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AS DIVERSAS FACES DO HOMEM
GALENO PROCÓPIO M. ALVARENGA
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Publicações do Autor
Transtornos Mentais
Testes Psicológicos
Medicamentos
Galeria de Pinturas de Pacientes
Vídeos / Programas de TV com participação de Galeno Alvarenga
Cenas da fábrica/organismo
130 A Fábrica e a gordura abdominal de José
137 Antônio escapa do assalto
140 Altamiro não escapa do assalto
143 Alguns eventos na vida de Maria
148 Tranquilizando o leitor
150 Maria vai à cidade comprar um presente
R. Ruyer
Fui percebendo, a duras penas, que minha burrice não tinha cura e que eu,
junto com amigos, colegas e familiares, desde o grupo escolar, curso ginasial
e científico, formávamos um batalhão de ignorantes sobre quase tudo
existente. Ninguém sabia nada! Ninguém conhecia ninguém! Ninguém sabia
pensar com profundidade! Todos nós éramos superficiais em tudo!
Ainda no curso, um pouco adiante, assisti belas aulas, li livros mais profundos,
fui além das idéias socráticas, platônicas e aristotélicas. Comecei a ler os
filósofos tidos como geniais e mais modernos: Descartes, Pascal, Kant, Bacon,
Hegel, Schopenhauer, Nietzsche, David Hume, Heidegger e diversos outros.
Mas, em lugar de me acalmar, fui ficando cada vez mais desesperado. Via que
a estrutura do meu edifício mental estava prestes a desabar; tive um terrível
e doloroso “insight”: estava na hora de parar de procurar a saída para minha
burrice e dos outros.
A triste constatação
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Cada vez mais claramente, dolorosamente, notava que o objetivo
fundamental de meus estudos, compreender e conviver bem com minha
idiotice, meu sonho e razão de todos os meus estudos, de meus esforços,
leituras e cursos, foram em vão, pois não consegui ter uma compreensão
melhor de mim mesmo, mas descobri que os outros seres humanos se
assemelhavam ao que eu era. Nem os grandes filósofos foram o que se dizia.
Todos eles, os tidos como “gênios”, falhavam frequentemente nas questões
específicas. Esses senhores da sabedoria dominavam com arte e facilmente
o geral: “o homem é”; “a natureza é”; “as crianças são” etc. Entretanto,
fui observando que falhavam e se enrascavam quando trabalhavam com o
particular: José da Silva, casado, pai de três filhos, morador da favela do Mato
Dentro etc. Nesses casos ninguém acerta. Aplicamos o geral neste infeliz e
isolado indivíduo; nada parece com ele; o tornamos um espectro.
As tolices na juventude
As burradas continuam: o jovem estuda mal as matérias do curso e, o pouco
que sabe, na hora da verdade, sente um “branco” na mente e nada faz;
escolhe mal o médico para tratá-lo e mal o dentista, que acaba lhe tirando
o dinheiro e um, dois ou mais preciosos dentes. Para piorar, contrata um
serviço com o bombeiro, carpinteiro, pedreiro, que só recebe o dinheiro
inicial e desaparece.
As burradas da velhice
Vamos continuar com as bobices de todos nós. Mais tarde, já mais velho,
o indivíduo se aposenta mal, sem recursos, também não cuidou do corpo,
bebeu e fumou demais e não pensou no fígado ou no estômago; tem os
músculos fracos por falta de exercícios e um pulmão cheio de fumaça e
carvão que não aguenta subir a escada de onde mora. Diante disso, não lhe
resta outra alternativa senão ficar assentado aprisionado num sofá furado e
sujo, o dia todo, diante da TV assistindo como fazer macarrão ou transar com
uma mulher que jamais o escolherá.
Continuando a morar com sua cara-metade, briga o dia todo, por qualquer
motivo: a comida sem sal, a conversa dela que nada sabe de futebol e sua
fala continuada no telefone, os gastos desnecessários, a água gasta demais na
descarga da privada, os banhos demorados, o dentifrício apertado no meio,
a tosse irritante, os casos contados chatos e demorados, cheios de detalhes
e pior, todos eles há muito conhecidos, ouvidos dezenas de vezes; tudo irrita
cada dia mais um e outro, que dá o troco.
Aos poucos, entretanto, ao deixar de lado meus sonhos, fui percebendo que
eu me julgava um idiota porque aprendi (inventaram e injetaram um mito)
em minha mente que o homem era um animal inteligente e racional. Esta foi
a grande descoberta: a afirmação estava errada.
Uma coisa é o símbolo (som, palavra), a outra a coisa (filé, camisa). Eu fui
dominado pelos símbolos escutados acerca do que era o homem inteligente;
compramos, burramente, muitas coisas desnecessárias, devido aos símbolos
a eles ligados.
Com lágrimas nos olhos conclui que a burrice percebida dos tempos de
criança, que achava que fosse um privilégio meu, é inerente à natureza
humana; é um dos seus atributos mais visíveis e escancarados, e, por isso
mesmo, torna-se difícil de ser vista. Concluindo: a idéia do homem racional e
inteligente é falsa; não há muito que fazer diante da nossa característica.
A única coisa que podemos fazer, e isso eu tenho tido grande experiência,
é saber que somos assim e assim permaneceremos, pois esse atributo
desprezado é transmitido pelo genoma de nossa espécie e, também, pelos
diversos ensinamentos culturais esquisitos.
Não temos como fugir dessa marca natural, pois essa é nossa herança
compartilhada com outros animais; somos farinha do mesmo saco. Somos
descendentes de bactérias, algas, insetos (a formiga intrusa, o chato
pernilongo, a barata asquerosa), de aracnídeos (os escorpiões agressivos),
de vermes nojentos (tênias e lombrigas), de anfíbios (sapos e salamandras),
de répteis (cascavéis, corais), aves (coruja, gavião) e, por fim, de mamíferos
(onça, veado, macaco).
Adorno/Horkheimer
Aldous Huxley
Antônio Machado
Bernays
Claude Bernard
David Riesman
Dostoievski
“Quem possui uma Ideologia é também possuído por ela. Como os deuses, as
ideologias não são unicamente dependentes e instrumentais, mas também
possessivas e exigentes”.
Edgar Morin
Edgar Morin
“Não se dê ao homem, por Deus, mais poder antes que ele tenha aprendido a
usar melhor o pouco que tem”.
Emerson
“E Deus viu que era grande a malícia dos homens sobre a terra, e que todos
os pensamentos de seu coração estavam sempre voltados para o mal. Pesou
então ao Senhor de ter criado o homem na Terra, e seu coração amargurou-
se. E o Senhor disse: destruirei da face da terra o homem que criei; tanto o
homem, quanto os animais, e os répteis e as aves do céu, pois, me pesa tê-los
criado”.
Gênesis
“Os novos mitos fizeram seus ninhos no próprio coração das idéias abstratas;
as estruturas arcaicas do mito apropriaram-se das estruturas evoluídas das
idéias”.
Georges Bataille
Gödel
Hubert Reeves
Isaiah Berlin
Jacques Maritain
John Donne
Joussenet
Kant
Karl Popper
“Os conceitos, como os indivíduos, têm suas histórias, e são tão incapazes de
resistir – se opor – a devastação do tempo como são os indivíduos”.
Sören Kierkegaard
“Se não há maneira alguma de julgar uma teoria a não ser avaliando o
número, a fé, e a energia vocal de seus participantes, então a verdade se
encontra no poder, a mudança científica transforma-se numa questão de
psicologia das multidões e o progresso científico é, em sua essência, um efeito
da adesão dos vitoriosos; é uma espécie de conversão religiosa”.
Kuhn
“A primeira lei de todo ser é conservar-se e viver. Semeais cicuta e queres que
amadureçam espigas?”
Maquiavel
Marx e Engels
Neil Postman
Nietzsche
Oscar Wilde
Padre Malagrida
Pascal
Paul Feyerabend
Paul Valery
Sam Shepard
“É tão mortal para o espírito ter um sistema como não ter nenhum. Portanto,
este terá de resolver-se a reunir os dois”.
F. Schlege
“O homem só pode ser ele próprio quando está sozinho; se não gosta da
solidão não gosta da liberdade”.
Schopenhauer
Sebastien Chanfort
Solon
“Nós vemos os outros não como eles são, mas como nós somos”.
Talmud
Voltaire
Xenófanes
Wilhelm Stekel
Whitehead
Whitehead
Gênesis 2:25
Muitos jovens, outros nem tão jovens, anseiam ter a vida contada na Bíblia,
enxertada pelas idéias de seus deusinhos (dois modelos- paradigmas-:
paraíso e da fama e diversão). Esses moços ambicionam no futuro, nada mais,
nada menos, que o retorno ao mundo “bom, ordenado e belo”, imaginado,
sonhado e descrito pelo mito do paraíso.
