Você está na página 1de 6

1

UNIDAE 03 – A IMPORTÂNCIA DE SE RECONHECER O TEXTO COMO


POESIA E CUIDADOS COM SUA INTERPRETAÇÃO

Como dissemos anteriormente, nem sempre é tão simples reconhecer


uma poesia hebraica, no texto em português. A situação se torna ainda mais
complicada, quando a versão bíblica utilizada é uma paráfrase (Bíblia Viva ou A
Rocha) ou foi produzida em uma linguagem mais comunicacional (LH ou
NTLH). Toda tradução é feita a partir de algum tipo de interpretação e de certos
pressupostos envolvidos no processo em si. Por esta razão, não é muito fácil
dizer qual versão é mais ou menos fiel. São várias as diferenças entre elas.
Vejamos apenas um deles: a Tradução João Ferreira de Almeida Revista e
Atualizada se propõe a uma tradução mais formal, respeitando-se, inclusive
alguns aramaismos. Já a versão Almeida Século XXI, embora procurou manter
certas características mais formais, se preocupou muito mais com a fluência na
leitura do texto. Enquanto que a Linguagem de Hoje, teve uma preocupação
maior com o entendimento da mensagem em si.
Quando entendemos as características da poesia hebraica, vista na
Unidade 2, fica um tanto mais tranquilo reconhecer a sua presença e,
consequentemente, evitar uma interpretação incoerente com aquela pretendida
pelo autor original. Por exemplo, quando reconhecemos que Isaias 14,12-14
tem características poéticas, dentro de um recorte escrito em prosa (Is 14,3-
23), fica muito mais fácil entende-lo se tratar do rei da Babilônia e não de
Satanás, como infelizmente tem sido considerado. Este tipo de transição prosa-
poesia-prosa ou vice versa, é mais comum do que imaginamos, na cultura
judaica. Em outras palavras, não é porque os três versículos podem ser
considerados como poesia, que obrigatoriamente, tem que significar outra
coisa, fora de seu contexto. Muito pelo contrário, geralmente ele servirá para
clarificar determinada ação ou dizer de forma metafórica o que não seria tão
fácil dizer com palavras comuns.
Outro texto usado de forma equivocada é Sl 51,12 “torna a dar a
alegria da tua salvação”.1 Muitos o usam como prova de que o crente não
perde a salvação. Segundo alguns, o crente, diante do pecado, perde apenas a

1
Aqui adoto a versão decorada desde infância e apelada por alguns, que a utilizam fora de seu contexto.
2

alegria oriunda da mesma. Não podemos usar um texto poético para tratar de
doutrina e, principalmente, não podemos usar um texto do AT para explicar o
processo de salvação que foi desenvolvido e descrito em o NT. Um detalhe
curioso, é que bastaria olhar para o versículo anterior, que a própria teoria de
que o crente não perde a salvação, cairia por terra; pois no verso 11, o salmista
implora para que Deus não retire de si o seu santo Espírito. Ora, se Deus pode
retirar o seu Espírito, logo o ser que o possuía perde o direito à salvação,
poderíamos usar a mesma lógica.
Todavia, não podemos adotar nem uma, nem outra teoria, por serem
meras especulações. É muito mais natural e saudável, entender ambas as
expressões dentro do contexto da época, onde o rei, e apenas ele e
pouquíssimas pessoas, por ser ungido de Deus, tinha a manifestação mais
vívida do espírito de Deus em suas vidas, o que os levava a realizar grandes
feitos. Desta forma, o que o salmista está pedindo é que, diante de seu
arrependimento (Sl 51,1-10), Deus volte a manifestar de seu Espírito, levando-
o a ser usado como instrumento divino nas batalhas, tendo assim a alegria das
vitórias em cada livramento. Ou seja, salvação é sinônimo tão somente de
livramento e vitórias e a ação do espírito de Deus se refere à manifestação
pontual e concreta diante de uma determinada situação.
Infelizmente, não é apenas o contexto que se é ignorado, quando
tratamos com poesia. Como elas são ricas nos usos de figuras de linguagens,
o fato de não reconhecermos isto, ou o costume de considera-las como literais
podem nos trazer muitas dificuldades.

