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UNIDADE DE TRABALHO IV

EPÍSTOLAS PASTORAIS

Três cartas do NT são conhecidas por esse nome: as duas cartas a


Timóteo e a carta a Tito. São chamadas cartas pastorais desde o século XVIII,
porque dão orientações para o pastoreio de igrejas. Por serem semelhantes em
linguagem e estilo, geralmente são analisadas em conjunto nas introduções ao
NT. Tratam de condições e formas de organização que havia nas igrejas da
época. Quando combatem heresias são semelhantes; são caracterizadas pela
mesma teologia. As cartas pastorais na questão da autoria atribui-se ao
apóstolo Paulo, ou de outro autor que escreveu em nome de Paulo. Em relação
a isso existe entre muitos exegetas do NT a firme convicção de que Paulo não
foi o autor destas cartas.

1.Destinatários
1.1 Timóteo
Timóteo era filho de um gentio e de uma cristã judia de Listra. Quando
veio a Listra na sua segunda viagem missionária, Paulo conseguiu levar
Timóteo como seu colaborador. Descobriu logo que Timóteo era um homem
especialmente capacitado por Deus e extremamente confiável. Por isso Paulo
vez por outra lhe delegava missões especiais. Também nas épocas em que
Paulo estava na prisão, Timóteo continuava leal a ele. Isso rendeu a Timóteo a
alta estima do apóstolo.

1.2 Tito
Tito não é mencionado na lista dos colaboradores de Paulo em Atos. O
que sabemos dele vem da observação sobre ele em Gálatas 2.1-3. Desse texto
concluímos que ele era cristão judeu, aceito como tal na igreja primitiva em
Jerusalém. Paulo via nisso que a sua missão aos gentios tinha sido
reconhecida pelos apóstolos em Jerusalém. Tito também recebeu tarefas
especiais. Várias vezes Paulo o enviou a Corinto para ajudar a clarear as
coisas na situação tão difícil daquela igreja. Ele foi bem-sucedido.
Evidentemente pertencia ao círculo mais íntimo dos colaboradores do apóstolo.

2. Autor
Do final do século II até o início do século XIX, as Cartas Pastorais eram
consideradas da autoria paulina. Antes do final do século II não há certeza,
porque Marcion não as menciona no seu cânon. Isso tem peso especial porque
Marcion era seguidor convicto de Paulo. Será que ele não considerou essas
cartas como paulinas? Não temos informações sobre isso. Somente no final do

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século II descobrimos num outro índice do NT, no Cânon Muratóri, as Cartas
Pastorais como cartas de Paulo. Elas são assim denominadas por Irineu e
Tertuliano. Desde o início do século XIX começam a surgir dúvidas quanto à
autoria dessas cartas pelo apóstolo Paulo. Em 1804 J. E. C. Schmidt externa
as suas dúvidas sobre a autenticidade de 1 Timóteo, e Schleiermacher
contesta a autenticidade dessa carta em 1807. Eichhorn expande isso para
todas as Cartas Pastorais em 1812. Em 1835 F. C. Baur afirma que essas
cartas foram textos escritos no século II em protesto contra o gnosticismo.

3. Argumentos contra a autenticidade


3.1Gênero literário
Ao compararmos a linguagem das Cartas Pastorais com outras cartas
de Paulo, notamos uma diferença no vocabulário usado. A estatística das
palavras mostra que há 335 “vocábulos exclusivos”, ou seja, palavras que não
ocorrem nas outras cartas paulinas. Exemplos disso são piedade, piedoso,
ensino sadio, sobriedade. Aqui estamos diante da língua do dia-a-dia do mundo
helenístico. O ensino helenístico da sabedoria era igualmente marcado por
essa linguagem, enquanto as outras cartas de Paulo usam um grego que deixa
transparecer o fundo hebraico. Seria possível que a linguagem do apóstolo
tivesse mudado tanto em alguns anos? Houve circunstâncias que exigiram a
adoção de outra linguagem? Para muitos estudiosos isso é impossível. Eles
preferem concluir que aqui se trata da linguagem de outro autor.
O estilo também é bem diferente do estilo das outras cartas de Paulo. É
sóbrio e calmo. Nas outras cartas vemos o apóstolo ditando a carta: ele formula
as frases, interrompe as idéias, complementa, expressa os seus sentimentos,
louva a Deus. Tudo isso não pode ser visto nas Pastorais. As frases são
concluídas com muita consciência. Em nenhum lugar as idéias são
interrompidas por intercalações. Uma quantidade razoável de adjetivos reforça
o estilo descritivo. De fato, não podemos ignorar que nas Cartas Pastorais a
linguagem e o estilo diferem substancialmente das outras cartas de Paulo. Isso
é suficiente para concluirmos que vêm de outro autor, ou haveria outra
explicação para essas constatações?

