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Gláucia Cristiani Montoro

Memórias fragmentadas: novos aportes à


história de confecção e formação do Códice
Telleriano Remensis. Estudo codicológico

Orientador:
Prof. Dr. Leandro Karnal

Co-Orientador:
Prof. Dr. Juan José Batalla
Rosado

Tese de Doutorado

Departamento de História

Instituto de Filosofia e Ciências Humanas – IFCH


Universidade Estadual de Campinas
UNICAMP

Janeiro de 2008

I
CJ.

Gláucia Cristiani Montoro

Memórias fragmentadas: novos aportes à


história de confecção e formação do Códice
Telleriano Remensis. Estudo codicológico
Tese de Doutorado apresentada ao
Departamento de História do Instituto de
Filosofia e Ciências Humanas da
Universidade Estadual de Campinas sob a
orientação do Prof. Dr. Leandro Karnal e
co-orientação do Prof. Dr. Juan José
Batalla Rosado. /
, E.T. Onde se lê: Tese de Doutorado apresentada ao Departamentode História
Este exemplar corresponde a do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de
redação final da Tese defendida e Campinas sob a or}entaçãodo Prof. Dr. Leandro Kamal e co-orientação do
aprovada pela Comissão Julgadora Prof. Dr. Juan Jose Batalla Rosado.
em 30/01/2008.
Leia-se: Tese de Doutorado apresentada ao Departamento de História do
Instituto de Fjlosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de
Campinas sob a orientação do Prof. Dr. Leandro KamaI.
---
BANCA

Prof. Dr. Leandro Kamal

Prof. Dra. Ana Raquel Marques da Cunha Martins Portugal

Prof. Dr. Eduardo Natalino dos Santos

Prof. Dra. Eliane Cristina Deckmann Fleck


/
Prof. Dr. José Alves de Preitas Neto

Janeiro de 2008

lU
FICHA CATALOGRÁFICA ELABORADA PELA
BIBLIOTECA DO IFCH - UNICAMP

Montoro, Gláucia Cristiani


M768m Memórias fragmentadas: novos aportes à história de
confecção e formação do Códice Telleriano Remensis. Estudo
codicológico / Gláucia Cristiani Montoro. - Campinas, SP : [s.
n.], 2008.

Orientador: Leandro Karnal.


Tese (doutorado) - Universidade Estadual de Campinas,
Instituto de Filosofia e Ciências Humanas.

1. Codex Telleriano-Remensis. 2. Codicologia.


3. Manuscritos, Nahuatl. 4. Pictografia mexicana. 5.
Manuscritos mexicanos. 6. Astecas - Escrita. I. Karnal,
Leandro. II. Universidade Estadual de Campinas. Instituto de
Filosofia e Ciências Humanas. III.Título.
crl/ifch

Título em inglês: Fragmented memories: a novel contribution to


the history of the creation and development of the
Codex Telleriano Remensis. A codicological study

Palavras chaves em inglês (keywords) : Codex Telleriano-Remensis


Codicology
Manuscripts, Nahuatl
Picture-writing, Mexican
Aztecs - Writing

Área de Concentração: História da América

Titulação: Doutor em História

Leandro Karnal, Ana Raquel Marques da Cunha


Banca examinadora: Martins Portugal, Eduardo Natalino dos Santos, Eliane
Cristina Deckmann Fleck, José Alves de Freitas Neto

Data da defesa: 30-01-2008


Programa de Pós-Graduação: História

IV
Índice

Agradecimentos....................................................................................................................... XV
Resumo................................................................................................................................... XIX
Abstract .................................................................................................................................. XXI

Introdução.................................................................................................................................... 1

Capítulo I – Apresentação do Códice Telleriano Remensis........................................................ 9


1. Localização, referências e publicações ................................................................................ 9
2. Conteúdos........................................................................................................................... 11
2.1. Sistema de escrita indígena e tlacuilos ....................................................................... 11
2.2. Introdução aos sistemas calendáricos......................................................................... 16
2.3. Primeira seção: Xiuhpohualli ..................................................................................... 18
2.4. Segunda seção: Tonalpohualli.................................................................................... 21
2.5. Terceira seção: Anais Históricos................................................................................ 23
2.6. Textos ......................................................................................................................... 31
3. História de Confecção ........................................................................................................ 35
3.1. Datação....................................................................................................................... 35
3.2. Proveniência ............................................................................................................... 36
3.3. Códice Vaticano A e Frei Pedro de los Ríos.............................................................. 39

Capítulo II – Composição Material ........................................................................................... 45


1. O suporte do Códice Telleriano Remensis ......................................................................... 45
1.1. Produção e exportação de papel europeu para a Nova Espanha no século XVI........ 46
1.2. Tipos de papel ............................................................................................................ 49
1.3. Fabricação do papel.................................................................................................... 50
1.4. As filigranas ............................................................................................................... 68
1.5. Síntese analítica das informações............................................................................... 90
2. Organização material.......................................................................................................... 95
2.1. Organização dos cadernos .......................................................................................... 95
2.2. Síntese analítica das informações............................................................................. 113
3. Encadernações .................................................................................................................. 116
3.1. Encadernação atual................................................................................................... 116
3.2. Encadernação removida ........................................................................................... 120
4. Foliações........................................................................................................................... 132
4.1. Análise dos dados das foliações ............................................................................... 140
5. Conclusões ....................................................................................................................... 142

Capítulo III – Número de tlacuilos.......................................................................................... 145


1. O estilo Mixteca-Puebla ................................................................................................... 145
2. Os tlacuilos....................................................................................................................... 154
2.1. Análise do Xiuhpohualli........................................................................................... 164
2.2. Análise do Tonalpohualli e da Segunda parte dos Anais Históricos........................ 169

V
2.3. Análise da Migração................................................................................................. 192
3. Conclusões ....................................................................................................................... 200
Capítulo IV – Formato e organização do espaço .................................................................... 207
1. Patronagem européia ........................................................................................................ 207
2. A questão dos protótipos .................................................................................................. 212
3. Xiuhpohualli..................................................................................................................... 216
4. Tonalpohualli ................................................................................................................... 227
5. Anais Históricos ............................................................................................................... 236
5.1. Múltiplas Histórias ................................................................................................... 236
5.2. Formato e organização do espaço nos códices históricos ........................................ 239
5.3. Migração................................................................................................................... 242
5.4. Segunda parte dos Anais .......................................................................................... 252
6. Conclusões ....................................................................................................................... 263

Capítulo V – Estilo dos Tlacuilos ........................................................................................... 269


1. A questão do naturalismo mexica .................................................................................... 271
2. Vínculos estilísticos.......................................................................................................... 274
3. Análise dos tlacuilos......................................................................................................... 275
Conclusões ........................................................................................................................... 323

Conclusões Finais.................................................................................................................... 327

Fontes ...................................................................................................................................... 341


1. Manuscritos ...................................................................................................................... 341
2. Códices ............................................................................................................................. 341
3. Outros ............................................................................................................................... 345

Bibliografia.............................................................................................................................. 347

VI
Índice de Figuras

Figura 1 ..................................................................................................................................... 19
Figura 2 ..................................................................................................................................... 22
Figura 3 ..................................................................................................................................... 25
Figura 4 ..................................................................................................................................... 30
Figura 5 ..................................................................................................................................... 32
Figura 6 ..................................................................................................................................... 37
Figura 7 ..................................................................................................................................... 39
Figura 8 ..................................................................................................................................... 40
Figura 9 ..................................................................................................................................... 40
Figura 10 ................................................................................................................................... 41
Figura 11 ................................................................................................................................... 41
Figura 12 ................................................................................................................................... 54
Figura 13 ................................................................................................................................... 54
Figura 14 ................................................................................................................................... 61
Figura 15 ................................................................................................................................... 62
Figura 16 ................................................................................................................................... 75
Figura 17 ................................................................................................................................... 76
Figura 18 ................................................................................................................................... 76
Figura 19 ................................................................................................................................... 77
Figura 20 ................................................................................................................................... 78
Figura 21 ................................................................................................................................... 78
Figura 22 ................................................................................................................................... 78
Figura 23 ................................................................................................................................... 80
Figura 24 ................................................................................................................................... 82
Figura 25 ................................................................................................................................... 82
Figura 26 ................................................................................................................................... 82
Figura 27 ................................................................................................................................... 84
Figura 28 ................................................................................................................................... 84
Figura 29 ................................................................................................................................... 87
Figura 30 ................................................................................................................................... 87
Figura 31 ................................................................................................................................... 89
Figura 32 ................................................................................................................................... 89
Figura 33 ................................................................................................................................... 89
Figura 34 ................................................................................................................................... 89
Figura 35 ................................................................................................................................... 90
Figura 36 ................................................................................................................................... 90
Figura 37 ................................................................................................................................... 95
Figura 38 ................................................................................................................................... 97
Figura 39 ................................................................................................................................. 102
Figura 40 ................................................................................................................................. 105
Figura 41 ................................................................................................................................. 105
Figura 42 ................................................................................................................................. 105

VII
Figura 43 ................................................................................................................................. 105
Figura 44 ................................................................................................................................. 106
Figura 45 ................................................................................................................................. 111
Figura 46 ................................................................................................................................. 116
Figura 47 ................................................................................................................................. 127
Figura 48 ................................................................................................................................. 127
Figura 49 ................................................................................................................................. 127
Figura 50 ................................................................................................................................. 127
Figura 51 ................................................................................................................................. 129
Figura 52 ................................................................................................................................. 129
Figura 53 ................................................................................................................................. 129
Figura 54 ................................................................................................................................. 129
Figura 55 ................................................................................................................................. 130
Figura 56 ................................................................................................................................. 130
Figura 57 ................................................................................................................................. 133
Figura 58 ................................................................................................................................. 135
Figura 59 ................................................................................................................................. 136
Figura 60 ................................................................................................................................. 137
Figura 61 ................................................................................................................................. 138
Figura 62 ................................................................................................................................. 139
Figura 63 ................................................................................................................................. 139
Figura 64 ................................................................................................................................. 139
Figura 65 ................................................................................................................................. 155
Figura 66 ................................................................................................................................. 155
Figura 67 ................................................................................................................................. 158
Figura 68 ................................................................................................................................. 160
Figura 69 ................................................................................................................................. 162
Figura 70 ................................................................................................................................. 163
Figura 71 ................................................................................................................................. 165
Figura 72 ................................................................................................................................. 166
Figura 73 ................................................................................................................................. 167
Figura 74 ................................................................................................................................. 170
Figura 75 ................................................................................................................................. 170
Figura 76 ................................................................................................................................. 171
Figura 77 ................................................................................................................................. 171
Figura 78 ................................................................................................................................. 172
Figura 79 ................................................................................................................................. 172
Figura 80 ................................................................................................................................. 173
Figura 81 ................................................................................................................................. 174
Figura 82 ................................................................................................................................. 175
Figura 83 ................................................................................................................................. 175
Figura 84 ................................................................................................................................. 177
Figura 85 ................................................................................................................................. 178
Figura 86 ................................................................................................................................. 180
Figura 87 ................................................................................................................................. 182
Figura 88 ................................................................................................................................. 183
Figura 89 ................................................................................................................................. 184

VIII
Figura 90 ................................................................................................................................. 185
Figura 91 ................................................................................................................................. 186
Figura 92 ................................................................................................................................. 187
Figura 93 ................................................................................................................................. 187
Figura 94 ................................................................................................................................. 188
Figura 95 ................................................................................................................................. 189
Figura 96 ................................................................................................................................. 190
Figura 97 ................................................................................................................................. 193
Figura 98 ................................................................................................................................. 194
Figura 99 ................................................................................................................................. 195
Figura 100 ............................................................................................................................... 196
Figura 101 ............................................................................................................................... 197
Figura 102 ............................................................................................................................... 199
Figura 103 ............................................................................................................................... 217
Figura 104 ............................................................................................................................... 217
Figura 105 ............................................................................................................................... 217
Figura 106 ............................................................................................................................... 217
Figura 107 ............................................................................................................................... 218
Figura 108 ............................................................................................................................... 218
Figura 109 ............................................................................................................................... 220
Figura 110 ............................................................................................................................... 220
Figura 111 ............................................................................................................................... 221
Figura 112 ............................................................................................................................... 224
Figura 113 ............................................................................................................................... 224
Figura 114 ............................................................................................................................... 225
Figura 115 ............................................................................................................................... 225
Figura 116 ............................................................................................................................... 225
Figura 117 ............................................................................................................................... 225
Figura 118 ............................................................................................................................... 225
Figura 119 ............................................................................................................................... 228
Figura 120 ............................................................................................................................... 230
Figura 121 ............................................................................................................................... 232
Figura 122 ............................................................................................................................... 232
Figura 123 ............................................................................................................................... 243
Figura 124 ............................................................................................................................... 244
Figura 125 ............................................................................................................................... 246
Figura 126 ............................................................................................................................... 247
Figura 127 ............................................................................................................................... 247
Figura 128 ............................................................................................................................... 249
Figura 129 ............................................................................................................................... 251
Figura 130 ............................................................................................................................... 254
Figura 131 ............................................................................................................................... 255
Figura 132 ............................................................................................................................... 256
Figura 133 ............................................................................................................................... 259
Figura 134 ............................................................................................................................... 260
Figura 135 ............................................................................................................................... 260
Figura 136 ............................................................................................................................... 261

IX
Figura 137 ............................................................................................................................... 262
Figura 138 ............................................................................................................................... 275
Figura 139 ............................................................................................................................... 278
Figura 140 ............................................................................................................................... 279
Figura 141 ............................................................................................................................... 279
Figura 142 ............................................................................................................................... 280
Figura 143 ............................................................................................................................... 280
Figura 144 ............................................................................................................................... 281
Figura 145 ............................................................................................................................... 281
Figura 146 ............................................................................................................................... 282
Figura 147 ............................................................................................................................... 282
Figura 148 ............................................................................................................................... 283
Figura 149 ............................................................................................................................... 284
Figura 150 ............................................................................................................................... 284
Figura 151 ............................................................................................................................... 285
Figura 152 ............................................................................................................................... 286
Figura 153 ............................................................................................................................... 288
Figura 154 ............................................................................................................................... 288
Figura 155 ............................................................................................................................... 289
Figura 156 ............................................................................................................................... 290
Figura 157 ............................................................................................................................... 291
Figura 158 ............................................................................................................................... 291
Figura 159 ............................................................................................................................... 291
Figura 160 ............................................................................................................................... 291
Figura 161 ............................................................................................................................... 292
Figura 162 ............................................................................................................................... 295
Figura 163 ............................................................................................................................... 295
Figura 164 ............................................................................................................................... 295
Figura 165 ............................................................................................................................... 296
Figura 166 ............................................................................................................................... 297
Figura 167 ............................................................................................................................... 297
Figura 168 ............................................................................................................................... 297
Figura 169 ............................................................................................................................... 298
Figura 170 ............................................................................................................................... 299
Figura 171 ............................................................................................................................... 303
Figura 172 ............................................................................................................................... 306
Figura 173 ............................................................................................................................... 306
Figura 174 ............................................................................................................................... 307
Figura 175 ............................................................................................................................... 307
Figura 176 ............................................................................................................................... 308
Figura 177 ............................................................................................................................... 308
Figura 178 ............................................................................................................................... 309
Figura 179 ............................................................................................................................... 310
Figura 180 ............................................................................................................................... 311
Figura 181 ............................................................................................................................... 313
Figura 182 ............................................................................................................................... 314
Figura 183 ............................................................................................................................... 316

X
Figura 184 ............................................................................................................................... 317
Figura 185 ............................................................................................................................... 318
Figura 186 ............................................................................................................................... 319
Figura 187 ............................................................................................................................... 320

XI
Dedico esta tese ao meu marido Marcos.

