medo16 se inscreve nos corpos,
circunscrevendo o seu horizonte de sentido‖ (PEREIRA, 2004, p.17, 18)
A violência e o medo não são categorias estagnadas e, portanto, devem ser
apreendidas e sempre inseridas em relações sociais. Dito de outra forma, há sempre um
indivíduo ou um grupo, nas relações, para quem a violência e o medo se voltam em
determinado momento. Deste modo, os sujeitos se vêem tendo que lidar com o aspecto
circunstancial, com as dimensões de poder que atuam nessas relações em sua forma
estrutural e com a estrutura que atua nas formas e manifestações das relações de poder17.
Para muitos autores, modernidade e medo caminham juntos. As revoluções tecnológicas da
modernidade não contribuíram para gerar maior segurança aos indivíduos e à vida urbana
em geral. Ao contrário, agem conjuntamente e estão intimamente ligadas na produção
paranóica de insegurança. Diversos pensadores das ciências sociais diferenciam medo de
terror, Pereira (2004, p.18), por exemplo, indica que ―o medo pressupõe um objeto
determinado a que os sujeitos podem se contrapor; o terror indica a existência de medos
repetidos, que geram estados de angústia e de temor permanente, para o embaralhamento
desses sentimentos‖.
A partir da idéia de medo de Bauman (2008), segundo o qual não é necessário se ter
uma experiência para que o medo emirja – medo derivado - e da noção de Pereira (2004)
de que o terror se dá a partir da regularidade de exposição ao medo, compreendo que
enquanto alguns indivíduos convivem em suas relações diárias com o medo derivado,
tendo que administrá-lo, outros vivem igualmente esse contexto somado à exposição

16
Modificação e grifo meu
17
O projeto PROERD descrito no capítulo dois, em seu intuito preventivo, deixa evidente a ambiguidade e
ambivalência dos seus objetivos enquanto projeto com intuito preventivo.
22
constante do medo advindo de relações estigmatizantes, racistas, sexistas e homofóbicas
mascaradas e invisibilizadas gerando dificuldades de verbalização da violência que sofrem,
bem como angústia nas diversas dimensões de sua vida prática e de suas relações. O terror
produzido a partir das relações estigmatizantes ultrapassa historicamente a modernidade,
em sua gênese, fazendo-nos remeter a períodos anteriores da história nacional para
compreendê-los, como por exemplo, a colonialidade e sua forma estrutural de relação de
poder, atuante nos dias de hoje. Assim sendo, afirmar que o medo é generalizado no
contexto urbano, moderno e ocidental atual, não significa de modo algum a generalização
da sua intensidade, da sua constância e exposição nem do que o provoca, bem como das
formas possíveis de reação a ele.

1.1 - Medo/insegurança e suas implicações no âmbito da violência

Segundo Pereira (2004), o medo e o terror são equivalentes vocálicos e têm como
característica marcante a inefabilidade, o que significa a sua impossibilidade em exprimí-lo
por palavras, dificultando, assim, sua própria definição. Em outras palavras, seria o
indizível, porque experenciado no campo das emoções e sensações de forma fluida. Tal
característica soma-se ao mesmo tempo em que colabora para imprimir o caráter
ambivalente das noções e ações preventivas, justificando-as em sua complexidade e
dimensões distintas. Ambivalência demonstrada na articulação de discursos humanitários
com caracterizações estigmatizantes do outro, projetos com intuitos inclusivos e ações
excludentes, caracterizações distintas dependendo do espaço em que se encontram os
sujeitos. Enfim, não saber o que o medo significa, traduz e, onde se localiza, dá margem à
formulação de ações preventivas complexas, dinâmicas e totalmente imbuídas de
elementos de poder, caracterizações, trocas etc.
Foucault (1997) analisa diferentes formas de punições características da história e
os mecanismos de poder a que esta se relacionava. Segundo ele, o medo era imputado e
fundamentado pela tortura, através e no período dos suplícios. Na modernidade, as
punições foram paulatinamente substituídas e o caráter dos castigos que fundamentaram o
medo passou a ser centrado no discurso, na vigilância, ―no exemplo moral‖. A punição
passou a ser lenta, gradual, cotidiana e mascarada no discurso da educação/socialização, da
frugalidade acometendo o intelecto, tornando-se mais eficiente e mais difícil de refutar.
Formou-se aí, para o autor, uma nova configuração de poder, na qual a brandura da

23
punição advem de um novo regime de verdades, saberes e técnicas presentes
conjuntamente e de forma articulada no se fazer justiça, no ato da punição e controle.

A sutileza das relações de poder, diluída no discurso, é uma característica da


modernidade democrática. A incidência dos castigos sobre os corpos se encontra
mascarada. Muitas vezes se apresenta de forma indireta, invisibilizada e não localizada
com facilidade, traduzindo o ocultamento destes no campo político. O simbólico, como
característica primordial desse formato de violência, confere outro tom à violência física,
aparentando uma não violência ou uma não submissão. E é esse aparentar não violento que
imprime às políticas de prevenção a sensação de homogeneidade humanitária e de
intenções no seu discurso.

Foucault (1997) afirma também que a sutileza articulada dessa violência e suas
punições são expressas em técnicas. O medo e a punição enquanto espetáculo dão lugar à
civilização da vigilância. Nessa dinâmica que informa as mudanças de mecanismos de
poder, do discurso, dos saberes, o mecanismo atual não elimina definitivamente o que
havia anteriormente, mas os reveste, incorpora. Afirmação que vai ao encontro da noção de
colonialidade do padrão de poder18, em que a modernidade é apresentada como difusora de
uma retórica e não elimina, mas ―oculta su contraparte malintencionada: la colonialidade”.
(MIGNOLO, 2007, p.121). A violência como espetáculo, portanto, ―na modernidade e pós-
modernidade‖, bem como nos casos descritos nesse trabalho não desaparecem por
completo, ele passa para o domínio da mídia e do mercado de marketing, utiliza o
mecanismo da sutileza, da linguagem19 e de toda a tecnologia moderna para incutir o medo
e justificar a vigilância, como um círculo vicioso. Além de, como apontado por Mignolo,
tentar ocultar a racialidade, o etnocentrismo, o patriarcalismo e o patrimonialismo
característicos e estruturais da colonialidade.

Diversos autores na antropologia refletiram sobre o terror e o medo em códigos


culturais distintos. Veena Das (1995) e Pierre Clastres (1978) são alguns deles. Ao
mencionar a dor social na sua análise de uma comunidade chinesa, Veena Das pensa a

18
Por “Colonialidade do padrão de poder” entende-se as especificidades na relação de poder que tiveram
origem na experiência colonial e que se estendem até as relações atuais mantendo todos os seus princípios.
Em outras palavras, é um padrão de poder marcado pela colonialidade. (QUIJANO, 2004)
19
Como um deslocamento que ao parecer retirar-se utiliza-se de enunciados e redundância para afirmar-se de
forma sutil.A noção de palavra de ordem me parece aí bem apropriada. Esta não estaria relacionada a
enunciados explícitos e sim a aqueles com pressupostos implícitos. ―As palavras de ordem não remetem,
então, somente aos comandos, mas a todos os atos que estão ligados aos enunciados por uma obrigação
social‖ (DELEUZE &GUATTARI, 1995, p.16).
24
partir de dois tipos de dor, uma que extingue a capacidade comunicativa e a que constrói
comunidades morais. Extinguir a capacidade comunicativa, para ela, é como a sociedade
consegue instituir uma força sobre o indivíduo, usurpando a linguagem e produzindo o
silêncio. Quanto às comunidades morais, bebe da teoria de Clastres segundo o qual o
sofrimento é necessário para a aprendizagem da noção de pertencimento, na medida em
que é intercedido pelo corpo provocando o não esquecimento do individuo de seu
pertencimento à comunidade.
Esse é um ponto que gostaria de ressaltar, pela especificidade dos códigos culturais
brasileiros. A sutileza da violência que provoca dor social, quando é negada e se apresenta
de forma diluída, mascarada, cotidiana e impressa nas relações interpessoais, informando
relações de poder de várias dimensões, seja macro ou micro, dificulta a formação de
comunidades desenvolvidas a partir da dor. Isso porque, nesses casos, a violência é
simbólica e como tal se remete e é inscrita no corpo, mas é negada pela negação da
sujeição e da relação de poder. Em outras palavras, a colonialidade do padrão de poder,
mascarada no discurso democrático moderno, dificulta – não impede - a criação de
comunidades solidárias.
Pode-se perceber isso nas relações raciais brasileiras, entre negros (pretos e seus
derivados) e brancos, por exemplo, nos momentos em que a dor e a violência se encontram
negadas, mascaradas e diluídas nos discursos da democracia racial, tentando deslegitimar
os sentidos de sofrimento advindos da experiência de indivíduos negros e dando à
solidariedade de grupo um sentido psicológico e persecutório. Quero, com isso, ressaltar o
mecanismo de poder aí atuante - a naturalização e plena aceitação da noção de democracia
racial enquanto discurso, saber, por exemplo - mas é importante também mencionar que tal
mecanismo não impossibilitou esse grupo de organizar grupos solidários de resistência
históricas a essas relações de poder20
A suspeição é um estilo de punição que de alguma forma se aproxima do medo e do
terror apresentado por Foucault (1979). Quando ele afirma, em sua civilização da
vigilância, ser possível pensar numa técnica de dominação calculada, organizada, pensada
para controlar as pessoas e seus corpos, a identificação de suspeitos e o apontar pessoas

20
A resistência da população negra às investidas do poder que a subjugavam, existe, no Brasil, desde o
momento em que os africanos foram trazidos violentamente para o Brasil e escravizados. Desde
manifestações de sua religiosidade ainda na escravidão, nas senzalas, até resistências expressas em
quilombos. No período atual, da constituição de grupos de resistência em forma de movimentos sociais, da
luta pelo reconhecimento do racismo e da implementação de políticas públicas voltadas ao grupo, ate
manifestações individuais de afirmação da estética negra etc.
25
mais suscetíveis à vitimização exigem justamente essa informação técnica. Posta em
prática, a informação e a técnica geram a vigilância cotidiana, a exclusão e o isolamento de
pessoas tidas como ―perigosas‖, servindo como uma punição antecipada pela possibilidade
de desvio moral. Também serve para o controle dos corpos dos indivíduos, para a busca
pela homogeneização destes, a partir do reconhecimento de marcas inscritas no corpo e no
comportamento, ou pelos traços culturais de grupos específicos21.
O poder subjacente aos mecanismos e técnicas de controle não devem ser
entendidos apenas como formas de repressão. O que mais interessa para essa pesquisa é o
caráter relacional e produtivo desses mecanismos, tão bem enfatizado por Foucault (1979).
Ao analisar o surgimento da civilização da vigilância e disciplinarizacão dos corpos, o
autor deixa claro esse caráter produtivo pela formação, treinamento e adequação dos
corpos às normas. E qual seria o desígnio preventivo? Justamente o de, através da
informação, conhecimento e técnicas, promover a disciplinarizacão dos corpos para que se
adequem às normas que, por sua vez, traduzem formas de comportamentos e de vida
ideais.
Dito de outra forma, o poder incide sobre o sujeito ao mesmo tempo em que o
forma. O sujeito é agente ao mesmo tempo em que se submete a ele (BUTLER, 1997).
Sendo ao mesmo tempo imposto e constituidor do sujeito, o poder estaria diretamente
relacionado à própria existência deste. Enfim, o sujeito em sua constituição dinâmica, está
aberto a possibilidades de ressignificação que podem ser impedidos pelo poder, mas que
também proporcionam a ressignificação do próprio poder (BUTLER, 1998). O
reconhecimento de um poder produtivo e constitutivo do sujeito, sendo a ele ao mesmo
tempo externo e interno, é muito útil as nossas análises. Isso porque nos faz concluir que
tanto o medo da violência quanto a prevenção são em si mecanismos – malha de discursos,
rumores, conhecimento institucionalizado, dentre outros - de um poder disciplinador e
também produtivo, na medida em que constituem e formam sujeitos em suas relações e nos
processo de sujeição. A partir disso, eu posso formar o sujeito suspeito, o sujeito vítima a
depender do contexto, de suas características etc.

21
Torna-se muito claro a técnica a favor da vigilância cotidiana e a tentativa de homegeneização, a partir do
reconhecimento de marcas inscritas nos corpos, na situação descrita no capítulo três, em que um indivíduo,
negro, foi abordado, espancado e acusado de roubar seu próprio carro, enquanto a família fazia compras no
hipermercado.
26
1.2 - Sobre a ambivalência da noção de prevenção: o “se”, as
possibilidades, e a ação estratégica

A prevenção pode ser apreendida como forma de organizar o mundo, o pensar e


agir, em situações de medo, violência e insegurança. O advento da Aids, na década de 80, e
a forma como a mídia reportou o sucesso das lutas contra ela expressa a receptividade
desse pensamento e contribui cada vez mais para o enaltecimento da idéia de prevenção.
Imbuída de elementos do discurso de Direitos Humanos, a prevenção nos remete sempre a
uma sensação de resposta positiva, responsável e respeitosa a algum problema que aflige o
ser humano. Se buscarmos os princípios que norteiam a noção de prevenção perceberemos
que a condição para o seu desenvolvimento é que haja uma antecipação de fatos a que se
procura evitar. Antecipar fatos significa elencar possibilidades, sejam elas baseadas em
experiências concretas ou em dados, intuições e em qualquer tipo de saber.
Possibilidades, segundo Tarde (2007), são forças latentes em potencial e teve como
origem o primeiro sentimento de dúvida entre nós (Idem, ibidem, p. 193, 194). Pensar
sobre o ―se‖ é pensar sobre o não existente concebido, o que nos remete ao seu caráter
produtor: o não existente que concebe algo e cria. Ao discorrer sobre a ciência, o autor
afirma que ―Os possíveis são o objeto próprio da ciência (...) e é o que permite fabricar
mentalmente um mundo que não existe, não existiu e não existirá” (idem, ibidem,
p.196). As possibilidades dependem do arranjo que se faz dos seus elementos. E estes são,
por princípio, infinitos em sua potência, no entanto, a potência é bloqueada pela
impossibilidade humana de estabelecer todos os arranjos, limitando-os aos elementos que
emergem.
As possibilidades enumeradas por quem pretende antecipar situações e pessoas
criminosas poderiam ser outras, infinitas, segundo essa perspectiva. Mas não são. Isso
porque os elementos imersos e passíveis de combinação são limitados e bloqueados pelos
mecanismos de poder, pelos saberes disponíveis e legítimos no contexto etc. Tarde aponta
justamente para a tendência moderna de banir a ―potência sobre o ato‖ (Idem, ibidem
p.200), ou seja, apesar dessas infinitas possibilidades advindas de também infinitas
combinações, há sempre tentativas de disfarçá-las, dissimulá-las. Daí o caráter de verdade
das afirmações científicas, estatísticas e outras. Dessa forma, o autor defende a existência
de uma virtualidade (virtualidade é possibilidade) diferente da finalidade. A finalidade
contradiz a virtualidade quando da predeterminação rigorosa dos fatos e supõe uma
27
previdência infinita pensando em impulsos efetivos em direção a meta (TARDE, 2007,
p.208). Em outras palavras, segundo o autor, as possibilidades não podem ser reduzidas a
elementos do passado que podem ser consideradas na antecipação do futuro. Existem
vários outros elementos, não relacionados ao passado. Tarde defende a idéia da existência
de forças não exercidas existentes entre nós. A possibilidade é uma força latente e existem
efeitos diferentes quando as mesmas ligações acontecem em espaços diferentes.
Daí pode-se conceber que o possível de Tarde – infinito que nunca se realiza
totalmente pela finidade do mundo e do real, onde para que um possível se torne real é
necessário um grau de maturação – vai de encontro ao possível moderno, científico e do
senso comum, em que a possibilidade é submetida ao real e após passar pelo crivo da
ciência torna-se verdade, fato. E é essa noção ―moderna‖ de possibilidade que embasa as
ações de prevenção e os critérios para o desenvolvimento de técnicas com o objetivo de
prever situações e pessoas ―perigosas‖. Dados que ao ter o status de científico se tornam
fato, passando a subsidiar a produção mental do ainda não existente. Tudo isso atribui certo
grau de certeza na ocorrência das possibilidades e, por isso, na crença de que a partir de
determinadas técnicas são passíveis de serem evitados. Dados como o de que 58,1% das
prisões em flagrante, em São Paulo, são de negros22, torna-se mais que uma leitura da
realidade social, mas uma produção de verdade que circula como rumor e pode ser
combinada ao medo, à violência nos centros urbanos, às experiências individuais, à
atribuições históricas e colaboram para o imaginário de maior criminalidade e
culpabilidade dos negros.
A declaração de William Bennett (01) ex-secretario de educação no governo Bush
(EUA), à tribuna da imprensa em 01/10/2005, e do Coronel Elio Proni(02), comandante do
Policiamento Metropolitano de São Paulo, a revista Veja, de 7/02/1996, deixam claro o que
se produz, a partir de dados em conjunto com noções estruturais. Dados da quantidade de
negros criminalizados nos EUA contribuem para produzir a relação entre estes e a
criminalidade, tornando essa relação um fato. Tal noção vai subsidiar a formulação de
ações de prevenção ao crime. No Brasil, de Elio Proni, assim como nos EUA, essa relação
tem sua especificidade histórica e são, também, legitimadas em estatísticas criminalísticas
produzindo ―verdades‖ (essas relações são mais bem trabalhadas no capitulo três desta
pesquisa).

22
Dados do Núcleo de Estudos de Violência da USP, quando de uma pesquisa realizada em São Paulo. Nesse
estudo chega-se à conclusão de que a justiça brasileira é racista e que seus mecanismos incidem mais sobre
essa população. Disponível em: (www.nevusp.org).
28
Mas sei que é verdade que se você quer reduzir a criminalidade, você
poderia, se este for seu único objetivo, você poderia abortar todo bebê negro
neste país, e seu índice de criminalidade iria cair", argumentou Bennett,
autor de "O livro das virtudes. (01)

Não se prefere parar os negros, porque não há pessoas suspeitas, mas


situações de suspeição”. Uma das situações de suspeição muito utilizadas
como exemplo na Academia de policia Militar, segundo o coronel, é a “dos
quatro crioulos dentro de um carro. (02)

Não são só elementos combinados que produzem a possibilidade, mas esta


enquanto mecanismo de controle também produz, já que a partir de uma seleção de
combinações, gera outras combinações possíveis. Outrossim, após o ganho do status de
verdade as possibilidades passam a ter uma agência sobre as prováveis ações dos
indivíduos envolvidos e que nela crêem. Em outras palavras, para pensar e agir
preventivamente é necessário algo anterior que nos informe do que nos prevenirmos, quais
as possibilidades da emergência dos acontecimentos que se deseja evitar para, então, nos
anteciparmos a eles evitando-os, afastando-os de nós. O pensamento e a ação preventiva,
na área da segurança, portanto, estão longe de ser apenas uma forma de responder a uma
situação problema. Eles produzem, dentre outras coisas, o afastamento, a exclusão, a
violência simbólica e até mesmo a maior probabilidade de violência física, quando, por
exemplo, cobra-se do Estado ações mais enérgicas, violentas, para evitar situações
criminosas.
A prevenção surge, no contexto e discurso de modernidade, como um divisor de
águas, como uma mudança de parâmetros, de forma de pensar e agir no intuito de conter os
problemas advindos das mudanças contínuas envolvendo a atualidade e em substituição ao
parâmetro punitivo. Aparece como uma forma nova de pensar e organizar o mundo. Os
discursos punitivos para a segurança e os sanitaristas na área da saúde foram aos poucos
perdendo espaço para o discurso preventivo. O que não significa dizer que eles foram
extintos ou que perderam influência. O que há são combinação entre eles, aspectos
estruturais em novos formatos, dispositivos e malhas discursivas. Diante da impotência da
tecnologia resolutiva em responder aos interesses do poder investe-se na tecnologia
preventiva. É possível traçar um paralelo entre a noção de civilização da vigilância e o
comportamento preventivo.
A prevenção, como já apontado anteriormente, se sustenta no paradigma da
antecipação, sob a justificativa de tentar evitar o desgaste dos problemas físicos,
emocionais e econômicos advindos de uma situação violenta ou criminosa. Assim como na
29
área da saúde, os grupos se previnem com aplicação de vacinas, realizando exercícios
físicos, ingerindo vitaminas, melhorando o desempenho pessoal, profissional, sexual etc,
igualmente se observa na segurança, ou seja, prevenir é possível através do controle dos
corpos e é, alem disso, a solução ideal, eficaz e menos invasiva, é quase que obter a paz. O
Estado formula medidas preventivas, como projetos de infra-estrutura, ou educacionais,
esportivos buscando a diminuição da incidência de violência, mas isso não parece ser
suficiente e a prevenção encontra na dimensão individual, a dotação de medidas
preventivas, nas quais estes se sentem mais seguros, seja com um carro blindado, uma casa
cercada, um muro alto, condomínios hiperprotegidos ou um segurança particular, técnicas
de auto-defesa etc.
A prevenção tem em comum com os pressupostos punitivos diversos elementos, dentre
eles a idéia de que a violência deve ser enfrentada por pessoas e conhecimentos
especializados (LEFEVRE & LEFEVRE, 2004). Deve-se combater a violência utilizando
recursos tecnológicos. Os pressupostos preventivos são coerentes com os ditames que
regem a sociedade moderna, individualista, consumista tendo como princípio a produção
contínua de mercadoria e serviço num mercado mundializado. A violência, como objetos
de consumo, traz implícito a idéia de que a única forma de obter paz ou de se prevenir da
violência é se comportando como consumidor no qual cada um pode adquirir tranquilidade
de acordo com suas possibilidades econômicas. A violência passa a ser encarada como
frio, fome, necessidade de locomoção, ou seja, as necessidades concernentes ao ser
humano e não como desequilíbrios, injustiças, opções inadequadas etc. (Idem, ibidem)
Trabalho com a afirmação da prevenção enquanto produtora de relações e
subjetividades, a partir da antecipação e sistematização de possibilidades. As combinações
de elementos do possível podem abstratamente ser infinitas, como aponta Tarde (2007) e
são até certo ponto controladas pela impossibilidade humana de fazer emergir a todas, mas
também pela estrutura social presente em um determinado contexto histórico. Quijano
(2009) relaciona as opções e preferências às heterogêneas histórias em uma estrutura
societal. Para ele,

(...) as possibilidade de ação das gentes não são infinitas, ou sequer muito
numerosas e diversas. Os recursos que disputam não são abundantes. Mais
significativo ainda é o fato de que as ações ou omissões humanas não podem
separar-se do que está previamente feito e existe como condicionante das
ações, externamente e/ou dos desejos e das intenções . Por isso, as intenções
conscientes ou não, para todos ou para alguns, não podem ser decididas,
nem actuadas num vaccum histórico (QUIJANO, 2009, p.80).

30
A modernidade, o consumo, a colonialidade, a racialização das relações, o
patrimonialismo e o paternalismo, dentre outros, são elementos constitutivos da estrutura
social brasileira. Quando postos na combinação e formulação dos possíveis, tornam-se
saberes – ganham status científico e de verdade - e vão subsidiar as técnicas de
identificação dos suspeitos, funcionar como mecanismos de controle dos corpos, produtor
de subjetividades e relações que respondam ao poder em suas várias dimensões, estrutura e
padrão.

1.3 - Evitação/exclusão e as construções identitárias23

Na segurança esse algo a ser evitado são situações, contexto, espaços ou pessoas que
representem ameaças à segurança de ―pessoas de bem‖. Comportamentos ideais de como
evitar o perigo é, na maior parte dos casos, sinônimo de evitar pessoas perigosas ou locais
onde essas pessoas se encontrem24. Fundamentada em perfis traçados de pessoas que
cometem crime (estatísticas), de situações que geralmente oferecem riscos, na experiência
daqueles que trabalham diretamente com violência e em teorias ainda utilizadas por muitos
cursos de formação de especialistas em segurança como base bibliográfica, a saber, a
criminologia e a vitimologia dentre outros saberes, várias técnicas são desenvolvidas sob o
pretexto da defesa de pessoas ―inocentes‖.
O suspeito e a sua provável vítima podem ser lidos como o impuro e o puro,
respectivamente. Para Mary Douglas (1976), estas noções vão além do biológico e
constituem marcas que organizam uma coerência cultural, naturalizando e impondo
posturas. A impureza estaria ligada a desordem. Refletir sobre ela não é possível sem que
se analise sobre a ordem e a desordem. A pessoa suja, impura pode ser entendida como
aquela que representa ameaça. Ameaça de contaminação, por exemplo, ou da possibilidade
de desordem que se torna um perigo em razão da sua ambigüidade. Desse modo, deve-se
concentrar esforços para que os impuros sejam controlados e a ordem instituída.
A impureza pode ser identificada através de sinais ou marcas sociais
denominados por Goffman (1975) de estigmas. Como sinais identificadores que podem
estar relacionados aos aspectos físicos, mas também à imagem social que se faz de alguém,

23
No capítulo três as categorias e afirmações aqui trabalhadas estão esmiuçadas na análise da descrição dos
casos de suspeição
24
O curso online que informa técnicas comportamentais de como evitar o perigo descreve a correlação entre
comportamento ideal e processo de evitação de lugares e/ou pessoas perigosas.
31
o estigma é fonte geradora de profundo descrédito, ou entendido como um defeito,
fraqueza e desvantagem, sendo definido por Goffman como

[um] atributo profundamente depreciativo, um status proativo desfavorável,


um tipo especial de relação entre atributo e estereótipo. Criando a partir daí
a noção de normais e estigmatizados, ou seja, no estigma um indivíduo que
poderia ser aceito na relação social cotidiana é afastado e não aceito em
função de um atributo. (GOFFMAN, 1975, p.13)

Kristeva (1986) entende o sujeito estigmatizado e sujo em meio às relações com o


outro. Denomina-o sujeito abjeto e afirma que sua construção se faz através da exclusão e
da evitação. A rechaça do indivíduo concretiza identidades na medida em que estabelece o
Outro mediante a segregação e o subjugo. O que está em jogo no processo de construção
de identidades são as relações e suas assimetrias, sendo que a exclusão de um ―Outro
abjeto” corrobora como elemento na definição do ―Eu hegemônico‖. Dito de outra forma,
classifica-se e afasta sujeitos considerados sujos, desviantes, desordeiros, afastando assim
o perigo. Assim, constitui-se o processo de segregação e estigmatização dos ditos
―indivíduos risco‖, já que expõem ao perigo os ditos ―normais‖. Tanto Kristeva quanto
Douglas partem das relações sociais sob o princípio da diferenciação, na qual a identidade
emerge a partir da exclusão criadora do Outro – o abjeto e o impuro. Taylor (1993) aponta
na mesma direção quando trabalha com a importância do reconhecimento social na
construção da identidade. Para ele

Existe uma relação entre o reconhecimento social e a identidade, uma vez


que a identidade se relaciona com a interpretação da pessoa de quem ela é e
suas características enquanto ser humano. Essa identidade se modela em
parte pelo reconhecimento ou falta dele. (TAYLOR, 1993 p.43,44)25

Para entender melhor a relação entre identidade e reconhecimento social recorro à


noção de identidade em Taylor, ao qual se constituiria numa relação dialógica com outros
indivíduos ou grupos. Dessa forma, a construção da identidade pressupõe a existência de
um ―nós‖ que representaria elementos objetivos e subjetivos e que estão por trás da
formação de uma identidade. Nesse sentido, o indivíduo possui uma identidade ainda que
fragmentada e conflitual, muitas vezes contraditória e não resolvida (REIS, 2001, p.61,62).
O reconhecimento social negativo poderia ser um princípio construtor da identidade
depreciada, do indivíduo impuro e abjeto. O reconhecimento social negativo, não só

25
Versão para o português da autora.
32
produz o Outro abjeto, mas expõe esses indivíduos a um quadro depreciativo da própria
imagem, cultivando sentimentos extremamente negativos de si.
Quando esse reconhecimento social negativo se sedimenta historicamente, fazendo
parte do quadro de representações de uma sociedade, ela se constitui numa rede de sentidos
que naturaliza o que se pensa a respeito do grupo tornando assim muito difícil, até mesmo
por meio de lutas sociais, esses grupos conseguirem mudanças na legislação, ou nas
políticas sociais. Em outras palavras, diminuídos os obstáculos, esses grupos ainda sentem
dificuldade em saírem de uma situação de imagem depreciativa de si mesmos (TAYLOR,
1993).
Dois aspectos se apresentam, portanto, como importantes, segundo Pereira (2004),
na dinâmica de construção da identidade, a saber, a auto-imagem e o desejo de instauração
da ordem. A construção do marginal, sinônimo de violência, que contagia não é algo que
se dá unilateralmente e de fora. Consiste também do doloroso, lento e contínuo processo de
se considerar abjeto e de naturalizar em si o contágio.
É, então, que me reporto à teia metonímica anunciada, já no início do trabalho. Esta
sugere uma ligação contínua entre violência, medo, prevenção, estigmatização,
afastamento, exclusão e construção de identidades/auto e alter caracterizações. Cada termo
remetendo ao outro, em cadeia como parte e todo em determinado contexto.