3.2. Contexto histórico


Com base nas informações das Cartas Pastorais podemos pressupor as
seguintes situações. De acordo com 1 Timóteo, Paulo viajou de Éfeso para a
Macedônia e deixou Timóteo em Éfeso. Paulo deixou com ele uma carta oficial
para organização da igreja em Éfeso. Mas Atos dos Apóstolos não menciona
esse dado, ao contrário, dá a impressão de que Timóteo viajou com Paulo de
Éfeso para a Macedônia e Grécia e depois voltou com ele para a Ásia Menor.
De acordo com a carta a Tito, Paulo esteve em Creta, evangelizou lá e deixou

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Tito cuidando da igreja para organizá-la de acordo com os princípios do
apóstolo. Atos omite isso. A segunda carta a Timóteo vem da prisão em Roma
sob condições muito difíceis, que não combinam com a descrição da prisão em
Roma no livro de Atos. Da mesma forma, os detalhes do capítulo quatro de 2
Timóteo dificilmente podem ser harmonizados com o relato de Atos. Mas esses
detalhes são tão pormenorizados que dificilmente podem ser reconstruídos de
outras cartas de Paulo e tampouco podem ser considerados pura invenção.
Poderia ser que a igreja antiga tinha razão, quando relatava que Paulo
conseguiu escapar da prisão em Roma e concretizar o seu plano de
evangelizar a Espanha, até que foi preso novamente e então executado?
Entretanto, isso não é ainda argumento contra a autoria paulina das Pastorais,
pois possivelmente temos, nas Cartas Pastorais, indicações sobre a situação
histórica após a primeira vez que Paulo esteve na prisão em Roma até os dias
imediatamente antes do seu martírio. Essa suposição é apoiada pela primeira
carta de Clemente, que relata que “ele ensinou justiça a todo o mundo e
avançou até o extremo ocidente” Da mesma forma o Cânon Muratóri
pressupõe a viagem do apóstolo para a Espanha. Nesse caso, é preciso
admitir que antes da viagem para a Espanha, Paulo ainda tenha ido ao oriente
mais uma vez, como pressupõem as Cartas Pastorais.

3.3 As condições das igrejas


Quanto a esse aspecto muitos estudiosos crêem ter uma evidência para
a época pós-apostólica. Na sua concepção, na época de Paulo os serviços e
ministérios na igreja eram dependentes dos dons carismáticos. Nas Cartas
Pastorais, ainda na opinião desses estudiosos, os ministros dos dons já se
tornaram ministros oficiais, como, por exemplo, bispos, diáconos e viúvas da
igreja. Os profetas movidos pelo Espírito de Deus só foram citados de
passagem. Os bispos já eram, em parte, profissionais e eram pagos pelo seu
trabalho. A sua missão principal era conduzir a batalha contra as heresias. Isso
sinaliza a época do final século I e começo do II. De forma semelhante era a
situação com as viúvas da igreja. Estavam se dedicando acima de tudo à
oração e viviam em absoluta abstinência sexual, o que não teria acontecido na
época de Paulo.

3.4 Teologia
Também na teologia defendida nas Cartas Pastorais haveria uma
diferença significativa em relação à teologia de Paulo. Nessas cartas o evento
da salvação estaria descrito com termos que não aparecem em outras cartas
de Paulo. Por exemplo, a manifestação da graça salvadora de Deus; a
manifestação da benignidade de Deus e do seu amor por todos os homens; a
manifestação da glória do nosso grande Deus e Salvador Cristo Jesus; a

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imortalidade de Deus; Jesus Cristo que destruiu o poder da morte e que trouxe
à luz a vida e a imortalidade mediante o evangelho. Mais exemplos poderiam
ser citados. Também a experiência cristã teria conotações diferentes aqui: se
nas outras cartas de Paulo o mais importante era a prática da fé no sentido da
confiança em Jesus Cristo, nas Pastorais o mais importante seria o conteúdo
correto da fé, ou o ensino correto. O mais importante aqui seria a piedade, o
ensino correto, boas obras e uma vida correta na sociedade. A dinâmica dos
primeiro anos do cristianismo teria dado lugar à tradição. Somando todos esses
argumentos, parece inevitável concluirmos que as Cartas Pastorais não podem
ter sido escritas pelo apóstolo Paulo. Essa conclusão é tida como resultado
definitivo na ciência da introdução ao NT.