XIII
Agradecimentos

Não são poucas as pessoas e instituições a quem devo agradecer no fim dessa jornada.
Primeiramente, gostaria de oferecer meus mais sinceros agradecimentos a meus orientadores.
Agradeço ao Leandro por todo o apoio que sempre me deu, por respeitar minhas idéias,
amparar minhas decisões e compreender meus problemas pessoais. Por todo seu esforço para
que eu tivesse os recursos necessários para desenvolver a pesquisa, por disponibilizar
inclusive seu tempo livre para atender meus pedidos ou ler atentamente meus trabalhos, pelas
inúmeras cartas e documentos que me preparou e por suas orientações e conselhos sempre
muito pertinentes. Admiro sua audácia em orientar alunos como eu, que se aventuram em
temas e áreas tão estranhas ao meio acadêmico brasileiro. Suas iniciativas certamente trazem e
trarão novas perspectivas às pesquisas em História da América no Brasil.
A meu co-orientador Juanjo agradeço o cordial acolhimento em Madrid, os conselhos,
orientações e as dezenas de textos e materiais que me forneceu. Sou muito grata por ter
colocado à minha disposição todos os recursos disponíveis na Complutense e facilitar meu
acesso a outras instituições; pelas muitas burocracias que providenciou e por inserir-me no
meio científico europeu. Impressiona-me sua generosidade em compartilhar os recursos que
amealhou durante muitos anos de trabalho, como sua maravilhosa biblioteca particular e seu
acervo eletrônico, que me foram inprescindíveis. Seu apoio, sem dúvida, foi essencial para o
resultado final desta pesquisa.
Agradeço ao CNPq e à Capes pelas bolsas concedidas e a seus funcionários pelas
informações e auxílios, especialmente quando me encontrava no exterior. Também sou grata
aos funcionários da pró-reitoria de pós-graduação da UNICAMP pelo apoio. Já para com os
funcionários da secretaria de pós-graduação do IFCH tenho muitas dívidas, especialmente com
o Junior, pelas inúmeras informações e por providenciar uma infinidade de burocracias ao
longo do período de doutoramento.
Agradeço à Bibliothèque Nationale de France por ter me permitido analisar o original
do Telleiano Remensis, especialmente à ex-diretora da Seção de Manuscritos, Mme. Monique
Cohen, e ao atual diretor, M. Thierry Delcourt. Gostaria de agradecer ainda aos conservadores

XV
da sala de Manuscritos Orientais pelas informações fornecidas e amabilidade com que me
trataram.
Tive a sorte de poder contar com a amizade de um excelente codicólogo, Jesús de
Prado Plumed, que me ajudou em diversas dificuldades, me ciceroneou na Bibliothèque
Nationale de France, traduziu-me ou revisou-me documentos, indicou-me textos, esclareceu-
me dúvidas, além receber-se em sua casa quando estive estudando o manuscrito em Paris.
Considero Jesús meu terceiro orientador, pois sem ele o trabalho teria sido muito mais difícil e
penoso. Também agradeço à Frédérique pelas revisões das cartas em francês e por receber-me
sempre com tanta simpatia em sua casa.
Sou grata a Eloise Quiñones Keber pelas preciosas informações que me enviou sobre o
Telleriano Remensis. Além disso, seu trabalho me serviu como guia e espero ter trazido aqui
uma complementação à altura desse excelente material.
Aos professores Pablo Escalante Gonzalbo, Federico Navarrete Linares, Patrick
Lesbre, Ethelia Ruiz Medrano e Guilhem Olivier meus sinceros agradecimentos por enviar-me
ou fornecer-me acesso a trabalhos seus, alguns dos quais nem sequer ainda publicados.
Agradeço aos professores do Departamento de História e Antropologia do IFCH com
quem tive o privilégio de cursar disciplinas e a diversos outros professores e colegas tanto
brasileiros como europeus pelos conselhos, indicações de bibliografias e pelas várias
interessantes discussões.
Muitos foram os amigos que me auxiliaram na jornada. Agradeço especialmente à
Márcia e ao Edu pelas dezenas de favores, à Maria Yetano pelas traduções e revisões. E aos
amigos e familiares espalhados agora por muitas partes do mundo meu muito obrigado pelos
diversos favores, apoio e torcida em prol da finalização deste trabalho.
Tenho muito a agradecer a meus familiares. São nos momentos difíceis que
percebemos quão valioso é o suporte de nossa família. Ao longo de meu atribulado
doutoramento foi imprescindível o apoio que me deram, tanto do ponto de vista psicológico
como prático, pois foram inúmeros os auxílios que me prestaram, especialmente quando me
encontrava do outro lado do Atlântico ou em vias de deslocar-me para lá. Dentre todos,
aqueles a quem mais eu incomodei foram minha mãe Rosalina e meu irmão Fabiano. Mas,
nem por isso deixei de precisar da ajuda de meu pai Wagner, de meu irmão Wagner e minha
cunhada Claudia, de meu irmão Luciano e minha cunhada Stela e de meu sogro Gastão. Ao

XVI
Luciano sou grata também pelas informações técnicas e envio de artigos. Queria agradecer
ainda a meus pais, Wagner e Rosalina, pelos sacrifícios que realizaram para que seus filhos
tivessem uma boa educação. Sem sua perceverância eu não teria chegado até aqui.
E, finalmente, quero agradecer a meu marido Marcos por seu amor e apoio
incondicional. Obrigada querido por não ter medido esforços para que eu tivesse sempre todos
os recursos à minha disposição, por apoiar minhas decisões profissionais, por ter assumido
todas as responsabilidades de nossa casa para que eu pudesse me dedicar inteiramente à tese,
por amparar-me nas crises, enfim, pelas dezenas de sacrifícios que realizou em todos esses
anos e por sempre colocar-me em primeiro lugar na lista de suas prioridades. Por isso, e muito
mais, te amo de todo coração!

XVII
Resumo

Este trabalho enfoca um manuscrito de tradição indígena, chamado Códice Telleriano


Remensis, confeccionado em meados do século XVI na região central do México. Trata-se de
um documento de patronagem européia composto por um sistema de notação indígena
basicamente pictográfico e por textos em caracteres latinos.
Foram realizadas análises do documento original com o auxílio da Codicologia, uma
disciplina especializada no estudo dos manuscritos do ponto de vista material, e um estudo
pormenorizado dos escribas/ pintores ou tlacuilos. O trabalho é focado, portanto, nas
características materiais do códice (suporte, organização material, encadernações,
restaurações, etc), visando à recontrução de sua história de confecção, com enfoque no
conteúdo imagético.
A pesquisa trouxe dados importantes sobre a confecção e formação do manuscrito, que
foi realizado por vários tlacuilos, os quais se vinculam estilisticamente a distintas tradições do
México Central e mostram diversas formas de adaptar os conteúdos tradicionais indígenas ao
papel e formato de livro europeu e às necessidades dos novos usuários.
O códice é um material fascinante, de grande heterogeneidade, e as análises permitiram
demonstrar suas diversidades internas, que refletem a complexidade e pluralidade das
tradições indígenas e algumas formas de adaptá-las a materiais, convenções e concepções
ocidentais.

XIX
Abstract

The present work focuses on a manuscript of indigenous tradition called Codex


Telleriano Remensis, created in the mid sixteenth-century in the central region of Mexico. It is
a work of European sponsorship which is composed of a native notation system, basically
pictographic, and through texts in latin characters.
An analysis of the original manuscript was carried out with the help of Codicology, a
discipline that specialises on the study of manuscripts from a material perspective, as well as a
detailed study of the scribes/ painters, the so-called tlacuilos. The research is hence focused on
the material characteristics of the Codex (support, material organization, binding, restorations,
etc). The main objective of this analysis was to re-construct the history of its creation, with
special emphasis on its pictographic content.
The work developed brought important data into light regarding the history of the
creation and development of the manuscript. The task was undertaken by several tlacuilos,
which a related to different style traditions of Central Mexico and who show various forms of
adapting the traditional indigenous contents to European paper and book formats, as well as to
the needs of the new users.
The Codex itself is a fascinating working material, with a great level of heterogeneity
and, the analysis undertaken gave the opportunity to demonstrate its internal diversity,
reflecting the complexity and pluralism of indigenous traditions and some of the forms used to
adapt them to Western materials, conventions and concepts.

XXI
Introdução

O Códice Telleriano Remensis, objeto de estudo desta tese, é um exemplar entre os


muitos de tradição indígena1 produzidos durante as primeiras décadas do período colonial
mexicano. Seu conteúdo é formado por pictografias, especificamente um sistema de notação
pictográfico característico do México Central, e textos em caracteres latinos, a maioria em
castelhano, mas também algumas palavras em náhuatl2.
O manuscrito é dividido em três partes ou seções, as duas primeiras de caráter ritual-
calendárico e a última de fundo histórico. A primeira seção mostra o xiuhpohualli, ou ciclo
calendárico anual, divido em 18 festas mais uma página representando os dias adicionais; a
segunda seção aborda o tonalpohualli ou calendário ritual, de 260 dias, dividido em grupos de
treze, conhecidos como trecenas; já a terceira seção exibe a história de determinados grupos do
México Central desde seu período de migrações - um típico tema mesoamericano -, que narra os
locais onde os grupos se assentaram e alguns acontecimentos antes da fundação das cidades onde
definitivamente se estabeleceram, passando pela história de suas dinastias de governantes, suas
conquistas, desastres que se abateram sobre eles, dentre outros assuntos, até adentrarem no
período colonial, focado nas figuras do governo colonial e eclesiástico, nas pragas, eventos
astronômicos e geológicos, dentre outros. O conteúdo histórico gira em torno dos mexicas e de
outros grupos nahuas3 da região.
O TR4 freqüentemente é referido como uma miscelânea, por congregar assuntos
normalmente representados em distintos tipos de livros durante o período pré-hispânico, além de
1
Por "tradição indígena" entenda-se um manuscrito colonial onde foi empregado sistemas de notação indígena.
2
"Nauatl o nahuatl: que suena bien, que produce um buen sonido. Lengua mexicana." (RÉMI, Siméon. Op. Cit., p
305). O náhuatl era a língua falada pelas elites e possivelmente a maior parte da população das três cidades que
governavam principalmente a área central do território atual do México antes da invasão européia. O náhuatl foi
utilizado como língua franca. No período colonial foi transliterado em caracteres latinos utilizando a ortografia e
fonética do castelhano. As grafias muitas vezes possuem enormes variações, dependendo do autor que realizou as
transliterações. Isso ocorre porque há uma série de sons no náhuatl inexistentes no espanhol. Para o caso da grafia do
nome da língua usamos a forma transliterada 'náhuatl' por ser a mais comum, e em itálico por se tratar de uma
palavra estrangeira. No caso da referência aos povos falantes dessa língua utilizaremos um 'aportuguesamento',
chamando-os de nahuas, forma também usada no espanhol. A opção do itálico fica assim restrita às transliterações.
Preferimos proceder dessa forma porque ainda que algumas palavras aqui utilizadas sejam coincidentes, outras são
distintas, especialmente no que se refere ao plural. Por exemplo: tlacuiloque em náhuatl é o plural de tlacuilo, mas
usualmente em espanhol os autores preferem utilizar tlacuilos. Para o caso de nomes próprios adotaremos a grafia
mais comum sem itálico.
3
Referente aos povos que falavam a língua náhuatl. A grafia foi 'aportuguesada'.
4
Utilizo a abreviatura 'TR' para Telleriano Remensis.

1
apresentar alterações estruturais devido ao emprego do papel europeu ao invés dos suportes
autóctones, como a pele de veado e o papel de amate5. Ele e outros desses livros hoje conhecidos
como 'códices6 indígenas' eram produzidos por diversos grupos da região mesoamericana.
Contudo, foram poucos os exemplares pré-hispânicos que sobreviveram, uma vez que quase
todos foram destruídos por terem sido considerados idolátricos. A destruição indiscriminada dos
códices nos primeiros anos de colonização foi lamentada anos depois pelos próprios frades.
A maioria dos códices hoje existentes foi confeccionada durante o período colonial,
muitos deles sob o patrocínio de europeus, especialmente missionários. Esse é o caso do TR, que
data de meados do século XVI, um período onde as dificuldades lingüísticas iniciais já tinham
sido superadas e se estendia entre os frades o interesse por diversos aspectos da cultura indígena,
motivados em grande parte pela necessidade de conter as manifestações idolátricas e aumentar a
eficiência da evangelização. Esses esforços geraram dezenas de códices, hoje de extrema
importância para o estudo das culturas mesoamericanas. O entusiasmo que permeou o trabalho
dos primeiros missionários, provocado pela conversão em massa, transformou-se em
desconfiança após as primeiras décadas de colonização, impressão essa que pode ser notada em
obras como Historia General de las Cosas de Nueva España, de Frei Bernardino de Sahagún, e
Historia de las Índias de la Nueva España e Islas de la Tierra Firme, de frei Diego Durán, ambas
de meados a final do século XVI.
As culturas do México Central começaram a despertar meu interesse em 1998, motivado
pelas aulas do curso de História de América I no IFCH da Unicamp, ministradas pelo professor
Dr. Leandro Karnal. Na verdade eu nem sequer freqüentava as aulas, mas o fascínio pelas
culturas pré-hispânicas que o professor Leandro despertou nos alunos acabou por atingir-me,
porque tive acesso ao conteúdo de suas aulas e aos textos que indicava por intermédio de uma
amiga do curso de História, que me aconselhou a procurá-lo. Minha atenção voltou-se aos
códices após algumas leituras e uma conferência do professor Dr. Gordon Brotherston na
Unicamp. Além do fascínio que me foi despertado por esses documentos parecia apropriado

5
Do náhuatl amatl. Árvore da família das moráceas.
6
O termo 'códice' vem da palavra em latim codex, usada originalmente para designar pequenas tábuas enceradas
usadas pelos romanos para escrever. Passou posteriormente a designar um tipo específico de formato de livro,
composto por fólios (de papel, pergaminho ou papiro) unidos entre si por sua margem interna. O termo 'códice' foi
adicionado como um rótulo ou prefixo para intitular uma série de manuscritos no século XIX. Foi incluído também
nos manuscritos de origem mesoamericana.