Esses loucos utópicos – lembro ao leitor que todos nós já vivemos essa
loucura durante nossa juventude – expressam de vários modos, conforme
a época e a cultura, sua atração pelo paraíso: o uso de roupas grosseiras,
desbotadas e rasgadas de fábrica, se possível, de marca; nudez diante dos
outros, principalmente de uma câmera de TV ou de uma máquina fotográfica;
exibição de coxas ou de seios entre as mulheres para mostrar o proibido
pelas regras dos ordeiros e conformados. Mas a grande revolução contra o
estabelecido não fica só nisso, outras estratégias inteligentes são usadas:
badernas, gritos, urros e destruição durante jogos, formaturas, shows,
missas, sermões e posse de presidente da república; colônias de nudistas
para homenagear e defender o “naturalismo” numa praia ornamentada pela
cultura de massa; ato sexual nos teatros, filmes e praças, para combater o
Os outros seres humanos, surdos aos berros dos jovens, observam, afastados
e incrédulos, o extraordinário entusiasmo enxertado à simplicidade hilariante.
Para os jovens, lá, muito longe, no alto, bem acima de nossas cabeças de
homens e da montanha, no céu azulado e estrelado, anjos decentemente
enfeitados da nudez divina e primitiva, de mãos dadas, cantam e bailam
alegremente, girando em volta do compenetrado, honrado e sempre vigilante
Deus.
Ninguém sabe com clareza o que se pretende, a favor de quê e contra quê
se luta. Todos sabem que há um protesto contra alguma coisa; rebelam-se,
talvez, contra eles mesmos, pelas prerrogativas que uns poucos têm sobre a
maioria, pelo poder que detém, pela arrogância de um lado e a humildade do
outro. Reclama-se contra o atual em todas as áreas. Tudo está errado! Exige-
se um futuro melhor.
Entretanto, o que é este futuro melhor? Nenhum deles sabe, nem nós, os
mais velhos. Tudo é vago, distante demais, impossível de ser até mesmo
imaginado, representado e muito menos verbalizado; a única coisa que
eles sabem fazer. Ninguém consegue definir o que se quer, nem mesmo os
líderes dos movimentos. Quase sempre a maioria deles fez – ou faz – parte
e defendeu, com o mesmo vigor, o “outro lado”, o lado do “estabelecido”; o
agora “combatido” com veemência.
Talvez o sonho máximo desse grupo seja viajar para o paraíso; caso o
combustível não desse, pelo menos até Marte, no novo ônibus espacial a
ser construído; talvez, quem sabe, na nave dos Ets. Para fazer essa viagem
fantástica, “numa boa”, “de repente”, “com certeza”, “né” e junto com toda a
patota, todos vestiriam um uniforme superchique (como o brasileiro que deu
um passeio na nave) e moderninho.
A cada dia mais o homem se afasta dele próprio se examinado como ser
natural; viemos do pó e a ele voltaremos. Nós, como a água e as rochas, bem
como as bactérias, vírus, cobras, lagartos e elefantes, nascemos a partir da
explosão inicial (bigue-bangue em português ou “big bang” em inglês ). Um
fenômeno que ninguém se aventura a dizer o que havia antes dele. Seria
o nada? Somos compostos por alguns poucos minerais (carbono, oxigênio,
hidrogênio, cálcio, potássio, nitrogênio, cloro etc.). Observado como seres
biológicos, o homem é semelhante, portanto, aos outros animais e mesmo
aos vegetais e minerais.
Nas escolas o currículo continua a ser o das ciências Física, Biologia, Química
e a língua materna. Não se estuda o homem e suas emoções, cognições e
tomadas de decisões. A cada dia mais são descobertas técnicas sofisticadas
para diversos campos do conhecimento do mundo exterior, entretanto, só
recentemente, há aproximadamente vinte anos, houve um desenvolvimento
de técnicas mais capazes de compreender como o homem pensa, sente e
resolve seus problemas.
Para a ciência não há verdade alguma que dure uma eternidade. Apesar
dessa afirmativa, muitos modelos do mundo, provadamente inadequados,
construídos há centenas de anos, e inicialmente plantados em nossa mente,
continuam a ser ensinados pelos pais aos filhos ou até mesmo nas escolas aos
alunos, como dogmas que obrigatoriamente devem ser usados.
Algumas das crenças narradas pelos mitos são imaginadas como provenientes
de divindades, entretanto, não devemos nos esquecer que as próprias
divindades, os diversos deuses se desenvolveram, de um ou outro modo,
(eles não são descritos da mesma forma), e são alimentados pelas
construções humanas. Entretanto os relatos dos mitos são ensinados às
crianças como fatos “do além”, nascidos do nada, o que é impensável de
acordo com a idéia de “causa” científica.
Para este pequeno grupo que aprendeu a criticar, é evidente que só podemos
pensar com nossa mente e não com outra cabeça, com nossa limitação de
um organismo construído de certa forma e não de outra. Na verdade, todas
as idéias do universo foram construídas e descritas por mentes humanas,
contadas na nossa linguagem de homem e não na linguagem da barata, do
besouro ou do hipopótamo, como não poderia ser diferente.
O ser humano, há cerca de 50.000 anos, adquiriu a linguagem que antes não
possuíamos, pois emitíamos grunhidos e gestos para nos comunicar uns com
os outros. Através da fala passamos a categorizar, primeiramente, os nomes
das coisas (fruta, bicho). Depois aprendemos a ligar uma coisa conhecida com
alguma ação (fruta boa; bicho perigoso). Aos poucos fomos construímos um
O alimento básico por trás das ideologias políticas e religiosas – dois grandes
poderes que dirigem nossa vida – nada mais é que um bálsamo, um sonho,
uma esperança, um alívio passageiro para o temor constante que inunda
nossas cabeças inseguras; uma doença impossível de ser exterminada.
Para aliviar nossa angústia crônica os “charlatães” (os que falam muito para
enganar os incautos) usam conceitos incrustados de aspectos emocionais e
mágicos, impossíveis de serem bem definidos, como, por exemplo: liberdade,
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igualdade, amor, justiça, democracia, razão, perdão, família, tolerância,
homem, capitalismo, socialismo e diversos outros. Todos esses conceitos,
bem como outros, escondem intenções que não podem ser explicitadas
(reveladas) acerca do poder de alguém sobre outro “alguém” mais fraco e
inocente. Muitos lutam, brigam ou morrem em defesa da suposição/idéia
divulgada.
Ora, nada mais perigoso que se utilizar de mitos para se adaptar à realidade
vivida, acreditar mais nos mapas construídos pelas palavras que no território
pisado e observado. Não somos nada de extraordinário: apenas um corpo
biológico enxertado com idéias em grande parte equivocadas acerca de nós
mesmos e do mundo que nos cerca.
Nesse cipoal de idéias malucas fica muito difícil separar o joio do trigo, o
real do irreal. Eu, talvez como vocês, me perdi nessa imensa desordem de
explicações e explicações disso e daquilo, que faz uso, em abundância, de
símbolos inventados sem lastro para suportá-los.
Um esclarecimento ao leitor
Espero que o leitor aceite naturalmente, sem se desesperar, esse comando
“inferior” ou irracional (o que não pensa, nem raciocina) como fazendo parte
dele. Só assim, compreendendo melhor o ser humano, vocês sofrerão menos
e ficarão menos frustrados diante das inúmeras besteiras que já fizeram e
farão no futuro próximo e ou distante. Por tudo isso, não se espante com
certas condutas suas, geralmente descritas, após a sua realização, mais ou
menos assim:
— Não sei como pude agir desse modo. Como fui bobo! Parece até que não
era eu quem estava agindo.
Por outro lado, cada pessoa, além de sua prática intuitiva, recebe outros
aprendizados, os denominados formais e ou teóricos. Esse segundo
aprendizado auxiliar pode ser muito útil, mas, também, perigoso. A teoria
atua como um instrumento mais geral e abstrato, “lentes” especiais para
prever ações futuras e alargar o campo das observações.
Por exemplo: várias teorias psicológicas (há milhares delas, repito: milhares)
são idéias vagas e amplas acerca do comportamento humano defendidas com
muito ardor por seus admiradores, às vezes, fanáticos. Mas essas teorias, sem
base sensorial, jamais poderão ser refutadas ou comprovadas empiricamente,
isto é, por observações sistematizadas e científicas. Uma grande parte das
chamadas “teorias”, ou “conhecimento teórico”, cai num grupo de questões
que chamamos de filosóficas (metafísica). As teorias ditas não-científicas
não apresentam estruturas possíveis de serem refutadas ou comprovadas.