1.4 - A expansão metonímica da violência e a configuração de identidades


societais na associação entre colonialidade e modernidade

Nas seções anteriores, pude explanar teoricamente as diversas categorias que


compõem a que constitui uma teia metonímica de expansão da violência e da exclusão
social. Teia essa que faz parte da formação discursiva do enunciado que positiva a
prevenção enquanto conduta e a evitação como meio de alcançá-la, produzindo, com isso,
exclusões e desigualdades, estigmas e identidades deterioradas, confirmando, assim, a
ambivalência desse enunciado. A heterogeneidade e os interdiscursos que perpassam o
enunciado devem, no entanto, ser analisados sob uma ótica mais ampla, a saber, o de
estruturas sociais históricas, sobretudo, se considerarmos o já anunciado anteriormente, de
que o discurso é histórico e possui uma materialidade não podendo se separar o poder do
saber, sendo que as práticas estão entremeadas de relações de poder, atualizando-as.

33
É, então, nesta perspectiva que as noções de colonialidade e de modernidade
cunhadas por alguns autores da pós-colonialidade são trabalhadas neste texto. Ao mesmo
tempo em que anunciam a possibilidade de um novo saber, denunciam elementos
estruturais que permeiam os saberes modernos atuais. A partir da eterna tentativa
acadêmica de classificação, estas formulações teóricas são apresentadas como tendências.
E de forma irônica e pejorativamente tendenciosa, por parte dos que acreditam numa
ciência ―normal‖, são encaixadas como parte de um pós-tudo, considerados como pós-
coloniais e pós-modernos, em meio à pós-imperiais, feministas, pós-humanos, teóricos da
interculturalidade ou da ecologia, da semiótica etc. Assumo aqui que partirei das críticas
levantadas pelos defensores do pós-colonialismo, para o qual a modernidade ―é o universo
onde as relações intersubjetivas, nas quais foram se fundindo as experiências do
colonialismo e da colonialidade26 com as necessidades do capitalismo, acabaram por se
configurar em um novo universo de relações intersubjetivas de dominação sob hegemonia
eurocentrada‖ (QUIJANO, 2009, p. 74).
Duas características da colonialidade de suma importância - enquanto padrão de
poder delineado historicamante - e que, por sua vez, colaboraram para delinear as relações
intersubjetivas atuais, são a construção do conhecimento e a definição de humanidade. O
conhecimento eurocêntrico, admitido como única racionalidade válida colaborou para a
naturalização das experiências, identidades e relações históricas da colonialidade e da
distribuição do poder colonial mundial. Apesar das mudanças dos conteúdos desse
conhecimento ele continua como símbolo da modernidade. A concepção de humanidade,
de forma hierarquizada, tinha enquanto principal característica a diferenciação dos
humanos entre inferiores e superiores, primitivos e civilizados. Essas duas características
são centrais na proposta de leitura e crítica societal mundial feita pelos pós-colonialistas e
que pode ser sintetizada, em suas economias explicativas – enquanto desdobramento - em
dois conceitos, a saber, as noções de ―colonialidade do padrão de poder‖ e ―colonialidade
do saber‖.

26
―Colonialidade é um conceito diferente de, ainda que vinculado a, Colonialismo. Este último refere-se
estritamente a uma estrutura de dominação/exploração onde o controle da autoridade política, dos recursos de
produção e do trabalho de uma população determinada domina outra de diferente identidade e cuja sedes
centrais estão, além disso, localizadas noutra jurisdição territorial. (...) a Colonialidade tem vindo a provar,
nos últimos 500 anos, ser mais profunda e duradoura que o colonialismo. Mas foi sem dúvida engendrada
dentro daquele e, mais ainda, sem ele não poderia ser imposta na intersubjectividade do mundo tão enraizado
e prolongado‖(QUIJANO, 2009, p. 73)

34
O poder, nessa perspectiva, se constituiria numa malha de
exploração/dominação/conflito articulados em torno da disputa pelo controle dos meios de
existência social. Dentre esses meios poderíamos ressaltar o controle da autoridade e dos
seus instrumentos com o objetivo de assegurar a continuidade do padrão das relações e
controlar as mudanças. No entanto, os elementos que constituem esses meios de existência
social são heterogêneos e não homogêneos, apesar de constituir uma totalidade histórica.
Tomando a experiência da América como exemplo, Quijano (2009) afirma que o que gera
as condições para a articulação é a capacidade que um grupo encontra para se impor sobre
outro, produzindo uma nova estrutura social e suas próprias histórias heterogêneas.

Para além do questionamento do poder no campo sócio-político e econômico27, essa


perspectiva questiona a produção de conhecimento atual tido também como produto da
colonialidade28. Dentre os produtos das relações de poder e saber coloniais se insere a
categoria ―raça‖ 29, construída histórica e ideologicamente, sistematizada cientificamente e
incorporada no senso comum. Essa categoria foi utilizada pela ―ciência‖ como forma de
explicação da diversidade e utilizada politicamente como forma de justificar as atrocidades
e violências coloniais a partir do século XVI na América. Os pós-colonialistas propõem, a
partir disso, a leitura dessa categoria como constantemente reconstruída e reatualizada no
transcurso da História e no cotidiano dos indivíduos. Tal proposta envolve, para além de
uma simples releitura de objetos de pesquisa, uma transformação política e epistemológica
enquanto caminhos para mudança social. Para estes teóricos, cada localidade – de acordo
com sua especificidade histórica e cultural– constrói sua própria relação e definição racial.
A imagem da identidade brasileira, por exemplo, é atravessada pela noção de identidade
mestiça, como culturalmente assimilacionista e politicamente integradora (MUNANGA,
2004).

27
Essas relações se traduzem em desigualdades entre países do centro e periferia, ou no interior do próprio
país que outrora foram colonizadores e colonizados, respectivamente. (MIGNOLO, 2002)
28
Quijano (2005) denomina esse fenômeno de “colonialidade do saber”, argumentando, entre outros, a
partir da análise de uma geopolítica do poder e do conhecimento.
29
Nas próprias palavras de Quijano (2005, p.1): ―raça é uma construção mental que expressa a experiência
básica da dominação colonial e que desde então permeia as dimensões mais importantes do poder mundial,
incluindo sua racionalidade específica, o eurocentrismo. Esse eixo tem, portanto, origem e caráter colonial, mas
provou ser mais duradouro e estável que o colonialismo em cuja matriz foi estabelecido‖.
―Raça é um conceito que não corresponde a nenhuma realidade natural. Trata-se,ao contrário, de um conceito que
denota tão somente uma forma de classificação social, baseada numa atitude negativa frente a outros grupos sociais, e
informada por uma noção específica de natureza, como algo endodeterminado. A realidade das raças limita-se,
portanto, ao mundo social‖. (Guimarães, 1999 p.9)

35
Os conceitos de ―temporalidade e governamentalidade” apresentados por Bhabha e
o de ―colonialidade do padrão de poder”, de Quijano, podem ser ilustrativos para o
entendimento da teoria. Bhabha discorre sobre as violências produzidas no período
colonial as quais geraram posteriormente governamentalidades (BHABHA, 1998), em
outras palavras, formas de produzir conhecimento totalmente atrelados a princípios
construídos na relação colonial. Quanto a temporalidade, citando Fanon(1983) em sua obra
“Pele negra, máscaras brancas”, Bhabha interroga criticamente a identidade acrítica do
discurso colonial e ao fazer isso, distinguindo também as temporalidades diversas de um
lado e de outro ele apresenta uma prerrogativa colonial. Quanto a essa prerrogativa
colonial, Bhabha afirma que

A intervenção da crítica pós-colonial ou negra tem por objetivo transformar


as condições de enunciação no nível do signo –no qual se constitui o domínio
intersubjetivo- e não simplesmente estabelecer novos símbolos de
identidade, novas” imagens positivas” que alimentam uma “política de
identidade” não-reflexiva”. O desafio à modernidade está em redefinir a
relação de significação com um “presente” disjuntivo: encenando o passado
como símbolo, mito, memória, história, o ancestral - mas um passado cujo o
valor iterativo como signo reinscreve as “lições do passado”na própria
textualidade do presente, que determina tanto a identificação com a
modernidade quanto o questionamento desta: o que é o” nós” que define a
prerrogativa do meu presente? A possibilidade de incitar traduções
culturais por entre discursos minoritários surge devido ao presente
disjuntivo da modernidade.(BHABHA, 1998, p.341)

As questões, portanto, envolvendo os negros, mestiços e indígenas na América


Latina estariam estruturalmente relacionadas à colonialidade do poder construtoras de
governamentalidades as quais desconsideram totalmente as diversas temporalidades
buscando a universalização de seus princípios como únicos e verdadeiros. No entanto,
como coloca Quijano (2004), apesar da colonialidade estruturante, onde esse poder escapa
das mãos do branco, os grupos ―subalternos‖ conseguem dar outros significados as suas
identidades e abrir espaços para a produção de outras formas de conhecimento e de
subjetividades. Dessa constatação, é que ele propõe, como outros, o projeto de
interculturalidade, no qual não só seria reconhecida a diversidade, mas estas teriam voz e
espaço político. O envolvimento de intelectuais engajados e comprometidos politicamente
com a proposta pós-colonial de transformação da realidade é um dos aspectos do
36
desdobramento prático e político desse projeto. Esse envolvimento tem, enquanto objetivo,
a busca de transformação do que tange a ―colonialidade do poder e do saber‖ propondo a
interculturalidade30 na produção de conhecimento. Tal noção é utilizada atualmente como
bandeira política por muitos movimentos sociais, mas também como proposta
epistemológica. Em outras palavras, seria uma tentativa de transcender o caráter acadêmico
da teoria, respondendo a questões políticas, propondo a legitimização das diversas visões
de mundo e epistemologias possíveis.
A proposta intercultural vem de encontro ao multiculturalismo então defendido por
alguns teóricos da diversidade. A prerrogativa da coexistência de saberes é defendida pelos
pós-colonialista em contraposição ao simples reconhecimento da diversidade como coloca
o multiculturalismo31. Ao defender a diversidade e a plena convivência dos diversos
saberes de forma simétrica, os pós-coloniais põem em xeque o binarismo tão presente na
visão ocidental e utilizada, como bem coloca Quijano (2005), para justificar as relações de
poder desiguais. O binarismo traduzido em Ocidente de um lado e não-Ocidente de outro,
desconsidera a história inter-relacionada de todos esses grupos (MIGNOLO, 2002),
diluindo as diversidades e identificando o não Ocidental como o inferior e que vive em
eterna falta. O binarismo utilizado como base para construção epistemológica da produção
de saber e na forma de intervenção política é combatida pelos pós-coloniais com a proposta
da interculturalidade, com o formato de convivência plural de todas as formas de
conhecimento e culturas existentes.

Importante ressaltar também que essa tendência é marcada pela diversidade entre os
autores quanto às categorias empregadas. Igualmente relevante é apontar a postura política
dos que adotam a perspectiva e uma das expressões disso é a discordância entre seus
adeptos quanto à importância ou não da inserção deste pensamento de forma sistematizada
na academia. Isso porque uma das principais críticas desses teóricos é quanto ao caráter
eurocêntrico que marca a produção dos estudos científicos, inclusive das ciências sociais.

30
Segundo Castro-Lucic (2004, p.131), ―o concepto de interculturalismo, supone la existência de
determinados valores y uma opción por el reconocimiento de las particularidades de la cultura propria, y
fundamentalmente, las fuentes que instalan el término em las relaciones de poder que se estabelecen entre
diferentes culturas así como los fenómenos resultantes, cuando aquéllas entran em contacto‖.
31
Para Castro-Lucic (2004, p.130), ―Comparativamente, diremos que el concepto de multiculturalidad es
utilizado muchas veces indistintamente com interculturalidad, pero aquel denota básicamente la aceptación
de la existência de uma multiplicidad étnica y cultural em uma sociedad determinada com el respaldo legal
de derechos a las diferencias, la presencia de varias culturas, y la constatación de uma diversidad cultural‖.
37
O pós-colonialismo pode ser entendido, então, como conceito, tendência teórica e
proposta política apresentando um caráter de denúncia, decorrente da relação colonial, mas
também de proposta de mudança epistêmica e política. Seu formato teórico se dá ao
instituir categorias de estudo sistematizadas em uma tendência que promove críticas às
categorias da ciência Ocidental e à prática colonial e pós. Enquanto tendência teórica, esta
se traduz em uma epistemologia que tenta fugir da idéia convencional de paradigma e que
tem por objetivo compreender o mundo a partir de outras categorias e epistemes. Como
conceito, ele pode ser acionado para entender um processo que envolve relações entre
países que vivenciaram a colonização e de alguma forma foram afetados por ela. Essa
afetação é percebida hoje nas relações econômicas, políticas, de construção de saber e de
subjetividades, muitas vezes mascaradas nas intenções de análise da realidade, em um
formato de ciência ―moderna‖ e em retóricas políticas e discursos democráticos. E por fim,
enquanto proposta política, realiza uma releitura das relações marcadas pela colonialidade
e das relações atuais com a intenção de promover mudanças. Compreende as relações
atuais como desdobramentos das relações de poder e estruturas sedimentadas no contexto
colonial e presentes atualmente em vários âmbitos e princípios como assinala Mignolo,

Los princípios del ALCA non son menos ilusórios o engañoso que sus
objetivos. (...) El ALCA es solo uno de los ejemplos recientes de la pujante
retórica del la modernidade que oculta su contraparte malintencionada: la
colonialidade. (MIGNOLO, 2007, p.121).

No entanto, é preciso fazer uma ressalva. Pensar qualquer projeto de construção do


conhecimento encerrado, sob a rubrica de ciência desvinculado do saber ocidental e
moderno, é praticamente impossível, uma vez que, como coloca Appiah (1997), tanto o
pós-modernismo e o pós-colonial quando levados ao limite se aproximam em certa medida
do modernismo. Para esse autor o pós de pós-colonial e de pós-moderno é um pós de abrir
espaço para si. Appiah (1997) em sua análise tenta trazer para a discussão o contexto em
que os intelectuais africanos estão inseridos, na tentativa de tornar o debate mais
complexo. Segundo o autor, de uma forma a que ele mesmo chama de ―pouco generosa‖ os
intelectuais pós-coloniais,

(...) são um grupo de escritores e pensadores relativamente pequeno, de


estilo ocidental e formação ocidental, que intermedeia, na periferia, o
comércio de bens culturais do capitalismo mundial. No ocidente eles são

38
conhecidos, pela África que oferecem; seus compatriotas os conhecem pelo
Ocidente que eles apresentam à África e por uma África que eles
inventaram para o mundo, uns para os outros e para a África (APPIAH,
1997, p.208).
(...) são quase totalmente dependentes de duas instituições: a universidade
africana – uma instituição cuja vida intelectual é maciçamente constituída
como ocidental – e os editores e leitores euro-americanos. (APPIAH, 1997,
p.209).

A partir das reflexões feitas acima, pode-se dizer que, apesar da importância da
crítica ao padrão de poder colonial, é necessário compreender os autores pós-coloniais em
sua relação com os países centrais, desde a formação acadêmica dos mesmos até suas
inserções na geopolítica do poder e do saber. A partir de suas próprias premissas pós-
coloniais de que toda enunciação tem uma localidade, inclusive na produção de
conhecimento, não seria, portanto, nada coerente tirá-los desse processo, analisando-os
fora de seus contextos ou localidades. No entanto, acredito que como reflexão, o pós-
colonialismo coloca um novo marco analítico, a saber, o do sujeito inserido em discursos
de poder localizados, analisando-os historicamente e que ao mesmo tempo transcende a
teoria e propõe um projeto político de transformação social e de combate a opressão
constituindo uma inovação e contribuição valiosa.
A análise do caso brasileiro é profícua para o entendimento dos postulados pós-
colonialistas ao apresentar elementos e categorias evidenciadas e problematizadas por seus
teóricos. A noção de diversidade, em contraposição às construções de identidades
homogeneizadas - como foi, por exemplo, o projeto de construção da imagem do brasileiro
e sua identidade essencialmente mestiça -, é um dos aspectos de crítica e da luta política
empreendida pelos intelectuais do pós-colonialismo.
Ao deslocar para a colonização o que antes era atribuído a um projeto da
modernidade, como a epistemologia científica, por exemplo, autores da pós-colonialidade
trazem um importante elemento para se pensar. Ao enfatizar também, a importância da
História na constituição de seus objetos, ampliam a possibilidade de análise. Ao aliar
pressupostos teóricos à proposta política de transformação social, dão uma grande guinada
no formato acadêmico, que na maioria das vezes se recusa em pensar seus trabalhos a
partir da possibilidade de interação política e social dos mesmos. No entanto, chamo
atenção concordando com Appiah (1997), quando este coloca a necessidade em se
considerar as nuances ocidentais a serem consideradas nos teóricos ou na teoria, pelos seus
locais de fala e a formação de ambos. Dessa forma, acredito que aplicar os seus

39
pressupostos aos próprios preceitos e análise da teoria pode ser fortuito para as
transformações e reavaliações das mesmas.
Esse longo parêntese foi aberto afim de apontar pressupostos básicos, conceitos e
ferramentas analíticas que nos permitam compreender as série de categorias – trabalhadas
no capítulo anterior – e as práticas observadas em campo, muitas vezes entendidas como
atributos da modernidade de forma descontextualizada – temporal e espacialmente.
Assumo neste trabalho que, a despeito dos problemas já apontados com relação à
totalidade do arcabouço teórico e político pós-colonialista, corroboro com as noções de
“colonialidade do padrão de poder e do saber”, bem como da “racialidade”, dentre
outras categorias, como constructo estrutural desse padrão. Por fim, como já anunciado
anteriormente, a série de categorias que fazem parte da metonímia de expansão da
violência defendida aqui não podem ser vistas de forma isoladas enquanto produto
simplesmente de mudanças circunstancias da modernidade. Tentei apontar, de forma
diversa, os âmbitos que envolvem a teoria. Aqui nesse empreendimento textual me
contento em utilizá-la enquanto parte da perspectiva analítica dos aspectos estruturais do
discurso, falas, ações e práticas da violência, da prevenção e da construção dos sujeitos em
uma sociedade com traços e vivências de colonialidade, o Brasil.

40
CAPÍTULO 2:

NOVAS TECNOLOGIAS DE SEGURANÇA: IDENTIFICAÇÃO DE


SUSPEITOS, INFORMAÇÃO, TÉCNICA E TREINO CORPORAL NO
DISCURSO DA PREVENÇÃO AO CRIME.

Quase todos os homens morrem de seus remédios, não de suas doenças


Moliére

É preciso ver técnicas e a obra da razão prática coletiva e individual, lá onde


geralmente se vê apenas a alma e suas faculdades de repetição.
Marcel Mauss, 2003.

41
No capítulo anterior, apontei discussões teóricas relevantes sobre as categorias que
formam a metonímia de expansão da violência, bem como elementos estruturais
subjacentes ao encadeamento narrativo que a compõe. Após esse momento teórico,
proponho a análise dessas categorias em ação, em outras palavras relacioná-las aos
discursos, falas e práticas sociais32. Para tanto, neste capítulo, faço uma análise de três
situações com as quais tive contato, em Brasília, em julho de 2009, e que me levaram a
alçar as questões que norteiam esta investigação. Estes são, portanto, os primeiros indícios
que apresento aqui. Indícios de um pensamento, um comportamento e um discurso
preventivo em diversas dimensões. Igualmente, indicativos de uma necessidade e
positividade do comportamento preventivo e de seus efeitos, os três eventos analisados
foram: o encerramento de um projeto anti-drogas e de combate a violência de escolas
classe e de ensino fundamental (crianças de seis a onze anos) da rede pública do DF; um
curso online o qual sistematiza regras de conduta com o propósito de capacitar pessoas de
―bem‖ para o reconhecimento de situações perigosas, evitando assim que se tornem
vítimas de violência urbana; um curso de autodefesa – Krav Magá - ministrado na Asa
Norte, setor do Plano Piloto. Curso que freqüentei por aproximadamente um mês.
Devido à especificidade urbana da cidade, faz-se necessário contextualizar os
eventos descritos em seu espaço geográfico. Brasília, uma cidade planejada, diferencia-se
de outras cidades brasileiras e tem peculiaridades que ajudam a entender o contexto de
violência em meio a seu espaço. É conhecida por, entre outras características, sua
fragmentação espacial e a marcada segregação social. Dito de outra forma, é evidente, mais
que em outros locais, a existência de cidades predominantemente ricas e outras
notadamente pobres. Segregação essa que acaba por ser também expressa nos índices de
violência, imensamente maiores nas cidades pobres. Isso acontece devido à carência de
políticas públicas de Estado, mas, além disso, por serem visadas pela mídia – que
espetaculariza a violência e com suas ―versões oficiais‖ expõe diariamente em seus meios
de comunicação o que denominam lugares – tanto espaciais quanto relativos ao indivíduo -
foco de violência. Em uma pesquisa sobre a leitura e os discursos na mídia sobre violência
em Brasília, Tânia Montoro (1999) aponta como um dos resultados de sua análise
que em virtude do privilégio concedido às versões “oficiais”, a violência é
necessariamente construída na linguagem da transgressão e da
marginalidade. Como essas questões permeiam as notícias e assinalam seus
limites, acabam marcando a distinção crucial entre aqueles que
“pertencem”à sociedade e aqueles que estão “fora dela”. (p.111)

32
Proposta articulada nos capítulos 2 e 3.
42
Dito de outra forma, o bombardeamento de notícias sobre violência em Brasília é,
como em outras capitais, bastante acentuado e as versões oficiais acabam por ressaltar a
incidência de criminalidade das cidades satélites, marcando, muitas vezes, a distinção entre
quem pertence à sociedade e quem está fora dela, espacialmente, correlacionando
respectivamente ao centro e periferia da cidade homogeneizando e estigmatizando os
moradores dessas cidades.
A desigualdade marcada não anula a diversidade no interior desses locais. Cidade
construída, nos anos 60, às custas da imigração de indivíduos das diversas regiões do país,
principalmente da região nordeste, testemunha uma grande diversidade de traços culturais
no seu interior. No entanto, essa diversidade é mascarada numa maior concentração de
grupos regionais específicos em cada cidade. Exemplo disso é a concentração de
nordestinos na Ceilândia, Recanto das Emas e outras cidades periféricas e de cariocas,
paulistas, mineiros no Plano piloto, Cruzeiro, Guará etc,cidades mais centrais dando a
sensação de uma dicotomização extremada que reflete a desigualdade sócio-econômica do
país.
Outra característica marcante da cidade é a disposição dos espaços públicos e a
apropriação que se faz dele. Nas cidades elitizadas e centrais – Plano piloto, lagos,
Cruzeiro, Guará etc - há uma disponibilidade de espaços públicos de lazer muito maior, em
comparação com as cidades não elitizadas. A apropriação desses espaços também denuncia
a desigualdade e a exclusão, como parte da organização espacial da cidade. As praças, a
orla do Lago e vários outros locais são de difícil acesso, quando não estão cercadas, ou
vigiadas por seguranças sob a justificativa de evitar a violência e proteger o patrimônio dos
moradores e o comércio local.
A dificuldade de deslocamento das pessoas entre esses locais é também outra
peculiaridade que ajuda a delinear as vivências, comportamento e sensações em relação à
criminalidade e a violência. Prejudicados pela disposição espacial e pela precariedade do
transporte, o ―isolamento‖ entre as cidades, principalmente, entre Plano Piloto e Cidades
Satélites faz parte de sua característica urbana. O trânsito, quando acontece, obedece a um
movimento que vai mais da periferia ao centro que o contrário, sendo comum esse
movimento somente para suprir mão-de-obra no mercado de trabalho do centro.
Apesar da clara evitação do contato entre os sujeitos do centro e os da periferia
favorecida pela disposição espacial, e também do fato de Brasília não ser enquadrada entre
as cidades mais violentas do país, a prevenção e promoção de segurança é uma
43
preocupação constante do brasiliense, evidente nos muros, no aumento do número de
condomínios fechados nos últimos dez anos, na tentativa sempre constante de associações
de moradores dos ditos condomínios em barrar projetos de construção de locais públicos,
como escolas, hospitais com a finalidade de impedir que moradores de outras cidades
cheguem até eles33·. O bombardeamento diário, na mídia, por índices estatísticos de
violência demonstrando o aumento exorbitante de atos criminosos, além de casos de
crimes bárbaros que são explorados até o esgotamento, traz a sensação de que a ilha de paz
que caracterizava a cidade está se transformando em caos e violência por todos os lados34.
Além do espaço em comum para o desenrolar dos eventos, outros dois aspectos
contextuais devem ser levados em consideração no desafio em analisá-los. O primeiro
deles é a forma que adquire a prática preventiva. Os ―enclaves fortificados‖ 35 ou
mecanismos materiais estão aumentando com o aumento do número de condomínios. Tão
famosos por promover a separação de grupos no espaço urbano (CALDEIRA, 2003), a
saber, os muros, os alarmes, blindagem de carros etc; que, segundo Caldeira, modificam o
caráter do espaço público e a participação dos indivíduos também (Idem, ibidem, p. 211,
212), não são as únicas formas de promover a evitação do crime em Brasília.
O medo do crime violento, sinalizado como justificativa, é igualmente o medo do
contágio e em Brasilia a área delimitada do contágio é definida pela sua arquitetura,
urbanização e isolamento das cidades, sendo os contatos entre os seus moradores vistos
sempre como um risco, pelo medo do contamino ou da possibilidade de desordem. À
organização espacial soma-se a mecanismos naturalizados, de senso comum ou