2
estudá-los sob uma perspectiva multidisciplinar, para o que minha formação em Artes Plásticas
poderia ser de grande auxílio.
Mesmo não sendo especialista no assunto o professor Leandro aceitou o desafio. Naquela
altura não havia muitos livros sobre o tema na Unicamp e sequer reproduções de códices, por isso
foram necessárias diversas visitas à USP em São Paulo para ter acesso a alguns exemplares das
publicações da ADEVA e Fondo de Cultura. A dissertação de mestrado7 foi uma análise
comparativa entre as trecenas do Códice Bórgia, de origem pré-hispânica, e as do Códice
Telleriano Remensis. O objetivo principal era detectar as diferenças e semelhanças entre ambos a
fim descobrir as transformações operadas por influência européia, formulando hipóteses sobre
suas causas. Observei que as transformações mais significativas diziam respeito à forma de
organização do espaço, ocorridas principalmente devido à utilização de um suporte e formato de
livro europeu, assim como alterações realizadas em função dos novos usuários, onde se inclui o
sentido de leitura de esquerda para direita e inclusão de textos em caracteres latinos. Todas as
transformações, portanto, foram motivadas pelas novas funções e usuários do manuscrito.
Apesar de ainda estar de inteiro acordo com essas conclusões gerais, hoje tenho muitas
ressalvas sobre esse trabalho, pois já não concordo com alguns dos resultados relativos à análise
formal das imagens. No entanto, foi um passo importante, que abriu caminho para a presente tese
de doutorado.
As dificuldades encontradas nas análises da dissertação de mestrado associadas ao fato de
não ter descoberto nenhum estudo voltado às características formais e materiais dos códices
naquele período, me levaram a propor para o doutorado o desenvolvimento de uma metodologia
de análise de códices indígenas ou de tradição indígena (coloniais) da região central do México,
focada nas características materiais dos manuscritos. E como objetivo secundário a aplicação
dessa metodologia em 4 manuscritos pré-selecionados, onde estava incluído o Códice Telleriano
Remensis. As análises de códices que conhecia eram descritivas ou se baseavam especialmente
no estudo do significado das imagens, fundamentadas nos textos que acompanhavam os próprios
códices e/ou nas crônicas coloniais.
Em setembro de 2005 iniciei um estágio de doutorado na Universidad Complutense de
Madrid sob a supervisão do Prof. Dr. Juan José Batalla Rosado. Ao iniciar os trabalhos previstos

7
MONTORO, Gláucia Cristiani. Dos Livros Adivinhatórios aos Códices Coloniais: uma leitura de representações
pictográficas mesoamericanas. Dissertação de Mestrado. Campinas: UNICAMP, 2001.

3
no plano de estágio, que incluíam a freqüência em disciplinas na Facultad de Geografia e
Historia e no Museo de America, comecei a ter uma visão um pouco mais ampla sobre o estado
atual das pesquisas na área e tomei contato com a Codicologia8, uma disciplina pouco conhecida
no Brasil e que oferecia ferramentas similares às que eu tencionava desenvolver, inclusive
abordando aspectos que sequer havia imaginado estudar.
A Codicologia compartilha interesses com diversas outras ciências, o que causa
problemas na definição dos limites exatos de seu campo de estudo9. Mas, de um modo geral,
podemos arriscar defini-la como a ciência que estuda os manuscritos do ponto de vista material.
Tem como propósito uma análise minuciosa dos aspectos físicos dos manuscritos, abrangendo: o
estudo do suporte; se o mesmo contiver filigranas10, o estudo dessas filigranas; o tipo de livro;
sua organização material; encadernação; as paginações ou foliações; a composição das páginas;
dentre outros.
Assim, com o conhecimento da Codicologia os objetivos iniciais da tese deixaram de
fazer sentido, tendo sido necessário repensar e reestruturar toda a pesquisa. Também fui
percebendo com o tempo que cada manuscrito exige um tratamento e metodologia únicos, pois
ainda que compartilhem características com outros manuscritos, cada um tem suas próprias
particularidades, especialmente aqueles de origem colonial, que mostram soluções formais
bastante específicas.
No início de 2006, então, decidimos focar as análises num único manuscrito, o Códice
Telleriano Remensis, utilizando as ferramentas fornecidas pela codicologia. Devido à
importância do Códice Vaticano A11 para a história do TR foi incluído nos objetivos um estudo
da relação entre os dois, o qual foi suprimido pela banca no exame de qualificação.
A opção pelo TR foi por diversos motivos:

8
A origem do termo codicologia vem da palavra códice (codex), que se refere especificamente a um tipo de livro.
Mas, apesar do nome referir-se somente àqueles em formato de códice, essa ciência também aborda outros tipos de
livros manuscritos. Suas raízes remontam ao início do século XIX, mas foi somente no século XX que ganhou o
'status' de ciência independente. (RUIZ GARCIA, Elisa. Introducción a la Codicología. Madrid: Fundación Germán
Sánchez Ruipérez, 2002).
9
RUIZ GARCIA, Elisa. Introducción a la Codicología. Madrid: Fundación Germán Sánchez Ruipérez, 2002, p. 18.
10
“Marca d’água. Marca visível na transparência dos papéis, obtida por meio de um desenho qualquer feito de arame
de boa qualidade colocado sobre a rede do molde na fabricação do papel.” (PINHEIRO, Ana Virginia (comp.).
Glossário de Codicologia e Documentação. In: Anais da Biblioteca Nacional. Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional, v.
115, 1995, p. 124-213, 1998. Disponível em: <http://www.bn.br/fbn/bibsemfronteiras/anais/index.html> Acesso em:
23 out. 2006).
11
Alguns dos conteúdos do Códice Vaticano A são idênticos aos do TR, por isso páginas desse primeiro são usadas
para complementar aquelas que foram perdidas no segundo. Além disso, por intermédio do Vaticano A foi possível
descobrir a relação dos dois manuscritos com um frade dominicano chamado Pedro de los Ríos.

4
- Apesar do último estudo, de Quiñones Keber12, ter abrangido vários aspectos do manuscrito, a
autora deu pouca atenção às características materiais;
- O fato de já tê-lo estudado no meu mestrado facilitaria o trabalho, uma vez que o tempo restante
para a finalização do doutorado era pequeno;
- O TR é um documento importante para a compreensão das tradições indígenas e das
transformações operadas nos conteúdos13 nativos durante o período colonial; e
- Apresenta complexas e instigantes relações, especialmente do ponto de vista formal, entre suas
diversas partes.
Por outro lado, a utilização da Codicologia apresentou dificuldades adicionais à pesquisa,
uma vez que exigia que uma parte do trabalho fosse executada diretamente sobre o original. Por
isso, foi preciso providenciar os trâmites burocráticos necessários para a solicitação de acesso ao
manuscrito à Bibliothèque Nationale de France14, além de planejar o trabalho de campo.
Foram muitas as dificuldades encontradas na coleta de dados, especialmente devido ao
pouco tempo para fazê-la. A situação do códice - que sofreu graves deteriorações ao longo de sua
história (as quais causaram a separação de quase todos os seus bifólios) e duas restaurações no
século XX -, obrigaram-me a mudar as estratégias de análise durante o próprio trabalho de
campo, para que tivesse informações suficientes para a reconstrução posterior de sua organização
original.
O resultado da análise desses dados foi apresentado no exame de qualificação. Nessa
ocasião foi sugerida a eliminação de um dos capítulos e a melhor delimitação dos objetivos da
tese. Por isso, a partir de então concentrei meus esforços na reconstrução da história de confecção
do manuscrito focada particularmente no conteúdo imagético, deixando para um trabalho
posterior o estudo paleográfico. Os textos e anotações em caracteres latinos foram utilizados
somente para reforçar as hipóteses sobre o suporte, os tlacuilos15e a organização espacial e

12
QUIÑONES KEBER, Eloise. Codex Telleriano-Remensis: ritual, divination and history in a pictorial Aztec
manuscript. Austin: University of Texas Press, 1995.
13
Entendemos por conteúdo aqui as temáticas comumente representadas nos livros tradicionais indígenas.
14
Agradeço aos diretores da seção de manuscritos da Bibliothèque Nationale de France por terem me permitido
trabalhar com o TR.
15
"Tlacuilo o tlacuiloani: escritor, pintor". (RÉMI, Siméon. Diccionario de la lengua Náhuatl o mexicana. Madrid:
Siglo Veintiuno, 1992, p 581). Em náhuatl o plural de tlacuilo é tlacuiloque, mas foi usado nesse trabalho em sua
forma adaptada ao espanhol e português, onde o plural se faz adicionando o "s". Em Molina a palavra tlacuilo
sozinha é usada para designar pintor em geral:"pintor generalmente" (MOLINA, Alonso de. Aquí comienza un
vocabulario en la lengua castellana y mexicana. México: Juan Pablos, 1555, p. 196v. Disponível em:

5
estilo16 das imagens. Por outro lado, o trabalho passou a abranger aspectos que vão além dos
domínios da Codicologia, mas que considerei essenciais para a compreensão do caráter pluralista
das pictografias do TR. Foi por esse motivo que acabei por adentrar no campo das Artes. A
História sempre esteve presente, porém, limitei minhas hipóteses ao caso específico do
Telleriano, evitando as generalizações.
O estudo das caraterísticas materiais do manuscrito me permitiu demonstrar seu caráter
pluralista, que se trata de um de seus aspectos mais interessantes e desafiadores, e que na maioria
dos casos é negligenciado. Considerei essencial abordar as diversidades internas do códice,
extremamente importantes para a compreensão e interpretação dos conteúdos imagéticos e do
papel desempenhado por ele e outros manuscritos de tradição indígena no período colonial.
Ainda que esses temas gerais não tenham sido aqui abordados, uma vez que este trabalho está
restrito particularmente à história de confecção do TR, pretendemos lançar aqui as bases para
futuros estudos, quer sejam particularmente relacionados ao TR, a outros códices indígenas ou a
temas mais abrangentes.
No decorrer do trabalho foi necessário o uso de reproduções ou fotografias de diversos
outros manuscritos que possuem algum ou alguns dos assuntos abordados no TR ou
características formais que necessitava exemplificar e/ou usar nas comparações. A maioria deles
pertence à região central do México, mas também empreguei alguns de outras áreas, como
Oaxaca. Sua seleção seguiu alguns critérios gerais. O mais importante deles é que deviam ser
representantes ou herdeiros do estilo Mixteca-Puebla17 e por isso não foram usados manuscritos
da área maia, por exemplo, ou locais que apresentam um sistema de escrita distinto do empregado
pelos nahuas, nosso principal foco. Outro critério foi o período de confecção. Utilizei somente
manuscritos pré-hispânicos ou aqueles produzidos durante o século XVI por considerar que os
documentos posteriores já se encontram muito alterados do ponto de vista formal e por isso
trariam mais dificuldades que benefícios. Uma exceção é a roda calendárica Veytia, que foi
executada no início do século XVII, mas que apresentava as características das rodas calendáricas

<http://www.cervantesvirtual.com/servlet/SirveObras/scclng/57971842905139273000080/index.htm> Acesso em:


07 dez. 2007).
16
A aplicação do termo 'estilo' nesse trabalho se refere a um conjunto de determinadas características formais que
conectam as imagens do códice a imagens de outros manuscritos da região central do México e também que
diferenciam o trabalho particular de cada um dos tlacuilos.
17
Falarei sobre o estilo Mixteca-Puebla mais adiante. No momento basta saber que se trata de um estilo artístico e
iconográfico que vigorou durante o pós-clássico mesoamericano (de 900 a 1521 d. C.).

6
européias que estávamos exemplificando. Obviamente só foi possível usar reproduções ou
imagens de códices que pudemos ter acesso.
Utilizei, assim, o Códice Vaticano A, o Mendoza, o Borbônico, o Tonalamatl Aubin, o
Tudela, o Magliabechiano, Aubin, Mexicanus, Matricula de Tributos, Primeros Memoriales,
Códice Florentino, Mapa Sigüenza, Boturini, Azcatitlan, Tepechpan, Códice Xólotl, Códice em
Cruz, Códice Durán, História Tolteca Chichimeca, Mapa Cuauhtinchan 2, Roda Calendárica
Boban, Roda Calendárica Veytia, Códice Bórgia, Vaticano B, Cospi, Fejérváry Mayer, Laud,
Códice Zouche Nuttall e Vindobonensis. Ainda que não citados também consultei: Mapa
Quinatzin, Mapa Tlotzin, Mapas Cuauhtinchan 1 e 3, Códice Cozcatzin, Ixtlilxochitl, Xicotepec,
Huichapan, Códices Azoyu I e II, Moctezuma, Tlatelolco, dentre outros de menor importância.
O capítulo I é uma apresentação do códice, onde foram esclarecidos alguns aspectos
considerados relevantes sobre sua localização, história na coleção onde se encontra e publicações;
sobre cada um de seus conteúdos pictográficos e também os textos em caracteres latinos;
aspectos de sua história de confecção, quer dizer, possíveis locais de origem e provável datação;
assim como algumas breves palavras sobre sua relação com o Códice Vaticano A e o frade
dominicano Pedro de los Ríos. Também foi inserida uma introdução sobre os sistemas
calendáricos e o sistema de escrita indígena nele utilizado.
No capítulo II, o mais extenso e técnico de todos, foi abordada a análise codicológica
inicial. Nele incluí todos os aspectos da composição material do manuscrito, que abrange: o
estudo do suporte, ou seja, o papel e suas filigranas; a organização material, onde foi apresentada
uma hipótese sobre a organização dos cadernos que compõem o códice; informações obtidas
sobre suas restaurações; o estudo das duas encadernações, incluindo análise de aspectos que se
relacionam a elas, como o manuscrito Portugais 134, alguns fólios de papel com textos em
português e latim retirados de dentro das capas em sua primeira restauração; e finalmente o
estudo das foliações. Para obter informações sobre sua história e seus aspectos materiais antes das
restaurações lançei mão de diversos outros manuscritos da Bibliothèque Nationale de France e
livros e artigos publicados durante o século XIX.
O capítulo III é uma análise formal das pictografias do códice, que teve como objetivo
identificar os tlacuilos ou escribas/pintores que as realizaram. Essa identificação foi essencial
para os capítulos que se seguiram, uma vez que a partir daí foi possível compreender algumas das

7
diferenças que marcam distintas partes do códice, tanto do ponto de vista organizacional como
estilístico.
O foco do capítulo IV é a forma como os conteúdos pictográficos foram organizados e
distribuídos nas páginas do papel europeu. Esse aspecto exigiu análises distintas para cada uma
das seções, que foram também subdivididas de acordo com seu tipo de organização e distribuição
do conteúdo, uma vez que cada uma delas tem aspectos visuais e problemas particulares. Para
isso usamos os estudos existentes sobre o tema e imagens e esquemas de diversos outros
manuscritos. A exploração desse aspecto foi necessária para que se pudesse entender a
complexidade das mesclas visíveis no TR, que não se remetem somente à dicotomia
Mesoamérica-Europa, mas também às diferenças existentes entre as diversas tradições culturais
indígenas.
E, finalmente, o capítulo V, que se trata de uma análise formal das pictografias de cada
um dos tlacuilos utilizando como referência o estilo Mixteca-Puebla. O estudo teve por objetivo
determinar, dentro do possível, se esses indivíduos ainda mantinham as características
tradicionais do estilo Mixteca-Puebla e se adotaram convenções pictóricas da tradição européia. É
importante ressaltar que as divisões analíticas e classificações utilizadas têm uma função
meramente didática e que não foi minha intenção determinar 'graus' de "contaminação" européia
e sim identificar as características particulares de cada um dos tlacuilos. Esse aspecto é
importante porque ajuda a entender como cada tlacuilo enfrentou o problema da adequação dos
conteúdos tradicionais ao novo suporte e usuários.
Por fim, espero que este trabalho possa contribuir para o desenvolvimento das pesquisas
sobre a América hispânica no Brasil e que a Codicologia venha a tornar-se conhecida, agregando
novas possibilidades analíticas aos trabalhos aqui desenvolvidos. Também espero que esta tese
possa colaborar para uma compreensão mais aprofundada desse complexo e maravilhoso
manuscrito, o Códice Telleriano Remensis, e ajudar a mudar idéias que homogeinizam a
diversidade e pluralidade das culturas mesoamericanas.