O mal-uso das figuras de linguagem

Quando lidamos com textos ou falas de outras culturas, uma dificuldade


muito corrente é a possibilidade de não entendermos determinadas expressões
ou figuras. Por exemplo, em I Sm 25,22, quando Davi faz um juramento contra
os da casa de Nabal, ele diz: “Assim, faça Deus aos inimigos de Davi e mais
ainda, se eu deixar até o amanhecer, de tudo o que lhe pertence, ainda um só
menino.” A última parte “de tudo o que lhe pertence, ainda um só menino”, não
está no texto hebraico. Lá é mencionado apenas: “aquele que mija no muro”.
Uma expressão idiomática para se referir aos representantes do sexo
3

masculino, que por não ser bem compreendida em nossa cultura, foi omitido,
traduzindo apenas o seu conceito.
Outra expressão que normalmente passamos desapercebidos em
nossas leituras, podemos encontrar em Rute. Quando se menciona que ela
descobriu os pés de Boás (Rt 3,7), certamente trata-se de um eufemismo para
dizer que ela descobriu suas partes íntimas.
Recentemente, num determinado culto de domingo, ouvi o ministro de
louvor explicar o Sl 42,1, antes de um dos cânticos. O salmista disse: “Como
uma corça suspira pelas correntes das águas, assim a minha alma suspira por
ti, ó meu Deus”. O dirigente do culto explicou que a corça, da família dos
veados, tem a peculiaridade de respirar enquanto bebe água. Mas, não como
geralmente ocorre, com suas narinas fora da água. Segundo ele, mesmo com o
focinho submerso, ela consegue separar o oxigênio da água, enquanto a bebe.
Já tive que atender algumas pessoas intrigadas e inquietas porque
tinham encontrado um palavrão na Bíblia. Segundo algumas pessoas, Amós
chamou suas compatriotas de vaca e Salomão chamou a Sunamita, de
Cantares, de égua. Todavia, são figuras de linguagem, que para a sua época
tinham outro sentido. Em Am 4,1 o profeta estava elogiando, dizendo que as
mulheres eram belas, imponentes, orgulhosas. Enquanto que em Cân 1,9 seria
o equivalente a chamar a pessoa amada de gatinha.
Outra figura, levada ao pé da letra encontra-se em Js 1,3 onde deus faz
uma promessa para o novo líder: “Todo lugar que pisar a planta de vosso pé,
vô-lo dei, como eu disse a Moisés”. Infelizmente, volta e meia ficamos sabendo
de pessoas que decidiram caminhar descalços em seu bairro, como sendo um
ato profético em prol da evangelização do mesmo. Não é isto o que o texto está
dizendo. O que o Senhor disse a Josué foi: enquanto eles estivessem
dispostos a caminhar, indo atrás da bênção prometida, Deus estaria com eles e
os abençoaria. Quando eles decidissem parar, a bênção também pararia. Ou
seja, a promessa estava vinculada, não à literalidade de um andar descalço,
mas à perseverança em busca-la. Basta ler o livro de Josué, para perceber que
foi isto mesmo que aconteceu. Enquanto eles estavam dispostos a lutar e
conquistar, não havia inimigos que pudesse se opor, mas quando se
contentaram com o território que haviam alcançado, os inimigos pareciam
invencíveis e Deus deixou de abençoá-los.
4

Em Salmos 8,3 é mencionado que os dedos de Deus criaram os céus.


Não quer dizer que Ele tenha mãos e dedos. Afinal o Senhor é espírito. Mas,
através de antropomorfismos, do uso de figuras humanas para descrever
certos feitos de Deus, fica mais fácil se expressar. Semelhantemente, quando
Jeremias implora que Javéh não escondesse o seu ouvido (Lm 3,56) é uma
forma de pedir para que Deus estivesse atento ao seu clamor.
Às vezes, encontramos ironia no texto bíblico, que não foi possível
traduzir para as demais línguas. Por exemplo: quando a esposa de Jó diz para
ele “Renuncia a Deus e morre” (Jó 2,9), outras versões traduzem por
“amaldiçoa o teu Deus e morre”. Todavia não é assim que está no texto
original. Numa tradução literal do texto hebraico temos “abençoa o teu Deus e
morre”. Mas soaria estranho traduzir assim para o português, porque em nossa
língua não seria possível perceber a ironia nas palavras da mulher. Ela estava
sendo irônica, dando a entender que Jó deveria renunciar ao seu Deus. Por
isto, é que as versões mantiveram a tradução melhorada.
Já não bastassem a dificuldade com a distinção entre prosa e poesia,
visto na unidade anterior e, de igual modo, os riscos com a interpretação das
figuras de linguagens, outra questão muito comum em nossos dias é a falta de
respeito para com o contexto. Sim, muitas vezes deixamos de perceber o que
um determinado texto tem a nos dizer, porque simplesmente ignoramos a
estrutura na qual ele está inserida. Para maiores detalhes sobre as várias
figuras de linguagem, seus significados e usos no AT, recomendo a leitura da
dissertação “Uma Introdução Geral à Poesia Hebraica Bíblica” de Edson
Magalhães Nunes Júnior, das páginas 109 a 132.