33
Notícia publicada pelo correio brasiliense em 10/01/2010 relata e ilustra bem a vontade de isolamento de
alguns grupos da cidade: ―O caso da extinta Praça Jandaia remete à negativa dos moradores do Sudoeste
quanto à construção de escolas públicas. Eles não queriam barulho nem aumento na movimentação de
moradores da Octogonal e do Cruzeiro pelas quadras — e houve quem se mobilizasse para alterar a
destinação das áreas reservadas por lei aos centros de ensino (leia Memória). À época, os moradores de um
bloco do Sudoeste chegaram a demolir uma quadra poliesportiva que passara a ser utilizada por gente que
não morava no prédio. (...) Em abril de 2000, os líderes comunitários do Sudoeste se mobilizaram para
solicitar a construção de praças e quadras esportivas em áreas destinadas por lei a escolas públicas. Os
moradores argumentavam que não havia demanda na região para a implantação de colégio do governo, já que
seu poder aquisitivo permitia o pagamento de instituições particulares. Segundo eles, as escolas que
porventura fossem construídas no setor contemplariam apenas os moradores de regiões próximas, como
Cruzeiro e Octogonal‖. Disponível em:
http://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia182/2010/01/10/cidades,i=165549/BRASILIENSE+SE+RE
LACIONA+MAL+COM+AREAS+DE+USO+PUBLICO.shtml
34
Ironicamente Brasília é tombada como patrimônio da humanidade por sua arquitetura e planejamento
caracteristicamente ―moderno‖. Sua proposta inicial – idealizada por Niemeyer e Lúcio Costa - era a de
promover uma cidade sem muros, sem ruas, sem esquinas, que fosse de fácil acesso e promovesse a
integração das pessoas de forma democrática, sem muros, sem separações, sem hierarquias. No entanto, o
que se vê hoje é uma hierarquização dos espaços, uma segregação sem muros.
35
Espaços privatizados fechados e monitorados para residência, consumo, lazer, trabalho. A sua principal
justificação é o medo do crime violento (CALDEIRA, 2003).
44
especializados de identificação dos vários sinais físicos e comportamentais que fazem com
que as pessoas passem a se perceber e a perceber o Outro enquanto invasor – leia-se
enquanto ceilandense, gamense etc. – instituindo uma forma de prevenção, qual seja, a de
evitar o acesso das pessoas de cidades satélites ao centro. Outras formas de prevenção são
elaboradas tentando cercar todas as possibilidades de ocorrência da violência. Projetos
educativos são um exemplo de outra forma de tentar barrar o contato violento ou com a
marginalidade, evitando que os que viriam a ser marginais se tornem um fora de ordem.
Mas, para os casos em que nem a arquitetura, nem o controle pela instituição educacional
funcionam, existem conhecimentos, técnicas, tecnologias de defesa para tentar diluir a
expectativa de contato-ataque contra pessoas de ―boa índole”.
Outra característica importante é a fonte de conhecimento, ou seja, em que se
baseiam essas práticas? E o que se observa é uma importação de projetos e de idéias de
como agir quando a preocupação é a violência ou a promoção da segurança e a paz. Em
dois sentidos se observa essa importação, qual seja, de projetos concretos e de um saber
científico e Ocidental. A importação de experiências ―bem sucedidas‖ estadunidense, como
o tolerância zero36, constitui um exemplo de projeto concreto, literalmente copiados de um
país que em muito pouco coincide com a realidade e os problemas brasileiros. Saberes
acadêmicos e profissionais especializados que legitimam as ações com suas pesquisas e
dados, assim como constroem enunciados produtores de relações de poder e de
subjetividades, bem como de conceitos e leituras da realidade que tendo o status de
verdade são apropriadas pelos projetos concretos interferindo diretamente no cotidiano das
pessoas37.
Sou levada a crer, a partir de tudo o que foi explanado, que enquanto princípio
organizativo, a prevenção constitui em si uma cosmologia. E em termos discursivos, na sua
configuração ideal, é assim que ela é apresentada, como quem produz subjetificações
totalmente novas, plurais e humanitárias, gerando nos indivíduos uma meta-aprendizagem,
tanto conceitual quanto gramatical, fazendo com que novas relações sejam delineadas, mas

36
O tolerância zero é um projeto estadunidense que foi elaborado segundo a perspectiva da Escola de
Chicago. Analisa a distribuição espacial da criminalidade, propõe a elaboração de instrumentos para
visualizar melhor a cidade seus problemas e criminalidade. Ele é criticado pelo uso abusivo de violência e
autoritarismo e por focar em delitos convencionais, não se preocupando com crimes de corrupção, por
exemplo. Foi importado dos Estados Unidos e é utilizado de forma indiscriminada em vários estados
brasileiros.

37
Alguns desses saberes serão mais bem trabalhados no capítulo três.
45
igualmente que haja uma nova forma de apreender o seu próprio corpo e o outro. Não
discordo totalmente dessa proposição. Discordo na medida em que ela considera uma
ruptura radical com outra forma de organizar o mundo, a das punições e resoluções
posteriores, ou quando acredita somente na convivência destes dois parâmetros
ocasionando a ambivalência que, por vezes, se apresentam nos contextos. Em um nível
meta-discursivo, acredito em traços ainda de estruturas outras na formulação dos próprios
princípios, discursos, formas comunicativas e pragmáticas. A cosmologia da prevenção
está intimamente ligada à forma de organizar o mundo, através também da exclusão e da
evitação. Não são resquícios nem convivência de princípios, mas uma combinação de
ambos, numa lógica em que o discurso preventivo mascara a aberrante exclusão que causa.
Seguindo a premissa de que forma e conteúdo não se separa (PEIRANO, 2002) e
que as ações dos indivíduos e grupos fazem parte dos princípios organizativos do grupo é
que procuro, para além da constatação, queixa ou busca pela causa da violência e
criminalidade no meio urbano, o sentido nativo na caracterização do eu, do outro e do meio
em que vivem. Meu intento é o de compreender essas ações de prevenção, os significados
que emergem das falas e práticas que são tomadas aqui como integradas e indissociadas.
Para tanto, e para efeito de estratégia analítica, os três eventos foram sistematizados em
dois grupos distintos. A segunda e a terceira situação foram reunidas em um único grupo
por terem um mesmo desígnio e dirigirem-se a um grupo de sujeitos, afins, quando
considerados em contraposição ao primeiro evento.
A construção textual deste capítulo se dividirá em três etapas. As duas primeiras
descreverão, numa perspectiva em parte ―horizontal‖, a seqüência que compõe os eventos.
Neste ponto do trabalho, pensarei essas situações como mecanismos comunicativo-
pragmático, revelador, na sua série, de signos e elementos que caracterizam os sujeitos,
bem como a complexidade e ambigüidade dos discursos. Na terceira parte – considerações
finais, numa perspectiva ―horizontal e vertical‖, analisarei como tais acontecimentos
combinam, como num jogo, entre os princípios organizativos ideais e a experiência vivida,
as estruturas sociais vigentes, formando uma teia metonímica de expansão da violência.
Defenderei, neste momento, que esse jogo/combinação emerge no formato discursivo e
mascara relações de poder, reatualizando caracterizações antigas a partir de formas de
atuação e noções de sujeito novas.

46
2.1 - O desenrolar dos eventos

Quando fui convidada a participar do encerramento de um curso de prevenção às


drogas e à violência, realizado em uma escola pública do DF, constatei não só a relevância
do tema para as pessoas envolvidas, mas a potencialidade e riqueza do repertório simbólico
partilhado sob o texto da violência e criminalidade, sua recorrência e necessidade de ações
sociais que a combatessem. O evento se desenrolou, 15 de maio de 2009, em um ginásio de
esportes – Nilson Nelson - concentrando diversas escolas das cidades satélites – pseudos
bairros em Brasília. Foi promovido pela Polícia Militar e representou o encerramento do
curso que faz parte de um programa nacional e educativo; uma parceria entre Polícia
Militar e Secretaria de Educação com o objetivo de ―formar futuros cidadãos, que saibam
conviver, cultivar a cultura da paz e desenvolver a capacidade de dizer não às drogas‖
Instigada com os acontecimentos do evento e com o repertório da prevenção, decidi
fazer uma pesquisa online do que o mercado oferecia para quem quisesse se prevenir e
qual eram as justificativas para esse tipo de ação. Encontrei diversas propostas
interessantes e elucidativas, não só do mercado privado, mas do Estado, da Academia. Na
pluralidade de propostas, encontrei a de uma polícia científica, por exemplo, prometendo
de forma sistematizada uma maior eficiência nas investigações e na prevenção ao crime.
Guias de instituições públicas orientando estados e municípios na arte de prevenir
violência. Mas, duas foram particularmente instigantes: um curso completo gratuito, online
de como se comportar cotidianamente para não ser alvo de violência, e um curso presencial
de auto defesa – Krav-maga – em que pude freqüentar algumas vezes. A razão de minha
escolha foram duas: A primeira é a de que são iniciativas privadas, ligadas a um mercado
de consumo, que refletem ao mesmo tempo em que constroem uma demanda. E, além
disso, se contrapõe a uma iniciativa pública, do projeto PROERD na escola e, assim, me dá
uma visão mais abrangente da amplitude da prevenção permeando o cotidiano de
pensamentos e ações dos indivíduos. A segunda, devido ao seu objetivo sendo que o dos
cursos de auto-defesa é de formar corpos hábeis e conhecedores da arte de evitar tornarem-
se vítimas contrasta-se com o objetivo formativo, educativo, buscando a formação de
cidadãos conscientes, não violentos, aptos a conviver em sociedade, do projeto Proerd.
Dito de outra forma, todos se preocupam com aptidões, habilidades38, mas um em

38
Como todas as situações se preocupam com os corpos e o desenvolvimento de habilidades corporais e
domínio técnico, optei pro tratar desse tema em um subtítulo separado ao final do capítulo.
47
desenvolver a não aptidão ao crime, a docilidade social e o outro em cultivar a habilidade
em evitar se tornar vítimas desses não dóceis e quase não-humanos cidadãos.

2.2 - A violência como espetáculo e o discurso ambíguo da prevenção pela


educação: O caso do encerramento do curso Proerd no Distrito Federal.

A espetacularização da violência está intimamente ligada à banalização da mesma,


bem como à veiculação rápida e numerosa de notícias pela mídia. A rapidez nas mudanças
de opinião e nas certezas das pessoas aparece como resultado da quantidade de
informações e de imaginações veiculadas pela mídia. O esquecimento e a substituição de
acontecimentos diários que viram notícia, dando lugar a outros acontecimentos colaboram
para o processo do tornar-se indiferente às questões de violência. O filme Tropa de Elite
(2007) tem como protagonistas o BOPE – batalhão de operações especiais - e é um bom
exemplo de produto veiculado pela mídia, caracteristicamente através de imagens, e que
teve como um de seus resultados a glamorização e a aprovação social da violência
empreendida pela instituição policial. O mais pirateado do ano em que foi lançado, seus
protagonistas obtiveram o status de heróis nacionais, aplaudidos socialmente por um vasto
público. Todo esse contexto, como já foi apontado influi na sensação de insegurança e
aflição das pessoas. A violência adquire um sentido frívolo e banalizado tornando-se como
algo trivial, comum.
Na mídia, os programas assumem ao menos dois formatos quando diz respeito à
violência, qual seja, programas que trazem simulações e dramatizações da vida real e
imagens espetaculares veiculadas nos noticiários. Muitos desses episódios ganham na sua
veiculação, feita de forma atrativa e em repetidas vezes, o sentido de algo comum, natural.
Segundo Guy Debord em ―A sociedade do espetáculo‖ (1997), o que ocorre é uma
inversão e a realidade é tomada pela contemplação do espetáculo sendo este assumido de
forma positiva, fazendo a realidade surgir do espetáculo e tornarem-se reais através das
imagens.
A espetacularização da violência é, também, habilmente trabalhada em vigiar e
punir (1997) por Foucault, principalmente, quando aborda os suplícios. Atribuídos à forma
de punição do período absolutista, os suplícios foram penas corporais dolorosas e com
requinte de crueldade, variando seu grau de violência de acordo com o crime cometido,
segundo a avaliação dos representantes do poder vigente. O autor salienta que os suplícios

48
eram acima de tudo um espetáculo e este se constituía em momento de demonstração de
força do rei com objetivo de servir de exemplo e causar intimidação aos demais súditos.
Foucault mostra ainda a passagem desse tipo de punição/violência espetacular para
um castigo ―moderno‖ de caráter gradual, lento e mascarado no discurso da socialização.
Centrado na vigilância, essa nova forma de punir caracteriza uma nova configuração de
poder, saber e mecanismo de controle dos corpos. A sutileza passou a ser expressa em
técnicas e o espetáculo dá lugar à vigilância enquanto forma de controle. No entanto, é
importante que se ressalte, como já mencionado no capítulo um, que na dinâmica
características das mudanças de mecanismos de poder, do discurso, dos saberes, o
mecanismo atual não eliminou definitivamente o que havia anteriormente, apenas o
revestiu, incorporou. A violência como espetáculo, portanto, não desapareceu
completamente, passou para o domínio da mídia e do mercado de marketing, mas também,
das dramatizações e representações em espaços e momentos específicos como o projeto
que descrevo logo abaixo. Ela utiliza o mecanismo da sutileza, da linguagem e de toda a
tecnologia moderna para incutir o medo e justificar a vigilância, como um círculo vicioso.
Enquanto uma dramatização com formato de show televisivo, a formatura do
projeto Proerd parece traçar um paralelo com os programas televisivos, primeiramente,
com uma evidente preocupação em reapropriar o real e/ou reproduzir o midiático de forma
a torná-lo mais interessante e em contrapartida tem do público o desejo em se encantar
com a dramatização mais do que avaliar o sentido do conteúdo dramatizado. Sem mais
delongas, passemos para a descrição da formatura do projeto Proerd.
É a primeira situação que analiso. Como Programa Educacional de Resistência às
Drogas, o curso é uma adaptação brasileira do programa norte-americano Drug Abuse
Resistence Education – D.A.R.E., surgido em 1983. Evidente importação de um modelo
estadunidense, no Brasil, o programa foi implantado em 1992, pela Polícia Militar do Rio
de Janeiro, e hoje é adotado em todo o Brasil. Segundo expresso no material divulgado
pelo programa ele

consiste em uma ação conjunta entre os policiais militares, escolas e


famílias, no sentido de prevenir o abuso de drogas e a violência entre
estudantes, bem como ajudá-los a reconhecer as pressões e as influências
diárias que contribuem ao uso de drogas e a prática de violência,
desenvolvendo habilidades para resisti-las. O Proerd é mais um fator de
proteção desenvolvido pela Polícia Militar para a valorização da vida, que
imbuída de sua missão institucional, vem proficuamente trabalhando no
sentido de fortalecer a cultura da paz e a construção de uma sociedade mais
saudável e feliz (Apresentação do livro de Estudantes do Proerd em 2009).

49
Ao longo da ―formatura show‖ das crianças da cidade satélite de Brasília, a
caracterização dos policiais e das crianças é enfatizada e reafirmada durante todo o evento.
A condução do referido evento, levada a cabo pelos policiais, marca um contexto de
situação que interfere num jogo de confronto entre o ―eu‖ e o ―outro‖, intermediado pelo
Terceiro, assinalado por Crapanzano (1992c). Esse terceiro é também um ―garantidor de
significado‖. A estabilização da relação de tensão dada pelo confronto entre o eu e o outro
dá-se de forma assimétrica com a maior incidência de símbolos indéxicos referentes à
caracterização do policial, dando a sensação de que a figura dele encerrada na imagem de
herói, forte e protetor é mais estável que a caracterização das crianças 39. O terceiro garante,
neste caso, a estabilidade da caracterização do policial mascarando a instabilidade das
representações deste no cotidiano, qual seja, o de um policial que protege, mas que
também é violento ou ainda que é humano, mas muitas vezes é acusado de atos
desumanos.
O encerramento do curso - a formatura dos alunos – foi escolhido para análise nesse
texto por apresentar de forma concentrada uma série de mensagens que em sua
comunicação acabam por encerrar significados. Chegando ao local da formatura – um
ginásio de esportes – o que logo me chamou atenção foi o símbolo do programa. Em forma
de painel, havia o desenho de um grande leão robusto e musculoso segurando um enorme
coração. Sentada em uma arquibancada percebi que o lugar estava lotado de crianças e à
medida que o ―locutor/apresentador de auditório‖ que também era um policial militar
saudava os presentes fui percebendo que eram escolas públicas, exclusivamente, das
cidades satélites. O que é um fato relevante e intrigante, já que no centro também existem
escolas públicas e a característica primordial do sistema público de ensino é a
homogeneização, ao menos em principio, das suas ações.
A figura do leão, logo na entrada, é um desses símbolos icônicos que dão
significado ao policial. Representando na história do Ocidente o rei da selva, este é o
símbolo por excelência da coragem, da força, do domínio, o que nos remete
automaticamente à associação dessas características com as qualidades de um policial. O
coração reúne em sua imagem um ícone de parte do corpo humano que simboliza
sensibilidade, afeto e indica, naquele contexto, estando nas mãos do leão, a sensibilidade
em meio à força dando a sensação de equilíbrio e completude, contribuindo na significação
39
Segundo Crapanzano, o processo dialógico de tipificação estabelece hierarquias e posições entre os
sujeitos que dialogam (1992c, p.5, 11)
50
do policial como forte, protetor, aquele que detém o controle, mas que não deixa de ser
humano, e naquela ocasião, de se preocupar com as crianças, já que é símbolo de um
programa que lida com o público infantil.
A primeira parte do evento se assemelhava a um show, bem ao estilo de programas
de auditório de TV. A primeira atração apresentada foi a de um robô, réplica do Robocop
(robô justiceiro de um filme holliwoodiano, 1987). O robô começa com uma performance
teatral demonstrando sua capacidade em realizar movimentos robóticos. O mesmo é
apresentado ao público infantil como um policial ―forte‖ e ―corajoso‖ que está ali para
proteger a todos e fazer justiça. Surpreendendo o auditório, então, o policial locutor aponta
para o lado esquerdo e diz: ―Robocop ali está o mosquito da Dengue e o policial de
prontidão gira e aponta uma arma de brinquedo fingindo matar o mosquito. Logo em
seguida volta para sua velha performance, quando é surpreendido novamente com o
chamado do policial para que do outro lado ele matasse o rato da rantavirose, agindo
rapidamente e matando-o. O apresentador finaliza essa ação rápida e eficiente do robô
dizendo: ― O Robocop, crianças, está aqui para combater o mal e tudo o que é ruim, ele vai
prender os bandidos da Ceilândia - e as crianças então daquela localidade gritavam
eufóricas –, ele vai prender os criminosos de Planaltina e a mesma reação por parte das
crianças se sucede‖. Ao finalizar a lista de cidades satélites, supostas ―acolhedoras‖ de
criminosos, o robocop dá sinais de enguiçamento. Uma criança é, então, chamada para
ajudar a religá-lo e quando esta tenta apertar o botão o robô solta flatulências similar a um
palhaço numa apresentação circense, muito comum na diversão de crianças.
Simbolizando a justiça de forma implacável o Robocop, construído pela indústria
cinematográfica holliwodiana, é um ícone do policial, já que no enredo do filme é um robô
criado a partir de um policial morto em serviço e do avanço tecnológico capaz de
recriar/ressuscitando o policial. Simboliza a implacabilidade da justiça e da ética sem
deixar de ter elementos de humanidade com as vítimas, é claro. Por isso, o Robocop
simboliza o policial que sem dó nem piedade mata o mosquito da dengue e o rato da
Hantavirose, extermina todo o mal, e prende todos os bandidos das cidades satélites, mas
não deixa de ser humano, engraçado e meio canastrão quando está lidando com crianças,
rendendo-se a inocência infantil.
O encontro encerrado na cena do Robocop mostra a ambiguidade na caracterização
das crianças. Não só nessa cena, mas em todo o evento, elas são hora definidas como
indivíduos que necessitam de proteção, vulneráveis e envoltos na inocência da infância -

51
construção do imaginário ocidental contemporâneo sobre a infância, principalmente, em
contraposição ao policial - e hora são potenciais delinqüentes que estão ali para serem
instruídos sobre o caminho certo, que se não for seguido se confrontará futuramente com o
justiceiro implacável ou o forte e destemido leão que detém o controle sempre. A
construção de hierarquias e posições de poder entre os sujeitos é constante no discurso e
expressa, num jogo de demonstração de afeto, proteção de um lado e de sutis ameaças e
estigmatizações de outro, sensivelmente percebidas no sussurro de uma professora sentada
ao meu lado: ―ora mais, será que é só na Ceilândia que tem bandido, aqui no Plano Piloto
não tem não? Que preconceito!‖.
Saindo o Robocop, entra no palco policiais do Bope (Batalhão de Operações
Especiais). É bom que se diga que o BOPE tornou-se o grupo militar mais famoso do país
após o filme ―Tropa de Elite‖ (2007) em que o enredo apresenta a ação deste nas favelas
cariocas. Como já apontado anteriormente, o filme suscitou na população em geral e nas
crianças certo fascínio pela sua conduta de combate ao crime. Valho-me desse parêntese
para introduzir a entrada do Bope e seus cachorros em cena. Recebidos com grande
euforia, aplausos e gritos, que não perdiam em nada às manifestações frente a astros
holliwoodianos, fizeram uma pequena demonstração de poder tecnológico com seus
cachorros adestrados e técnicas de apreensão de drogas. O Bope é significado pelos
personagens do filme ―Tropa de Elite‖, que na figura do Capitão Nascimento, transporta
espacialmente para o Brasil o símbolo do herói policial, justiceiro presente na figura do
Robocop.
Com a saída do BOPE regada à música tema do filme ―Missão Impossível‖ (1996)
- filme de ação em que Tom Cruise, astro de Holliwood, é um espião que empreende
missões difíceis, mas com muita tecnologia e agilidade consegue completá-las com sucesso
- policiais descem do teto do ginásio, imitando uma das cenas do filme. A demonstração de
agilidade e domínio técnico, com a música ao fundo compondo a cena provocou reações.
As crianças começam a gritar eufóricas e saem de suas cadeiras aproximando-se do palco.
Encerrando essa primeira parte de apresentações o policial locutor antes de introduzir a
próxima atração, rememora momentos do curso. Provocando as crianças e cobrando um
compromisso por parte delas, pergunta: se alguém lhe oferecer um cigarro o que vocês vão
responder? E as crianças gritam em coro: nãããããão!. E se algum amigo disser: ‗vamos
tomar uma ali, cara? As crianças gritam nãããããão!. E ele continua: mas vai ser legal, a

52
galera toda vai tá lá! E novamente as crianças gritam não. O coro e repetição do ―não‖ são
mais do que meras palavras, são o próprio ato encerrado na promessa (AUSTIN, 1975).
As ações dos policiais que descem do teto em fios, imitando a cena do filme Missão
Impossível indexalizam agilidade e domínio técnico, ganhando significado a partir de
personagens heróicos de forma a essencializar o perfil ou o ―tipo‖ corporal, físico,
biológico e mental do policial, ágil e que tem domínio da tecnologia de ponta de seu
tempo, vindo daí, também sua competência. A eficácia do policial está, portanto, em seu
domínio técnico e na produção de um corpo ágio, forte etc. Tem-se aí uma dupla tentativa
de dramatização, a saber, o do domínio técnico enquanto símbolo de modernidade e o do
ambiente do consumo de drogas, sendo que uma é avaliada socialmente de forma positiva
e a outra negativa, colando-se também a imagem do policial e a de grande parte da
juventude como os alunos que ali se encontravam, respectivamente. Esse reviver ,vivido na
dramatização, além de colaborar na formação de auto-imagens, de identidades e
caracterizações consolida valores sociais e compõe um jogo de ameaças sutis.
Imediatamente depois, os policiais instrutores que realizaram o curso nas escolas
saem de dentro do palco, todos fardados caminhando lentamente, ao som de uma trilha
sonora semelhante ao de filmes de heróis militares que retornam vitoriosos depois de
combater o inimigo. O momento se assemelhava muito as cenas finais desse gênero de
filme. Os policiais fardados saem do palco ao fundo, cerca de cinquenta deles, caminhando
lentamente em direção às crianças, na arquibancada, com uma música que lembra
heroísmo ao fundo. Esse foi o auge do evento. Foi o momento em que as crianças não se
contiveram nem mesmo à bronca dos professores. Correram todos para próximo ao palco e
gritavam saudando seus heróis e estes acenavam carinhosos e imponentes, finalizando a
primeira parte do evento. Essa cena encerra a construção do policial enquanto herói. Esse
emparelhamento simboliza, significa e reafirma a figura do policial como herói forte e
destemido, mas naquele contexto, especificamente, a cena funciona como índice da
tentativa de salvação de potenciais futuros delinqüentes por instrutores que fazem parte de
um projeto formativo e com intenções preventivas e salvacionistas.
A segunda parte é mais burocrática e mais curta também. É composta de duas
ações, o Juramento e, por fim, a canção do curso. O juramento formal e curto pode ser
assim descrito: - Prometo * (sendo que * é para indicar a pausa e todos repetem), - ao
concluir o curso PROERD*, - cumprir meus deveres de criança*, - honrar meus pais,
professores e minha escola*, - não esquecendo dos ensinamentos recebidos*, - do respeito