8
Capítulo I – Apresentação do Códice Telleriano Remensis

1. Localização, referências e publicações

O Códice Telleriano Remensis encontra-se atualmente na Bibliothèque Nationale de


France, em Paris, no departamento de Manuscrits Orientaux, sob a designação Mexicain 385.
Como acontece com a grande maioria dos manuscritos mexicanos sua designação na coleção é
distinta do nome pelo qual é conhecido no meio científico. O termo códice, que indica o formato
do documento e sobre o qual falaremos no próximo capítulo, foi adicionado como um rótulo ou
prefixo para intitular uma série de manuscritos no século XIX.18 Já os nomes 'Telleriano
Remensis' derivam de seu último proprietário, Maurice Le Tellier, Arcebispo de Reims, que o
doou à Bibliothèque Nationale de France, na época Bibliothèque du Roi, no ano de 1700. As
circunstâncias dessa doação foram primeiramente documentadas por Nicolas Clément (Guarda da
Bibliothèque du Roi de 1692 a 171219) em carta20 dirigida ao sobrinho do arcebispo, Camile Le
Tellier, Abade de Louvois e possuidor do título de Mestre da Livraria21.
Em 1868 Léopold Delisle22 esclarece a procedência de diversos manuscritos da extensa
coleção do arcebispo23, mas não oferece qualquer pista sobre o Códice Telleriano Remensis. Sua
história antes de fazer parte da coleção de Le Tellier é até hoje desconhecida.
O primeiro registro de nosso códice aparece no inventário de manuscritos de Le Tellier24,
na página 31, onde recebe o número 14 dos manuscritos orientais. Também foi incluído no
catálogo geral de manuscritos da Bibliothèque du Roi25 (na página 108, sob o número 1616),

18
NICHOLSON, H. B. The Mesoamerican pictorial manuscripts: research, past and present. In: Akten des
34 Internationalen Amerikanistenkongresses. Viena: 1960, p. 200.
19
DELISLE, Léopold. Histoire Générale de Paris: le Cabinet des Manuscrits de la Bibliothèque Impériale. Paris:
Imprimerie Impériale, 1868. Tome I, p. 299.
20
CLÉMENT, Nicolas. Correspondance de l'Abbé de Louvois. Fr. 20052, pp. 129-135. Paris: Bibliothèque Nationale
de France, 1701. Uma parte da carta foi publicada por Delisle (DELISLE, Léopold. Op. Cit., p. 303).
21
DELISLE, Léopold. Op. Cit., p. 299.
22
DELISLE, Léopold. Op. Cit., p. 302.
23
14 volumes orientais (dentre os quais se encontra nosso códice), 111 volumes gregos, 306 latinos, 53 franceses e
16 italianos ou espanhóis (DELISLE, Léopold. Op. Cit., p. 302) e (FRANKLIN, Alfred. Les Anciennes Bibliothèques
de Paris. Paris: Imprimerie Impériale, 1870. Tome II, p. 187, nota 3).
24
CLÉMENT, Nicolas. Libri Manuscripti. MS Latin 9369. Paris: Bibliothèque Nationale de France, 1700, p. 31.
25
CLÉMENT, Nicolas. Catalogus Librorum Manuscriptorum... Bibliotecae Regiae. MS N. A. Fr. 5402. Paris:
Bibliothèque Nationale de France, 1682, p. 108

9
realizado em 1682 por Nicolas Clément. A partir de então aparece em todos os catálogos dos
fundos mexicanos de manuscritos da biblioteca, como o manuscrito de Ramirez26, de 1855, a
publicação de Omont27, de 1899, e de Galarza28, de 197429.
O TR foi apresentado ao mundo por Humboldt em 1810, em sua obra "Vues des
cordillères et monumens des peuples indigènes de L'Amérique30", onde publica 16 imagens
copiadas de suas páginas.
Foi realizado em papel e é hoje composto por 50 folhas ou fólios, onde estão
representados três temas ou assuntos de tradição indígena acompanhados de anotações em
caracteres ocidentais. Algumas páginas possuem apenas texto e um dos fólios está em branco.
Também existem algumas páginas com rabiscos e rascunhos de textos.
Em 1831 foi realizada uma publicação completa das imagens em uma das obras
financiadas por Lorde Kingsborough31, uma publicação luxuosa de grande dimensão, cujas
imagens foram reproduzidas com técnica litográfica, trabalho de A. Aglio. As anotações não
foram inseridas, com exceção dos números de anos dos anais e, por isso, em diversos casos
optou-se por reunir grupos de pinturas que se encontram em páginas distintas no original. É
importante notar que na primeira seção, do xiuhpohualli, foram reunidas de 4 a 5 imagens por
página (originalmente são uma por página) e em um dos casos onde no original a imagem foi
cortada por guilhotinamento, a página 5v, Aglio optou por não completar o desenho, o que
significa que é provável que nessa época o documento já tivesse os mesmos cortes que hoje
podem ser vistos em algumas imagens dessa seção no original.
Em 1889 foi publicada mais uma reprodução do Telleriano Remensis, dessa vez
financiada pelo Duque de Loubat32. A reprodução foi feita por fotocromografia33 e além das

26
RAMIREZ, José Fernando. Noticia de los manuscritos que se conservan em la Biblioteca Imperial de Paris. Mex.
427. Paris: Bibliothèque Nationale de France, 1855, p. 6.
27
OMONT, Henri. Catalogue des Manuscrits Mexicains de la Bibliothèque Nationale. Paris: Librairie Émile
Bouillon, 1899, p. 60.
28
GALARZA, Joaquin. Codex Mexicains. Catalogue. Bibliothèque Nationale de Paris. Paris: Musée de L'Homme,
1974, p. 60.
29
Para mais informações sobre a história da coleção veja QUIÑONES KEBER, Eloise. Op. Cit., 1995, p. 115-117.
30
HUMBOLDT, Al. de. Vues des cordillères et monumens des peuples indigènes de L'Amérique. Paris: F. Schoell,
1810.
31
KINGSBOROUGH, Lord. Antiquities of México: comprisig Fac-similes of Ancient Mexican Paintings and
Hieroglyphics. Vol. I. London: Robert Havell, 1831.
32
HAMY, E.-T. Codex Telleriano-Remensis: Manuscrit Mexicain du cabinet de Ch. M. Le Tellier, archevêque de
Reims à la Bibliothèque Nationale (Ms. Mexicain n° 385). Paris: Bibliothèque Nationale, 1889. Bibliothèque
Nationale, 1889.

10
imagens foram também incluídas as anotações. Nessa edição igualmente é possível ver os cortes
provocados pelo guilhotinamento no xiuhpohualli34.
Nas duas publicações citadas aparece o mesmo número de imagens que hoje existe no
códice, indicando que pelo menos desde o início do século XIX não perdeu nenhum fólio.
Humboldt35 faz referência a 96 páginas ao invés das 100 que hoje possui (apesar de nem todas
conterem conteúdos). Quiñones Keber36 acredita que esse autor omitiu na contagem o fólio 35,
em branco, e as três páginas finais de cada uma das seções, que contêm rabiscos ou possíveis
testes de pena37. No entanto, elas totalizariam 5 páginas omitidas e não 4. É possível que
Humboldt tivesse contado alguma das páginas finais, a 24v possivelmente, porque possui textos
mais extensos (veja Figura 2).
Também há uma publicação de 1964, com comentários de José Corona Núñez, onde
foram reproduzidas fotografias da publicação anterior38.
E, finalmente, a excelente reprodução fotográfica da University of Texas39, de 1995,
acompanhada de um estudo de Quiñones Keber40.

2. Conteúdos

2.1. Sistema de escrita indígena e tlacuilos

Durante muito tempo afirmou-se que o continente americano era desprovido de uma
'escrita plena', pois o uso de um código lingüístico era a base para a definição de escrita. Hoje
sabemos que sistemas baseados em uma língua registram somente uma parte limitada do discurso

33
Técnica litográfica a partir de fotografias coloridas.
34
Fotos da publicação podem ser acessadas no site: http://www.famsi.org/spanish/research/loubat/
35
HUMBOLDT, Al. de. Vues des cordillères et monumens des peuples indigènes de L'Amérique. Paris: F. Schoell,
1810, p. 279.
36
QUIÑONES KEBER, Eloise. Op. Cit., 1995, p. 117.
37
QUIÑONES KEBER, Eloise. Op. Cit., 1995, p. 123.
38
QUIÑONES KEBER, Eloise. Op. Cit., 1995, p. 119.
39
QUIÑONES KEBER, Eloise. Op. Cit 1995.
40
Para maiores informações sobre as publicações veja QUIÑONES KEBER, Eloise. Op. Cit., 1995, p. 117-119.

11
falado e que a dicotomia entre escrita e arte das sociedades modernas ocidentais nunca existiu no
continente americano.41
Grube e Arellano Hoffmann explicam que os sistemas de escrita ou notação são
classificados em dois grupos: 'sistemas glotográficos' e 'sistemas semasiográficos'. Os primeiros
são baseados em uma língua enquanto os segundos "…anotan 'significados' en forma directa
mediante un sistema de signos permanentes y convencionalizados, sin pasar por un código
lingüístico. (…) Los signos de un sistema semasiográfico (…) tienen una disposición
determinada y una sintaxis que se ajustan a un sistema de reglas que hay que aprender"42.
A maioria dos sistemas de registro mesoamericanos, como o nahua, é uma combinação de
ambos os sistemas, glotográficos e semasiográficos. Nos códices nahuas e mixtecas43 não existe a
diferenciação entre imagens e textos.
A coexistência de um grande número de línguas e famílias lingüísticas num espaço
geográfico pequeno pode explicar a pouca utilização dos sistemas glotográficos. Seu uso teria
limitado a comunicação entre os grupos, atrapalhando a validação de exigências políticas,
históricas e tributárias, pois as raízes da escrita parecem estar relacionadas à legitimação pública
do poder do soberano em forma de uma complexa iconografia religiosa44. "Para aquel mundo
'internacional', la pictografía funcionó como un medio de comunicación que era inteligible entre
hablantes de diferentes lenguas. Tal comunidad plurilingüe necesitaba precisamente de un
sistema de escritura no fonética."45
König46 divide os elementos da escrita mixteca, também aplicada à nahua, em três
categorias: pictogramas (signos que representam objetos claramente identificáveis), logogramas

41
GRUBE, Nikolai; ARELLANO HOFFMANN, Carmen. Escritura y literalidad en Mesoamérica y en la región
andina: una comparación. In: ARELLANO HOFFMANN, Carmen (coord.) et. al. Libros y escritura de tradición
indígena: ensayos sobre los códices prehispánicos y coloniales de México. Toluca (México): El Colegio
Mexiquense; Universidad Católica de Eichstätt, p. 27-72, 2002, p. 29-32.
42
GRUBE, Nikolai; ARELLANO HOFFMANN, Carmen. Op. Cit., p. 33.
43
Mixtecatl: habitante de la prov. de Mixtecapan; plural mixteca. (RÉMI, Siméon. Op. Cit., p 280). Na grafia
usaremos sempre um 'aportuguesamento': mixteca para singular e mixtecas para plural.
44
GRUBE, Nikolai; ARELLANO HOFFMANN, Carmen. Op. Cit., p. 40-45.
45
JANSEN, Maarten. Una mirada al interior del templo de Cihuacóatl. Aspectos de la función religiosa de la
escritura pictórica. . In: ARELLANO HOFFMANN, Carmen (coord.) et. al. Libros y escritura de tradición indígena:
ensayos sobre los códices prehispánicos y coloniales de México. Toluca (México): El Colegio Mexiquense;
Universidad Católica de Eichstätt, p. 279-325, 2002, p. 284.
46
KÖNIG, Viola. La escritura mixteca. In: ARELLANO HOFFMANN, Carmen (coord.) et. al. Libros y escritura de
tradición indígena: ensayos sobre los códices prehispánicos y coloniales de México. Toluca (México): El Colegio
Mexiquense; Universidad Católica de Eichstätt, p. 109-155, 2002, p. 117-120.

12
ou ideogramas47 (pictogramas em sentido figurado ou que evocam uma idéia ou conceito) e
pictogramas ou logogramas glotográficos48 (uso de signos para representar palavras, silabas ou
sons). Muito embora se trate de um registro híbrido, a maioria dos autores49 prefere designá-lo
utilizando o termo 'pictográfico'. Essa preferência ocorre porque a escrita nahua se trata de um
sistema essencialmente pictográfico, como afirma Nicholson50. Para Escalante Gonzalbo:

"El sistema de registro de los códices mesoamericanos que conocemos, excepto los mayas, se
compone de tres elementos básicos: a) figuras que representan seres humanos, animales, plantas y
objetos, llamados pictogramas; b) signos que expresan ideas, denominados ideogramas, y c)
signos con valor fonético. A estos dos últimos se les suele dar el nombre de glifos, grifos
ideográficos y glifos fonéticos. (…) Los mensajes básicos transmitidos por los códices se
formulan por medio de pictogramas y son complementados con los glifos ideográficos. Los glifos
fonéticos son escasos y se utilizan por lo general para precisar la pronunciación de los locativos.
Por eso definimos el sistema de registro de los códices como predominantemente pictográfico,
con un complemento ideográfico y un incipiente fonetismo.51

Como entre os autores mexicanos é bastante comum o uso dos termos 'pictograma' e
52
'glifo ' para designar os elementos que constituem o sistema de registro nahua, decidimos adotá-
los neste trabalho.
Nos códices do chamado estilo Mixteca-Puebla, com os quais o TR está conectado, a
figura humana ocupa um papel central. Em nosso códice aparecem representadas na forma de
deuses ou de soberanos, guerreiros, sacerdotes, dentre outros, cujos gestos, vestimentas, adereços
e relações com outros elementos possuem um significado convencional. Como explica Escalante
Gonzalbo: "...si bien estos manuscritos contenían una serie de figuras y signos susceptibles de
interpretación sin otro auxilio que el conocimiento del código correspondiente, también es cierto
que no podían entenderse de manera completa sin recurrir a un saber que formaba parte de la

47
Os ideogramas não deixam de ser signos pictográficos.
48
Também chamados fonogramas.
49
Em textos na língua inglesa os autores utilizam tanto "pictographic writing system" como "pictorial system".
50
NICHOLSON, H. B. Op. Cit. 1960, p. 202.
51
ESCALANTE GONZALBO, Pablo. Los Códices. México: Consejo Nacional para la Cultura y las Artes, 1999.
Disponível em: <http://copernico.mty.itesm.mx/phronesis/archi_txt/codices.txt> Acesso em: 10 dez. 2007.
52
No caso de textos em inglês alguns autores, como Quiñones Keber, preferem empregar "place signs" ou "name
signs", enquanto outros usam "glyphs", como Pasztory (PASZTORY, Esther. Aztec Art. New York: University of
Oklahoma Press, 1983).

13
tradición oral53. A memória dos usuários devia, então, complementar ou enriquecer as
informações.
Devido ao caráter fortemente icônico da maioria dos signos logográficos até mesmo as
pessoas mais simples deviam compreender uma parte das informações presentes nos edifícios e
monumentos públicos, segundo afirma Grube e Arellano Hoffmann54, porém, uma compreensão
mais ampla e a produção dos livros estavam restritas somente a uma pequena parcela da
população, os membros da elite ou pipiltin55, especialmente aqueles das dinastias de tlatoque56:

"Los herederos directos eran, sin duda, los receptores principales de la tradición pues eran
los que más interés tenían por conocerla y preservarla en vista de que eran quienes más ventajas
podían derivar de ella. Es probable que fueron ellos los únicos que conocían la tradición en su
totalidad, incluidos ciertos aspectos privados o esotéricos de la misma." 57

A elaboração dos livros ficava a cargo dos tlacuilos, que possivelmente recebiam
educação e aprendizado nos colégios chamados Calmecac. Em vista da importância dos livros
para as sociedades mesoamericanas, onde a escrita era promovida tanto em contextos religioso/
adivinhatórios como em administrativo/ estatais, é provável que os tlacuilos gozassem de bastante
prestígio58. Nesse sentido, Boone59 cita uma carta de Ramírez de Fuenleal, presidente da primeira
Real Audiência de México, onde afirma que os pintores, escribas e cantores estavam isentos do
pagamento de impostos porque "...they were transmitters of native histories and beliefs, and were
'wise and highly esteemed'".