Portanto, cuidado com as teorias: muitas não têm nada a ver com a realidade
que você deseja compreender.
Cenas como essa, às vezes mais graves, outras vezes menos, são lidas ou
ouvidas nos noticiários. Com frequência, espantados, assistimos adultos e
crianças, homens e mulheres-bombas que obedecem cegamente a princípios
aprendidos. Segundo seu aprendizado eles morrem por Alá, Maomé, Cristo
ou outros Deuses. Em São Paulo, muitos homens matam e morrem em
defesa dos seus “Deuses” (Marcola, Beira-Mar e outros) orientadores da
conduta dos filiados ao PCC etc. Outros matam e morrem por amor; outros
por dinheiro; alguns são mais corajosos ao praticar esportes radicais, usar
drogas mais eficientes para ficar mais “alto” etc. Fica a pergunta: Quais idéias
(princípios) subjacentes determinaram esses estranhos comportamentos?
Como identificá-los?
Espero que o leitor flexível (com algum espaço livre no cérebro para assentar
outros princípios) possa apreciar outros modos, diferentes de seus atuais, de
pensar e avaliar que caminho deve tomar com respeito à administração de
sua vida.
Este livro tenta não repetir o que você já conhecia. Acredito que certas idéias
poderão surpreendê-lo. Antecipadamente peço desculpas pelo possível
susto. Não é meu propósito defender nenhuma idéia para que você a siga.
O objetivo é muito mais crítico que prescritivo (faça isso; não faça aquilo).
Visa sua capacidade de pensar melhor, criticar seus próprios pensamentos
conforme seus valores e respeitar o direito de seu companheiro pensar
diferente. Defenda seu modo peculiar de viver, pois você é um indivíduo com
singularidades (genoma e cultura) diferentes de todos os outros. Portanto,
deve pensar um pouco diferente. Aprenda a cuidar de sua cabeça; ela é a
única que você conhece mais ou menos.
Isso é tudo que desejo para você, pois é o que busco fazer para ajudar a mim
mesmo. Boa sorte!
Repórter da TV: A Câmara Municipal de São Paulo está propondo o fim da “lei
da gravidade” para a Cidade de São Paulo. O que você acha disso?
— É…concordo… Penso que a lei deveria ser estendida para todas as cidades
do Brasil.
— Contra… Acho que, uma vez transferidos, eles serão mortos pelos
caçadores.
Repórter da TV: O Coríntias está contratando Einstein para ser seu novo
goleador. Você apóia essa contratação?
Os amigos têm razão, pois Samuel é incapaz de fazer o que todos fazem
O papo não falta onde ela trabalha. Suas frequentadoras são, em sua maioria,
mulheres cultas e jovens dinâmicas de trinta a quarenta anos. Nas conversas,
enquanto trata os belos cabelos de suas clientes, Rose aprende muito com as
inteligentes e experimentadas damas acerca do mundo complicado em que
vive. Assim, cada dia mais, Rose fica sabendo tudo acerca da vida íntima da
maioria dos artistas de novelas, de seus principais papéis, quem é gay, qual
é o novo amor de X ou de Y, quem está morando com quem e há quanto
tempo. Sabe dos cachês, das fofocas dos artistas, de suas brigas e traições.
Rose adora Michael Jackson e pronuncia, orgulhosamente, seu nome, num
inglês bonito. Fala “de boca cheia” que “son” significa filho e, portanto, ele “é
filho de Jack”. Comenta, entusiasmada, a agitada vida de Madonna e de Xuxa.
Em tempos de recessão, o salão muitas vezes fica vazio. Esta folga tem sido
providencial para Rose aumentar sua cultura. Com a falta de clientes ela pode
devorar as revistas existentes. Cada notícia é lida com rapidez e emoção.
Dependendo do que lê ela respira feliz ou chora copiosamente, às vezes,
de modo incontrolável. Durante a morte e enterro de Ayrton Senna e dos
“Mamonas Assassinas” Rose chorou durante dias.
Lendo a maioria das revistas e tendo uma memória prodigiosa para fatos
simples, Rose armazenou uma multidão de acontecimentos acerca dos
seus ídolos. Ela é desinibida, popular e amiga de todos, e tem talvez mais
informações que seu amigo Samuel. Enquanto ela é capaz de conversar
acerca de tudo que a revista publica após uma só leitura, Samuel, mais
burrinho, às vezes, tem, como ele mesmo confessa, que ler e reler o mesmo
livro, várias vezes, para guardar algumas de suas idéias. Samuel, diferente
Portanto, e para resumir, Rose sabe mais que todos acerca de penteados,
xampus, artistas etc; Horácio conhece carros, política e esportes e Dina é
perita em hotéis e restaurantes. E Samuel? Este tem informações gerais
acerca de história, filosofia e ciências. Fica a pergunta para o esclarecido
leitor: quem é mais ignorante e quem é mais sábio?
Por isso tudo parece que Samuel tem conhecimentos mais adaptados que
seus amigos, (um cérebro mais funcional para enfrentar os problemas mais
variados), capacitando-o a entender melhor o mundo onde vive, mas, por
outro lado, encontra-se desadaptado no seu grupo, talvez na sua cultura. As
informações de Samuel são duradouras, adquiridas vagarosamente e com
grande esforço. Cada estudo de Samuel poderá ser integrado ou interligado a
outros, acumulando, progressivamente, uma sabedoria. Seus conhecimentos
formam um todo que, a cada dia, torna-se mais compreensível e, ao mesmo
tempo, mais complexo. Seu conhecimento geral permite-lhe uma ordenação
lógica e uma estruturação do seu conhecido.
Aprender é se tornar perito numa área, mas a moda muda a toda hora, como
sabem os estilistas. A formação de Samuel não fica obsoleta como a de Rose,
a nova canção, o novo livro de P. que Rose adora, ou o boato acerca de L. que
ela acha muito útil.
Rose está pronta para explodir de tanta informação. Mas estas estão
desconectadas, desarrumadas. Samuel, por outro lado, se imunizou contra
diversas informações que possivelmente nada dizem acerca do que ele
deseja. Ele evita ler os anúncios diários, as promoções de vendas do Natal,
do dia dos pais e do dia dos namorados. Mas Samuel se sente só no grupo,
incompreendido, quase não consegue conversar com ninguém. Leva uma
vida, talvez, até infeliz.
Para que mais serve o conhecimento de Rose, Horácio e de Dina além de lhes
permitir conversar um com o outro, o que talvez todos já sabem. Para que
serve também saber de cor o discurso de Cícero nas Catilinárias: “Quousque
tandem Catilinia abutere patientia nostrae…” ou a teoria dos conjuntos na
mente do menino “gênio”, de 7 anos?
Todos vocês sabem que uma enorme parte da língua falada e escrita é
redundante, daí a dificuldade de se fazer revisões de textos. Quando olhamos
para uma palavra, rapidamente passamos a outra, pois ela é velha conhecida
do nosso cérebro. Por isso, nosso cérebro não toma conhecimento da palavra
escrita de forma errada, por ela estar “escrita” certa nele.
Tudo o que conhecemos sobre o mundo fora de nossa cabeça nos atinge
através de estímulos causados por ondas sonoras, luzes, pressões etc. que
são captadas por meio de células nervosas. É desse modo que captamos as
sensações de um sorriso, de um lamento, uma melodia, ou, também, a falta
de ar, uma dor de barriga, uma animação, a fome e a sede.
Para indicar melhor a separação entre as castas, certas cerimônias são usadas
pelos diferentes grupos; alguns realizam reuniões ou festividades semanais ou
mensais, fazendo uso de roupas especiais, onde apenas entram os “irmãos”;
outros grupos têm sua própria imprensa, jornais e revistas especializadas,
sua linguagem e jargões como a Associação Médica, a dos Engenheiros, do
Banco do Brasil, dos Gays, das Mulheres Nuas, da Agricultura etc. Além disso,
excursões e passeios são organizados e adaptados para as pessoas de um e
outro grupo; até as praias do país têm sido divididas conforme as classes:
média, rica, dos artistas e dos farofeiros.
O resultado prático disso é que os incultos falham mais nas previsões dos
acontecimentos. A “lógica” dos incultos, afastada das regras tradicionais,
extrai conclusões esdrúxulas e liga informações que jamais estiveram
associadas, como disse minha faxineira: “Maria é esperta porque nasceu em
São Paulo”.