Respeitando a Estrutura do Texto

Por muitos anos, evitei a segunda parte do Salmo 95, dos versos 7-11,
por achar tão negativo e pesado. Todavia, recentemente, ao fazer uma
exegese dele, percebi que sua estrutura mostra o contrário. Conforme poderão
perceber no artigo mencionado como material complementar.
Um amigo decidiu pregar um sermão para cada uma das 22 partes do
Salmos 119. Logo na terceira ou quarta parte ele percebeu que não poderia dar
continuidade ao seu propósito. Afinal, o Salmos 119 todo é uma poesia
5

enaltecendo a Palavra de Deus. O objetivo é um só e, embora utilize palavras


diferentes para a Lei, são todas sinônimas. Outro detalhe interessante é que
todos os versos em hebraico possuem ao menos uma citação direta aos
Mandamentos divinos, usando vários sinônimos: justiça, preceitos, caminhos,
estatutos, lei, mandamentos, juízos, testemunhos, ordenanças, promessa,
entre outros possíveis. Infelizmente a versão João Ferreira de Almeida revista
não atentou para esta estrutura e ao traduzir os versos 84 e 122 não preservou
a tradução destes sinônimos.
Não são poucas as pessoas que pensam que Lameque matou duas
pessoas. Por muitos séculos isto foi aceitável como absoluta verdade. Porém, a
partir da concepção sobre o paralelismo, há quem diga que não. Segundo
alguns, Gn 4,23 seria uma poesia em paralelismo sinonímico. Mas, quando
observamos a estrutura maior: Gn 4,23-24, podemos continuar com a tradição
inicial, de que ele teria matado duas pessoas. Além do contexto, que diz que
Caim seria amaldiçoado 7 vezes e ele 77 (ou seja, não justificaria um aumento
tão grande de sua maldição se tivesse matado um único homem, como o fez
Caim). Pois bem, além disto, há uma conjunção coordenativa ligando os dois
episódios. Observe:

Ada e Zilá, ouvi a minha Voz,


Vós, mulheres de Lameque, escutai as minhas palavras:
Pois matei um homem porque me feriu
E um mancebo, porque me pisou.
Se por Caim tomar-se-á vingança sete vezes,
Com certeza, por Lameque o será setenta e sete vezes.

Outro texto, muito mal interpretado, em especial, por se ignorar o estilo


literário no qual foi escrito, é Pv 22,6:

Educa a criança no caminho em que deve andar


E ainda quando for velho não se desviará dele.

Certamente chegaremos a uma interpretação distorcida, se ignorarmos


que Provérbios trata sobre “as máximas da vida”, ou seja, mostra o que
geralmente ocorre e que, indubitavelmente, não se trata de nenhuma lei ou
norma. Muito provavelmente você já deve ter ouvido a declaração de que se o
filho de alguém se desviou da fé foi porque os pais não o ensinaram
corretamente. Mas, não é isto que o sábio procurou dizer. O que se entendia
6

deste ditado é que, normalmente, quando ensinamos alguém desde pequeno,


há grande probabilidade dele se manter nos caminhos que foram ensinados.

Sintetizando

Hoje, tem-se a falsa ideia de que se algo é poético, tem um menor valor.
Curiosamente, na antiguidade, era o oposto. Segundo Champlin, havia uma
crença, generalizada, de que os escritos mais importantes eram aqueles que
foram registrados através da poesia.2 Em outras palavras, no que diz respeito à
inspiração, não interessa tanto se o texto foi escrito em poesia ou prosa.
Todavia, para uma melhor compreensão do significado de sua mensagem,
precisamos detectar o tipo de escrita que foi utilizada, para melhor
compreender seus ensinamentos.
Temos que estar atentos aos aramaísmos e a própria cultura por detrás
de cada texto. Não podemos ficar apenas preso à perícope em si, mas procurar
ver o seu envolvimento com a cultura para a qual ele foi escrito. Bem como,
também precisaremos estar atento para o significado e a forma de se usar
determinadas figuras de linguagem. Devemos ter o cuidado com a correta
interpretação, porque às vezes, uma palavra é usada com um sentido naquele
contexto, mas terá outro significado, em outro texto. Por isto, também
precisamos observar a estrutura na qual o texto foi escrito ou “formatado”. Pois,
assim, como hoje, também transmitimos nossa mensagem no que chamamos
de entrelinhas.
Bons estudos3 e até a próxima Unidade, quando trabalharemos mais
diretamente sobre os livros bíblicos classificados como poéticos.

2
CHAMPLIN, Russel Norman. Enciclopédia de Bíblia Teologia e Filosofia. São Paulo: Candeia, 1995, p.
313.
3
O vídeo proposto para esta Unidade fala sobre a poesia em geral, mas acredito que traz boas dicas
sobre o cuidado com sua interpretação e por isso, poderá ser tranquilamente, aplicada ao nosso estudo
da poesia bíblica.

Você também pode gostar