53
a Deus, e ao próximo*, - e de resistir às drogas e à violência*. - Prometo dizer não às
drogas, - hoje e sempre*. – EU PROMETO!!! Este pode ser entendido como enunciado
perfomativo (performative utterances) em que o ato de enunciar as palavras constitui a
ação, o ato. Austin (1975) discorre sobre os atos de fala. Para ele, essa é uma classe de
enunciados simples, geralmente composta por verbos na primeira pessoa do singular e no
presente do indicativo na voz ativa (present indicative active). Quando uma pessoa enuncia
um performativo, ela faz algo, realiza uma ação, ao invés de meramente dizer alguma
coisa. É o que acontece com as crianças ao prometerem ser obedientes e não fazerem
consumo de drogas. Em outras palavras, tem-se ali a promessa na fala encerrando uma
ação de negar as drogas e o mundo do crime.
Esse tipo de enunciado não deve ser analisado quanto a sua veracidade ou falsidade,
mas, usando a terminologia de Austin, felicidade ou infelicidade. Para que um enunciado
seja feliz, é necessário que as condições de pronunciamento sejam adequadas. A
convenção na qual o procedimento está imbuído – no caso a formatura, já bem conhecido
como evento de encerramento de cursos - deve de fato existir e ser aceita pelas pessoas
envolvidas; as circunstâncias nas quais o procedimento irá realizar-se devem ser
apropriadas à enunciação e os procedimentos devem ser executados por pessoas que
possuem determinadas crenças, sentimentos e intenções, no caso os policiais que não só
crêem na eficácia do curso, mas no projeto salvacionista encerrado naqueles últimos
pronunciamentos feitos na formatura.
A música encerra realmente o evento, voltando todos, após cantá-la, à sua escola e
cidade de origem. Ela pode ser assim transcrita: Existe um programa; que vai lhe ajudar;
existe um amigo; que vai lhe ensinar; que o problema ―DROGAS‖ 40; merece atenção; e
para manter-se a salvo; é preciso dizer NÃO; Proerd é um programa; Proerd é a solução;
lutando contra as drogas; ensinando a dizer NÃO; cultivando o amor próprio; controlando
a tensão; pensando nas conseqüências; resistindo à pressão; como amar a própria vida; e às
DROGAS dizer NÃO; quem lhe ensina é um amigo; mas é sua a decisão; Proerd é um
programa; Proerd é a solução; lutando contra às drogas; ensinando a dizer NÃO (bis).
Na segunda e última parte do evento, a música sintetiza a tensão e a ambivalência
na construção da identidade das crianças. O Programa como sendo a solução de suas vidas,
que está ali para ensiná-las a serem cidadãos de bem e dizer não às drogas e
conseqüentemente ao mundo do crime é também um índice da boa conduta. Tal assertiva

40
As ênfases são para marcar o aumento do tom de voz na música.
54
ganha um tom de ameaça sutil quando é sinalizado que ―o programa ensina porque é
amigo, mas a escolha é sua‖. A ambivalência e ambiguidade perpassa toda a formatura,
tanto na caracterização dos alunos, quanto no objetivo mesmo do projeto. Proclama,
enquanto objetivo, ser um fator de proteção e valorização da vida, no entanto, o jogo
constante presente na narrativa é o do conflito entre essa proteção e a repressão da
violência a despeito de qualquer outro valor.
Ambas as caracterizações, do policial e dos alunos, dão-se num jogo relacional e
conflituoso. Implícita na noção de prevenção se encontra a ambivalência encerrada na
noção de projeto preventivo humanitário e valorizador da vida de forma ampla e geral e
também um projeto voltado a ajudar os alunos a reconhecerem as pressões e influências
diárias que contribuem ao uso de drogas e a violência entre estudantes, construindo uma
sociedade mais saudável e feliz. Dito de outra forma, ora o projeto caminha ao lado deles,
ora se volta contra eles.
À medida que o evento é descrito percebe-se um encadeamento narrativo dividido
em dois grandes blocos, sendo que um deles, o primeiro, está dividido em quatro quadros
distintos, a saber, Robocop, BOPE, Missão impossível e a chegada heróica dos instrutores.
Observa-se um gradual aquecimento dos quadros até a chegada dos instrutores, ápice da
primeira parte da formatura e finalização do processo de auto/ alter caracterização dos
indivíduos lá presentes. Cada quadro da formatura é delimitado por comportamentos,
expressões lingüísticas e efeitos de som distintos, que, no entanto, apresentam em comum
analogias relacionando elementos do cinema holliwoodiano como os heróis da tela e a
figura do policial.
Por envolver elementos cinematográficos, cenário, músicas etc. estes quadros
utilizam o que Jakobson (1971) chama de função poética da linguagem, constituindo certa
estratégia de envolvimento dos alunos que somado ao já apontado reviver ou dramatização
de algo familiar e midiático capta a atenção do público pela ênfase emotiva e acaba por
produzir conceitos e realidades. A junção dos quadros em princípio não parecem ser
lineares, apresentando cada um deles sua própria narrativa, dando a sensação de que se
encerram em si mesmos. No entanto, ao analisá-lo em sua totalidade torna-se claro a
tentativa de controle da realidade expressa na série de quadros envolvendo os dois blocos
da formatura. Poderíamos assim esquematizá-lo: Robocop – heroísmo policial; BOPE –
heroísmo e intolerância ao ―mal‖; Missão impossível – controle técnico; Chegada dos
instrutores – missão quase religiosa e salvacionista; Juramento – formalidade clássica e

55
comprometimento pelo ato de fala; Música lema do projeto – função poética e tentativa de
acesso a mémoria emotiva dos alunos e em que o desfecho se faz com uma sutil ameaça.
Todos estes compondo um enredo narrativo permeado por analogias, num movimento
conflituoso e ambivalente de construção de sujeitos e estruturação de relações.

2.3 - Violência: a individualização dos problemas e a busca por solução


na habilidade corporal.

A busca por resoluções para o problema da violência parece envolver a todos, como
fica evidente tanto nas descrições das situações etnografadas quanto nos discursos dos
agentes do Estado, da mídia etc. O que me intriga é o formato que adquire as soluções,
assumindo, cada vez mais, caráter privado e individual, como já esmiuçado em outras
pesquisas sobre o tema41. A ordem pública e a liberdade individual deveriam caminhar
juntas numa sociedade dita democrática42. O monopólio da violência pelo Estado, como
garantidor dessa ordem e dessa liberdade também são velhos conhecidos nos debates sobre
sociedade e política no Ocidente, sendo notória a afirmação de que a história da segurança
na modernidade é também a história da institucionalização da violência (BURKE, 2002)
constituindo uma forma específica de tecnologia. A forma de combate individualizado à
violência, traduzida na linguagem da prevenção, enquanto princípio, e materializado em
tecnologias de controle, é positivada no enunciado que a sugere como “forma pacífica de
combate a violência”. Quanto a isso, penso ser importante tecer algumas considerações.
A violência como parte do cotidiano da sociedade ―moderna‖ e com características
da mesma, como já apontado nos parágrafos acima, não é nenhuma novidade enquanto
afirmação nos estudos atuais sobre a sociedade. No entanto, quando alguns autores
empreendem uma genealogia da violência no mundo Ocidental, tem-se a impressão de que
a mudança no caráter e na forma de expressão dessa violência caracteriza um gradual

41
Ver CARVALHO, José Jorge. ―As tecnologias de segurança e a expansão metonímica da violência‖. In:
OLIVEIRA DJACI et al (orgs). Violência Policial: Tolerância zero?. Goiânia: MNDH, 2001.
CALDEIRA, Teresa Pires. Cidade de Muros: Crime, segregação e cidadania em São Paulo. Ed. 2. São
Paulo: Ed. 34/Edusp, 2003.
42
Para saber mais sobre violência do Estado ver: PASSOS, Tiago Eli de lima. Terror de Estado: uma crítica
à perspectiva excepcionalista. Brasília, 2008. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social), Instituto de
Ciências Sociais, Universidade de Brasília.
OLIVEIRA, Dijaci David de, SANTOS, Sales Augusto dos, SILVA, Valéria Getúlio de Brito e Silva.
Violência Policial: Tolerância Zero?. Goiânia: UFG.
OLIVEIRA, Nilson Vieira (Org.). Insegurança Pública: Reflexões sobre a criminalidade e a violência
urbana. São Paulo: Nova Alexandria, 2002.
56
processo de pacificação que acompanha o processo de civilização dessa sociedade43. O tipo
moderno de violência vem acompanhado de uma noção de indivíduo inserido no mundo do
Direito e individualista. Na avaliação de diversos autores que consideram a modernidade
uma categoria temporal sistêmica, esta trouxe com ela um novo sujeito; um formato novo
de violência; e, por conseguinte uma nova forma de lidar, evitar, resolver problemas de
violência, dando a sensação de uma sociedade mais pacífica.
Ficam, portanto, as questões: Nessa perspectiva a sociedade se tornou mais pacífica
e as formas de resolver os conflitos se tornaram mais humanitários? A modernidade, seu
Estado, suas regras de civilização e seu sujeito com direitos e consciência individual
estariam a passos graduais de uma pacificação social? Partindo do pressuposto de que a
modernidade ―é o universo onde as relações intersubjetivas, nas quais foram se fundindo as
experiências do colonialismo e da colonialidade com as necessidades do capitalismo,
acabando por se configurar em um novo universo de relações intersubjetivas de dominação
sob hegemonia eurocentrada‖ (QUIJANO, 2009), aponto minha primeira divergência.
Defendo aqui que os sujeitos, as relações, as características da violência e a forma de lidar
com ela possuem traços da colonialidade combinadas ao capitalismo e suas necessidades, e
não só de uma modernidade civilizatória como querem crer alguns.
Pereira (2004) sugere que uma leitura mais atenta de autores como Foucault e
Norbert Elias nos mostra que a violência não segue uma trajetória linear, ―unidimensional
e evolutiva‖ (Idem, ibidem, p. 78). Ao contrário, os dois autores atribuem à violência o
caráter fundante da modernidade. Elias (1994), por exemplo, apesar de atribuir uma
positividade e até mesmo sugerir uma necessidade do indivíduo do controle advindo do
aparecimento do Estado e do processo civilizador, afirma que essas estruturas de controle e
violência foram importantes para o processo de civilização. Foucault (1997), ao
empreender sua genealogia das punições enfocando o espetáculo e a vigilância, defende a
violência e o medo como produtores dessas duas formas. Apesar de o novo formato ter
enquanto características o mascaramento em contraposição ao caráter público da violência
do espetáculo, para os dois autores ela é constitutiva da modernidade.
A violência diluída em vários âmbitos da sociedade, qual seja, o econômico, pelo
desemprego, rendas insuficientes para a sobrevivência; o social, pela desigualdade de
gênero, classe, raça/cor; o consumismo, o controle sutil dos corpos por instituições como
escolas, hospitais, mídia, família etc. não constitui uma violência menor, menos destrutiva,
43
Para saber mais sobre o processo de construção da civilização Ocidental ver ELIAS, Norbert. O processo
civilizador. RJ: Jorge Zahar Ed., 1994.
57
menos invasiva. O medo não é menor quando é diluído em discursos sutis. Sendo assim,
assinalo minha segunda divergência, a saber, a noção de que se vive um processo de
pacificação paralela ao processo de modernização.
Em síntese, comungo da idéia de que a violência continua fazendo parte das
relações e instituições sociais Ocidentais, de forma estruturante, sob um novo formato tão
destrutivo e avassalador quanto os mais remotos já existentes na história do Ocidente. E
voltando a primeira divergência assinalada, essa mudança de formato, bem como as
estruturas e categorias que a compõem, não são reflexos de um contexto de modernidade
que segue seu curso de forma linear, mas sim carregam signos e elementos de uma
colonialidade que, se necessário fosse dar uma forma, ela seria espiralada com um eixo
estrutural assentada em categorias como a racialidade, por exemplo, transformando ao
mesmo tempo em que se reatualizando nas formas de relações de poder e saber Ocidentais.
Para entender a forma de lidar, resolver ou escapar dessa violência não podemos
deixar de levar em consideração, portanto, um contexto moderno/colonializado, de gradual
controle e total responsabilização do indivíduo pelo problemas coletivos, constatemente
legitimados num saber/poder . Na instituição judicial, por exemplo, o centramento no
indivíduo foi aos poucos ganhando contorno. A ciência do crime, assim legitimada, no séc.
XIX, desloca seu foco do delito para o indivíduo, o criminoso:

É chegado pois o dia, no séc. XIX, em que o „homem‟ (re)descoberto no


criminoso, se tornou o alvo da intervenção penal, o objeto que ela pretende
corrigir e transformar, o domínio de ciências e práticas penitenciárias e
criminológicas. Diferentemente da época das luzes em que o homem foi
posto como objeção contra a barbárie dos suplícios, como limite do Direito e
fronteira legítima do poder de punir, agora o homem é posto como objeto de
um saber positivo. Não mais está em questão o que se deve deixar intacto
para respeitá-lo, mas o que se deve atingir para modificá-lo. (ANDRADE,
2003, p.252)

Fica evidente o indivíduo como foco de controle e de segurança. Passa a ser


controlado quando desviante, mas pensado e instituído enquanto categoria geral nos
saberes/poderes de até então. Simmel (1998) em seu artigo ―O indivíduo e a liberdade‖,
perpassa teoricamente pela construção do indivíduo na sociedade moderna.
Correspondendo às filosofias do liberalismo racional britânico e francês, e ao espírito
germânico, o autor aponta para o surgimento de três noções de indivíduos, qual seja, o
indivíduo igual, o indivíduo livre e o distinto. A liberdade teria sido o ideal buscado a
partir do século XVIII, com o intento de libertação das instituições opressoras e uma

58
transição da desrazão histórica para a razão natural, tem-se a instituição do homem geral -
como centro - e não como historicamente dado. No entanto,―tão logo o eu no sentimento
de igualdade e universalidade sentiu-se forte o bastante, passou a procurar a desigualdade,
mas apenas aquela que surgia como uma lei interna‖ (Idem,ibidem, p.114). O importante, a
partir daí, passa a ser o indivíduo distinto, único. Esses ―tipos‖ de indivíduos não se
sucederam, de forma excludente, ao longo da história, guardando o tipo atual traços de
toda essa construção filosófica.
O enunciado discursivo filosófico, sintetizado por Simmel (1998), e a afirmação de
Andrade (2003) sugerem a construção de uma tradição Ocidental individualista em suas
múltiplas dimensões de controle. Tradição essa provinciana na medida em que entende sua
estrutura social, sua construção de conhecimento e sua forma de organizar o mundo como
o único, tentando se colocar como universal, apesar dos pluralismos evidentes no mundo.
As repostas aos conflitos atuais, feitas de forma individualizadas constituem, dentre outros,
uma expressão dessa tradição, construída historicamente. Atualmente, legitimada na crítica
ao paternalismo estatal, na própria descrença na competência do Estado em promover
segurança e no medo generalizado da violência descontrolada, as respostas
individualizadas à violência vão ganhando espaço, adeptos e investimentos tecnológicos. A
prevenção é a expressão que tratamos aqui, e uma prevenção pautada em investimento
técnico na construção de habilidades corporais capazes de evitar o crime. Segue-se,
portanto, a descrição de duas formas de prevenção centradas em iniciativas privadas e
visando o indivíduo.
Encontrei o curso de segurança pessoal em áreas de alto risco na internet enquanto
me decidia por qual curso iria frequentar. É um curso gratuito, uma cortesia do ―Turbilhão
de Negócios e do Safari Shop‖. O subtítulo da página inicial do curso sintetiza o seu
objetivo, qual seja, apontar regras para não se tornar uma vítima da violência urbana. O
curso tem início com a lista das principais ameaças e características das ações criminosas
que consideram importantes. A primeira é o sequestro relâmpago, com duração de 1 a 24
horas, geralmente para realizar saques e transações bancárias. A segunda, o seqüestro com
pedido de resgate, onde as pessoas são selecionadas por status, nível hierárquico, tipo de
carro etc. O sequestro com veículo, com o objetivo de levar o carro é outro tipo comum de
ameaça. A próxima seria o assalto à mão armada, com conseqüências relacionadas à reação
da vítima e o quinto e último é o assassinato. Apresentando dados estatísticos, a conclusão
a que chegam é que o método mais eficaz para garantir a segurança é a prevenção com

59
90% de garantia, enquanto que 5% podem ser evitados por sorte e 5% por reação44. Após
esse esforço pela legitimação do comportamento preventivo, empreende uma
caracterização do assalto e da ação do bandido.
O assalto, em geral, segue cinco fases de preparação, a saber, a pré-eleição do alvo,
momento em que o bandido escolhe quem abordar, identifica a vítima - geralmente o
escolhido é o mais fraco, mais distraído ou com base no que o bandido procura (bolsa,
modelo de carro etc;); o planejamento, período em se que avalia toda a situação antes do
ataque - dia, hora, local, forma de abordagem etc; e o ataque – momento da abordagem,
para a qual não há como fazer prevenção. Quem é o bandido: é aquele que não quer ser
exposto; que sempre faz a seleção das vítimas; que sempre irá escolher o mais fácil, ou o
mais despreparado. Durante um assalto o bandido está nervoso e com medo e, portanto,
reagir é uma atitude de altíssimo risco. Para os formuladores do curso, o bandido não tem
descrição exata, sendo assim é melhor observar o comportamento, a saber, as mãos
(geralmente escondidas no bolso); os olhos (os olhos são o reflexo da alma; observar olhos
dirá as intenções da pessoa).
Segue, então, para as dicas de como se comportar em diversos lugares para não ser
um alvo da abordagem criminosa. Regras do que fazer e não fazer na rua, no
estacionamento, quando estiver dirigindo, com o carro parado, parado no semáforo, no
elevador, no caixa eletrônico e durante as compras. Caminhando na rua, o mais relevante é
manter uma distância de 20 metros do suspeito, não deixando o bandido ―fechar o espaço‖.
―Ao identificar um suspeito em potencial observe suas mãos e se possível seus olhos, não
deixando que se aproxime. Se o bandido se aproximar, mude a direção da caminhada;
procure um lugar com muita gente; procure policiais ou grite: ―socorro‖, ―fogo‖ ou
―Paulo‖ porque chama a atenção das pessoas e confunde o bandido. Quanto ao
estacionamento, deve-se planejar o horário de chegada e saída, preferir estacionamentos
pagos a deixar o carro na rua. Evite rotinas, procure diversificar seus caminhos e se
possível seus horários.
Se alguém te abordar tenha calma e peça calma, obedeça rapidamente, informe o
que vai fazer. No semáforo, faça tudo para não parar e se tiver que parar não pare nos
cantos nem atrás, procure sempre um lugar em que possa arrancar e fugir rapidamente. Não
compre nada no sinal, mesmo que a pessoa não seja assaltante, você pode ficar vulnerável.
Não deixe objetos de valor nos bancos do carro. Fique atento a tudo ao seu redor. Não se

44
Não dizem qual a fonte dos dados.
60
distraia, a surpresa é a grande arma do bandido. No elevador, evite pegá-lo se estiver
vazio ou caso suspeite de alguém. Resolva as dúvidas a seu favor: ―Se desconfiar que é
bandido então o considere bandido‖. Nunca reaja a não ser em casos em que o bandido
queira te levar, pois segundo os especialistas quando você é levado com o bandido tem
pouquíssimas chances de sobreviver, por isso nesse caso, reagir ou não, deve ser uma
decisão pessoal e consciente dos riscos.
Como reagir? Se o bandido tiver uma faca, grite, provavelmente ele fugirá para não
se expor. Se ele tiver uma arma de fogo, não corra nem grite, ele pode tentar silenciá-la.
Reaja estrategicamente. Ataque os olhos, são mais sensíveis e ele não terá outra reação que
não seja a de conter o ferimento, então, fuja e não tente recuperar objetos. Você pode
reagir pacificamente, fingindo um desmaio, se mesmo assim ele a levar reaja
agressivamente. Aí talvez seja importante o conhecimento de técnicas de defesa pessoal.
Krav Magá45, o curso de autodefesa foi o que participei e que considero como
terceiro evento. Participei do curso durante três semanas. No local de treinamento, além de
seu site, o curso assim se denomina: ―Self Defense – Centro de Krav Magá e Artes
Marciais‖. Pretende-se uma nova filosofia de defesa pessoal e justifica sua existência pela
―necessidade de defesa contra a violência do mundo moderno‖. Promete através de
exercícios rápidos, simples e objetivos, trazer resposta para qualquer tipo de agressão. Em
sua propaganda se diz acessível a todas as pessoas, independente do tipo físico, sexo ou
idade, além de ser uma técnica atualmente utilizada pelo FBI, SWAT, GIGN, Marinha da
França, Bope e todas as forças militares israelenses e grupos anti-terroristas.
Foi criada nos anos 40, por Imi Lichtenfeld, e adotada como única filosofia de
defesa das forças armadas israelenses. Em 1964, foi liberada sua divulgação no mundo
civil. Para isso, Imi, o criador da arte, formou um grupo de 13 mestres que seriam treinados
para difundir a arte pelo mundo. Integrante deste grupo, mestre Kobi Lichtenstein
introduziu a arte no Brasil em 1990, sendo o único representante autorizado a difundi-la na
América Latina. Mestre Kobi formou instrutores que ensinam a arte em várias cidades
brasileiras (Material de divulgação).

45
―Krav Magá ou Krav Maga (em hebraico: "odahcef ,omixórp etabmoc" ,‫ )קרב מגע‬é um sistema de defesa
pessoal. Krav Magá não é considerado um desporto, uma vez que não tem uma vertente competitiva, pois não
existem regras que limitem esta arte marcial. Todos os golpes são permitidos e treinados por forma a
ultrapassar todo e qualquer tipo de situação de violência do modo mais rápido e eficaz possível‖. O nome em
hebraico é normalmente traduzido para "combate próximo".(wikipédia)

61
O centro de Kráv Magá está localizado nas 702/3 Norte de Brasília-DF, em uma
academia, e ocupa praticamente um andar inteiro do prédio. O lugar é grande, bem
equipado e isolado, com acesso único. A instrutora/mestre é uma mulher de
aproximadamente 30 anos. No corpo de funcionários, mais duas funcionárias trabalham na
recepção. Cheguei por volta de 09:30 da manhã do sábado, uma hora antes do início da
aula. Queria observar o ambiente, conversar com os funcionários, talvez com algumas
pessoas, se houvesse espaço para isso. Aproximei-me da recepcionista e, enquanto
conversava com ela assuntos práticos sobre matrícula, observava as pessoas e o
movimento. Faziam aula vários alunos de faixas/graduações diferentes: brancos, estilo
classe média do plano piloto, muitos homens, mulheres, crianças e adolescentes. Era uma
turma realmente diversa em termos de gênero e idade. Uma aula bem dinâmica e em
muitos aspectos se assemelhava as aulas de artes marciais. Na turma em que entrei tinha
inclusive uma família inteira treinando, mãe e duas filhas. Pelo que ouvi enquanto
chegavam, as pessoas eram profissionais com curso superior, em sua maioria médicos,
advogados, estudantes universitários. Enfim, o perfil sócio-econômico das pessoas
correspondia ao perfil dos moradores da cidade onde se localiza o curso.
Sobre o curso, a recepcionista me disse que se dividia em várias faixas obedecendo
a níveis de especialização da técnica. Ao questionar no que mesmo esse curso me ajudaria,
a resposta foi a de que ―quando você treina muito, automaticamente você começa a
perceber situações, barulhos, pessoas e se tornar mais cuidadosa com relação a isso‖.
Curiosa sobre as pessoas que procuravam o curso, perguntei: ―As pessoas que procuram o
curso contam que já sofreram algum tipo de violência, qual o motivo de virem?‖ Disse-me
que sim, mas sem especificar ou detalhar, confirmou-me o que eu já tinha visto no site
quanto a grupos que trabalham com segurança e utilizam a técnica, como bombeiros, PMs
etc; Esperei, então, sob os olhares de estranhamento e expectativa das pessoas, o momento
em que seria minha aula. A turma anterior saiu e sob orientação dos instrutores entrei no
tatame. Assim, finalizo meu primeiro contato. A partir daqui, relato pontos que considero
relevantes no total dos encontros.
Sempre que entramos no tatame, como em qualquer treinamento de Arte Marcial,
temos que tirar o sapato, prender o cabelo e nos posicionar numa espécie de meio círculo
fazendo um gesto de curvamento, reverenciando a foto do mestre criador da técnica – sua
foto está na parede, no canto direito da sala. Os exercícios são sempre feitos em dupla,
tentando reproduzir os sujeitos envolvidos em um ataque – vítima e agressor. Faz-se

62
sempre exercícios de aquecimento, no início, como correr, fazer alongamentos, abdominais
e flexões (a intenção é ganhar força e resistência). Na corrida, somos sempre testados e
treinados quanto à agilidade de percepção. Corríamos em círculo e sempre que o instrutor
batia palmas tínhamos que mudar a direção da corrida, e quando não se conseguia
responder com a rapidez esperada, os instrutores e sua dupla se encarregavam de tornar
isso evidente.
Sentamos para observar os instrutores. Também em dupla nos ensinam os
movimentos de defesa a um suposto ataque. Em todos os encontros os movimentos
realizados objetivavam a defesa a um ataque com tentativa de estrangulamento. É cobrada
disciplina tal qual se observa em grupos militares ou mesmo de artes marciais. Os
movimentos tentaram abarcar a diversidade de contextos envolvendo um ataque de
estrangulamento. Movimentos que dêem conta, por exemplo, de situações em que o
contato já tenha ocorrido, outros em que você consegue perceber previamente que vai ser
atacado e pode se antecipar. Tenta abarcar a possibilidade de você ser atacada de frente, ou
de costas. Ainda tentam colocar várias possibilidades em cada posição, segundo eles, ―para
que no momento você possa avaliar qual a melhor opção‖. Prevêem, ainda, a possibilidade
da pessoa se encontrar muito tensa e para isso, informam golpes que chamam de
―amaciamento‖, quando a vítima se vale de um golpe que surpreenda o ―bandido‖, com o
intuito de dar tempo para a vítima pensar em algo que possa realmente ―resolver
definitivamente‖.
Os instrutores ao explicarem os movimentos o fazem se referindo ao ataque de um
―elemento‖ ou ―cara‖, como se o agressor fosse sempre masculino. Isso é também evidente
quando se observa que todos os golpes são finalizados atingindo os órgãos genitais do
agressor. O treinamento é sempre acompanhado de falas de ordem46 como ―bata com mais
segurança e mais força‖, ―não está fazendo cócegas no cara‖, ―faça o movimento com
firmeza, se queria moleza deveria ter ido ao shopping‖, ―não atinja a barriga tem que
atingir aqui (partes baixas), se for na barriga não vai adiantar, tem que bater aqui e com
força, para as ―bolas‖ chegarem ao pescoço que nem caxumba‖. A instrutora passava
sempre pelas duplas cobrando agilidade e sempre ressaltando que da forma lenta como
estava sendo feito, o cara já tinha até matado. Outros cobravam sempre firmeza nos