Não há projeto para diminuir essa divisão, e tudo indica que, com o passar do
tempo, o espaço entre os dois modos de pensar tende a aumentar. O prejuízo
é imenso para todos. Os fatores econômico e término de curso “superior”
não são os únicos responsáveis pela diferença; existem pessoas ricas, outras
formadas no terceiro grau, que estão culturalmente segregadas, fazendo
parte do imenso grupo dos analfabetos ou semi-analfabetos.
Sócrates não se emenda, pois, por mais que ele transgrida as leis da natureza
e da sociedade, não modifica seu modo de pensar e agir, isto é, não aprende
com a experiência vivida: mantém as mesmas explicações de seus pais, avós,
bisavós…
Eu, que já conheço essas reações, o perdôo. Mas é comum, mesmo eu sendo
um grande amigo dele, brigar até comigo quando se transforma em animal
irracional. Depois, mais tarde, arrependido, ele retorna com a sua outra
mente e eu o aceito como sempre.
Não acreditam? Pois vejamos: ora é uma mosca que vem pousar no nosso
nariz; ora um cão que nos observa, mostrando seus belos e pontiagudos
dentes, prontos para atacar-nos. Mas não fica só nisso, pois, em seguida,
recebemos o convite de formatura que exige nossa presença na turma, o
telefone toca e nos obriga a correr; no interfone ouvimos a mesma frase do
vendedor de gás; chega a conta do colégio para pagar, aproxima-se o Natal
e temos que pensar nos presentes para dar; todos os meses lembramos das
festas, passeios, aniversários dos parentes e amigos. Além disso, o forno
que não mais esquenta meu sanduíche, e, também, a torneira que não pára
de pingar. Mas tem também a chuva, a enchente, o terremoto lá longe, o
trombadinha bem perto. Na rua, o carro disparado, pronto para matar-nos,
obriga-nos a correr desajeitados e envergonhados pela submissão e medo;
o trânsito que não flui, a rua esburacada e sem saída. O time perdendo, o
assaltante roubando nosso sossego, às vezes, nosso sonho de tranquilidade,
o frio nos obrigando a usar o agasalho feio e fedendo a mofo, o calor nos
fazendo suar e dormir mal, o horrível café frio, fraco, fedorento e com formiga
no fundo.
Durante a juventude “Foi um sonho que findou”, como diz a letra do poeta.
Alguns percebem, bem mais tarde, que a liberdade é uma balela, um conceito
belo, como algumas pessoas, sem conteúdo. Imaginam, sem melhor idéia,
que a inexistente liberdade foi construída pelo poder cultural para amenizar
nossa infelicidade; foi fabricada, como várias outras ilusões que foram
gravadas em nossos cérebros indigentes, melosos, para nos amparar e nos
proteger nesse mundo confuso.
Estamos enganados e enganando. Não somos nem tão poderosos, nem tão
inteligentes como se tem apregoado; somos mais pra burros-autômatos que
gênios-livres. Nós – não escapa um – somos portadores de um grave delírio
de grandeza, mas como todos têm a mesma doença, não há nenhum homem
capaz de providenciar o tratamento da população; além disso, gastaríamos
demasiados.
O homem afirma sua importância na Terra e até fora dela, bem como a de
seus deuses particulares, que, lamentavelmente, estão sempre brigando
entre si. Qual importância teria o homem? Não sabemos, ou não queremos
conhecer. Também não investigamos e, muito menos, discutimos o poder ou
a importância dos reis ou dos deuses dos leões, das raposas, dos maribondos,
das pulgas e percevejos. Onde se encontram os deuses (ou reis) dos cupins?
Uma cliente que atendi não dormia, não mais conseguia trabalhar, após
a morte trágica de sua deusa. Um pôster da deusa foi colado na porta da
geladeira como recordação; um outro paciente ameaçou se suicidar após
ouvir rumores afirmando que seu deus estaria contaminado com o HIV.
O que leva uma pessoa a abandonar suas próprias metas, valores, paixões,
alegrias e tristezas para seguir o caminho ditado pelo seu ídolo, passando a
orientar-se e dedicar-se a ele?
A miopia do Homem
Nós, pobres seres humanos, enxergamos e vivemos numa pequena parte
do mundo. Sem perceber o “grande e vasto mundo”, construímos nossos
raciocínios sobre o universo a partir dessa pequena amostra com a qual
temos acesso; o restante ignora. Dentro de nossa miopia, damos uma grande
importância aos fatos que percebemos ou imaginamos perceber e nenhuma,
como não podia ser diferente, aos não notados e não supostos.
O ingênuo cidadão, orientado por este minúsculo mapa, toma suas decisões
de forma extremamente limitada, pois não poderá fazer escolhas com base
num conhecimento que não possui. Ele, na melhor das hipóteses, só poderá
considerar alguns poucos aspectos específicos, relativamente independentes,
existentes nas áreas conhecidas ou possíveis de se conhecer que ele imagina
ser importante. Assim, por exemplo, ao comprar um aparelho de televisão
(escolheu comprar esta em lugar de usar o dinheiro de outra forma) a pessoa
pouco ou nada perceberá dos efeitos dessa compra sobre outros aspetos
de sua vida, a sua possível relação com outros tipos de problemas trazidos
pela compra realizada. Assim, é pouco provável que ele tenha se lembrado
do móvel para colocar o aparelho; o seu peso para levá-lo ao conserto caso
necessite; o custo que terá caso estrague; como são suas garantias etc. Estes
atos da vida do comprador – os distantes – possivelmente serão efetuados
pela mesma pessoa que fez a compra, entretanto, esta poderá não imaginar
que condutas de sua vida serão alteradas a partir de se ter uma televisão em
casa, entre essas, ele irá sair menos de casa ao ficar vendo TV; irá ler menos;
deixará para depois a viagem pretendida, pois fez gastos agora; haverá brigas
familiares para disputar os programas a serem assistidos etc.
A maioria imagina que o controle vem apenas de fora. Esses supõem que os
amigos e parentes, ou mesmo os políticos, deviam ajudá-los a conseguir o
que eles não alcançaram e, muitas vezes, nem tentaram obter.
Sabe-se que algumas mudanças jamais podem ser realizadas, outras podem,
e, entre estas, muitas dependem de nossa ação. Entretanto, nem sempre
temos energia e vontade para lutarmos por essas alterações, assim, posso
pretender ser médico, mas não quero gastar meu tempo estudando. Em
alguns casos pode existir o desejo e a energia, mas pode faltar a competência
necessária: gostaria de ser corredor, mas tenho o pé torto. Por fim, posso
ser competente, ter vontade e energia, mas tenho uma auto-estima e auto-
eficácia baixa, isso resulta numa autopercepção ou autocompreensão de si
mesmo como incapaz, isto é, não acreditando na habilidade. Desse modo
tudo dificulta “chegar lá”.
Eles, sendo diferentes – sexo, idade etc. – entram em conflito com frequência.
Se Alberto é homem e tem 30 anos, sua maneira de pensar e se expressar
será forçosamente diferente de Aspásia que é mulher e tem 21 anos. Um
homem, por ser do sexo masculino, como todo animal macho, age de modo
diferente das fêmeas em função de terem organismos biológicos desiguais.
Além disso, por ser do sexo masculino, Alberto receberá educação ou
instruções diferentes das recebidas por Aspásia que é mulher. Em resumo: os
dois têm organismos, treinamentos e aprendizagens diferentes. Mas também,
como um é mais velho nove anos do que o outro, Alberto viveu mais tempo,
possivelmente fez mais cursos e aprendeu mais devido aos nove anos a mais.
Mas ainda não é tudo: se Alberto é homem, foi educado como homem e
viveu nove anos a mais que Aspásia, ele assimilou idéias diferentes do mundo
e usa palavras diferentes dela. Mas como Alberto é formado em Direito,
tem oito irmãos, nasceu na Cidade de São Paulo, gosta de futebol etc., tais
fatos fatalmente contribuirão para que Alberto fale de modo diferente, aja,
pense, faça suposições, alegre-se ou irrite-se e raciocine de modo diverso do
de Aspásia. Em resumo: ele viveu e vive num ninho ou ambiente geográfico/
histórico diferente de Aspásia.
Cada grupo tem suas peculiaridades, seus jargões, seus modos diferentes
de vida e sua maneira de enxergar o mundo. Essas concepções da realidade
podem ser mais autoritárias ou mais democráticas, mais orientadas pelo
grupo ou pelo indivíduo particular produzindo divergências e conflitos, mas
podem também fazer nascer novos modos de pensar e de agir na realidade.
Na maior parte dos casos este lavrador imaginado não saberá examinar uma
das línguas que usa e o mundo que ela descreve através dos olhos da outra.
O lavrador provavelmente não examinará e interpretará, usando a língua da
oração ou da canção, a língua usada no seu dia-a-dia, bem como o mundo
descrito por essa linguagem.