53
ESCALANTE GONZALBO, Pablo. Los Códices. México: Consejo Nacional para la Cultura y las Artes, 1999.
Disponível em: <http://copernico.mty.itesm.mx/phronesis/archi_txt/codices.txt> Acesso em: 10 dez. 2007.
54
GRUBE, Nikolai; ARELLANO HOFFMANN, Carmen. Op. Cit., p. 46.
55
Plural de pilli: "hidalgo, noble, señor, grande, hombre de calidad. (RÉMI, Siméon. Op. Cit., p. 383).
56
"Tlatoqui: jefe, gran señor. Plural: tlatoque (RÉMI, Siméon. Op. Cit., p. 681).
57
NAVARRETE LINARES, Federico. Mito, historia y legitimidad política: las migraciones de los pueblos del Valle
de México. Tesis doctoral. México, D. F.: UNAM, 2000, p. 37.
58
ARELLANO HOFFMANN, Carmen. El escriba mesoamericano y sus utensilios de trabajo. La posición social del
escriba antes y después de la conquista española. In: ARELLANO HOFFMANN, Carmen (coord.) et. al. Libros y
escritura de tradición indígena: ensayos sobre los códices prehispánicos y coloniales de México. Toluca (México):
El Colegio Mexiquense; Universidad Católica de Eichstätt, p. 117-256, 2002, p. 224.
59
BOONE, Elizabeth Hill. Aztec Pictorial Histories: records without words. In: BOONE, Elizabeth Hill;
MIGNOLO, Walter D. (editores). Writing without words: alternative literacies in Mesoamerica & the Andes.
Durham and London: Duke University Press, p. 50-76, 1994, p. 56.

14
Tudo indica que entre os tlacuilos havia especializações, ou seja, diversos campos de
atuação, pelo menos é o que se pode interpretar das informações dos cronistas e dos diversos
nomes referidos por Molina60 em seu dicionário. Como refere Arellano Hoffmann61, ainda que
tenham criado termos em náhuatl para a designação de funcionários do período colonial, algumas
distinções não fazem sentido no âmbito da administração espanhola, sugerindo campos de
atuação mexica62 hoje desconhecidos. A mesma ocorrência foi constatada na área maia63. Além
disso, alguns cronistas, dentre eles Ixtlilxochitl, falam sobre distintos tipos de livros e pintores:

"…porque tenían para cada género sus escritores, unos que trataban de los Anales poniendo por su
orden las cosas que acaecían en cada un año, con día, mes y hora. Otros tenían a su cargo las
genealogías y descendencias de los Reyes y Señores y personas de linaje, asentando por cuenta y
razón los que nacían: y borraban los que morían, con la misma cuenta. Unos tenían cuidado de las
pinturas de los términos, límites y mojoneras de las ciudades, provincias, pueblos y lugares, y de
las suertes y repartimientos de tierras, cuyas era y á quién pertenecían. Otros de los libros de las
leyes, ritos y ceremonias que usaban en su infidelidad; y los sacerdotes de los templos de sus
idolatrías y modo de su doctrina idolátrica, y de las fiestas de sus falsos dioses y calendarios. Y
finalmente los filósofos y sabios que tenían entre ellos, estaba á su cargo pintar todas las ciencias
que sabían y alcanzaban, y enseñar de memoria todos los cantos que observaban sus ciencias é
historias…"64

No início do período colonial os indígenas continuaram pensando em 'termos visuais'65, e


apesar da destruição em larga escala ainda seguiram produzindo e utilizando muitos de seus
livros. Os tlacuilos trabalharam como auxiliares de cronistas e missionários espanhóis, na
administração das comunidades, ou mesmo na realização de documentos sob demanda, como os
jurídicos, por exemplo, pois a partir de 1532 a Segunda Audiência passou a aceitar pinturas como

60
MOLINA, Alonso de. Aquí comienza un vocabulario en la lengua castellana y mexicana. México: Juan Pablos,
1555. Disponível em:
<http://www.cervantesvirtual.com/servlet/SirveObras/scclng/57971842905139273000080/index.htm> Acesso em:
07 dez. 2007.
61
ARELLANO HOFFMANN, Carmen. Op. Cit., p. 227.
62
"Mexicatl: mexicano, habitante de Mexico; plural mexica". (RÉMI, Siméon. Op. Cit., p. 271). Usamos uma forma
'aportuguesada': mexica para singular e mexicas para plural.
63
ARELLANO HOFFMANN, Carmen. Op. Cit., p. 228.
64
IXTLILXOCHITL, Fernando de Alva. Obras Históricas. Tomo II - Historia Chichimeca. México: Editora
Nacional, 1965, p. 17-18.
65
BOONE, Elizabeth Hill. Op. Cit., 1994, p. 58.

15
provas em litígios.66 Nesse período "...deben haberse seguido transmitiendo los conocimientos
sobre los códices y la preparación de los utensilios para la escritura, y tal vez fueron ampliados
por el aprendizaje y apropiación de técnicas europeas."67

2.2. Introdução aos sistemas calendáricos

Os grupos indígenas mesoamericanos utilizavam basicamente dois ciclos calendáricos que


se combinavam. Um desses ciclos, de 260 dias, é homogêneo em toda a região, enquanto o outro,
de 365, apresenta algumas variações, de acordo com o grupo a que pertence68. O primeiro é
chamado tonalpohualli (cômputo dos dias) e o segundo xiuhpohualli (cômputo do ano).
O xiuhpohualli ou calendário solar compreende um período de 365 dias. É formado por 18
"meses" de 20 dias mais cinco dias adicionais, chamados nemontemi69, totalizando 365. Esse
ciclo é conhecido também como veintenas, nome que recebeu dos espanhóis. Cada um desses
"meses" ou veintenas recebia um nome, relativo à festa ou festas que ocorriam durante esses
períodos. No Códice Telleriano Remensis (e Vaticano A) esses "meses" ou festas seguem a
seguinte ordem70: Atlcahualo (também chamado Quauitleoa), Tlacaxipehualiztli, Tozoztontli,
Uey tozoztli, Toxcatl, Etzalqualiztli, Tecuilhuitontli, Uey tecuilhuitl, Tlaxochimaco, Xocotl huetzi,
Ochpaniztli, Teotleco, Tepeilhuitl, Quecholli, Panquetzaliztli, Atemoztli, Tititl, Izcalli e os cinco
dias nemontemi71.

66
NOGUEZ, Xavier. Los códices de tradición náhuatl del centro de México en la etapa colonial. In: ARELLANO
HOFFMANN, Carmen (coord.) et. al. Libros y escritura de tradición indígena: ensayos sobre los códices
prehispánicos y coloniales de México. Toluca (México): El Colegio Mexiquense; Universidad Católica de Eichstätt,
p. 157-183, 2002, p. 167-168.
67
ARELLANO HOFFMANN, Carmen. Op. Cit., p. 250.
68
AYALA FALCÓN, Maricela. La escritura, el calendário y la numeración. In: MANZANILLA, Linda (coord.);
LÓPEZ LUJÁN, Leonardo (coord.). Historia Antigua de México. Vol. IV, p. 145-187. México: INAH; UNAM;
Miguel Ángel Porrúa, 2001, p. 168.
69
Os nemontemi são referidos por alguns cronistas, como Durán (DURÁN, Fr. Diego. Historia de las Indias de
Nueva España y Islas de Tierra Firme. México: Editora Nacional, 1967, tomo II, p. 257 e 305) e Sahagún
(SAHAGÚN, Fr. Bernardino de. Historia General de las Cosas de Nueva España. México: Editorial Porrua, 1969,
tomo I, p. 132), como "días aciagos" ou de mau agouro.
70
As festas costumam possuir sempre a mesma seqüência, mas de qualquer forma utilizamos as do Códice Vaticano
A (onde esse conteúdo é idêntico ao do TR) como referência para o caso das que foram perdidas em nosso códice (as
6 primeiras).
71
Preferimos utilizar a grafia das festas fornecida por Sahagún por ser uma das mais aceitas. O Telleriano Remensis
apresenta algumas pequenas variações na transliteração do náhuatl aos caracteres ocidentais (SAHAGÚN, Fr.

16
Já o tonalpohualli, ciclo de 260 dias, é o resultado da combinação de 20 signos (tonalli72)
com 13 números, representados mediante pontos ou círculos, no caso dos manuscritos da região
que nos interessa, onde cada um é equivalente a um número 1. Os signos são: cipactli (animal
mitológico parecido com um jacaré), ehécatl (vento), calli (casa), cuetzpallin (lagarto), cóatl
(serpente), miquiztli (morte), mázatl (veado), tochtli (coelho), atl (água), itzcuintli (cachorro),
ozomatli (macaco), malinalli (erva torcida), ácatl (cana), océlotl (jaguar), quauhtli (ou cuauhtli -
águia), cozcaquauhtli (ou cozcacuauhtli - zopilote, espécie de urubu), ollin (movimento), técpatl
(faca de pedernal/ sílex), quiahuitl (chuva) e xóchitl (flor). A seqüência das combinações era feita
da seguinte forma: 1 cipactli, 2 ehécatl, 3 calli... 12 malinalli, 13 ácatl, 1 océlotl, 2 quauhtli, 3
cozcaquauhtli... assim por diante, até a realização de todas as combinações, totalizando os 260
dias73.
O tonalpohualli é representado de várias formas nos códices pré-hispânicos, porém, a
mais comum é a distribuição em "trecenas" ou grupos de treze. Esse é o caso do tonalpohualli do
Telleriano Remensis, segundo assunto do códice.
O ciclo de 365 dias combinava-se com o de 260 formando o xiuhmolpilli, também
chamado de "Rueda calendárica"74 ou "Atadura de años"75. Devido aos cinco dias no final de
cada ano, os nemontemi, somente 4 signos iniciavam o ano solar76 - eram chamados 'portadores
de anos'. Entre os nahuas do pós-clássico os signos portadores eram: ácatl, técpatl, calli e tóchtli.
Em nosso códice eles são utilizados como base para a organização dos anais históricos, último
assunto do manuscrito. A seqüência era feita com a intercalação dos signos combinados com 13
números (representados por círculos) da seguinte forma: 1 ácatl, 2 técpatl, 3 calli, 4 tóchtli, 5
ácatl...13 ácatl, 1 técpatl, 2 calli...13 técpatl, 1 calli... assim por diante.

Bernardino de. Historia General de las Cosas de Nueva España. México: Editorial Porrua, 1969, tomo I, p. 109-
132).
72
Angel M. Garibay afirma na introdução do Livro IV de Sahagún que cada um dos vinte signos do tonalpohualli
recebe em náhuatl o nome de tonalli, um vocábulo de ampla extensão. Uma de suas possíveis traduções é a de
"destino" ou "sino" (sina, sorte). Portanto, diz que tonalpohualli significa "cuenta de los destinos" ou "cuenta de los
sinos". (SAHAGÚN, Fr. Bernardino de. Historia general de las cosas de la Nueva España. 10ª ed. México: Editorial
Porrúa, 1999, tomo I, p. 216).
73
Grafia em náhuatl de: SAHAGÚN, Fr. Bernardino de. Historia General de las Cosas de Nueva España. México:
Editorial Porrua, 1969, tomo I, p. 317-368.
74
TENA, Rafael. El calendario mesoameriano. In: Arqueología Mexicana. México: v. VII, n. 41, p. 4-11, 2000.
75
LEÓN-PORTILLA, Miguel. Literaturas indígenas de México. Madrid: Editorial Mapfre, 1992.
76
AYALA FALCÓN, Maricela. Op. Cit., p. 171.

17
2.3. Primeira seção: Xiuhpohualli

A primeira das três seções ocupa ambas as páginas do fólio 1 ao 6 e a página de frente do
fólio 7, ou seja, da página 1r a 7r (veja exemplos na Figura 1). No verso do fólio 7 (7v) não foi
desenhado nenhum conteúdo indígena. Inicialmente devia estar em branco, mas com o tempo
recebeu alguns rabiscos e palavras que podem ser testes de pena77 (última imagem da Figura 1).

77
QUIÑONES KEBER, Eloise. Op. Cit., 1995, p. 123.

18
Xiuhpohualli: 6a festa, p. 1r Xiuhpohualli: 10a festa, p. 3r Xiuhpohualli: 12a festa, p. 4r

Xiuhpohualli: 15a festa, p. 5v Xiuhpohualli: nemontemi, p. 7r Página 7v

Figura 178

Essa seção aborda o xiuhpohualli ou veintenas, cujo sistema já esboçamos acima. No TR


cada uma das festas ocupa o lado superior de uma página, enquanto a parte inferior foi reservada
para textos em caracteres latinos. A seção está incompleta, pois faltam suas 6 primeiras festas,
que deviam ocupar ainda 3 fólios, frente e verso, no início do códice e antes do fólio que hoje
recebe o número 1.

78
Todas as imagens do TR nesta tese são digiditalizações do fac-similar da University of Texas: QUIÑONES
KEBER, Eloise. Op. Cit., 1995.

19
Não existe nenhum exemplo pré-hispânico de representação das veintena, por isso, e
porque foram pintadas de modos muito díspares, uma vez que apresentam diferenças tanto do
ponto de vista pictográfico ou glífico como na forma como são organizadas e distribuídas, alguns
autores, como Brown79, afirmam que essa organização do calendário em "meses" se trata de uma
criação colonial.80
Há diversas representações e descrições das veintenas do século XVI, mostrando que
havia um grande interesse nesse tipo de subdivisão anual, especialmente por parte dos
missionários. Eles tentavam entender as festas realizadas nesses períodos e fazer correlações dos
sistemas indígenas com o calendário europeu, porém, muitos não foram capazes de compreendê-
lo, principalmente porque pensaram que era homogêneo em todas as áreas. Desse modo
mesclaram dados e sistemas inteiros de distintas procedências81.
Até mesmo Sahagún teve problemas para realizar as correlações, pois confessa em seu
livro sétimo: "Es de notar que discrepan mucho en diversos lugares del principio del año. En unas
partes me dijeron que comenzaba a tantos de enero; en otras que a primero de febrero; en otras
que a tantos de marzo."82 Aparentemente seus informantes forneciam distintos dados, como pode
ser notado em uma carta enviada ao frade por um de seus colaboradores:

"Vd. Preguntaba donde y cuándo empezaban los antiguos el año. Yo pedi y vi sus libros;
ciertamente ellos lo dicen, ciertamente allí lo empiezan, lo inician en la veintena 'Cuahuitl Ehua'
(...) Y 'Cuahuitl Ehua', así lo hemos pensado y lo hemos visto, allí empieza cuando es el día 27 del
mes de febrero (…) Y dicen que el año empieza precisamente cuando sale el sol. (…) Oh
preciado, oh reverendo padre, así lo dicen los viejos que aún viven. Pero ciertamente en México,
en el que Vd. está, nunca allí se ha conocido bien."83

79
BROWN, Betty Ann. European Influences in Early Colonial Descriptions and Illustrations of the Mexica Monthly
Calendar. Ph. D. dissertation. University of New México, 1977.
80
Abordaremos essa questão mais adiante.
81
JANSEN, Maarten. El códice Ríos y Fray Pedro de los Ríos. In: Boletin de Estudios Latinoamericanos y del
Caribe. Leiden (Holanda): n. 36, pp. 69-81, junio de 1984, p. 74.
82
SAHAGÚN, Fr. Bernardino de. Historia General de las Cosas de Nueva España. México: Editorial Porrua, 1969,
tomo II, p. 274.
83
DÍAZ RUBIO, Elena; BUSTAMANTE GARCÍA, Jesús. Carta de Pedro de San Buenaventura a fray Bernardino
de Sahagún acerca del calendário solar mexicano. In: Revista Española de Antropología Americana. Madrid: nº 13,
p.109-120, 1983, p. 113-115.