46
As palavras de ordem não remetem apenas a comandos ou a enunciados explícitos, mas a relação de
qualquer palavra ou de qualquer enunciados com pressupostos implícitos. (DELEUZE & GUATTARI, 1995,
p.16)
63
movimentos instigando os alunos com gestos. Expressões ao refazer os movimentos
indicavam que se deveria dominar a situação e se colocar sem ―medo‖ no contexto.
Os movimentos partem do pressuposto de um ataque. No entanto, na fala da
recepcionista e de algumas pessoas que fiz dupla, quando perguntados me disseram que
com o treino você fica mais atento, sabe agir com mais rapidez e identificar situações
perigosas, no estacionamento, em lugares isolados, baldios, suspeitos, sabe como carregar
a bolsa etc. A Mestre ao fazer um movimento de defesa de um estrangulamento começa
mostrando-o e instrui: ―não pense, não olhe para a pessoa primeiro para ver quem é, se for
algum amigo seu fazendo uma brincadeira, azar o dele, quebre ele, depois leva pro hospital
e manda flores, mas você não pode arriscar olhando primeiro, pensando primeiro,
avaliando a situação‖.
Tive a sorte de conhecer duas pessoas que trabalhavam na área de segurança.
Demostrando interesse por sua profissão e também preocupada por não saber que tipo de
situação ou pessoas eu deveria situar como suspeitas para ficar alerta, perguntei como eles
faziam no cotidiano. Um deles me disse que se reconhece uma pessoa suspeita pelo olhar,
pelas ações, pela situação. Pedi para que me detalhassem mais essas situações e pessoas.
Então, um deles falou: ―Por exemplo, eu estou no meu trabalho e entra um cara com um
olhar estranho, como se não conhecesse o lugar, parece que procura alguma coisa, não é
daquele lugar. Entra, olha, não fala nada com ninguém, este cara é um suspeito‖. Perguntei,
então, como eles agiam quando isso acontecia e a resposta que obtive do outro rapaz foi:
―primeiro agente pergunta se pode ajudar, se precisa de alguma informação e se a pessoa
continuar com a mesma atitude agente vai seguindo ela discretamente, aonde ela for. Essa
técnica que agente aprende aqui serve pra imobilizar caso o sujeito pense em tentar algo,
algum movimento suspeito‖, mas não é bom achar que agora está seguro e pode atacar sem
risco. No mundo real, a coisa não é tão bonitinha e perfeitinha. Assim, termino minhas
considerações sobre o Krav Magá.
Os dois cursos de autodefesa, tanto o online que dita regras de como não ser vítima
de violência urbana quanto o Krav Magá que também se pretende como uma forma de
defesa contra a violência, mas em forma de ação, resposta a supostas agressões, têm em
comum os sujeitos a quem se direcionam, com respostas diferentes a uma mesma
realidade, complementares e não excludentes. A narrativa possui uma sequência que
permite, inclusive, unir os dois de forma contínua dando a impressão de formar um todo
coerente. O primeiro expõe uma série de ações pautadas nas características das ações

64
crimonosas, indicando como se comportar para não ser abordado ao passo que o segundo,
dando continuidade e reforçando o anterior, elenca formas de como se comportar caso seja
abordado. O mérito se constitui na interrupção da série, o quanto antes.
A tensão entre a figura da vítima e do suposto agressor constituem a tensão entre o
―eu‖ e o ―outro‖, produzindo a tipificação de ambos. Os sujeitos participantes do curso
atribuem a si e a eles, nas dramatizações, como uma espécie de teoria vivida, o lugar de
potencial vítima. O outro é o agressor que, diga-se de passagem, é fictício, existe ali só em
potencial. Em outras palavras, é a construção de um sujeito pela antecipação que no
cotidiano se transforma em ―suspeito‖ tendo nas estatísticas e nos perfis de pessoas que
cometem crimes - elaborados pelas instituições de justiça - exemplos de comportamentos e
características que, segundo Crapanzano (1988, p. 4,6), vão sustentar a tipificação - de uma
circunstância que se pretende evitar ou defender-se, caso ocorra.
Ao empreender uma análise sobre as estatísticas e os perfis de criminosos em
pesquisas, ou na mídia, observa-se de um lado um silenciamento com relação ao quisito
cor47; uma ampla divulgação da imagem de criminosos negros tanto nos telejornais, quanto
em telenovelas e, de outro lado, algumas pesquisas que levam em consideração a cor
apontam os negros como os que compõem a maior parte da população carcerária do país,
por exemplo, sem nem sempre problematizar seus dados - relacionando-os às questões
raciais brasileiras -, colaborando para o processo histórico de caracterização do criminoso
relacionado à imagem do homem negro.
Tanto no curso online quanto no Krav Magá, a tensão vivida pela figura de uma
vítima e um agressor é produzida tal qual uma encenação em que se pretende uma
reprodução de instâncias e circunstâncias da realidade, na qual através da interação entre os
indivíduos, estes se constituem como sujeitos (SANTOS, 2002). O objetivo dos dois cursos
é produzir sujeitos hábeis48, ágeis e estratégicos que transformem sua subjetividade de
potenciais vítimas em sujeitos que não sejam vítimas de fato. Para tanto, partem sempre do
pressuposto de que o trabalho de prevenção que empreendem deve eliminar as
oportunidades favoráveis aos infratores.49 O ser distraído, lento, é índex de um despreparo

47
Ver a série de pesquisas desenvolvidas pela UNESCO, por exemplo, intituladas ―Mapa da violência‖.
Desenvolvida desde 1997, trata-se de um catalogamento das características, valores, atitudes e
comportamentos da juventude para colaborar com a análise e estruturação de políticas destinadas a enfrentar
a violência. No entanto, são raríssimos os perfis que incluíram o quesito cor.
48
Considerando que a relação corpo/habilidade/signos é apontada em todas as situações descritas no capítulo
2 e 3, faço uma reflexão disso a parte no final desse capítulo, com o intuito de melhor desenvolvê-las.
49
―Todas estas medidas estão dentro daquilo que se convencionou chamar “Prevenção Situacional‖ e
partem do pressuposto de que uma parte significativa dos crimes de rua é cometida por conta de
65
que transforma os sujeitos em vítimas. Despreparo esse que pode ser solucionado através
da técnica e uma vez que a bondade lhes parece ―inerente”, implícita na idéia de
ingenuidade da vítima, a habilidade é apenas um aprendizado de defesa buscando a
diminuição dessa ingenuidade e o ganho de autoconfiança.
Sua consciência enquanto provável vítima é experenciada no contraste e na
idealização do bandido como alguém forte, indiciado pelo seu preparo em planejar e
escolher suas vítimas, também por ser rápido, ardiloso e por jogar com o elemento
surpresa, mesmo em situações imprevistas. Os exemplos de comportamentos que
pragmaticamente sustentam essa caracterização são dados em trocas de experiências em
forma de ―rumores‖, muitas vezes confirmadas ou elevadas ao status de verdade pelas
notícias da mídia. Tanto a mídia quanto os indivíduos em seu cotidiano repetem histórias
―supostamente‖ verídicas e práticas que sustentam a caracterização das vítimas e dos
agressores. Essas histórias assentadas historicamente são transformadas em regras, normas
e valores significando, enquanto Terceiro, a caracterização desses sujeitos. Em outras
palavras, como é comum nas histórias infantis, em filmes e seriados de TV, o bandido é o
ardiloso, forte, ágil, maquiavélico enquanto que a vítima é a ingênua, bondosa e frágil.
A finalização dos golpes no Krav Magá acrescenta à caracterização já apontada o
elemento da masculinidade quando com um golpe no ―saco‖ tira toda possibilidade de ação
do bandido. Tal golpe é um índice de que o bandido é essencialmente um homem. Essa
tipificação é significada por rumores e notícias, mas ganham outro elemento de
significação, a saber, as estatísticas sobre criminalidade que sempre apontam o perfil do
bandido como em grande parte do sexo masculino. Mesmo os dados que tentam relativizar
essa tipificação, ao apontar o crescimento do número de mulheres praticantes de atos
violentos, reforçam a ainda predominância do masculino como criminoso. O Terceiro,
neste caso, garante o significado de vítima e criminoso para os participantes do curso,
mascarando a instabilidade das representações dos mesmos. A instabilidade é percebida no
cotidiano dos praticantes do curso quando estes sabem que aquele que é significado como
potenciais vítimas podem ser agressores, por exemplo, quando do confronto de gangues de
rapazes de classe média, de casos de violência doméstica etc.

circunstâncias (oportunidades) percebidas como favoráveis pelos infratores. Estas oportunidades podem
deixar de existir ou serem, pelo menos, diminuídas. Investir neste caminho é muito mais eficiente e barato do
que as estratégias que envolvem o objetivo de efetuar prisões‖(BRASÍLIA, 2005, p.19). Daí observa-se que a
orientação por se diminuir as circunstâncias ou oportunidades de ocorrência do crime não parte só da
iniciativa privada, mas da pública também. O que fica enquanto questão é: o que significa, em termos
práticos, diminuir oportunidade favoráveis aos infratores? Impedimento da circulação de certos indivíduos
pelo local é uma que geralmente é usada pelo poder público e cobrada pela população.
66
O comportamento atento, ágil, seguro e estratégico são sempre instigados, através
de palavras de ordem, tanto no curso online quanto pelos instrutores do Krav Magá como,
por exemplo,―bata com mais força e segurança‖. Tais ações são tidas como o que dá
eficácia às tentativas de promoção de segurança e são indícios de um sujeito, um corpo
preparado, pronto e treinado para não se tornar uma vítima, ou seja, para saber evitar
situações de risco etc. A suposta não vítima e seu comportamento ideal é significado na
figura dos mestres e instrutores que representam de um lado a sabedoria dos ensinamentos
de um mestre – Krav Magá - e de outro a objetividade sistematizada em estudos
pretensamente estatísticos, com seus dados e regras técnicas de comportamento, como no
curso online. É interessante perceber que muitas das habilidades atribuídas ao bandido
coincidem com as trabalhadas pelo curso, gerando a sensação de promoção de justiça
social, na forma de igualdade de condições. No entanto, esse adquirir habilidades como as
do bandido não gera um problema moral, uma vez que há a utilização das mesmas
dependem de uma combinação entre habilidades e bondade ou maldade.
A individualização das respostas às situações de violência parecem ser encaradas de
forma quase naturalizada. Há uma sugestão implícita de que a responsabilidade em ser alvo
de violência é, também, da debilidade corporal ou perceptiva relacionada à ingenuidade e
fragilidade dos candidatos à vítima. Portanto, o indivíduo livre, único e autônomo deve
buscar não se colocar em risco através do desenvolvimento de uma certa esperteza,
adquiridas/compradas nas técnicas. Resolver problemas advindos de situações de risco
sempre em favor próprio, enquanto prerrogativa de defesa, a partir de uma situação de
risco - em que ele e somente ele avalia essa situação - é um ótimo exemplo dessa
individualização. O que torna isso extremo é quando vem a colocação de que a simples
desconfiança de que alguém – o Outro - é bandido já legitima considerá-lo como tal. Em
coerência com as noções individualistas do Ocidente, afasta-se a problematização dos
problemas de violência do âmbito coletivo enfatizando o aspecto individual.

2.4 - Considerações parciais

Finalizando o capítulo, gostaria de ressaltar a alimentação recíproca entre os


elementos implicados nas três situações descritas as quais se combinam, como num jogo,
entre os princípios organizativos ideais, a experiência vivida e as estruturas sociais
vigentes, formando uma teia metonímica de expansão da violência. A insegurança

67
generalizada e o medo de uma violência descontrolada se fazem presente permeando todas
as três situações. No Projeto da escola, já nos objetivos dele a insegurança se faz presente
na preocupação em proporcionar ferramentas para que os adolescentes possam lidar com
“as pressões diárias” envolvendo o consumo de drogas - que os levaria ao envolvimento
com situações de violência - anunciando a cotidianidade do crime; na dramatização de um
robocop que além de prender criminosos mata agentes de epidemia, como mosquitos e
ratos, levando-nos à sensação de que o perigo, além de estar por toda a parte, tem uma ação
caracteristicamente epidêmica; na totalidade das dramatizações, dos quadros, trazendo a
sensação de onipresença policial que, junto à sensação de segurança, a qual visa
proporcionar, nos traz o sentimento de que corresponde a uma, também, onipresença do
crime a ser combatido.
A insegurança se faz presente no curso online, de forma dramática, numa narrativa
que nos alerta o quanto crime e criminoso podem estar em toda a parte e caso você não
esteja absolutamente alerta, pode se tornar apenas mais uma estatística. Utilizando uma
linguagem apelativa, quase imperativa, as falas e orientações possuem elementos de
emotividade que têm por função envolver o receptor, invocá-lo e convocá-lo a uma reação
contra a sua pseudo-situação de sujeição. Dados estatísticos sobre a eficácia das ações
referencializam, contextualizando as situações e ações correspondentes. Todas essas
formas e funções lingüísticas são utilizadas na comunicação de uma mensagem que traduz
urgência nas ações e necessidade de combate a uma violência que pode nos apanhar a
qualquer momento.
Na fala da recepcionista, do curso Krav Maga, este me traria agilidade e estratégia
na percepção. Isso evitaria que eu fosse abordada em estacionamentos, terrenos baldios etc.
Conseguiria ter uma postura menos ingênua em relação ao meu corpo e meus objetos como
bolsas, por exemplo. Nessa fala, subentende-se que o perigo está justo nesses locais,
“comuns e cotidianos”, de quem convive em um ambiente urbano. A instrução de que não
deveríamos nos preocupar em reconhecer quem estávamos atacando antes de fazê-lo,
mesmo que isso incorresse em machucar um amigo, vai muito além, sinalizando-nos a
presença do perigo até mesmo em ambientes e entres pessoas conhecidas e que
supostamente nos geraria segurança. Os elementos delatores do sentimento de insegurança
que atravessa as três situações são, também, utilizados como uma das formas de legitimar
as práticas de prevenção com esses formatos.

68
No primeiro capítulo, a prevenção foi apontada como alimentada pela sensação de
insegurança e como uma noção, em sua forma ideal, carregada de enunciados com caráter
absolutamente positivado. Indo de encontro a isso, declarei que a prevenção está imbuída
de uma ambivalência produtora. A noção de ambivalência produtora tira essa prevenção do
caráter de resposta a situações colocando-a na posição de produtora de algo, a saber, uma
realidade imaginada e assentada nas noções de possibilidade e risco gerando em reação a
isso a evitação e exclusão, a partir da caracterização de sujeitos. Interpreto todo esse jogo
de ações, noções e relações como tendo um princípio organizativo assentado na idéia de
prevenção, como imbuídas de elementos estruturais e relações de poder e construtora de
um discurso – falas, ações, enunciados etc.
O caráter positivado de ações como o Proerd estão expressas na declaração de que
ele é um fator de proteção, para valorizar a vida, promover a paz e construir uma sociedade
mais saudável e feliz. É declaradamente um projeto que se vê como salvacionista, até
mesmo na forma heróica em que apresenta seus instrutores. Os dois outros cursos também
colocam-se como ações altamente positivas e humanistas, na medida em que evitam que
pessoas de boa índole se tornem vítimas; quando pretendem desenvolver habilidades
sanando supostas ―debilidades‖corporais e perceptivas – as quais colocam essas pessoas
numa posição de fragilidade - e quando, acima de tudo, fazem isso de forma ―puramente
defensiva‖ sem que outro seja atingido, atado de antemão.
A ambivalência se encontra justamente quando, a despeito do enunciado que
atribuía às ações preventivas o caráter de resposta às situações de violência, com fins
didáticos, técnicos e de aprendizagem produzem em suas dramatizações, já
minunciosamente relatadas e analisadas anteriormente, realidades e estas, por sua vez,
reproduzem, reatualizam caracterizações históricas e estruturais, assim como criam outras.
O ato de antecipar situações violentas, portanto, faz com que o campo das idealizações,
caracterizações e tipificações se materialize cotidianamente em ―encarnações ativas de
relações de poder‖ (VALENTINE DANIEL, 1996). O ―suspeito‖ é a categoria que melhor
expressa as relações de poder materializadas a partir da antecipação de situações violentas
na medida em que, sem ao menos cometer qualquer ato ilícito, sofre a estigmatização, a
exclusão, o evitamento e todo comportamento hostil pelo qual passa os que cometeram
algum delito. As estatísticas, os saberes científicos anunciados, as relações de poder
reproduzidas nos dramas evidenciam a criação e reprodução, nas relações, de signos de
suspeição e de vitimização.

69
Como já dito anteriormente, o que diversifica essas ações é o grupo a que se
dirigem, e quais tipos de sujeitos pretendem formar em cada uma das ações. Para tanto,
partem do que potencialmente essas pessoas poderiam se tornar - futuras vítimas ou
agressoras. Partindo disso, retomamos, de forma sucinta, alguns pontos já trabalhados
sobre a caracterização desses sujeitos nas relações dramatizadas nos eventos. Na escola,
estabelecida em uma cidade satélite de Brasília, os alunos são em sua maioria pobres,
negros e pertencentes a um grupo social que é sempre apontado como pessoas carentes de
políticas do Estado ou mesmo de acompanhamento dos pais. Estatisticamente, quando se
analisa o perfil de adolescentes infratores, sempre se chega a uma aproximação entre eles e
alunos de escola pública de cidades satélites, carentes de acompanhamento dos pais e do
Estado. Atualmente, o discurso da educação pública tem sido sempre o da necessidade de
formar cidadãos que promovam a paz e que saibam conviver. A formação desses
indivíduos seria através da formação cotidiana, escolar, através de projetos que levem em
consideração o contexto e a realidade dessas crianças, promovendo ações educativas com a
finalidade formativa e preventiva. O curso em que seu encerramento foi aqui descrito e
analisado se pretende a esse tipo de formação, a saber, sujeitos que não se envolvam com
drogas ou violência. Enquanto esforço coletivo em prol da diminuição da violência, essa
ação parte do princípio de que essas crianças encerram, enquanto sujeitos, um potencial de
delinqüência. A partir disso, empreende um esforço formativo e de caráter antecipatório na
formação de sujeitos e corpos dóceis, não violentos e, assim, na diminuição da vitimização
de fato de outros. Neste jogo conflituoso de caracterização dos alunos e policiais, o que
fica é a aproximação do perfil corporal e comportamental dos alunos das cidades satélites
do perfil potencialmente criminoso.
As possíveis vítimas, sujeitos descritos nos dois eventos últimos – Kráv Magá e
curso online - pertencem a uma classe média e/ou alta brancas e empreendem um esforço
também na diminuição dos índices de violência. Para isso, partem do seu local enquanto
potenciais vítimas, buscando a produção de corpos ágeis, estratégicos – que saibam evitar e
reagir em momentos ideais e de forma ideal. A eficácia se concretiza na interpelação e
evitação daqueles que escaparam aos projetos de formação de cidadãos, como o Proerd,
por exemplo, ou seja, nos casos em que este tipo de ação preventiva/educativa não
conseguiu ser eficaz. É evidente, nos dois cursos, a noção de vítima assentada em
características como falta de agilidade, poder aquisitivo, boa índole, fragilidade (não
conseguem bater forte) e ingenuidade, enquanto que o potencial suspeito é o estranho, “o

70
Outro”, o que não é familiar ao local, o que é ágil, estratégico para o crime, forte, do sexo
masculino, não se incomoda com a dor do outro, tem olhares estranhos, mãos dentro do
bolso etc. Além disso, se no final a vítima em potencial desconfiar tem total legitimidade
para reagir. Não pense, reaja!
Historicamente e em pesquisas científicas, imagens midiáticas, histórias infantis,
rumores o perfil traçado encontra coerência. O tipo ―idealizado‖ da vítima e do agressor
encontra nesses espaços, saberes, poderes, discursos, um garantidor de suas
caracterizações. Várias categorias estruturadas na colonialidade/modernidade capitalista
concorrem para a composição do perfil de vítima e suspeito. Gênero, classe, idade, estilos
estéticos, etnicidade, raça/cor, dentre outros, todos participam de forma complexa, diversa,
contextualizada e relacional na construção dessas imagens. Escolho aqui trabalhar,
especificamente, com um signo, a cor, que desenvolverei melhor no terceiro capítulo. Por
hora, me contento em refletir e apontar que o silenciamento da categoria cor fala muito na
medida em que Denuncia o desconforto em deixar explícita a relação entre cor negra e
aspectos negativos e pejorativos. Desconforto mais freqüente após as discussões sobre
direitos humanos, as reivindicações, atualmente mais visíveis, do movimento negro e as
legislações que punem o racismo. Além do desconforto, o silenciamento pode ser lido
como a própria expressão das relações racistas brasileiras, pois traduz a desconsideração
das mesmas, legitimadas no discurso da democracia racial.
O silêncio fala. E nesse caso fala, principalmente, quando apesar de silenciadas
observamos que as características atribuídas ao suspeito, em sua maioria, foram
historicamente relacionadas às representações, características físicas, culturais e
comportamentais da população negra, por exemplo, a força física, a agilidade corporal, a
índole má – um não se importar com a dor do outro, associada muitas vezes à religiosidade
desses grupos, o candomblé, e o sacrifício ritualístico de animais, que sempre foi visto
pelos cristãos como maldade e falta de piedade. Discurso silencioso e mascarado quando
contextualizamos espacialmente a fala do segurança entrevistado, tendo em vista o local ao
qual ele se referia – uma escola de línguas, particular, do centro Classe média alta -, o
―outro‖, diferente, de comportamento esquisito, o olhar estranho, mãos no bolso – como
sugere, também, o curso online -, é um sujeito deslocado do ambiente, um sujeito que não
lhe pareça familiar, ou seja, um não branco, um não classe média, nem tipicamente aluno.
Um dos objetivos do desenvolvimento perceptivo anunciado nas três situações é o
de gerar a possibilidade de evitação, a habilidade de evitar, só em última instância busca-se

71
um enfrentamento. Os garotos do Proerd devem evitar as drogas e as más companhias, para
não se tornarem violentos, criminosos e, então, sujeitos às ações dos Robocopes e outros
agentes de controle social. Os clientes dos outros cursos conquistam a habilidade de evitar
situações e pessoas perigosas – as que acabamos de refletir sobre as suas caracterizações.
Colocadas em prática essas caracterizações na tensão das relações e evitações colaboram
na produção de identidades estigmatizadas. No entanto, me deterei nesse ponto no capítulo
três, situação em que penso que os dados etnográficos falam por si só.
O investimento no corpo como um instrumento a ser utilizado nas ações preventivas
constitui-se numa premissa. Nos três eventos, o corpo e sua relação com a habilidade estão
em evidência. O corpo do policial hábil para o combate, o corpo dos alunos hábil para
evitar a droga e a violência. O corpo frágil da vítima e o ardiloso e sistemático do bandido.
O corpo treinado cientificamente, para ser ágil, com percepções rápidas com possibilidade
de reconhecer a maldade para, então, sistematizar uma defesa que combata o espírito
ardilosamente natural do bandido. E o corpo do bandido que apesar de não tipificado
textualmente, fica determinado como “o outro”, que num processo de outrificação
dependem dos signos e sua complexidade a ser contextualizada. O estranho é localizável,
no entanto, na prática discursiva. Ele tem marcas, signos inscritos em seus corpos que de
forma contextualizada possibilitam o acionamento e a sua identificação automática. Em
função da importância do corpo, suas habilidades e signos para o entendimento dessa
realidade, me detenho em algumas poucas páginas no esforço de reflexão sobre essa
relação.

Sobre corpos, técnicas, relações e signos: os hábeis, os candidatos a


vítimas e os potenciais suspeitos

Nós selecionamos e remodelamos a realidade que vemos para conformá-la às nossas


crenças acerca do mundo em que vivemos, ao passo que nossas crenças estão assentadas
no mundo que percebemos (BATESON, 2000/1972). Tal afirmativa aponta para um
Bateson que vai além das dicotomias mente e corpo, integrando-os, principalmente,
quando propõe sua teoria da ecologia da mente. Aponta também para uma realidade
selecionada e remodelada na qual o pesquisador tem contato. Corroborando com essa idéia
é que busco nas seleções e remodelações da realidade, a partir das nossas crenças, o que se
compreende por um corpo e um comportamento vítima e suspeito. A percepção sendo
constituída pela integração mente/corpo, entre experenciado e pensado, acredito que as
72
práticas e as relações que envolvem os indivíduos em situações de combate à violência são
formadas e formam nossas crenças e percepções também sobre o corpo.
Dois lados de uma mesma moeda, aponta, na minha perspectiva, para as crenças que
selecionam, recortam e remodelam a realidade. Crenças essas formadas num contexto de
relações de poder, de discursos, de aspectos estruturais e estruturantes, dentre outros. É, a
partir disso, que me proponho a refletir sobre o corpo nas relações vítima e suspeito. Nessa
perspectiva relacional, não é possível pensar em um corpo significado e caracterizado em
suspeito e vítima fora das relações e das práticas preventivas atuais. Seus signos e
habilidades devem, também, ser vistos sob a perspectiva das relações.
O que meus dados apontam é para um corpo relacional e instrumental a serviço da
prevenção. Configura-se enquanto um meio técnico, mas, também, como depositário de
signos, sejam eles, referenciais, icônicos, indiciais, simbólicos (ou todos juntos) que dizem
algo e caracterizam o sujeito acionando comportamento e relações específicas. Inicio
minhas reflexões com breves apontamentos relacionando o panorama de discussão sobre o
corpo, a técnica, e os signos à busca por segurança, a relação entre os sujeitos e a
caracterização destes nas relações. Partindo de dados etnográficos já descritos acima e os
do próximo capítulo, problematizo a questão do corpo e o desenvolvimento de habilidades
e técnicas como caracterizadores, sinalizadores de diferenças entre os sujeitos encarados
como suspeitos e aqueles entendidos enquanto vítimas
Com a difusão dos direitos humanos e da democracia republicana o enunciado
discursivo hegemônico Ocidental, defendido oficialmente, é o de que todos sendo humanos
têm o direito a desenvolver plenamente sua individualidade e sua cultura. No Brasil, esse
enunciado é amplamente difundido pela mídia, que somada ao discurso de democracias
diversas – política, racial, étnica etc. – tem-se uma falsa noção de que todos os indivíduos e
seus respectivos corpos têm o mesmo valor. A sociedade representaria, nesta perspectiva, o
corpo com diferenças funcionais e biológicas ligadas a gênero, idade etc., mas estas não
deveriam ser levadas a cabo para gerar desigualdades sociais, separações, no máximo para
incorporar essa diferença a noção do bem viver anunciado pelos direitos humanos.
Ao direcionar nosso olhar para relações que envolvem violência e buscam por
segurança, poderíamos, numa primeira visão, acessando o discurso dessas pessoas,
imaginar um mundo de diferenças, mas humanitário, na medida em que não ―existem
caracterizações a priori” e que o objetivo dos envolvidos em tais práticas é unicamente a
de defesa própria. A maior parte da literatura sobre a prevenção, por exemplo, a coloca

73
como uma saída ao mundo da violência de forma não invasiva e pacífica e aponta para esta
como solução para um mundo desigual, de grandes enfrentamentos e violências físicas/
corporais. No entanto, ao refletir melhor sobre os dados descritos percebemos que não só
esses corpos são separados nas falas dos sujeitos, a partir de signos corporais fenotípicos,
biologicamente dados e socialmente construídos, como também são sugeridas, enquanto
soluções para a violência, o desenvolvimento de habilidades específicas que possibilite às
pessoas de bem a evitação ou um confronto justo entre suspeito e vítima. Na fala desses
sujeitos o desenvolvimento das habilidades seria simplesmente uma estratégia de
enfrentamento.
Sendo assim, é de meu interesse refletir sobre quais habilidades esses corpos estão
produzindo e em quais técnicas estão envolvidos? Como são percebidas as habilidades
propostas e desenvolvidas nos projetos? E as caracterizações legitimando essas
habilidades, como são percebidas e empreendidas? Trata-se de revelar os mecanismos e as
relações de poder constitutivas das relações entre os envolvidos e caracterizações que se
desenvolvem no contexto da prevenção ao crime, a partir das suas ações, e dos lugares
ocupados e papéis desempenhados por ambos socialmente. Quero entender como essas
habilidades dão sentido às diferenças corporais, biológicas e comportamentais desses
sujeitos em suas relações.
A partir de uma perspectiva sociológica com pretensões científicas, ―modernas‖, o
corpo foi pensado, como um lugar privilegiado de construção de identidades. Durkheim
(1984) aponta para a evidência do social sobre o indivíduo ressaltando a origem social dos
atos classificatórios. Mary Douglas (1973), indo na mesma direção, evidencia o
simbolismo social tendo sua origem no corpo, como uma imagem, uma inscrição. Ao tratar
dos rituais públicos, a autora, argumenta que eles apontam para interesses coletivos, para
além de individuais, pois se o corpo – próprio do indivíduo – toma parte do ritual, o que
marca, se inscreve nesse corpo é a imagem da sociedade (Idem, ibidem, p.143). Os
símbolos evidentes nos rituais são uma criação social e representam as formas de relação
nesse social, possibilitando aos sujeitos o entendimento de seus códigos. Essa noção fica
clara quando a autora argumenta que

Como é verdade que tudo simboliza o corpo, então também é verdade que o
corpo simboliza todo o resto. A partir deste simbolismo, que de camadas em
camadas de significado interior remete à experiência do eu com seu corpo, o
sociólogo encontra justificativa para retirar algumas amostras do “insight”
sobre a experiência do eu na sociedade. (DOUGLAS, 1976, p.150).