Não será fácil para a mente do lavrador ter consciência das diferentes línguas
usadas por ele; perceber estas línguas não como sendo diferentes, mas,
também, originárias de ninhos ou ambientes diversos, encarcerando sistemas
ideológicos e abordagens do mundo desiguais como o mundo de Alberto e de
Aspásia.
Seguindo o mesmo raciocínio, podemos supor que uma pessoa branca tende
a criticar uma negra; o jovem tende a criticar o velho; se for criada em São
Paulo capital ela criticará o morador do interior; a mulher critica o modo do
homem e este o da mulher; o iletrado acha o intelectual fora da realidade;
o roqueiro critica o amante do samba-canção; o heterossexual critica o
homossexual; o criminoso acha absurda a vida do jovem bem comportado;
o bonito critica o feio, o forte, o fraco; a loura acha feia a morena; o norte-
americano debocha do brasileiro; o muçulmano, do cristão; Bush não tolerava
Saddam Hussein, que, por sua vez, não tolerava Bush. “Assim caminha a
humanidade”; cada um criticando o outro, achando que ele, o falante, é o
certo.
Mas essas avaliações e críticas que uma pessoa faz à outra apresentam,
subjacente, mais informações que aparentam. Aprofundando, descobriremos
que cada crítica feita mostrará a maneira de pensar do crítico, suas
suposições e os princípios nos quais ele construiu seus raciocínios. De
A prova, às vezes, significa ver, ouvir, sentir algo; isso tem sido chamado
de observação. Se acontece um roubo, ninguém pode não saber quem é o
ladrão, mas os policiais podem ajuntar diversas observações para apontar
o suspeito. Os médicos muitas vezes agem assim; dão um palpite e vão em
busca de provas, exemplo: dores de cabeça forte, febre, endurecimento do
pescoço etc. Seria meningite? Portanto, as provas nos fornecem boas razões
para crer que X foi o ladrão e a doença de Y é meningite. Entretanto, talvez
infelizmente, há outras razões para crer as afirmações aceitas como tradição,
autoridade e revelação.
Acontece que muitos relatórios finais elaborados pela chefia suprema são
descrições não-observáveis e não-empíricas, mas sim falsas associações e
conclusões acerca da verdadeira experiência ocorrida na fábrica/organismo.
Essa inadequação entre o existente e a narração erroneamente descrita
leva a central da fábrica/organismo a tomar decisões frequentemente
equivocadas. Consequentemente, em inúmeras ocasiões, a central, existente
para tomar sábias e eficientes decisões para a sua fábrica/organismo, em vez
de solucionar os problemas reais apresentados a ela, produz hipóteses ou
afirmações dogmáticas, totalmente em desacordo com a realidade descrita
por conhecimentos mais bem elaborados e fundamentados.
Sabemos que um passarinho no alto do ninho, que nunca viu outro pássaro,
a não ser a sua criadora, não precisa conhecer por experiência própria que
a presença de uma águia constitui um risco para ele, do mesmo modo que
o pardal do meu terraço. Também Gustavo, logo que nasceu, sem nenhuma
dificuldade, ao ser colocado junto a sua mãe, abriu a boca para engolir um
pouco de leite morno dos enormes seios de D. Deolinda. Gustavo chorou,
vertendo lágrimas e fazendo uma barulhada terrível diante da fralda molhada
e, ao sentir dor de barriga, gritou socorro novamente. Além disso, sua
respiração estava normal, dormia naturalmente, seu coração, bem como sua
cor, estavam normais, urinava, defecava e fazia movimentos variados sem
problemas.
Ora, todo esse palavrório foi escrito para esclarecer certas afirmações.
Abacaxi não é bom ou gostoso por si mesmo; ele foi avaliado pelo paladar de
Euler e categorizado, por ele, de gostoso. Aldegundes, por sua vez, uma outra
pessoa, inclusive de outro gênero, segundo sua degustação, o classificou de
horrível.
Encontro vai, encontro vem, o tempo foi passando. Maldito tempo e contatos
que nos revelam detalhes, filigranas que não podíamos ver num encontro
rápido e superficial. Aos poucos, virtudes visíveis e encantadoras de Linda
começaram a ser examinadas de perto, através de olhos mais críticos e,
também, menos apaixonados. Aos poucos, alguns atributos de Linda,
avaliados, no período da paixão, como positivos, se transformaram em
negativos. Seu encantador sorriso, seus cabelos claros, seu pescoço comprido
de girafa, tudo isso e muito mais, no início do namoro foram classificados
como belo, simpático e atraente, mas, depois, ao perder o encanto, se
transformaram em características negativas e aversivas.
Essa nova maneira de Jonas avaliar Linda, nos diversos detalhes, foi
provocada, fundamentalmente, por um fato pequeno e singelo, que podia ser
sem importância, nem mesmo aparecer em sua mente. A característica chave
ou principal, que podia nem ter sido notada, ou até considerada positiva, foi
a que provocou a atenção, a preocupação e a emoção negativa continuada
Mas Jonas podia estar errado quanto à crença que deu origem a todo o
raciocínio, bem como estar errado quando à forma com que elaborou seu
pensamento. Interessante em tudo isso é que, ao mesmo tempo em que ele
a acusava interna e emocionalmente, torcia para que ele próprio estivesse
errado. Entretanto, sua cabeça desconfiada de mineiro lhe fornecia mais e
Para complicar tudo isso, algumas características que Jonas criticava em Linda
– a desinibição ou extroversão – eram, ao mesmo tempo, o que o atraía e
o encantava. Assim, Jonas era atraído pelas mulheres desinibidas, alegres,
sorridentes e ativas, mas, também, tinha pavor de casar-se com uma mulher
muito livre e capaz de se entrosar facilmente com todos, ou seja, uma mulher
classificada intimamente por ele, durante sua raiva, de “piranha”.
Ele, por um lado, estava preso e apaixonado pela Linda concreta e única,
possível de ser observada. Por outro lado, tinha horror ao conceito “piranha”,
um conceito que ele próprio havia fabricado para ela. O conceito “piranha”,
como todo conceito – generalização de certas condutas concretas – não
pode ser observado e testado pelos órgãos dos sentidos. Ele é somente uma
criação do nosso intelecto, não uma percepção dos órgãos sensoriais. Diante
dessa confusão mental surgida entre o observado e o construído e não-
observável, Jonas não sabia que direção tomar. As condutas (sorriso, formato
do nariz, cor da pele, olhos etc.) de Linda foram observadas, mas o nome
usado para reunir tudo numa abstração – um conceito organizador – não
pode ser observado, pois isso é impossível. Desse modo não podemos provar
ou negar empiricamente – com fatos observáveis – a “piranhice” de Linda.
Jonas não sabia o que fazer. Ir ou não ir em frente, continuar ou acabar com o
namoro?
Sem encontrar uma solução satisfatória por si só, após muito pensar, ele
decidiu pedir conselhos aos amigos e, também, aos padres, pastores e
conselheiros espirituais das igrejas frequentadas. Após diversas discussões
com os mentores espirituais, foi estabelecida uma tentativa de solução.
O objetivo era claro: transformar Linda numa pessoa mais inibida ou, segundo
seu rótulo, menos “piranha”, numa mulher mais santa, ou, de outro modo,
dominada mais pela razão que pelas emoções. A meta imaginada parecia
simples; ele sabia, claro como água, o que desejava de Linda. Segundo suas
previsões, bem como a dos amigos/conselheiros, ela, uma vez modificada –
transformada de desinibida em inibida – seria amada sem restrições por ele,
o conflito estaria encerrado e, logo, suas preocupações terminariam.
Jonas, que ficou inicialmente encantado com o sucesso de sua terapia, com
a nova Linda que emergiu, lamentavelmente, teve sua alegria diminuída,
não porque a terapia tenha parado de funcionar, mas porque o tratamento
transformou-a numa pessoa bastante diferente da Linda amada e adorada
por Jonas. À medida que ela foi se transformando, deixou de ser a antiga, a
conhecida e amada. Linda tornou-se uma outra, a não-conhecida, também, a
não amada.
Assim termina nossa história: não demorou muito para que Jonas começasse
a ter saudades da antiga Linda, aquela que morreu assassinada por ele e seu
grupo, a alegre, desinibida, pra frente, talvez, até “piranha”.
Sem mais se sentir atraído e, também, sem suspeitas de estar sendo traído,
Jonas, desolado, decidiu fazer nova tentativa. Iniciou uma nova terapia para
reverter o quadro existente, ou seja, transformá-la de novo na Linda da festa
do aniversário do sobrinho, a antítese da atual. Ele estava inconsolável com a
perda. Não imaginava como era bom conviver com a “piranha” que ele tanto
agrediu. Era dela que ele gostava. Por azar, a terapia não deu resultado. Linda
continuou a ser inibida e “não-piranha”, para sempre. A relação amorosa
entre os dois terminou fria como as noites de junho.