20
É provável que o remetente estivesse escrevendo de Cuauhtitlan84 porque Sahagún o
menciona como um de seus colaboradores no prólogo de seu Livro II, citando-o como "vecino de
Cuauhtitlan"85. Sobre a referência a México e às correlações Diaz Rubio e Bustamante García
dizem o seguinte: "Que esto no era muy bien conocido en México se demuestra la observación de
Sahagún en el vuelto de la carta: 'sobre el principio (sic) del año delqual diversamente(e op)inan'.
De hecho esto explica la carta misma y justifica también las cuatro correlaciones que se pueden
seguir en los escritos de Sahagún. (…) al igual que Kubler & Gibson opinamos que no existió
'una' correlación, sino 'muchas' y que la elección de una es artificial, aunque útil".86

2.4. Segunda seção: Tonalpohualli

A segunda seção é a representação do tonalpohualli em 20 períodos de 13 dias cada. Essa


organização foi chamada de trecenas pelos espanhóis. Cada uma das trecenas foi representada
em duas páginas, ocupando sempre, cada trecena, o verso de um fólio e a frente de outro. O
primeiro fólio foi perdido, o qual continha a página de frente, provavelmente em branco, e no
verso a primeira parte da trecena de número 1. Assim, a seção é iniciada hoje pela segunda parte
da trecena 1 (primeira imagem da Figura 2), que ocupa a frente do fólio 8. Todas as páginas
seguintes até a frente do fólio 24 foram ocupadas pelo restante das trecenas (na Figura 2
reproduzimos algumas páginas). No verso desse último fólio há rabiscos e fragmentos de frases
(quarta imagem da Figura 2). Os fólios que estavam entre os de número 13 e 14, 14 e 15, e 17 e
18 também foram perdidos, fato que se conhece porque faltam partes de algumas trecenas.

84
Cuauhtitlan ou "Quauhtitlan: población situada al norte de Tenochtitlan, cap. de un estado dependiente del
imperio de Acolhuacan, que fue conquistada por el monarca mexicano Izcoatl". (RÉMI, Siméon. Op. Cit., p. 413).
85
SAHAGÚN, Fr. Bernardino de. Historia General de las Cosas de Nueva España. México: Editorial Porrua, 1969,
tomo I, p. 107.
86
DÍAZ RUBIO, Elena; BUSTAMANTE GARCÍA, Jesús. Op.Cit., p. 118-120.

21
Tonalpohualli: 2a parte da1a trecena, p. 8r Tonalpohualli: 6a trecena, pp. 12v e 13r

Página 24v Tonalpohualli: 18a trecena, pp. 23v e 24r

Figura 2

A trecena leva o nome do signo do dia que a inicia. As representadas na Figura 2 são,
respectivamente: ce87 cipactli (1a), ce miquiztli (6a) e ce tochtli (18a)88. Algumas vezes outros
elementos além dos signos ou tonalli também são representados, como é o caso do TR, onde
foram pintados os Senhores da Noite, que se tratam de 9 deidades que presidem cada um dos dias
do tonalpohualli. Sua ordem de aparição é: Xiuhtecutli, Itztli, Piltzintecutli, Cinteotl,

87
Número 1 em náhuatl.
88
SAHAGÚN, Fr. Bernardino de. Historia General de las Cosas de Nueva España. México: Editorial Porrua, 1969,
tomo I, p. 317, 331 e 366.

22
Mictlantecutli, Chalchiuhtlícue, Tlazotéotl, Tepeyollotli e Tláloc89. No TR os Senhores da Noite
se localizam na primeira linha e nos três quadrados inferiores da penúltima coluna, no bloco de
figuras representadas em cima e do lado direito das figuras principais de cada trecena. Já os
tonalli são dispostos na segunda linha e última coluna, com exceção da primeira figura da última
coluna. Na área central, em maior dimensão, aparece o patrono da trecena (lado esquerdo)
acompanhado de uma figura complementária (lado direito).
Outros manuscritos, tanto pré-hispânicos como coloniais também possuem esse assunto.
Em alguns deles, como o Borbônico, foi incluída outras seqüências além dos signos e senhores da
noite, a dos pássaros agoureiros e senhores do dia. Em geral, a representação do tonalpohualli
nos manuscritos é mais homogênea que a do xiuhpohualli quanto à forma de apresentação.

2.5. Terceira seção: Anais Históricos

A última divisão do códice, a seção dos Anais, inicia-se no fólio 25 e termina no 50,
sendo que somente até a frente do fólio 48 existe pinturas (Figura 4). O restante dos fólios possui
apenas textos e pequenos quadrados desenhados por um dos anotadores no lugar dos signos que
representariam os anos (Figura 5). O fólio 35, frente e verso, está em branco, e o verso do fólio
50 contém também algumas frases que podem ser testes de pena90 (Figura 4). A página que hoje
inicia a seção é a segunda da migração, pois a primeira foi perdida. O conteúdo geral é de caráter
histórico e representa primeiro um período de migrações (veja Figura 3) que deveria ir até a
fundação de México-Tenochtitlan91, porém, as páginas finais foram perdidas. Aquelas que hoje
são conservadas indicam um período de tempo que vai92 de 119793 (primeira imagem da Figura
3) a 1274 (última imagem da Figura 3). A segunda parte dos Anais mostra acontecimentos que
se iniciam em 1385 (primeira imagem da Figura 4) até 1555, última data pintada (penúltima
89
Grafia da maioria dos deuses de: SAHAGÚN, Fr. Bernardino de. Op. Cit. Tomo I, p. 45, 50, 51 e 56.
90
QUIÑONES KEBER, Eloise. Op. Cit., 1995, p. 123.
91
"Tenochtitlan: capital del imperio mexicano, fundada en 1325 por Tenoch; hoy México. Estaba dividida en dos
grandes partes: Tenochtitlan, al sureste, habitada por los tenochca, y Tlatelulco al noroeste, ocupada pos los
tlatelulca". (RÉMI, Siméon. Op. Cit., p. 479).
92
Segundo as datas do próprio códice.
93
As datas foram alteradas e na última mudança não ajustaram as duas primeiras, então a contagem passa de 1198 a
1290. Pelas datas corretas a primeira página existente hoje no códice deveria começar em 1298 - veja Figura 3
(primeira imagem).

23
imagem da Figura 4). Recebeu continuidade com o acréscimo de mais alguns acontecimentos,
mas somente em forma de texto (primeira imagem da Figura 5). Vale notar que as descrições
abrangem o período colonial, ou seja, um conteúdo inédito, que obviamente não tem antecedentes
pré-hispânicos. Atualmente nessa seção faltam: 1 fólio antes do 25; três fólios entre os de número
28 e 29; um entre o 40 e 41; e dois entre o 43 e 44. São conhecidas as faltantes porque, assim
como nas outras seções, elas estão representadas no Códice Vaticano A.
Para diferenciar as duas partes dos 'Anais Históricos' preferimos nos referir à primeira
como 'Migração' e à segunda como 'Segunda Parte dos Anais', de modo a facilitar as referências a
elas, uma vez que possuem características distintas. Outros autores preferiram distintas divisões,
como Quiñones Keber94: migração, crônica dinástica e crônica colonial. A autora dividiu em duas
partes o que chamamos 'segunda parte dos anais' porque a partir da página 44r o conteúdo se
refere à história colonial. Outra separação, utilizada por Anders e Jansen95, subdivide a seção
histórica em xiuhmolpilli, ou seja, grupos de 52 anos, de acordo com as próprias divisões
indígenas. Em nosso caso essa fragmentação somente dificultaria a exposição das características,
por isso, preferimos simplificar as subdivisões.

94
QUIÑONES KEBER, Eloise. Op. Cit, 1995.
95
ANDERS, Ferdinand; JANSEN, Maarten. Religión, Costumbres e Historia de los antiguos mexicanos: libro
explicativo del llamado Códice Vaticano A. México: Fondo de Cultura Económica, 1996.

24
2.5.1. Migração

Migração, p. 25r Migração, p. 26v Migração, p. 28v

Figura 3

Essa parte dos anais históricos que chamamos de migração é composta por imagens
centrais formadas por figuras humanas, glifos toponímicos e 'pegadas'. Representa as migrações
de grupos humanos, que se movimentam entre diferentes cidades ou unidades políticas, cujas
trajetórias são indicadas pelas marcas de pé. Na parte inferior das páginas foi inserida uma faixa
seqüencial de glifos anuais representando os anos transcorridos durante o período de migrações.
Como explicado acima, os signos de anos ou glifos anuais são compostos por 4 signos,
que se tratam dos chamados 'portadores de anos' (no caso dos nahuas do pós-clássico os
portadores são: ácatl, técpatl, calli e tóchtli) que se combinam alternadamente com 13 números,
até se esgotarem todas as combinações possíveis, formando o xiuhmolpilli ou 'enlace de anos'
("atadura de años") a cada 52 anos, quando a contagem se reinicia.
As marcas de pés pintadas seqüencialmente são pictogramas utilizados com bastante
freqüência e que indicam o caminho percorrido por um ou mais personagens. Às vezes, quando
conectam figuras, mostram relações de parentesco.96
A utilização do pictograma 'cerro' como base para a representação dos topônimos se
explica pela palavra altépetl, que segundo Navarrete Linares97 era a entidade política fundamental

96
ESCALANTE GONZALBO, Pablo. Los códices mesoamericanos, antes y después de la conquista española.
Historia de un lenguaje pictográfico. No prelo, p. 13.

25
na organização dos povos indígenas do Vale do México. O autor explica que altépetl é um
difrasismo98 que une as palavras atl (água) e tépetl (cerro) e que significa literalmente 'cerro de
água'. O termo está vinculado a um grupo humano, um território e um governo, mas também é
uma alusão aos cerros:

"...que en la cosmovisión mesoamericana eran considerados grandes receptáculos huecos que


contenían el agua que venía del mar y luego fluía sobre la tierra en forma de ríos y arroyos, o caía
en forma de lluvia. Esta relación con los cerros, y desde luego la relación con el agua, quiere decir
que había una vinculación íntima entre el altépetl y la fertilidad. (…) la presencia de manantiales
y de cerros era fundamental para la constitución de un altépetl. Por otro lado, el altépetl era
también un centro sagrado"99.

As histórias de migração são um tema muito comum nas tradições históricas


mesoamericanas, uma vez que os movimentos migratórios e remanejamentos eram parte de suas
características fundamentais. "En las sociedades mesoamericanas los conflictos por el poder
político y económico no se resuelven siempre con el enfrentamiento bélico, sino con la
migración. La integración y desintegración de señoríos se expresa en estas constantes
migraciones."100
As migrações desses grupos humanos têm diferentes pontos de partida, de acordo com a
tradição a que se conectam ou com as circunstâncias, especialmente políticas, do momento que
estão sendo relatadas. Segundo Navarrete Linares101 existem lugares de origem individuais e
coletivos. Para o Vale do México há um contraste entre locais definidos como originários de um
povo determinado ou de um grupo reduzido, como Aztlan, Tlapallan ou Michoacán, e lugares
plurais, como Chicomóztoc e Culhuacan. Além disso, a importância dada a esse local é distinta
para os variados grupos, pois há aqueles que descrevem com detalhes seu local de origem, como

97
NAVARRETE LINARES, Federico. Op. Cit. Mito, historia… 2000, p. 21.
98
Termo comumente utilizado entre os mesoamericanistas para descrever uma construção gramatical onde duas
palavras são unidas para formar uma terceira com sentido metafórico.
99
NAVARRETE LINARES, Federico. Op. Cit. Mito, historia… 2000, p. 21-22.
100
REYES GARCÍA, Luis; ODENA GÜEMES, Lina. La zona del Altiplano central en el Posclásico: la etapa
chichimeca. In: MANZANILLA, Linda; LÓPEZ LUJÁN, Leonardo. Historia Antigua de México - vol. III: el
horizonte Posclásico. México: INAH; UNAM, p. 225-264, 2001, p. 231.
101
NAVARRETE LINARES, Federico. Op. Cit. Mito, historia… 2000, p. 110.

26
os mexicas, enquanto outros só o mencionam vagamente, como os chichimecas de Xólotl,
antepassados dos acolhuas102 de Texcoco103.
O fólio inicial da migração do TR foi perdido, mas sabemos que se iniciava em
Chicomóztoc porque o Códice Vaticano A possui conteúdo idêntico e ainda o conserva.
Chicomóztoc é comumente traduzido como 'lugar das sete covas104'. "...En la mayoría de las
fuentes Chicomóztoc no es descrito propiamente como un lugar de origen, sino como un lugar
por el que pasan los emigrantes una vez iniciado su camino…", apesar de que é possível que
possa ter sido reconhecido como lugar de origem por alguns grupos, o que pode ser o caso do
Vaticano A e TR, por exemplo105.
As migrações se iniciam por distintos motivos e normalmente são encabeçadas por
importantes líderes e/ou guiadas por deuses até o local de seu estabelecimento definitivo.
Normalmente os grupos que efetuam essa jornada são qualificados de chichimecas, os quais, ao
longo de sua viagem, adquirem características toltecas, pois ambos são comumente utilizados
como elementos legitimadores do poder. Mas, quem eram os chichimecas e os toltecas? No
dicionário de Rémi: Chichimecatl: pl. chichimeca: "...tribus nómadas que vivian de los productos
de la caza y que remplazaron a los toltecas en el Anahuac hacia el fin del siglo XII."106 E
"Toltecatl: pl. tolteca. Los toltecas constituían un pueblo de gustos pacíficos, entregado
especialmente a la agricultura y a las artes. De ahí que su nombre haya quedado como sinónimo
de artista, de hábil artesano. Esas tribus, que salieron de Ueue Tlapallan el año uno tecpatl, uno
piedra (596), habrían llegado a finales del siglo VII a un lugar llamado Tollantzinco donde se
establecieron y fundaron un estado que tuvo por capital Tollan…"107

102
"Del nahua acolli, hombro, y hua, partícula de posesivo; [hombres] de hombros grandes. Se dice del individuo de
un pueblo amerindio llegado del noroeste de México, que se estableció en Texcoco antes de los aztecas" (REAL
ACADEMIA ESPAÑOLA. Diccionario de la Lengua Española. Madrid: Espasa Calpe, 22a edición, 2001.
Disponível em: <http://buscon.rae.es/draeI/> Acess em: 25 nov. 2007).
103
Texcoco, "Tetzcoco o Tetzcuco: ciudad situada al NE de Tenochtitlan, en la laguna y al pie de las montañas que la
bordean al este, capital del imperio chichimeca que llevó primitivamente el nombre de Acolhuacan". (RÉMI,
Siméon. Op. Cit., p. 536). "Tetzcocatl o tetzcucatl: Tezcocano, habitante de Tetzcoco" (RÉMI, Siméon. Op. Cit., p.
536). Usaremos a grafia: texcocano (singular) e texcocanos (plural).
104
Ou 'lugar das sete cavernas' ou ainda 'lugar das sete grutas'.
105
NAVARRETE LINARES, Federico. Op. Cit. Mito, historia… 2000, p. 121-122. Em muitos códices ou crônicas o
lugar de origem é referenciado também com outro nome, como Culhuacan Chicomóztoc, por exemplo, e por isso
Navarrete Linares acredita que era uma espécie de qualificativo dado a lugares que possuíam determinadas
características.
106
RÉMI, Siméon. Op. Cit., p. 96.
107
RÉMI, Siméon. Op. Cit., p. 713.