74
Desse modo, o corpo nas relações e ações preventivas descritas, simbolizando a
experiência desses indivíduos na sociedade, fala-nos sobre uma sociedades segregada, em
que os símbolos que acionam a segregação foram construídos historicamente. Gênero,
raça/cor, idade, classe social são criações de um social e funcionam enquanto códigos
entendidos e utilizados socialmente na prática da segregação. As relações entre policiais e
alunos, tanto quanto nos outros dois eventos, nos fala de uma sociedade complexa de
relações e caracterizações instáveis, mas com um discurso de hegemonia, estabilidade e
papéis definidos em que as polaridades ou dualidades, entre bom e mau em detrimento da
diversidade, são ainda utilizadas no senso comum nas intenções de leitura da sociedade.
No esforço de síntese sobre o corpo, no Ocidente, Le Breton (2002) o define como
uma construção simbólica e não uma realidade em si mesma. O biopoder é o termo
cunhado por Foucault (1985a), em suas incursões genealógicas, para empreender sua
análise sobre o corpo e as formas de controle sobre ele. O ―saber‖ ocupa lugar privilegiado
na economia explicativa do autor, como um mecanismo de poder, produtor e garantidor
das formas de relações de poder hegemônicas. O biopoder é entendido como uma
tecnologia que visa a disciplinarização e o controle dos corpos. Na ordem ocidental
capitalista essa disciplinarização reduziria os corpos à economia política através do
discurso utilitarista do saber científico. Para o autor, as técnicas e saberes disciplinares
teriam enquanto foco o controle dos corpos, docilizando-o.
Atravessando toda a construção textual e argumentativa do trabalho, a prevenção
através do desenvolvimento de técnicas e habilidades corporais de evitação se constitui
numa tecnologia de disciplinarização dos corpos dos alunos, policiais, clientes dos cursos
de auto-defesa e até mesmo daqueles que em momentos e contextos específicos, fora do
universo descrito, se deparam com uma relação suspeito-vítima. Os saberes legitimam a
construção do Kráv Magá, do curso online e do projeto Proerd, pelas pesquisas que
demonstram a necessidade de sua formulação, pela sistematização dos perfis utilizados
para produzir as técnicas e pelo dito estudo comportamental e relacional envolvendo os
perfis. Enfim, todo um saber “científico” sobre o crime, suas vítimas e agentes é
desenvolvido construindo ―verdades‖ e relações de poder entre esses.
Partindo da concepção de um homem total, Mauss (2003) empreende sua análise
sobre o corpo indo do concreto (técnicas corporais, comportamentos diversos e
identificáveis) ao abstrato (sentido dado às diferentes ações do corpo nas sociedades). As
técnicas do corpo seriam, portanto, a maneira pelas quais os homens se servem de seu

75
corpo. Sua preocupação se concentra nas técnicas aprendidas socialmente e desenvolvidas
pelo habitus e na variação desse conjunto de acordo com o social. O autor defende a noção
de um homem bio-psico-social. A análise social constituiria a base em que se verificariam
os elementos psicológicos e fisiológicos da técnica. O corpo seria um meio técnico, um
instrumento produzido e aprendido socialmente, habitando simbolicamente o indivíduo. As
técnicas estariam fundamentadas em princípios classificatórios segundo o rendimento,
resultados, sexo, idade, formas de aprendizagem etc. Concluindo, com isso, que esse
contexto deve ser apreendido nos contextos vividos pelos indivíduos, em situações
concretas. O homem apreendido em sua totalidade estaria assentado na inseparabilidade do
fisiológico e psíquico. Com isso, propõe

Não se podia ter uma visão clara de todos esses fatos, da corrida, do nado,
etc, senão fazendo intervir uma tríplice consideração em vez de uma única,
fosse ela mecânica e física, como uma teoria anatômica e fisiológica da
marcha, ou, ao contrário, psicológica ou sociológica. É o tríplice ponto de
vista, o do “homem total”, que é necessário (MAUSS, 2003, p.404,405).

Em ―Corpo e Alma: notas etnográficas de um aprendiz de boxe‖, Loic Wacquant


(2002) descreve a partir de experiências um apanhado de regras, técnicas e práticas que
reúnem um ―saber pugilista‖. Empreende sua análise partindo de um estilo narrativo e
descritivo de análise, desde o corpo e suas práticas buscando apreender o interior do
universo dos sujeitos, bem como a realidade que permeia a construção dos corpos. O autor
argumenta que nas práticas cotidianas encontra-se também um capital cultural e social
adquirido através da repetição de ações, estruturando noções e saberes. As práticas
corporais são apresentadas, por Wacquant, como dispositivos num universo em que a rua e
o ringue separam-se espacialmente e moralmente. Os dispositivos podem ser entendidos
como ―forma‖ viabilizando a operação das práticas, enquanto que os conteúdos seriam
aprendidos pela repetição cotidiana produzindo conhecimentos individuais e coletivos. Os
saberes morais e corporais deste universo seriam revelados pelo processo de aprendizagem.
A preocupação do autor concentra-se em duas dimensões, a saber, na prática e
social. Dito de outra forma, ele apreende o que se encontra subjacente às técnicas e aos
comportamentos, mas também o social que permeia as regras internas. O corpo, que nos
interessa aqui, é encarado como um mecanismo de percepção prática do simbólico
possibilitando aos sujeitos a aquisição de um lugar social. O sacrifício aparece de forma
positivada nesse espaço e entre esses sujeitos. Suportar a dor e as dietas adquirem um
sentido positivo, na medida em que são entendidos como signos ou sinais de uma moral e
76
da dignidade do sujeito. Tal sentido justifica a necessidade de fabricação das condições
físicas necessárias à construção do corpo pugilista, numa combinação de dimensões
externas e internas da produção do sujeito.
O sparring é uma técnica que marca a subida do lutador ao ringue. Após etapas
precedentes realizados no solo, o lutador passa a treinar com um parceiro. Com o Sparring,
o corpo faz a seleção das informações e as processa, sendo ele – o corpo - que encontra as
reações e respostas aos golpes, tornando-se um verdadeiro sujeito de tal prática
(WACQUANT,2002, p. 149). O sparring é, para o autor, também um processo de
aprendizagem de sua percepção física, da resistência e do controle emocional. O autor
defende a análise da percepção prática de técnicas corporais por essas propiciarem a
apreensão de um discurso moral subjacente à aprendizagem de técnicas corporais na
constituição do ser pugilista.
Com relação às técnicas e habilidades que envolvem a construção dos corpos dos
sujeitos observados, vejo aí duas dimensões, a saber, a das habilidades formadas no
cotidiano e meio social desses sujeitos e aquelas formadas nos cursos, direcionadas a um
esforço preventivo. As duas dimensões são interdependentes ao ponto de para a
formulação de técnicas que desenvolvam determinadas habilidades, no grupo ―provável
vítima‖, são constituídos saberes e sistematizados estudos que falem sobre as habilidades
comuns a esses grupos, corroborando com a afirmação de Mauss (2003) de que essas
técnicas são fundamentadas em princípios classificatórios - o sexo dos sujeitos, idade,
posição social, resultados a obter etc. Com isso, podemos inferir que a aprendizagem social
das habilidades, nesse caso, não se resumem às instruções dos cursos. São empreendidas
durante toda uma vida do indivíduo a depender do local social em que ocupa ao mesmo
tempo em que colabora para seu posicionamento social.
Com relação às técnicas aprendidas nos curso e habilidades desenvolvidas a partir
delas, estas interferem e ressignificam o universo de relações desses sujeitos através da
repetição de ações. No repetir de práticas e técnicas, como sugere Wacquant (2003), o
corpo percebe o simbólico e adquire um lugar social, não inteiramente novo, mas
ressignificado. Os alunos do projeto escolar, através de sua aprendizagem, não deixam de
lado sua imagem de potenciais delinquentes, mas ressignificam suas possibilidades de
relação com as drogas e com a violência. Da mesma forma, os alunos do curso de auto
defesa, os princípios classificatórios que os colocam em determinada posição social não
são extintos, mas somam-se a eles as habilidades adquiridas ressignificando suas relações

77
com o outro ―suspeito‖. Passam de totalmente submetidos às ações de violência a sujeitos
capazes de se defender delas. As habilidades adquiridas nos cursos funcionariam como um
sparring do boxeador, onde os corpos aprenderiam a fazer a seleção de informações,
adquiriria previsibilidade, agilidade, rapidez, firmeza dos movimentos, capacidade de
leitura dos signos de suspeição, de forma quase automática, tornando-se ele mesmo – o
corpo - sujeito de suas próprias ações.
Na maneira de se ―servir do corpo‖, retomando Mauss, cada grupo social constrói
seus próprios sentidos de ser e de experimentar o mundo. O social faria parte do corpo em
seus gestos e movimentos. Merleau-Ponty (1999) retoma o corpo em sua relação
perceptiva com o mundo. Para o autor, tudo sobre o mundo vivido é construído e esse
mundo constitui uma realidade sustentada pela experiência. O corpo entendido como um
ato, um sistema corporal é quem realiza a mediação entre o mundo e sua percepção e é
onde a realidade é acessada e constituída. O homem se traduz numa relação infinita entre o
mundo e as suas percepções. No entanto, considerar essa infinitude de pensamento
significaria correr o risco de se perder na imensidão de possibilidades, portanto, o que
define o fato de se estar no mundo é a correspondência entre nossas experiências e a
realidade. Assim,

No silêncio da consciência originária, vemos aparecer não apenas aquilo que


as palavras dizem, mas ainda aquilo que as coisas querem dizer, o núcleo de
significação primário em torno do qual se organizam os atos de
denominação e de expressão. (MERLEAU-PONTY, 1999, p.12).

Partindo da premissa que só posso pensar a partir do que sou, não existe gesto sem
significação. E na perspectiva de que somos um emaranhado de relações, o que
empreendemos é a realização de uma verdade do ser no mundo. Considerar essa
perspectiva nos possibilita refletir sobre a experiência como um meio onde ações e
habilidades corporais apontariam sentidos. O que irei reter do conjunto de concepções
teóricas aqui postas é que o corpo por meio de suas habilidades, relações e signos, só
podem ser apreendidos inseridos à dinâmica social. E entender como estes aspectos se
integram entre si é entender a lógica e o sentido constituinte do próprio social.
Partindo disso, e para finalizar esse parêntese corporal e corpóreo retomo uma das
habilidades mais valorizadas nas ações preventivas que se constituem e funcionam quase
que como um princípio dessas ações, qual seja, a capacidade de previsibilidade adquirida
através da capacidade de leitura dos signos sociais e corporais que constituem os sujeitos e

78
situações a serem evitadas. Retomo isso para afirmar que estes signos são parte de um
social que também constroem os corpos, os caracterizam. Já apontei, neste mesmo
capítulo, que sinais são esses que nas relações concorrem para a caracterização de vítimas
e suspeitos. Mencionei também que, pela impossibilidade em abarcar a amplitude e
complexidade dos signos que caracterizam esses sujeitos, abordaria a raça/cor negra,
apenas, como signo de suspeição. Assumi como conceito de signo a tríade pierceana, onde
os signos não se constituem ou ganham significado somente em relações duais, mas
tríadicas, acrescentando um Terceiro que significaria e daria estabilidade ao signo. No caso
aqui abordado o Terceiro pode ser midiático – notícias, imagens -, pode ser saberes
científicos – estatísticas, teorias científicas -, ou ainda sujeitos, dentre outros. Exemplifico.
No caso de relações em que a cor corrobora para a caracterização dos sujeitos enquanto
suspeito, essa significação pode estar ancorada num Terceiro histórico, estrutural,
reatualizado em pesquisas atuais ou imagens midiáticas. Estudos de uma criminologia
clássica, por exemplo, que de forma sutil e mascarada aparecem nas imagens escolhidas
para veicular socialmente. Lombroso (apud Schwarcz, 1993, p. 210) cientista respeitado do
século XIX, aponta para sinais físicos como formas de identificar criminosos
correlacionando criminalidade e degeneração. Alguns desses sinais são característicos da
população negra e ainda hoje vê-se esses sinais circulando em discursos e sendo sutilmente
utilizados como forma de identificar um pretenso criminoso. É a essa construção, relação
histórica e suas complexidade e decorrências que pretendo me dedicar no próximo
capítulo.

79
CAPITULO. III:

DOLO ANUNCIADO: A COR COMO SIGNO DE SUSPEIÇÃO

(...) porque cordão de ouro dá pra esconder, quando você vê.


o policial, bota pra dentro da blusa, mas a cor da pele...
você não tem como esconder a cor da pele.
(Adolescente da zona oeste – RJ)50

50
Fala de um adolescente negro do Rio de Janeiro a uma entrevista sobre ―Elemento suspeito: abordagem
policial e discriminação na cidade do Rio de Janeiro‖. (RAMOS E MUSUMECI, 2005, p.80)
80
A cor vigiada é uma afirmativa que nos remete a discursos e práticas discursivas que,
no contexto histórico e estrutural das relações raciais brasileiras, têm na cor – negra – um
signo estruturante de suspeição. Enquanto parte da imagem fenotípica dos indivíduos, a cor
se inscreve nos corpos constituindo uma marca que informa posições e lugares sociais. Nas
relações que envolvem risco e busca por segurança, essas marcas acionam significados
construídos historicamente na trajetória colonial e de construção da nação brasileira,
localizando os sujeitos, dentre outras posições na de vítimas e suspeitos.
Nos capítulos anteriores, fiz a análise de três situações com características de ações
preventivas. Esse empreendimento analítico me levou a elaborar algumas afirmações, qual
seja, a de que a prevenção é um termo ambivalente e produtor. Ela não deve ser vista
somente em seu caráter reativo e positivado, mas como um termo que produz exclusão
social, na medida em que parte da premissa do evitamento de algo. Evita-se algo ou
alguém que é encarado como risco, desordem e perigo. Todos esses elementos são
construtos sociais e históricos pejorativizados em discursos e postos para funcionar por
mecanismos de poder, que objetivam também o controle social e a manutenção de relações
hegemônicas.
Outra afirmação que fiz foi a de que existe uma metonímia de expansão da violência, a
qual se inicia com a insegurança generalizada, principalmente, no meio urbano levando as
pessoas a buscarem formas de se sentirem mais seguras. A prevenção aparece como uma
forma eficaz e humana de promover essa segurança, sendo que se isso se constitui numa
falácia, na medida em que a prevenção reatualiza as relações de poder existentes,
ratificando a exclusão dos excluídos. Essas relações vão construir sujeitos, identidades e
diferenças influindo diretamente no cotidiano dos indivíduos envolvidos.
Na análise das situações, observei que os corpos são importantes na viabilização dessa
busca por segurança. Isso porque de um lado a responsabilidade pela segurança parece, na
visão dos sujeitos, ser um atributo dos corpos de forma individualizada. De outro lado, são
desenvolvidas técnicas e habilidades que proporcione a esses corpos sua auto defesa. Mas
uma peculiaridade importante nesses cursos é o desenvolvimento da habilidade em ler e
interpretar signos corporais e comportamentais, sendo este um passo crucial no processo de
promoção da segurança, via evitação do perigo.
Dito isso, o meu esforço nesse capítulo é o de, através da descrição de um caso em que
a cor negra foi determinante enquanto signo de suspeição, analisar as relações em que a
promoção de segurança parece ser o cerne. É também pretensão deste texto apresentar o

81
quanto a cor negra, como signo estruturante, acionou reações violentas nas relações sociais
e foi lida como significando risco e delinquência, promovendo prejuízo físico, psíquico e
moral aos negros envolvidos. Pretendo também, observando esses signos como produtos e
produtores de relações e estruturas históricas, discorrer sobre características dessas
construções históricas das relações raciais brasileiras, com o objetivo de compreender
melhor as formas de manifestação dos signos de suspeição e a relação deles com a
estrutura social vigente. E por fim, pretendo entender que sujeito é produzido a partir
dessas relações estigmatizadas. Como os negros se inserem nessa metonímia de expansão
da violência? Que relação existe entre a noção de prevenção, como mecanismo de controle,
e os negros brasileiros? Como percebem e são percebidos seus corpos e habilidades?
Apesar das críticas apontadas, no presente texto, sobre a produção de saberes, é
necessário que se apresentem os esforços acadêmicos de pesquisa, relatando a cor como
elemento de suspeição. São trabalhos que partem do Estado como agente de violência e de
discriminação racial, mas também consideram as relações sociais e de contato entre polícia
e sujeitos negros atravessados por uma estrutura histórica racializada. No entanto, são
trabalhos específicos sobre a polícia que não nos dá a dimensão ampla e o alcance desse
tipo de categorização – suspeição -, no cotidiano dos indivíduos.
Uma das pesquisas intitulada ―Elemento suspeito‖, das autoras Silvia Ramos e
Leonarda Musumeci (2005), trata do contato entre polícia e população carioca no contexto
de blitz. Quando perguntado ―o que levaria um policial a considerar uma pessoa suspeita?‖
Os mesmos apresentam dificuldade em responder, demonstrando algumas vezes reação
defensiva que é manifestada por uma negação utilizando a velha premissa de que ―não
existe pessoa suspeita, mas situação de suspeição‖, ou até mesmo usando a definição de
que ―suspeita é a pessoa obviamente suspeita‖, ou seja, utilizando a metáfora do espelho.

Essa metáfora – do policial como espelho da sociedade - seria acionada no


plano discursivo toda vez que o policial reconhece que as definições de
“elemento suspeito” tendem a coincidir com estereótipos negativos
relacionados à idade, gênero, classe social, raça/cor e local de moradia(...)
(Ramos e Musumeci, 2005, p.39).

A cor foi uma das características mais citadas pelos jovens como preponderantes na
seleção que faz o policial na hora da abordagem. Ela é mencionada como algo inevitável,
uma vez que a cor você não pode mudar, tirar como a vestimenta, ou atitude etc.

82
Outro trabalho significativo sobre o tema é o de Geová da Silva Barros (2006). Trata-se
de uma dissertação de mestrado intitulada ―Racismo institucional: a cor da pele como
principal fator de suspeição‖. Neste trabalho, o autor empreende uma tentativa de estudo
sobre discriminação racial na abordagem policial. Apresenta como objetivo verificar em
que medida a cor da pele constitui fator de suspeição. Além disso, procura identificar se os
policiais têm a percepção da prática do racismo institucional. O autor sistematiza, para
isso, um banco de dados a partir da aplicação de questionários e da análise de boletins de
ocorrências de sete unidades da Polícia Militar de Pernambuco. Como resultado, Barros
(2006) verificou que 65,05% dos profissionais percebem que os pretos e pardos são
priorizados nas abordagens, o que corrobora as percepções dos alunos do Curso de
Formação de Oficiais e do Curso de Formação de Soldados, com 76,9% e 74%,
respectivamente.
Estes não são os únicos trabalhos que abordam o tema, no entanto, cito-os aqui como
uma contra-crítica e para enfatizar que a maior incidência de discussões e políticas com
viés racial têm surtido o efeito também de aumentar, ainda que muito pouco, o interesse
em se pesquisar a temática. Bem, sem mais elucubrações passemos para a apresentação do
caso Januário.

3.1 - Raça/cor como elemento estruturante da suspeita: descrição do caso


Januário

Homem negro espancado, suspeito de roubar o próprio carro


Por: Redação - Fonte: Afropress - 13/8/2009
S. Paulo - Tomado por suspeito de um crime impossível – o roubo do seu próprio carro, um EcoSport da Ford –
o funcionário da USP, Januário Alves de Santana, 39 anos, foi submetido a uma sessão de espancamentos com
direito a socos, cabeçadas e coronhadas, por cerca de cinco seguranças do Hipermercado Carrefour, numa
salinha próxima à entrada da loja da Avenida dos Autonomistas, em Osasco. Enquanto apanhava, a mulher, um
filho de cinco anos, a irmã e o cunhado faziam compras.

A direção do Supermercado, questionada pelo Sindicato dos Trabalhadores da USP, afirma que tudo não passou
de uma briga entre clientes.

O caso aconteceu na última sexta-feira (07/08) e está registrado no 5º DP de Osasco. O Boletim de Ocorrência -
4590 - assinado pelo delegado de plantão Arlindo Rodrigues Cardoso, porém, não revela tudo o que aconteceu
entre as 22h22 de sexta e às 02h34 de sábado, quando Santana – um baiano há 10 anos em S. Paulo e que
trabalha como Segurança na Faculdade de Ciências Farmacêuticas da USP, há oito anos - chegou a Delegacia,
depois de ser atendido no Hospital Universitário da USP com o rosto bastante machucado, os dentes quebrados.

Ainda com fortes dores de cabeça e no ouvido e sangrando pelo nariz, ele procurou a Afropress, junto com a
mulher – a também funcionária do Museu de Arte Contemporânea da USP, Maria dos Remédios do Nascimento
Santana, 41 anos - para falar sobre as cenas de terror e medo que viveu. ―Eu pensava que eles iam me matar. Eu

83
só dizia: Meu Deus‖.

Santana disse pode reconhecer os agressores e também pelo menos um dos policiais militares que atendeu a
ocorrência – um PM de sobrenome Pina. ―Você tem cara de que tem pelo menos três passagens. Pode falar. Não
nega. Confessa, que não tem problema‖, teria comentado Pina, assim que chegou para atender a ocorrência,
quando Santana relatou que estava sendo vítima de um mal entendido.

Depois de colocar em dúvida a sua versão de que era o dono do próprio carro, a Polícia o deixou no
estacionamento com a família sem prestar socorro, recomendando que, se quisesse, procurasse a Delegacia para
prestar queixa.

Terror e medo

―Cheguei, estacionei e, como minha filha de dois anos, dormia no banco de trás. Combinei com minha mulher,
minha irmã e cunhado que ficaria enquanto eles faziam compra. Logo em seguida notei movimentação estranha
e vi dois homens saindo depressa, enquanto o alarme de uma moto disparava e o dono chegava preocupado.
Cheguei a comentar com ele: "acho que queriam levar sua moto". Dito isso, continuei, mas já fora do carro,
porque notei movimentação estranha de vários homens, que passaram a rodear, alguns com moto. Achei que
eram bandidos que queriam levar a moto de qualquer jeito e passei a prestar a atenção‖, relata.

À certa altura, um desses homens – que depois viria a identificar como segurança – se aproximou e sacou a
arma. Foi o instinto e o treinamento de segurança, acrescenta, que o fez se proteger atrás de uma pilastra para
não ser atingido e, em seguida, sair correndo em zigue-zague, já dentro do supermercado. ―Eu não sabia, se era
Polícia ou um bandido querendo me acertar‖, contou.

Os dois entraram em luta corporal, enquanto as pessoas assustadas buscavam a saída. ―Na minha mente, falei:
meu Deus, vou morrer agora. Eu vi essa cena várias vezes. E pedia a Deus que ele gritasse Polícia ou dissesse é
um assalto. Ele não desistia de me perseguir. Nós caímos no chão, ele com um revólver cano longo. Meu medo
era perder a mão dele e ele me acertar.

Enquanto isso, a mulher, a irmã, Luzia, o cunhado José Carlos, e o filho Samuel de cinco anos, faziam compras
sem nada saber. "Diziam que era uma assalto", acrescenta Maria dos Remédios.

Segundo Januário, enquanto estava caído, tentando evitar que o homem ficasse em condições de acertar sua
cabeça, viu que pessoas se aproximavam. "Eu podia ver os pés de várias pessoas enquanto estava no chão. É a
segurança do Carrefour, alguém gritou. Eu falei: Graças a Deus, estou salvo. Tô em casa, graças a Deus. Foi
então que um pisou na minha cabeça e já foi me batendo com um soco. Eu dizia: houve um mal entendido. Eu
também sou segurança. Disseram: vamos ali no quartinho prá esclarecer. Pegaram um rádio de comunicação e
deram com força na minha cabeça. Assim que entrei um deles falou: estava roubando o EcoSport e puxando
moto, né? Começou aí a sessão de tortura, com cabeçadas, coronhadas e testadas", continuou.

Sessão de torturas

―A sessão de torturas demorou de 15 a 20 minutos. Eu pensava que eles iam me matar. Eu só dizia: Meu Deus,
Jesus. Sangrava muito. Toda vez que falava ―Meu Deus‖, ouvia de um deles. Cala a boca seu neguinho. Se não
calar a boca eu vou te quebrar todo. Eles iam me matar de porrada", conta.