4. Argumentos a favor da autenticidade


4.1 Gênero literário
As considerações sobre o vocabulário exclusivo são pertinentes. As
informações sobre a estatística das palavras também precisam ser levadas a
sério, mas a sua importância não pode ser exagerada, pois é possível
demonstrar que existem “vocábulos exclusivos” nas outras cartas de Paulo. A
razão é óbvia: as cartas do apóstolo Paulo são escritos para situações bem
concretas e específicas. Em virtude das condições de cada igreja e dos
opositores que a ameaçam, cada carta recebe uma linguagem com perfil
próprio. Apesar disso, ainda restam dificuldades em relação à linguagem e o
estilo a serem tratadas, em virtude do grande número de “vocábulos
exclusivos”. É muito difícil tentar resolvê-las sem a suposição de que Paulo
tenha usado os serviços de outro secretário para a redação dessas cartas.
Talvez Paulo lhe tenha dado mais liberdade em virtude das condições na
prisão, e, por isso, a linguagem das Cartas Pastorais tenha recebido maior
influência do secretário do que as outras cartas que o apóstolo podia ditar
literalmente. Estudiosos renomados optaram por essa solução, que é razoável.

4.2 Contexto histórico


Todo estudioso das Cartas Pastorais que quiser continuar defendendo a
autoria apostólica, precisa optar entre dois caminhos: ou tenta achar formas
para encaixar os dados históricos na cronologia de Atos ou precisa partir do
pressuposto de segundo aprisionamento de Paulo em Roma, da mudança dos
planos de viagem, de uma viagem do apóstolo ao oriente e da viagem para a
Espanha. Atos dos Apóstolos não menciona esses fatos, porque o livro
presumivelmente já tinha sido concluído nessa época. Quem parte da autoria
apostólica tem a seu favor os detalhes biográficos das Cartas Pastorais, que,
se forem consideradas obras de um imitador, são insignificantes e, portanto

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impossíveis. Em geral, os exegetas que contestam a autoria apostólica, não
entram em detalhes nessas questões, pois lhes seria muito difícil explicá-las.

4.3 Condições das igrejas


A afirmação repetida de que, nas Cartas Pastorais, as igrejas tinham os
cargos oficiais mais bem definidos, não resiste a uma análise mais profunda
dos textos. As funções de presbítero (bispo) e diácono já são citadas em
Filemom 1.1. Que anciãos e presbíteros (bispos) são termos diferentes para a
mesma função fica claro em Atos 20.17,28. Se nas Cartas Pastorais se fala do
presbítero (bispo) e do diácono no singular, isso não significa que cada igreja
era dirigida somente por um presbítero (bispo). Os textos em questão não
dizem nada sobre a constituição das igrejas. Eles só fazem a descrição das
qualificações necessárias para a consagração de presbíteros (bispos) e
diáconos. Que se trata aqui de um colegiado de presbíteros (bispos) ou de
diáconos é evidente. Até os honorários pastorais são citados por Paulo em
suas cartas mais antigas. Da mesma forma, Paulo já deu orientações sobre as
viúvas nos seus primeiros escritos. Com base nos aspectos citados acima, as
condições nas igrejas da época não podem ser usadas como argumentos
contra a autoria apostólica.

4.4 Teologia
As supostas diferenças teológicas entre as Cartas Pastorais e as outras
cartas de Paulo também não são consistentes quando submetidas a uma
análise mais profunda. A manifestação da graça de Deus por meio de Jesus
Cristo como fundamento de todo o ensino cristão pode ser achado aqui, como
em todas as cartas de Paulo. Quando trata da fé, o autor enfatiza mais a
formulação à qual se chegara naquela época, mesmo que Paulo já tivesse
argumentado de forma semelhante anteriormente em outras cartas. Isso é
compreensível, quando refletirmos sobre o fato de que o ministério do apóstolo
estava chegando ao fim e ele precisava delegá-lo ao seu discípulo. Mesmo em
vista do relacionamento dos cristãos com o Estado romano é possível descobrir
declarações semelhantes na carta de Romanos. O desenvolvimento do Estado
romano em inimigo da Igreja de Jesus Cristo, como é descrito em Apocalipse
ainda não está à vista.