27
É necessário ponderar definições dicotômicas como essas de Rémi, pois segundo nos
informa Navarrete "…las descripciones que conocemos de la vida chichimeca deben ser
interpretadas en casi todos los casos como visiones simplificadas e idealizadas de la forma de
vida de los pueblos marginales"108. Da mesma forma deve ser avaliada a definição dos toltecas
como um grupo pacífico, que também parece ser uma idealização.
No TR os chichimecas se vestem de peles de animais e normalmente carregam arcos e
flechas, enquanto os toltecas portam uma túnica branca e um chapéu cônico.
De um modo geral as histórias de migração da região que nos interessa parecem seguir
padrões bastante similares, os quais são listados por Enrique Florescano:

"...el canon que uniforma los relatos de migración de los chichimecas, k'iché, kakchiqueles y
mexicas se caracteriza por los siguientes rasgos: a) la tierra de origen es siempre lejana; b) la
salida del lugar de origen obedece a una orden de los dioses; c) el pueblo que abandona el lugar de
origen es acompañado por otras tribus afines; d) durante la migración uno o varios grupos se
separan y estas divisiones dan lugar a otros 'mitos de dispersión'; e) la salida del lugar nativo
ocurre en una fecha que marca el principio de una nueva era (1 Técpatl es la fecha que en la
tradición mexica inicia la peregrinación o celebra las nuevas fundaciones, el nombramiento del
primer gobernante, etcétera); f) la ruta de la migración es señalada por el dios patrono, por un
mensajero divino o por líderes dotados de poderes sobrenaturales, y g) el asentamiento final es
anticipado por augurios sobrenaturales".109

108
NAVARRETE LINARES, Federico. Op. Cit. Mito, historia… 2000, p. 265.
109
FLORESCANO, Enrique. Los paradigmas mesoamericanos que unificaron la reconstrucción del pasado: el mito
de la creación del cosmos… In: Historia Mexicana. México: v. LII, n. 2, p. 309-359, 2002, p. 337-338. Disponível
em: <http://historiamexicana.colmex.mx/pdf/13/art_13_2075_18060.pdf> Acesso em: 16 dez. 2007.

28
2.5.2. Segunda parte dos Anais

O conteúdo da segunda parte dos anais pode ser dividido em 'história pré-hispânica' e
'história colonial'. No TR a 'história colonial' se inicia na página 44r (Figura 4). A organização
do espaço das páginas, ou seja, a forma de estruturar os conteúdos entre a 43v e a 44r não é
alterada. As mudanças atingem somente o conteúdo, onde começam a aparecer elementos
inexistentes nos livros tradicionais indígenas, como cavalos, cadeiras e outros objetos europeus e
personagens espanhóis. O contrário acontece no início dessa parte dos anais, que é marcado por
grande heterogeneidade na organização do espaço. Como pode ser visto na Figura 4, não há um
padrão exato de organização. A disposição dos glifos anuais (representados pelas caixas
quadradas ou retangulares pintadas em vermelho e azul) varia consideravelmente até que a partir
da 32v, quando passam a ser sempre inseridos no topo da página, em números que variam de dois
a quatro, obedecendo a leitura de esquerda para a direita.

29
2a parte Anais, p. 29r 2a parte Anais, p. 29v 2a parte Anais, p. 30r

2a parte Anais, p. 32r 2a parte Anais, p. 43v 2a parte Anais, p. 44r

2a parte Anais, p. 47r 2a parte Anais, p. 48r Página 50v

Figura 4

30
Os eventos ou acontecimentos históricos pintados nessa segunda parte dos anais são
estruturados com base nos glifos anuais, representados em cores distintas das usadas no mesmo
tipo de seqüência da migração. A maioria dos glifos se localiza no topo das páginas, mas também
dos lados direito e esquerdo em algumas delas. Os eventos inseridos são formados por
representações de soberanos, glifos toponímicos, guerreiros, templos, glifos de eventos
geológicos e astronômicos, pessoas sacrificadas ou preparadas para o sacrifício, conquistadores e
governantes espanhóis, personagens do clero, dentre outros.
Muitos dos personagens representados vêm acompanhados de glifos onomásticos ou
antroponímicos, que normalmente são pintados acima das cabeças e conectados ao indivíduo
correspondente por uma linha negra. Os glifos dos altépetl conquistados ou ligados a algum
personagem podem possuir o pictograma 'cerro' ou não. O glifo de Mexico-Tenochtitlan é um
exemplo do segundo caso. Alguns elementos nas representações humanas têm significados
específicos, como gestos com as mãos, posições corporais, locais onde são representados, objetos
que portam, vestem ou os envolvem, dentre outros.
O conteúdo pré-hispânico gira em torno das sucessões de soberanos - especialmente de
Mexico-Tenochtitlan, mas também de outros altepétl do vale do México -, das guerras e
conquistas realizadas por eles e dos desastres com grande mortandade que ocorreram em seus
governos. Vale ressaltar que no final desse período há uma grande concentração de ocorrências
astronômicas e algumas geológicas. A história colonial, por outro lado, aborda os representantes
do poder colonial - como conquistadores, membros das audiências e vice-rei -, algumas sucessões
de representantes indígenas, o clero - especialmente o bispo, mas também frades -, pragas,
acontecimentos geológicos e astronômicos, alguns eventos históricos relevantes, dentre outros.

2.6. Textos

O TR é repleto de textos em caracteres latinos. As anotações foram realizadas em


espanhol com algumas palavras em náhuatl por diversos indivíduos, as quais foram incluídas no
decorrer de muitos anos, paulatinamente, com correções e continuidades nas anotações
anteriores. Há textos em todas as seções do códice, onde normalmente foram inseridas para

31
explicar o conteúdo das imagens, apesar de que existem textos que não se relacionam diretamente
com elas, especialmente no final do manuscrito. As partes do códice revelam distintos padrões de
anotação, das quais a mais distinta é a migração, e existem páginas onde somente foram
adicionados textos (veja Figura 5).

Somente textos, p. 49r Somente textos, p. 50r

Figura 5

O fato das imagens virem acompanhadas por textos em espanhol, de o documento ter sido
realizado com papel europeu e em formato de códice (livro europeu), da direção de leitura
coincidir com a utilizada nos textos ocidentais, dentre outros motivos, revelam que nosso códice
foi patrocinado e compilado por espanhóis, especificamente missionários.
Os motivos que os levaram a compilar o manuscrito não é explicado no texto, mas pode
ser compreendido uma vez que se recorra a outros documentos coloniais, como as cédulas reais,
cartas, crônicas, dentre outros.
Desde o inicio da colonização Carlos I (ou Carlos V) pedia informações sobre seu novo
território, principalmente no que se refere à cobrança de tributos. "Una de las solicitudes reales de
información, emitida en 1533, dio lugar a que las autoridades de la Segunda Audiencia
encargaran a los franciscanos la realización del que sería el primer estudio sistemático de las
costumbres indígenas. La tarea recayó sobre el notable nahuatlato fray Andrés de Olmos"110.

110
ESCALANTE GONZALBO, Pablo. Los Códices. México: Consejo Nacional para la Cultura y las Artes, 1999.
Disponível em: <http://copernico.mty.itesm.mx/phronesis/archi_txt/codices.txt> Acesso em: 10 dez. 2007.

32
Como as informações tardaram a serem enviadas ao rei, este continuou a solicitá-las em
diversas cartas, como por exemplo, em uma datada em 1536, onde pede investigações sobre os
produtos e quantidades tributados no período pré-hispânico: "Informaros heis de lo que
antiguamente solían pagar a los caciques y a las otras personas que los señoreaban y
gobernaban..."111
Os pedidos por informações nesse campo eram constantes, os quais foram reiterados
muitas vezes por Filipe II, como em uma carta de 1553112, onde solicitava que averiguassem os
tributos anteriormente pagos e emitissem opiniões acerca das quantidades justas a serem
cobradas:

"Demas de la información que uvieredes destos testigos, hareys traer ante vos qualesquier pinturas
e tablas o otra quenta, que aya de aquel tiempo por do se pueda averiguar lo que esta dicho y
hareys, que los religiosos lo busquen y soliciten entre ellos los que supieren la lengua, e que de
todo también os ynformeys de los tales religiosos y de otras qualesquier personas que tengan o
puedan tener alguna noticia desto."113

Pela carta de Filipe II é possível notar que constantemente recorriam aos religiosos para
fazer averiguações e buscar por pinturas. Por isso, não admira que muitos tenham realizado
trabalhos de coleta de informações, que também devem ter abrangido objetivos próprios, como o
combate à idolatria, principal justificativa usada pelos frades para a coleta de dados sobre a vida e
religião nativas. Esse é o caso de Sahagún, por exemplo:

"Para predicar contra estas cosas, y aun para saber si las hay, menester es de saber cómo las usaba
en tiempo de su idolatría, que por falta de no saber esto en nuestra presencia hacen muchas cosas
idolátricas sin que lo entendamos…"

111
KONETZKE, Richard. Colección de documentos para la historia de la formación social de Hispanoamérica,
1493-1810. Madrid: Consejo Superior de Investigaciones Científicas, p. 171-174, 1953, v. I (1493-1592). Real
cédula de Carlos I sobre la tasación de los tributos de indios y la sucesión de encomiendas. Disponível em:
<http://www.biblioteca.tv/artman2/publish/1536_349/Real_c_dula_de_Carlos_I_sobre_la_tasaci_n_de_los_t_1025.s
html> Acesso em: 07 dez. 2007.
112
Quando ainda nem era rei, pois assumiu o trono da Espanha em 1556.
113
ROJAS, José Luis de. A cada uno lo suyo. El tributo indígena en la Nueva España en el siglo XVI. Zamora
(Michoacán): El Colegio de Michoacán, p. 125-128, 1993. Disponível em:
<http://www.biblioteca.tv/artman2/publish/1553_378/Real_c_dula_del_pr_ncipe_Felipe_II_sobre_tributos_1171.sht
ml> Acesso em: 07 dez. 2007.

33
No que se refere ao TR, o combate à idolatria deve ter sido um dos principais motivos que
impulsionaram a compilação do primeiro (xiuhpohualli) e segundo (tonalpohualli) assuntos do
códice. Mas, qual o interesse que poderiam ter na terceira seção?
Durán se refere às histórias indígenas como assuntos dignos de serem lembrados e
condena a destruição indiscriminada dos livros nos primeiros anos da conquista, dizendo:

"Estas figuras que en cada día del mes había servían como de letras y siempre lo sirvieron en
general las pinturas de letras para escribir con pinturas y efigies sus historias y antiguallas sus
memorables hechos sus guerras y victorias sus hambres y pestilencias sus prosperidades y
adversidades todo lo tenían escrito y pintado en libros y largos papeles con cuentas de años meses
y dias en que habían acontecido tenían escritas en estas pinturas sus leyes y ordenanzas sus
padrones &c. todo con mucha órden y concierto de lo cual había excelentísimos historiadores que
con estas pinturas componían historias amplisimas de sus antepasados, las cuales no poca luz nos
hubieran dado si el ignorante celo no nos las hubiera destruido por que hubo algunos ignorantes
que creyendo ser ídolos las hicieron quemar siendo historias dignas de memoria y no de estar
sepultadas en el olvido como estan pues aun para el ministerio en que andamos del
aprovechamiento de las ánimas y remedio de los naturales nos dejaron sin luz."114

Logo, havia um interesse por parte dos missionários em aprender sobre a história,
costumes e calendário dos povos nativos, que os levaram a contratar o serviço dos tlacuilos para a
realização de pinturas, onde indígenas que sabiam ler e escrever explicavam o conteúdo em
caracteres latinos, quer seja em espanhol ou em línguas nativas, ou os próprios frades as inseriam
com a ajuda de informantes ou não.

114
DURÁN, Fr. Diego. Historia de las Indias de Nueva España y Islas de Tierra Firme. México: Editora Nacional,
1967, tomo II, p. 257.

34
3. História de Confecção

3.1. Datação

Os primeiros autores a datarem o manuscrito basearam-se exclusivamente nas anotações


em caracteres latinos. Como exemplos: Hamy115 (em 1889) afirma que os conteúdos foram
reunidos em 1562; Cline116 (em 1973) diz que os dados foram coletados entre 1562-1563;
Abrams (também em 1973) fornece a data de 1563; dentre outros. A razão pela qual se referem a
esses anos é porque foram anotados em algumas páginas do códice por um dos anotadores. Na
seção histórica são referidos eventos até o ano de 1562 (49v), enquanto na seção do tonalpohualli
é referida uma festa ocorrida nesse mesmo ano (11r) e a correspondência do ano indígena com o
calendário gregoriado em fevereiro de 1563 (24r).
Em 1959 Robertson117 faz uma interessante proposta em relação à datação do manuscrito.
Afirma que os anos de 1562-63 devem ser considerados somente para a datação dos textos,
ressaltando que eles não são válidos para as imagens. Baseando-se na segunda parte dos anais
históricos, propõe uma nova data para as imagens. Analisa as três datas finais para a seção
histórica: o fim da seqüência de anos em caracteres nativos (1554-55 - Figura 4, página 48r); o
fim do período de anos escrito em espanhol (1562 - Figura 5, página 49r); e o último registro
pictográfico de eventos, a morte do bispo Zumárraga (conectadas aos anos 1548 ou 1549 -
Figura 4, página 47r). Propõe, então, que o trabalho pictográfico termina em 1549, pois faltam os
eventos relativos aos anos seguintes. Sugere inclusive que o pintor possa ter morrido na praga de
papeira do ano seguinte, 1550, evento somente escrito por um dos anotadores.
Jansen118, por sua vez, acredita que: 1548 é a data final do protótipo de onde foi copiada a
seção histórica; 1555 é a data final da realização das pinturas do TR e a data das primeiras
anotações; e 1563 a data que os textos foram finalizados pelo último anotador.

115
HAMY, E.-T. Op. Cit., p. 5.
116
CLINE, Howard F. The chronology of the conquest: synchronologies in Codex Telleriano-Remensis and
Sahagún. In: Journal de la Société des Américanistes. Paris: tome LXII, p. 9-42, 1973, p. 11.
117
ROBERTSON, Donald. Mexican manuscript painting of the early colonial period. Connecticut: Yale University
Press, 1959, p. 110.
118
JANSEN, Maarten. Op. Cit., 1984, p. 76.

35
Já Quiñones Keber119 concorda que 1548 pode ser a data final do protótipo, no entanto,
pensa ser necessário explicar o porquê da finalização dos signos de anos em 1555, pois lhe parece
improvável que um artista que pintasse em 1548 marcasse 7 signos de anos no futuro. Acredita,
então, que 1554 ou 1555 sejam anos mais plausíveis para a execução da seção histórica, mas,
chama a atenção para o fato de que essas datas se referem somente à seção história, que deve ter
sido a última a ser realizada, restando incluir as outras seções. Por isso, propõe os anos de 1553 a
1555 para a realização das pinturas e para as primeiras campanhas de anotações, enquanto os
textos foram inseridos entre meados da década de 50 e princípios da década de 60120.