Santana disse que eram cerca de cinco homens que se revezavam na sessão de pancadaria. ―Teve um dos
murros que a prótese ficou em pedaços. Eu tentava conversar. Minha criança está no carro. Minha esposa está
fazendo compras, não adiantava, porque eles continuaram batendo. Não desmaiei, mas deu tontura várias vezes.
Eu queria sentar, mas eles não deixavam e não paravam de bater de todo jeito".

A certa altura Januário disse ter ouvido alguém anunciar: a Polícia chegou, sendo informada de que o caso era
de um negro que tentava roubar um EcoSport. ―Eles disseram que eu estava roubando o meu carro. E eu dizia: o
carro é meu. Deram risada.‖

A Polícia e o suspeito padrão

A chegada da viatura com três policiais fez cessar os espancamentos, porém, não as humilhações. ―Você tem
84
cara de que tem pelo menos três passagens. Pode falar. Não nega. Confessa que não tem problema‖, comentou
um dos policiais militares, enquanto os seguranças desapareciam.

O policial não deu crédito a informação e fez um teste: ―Qual é o primeiro procedimento do segurança?‖. Tonto,
Januário, Santana disse ter respondido: ―o primeiro procedimento é proteger a própria vida para poder proteger
a vida de terceiros‖.

Foi depois disso que conseguiu que fosse levado pelos policiais até o carro e encontrou a filha Ester, de dois
anos, ainda dormindo e a mulher, a irmã e o filho atraídos pela confusão e pelos boatos de que a loja estava
sendo assaltada. ―Acho que pela dor ele se deitou no chão. Estava muito machucado, isso tudo na frente do meu
filho‖, conta Maria dos Remédios.

Sem socorro

Depois de conferirem a documentação do carro, que está em nome dela, os policiais deixaram o supermercado.
―Daqui a pouco vem o PS do Carrefour. Depois se quiserem deem queixa e processem o Carrefour‖, disse o
soldado.

Em choque e sentindo muitas dores, o funcionário da USP conseguiu se levantar e dirigir até o Hospital
Universitário onde chegou com cortes profundos na boca e no nariz. ―Estou sangrando até hoje. Quando bate
frio, dói. Tenho medo de ficar com seqüelas‖, afirmou.

A mulher disse que o EcoSport, que está sendo pago em 72 parcelas de R$ 789,00, vem sendo fonte de
problemas para a família desde que foi comprado há dois anos. ―Toda vez que ele sai a Polícia vem atrás de
mim. Esse carro é seu? Até no serviço a Polícia já me abordou. Meu Deus, é porque ele é preto que não pode ter
um carro EcoSport?‖, se pergunta.

Ainda desorientado, Santana disse que tem medo. ―Eu estou com vários traumas. Se tem alguém atrás de mim,
eu paro. Como se estivesse sendo perseguido. Durante a noite toda a hora acordo com pesadelo. Como é que
não fazem com pessoas que fizeram alguma coisa. Acho que eles matam a pessoa batendo‖, concluiu.

Da Redação, com Agência Estado


cidades@eband.com.br
O segurança e técnico em eletrônica Januário Alves de Santana, de 39 anos, foi agredido por seguranças do
supermercado Carrefour, em Osasco, na Grande São Paulo. Santana foi confundido com ladrões e considerado
suspeito de roubar o próprio carro. O caso foi registrado no 5º DP (Distrito Policial) da cidade. Nos próximos
dias, seu advogado vai ajuizar uma ação de indenização por danos morais contra o supermercado e o Estado.
―Esse caso é emblemático e precisa ser punido com vigor para que outras situações de discriminação racial não
venham a ocorrer.‖ Santana é negro. Segundo o cliente, enquanto a família fazia compras na noite do dia 7 ele
esperava no carro com a filha de 2 anos. O alarme de uma moto disparou e ele viu dois homens correndo. O
dono da moto chegou em seguida. Santana desceu do carro e achou que os bandidos tinham voltado. Um desses
homens sacou uma arma e Santana correu. No chão, chegaram a lutar até que um terceiro homem, que se
identificou como segurança da loja, retirou a arma e pisou na cabeça de Santana. Segundo ele, cinco homens,
que não vestiam uniformes, o levaram até um quartinho onde o espancaram. ―Eles falaram que eu ia roubar o
EcoSport e a moto. Quando disse que o carro era meu, batiam mais.‖ Quando três policiais militares chegaram
ao local, Santana explicou que seus documentos estavam no carro. ―Eles riam e diziam: ‗Sua cara não nega.
Você deve ter pelo menos três passagens pela polícia‘.‖ De tanto insistir, foram até o automóvel, onde sua
família o esperava. Após conferir a documentação, os policiais foram embora. ―Já passei outros
constrangimentos com esse carro. Acho que vou vender‖, diz ele. O Carrefour afirmou que acompanha a
investigação policial.
As informações são do jornal "O Estado de S. Paulo".

85
Estas são as duas reportagens51 que utilizo como base de dados etnográficos para
empreender minhas análises. Os dois textos versam sobre o mesmo assunto, no entanto,
constituem fontes midiáticas com objetivos conhecidamente distintos. Um, “o Afropress”,
é um jornal online, temático, que veicula notícias sobre os negros, relações cotidianas
racializadas e matérias de temas raciais. Outro, “o Estado de São Paulo”, veicula notícias
regionais, do estado de São Paulo, e nacionais. É um jornal tradicional e sem compromisso
com a questão racial.
Antes de incorrer em qualquer afirmativa analítica, retorno às conceituações de
signo adotadas neste trabalho. Além da tríade pierceana, já conceituada e utilizada no
corpo do trabalho, utilizo a noção de “raça como signo” cunhada pela Antropóloga Rita
Segato (2005). Para a autora,

(...) raça é signo e, como tal, depende de contextos definidos e delimitados


para obter significação, definida como aquilo que é socialmente relevante.
Estes contextos são localizados e profundamente afetados pelos processos
históricos de cada nação (...). (p. 06)

(...) raça é signo -significante produzido no seio de uma estrutura onde o


estado e os grupos que com ele se identificam produzem e reproduzem seus
processos de instalação em detrimento de e a expensas dos outros que este
mesmo processo de emergência justamente secreta e simultaneamente
segrega. Ao mesmo tempo, numa cena global onde centro indica seus
interlocutores autorizados deixando um rastro de outros residuais e, quem
sabe agonizantes, por não ter direito à audibilidade nem acesso à inscrição
de suas idiossincrasias e peculiaridades no estreito roteiro multicultural.
(p.10)

(...) cor é signo e seu único valor sociológico radica em sua capacidade de
significar. Portanto, o seu sentido depende de uma atribuição, de uma
leitura socialmente compartilhada e de um contexto histórica e
geograficamente delimitado. (p.03)

Nessa perspectiva, sujeitos que, em teoria, teriam mobilidade passam a ser inscritos
por marcas, as quais se configuram como determinação natural. Essas marcas localizam os
sujeitos em posições estruturais. Em outras palavras, “As posições enquanto afloramento
de relações estruturais tem rosto” (SEGATO, 2005, p.10). Ainda para a autora, os sujeitos

51
É importante ressaltar que esse acontecimento não gerou grande mídia no país. Em comparação a outros
acontecimentos de violência quase não foi veiculado. Por grandes emissoras, por exemplo, a rede globo de
televisão, foi veiculado tão poucas vezes e em horários dos telejornais de baixa audiência que me atrevo a
dizer que o caso Januário foi alvo de um silenciamento. No entanto,―O silêncio é dispositivo discursivo e
devemos buscar entender as diferentes maneiras de não dizer, averiguar quem pode ou não falar, verificar
quem fala por quem. Portanto, devemos entender os silêncios como partes integrantes das estratégias dos
discursos.‖ (FOUCAULT, 1985a, p.30)

86
percebem os signos enquanto a-históricos, inertes, imutáveis e, por isso, têm a sensação de
que estão presos a uma estrutura estável.
A situação vivida por Januário tem por cenário o estacionamento de um
hipermercado, uma multinacional, símbolo do capitalismo Ocidental. Os sujeitos
envolvidos são identificados e se auto-identificam como agentes de segurança, inclusive
Januário, trabalhador do ramo de segurança da USP – Universidade de São Paulo. Os
seguranças do hipermercado se encontravam no momento responsáveis por manter a
ordem e resguardar o patrimônio privado do hipermercado e dos clientes, que lá se
encontravam realizando suas compras. A principal função desses agentes, não é a de
perseguir bandidos depois que estes cometem crimes, mas evitar que se cometa algum
crime, principalmente, furtos nas dependências do Carrefour. Desse modo, defino esse tipo
de atribuição como preventiva.
Januário, por sua vez, mesmo sendo agente de segurança não se encontrava no local
a serviço, mas como cliente, com sua família, fazendo compras. Proprietário de um carro
não popular, um Ecoesport, o suspeito-vítima52, esperava sua família voltar das compras
enquanto zelava pela segurança da sua filha, sem nem mesmo saber que era sua própria
segurança que se encontrava em risco. Abordado e vítima de violência, Januário nada pode
fazer em seu próprio favor.
A cor negra, nesse caso, foi um evidente significante que acionou e foi significado
como delinqüência ou criminalidade. Isso ficou evidente na fala e ação dos seguranças
quando da chegada dos policiais e nos momentos seguintes de violência.

“a Polícia chegou, sendo informada de que o caso era de um negro que


tentava roubar um EcoSport.(...) “A sessão de torturas demorou de 15 a 2º
minutos. Eu pensava que eles iam me matar. Eu só dizia: Meu Deus, Jesus.
Sangrava muito. Toda vez que falava “Meu Deus”, ouvia de um deles. Cala
a boca seu neguinho. Se não calar a boca eu vou te quebrar
todo”.(Afropress)

“Eles riam e diziam: „Sua cara não nega. Você deve ter pelo menos três
passagens pela polícia‟(estado de São Paulo).

52
Daí sugiro a leitura da cor como um signo também ambivalente, já apontada no título do artigo de Dijaci
David de Oliveira, Ricardo Barbosa de Lima e Sales Augusto dos Santos intitulado ―A cor do medo: o medo
da cor”In: OLIVEIRA, Djaci David de, GERALDES, Elen Cristina, LIMA, Ricardo Barbosa de, SANTOS,
Sales Augusto dos. A Cor do Medo. Brasília: UnB; Goiânia: UFG, 1998. A ambivalência, produzida
historicamente, traduz a pejorativização em torno do signo que a depender do contexto pode se configurar
como pertencente a alguém a quem se deve temer (suspeito), ou a alguém que deve temer ter o signo inscrito
em seu corpo pela abordagem e violência a que está sujeito. O caso de Januário ilustra tal ambivalência com
a configuração do sujeito enquanto vítima e suspeito em uma mesma situação.

87
O significado é estabilizado pelos rumores, notícias e constructos históricos, aos
quais posicionam os negros nos lugares sociais de inferioridade, de pobreza, subalternação
etc. Esta evidente significação se encontra marcada nos risos de ironia e descrença do
policial quando Januário afirma ser dono do carro. Em outras palavras, numa construção
histórico-social e de ampla divulgação midiática, os negros não são mostrados ocupando
posições de prestígio ou detendo poder aquisitivo para possuir um carro daquele. Sendo
assim, mesmo essa caracterização sendo instável, na medida em que sabe-se que, mesmo
poucos, alguns negros ocupam, sim, posições privilegiadas, tal instabilidade é mascarada
na veiculação e construção da imagem dos negros em posições de subalternidade a ponto
de essencializar, naturalizar essa construção social.
O corpo, como visto na seção anterior, é um construto social e reúne em si toda a
complexidade que o social encerra. Possui marcas desse social inscritas no seu interior e
exterior, bem como no seu comportamento. Limitamos-nos a refletir sobre duas dimensões
interligadas desse corpo, qual seja, os signos e habilidades. Interessa-nos compreender
como os signos e habilidades são percebidos e construídos pelos sujeitos e qual sua
implicação com as relações de poder e as práticas discursivas envolvidas na idéia de
prevenção. Corroborando com a noção de biopoder de Foucault, a de que esse corpo é alvo
de tecnologia e mecanismos de controle que objetivam docilizá-los, atribuindo-lhes
posições sociais e padrões comportamentais, compreendo as ações ―preventivas‖ sofridas
por Januário, como objetivando esse controle, fazendo parte desse mecanismo. O que fica
patente nas ações dos seguranças é a necessidade em demonstrar que aquele não era o
lugar de Januário. Seu lugar não é o de proprietário de um carro caro, fazendo compras em
um hipermercado (evidente na risada irônica e descrença do segurança).
As habilidades dos negros estão coladas na imagem dos criminosos. Habilidoso,
ardiloso e estratégico – como apontados no capítulo anterior – os negros são conhecidos
historicamente, nos estereótipos a eles atribuídos, como mentiroso, forte fisicamente e
resistente. Januário foi até o último momento alvo da descrença dos seguranças. Encarado
como mentiroso, ludibriador, nem os policiais que chegaram depois lhe deram crédito,
convencendo-se somente após a realização de testes como a seguinte pergunta sobre sua
profissão:

“Qual é o primeiro procedimento do segurança?”. Tonto, Januário, Santana


disse ter respondido: “o primeiro procedimento é proteger a própria vida
para poder proteger a vida de terceiros”.
88
A significação pejorativa atribuída à cor, raça negra enquanto signo, relaciona-se e
são afetados pelos discursos e processos históricos dos grupos estudados. Na próxima
seção me deterei, especificamente, na análise do processo histórico de construção social da
categoria raça, por hora me detenho no contexto circunstancial e no acionamento do
significado histórico da cor. O contexto espacial e situacional que envolve o acionamento
do significado pejorativo da cor negra é bem ampliado, diria até de difícil delimitação. O
que se observa é que nos locais ou situações em que os negros não reconheçam ou tentem
sair de sua situação de subalternidade o signo e seu significado emerge sob a forma de
reações violentas. Foi assim com Januário e com Flávio dos Santos – dentista negro morto
acusado de um crime – roubo - que não cometeu.
O discurso preventivo, positivado mostra nesse caso sua ambivalência, seu caráter
produtivo e sua faceta racializada. Não só reage indiscriminadamente ao perigo para
proteger inocentes, mas pautada pelo discurso racista histórico impõe violência sobre
corpos negros. Produz mais violência, injustiça social e mais vítimas. Produz, também,
exclusão social quando tanto serve como serve-se de mecanismo de controle do poder
hegemônico atribuindo lugares e posições sociais aos indivíduos, fazendo com que os
mesmos optem, por vezes, abdicar de bens ou situações vividas associados à grupos de
classe média/alta por não se sentirem seguros com eles ou neles. A fala de Januário traduz
bem isso ―Já passei outros constrangimentos com esse carro. Acho que vou vender‖, diz
ele. (Estado de São Paulo).
O medo generalizado da violência descontrolada, apontado como um dos elementos
da metonímia de expansão da violência, utiliza o componente racial para concretizar e
materializar o medo. Em outras palavras, o medo tem um rosto, uma cor e é negra.
Historicamente ele significa crime e delinqüência, mas para, além disso, ele é duplamente
sentido pelos próprios negros ao serem alvo do controle e da tentativa de se gerar
segurança. A humilhação e mutilação acabam por caracterizar as ações preventivas. A
questão que fica é: e a positividade da ação onde está? Talvez ela esteja enquanto
mecanismo de controle do poder hegemônico. Nesse caso, positivo para quem?
Para fechar essa seção, gostaria apenas de retomar a cor negra e a categoria social
―raça‖ como signos produzidos na estrutura, gerando significados aos quais grupos em
posição de poder se identificam e o utilizam em seus mecanismos de controle, discursos
etc. A prevenção enquanto um desses mecanismo, no Brasil, realiza seu controle, dentre

89
outras formas, através de uma cegueira racial53 ( mascaramento do racismo velado) e de
um filtramento racial54, uma seleção social e racial55 sutil e disfarçada em discursos de
democracia e igualdade nas relações. Passo agora para a construção histórica dessa
estrutura.

3.2 - A estrutura colonializada/moderna e a História das relações


racializadas no Brazil.

Na seção anterior, descrevendo um caso em que, considerado suspeito de roubar o


próprio carro, um indivíduo foi seriamente agredido analisei a cor como um signo inscrito
no corpo dos indivíduos, que aciona no âmbito da segurança, mas não só aí, relações de
hostilidade, violência e suspeição para com os negros. Partindo das premissas de que o
valor da cor/raça está no seu poder de significar, adquirindo sentido a partir de um contexto
histórico e uma leitura sociológica delimitada (SEGATO, 2005), bem como, da racialidade
como categoria preponderante na estrutura de poder denominado “colonialidade”, assumo
a raça/cor, neste texto, como elemento estruturante da suspeita. Com isso, nessa seção me
proponho a apontar algumas discussões e aspectos da construção histórica e de saberes
relativos à cor negra, no contexto histórico brasileiro, sua conexão com as caracterizações,
significados ganhos pelo signo e relações entres suspeitos e vítimas.
Apesar de muitas vezes silenciados, abafados e invisibilizados, principalmente pela
noção de “democracia racial”, amplamente assimilada tanto pelo senso comum quanto no
meio acadêmico, alguns pensadores negros brasileiros insistiram em declarar a existência
contínua de racismo nas relações sociais brasileiras. As discussões se intensificaram e a
teoria pós-colonial contribuiu e contribui, de certo modo, para o questionamento da

53
Que se traduz pela maneira como as instituições negam a existência de práticas raciais ao reenquadrar as
realidades raciais dentro dos discursos ―neutros‖ tecnicoprofissionais. .(AMAR, In:Ramos e Musumeci,
2005, p.231).
54
Uso de meios racialmente tendenciosos para identificar suspeitos e/ou buscar capturar cidadãos.(Idem,
Ibidem)
55
Para Rita Segato, uma marca nesse processo de seleção é a cor não branca, ou seja, a raça entendendo-a
como sendo ―efecto y no causa, um producto de siglos de modernidad y del trabajo mancomunado de
académicos, intelectuales, artistas, filósofos, juristas, legisladores y agentes de la ley, que han clasificado la
diferencia como racialidad...‖ ( SEGATO, 2007, p.146). A racialização seria como a formação de um capital
racial positivo para os brancos e negativo para os não brancos permitindo etiquetar e encarcerar estes últimos
e tudo isso herança de um discurso jurídico colonial ( SEGATO, 2007, p.146). A fala da autora traz
elementos importantíssimos para a compreensão do que aqui está sendo abordado, por exemplo, a
racialização enquanto discurso, mas também enquanto produto de construção histórica e sendo constructo e
construtor de um poder e de um saber, herança do colonialismo.

90
validade da noção de democracia racial. Faz isso ao trazer para as discussões a relevância
da―racialidade‖ no entendimento da estrutura social e relações de poder, nos países outrora
colonizados, e ao relacioná-las a um constructo das relações coloniais.
Entender a especificidade da relação dessa crítica com o contexto brasileiro
demanda fazer um breve passeio sobre a construção da identidade do brasileiro como
mestiço e do Brasil enquanto ―um local genuinamente democrático racialmente‖. Segundo
a teoria que critica o discurso raciológico56, o projeto histórico e ideológico da
mestiçagem57 brasileira foi construído em cima de um também projeto de branqueamento
da população, bem como, da posterior idéia de democracia racial. Historicamente, no
Brasil, a preocupação sobre a identidade brasileira começou a se delinear por volta de
1870. Essa preocupação pode ser percebida nos discursos da elite tanto intelectual quanto
política. Em suas falas é possível perceber uma preocupação com a diversidade. Tal
diversidade foi entendida como um obstáculo para a construção da identidade do brasileiro,
sendo o processo de mistura da população atacado de todas as formas. Os ataques se
davam através de discursos científicos que atestavam a degeneração58 das raças pela
mestiçagem, ou mesmo por legislações racistas que submetiam os negros e mestiços a
permanecerem em uma situação permanente de subalternidade.
Como afirma Munanga (2004), o pensamento racial da elite brasileira do final do
século XIX e início do século XX estão permeados de elementos pseudocientíficos que se
traduzem em especulações cerebrais. Essas especulações podem ser percebidas nas
preocupações sobre a mestiçagem, ora tidas como um meio para estragar e degradar a raça
boa, ora para reconduzir a espécie a seus traços originais; pela degenerescência causada
por ela, ou ainda como instrumento de branqueamento59. Silvio Romero, Nina Rodrigues e
Arthur Ramos são clássicos exemplos de intelectuais deste período que focam seus estudos
nos negros.

56
Sem querer entrar na discussão sobre o conceito de raça para os pós-colonialistas, ela seria fruto de uma
construção histórica e ideológica e utilizada para justificar desigualdades permanentes. (QUIJANO, 2004,
p.77).
57
Mestiçagem será aqui entendida na sua complexidade, ou seja, em sua apresentação fenotípica, mas
também no seu caráter histórico, político e social.
58
―A palavra ―degenerado‖, aplicada a um povo, significa que esse povo não tem mais o mesmo valor
intrínseco que possuía outrora, porque não tem mais em suas veias o mesmo sangue, cuja qualidade foi
afetada por sucessivas alterações provocadas pela mestiçagem.‖ (MUNANGA, 2004, p. 48)
59
Alguns acadêmicos aceitavam as previsões racistas de inferioridade do negro e do mulato, mas acreditavam
que essa inferioridade poderia ser suplantada através da miscigenação. Enfim, propõe-se um branqueamento
da população, através da imigração européia e da mescla entre brancos e não-brancos como solução para o
desenvolvimento brasileiro.
91
Enquanto fundamentação teórica, as afirmações cunhadas por esses autores
constituíram uma verdadeira tecnologia de poder e de ―verdades‖ discursivas a respeito dos
negros. Embasando saberes como a criminologia e práticas como as legislações racistas
que perduraram por vários séculos, essas teorias foram fundamentais para delinear as
relações de poder hegemônicas e racializadas que perduram até os dias atuais. Algumas
dessas premissas sobrevivem hoje, como um discurso através de práticas sociais racistas
baseadas em estigmas e representações, associando os negros à violência como sinônimos
de delinqüência, como visto na seção anterior. A conexão entre negros e crime está tão
naturalizada que as pessoas nem sequer se espantam com um crime cometido por um
negro, mas ficam sensibilizados quando é cometido por um branco, principalmente se esse
for de classe média. Enquanto desdobramentos práticos e relacionais, essas premissas
funcionam como uma verdade no senso comum, norteando a prática de policiais,
seguranças e pessoas comuns. Por fim, tal ―verdade‖ e comportamento se mascara no
pressuposto da existência de uma democracia racial brasileira, propiciando a negação no
plano individual e coletivo de práticas racistas, criando um paradoxo, que mantêm as
hierarquias e relações de poder, dificultando transformações desse quadro.
A história do código criminal brasileiro está recheado de regras e condutas racistas.
Pode-se citar alguns exemplos ilustrativos, como o código criminal do Império, que
considerava o escravo como coisa, porém quando este se encontrava na situação de réu era
humanizado para ser responsabilizado. Eram instituídas penas de galés e de morte somente
para escravos. Já o código penal da República, abolia a pena de morte e instituía o regime
penitenciário correcional, segundo as formulações de Foucault (1997), como uma nova
forma de vigiar e controlar os corpos, torná-los dóceis, nesse caso os corpos negros -
punindo a capoeiragem, o curandeirismo, o espiritismo, a mendicância a vadiagem etc.

Em 1894, Nina Rodrigues elaborava as bases teóricas nativas da propensão


genética, da inclinação constitutiva dos negros para a conduta criminosa.
Inspirado em tratados de criminologia e também em práticas e teorias do
direito anteriores ou da própria época. (JÚNIOR; in OLIVEIRA,
GERALDES, LIMA, SANTOS, 1998, p. 71).

Nina Rodrigues, seguindo as idéias de Lombroso, procede à identificação da figura


do delinquente nato, associando determinadas características corporais à delinquência.
Começa a medir estatura, comprimento de cabeça, braços etc., acrescentando e

92
diferenciando no Brasil, com a medida da largura do nariz como uma espécie de adaptação.
Nas próprias palavras do teórico:

(...) se pode admitir que os selvagens americanos e os negros africanos, bem


como seus mestiços, já tenham adquirido o desenvolvimento physico e a
somma de faculdades psychicas, sufficientes para reconhecer, num caso
dado, o valor legal do seu acto(discernimento) e para se decidir livremente a
commettel-o ou não (livre arbítrio)? – Por ventura pode-se conceder que a
consciência do direito e do dever que teem essas raças inferiores seja a
mesma que possue a raça branca civilizada? (...) O negro crioulo conservou
vivaz os instintos brutaes do africano:é rixoso, violento nas suas impulsões
sexuaes, muito dado á embriaguez e esse fundo de caracter imprime o seu
cunho na criminalidade colonial actual. (Rodrigues, 1894 p.112, 124
apud.Júnior, in Oliveira, Geraldes, Lima, Santos, 1998, p. 77).

Baseado nisso pregava a adoção de quatro códigos diferentes: um para mestiços


superiores; outro para mestiços degenerados; um outro para mestiços comuns e finalmente
um para brancos. O discurso de Nina Rodrigues foi assimilado pela literatura médica
nacional e pelo discurso jurídico hegemônico, lançando bases para uma escola teórica.
Esses atributos negativos ligados à cor negra, citados acima, foram incorporados como um
discurso de verdade sobre esse indivíduo e mantendo uma relação de poder entre os negros
e as pessoas que socialmente se encontram numa posição social de poder. Foram também
utilizados como justificativa para uma política de branqueamento, no intuito de livrar o
Brasil dos degenerados que atrapalhavam seu desenvolvimento.
Na visão de Romero, retomando as teorias que ajudaram a legitimar essas práticas
racistas, a mistura era só uma fase intermediária e transitória que levaria futuramente a
uma predominância da raça branca, que segundo ele era mais numerosa, plantando aí as
sementes da ideologia do branqueamento. Para Nina Rodrigues, ―a mistura entre homens
muito dessemelhantes parece produzir um tipo sem valor, que não serve nem para o modo
de viver da raça superior nem para o da raça inferior‖ (MUNANGA, 2004, pag.59),
propondo a partir disso, a institucionalização da diferença. Já Arthur Ramos, considerou a
mistura fruto de uma harmonia de convivência entre as raças expressando a democracia
existente na nação. Este pode ser o germe da idéia romantizada freireana das relações inter-
raciais (MUNANGA, 2004).
Toda essa discussão sobre a pluralidade e a mestiçagem brasileira mostra o quanto
esta era motivo de preocupação da elite intelectual e tida como negativa na construção da
identidade e da nação desembocando no projeto de branqueamento como solução. Através
da eugenia de um lado e da criação de um sincretismo de outro, se esperava ―limpar‖ ou

93
―expurgar‖ do sangue ou da genética da população os traços ruins e atrasados adquiridos
com a mistura racial entre brancos e negros. Foi, portanto, um projeto de purificação racial
empreendido com o objetivo de alcançar um ideal branco e levado adiante por políticas de
imigração européias embasadas em legislações e em estudos pseudocientíficos. A política
de branqueamento, segundo Munanga (2004), construiu o que hoje é entendido por alguns
militantes negros como um distanciamento e uma falta de solidariedade do mestiço para
com o negro. Para melhor elucidar essa falta de solidariedade de que fala Munanga, e
compreender as especificidades das relações raciais brasileiras, é útil recorrer aos conceitos
de preconceito de marca e de origem elaborado por Oracy Nogueira, nos anos 80, para
diferenciar as realidades das relações raciais no Brasil e EUA, respectivamente, e a noção
de segunda pele, cunhado pelo antropólogo José Jorge de Carvalho.
Ao elaborar seu estudo sobre preconceito racial em São Paulo, Oracy Nogueira

Considera-se como discriminação racial uma disposição (ou atitude)


desfavorável, culturalmente condicionada, em relação aos membros de uma
população, aos quais se têm como estigmatizados, seja devido à aparência,
seja devido a toda ou parte da ascendência étnica que se lhes atribui ou
reconhece. Quando o preconceito de raça se exerce em relação à aparência,
isto é, quando toma por pretexto para as suas manifestações, os traços
físicos do indivíduo, a fisionomia, os gestos, os sotaques, diz-se que é de
marca; quando basta a suposição de que o indivíduo descende de certo
grupo étnico, para que sofra as conseqüências do preconceito, diz-se que é
de origem. (NOGUEIRA, 1979, p. 79).