Uma vez que a situação foi percebida como problemática, surge uma outra
avaliação, a secundária: qual o curso da ação que deverá ser efetuada para
tentar controlar a situação? Largar Linda? Mudar a si mesmo? Tentar mudá-
la? Quando a pessoa consegue identificar os meios capazes de resolver o
problema e, caso tenha recursos pessoais ou de outras pessoas para ajudá-
la na solução, a reação inicial de emoções negativas (ansiedade e estresse)
é diminuída. Nesse caso a pessoa começa, provavelmente, a engajar-se no
comportamento lutador e solucionador.
Diante de um problema, como o ocorrido com Jonas, ele, num certo aspecto,
prepara-se para ficar bem equipado para administrar a reação de estresse
interna: soluções cognitivas para resolvê-lo: “O que fazer?”; “Que estratégias
usarei?” além de buscar soluções para diminuir o sofrimento físico e
psicológico: “Procuro uma ajuda?”; “De quem?”; “Tomo algum calmante?”.
Ao mesmo tempo, ele prepara-se, também, para lidar “externamente”, isto
é, com a situação problema, nesse caso, a mudança da maneira de agir de
Linda. Estou trabalhando com a hipótese, para simplificar a discussão, que
Linda, passivamente, concorda com os desejos de Jonas (o que na maioria das
vezes não ocorre), pois, caso contrário, as hipóteses seriam outras, e muito
mais complexas.
Aldegundes, por outro lado, não gosta de abacaxi por razões opostas
às de Euler. Quando ela imagina deglutir ou quando mastiga o
abacaxi, seu organismo se sente mal, há uma aversão e não atração
ao comê-lo, possivelmente com inibição da liberação ou produção dos
neurotransmissores e peptídeos descritos acima, isto é, dos que provocam
prazer. Ao contrário, ao comer o abacaxi o organismo de Aldegundes irá
liberar outros agentes químicos, diferentes, isto é, os que são produzidos
quando nós nos sentimos mal, com asco, nojo, mal-estar etc.
“Córtex” significa ‘casca’ ou ‘crosta’. Assim, por definição, todo o córtex deve
estar na superfície, na ‘casca’ da estrutura. O córtex cerebral apresenta uma
espessura de 3 a 5 mm, muito dobrada em si mesma, formando folhas do
tecido cobrindo a superfície dos dois hemisférios cerebrais. Nosso enorme
córtex cerebral fez nascer o ser humano que nós somos. As descobertas
realizadas após o estudo do cérebro através das imagens funcionais
computadorizadas revelaram inúmeros aspectos do funcionamento dessa
região do organismo antes desconhecida.
Uma vez a água sendo ingerida, o setor (que antes tinha alertado o organismo
acerca da sede) informa às áreas que haviam sido postas em ação, que não há
mais necessidade de procurar água. Desse modo, por meio dos “feedbacks”,
fecha-se o círculo disparado.
Percepção
O encéfalo não armazena mecanicamente as informações adquiridas; ele é
mudado sempre que interage com o mundo; ele é plástico, torna-se diferente
conforme é estimulado. A percepção é o portão de entrada através do qual
recebemos informações intermediadas pelos nossos órgãos dos sentidos e
através de nossa consciência. A percepção é o princípio da experiência.
Identidade e comportamento
Constitui a produção final e sintética do cérebro: as decisões, o
comportamento e o senso histórico de si mesmo, uma soma total de traços
neurais e psicológicos que, num certo momento, se torna uma determinada
pessoa.
O Organismo/Fábrica e os
Genes
São nossos genes, recebidos durante a fecundação, que determinam,
de modo preciso, o funcionamento e a forma dos circuitos prontos para
operar já no nascimento (tronco cerebral, hipotálamo e outros); uma fiação
neuronal que interliga regiões do corpo, tubos onde circulam nutrientes
(sangue, linfa, líquido cefalorraquidiano etc.). De outro modo, os genes são
os materiais usados no levantamento da construção da fábrica, bem como
a maneira que eles precisam ser arrumados ou organizados para formar a
fábrica final (recém-nascido) existente no projeto imaginado pelos arquitetos,
engenheiros e pessoal encarregado (a evolução).
Qualquer leitor se lembra que, por um acaso, ele encontrou uma pessoa que
iniciou uma mudança em sua vida; por uma acaso fez uma viagem e sofreu
um acidente que mudou tudo; por azar, foi ao cinema e lá conheceu Joana
ou Pedro que acabou com sua paz. Também por acaso conversou com um
professor que lhe falou certas coisas, que, por sua vez, fizeram uma grande
virada em seus planos.
Cada leitor tem sua história particular; recupere-a por instantes e veja se
tenho ou não razão de dar tanta importância aos acasos da vida. Lembre-se
bastante, principalmente daquele dia que você virou outra pessoa a partir de
um fato que poderia não ter acontecido.
De outro modo, isso significa que a fábrica poderia produzir, à medida que
vai alcançando a maturidade, vários artigos que no seu início ela não seria
capaz de fabricar, mostrar, alugar ou vender. É possível que as transformações
sofridas com o tempo não podiam ser imaginadas pelos mais capazes
diretores da fábrica nos seus primeiros meses e anos de fundação, ou seja,
logo no início do funcionamento, pois os objetivos vão sendo construídos
devagar, conforme os sucessos e os fracassos, ou seja, conforme a experiência
e história construída. Também, muito cedo, a direção da fábrica não podia
imaginar ser possível a fábrica criar tantos artigos como passou a produzir. De
fato, mecanismos novos, conforme os desafios do meio ambiente externo,
Inteligência e a decoração
Inteligência não é saber de cor listas literárias, nomes de fatos ou outra coisa
qualquer. Conhecer de cor fatos não indica possuir sabedoria, dominá-los
não quer dizer nada sobre a habilidade de uma pessoa para se sair bem
em grande parte das situações. O mais importante que a pessoa sabe não
Há ainda ações que foram aprendidas através da central, mas que com o uso
continuado, aos poucos, elas se automatizam, como acontece com a fala (não
ficamos, numa conversa, examinando cada palavra que usamos, ou como
iremos organizar nossas frases gramaticalmente). Do mesmo modo, estão
automatizadas as condutas relacionadas à escrita, tomar um banho, tirar a
roupa etc. que praticamente pouco uso faz da central, isto é, elas passam a
ser coordenadas pelo primeiro comando, o subcortical, sem consciência de
seu uso.
Chamo a atenção que o hemisfério direito, pelo menos o meu, é mais sério;
ali quase não há erros, pois o que é mapeado ou representado é mais puro e
livre de tapeações. O hemisfério direito não trabalha com palavras (principal
instrumento das trapaças) e sim com a percepção crua e pura.
Essa secretaria, por séculos e séculos, inventou lendas, mitos, criou heróis,
deuses e demônios diversos que serviram de pano de fundo, exemplos,
contra-exemplos, modelos e antimodelos seguidos por toda a humanidade.
Coitado do lado sério do cérebro. O lado direito tem fracassado para diminuir
a bobeira humana defendida por nosso lado esquerdo; seus esforços têm sido
em vão.
Deve ser frisado que as narrativas acerca dos fatos não são a mesma coisa
que os fatos. O relato dos fatos ocupa outro nível, ele é composto por
palavras que denotam ou tentam denotar o que foi supostamente percebido.
Por isso, o que nos é revelado pelo lado esquerdo do córtex deve ser ouvido
ou lido com cautela: idéias políticas, dogmas diversos, afirmações religioso-
Mas isso não é alcançado facilmente. Tudo isso depende, em primeiro lugar,
de um bom estado de todos os componentes anatômicos macros e micros
do organismo: estômago, pulmão, nervos, gânglios, útero, pernas e braço,
hipotálamo, clitóris, pênis, testículos, ovários etc., e, também, produções
de ACTH, cortisona, adrenalina, hormônios da tireóide, testosterona,
progesterona, dos ossos, tendões, músculos, serotonina, dopamina etc.
Mas tem mais, é preciso ter fiações e sinapses íntegras, as que ligam um
terminal emissor (codificador, remetente) com centenas ou milhares de
outras ramificações capturadoras (receptoras, recebedoras, decodificadoras),
transformando esses sinais eletroquímicos em emoções, pensamentos, ações
e também em criações intelectuais e artísticas.