5. Considerações sobre autenticidade


É impossível aceitar os detalhes biográficos como invenção consciente
de algum outro autor. Se aceitos com base na autoria paulina, são óbvios. As
diferenças na linguagem e no estilo são consideráveis e exigem a participação
significativa de um secretário. A situação histórica como pressuposição para as
Cartas Pastorais não pode ser claramente reconstruída. Por isso não é

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convincente como argumento contra a autoria apostólica. Condições das
igrejas e teologia não são fundamentalmente diferentes desses elementos nas
outras cartas de Paulo. Fato é que se pode concluir que o apóstolo Paulo
escreveu as Cartas Pastorais com a participação de um secretário,
provavelmente após o primeiro aprisionamento em Roma.

6. Considerações sobre as cartas


6. 1 I Timóteo
Por um lado, essa carta é uma correspondência pessoal do apóstolo ao
seu colaborador Timóteo. Por outro, contém orientações para a vida
eclesiástica, que Timóteo deve seguir no seu ministério. O toque pessoal e o
aspecto ministerial estão interrelacionados. É evidente que esta carta contém
informações sobre as estruturas da igreja no seu estágio inicial, que são
fundamentais para a Igreja de Jesus Cristo. As instruções do apóstolo tratam,
por exemplo, da forma das reuniões e cultos, da ordenação de novos líderes e
da convivência com os diversos grupos de pessoas na igreja. Vários aspectos
citados nessa carta também podem ser encontrados em outros textos antigos,
o que mostra que o apóstolo atribuía aos líderes da igreja responsabilidades
que também eram atribuídas a líderes na sociedade da época. As outras
orientações vêm diretamente do evangelho de Jesus Cristo e levam à
organização de novas estruturas, como as regras para as viúvas, os escravos e
os ricos. É comovente ver como o apóstolo está sempre levando em
consideração os efeitos disso tudo sobre o seu colaborador. Ele precisa buscar
na fé em Jesus Cristo a força necessária para ser exemplo e líder da igreja de
Jesus Cristo. Visto dessa perspectiva, a carta é o escrito de um conselheiro ao
seu discípulo no ministério.

6.2 II Timóteo
Essa carta tem características diferentes da primeira. É uma comovente
carta pastoral que não contém orientações para a vida da igreja. Temos a
impressão de que o apóstolo já vê o fim do seu ministério e agora quer
transmitir ao seu colaborador as coisas que, em vista da sua morte, lhe são
mais importantes. Em suma, é um testamento espiritual que tem importância
somente para o seu primeiro receptor. A carta é recomendada a todo pregador
do evangelho, que nas horas de reflexão solitária quer prestar contas a si
mesmo e tenta ouvir a avaliação de Deus sobre o seu ministério. Esse
pregador encontrará nessa carta orientações muito valiosas que o encorajarão
a se concentrar naquilo que realmente é importante e, talvez, levá-lo a
correções no seu comportamento. O estilo pessoal da carta é inconfundível. As
informações compartilhadas no capítulo 4 são surpreendentemente concretas e
reais. Os pedidos pela capa e pelos pergaminhos são compreensíveis para um

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preso que é também teólogo. Em nenhuma outra carta do NT temos uma visão
tão boa sobre o relacionamento do apóstolo com um de seus melhores
colaboradores.

6.3 Tito
Essa carta trata de temas eclesiásticos semelhantes observados em
1Timóteo, mesmo que de forma abreviada. Falta-lhe, entretanto, o calor
humano das cartas a Timóteo. Essa carta tem as características de um escrito
oficial. O que chama a atenção nessa carta são as profissões e declarações de
fé sobre a encarnação de Jesus Cristo. Uma característica especial também é
a orientação sobre a atitude do cristão em relação ao Estado. A carta se
assemelha mais a um escrito oficial do que as outras duas cartas pastorais.

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