Para ele o preconceito existente no Brasil foi todo construído com base no fenótipo,
ou seja, uma espécie de classificação cromática, um preconceito de marca que faz com que
quanto mais próximo do fenótipo negro alguém esteja mais discriminado ele é e vice-versa.
Carvalho (2008) vai além ao compreender o fenótipo negro, na formação da identidade do
brasileiro, inserido em um traço cultural mais amplo, a saber, como uma segunda pele. A
segunda pele seria

(...) marcas inscritas no corpo que singularizam o grupo étnico a que o


indivíduo pertence. (...) São essas marcas, impressas temporária ou
definitivamente na nossa pele biológica (nossa primeira pele, digamos) que
conformam a nossa segunda pele, a pele que nos faz seres humanos para os
outros seres humanos (deixando em aberto a nossa relação com os vários
animais). Algumas dessas marcas incluem: as escarificações, as pinturas
corporais, os furos e alongamentos nos narizes, os lóbulos furados, os lábios
furados, os cortes longilineares nos pomos da face (as marcas de nação dos
grupos da Costa Ocidental da África). (CARVALHO, 2008, pag. 09).

94
Para o autor, o racismo fenotípico moderno repadroniza a arte clássica grega com o
intuito de gerar a ilusão de compatibilidade com os corpos da elite européia, difundindo o
padrão estético branco ocidental enquanto ideal de beleza. Não só a cor da pele, mas as
proporções anatômicas ditas clássicas geram uma corrida a intervenções cirúrgicas por
parte tanto de brancos, negros e mestiços na tentativa de alcançar o padrão ideal. No
entanto, nessa corrida quem se aproxima em suas gradações fenotípicas do ideal europeu
tem vantagens e quando se afasta ou se aproxima das proporções anatômicas africanas tem
no racismo a expressão de sua desvantagem social, devido a seu capital simbólico estético
estigmatizado, desvalorizado e pejorativizado.
Historicamente isso construiu uma eterna busca do mestiço pelo ideal da brancura e
conseqüentemente o seu afastamento do negro, considerado como o que há de pior na
sociedade, dificultando assim o sentimento de solidariedade entre negros e mestiços.
Apesar de oficialmente a proposta de branqueamento ter sido gradualmente abandonada, a
sua ideologia ainda hoje pode ser encontrada em meio ao pensamento social. Tal ideologia
é denunciada por militantes políticos do movimento negro e por intelectuais engajados, por
representar, segundo estes, a impossibilidade de mobilização dos grupos excluídos nas
esferas estratégicas e importantes da sociedade. Entre estes se encontram os adeptos do
pensamento pós-colonialista, ao sistematizar a crítica a uma estrutura de poder racializada,
construída no período colonial, e ao ressaltar a permanência reatualizada dessa estrutura
em meio às relações sociais, políticas e econômicas brasileiras traduzida, entre outros, na
eterna busca pelo ideal branco, tão valorizado.
A ideologia da democracia racial pode ser compreendida como um dos processos
de reatualização da racialidade sob um novo formato, qual seja, o do mascaramento e
sutileza. A partir dos anos 30, com uma forte influência internacional de ideologias
nacionalistas, a elite brasileira se vê, novamente, às voltas com a necessidade de
estabelecer elementos de uma identidade do brasileiro. Ao escrever sua clássica obra:
―Casa-Grande e Senzala‖, Gilberto Freyre (1992) vai de encontro ao racismo científico e à
teoria do branqueamento, no formato até então vigente. É ele o mais conhecido pensador
brasileiro defensor da ideologia da democracia racial. Nessa perspectiva, o autor aposta na
mestiçagem como o elemento mais importante da identidade brasileira, encarando-a
positivamente ao contrário dos defensores do branqueamento, da não mistura e da
eliminação gradual do negro. Para ele, o mulato não é um degenerado, nem um elemento
transitório, mas de conciliação entre o negro e o branco.

95
Como afirma Munanga (2004), a ideologia da democracia racial faz parte do mito
fundador brasileiro em que participam na construção histórica do Brasil, índios, negros e
europeus. Esta perspectiva parte da convivência harmônica e sem conflitos ou maiores
embates entre esses três grupos. Tal ideologia foi amplamente aceita tanto pelo Estado
como pela sociedade, como um todo, e utilizada para a formulação da identidade brasileira
atrelada a idéia da mestiçagem. Florestan Fernandes (1978) assinalou ainda que, uma vez
se acreditando na ideologia da democracia racial torna-se difícil o surgimento de uma
mentalidade que se organize e se esforce por uma sociedade democrática política e
socialmente. O autor advertiu, com isso, que não existe democracia racial no Brasil, o que
existe realmente são intercâmbios entre raças que se sustentam em termos de tolerância
pactuada.
Algumas características decorrentes do preconceito racial, no formato brasileiro,
fazem-nos compreender em que bases se fundamentam teorias como a da democracia
racial, seu preconceito velado e a continuidade de estigmas relacionados à cor e práticas
racistas. A primeira característica é a de que esse tipo de relação permite aos afro-
descendentes que não possuem características tão marcadamente africanas, e/ou através da
ascensão social, um certo ou total branqueamento60. A outra seria a de que até pessoas
declaradamente, ou não, preconceituosas podem manter contato com uma quantidade
restrita de pessoas pertencentes ao grupo estigmatizado.
A complexidade, maleabilidade e velamento dessas relações permitem a
insurgência de outro tipo de preconceito, a saber, “o preconceito de ter preconceitos”.
Dito de outra forma, os brasileiros praticam a discriminação, mas sempre atribuem essa
prática a outros, como explicitado nas próprias palavras de Florestan Fernandes:

O que há de mais evidente nas atitudes dos brasileiros diante “do


preconceito de cor” é a tendência a considera-lo como algo ultrajante (para
quem sofre) e degradante (para quem o pratica) (...) Portanto, o que fica no
centro das preocupações, das apreensões e, mesmo, das obsessões é o
“preconceito de ter preconceito (FERNANDES apud SCHWARCZ e
QUEIROZ, 1996, p.13)

A dificuldade em classificar os indivíduos e as situações em que essas relações se


enquadram, e na qual ocorre o racismo, são elementos importantes na compreensão de
como o racismo funciona. Segundo Marvin Harris (1952), e utilizando um termo de

60
processo pelo qual grupos de negros, através de mudanças físicas ou comportamentais, buscam ser aceitos
por grupos de brancos como ―relativamente iguais‖.
96
Roberto DaMatta, no caso de um contato no mundo da rua, ou seja, categórico, um branco
tratará um negro de forma estereotipada com todos os conteúdos pejorativos. Porém, no
caso de um contato no espaço da casa – relações pessoais – os negros poderão ser vistos de
modo mais positivo, o que não significa relações igualitárias, o estereótipo continua
existindo, mas seria um metonímico branqueamento. Isso fundamentaria a negação do
racismo no plano individual (PAIXÃO, In: RAMOS E MUSUMECI, 2005).
Para os críticos da democracia racial, a ausência de conflito depende em grande
parte do conhecimento e da adesão dos diversos grupos de raça/cor aos seus lugares
idealmente previstos, ou seja, brancos nas posições de prestígio e negros nas posições
inferiores. É no processo de mobilidade social de uma pessoa negra, ou durante os choques
pessoais do dia-a-dia, que os conflitos raciais têm maior probabilidade de vir à tona. Isso
porque o mero processo de deslocamento dos negros de sua posição social original, ou suas
tentativas de impor uma igualdade de fato no plano das relações humanas, já são em si,
para os padrões brasileiros, a quebra de uma importante regra de etiqueta.
A partir desses estudos, o debate das relações raciais passa a ser posto em outros
termos. Evidencia-se hoje um conflito que se caracteriza pela discussão entre quem ainda
defende a mestiçagem como busca de justiça e resolução dos problemas raciais e outros
que vêem a sua proposta como uma eugenia mascarada. O debate é amplo, fecundo,
conflitante e impossível de traduzi-lo aqui. No entanto, quanto à relação entre pressupostos
ou conceitos pós-coloniais e estas discussões étnico-raciais brasileiras pode-se analisar dois
grandes conjuntos: críticas e conceitos, bem como, propostas políticas. O conceito da
colonialidade do poder de Quijano (2004) aponta alguns elementos como
caracteristicamente construídos nas relações coloniais e permanecendo encobertos na
ideologia da modernidade.
Dentre eles está a ―racialidade‖, que no caso da História do Brasil é evidente a sua
transmutação no tempo e a sobrevivência do discurso, de forma hipócrita e mascarada,
como justificação das relações de poder e hierarquias sociais. O eurocentrismo também é
evidente na contínua e ainda persistente busca de um ideal branco, estético. Este ideal é
chamado por Sovik (2004) de ―branquidade‖, que segundo a autora não se baseia na
genética, mas na estética, tendo no plano ideológico a brancura como estética social. Dessa
forma, enquanto conceito, a cor é analisada pelos teóricos da colonialidade como categoria
histórica, ideológica e cognitiva herdada da colonização. A democracia racial, para os pós-
colonialistas, é um mito e constitui uma hipocrisia que, junto a uma ideologia

97
assimilacionista, constrange com sua retórica os grupos que discordem do seu projeto
identitário.
A mestiçagem é, portanto, amplamente criticada por esses intelectuais enquanto
forma de construção da identidade nacional. Tanto os movimentos sociais negros quanto
alguns intelectuais enfatizam a construção da identidade plural racial como forma de luta
política. No entanto, a proposta de interculturalidade - como convivência de saberes, como
respeito e coexistência de forma igualitária da diversidade - choca com a história da
construção de uma identidade nacional assimilacionista e homogênea como no caso
brasileiro. Essas identidades plurais, que formam saberes, estão diluídas na idéia do
brasileiro mestiço e na busca, é claro, de um ideal branco. A busca de uma identidade
plural, intercultural, tão defendida pelos pós-coloniais esbarra como afirma Munanga
(2004, p. 140) na ―ambigüidade do mestiço‖, na sua total indefinição, na sua sensação de
não pertencimento que se multiplica quando os mesmos vêem ir por terra o que
acreditavam fazer parte de sua identidade, a saber, a democracia racial.
Ainda hoje, mesmo com teorias como a de Oracy Nogueira, com o preconceito
racial de marca já citado acima, e a contestação a essas idéias por outros estudiosos,
mesmo com as lutas e as conquistas do movimento negro e a admissão de governos da
necessidade de políticas públicas para o grupo estigmatizado, os estigmas continuam
norteando as representações, pensamentos e ações da sociedade e das instituições de
controle social. O regime de verdade, o qual engendra poderes nas relações raciais
construindo representações sociais presentes no senso comum dos indivíduos, pauta-se em
toda essa construção de saberes sobre os negros.
As relações reguladas nessa estrutura social histórica e os significados signatários
acionados circunstancialmente geram um sentimento de culpa, de rejeição ao seu próprio
corpo por parte de muitos negros. A exclusão e desigualdades sociais a eles imposta vão
produzir isolamentos sociais, falta de qualidade na vida cotidiana e um sentimento de
inadequação e falta de pertencimento nos projetos de construção da nação. Pereira (2004)
denomina essa forma de ver-se de ―identidade deteriorada‖. É a essa construção identitária,
e sua relação com a prevenção e a metonímia de expansão da violência, que me detenho
nas próximas páginas.

98
3.3 – Percepções à flor da pele: auto e alter caracterizações a partir da
cor da pele

Proponho finalizar este capítulo fazendo uma reflexão sobre o elemento final da
metonímia utilizada nos capítulos anteriores. Para tanto, retomo discussões do primeiro
capítulo e relaciono às noções de cor/raça como signo, empreendidas com mais ênfase
neste capítulo. Afirmei outrora que as ações que atendem sob a rubrica de preventivas são
produtoras de, dentre outras coisas, exclusões e evitamentos sociais. Um dos
desdobramentos dessa evitação é a formação de identidades e auto-percepções deterioradas
e pejorativas.
Uma ressalva deve ser feita: a de que em não se tratando de realidades estanques,
engessadas, e sim de situações dinâmicas construídas no âmbito das relações, essas auto
identificações não são imóveis e a postura dos sujeitos não é a de debilidade e total
aceitação do subjugo. Ao contrário, há resistências a esses mecanismos de poder e à
exclusão social imposta. Esse é um dos motivos, como dito na outra seção, porque os
conflitos emergem. É justamente na tentativa de gerar outros tipos de relação que não se
baseiem na estrutura racializada que elas emergem com mais violência e objetividade,
retirando suas máscaras. As falas seguintes retiradas das notícias de jornal sobre o caso
Januário vão nortear nossa discussão sobre resistência, mas, principalmente, sobre auto-
imagem e identidades.

“ele procurou a Afropress, junto com a mulher – a também funcionária do


Museu de Arte Contemporânea da USP, Maria dos Remédios do
Nascimento Santana, 41 anos - para falar sobre as cenas de terror e medo
que viveu.”

Em dois momentos, nessa situação, percebe-se a resistência por parte de Januário, a


saber, quando em seu cotidiano não aceita passivamente o lugar social identitário atribuído
a ele discursivamente como o de alguém que não pode comprar um carro que represente
posição social de elite, por exemplo. Ao sair da posição em que lhe é imposto ocupar, logo
sofre reações diversas e violentas, no entanto, Januário, ainda assim, procura organismos
de apoio a sua questão. Não se pode deixar de atribuir mérito individual e coletivo a essas
resitências. O mérito coletivo se dá após anos de resistência de grupos militantes negros;
de ações e reações tentando evidenciar e obter reconhecimento público da existência de
relação e ações racistas na sociedade e do ganho institucional e coletivo de políticas e
99
ações como a legislação criminalizando o racismo; o reconhecimento oficial do governo de
que o Brasil é um país racista; a implantação do sistema de cotas em muitas Universidades
Públicas etc. Apesar do ainda incipiente alcance desses ganhos coletivos, eles, por um
lado, estão disponibilizados socialmente para uso individual e, de outro, trouxeram
discussões sobre racismo que outrora não se davam nos mesmos termos, incomodando e
trazendo risco aos signos estruturais.
Após esse breve parêntese, necessário e importante, sobre resistência às estruturas
sociais, significados signatários, mecanismos de poder etc voltemos a auto-identificação
pela cor da pele. A fim de evitar a desordem e as impurezas advindas do contato social
(DOUGLAS, 1976) a cor da pele é instituída como uma marca da impureza tendo como
desdobramento a criminalização não só da cor, mas do ser que a carrega como significante.
Percepções à flor da pele – título da seção - têm um sentido duplo, a saber, o de auto-
percepções sentidas, vivenciadas e incorporadas a partir da experiência da pele e suas
relações, mas também a do caráter tenso e cotidiano dessas percepções sentidas e vividas
na maior parte do tempo no campo da hostilidade mascarada. Essa hostilidade mascarada
marca diferenças e desigualdades, mas de forma dúbia e fluida. A noção de democracia
racial e as ações preventivas vistas a partir da perspectiva adotada nesse texto, possuem um
caráter ambivalente, ambíguo podendo até mesmo ser atribuída a elas a noção de duplo
vínculo cunhada por Bateson (2000).
Baseada no caráter relacional, esse vínculo se constitui num padrão contraditório,
cotidianamente reafirmado, produzindo sujeitos esquizofrênicos e até mesmo promovendo
a destruição da auto-identificação. Informações diárias de que todos temos os mesmos
direitos e valor para a sociedade, ou que a prevenção é mais humanitária e evita confrontos
e violência, junto a também diárias comprovações sutis de que vocês, negros, não podem,
ou não têm direito a ocupar tal cargo, comprar tal carro, frequentar determinados locais, ou
ainda que vocês podem a qualquer momento ser considerado criminosos, expõem essas
pessoas e as leva a sofrerem na pele a confusão psíquica de um double binde batesoniano.
Correm o risco de terem afetadas profundamente sua auto-imagem. A auto imagem é
importante para definir identidade. A marginalidade traz a idéia de culpa, de vítima social
culpada e depreciação como forma de autoconstrução e auto-imagem.

“Toda vez que ele sai a Polícia vem atrás de mim. Esse carro é seu? Até no
serviço a Polícia já me abordaram. Meu Deus, é porque ele é preto que não
pode ter um carro EcoSport?”, se pergunta.

100
A exclusão solidifica identidades produzidas, por constituir o Outro pela evitação e
subjugo. A identidade do grupo hegemônico é construída a partir da rejeição do Outro, e
tal instituição se faz ao mesmo tempo em que se produz as identidades deterioradas. Em
outras palavras, a construção de uma identidade deteriorada ou hegemônica dá-se de forma
relacional, uma dependendo da outra para se solidificar, estabilizar. Esse processo se dá na
classificação e afastamento das partes impuras do corpo social, afastando o perigo, o que
implica excluir os indivíduos impuros, por colocar em risco o grupo hegemônico.
Segundo Douglas (1976), é preciso colocar limites, separar, castigar os sujeitos
impuros, pois estes provocam perigo pela possibilidade de desordem. Kristeva (1986)
afirma que é esse afastamento, exclusão que vai produzir o Outro, o distinto, o abjeto. O
processo de construção das identidades tem relação, portanto, nesse caso, com o
estabelecimento de limites sociais que podem ser visíveis, claros, mas também invisíveis,
silenciosos e disfarçados em discursos, como o da democracia social e racial, por exemplo.
Com isso, podemos afirmar que a construção das identidades se dá a partir da instituição de
diferenças, no ato de construir o Outro a partir da exclusão.

“Acho que pela dor, ele se deitou no chão. Estava muito machucado, isso
tudo na frente do meu filho”, conta Maria dos Remédios.

“estava roubando o EcoSport e puxando moto, né? Começou aí a sessão de


tortura, com cabeçadas, coronhadas e testadas", continuou”.

A diferenciação marcada entre o eu e o outro no processo de construção do Outro


distinto é tão delimitada que Januário nem sequer é ouvido, e mesmo fazendo parte da
mesma classe profissional, mencionando ser um ―igual‖, Januário é desacreditado,
dominado, excluído e desconsiderado do grupo ao qual se identifica, qual seja, o grupo de
seguranças. Em outras palavras, no processo de caracterização e identificação vários
significantes concorrem na caracterização e identificação dos sujeitos. Um não exclui o
outro, mas pode se sobressair. Neste caso, na caracterização da marginalidade, a cor, signo
estruturante, sobressai para além de caracterizar, identificar e gerar descrédito.

"Eu podia ver os pés de várias pessoas enquanto estava no chão. É a


segurança do Carrefour, alguém gritou. Eu falei: Graças a Deus, estou
salvo. Tô em casa, graças a Deus. Foi então que um pisou na minha cabeça,
e já foi me batendo com um soco. Eu dizia: houve um mal entendido. Eu
também sou segurança.

A chegada da viatura com três policiais fez cessar os espancamentos, porém,


não as humilhações. “Você tem cara de que tem pelo menos três passagens.

101
Pode falar. Não nega. Confessa que não tem problema”, comentou um dos
policiais militares, enquanto os seguranças desapareciam.

Concluo com a fala de Januário que resume o que ficou de sua experiência e o que
fica daqui pra frente a contribuir na composição de sua imagem do que é “ser negro” na
sociedade brasileira e com a afirmação de que o processo de se constituir não é unilateral e
sim relacional. Consiste de um processo contínuo, lento e doloroso de naturalização do
contágio, das hostilidades, da culpa etc.

“Eu estou com vários traumas. Se tem alguém atrás de mim, eu paro. Como
se estivesse sendo perseguido. Durante a noite toda a hora acordo com
pesadelo. Como é que não fazem com pessoas que fizeram alguma coisa.
Acho que eles matam a pessoa batendo

102
CONSIDERAÇÕES FINAIS

A prevenção aparece como forma ideal numa sociedade do controle que se utiliza
da tensão entre risco e comportamento livre e diverso. Positivado enquanto comportamento
ideal constitui em princípio organizativo, atuando no âmbito da saúde, segurança, meio-
ambiente etc. É anunciada e enunciada discursivamente aos quatro cantos por instituições
de controle e entremeada de categorias cosmológicas como o medo, antecipação, evitação.
O projeto textual deste trabalho dividiu-se em três capítulos. O primeiro, em que aponto
categorias que viriam a formar a teia metonímica de expansão da violência. No segundo,
faço a análise de três situações em que há um esforço coletivo de promoção da prevenção e
diminuição da violência. E por fim, o terceiro em que descrevo a situação em que Januário
é acusado de roubar o próprio carro num hipermercado.
A partir do arcabouço da linguagem, do discurso e do pó-colonialismo, defendo que
a prevenção ao contrário do que é enunciado nos discursos – falas, enunciados, instituições
e práticas sociais – não se caracteriza somente por reagir a possíveis situações de violência,
mas é produtora de exclusão social e auto/alter caracterizações. As auto-percepções em sua
dinamicidade e estratégias individuais acabam por ter, nesse jogo de relações onde o foco
ou o objetivo é o afastamento, características como a deterioração e o sentimento de
inadequação por parte daqueles evitados. O discurso preventivo é ambivalente e essa
ambivalência, como estratégia do poder, contribui no mascaramento da produção,
reprodução e reatualização da estrutura de que faz parte.
A cor vigiada remete às seleções feitas no âmbito das relações a partir do
significado atribuído a cor/raça negra enquanto signo, num jogo eterno de caracterizações
nas quais construções estruturais colaboram para a configuração das mesmas. O resultado
disso é em muitas situações e contextos os negros sendo vistos enquanto suspeitos, uma
vez que historicamente, estruturalmente e nas práticas cotidianas a cor/raça é um dos
elementos estruturantes da suspeita. Os negros, portanto, participam nas relações de poder
colonializadas brasileiras como sujeitos ameaçadores, desordeiros e contaminantes,
devendo ser controlados e vigiados enquanto tal. Os discursos expressos em enunciados e
práticas sociais fazem parte dos mecanismos de controle do poder. Uma das formas atuais
de controle é a partir da noção de risco e da prevenção como forma de aplacá-lo. O
discurso preventivo, portanto, é aqui considerado como mecanismo de controle e como tal,
reatualiza, sob nova forma e com base em categorias estruturais da colonialidade, as
relações de poder hegemônicas. A racialidade é aqui entendida de forma ampla enquanto
103
categoria estrutural de instituição da diferença (SEGATO, 2007). E é partindo dessas
considerações que localizo a sempre, e porque não, panóptica vigilância da figura dos
negros – pretos e todos os seus derivados, sejam eles fenotípicos, culturais ou sociais.
A metonímia de expansão da violência e da desigualdade social se caracteriza
pela contigüidade, na qual o medo exagerado do conflito generalizado contribui para que
indivíduos, sentindo-se inseguros, procurem meios de sanar essa sensação de risco
eminente e constante. Propagandeada por não gerar mais violência, já que seu propósito é o
de evitá-la, a prevenção é revestida de discursos midiáticos, publicitários e como é
patrocinada pela tecnologia capitalista é amplamente veiculada como algo que vai mudar o
mundo. Baseada em estudos científicos, saberes, como bem aponta Foucault, a prevenção
funciona como um mecanismo de controle dos corpos e de reatualização e permanência
das relações de poder vigentes.
Apesar de apresentada quase que como uma inovação epistemológica e
paradigmática ela apenas institui um novo formato discursivo de controle e vigilância dos
corpos. Um de seus alvos, o corpo, é controlado ao mesmo tempo em que é usado como
mecanismo de controle. Reunindo signos sociais que acionam, nas relações auto e alter
caracterizações, esses corpos possuem habilidades e adquirem novas, a partir da
aprendizagem e da tecnologia de auto-defesa. O corpo é, então, crucial no projeto
preventivo, tanto para o desenvolvimento de habilidades quanto no fato de tentar promover
uma aprendizagem de leitura signatária colocando em evidência determinados signos
estruturais que são utilizados pelos sujeitos para promover o evitamento.
Os signos da marginalidade são históricos, estruturais e contextualizáveis a
depender do processo histórico de construção da nação. São vários os signos, estereótipos,
estigmas que contribuem para a caracterização de um indivíduo enquanto suspeito e de
outro como vítima, bem como são várias as combinações possíveis entre eles a gerar
reações diversas. Gênero, idade, classe social, vestimentas, cor/raça etc. Dentre estes
signos alguns são estruturais, a saber, Gênero e raça/cor. Velada, mascarada e negada, a
categoria estrutural ―raça‖ vai embasando as elaborações de práticas preventivas,
constituindo nas relações o lado pejorativizado, sendo os sujeitos possuidores de suas
características marcados e constantemente alvos de violência.
Por fim, reconhecendo a complexidade da realidade a qual me propus a analisar, há
dois aspectos ao menos que gostaria de tratar e que ficaram de fora. Um deles seriam as
formas de resistência, ações que caracterizem a negação e a luta desses grupos

104
pejorativamente caracterizados. Reações que vão das organizações coletivas até as
ressignificações e estratégias individuais no intuito de se localizar e se posicionar
positivamente no mundo. Daí, acredito que analisar possibilidades de enfrentamento na
tentativa de quebrar, bagunçar ou confundir as significações estruturais naturalizadas seria
útil a sua relação com essa negação já existente e seria o segundo aspecto que gostaria de
me dedicar um pouco. Dito de outra forma, que ações estão indo e quais poderiam ir de
encontro a essa reatualização da estrutura racializada brasileira em suas diversas
dimensões, principalmente no âmbito da violência e segurança? São questões, penso, que
gostaria de abordar em um outro empreendimento analítico/ investigativo.

105
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