A barriga de José
Vamos examinar um exemplo simples. Por decisão da central de José, para
diminuir a gordura que estava se acumulando na região ventral da fábrica
(na barriga), foi estabelecido, depois de diversas reuniões conduzidas pelo
córtex pré-frontal, que precisava haver um maior esforço em alguns setores
do organismo, pois só assim seria possível, ao eliminar calorias, diminuir a
gordura localizada no abdome.
Não vou continuar com os detalhes para não cansar o leitor; acho que
apenas com essas amostras de mudanças eu consigo explicar o desejado.
Uma vez verificados esses déficits, informações que sempre passam pelos
setores intermediários da fábrica, ou seja, no andar do poderoso comando
subcortical , foram analisadas e selecionadas, depois enviadas ao andar do
comando cortical para posteriores deliberações.
Nem tudo são flores em nosso corpo. Existem divergências constantes entre
os dois comandos, isto é, entre os dois cérebros que temos: um cortical
(aprendizado pós-natal ou do indivíduo), e o outro subcortical (aprendizado
pré-natal ou da espécie). No organismo/fábrica, como ocorre em todos
aglomerados de pessoas, há chefes e subordinados; poderosos e submissos;
maus e bons chefes e, sempre, competição, cada um querendo aumentar
mais seu poder à custa da diminuição do outro.
O prazer foi tão intenso que obstruiu o propósito inicial do comando cortical
de tomar o suco e comer o pão com manteiga. Dominado e contaminado pelo
prazer antecipado vindo do comando subcortical , o comando cortical perdeu
momentaneamente seu poder de decisão. A laranjada, uma vez deixada de
lado, permitiu a entrada, de forma rápida, do doce no interior da fábrica para
alegria geral de vários componentes das secretarias e operários da fábrica do
comando subcortical , pois estão sempre à procura de prazeres imediatos, já
que esses setores não são capazes de fazer cálculos de futuros prejuízos; eles
não pensam. O enorme grupo do comando subcortical , logo após a vitória, o
doce sendo ingerido, debochou do comando cortical que não havia percebido
nada até aquele instante.
“Para quê fui comer o doce-de-leite com coco; eu devia ter tomado apenas a
laranjada e comido uma fatia de pão com manteiga. Estou com cinco quilos
acima de meu peso, minha barriga está exagerada. Para tudo tem remédio:
tomarei algumas providências como colocar meus músculos esqueléticos
para funcionar, assim perderei peso. Sei que ando comendo demais. Cochilei;
deixei muitos poderes para certas secretarias; como elas não raciocinam,
apenas notam o prazer imediato que terão e como elas agem rápido, acabo
não tendo tempo de impedir suas ações, muitas vezes desastrosas; elas nem
parecem ser minhas condutas. Vou tomar mais cuidado com essas estações
que não sabem o que é moda, elegância e saúde de um modo mais lógico e
racional. Como são burras! Como eu sou, muitas e muitas vezes, dominado
ou corrompido por elas. Sou um idiota: sei o que é certo e acabo fazendo
bobagens! Não aprendo; já fiz bobagens semelhantes milhares de vezes!”.
Após a análise minuciosa desses dados, todos eles levados para o setor de
inteligência da fábrica, esta região, após terminar de fazer o exame mais
detalhado da situação, em seguida, e o mais rápido possível, enviou um
relatório acerca do exame dos dados recebidos para a Central para que ela
tomasse providências urgentes. Imaginando ser melhor errar por fugir que
errar por não fugir, Antônio concluiu que a suspeita principal era de que
o rapaz atrás dele deveria ser mesmo classificado, segundo o hemisfério
esquerdo, classificador de fatos, como provável “trombadinha”.
Vou aprofundar mais um pouco nessa narrativa. Diante desse fato, uma vez
o organismo/fábrica de Antônio tendo percebido, através de sua Central, o
risco próximo, foi decidido que era preciso fugir do assaltante. Pois bem, aqui
começa o trabalho da fábrica relacionado à fuga.
Para terminar minha descrição, que está muito e muito longe de ser
completa, os sentidos relacionados às fugas foram preparados para
ficarem mais aguçados, prontos e capazes de detectarem qualquer sinal de
aproximação do bandido ou de outro risco porventura existente.
Ele avaliava tudo mal: jogava sempre na sena, certo de que ganharia o grande
prêmio; foi morar com a primeira sirigaita que encontrou, e ela lhe roubou
tudo que havia guardado; foi preso, pois pegou no supermercado um DVD e
colocou dentro do paletó achando que não seria observado.
Resumindo: para que Maria fique possessa, feliz, triste, ou com qualquer
Assim, uma pessoa diante de um indivíduo agressivo pode partir para a briga,
mas, também, imaginar: “Como ele está nervoso! Coitado, poderá ter um
infarto a qualquer hora”. Mas poderá ainda especular, caso tenha tempo e
calma: “Ele está me xingando para que eu perca a cabeça. Está perdendo seu
tempo”; “Que cara mais feia; fica pior quando xinga”; “Até que ele raivoso fica
mais bonito”; “Tenho dó dele, está cada dia pior”; “A vida inteira ele foi assim,
daqui a pouco irá chorar e pedir desculpa. Coitado, vou mais uma vez perdoá-
lo, ele não sabe o que faz”. Dezenas, milhares de outras suposições poderiam
ser criadas, cada uma produzindo emoções diferentes.
Portanto, quando sua atenção focalizava a blusa vermelha de lã, bem como
o preço, sua mente foi desativada de um foco e ativada em outro. A partir do
estrondo, ainda não identificado, seu objetivo, automaticamente, naquele
momento, era escapar e, se possível, descobrir qual a razão do som escutado.
Caso descobrisse a razão do estrondo, provavelmente clarearia sua mente
para tomar decisões mais sábias; sua conduta seria muito diferente caso o
barulho tivesse sido decorrente uma bomba jogada na porta de um banco,
comparado com o barulho de um traque inofensivo comemorando a vitória
de alguém em alguma coisa.
Ainda sem saber o que acontecera, Maria percebeu que suas pernas tremiam,
o coração estava acelerado, a boca seca, isto é, o corpo estava preparado para
enfrentar um grande perigo imaginado a partir da informação “estrondo”.
Maria, após retirar seus olhos da vitrine, girou sua cabeça e as orelhas em
direção ao som escutado, para identificar melhor a origem do barulho.
Mas, antes disso, alguns dos sinais sonoros que penetraram no seu
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organismo-cérebro tomaram outro trajeto e percorreram um caminho
mais curto: algumas informações sonoras foram em direção (entraram
em comunicação) a uma pequena região, do tamanho de uma amêndoa,
localizada na parte inferior do lobo temporal, que recebe o nome de
“amígdala”. Esse setor é uma região do cérebro altamente sensível às
situações assustadoras, principalmente às novidades, isto é, fatos ainda não
conhecidos e que poderiam ser perigosos. Resumindo, a amígdala prepara
o organismo para fugir, pois indica a existência de uma situação perigosa
ou complicada para ser solucionada, Por exemplo: a amígdala é estimulada,
provocando medo e, às vezes, fracasso, durante um encontro sexual onde os
parceiros não são íntimos. Não se trata da “amígdala” que temos na garganta,
mas sim a existente no cérebro.
Logo no início, após ouvir o estrondo, ainda sem saber de que se tratava,
seu cérebro, através de sinais enviados pelo córtex cingulado anterior ao
hipotálamo e, também, à medula espinhal, o sistema nervoso autônomo,
que é coordenado pelo hipotálamo, foi ativado pelas informações do barulho
ocorrido; em seguida esse sistema nervoso autônomo (SNA) começou a
funcionar e providenciar as primeiras ações para o fato. Como não sabia de
que se tratava, o organismo foi preparado como se fosse algo grave e sério.
Geralmente o organismo/fábrica prefere agir por excesso de cuidados que
errar por não tomar cuidados e ser, por exemplo, danificado ou morto.
Por outro lado, felizmente, como o barulho fora provocado pela janela que
caiu, não havia nada a temer e fazer, pois o perigo que porventura existiu
terminou. Nesse último caso, seu córtex frontal, que presenciou tudo através
dos olhos e ouvidos, avisou para a amígdala – foi a amígdala que deu o
alarme -, que não precisava se preocupar, pois não era necessário nem correr
nem atacar, portanto, poderia deixar o corpo relaxar e retornar ao estado
anterior ao barulho, para continuar sua compra e não estar preparada para
lutar ou fugir.
Sem precisar decorar nenhum desses nomes, quero chamar sua atenção para
um pequeno fato. Ao pisar num prego, esse fato simples dá origem a uma
enorme quantidade de informações provenientes do que está ocorrendo,
inicialmente na sola do pé onde penetrou o prego e, em seguida, numa
grande parte do nosso corpo. De outro modo, a informação gerada num lugar
ativa, ao mesmo tempo, diversas outras regiões do cérebro (do organismo
total) que, uma vez recrutadas, compartilham de ações que precisam ser
tomadas. Ao mesmo tempo, as informações produzidas ao pisar no prego
irão desativar outro grupo de setores que não irão participar da defesa do
Dia e noite o organismo trabalha assim. Seria péssimo se minha mão esfriasse
e meu organismo nada percebesse e, consequentemente, nada fizesse.
Também, meu organismo poderia não notar o desequilíbrio existente nessa
região em comparação com o restante do corpo. Por exemplo, devido a algum
defeito, ele não mais seria capaz de tomar medidas eficientes para sanar o
problema. De modo simples: se o organismo estivesse doente suas respostas
(defesas) estariam prejudicadas.
Portanto, nos porões do cérebro, isto é, nos níveis mais baixos, localizam-
se mecanismos encarregados de manter o organismo, automaticamente,
vivo, isto é, sem a participação da vontade de seu possuidor. Todo esse
mecanismo interno do organismo visa a manter o equilíbrio químico não só
no interior de cada célula, como no conjunto total de células que trabalham
para o desempenho global e satisfatório dos diversos setores da “fábrica/
organismo”: defesa, inteligência, emoção, motor, sensorial, etc.
Deve ser lembrado que as informações funcionam não numa só via, mas sim
em duas, a de ida e volta. Por conseguinte, de lá de cima (das subestações
e da Central), são reenviadas (retransmitidas) também informações para as
celas existentes na parte de baixo da fábrica, isto é, aos setores controlados,
cada um, pelas secretarias ou estações especiais dos andares mais altos.
Por tudo isso, o funcionário, mesmo o mais simples, deve estar atento
quanto às informações que dele devem partir e das mensagens recebidas de
cima, lhe dando uma idéia geral do ocorrido; sempre buscando a harmonia
do setor. Esse operário, aparentemente sem poder, pode e deve, caso for
necessário, avisar e ser avisado, através de informações químicas e elétricas,
acerca do que se passa em algum setor vizinho ou relacionado a ele. Assim,
por exemplo, o setor “músculos da perna” pode receber informações de
sua chefia que ele deve se preparar para correr para fugir da “terrível
barata” voadora que passeia pela cozinha de um lado a outro; a barata está
parecendo querer pousar em cima da cabeça de Maria. A perna que recebeu
ordens de se movimentar não tem acesso à informação geral dos motivos
da ordem que ela deve cumprir, pois uma perna não enxerga e nem pensa
acerca de baratas; apenas obedece a comandos neurais e químicos; essa é
sua linguagem, e para correr a perna precisa de energia, que será liberada e
enviada por outros setores, conforme o Comando Geral.
A realimentação da informação
O retorno da informação já elaborada (absorvível, assimilada) da chefia
cortical para as chefias das subestações subcorticais e destas para os
microcomputadores (células, operários subordinados) tem uma enorme
importância para as futuras deliberações que serão executadas pelo
organismo/fábrica. Como vimos, cada subsecretaria é possuidora de
conhecimentos diferentes e, por sua vez, envia uma informação singular,
isolada, (dor, calor, muscular etc.), mas necessária à ação conjunta do
Todo esse trabalho é coordenado, em última instância, pela Central Geral, por
partes dos córtices pré-frontais dorsolaterais e ventrolaterais e, também, do
cíngulo, córtex orbitofrontal, isto é, por um conjunto de regiões do cérebro
que recebem o nome de “cérebro executivo” relacionados à tomadora de
decisões, ou seja, o setor coordenador geral das ações específicas.
Como o cingulado tem saídas para os gânglios basais, sua estimulação produz
também a reação motora do organismo (tirar a mão do fogo, correr etc.) e,
Tudo indica que nosso corpo, como o de outros animais, nada mais é que
um conjunto de genes que estavam isolados ou fazendo conjuntos menores,
ou seja, que vieram de diversas procedências, bem como vários micro-
organismos, como as mitocôndrias. Agora, nossa fábrica não vive sem eles,
pois eles são partes importantíssimas do todo; o conjunto para funcionar
precisa de cada um desses operários altamente obedientes, conservadores e
especializados.
Do mesmo modo, é quase certo que o homem primitivo, bem como diversos
animais primitivos, não tinha o córtex atual, isto é, ele usava para viver
apenas das regiões subcorticais (um só comando: o instintivo, arcaico,
estímulo/resposta), não havia o controlador geral, o uso de conceitos e,
principalmente, de palavras que indicam relações entre as idéias ou eventos
como os relacionados a causas. Possivelmente, no início da fala, há mais ou
menos 50.000 anos – o homem deve ter aparecido há 4 ou 6 milhões de
anos – a fala inicial consistia somente de nomes dados aos objetos (água,
pedra etc.) e não, como agora, de ligações de fatos: “Penso que vou dar uma
parada.”
O comando subcortical
De modo simplificado podemos dizer que nosso organismo submete-se a dois
comandos poderosos (dois domínios): um comando muito antigo, o primeiro
comando ou subcortical, visto como inferior, diz respeito mais ao biológico
(gânglios basais, tálamo e outros); sistema límbico (amígdala, hipocampo,
núcleo acumbente, etc.). Nós nascemos com o comando subcortical pronto
já funcionando, por exemplo, uma dor, um susto diante de um barulho, uma
maior necessidade de oxigênio, de alimento, sede, sono, etc. Esse comando
responde rápido e automaticamente diante dos problemas surgidos, sendo
chamado por alguns de “conhecimento quente” ou intuitivo. Este comando
funciona, de certa forma, independentemente do poder e integridade do
outro ou segundo comando chamado “superior”, frio, cognitivo, racional, etc.
(córtex pré-frontal dorsolateral e ventrolateral, ajudando pelo cíngulo, córtex
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orbitofrontal, etc.).
Mas sua ação não fica só nisso. Os circuitos inatos antigos têm
importantíssimo papel no desenvolvimento e na atividade das estruturas
evolutivamente mais modernas ou recentes do cérebro: as corticais. São as
regiões ditas “inferiores” as que iniciam e dão suporte às ações executadas
pelo organismo global. As regiões cerebrais subcorticais são importantes
para as nossas motivações, emoções e a produção e execuções de diversas
cognições do organismo humano, entre essas estão as cognições implícitas
que são automáticas, inconscientes, como é grande parte de nossos
paradigmas (princípios, modelos), bem como as palavras que usamos sem
pensar.
Esse conjunto de regiões diferenciadas, onde cada uma delas exerce papéis
diferentes, trabalha de forma integrada, possuindo o mesmo objetivo:
manter um estado satisfatório para o organismo. No comando subcortical
Todos nós sabemos que uma maior ativação provocada no setor subcortical
(emoções, desejos, reflexos) desencadeia a diminuição da ativação
(desativação) do setor cognitivo (o raciocínio). De outro modo, se o desejo de
comer o churrasco for intenso, o setor cortical, do pensamento, enfraquece e
pode não ser capaz de impedir a gula do nosso comedor de carne. Por outro
lado, a ativação do cognitivo (chamado popularmente de “força de vontade”)
pode inibir as emoções e, consequentemente, os pensamentos presos a
elas. Também, se a ativação cortical for elevada: “Você já passou dos limites.
Pare! Imediatamente! Não coma mais. Saia de perto do churrasco!”, como
relatei pelas frases, o controle pode passar para as mãos do setor cortical.
Frequentemente usamos esse poder mais sensato para orientar as futuras
ações.
Os estudos mostram que parece não existir nunca uma total ausência
de ativação nos setores emocionais de impulsos, de alerta do organismo
durante as ações (conversar, pensar, comer, ver TV etc.), pois, mesmo quando
há um domínio do cortical (Pedro parou de comer o churrasco), há uma
Como se pode inferir, as tomadas de ações finais deverão ser mais eficientes
conforme haja um maior número de informações úteis e disponíveis para
serem usadas; cada uma delas, para maior eficiência, precisa trabalhar em
harmonia com as outras. Assim, o organismo agirá com mais neurônios
envolvidos no processamento da ação final ou de uma cognição mais precisa,
eficiente e complexa.
Alguns indivíduos não têm essas características, entre elas, estão os que
recebem o rótulo psiquiátrico de “Transtorno de Personalidade Anti-social”.
Certos transtornos de personalidade aparecem desde cedo; outros podem
ser adquiridos devido a diversos fatores. Todos esses indivíduos apresentam,
lamentavelmente, para eles e para nós, um defeito no sistema avaliador do
futuro comportamento, por isso sempre estão dando “passos errados” nas
condutas sociais.