3.2. Proveniência

Há uma extensa discussão sobre o provável ou prováveis locais de proveniência do


Códice Telleriano Remensis. Até hoje vários locais foram indicados. Segundo Quiñones
Keber121, a atribuição da origem do TR a distintas cidades ou regiões, como Texcoco, a região de
Puebla-Tlaxcala122, Cholula123 e Colhuacan124 se deve ao fato do códice ser uma compilação de
documentos de diferentes origens e dos autores basearem suas opiniões em distintas seções do
manuscrito, algumas vezes utilizando como referência somente as imagens e outras os textos.
Veja mapa da Figura 6.

119
QUIÑONES KEBER, Eloise. Op. Cit., 1995, p. 129.
120
A fim de localizar o leitor vale informar que o códice foi confeccionado durante o período de governo do vice-rei
da Nova Espanha Luis de Velasco, que durou de 1549 a 1564, e período de transição no reinado espanhol, deixado
por Carlos I em 1556 e assumido por Filipe II no mesmo ano.
121
QUIÑONES KEBER, Eloise. Op. Cit., 1995, p. 127.
122
"Tlaxcallan: capital de la republica de este nombre, llamada primitivamente Texcallan; hoy Tlaxcala. Estaba
dividida en cuatro barrios: Ocotelulco, Quiauiztlan, Tepeticpac y Tiçatlan". (RÉMI, Siméon. Op. Cit., p. 696). Seus
habitantes eram chamados tlaxcaltecatl, com plural tlaxcalteca (RÉMI, Siméon. Op. Cit., p. 697). Usaremos sempre
tlaxcalteca (singular) e tlaxcaltecas (plural).
123
"Chollollan: cap. del mismo nombre, situada al oriente de Chalco, notable por un gran templo consagrado a
Queltzalcoatl, cuyas ruinas persisten; hoy Cholula." (RÉMI, Siméon. Op. Cit., p. 108). Os habitantes de Cholollan
eram chamados chololtecatl, singular, e chololteca, plural (RÉMI, Siméon. Op. Cit., p. 108). Usaremos chololteca
para singular e chololtecas para plural.
124
"Colhuacan: nombre dado a varias localidades célebres en los anales mexicanos; una de ellas, situada al sur de
México, cerca del paso que unía el lago de Chalco al de Tetzcuco, fue el asiento de un importante señorío." (RÉMI,
Siméon. Op. Cit., p. 142). Ao habitante de Colhuacan chamavam colhua ou culhua (plural: colhuaque ou colhuaca).
Usaremos uma forma 'aportuguesada': colhua (sig.) e colhuas (pl.).

36
Vales de México e Puebla com alguns altépetl125

Figura 6

Por distintos motivos alguns autores conectaram o códice à cidade de Texcoco: Orozco y
Berra126 por acreditar que o códice prioriza a história política acolhua, sobre a qual Quiñones
Keber127 demonstrou não existirem provas contundentes; Kubler e Gibson128 devido aos glifos
dos meses do xiuhpohualli utilizados na seção histórica, que segundo eles se parecem aos de uma
roda calendárica possivelmente originária de Texcoco; Robertson129 por considerar que o estilo
da primeira parte da seção histórica é de tradição texcocana; dentre outros.
Paso y Troncoso130 encontra características da região de Puebla-Tlaxcala na ortografia das
palavras em náhuatl da seção do xiuhpohualli e por isso atribui a procedência do códice, ou

125
GIBSON, Charles. Los aztecas bajo el dominio español: 1519-1810. México: Siglo Veintiuno, 1978.
126
OROZCO Y BERRA, Manuel. Historia Antigua y de la Conquista de México. México: Editorial Porrua, 1960, p.
332.
127
QUIÑONES KEBER, Eloise. Op. Cit., 1995, p. 127.
128
KUBLER, George; GIBSON, Charles. The Tovar Calendar. In Memoirs of the Connecticut Academy of Arts and
Sciences. New Haven: Yale University Press, v. XI, Jan., 1951, p. 72.
129
ROBERTSON, Donald. Op. Cit., p. 109.
130
PASO Y TRONCOSO, Francisco del. Descripción, historia y exposición del Códice Borbónico. México: Siglo
Veintiuno, 1979, p. 339.

37
somente dos textos, a essa região. Para Cline131 o tonalpohualli é de tradição cholulteca,
especialmente pela ênfase no deus Quetzalcoatl, e por isso propõe que o códice tenha se
originado na cidade de Cholula; enquanto para Abrams132 é de Colhuacan, porque o nome glífico
dessa cidade aparece 5 vezes na seção histórica. Quiñones Keber diz que tanto as afirmações de
Cline como de Abrams não podem ser sustentadas porque Quetzalcoatl também é venerado em
outras regiões e Colhuacan sempre aparece relacionada à história de México Tenochtitlan, não
usurpando em nenhum caso o papel central dessa última na narrativa. Já a referência de Paso y
Troncoso à Puebla-Tlaxcala pode ser aceita, já que se refere especificamente ao texto e esse
parece de fato estar relacionado a essa região.
Quiñones Keber133 propõe Tlatelolco134 (veja mapa da Figura 7) como possível local de
origem para o xiuhpohualli, a segunda parte da seção histórica e provavelmente também o
tonalpohualli. Essas partes de nosso códice possuem características, tanto no conteúdo como na
iconografia, que as conectam ao vale do México. Quanto à migração, acredita que pode ter sido
executada em Puebla. Por isso, propõe que a confecção do códice foi iniciada na Cidade do
México e finalizada em Puebla com materiais e suprimentos trazidos de México.

131
CLINE, Howard F. Op. Cit., p. 11.
132
ABRAMS Jr., H. León. Comentario sobre la seccion colonial del Codice Telleriano-Remensis. In: Anales del
INAH. México: epoca 7a, Tomo III, 1970-1971, p. 139-176, 1973, p. 139.
133
QUIÑONES KEBER, Eloise. Op. Cit., 1995, p. 128.
134
"Tlatelolco o Tlatilulco: barrio de Mexico en el que habitaban los comerciantes y tenia lugar el mercado
(tianquiztli) de la ciudad (...). A finales del siglo XIV los comerciantes de Tlatelolco, que habían llegado a ser ricos y
poderosos, se separaran de los tenochcas y constituyeron un reino que duró casi un siglo (1379-1473). Fue el
monarca mexicano Axayacatl quien sometió definitivamente a Tlatelolco (…) en un principio Tlatelolco se llamó
Xaltilolco, sobre la montaña de arena." (RÉMI, Siméon. Op. Cit., p 651). Esse antigo nome explica a representação
glífica da cidade, que se trata de um pequeno monte de terra. Segundo Rémi, o habitante de Tlatelolco é chamado
tlatelolcatl ou tlatilulcatl, cujo plural é, respectivamente, tlatelolca ou tlatilulca. Usaremos tlatelolca para singular e
tlatelolcas para plural.

38
Mapa representando Mexico-Tenochtitlan e Mexico-Tlatelolco135
Figura 7

3.3. Códice Vaticano A e Frei Pedro de los Ríos

O códice TR encontra-se hoje incompleto, faltando fólios das três seções. Em todos os
casos o conteúdo pode ser recomposto utilizando o Códice Vaticano A, pois as três seções do
primeiro são idênticas às do segundo, que possui ainda alguns assuntos adicionais. Veja Figura
8, Figura 9, Figura 10 eFigura 11.

135
QUIÑONES KEBER, Eloise. Op. Cit., 1995, p. 110.

39
Vaticano A, xiuhpohualli - p. 47r136 Telleriano, xiuhpohualli - p. 2v

Figura 8

Vaticano A, tonalpohualli - p. 15v137 Telleriano, tonalpohualli - p. 9v

Figura 9

136
Codex Vaticanus 3738. Facsímil del Codex Vatic. Lat. 3738 de la Biblioteca Apostólica Vaticana. Graz (Austria):
Akademische Druck- u. Verlagsanst (ADEVA), 1996.
137
Idem Ibidem.

40
Vaticano A, seção histórica - p. 69r138 Telleriano, Migração - p. 27r

Figura 10

Vaticano A, seção histórica - p. 87r139 Telleriano, segunda parte da seção histórica - p. 42r

Figura 11

Foi Humboldt140 o primeiro autor a notar as semelhanças existentes entre os dois


manuscritos, que são bastante evidentes: "Es tanta la similitud entre las pinturas y los textos de

138
Codex Vaticanus 3738. Facsímil del Codex Vatic. Lat. 3738 de la Biblioteca Apostólica Vaticana. Graz (Austria):
Akademische Druck- u. Verlagsanst (ADEVA), 1996.
139
Idem Ibidem.

41
los dos que es obvio que tienen una relación íntima, sea porque uno se copió del otro, sea porque
ambos se copiaron de un mismo original."141
Outro passo importante no estabelecimento da conexão entre ambos foi dado também no
século XIX, quando foram encontrados nos textos evidências de sua relação com um frade da
ordem de Santo Domingo chamado Pedro de los Ríos.142 Ela é fundamentada principalmente pela
análise de duas passagens, cada uma no texto de um dos manuscritos. Na página 23r143 do
Vaticano A aparece escrito o seguinte texto: "..."questo modo de coronare se usava in la guerra
ancora dopoi la venuta de christiani in questi paesi, et si è veduto in la guerra de co[a]tlan, come
lo referisce quello che recopilò queste depinture, ch'era un frate dell'ordine di Santo Dominico,
detto frate petro de los Ríos."144 Já na página 15r do Telleriano Remensis: "...y esa manera de
coronas vide yo a los capitanes en la guerra de coatla[n]".
Essa informação relatada em terceira pessoa no texto do Vaticano A e em primeira pessoa
no TR, associada à similaridade entre os dois manuscritos e à referência do nome de Ríos como o
compilador do códice Vaticano A nas páginas desse mesmo manuscrito levaram a estudos mais
aprofundados, onde se concluiu que nosso códice pertenceu ou passou pelas mãos desse frade,
tendo sido ele o realizador das últimas anotações registradas em suas páginas.
Mas, quem foi Pedro de los Ríos?
Diversos autores, como Jansen145, Anders e Jansen146, Quiñones Keber147, dentre outros,
analisaram as informações contidas no TR, confrontando-as com dados que puderam ser
recuperados de "Actas Capitulares de los Dominicos"148. Assim, descobriram que frei Pedro de
los Ríos estava na Cidade do México em 1541, em Oaxaca em 1547 e 1548, em Puebla em 1550
e 1552, outra vez na Cidade do México em 1553, e novamente em Puebla em 1555, 1556, 1558,

140
HUMBOLDT, Al. de. Op. Cit., p. 279.
141
JANSEN, Maarten. Op. Cit., 1984, p. 22.
142
A conexão do Vaticano A com esse frade já tinha sido determinada desde o século XVII.
143
Página 23r do facsimilar: Codex Vaticanus 3738. Facsímil del Codex Vatic. Lat. 3738 de la Biblioteca Apostólica
Vaticana. Graz (Austria): Akademische Druck- u. Verlagsanst (ADEVA), 1996.
144
Transcrição de: ANDERS, Ferdinand; JANSEN, Maarten. Religión, Costumbres e Historia de los antiguos
mexicanos: libro explicativo del llamado Códice Vaticano A. México: Fondo de Cultura Econômica, 1996, p. 22.
145
JANSEN, Maarten. Op. Cit., 1984.
146
ANDERS, Ferdinand; JANSEN, Maarten. Op. Cit., 1996, p. 11-33.
147
QUIÑONES KEBER, Eloise. Op. Cit., 1995, p. 130-132.
148
Um dos documentos se encontra no Archivo Histórico, na Biblioteca Nacional de Antropologia e Historia
(INAH); e o outro na Bancroft Collection, Bancroft Library, Berkeley. (QUIÑONES KEBER, Eloise. Op. Cit., 1995,
p. 327).

42
1559 e 1562. Além disso, em 1565 foi realizada uma missa para os frades falecidos, onde consta
seu nome.
Os dados coletados a respeito do frade coincidem com informações referidas nos textos
do TR atribuídos a ele, onde é manifesto que possuía conhecimento sobre a região de Oaxaca.
Por isso, são poucos os autores que discordam dessa conclusão.
Para complementar, algumas novas informações sobre Ríos foram encontradas por Ethelia
Ruiz Medrano149 em um documento do Archivo General de Indias. O documento mostra que o
frade se encontrava, como refere a autora, "...involucrado dentro del partido de los religiosos que
estaban particularmente comprometidos a nivel político en la defensa de los pueblos índios"150,
pois presta interrogatório contra a intenção de cobrança de dízimos dos indígenas por parte do
arcebispo do México, Frei Alonso de Montúfar. Refere a autora que Ríos declara o seguinte:
"Fray Pedro de los Ríos, de más de 40 años. Entiende la lengua de los naturales, estuvo en todos
los conventos de su orden en N.E. y ha tratado mucho a los índios".151
Esse documento, dentre outras coisas, confirma os dados coletados sobre a vida do frade,
corroborando sua passagem por diversas regiões da nova Espanha, além de mostrar que falava
pelo menos uma língua nativa, possivelmente o náhuatl.

149
RUIZ MEDRANO, Ethelia. La glosa colonial en el Códice Telleriano Remensis. In: Actes de la Journeé d’Études
de l’Autre: les glosses du Codex Telleriano Remensis (Méxique, XVIe Siécle). No prelo. Agradecemos à autora e a
Patrick Lesbre pela disponibilização do texto.
150
Há de se analisar criticamente esse assunto, pois essa afirmação se baseia no processo que citamos a seguir sobre
a cobrança de dízimos. É possível sem dúvida que Pedro de los Ríos estivesse preocupado com os indígenas, mas
alguns documentos mostram que havia uma disputa acirrada pelo território por parte dos religiosos, que se sentiam
'donos' dos nativos e é possível que muitos daqueles que se manifestaram contra a cobrança de dízimos (portanto a
favor dos indígenas) estivessem agindo somente em proveito próprio, como pode ser notado por uma carta de queixa
que o arcebispo envia ao "Consejo de Indias": "...dicen ellos a este capítulo que ellos son ministros y se les deben los
diezmos y que no los piden: admirados estamos cómo dicen esto sabiendo ellos ques notorio y muy murmurado en
toda esta tierra que en muchas partes les llevan más que dos o tres diezmos, y si ellos dicen que a los ministros de la
Iglesia se deben los diezmos porque ellos se lo quieren llevar todo y que la iglesia matriz, prelado y Cabildo
conforme a la erección no lleven nada..." (Carta del Arzobispo de México al Consejo de Indias sobre la necesidad de
que los indios pagasen diezmos. 15 de mayo de 1556. [PASO Y TRONCOSO, Francisco del (comp.). Epistolario de
Nueva España. México: Antigua librería de Robredo de José Porrúa e Hijos, 16 tomos, 1939-1942. Vol 8, p. 70-96].
Disponível em:
<http://www.biblioteca.tv/artman2/publish/1556_377/Carta_del_Arzobispo_de_M_xico_al_Consejo_de_Indias_117
2.shtml>. Acesso em: 05 dez. 2007).
151
[Archivo General de Indias Justicia 160 No.2. "Los indios y principales de la Nueva España con(tra) los prelados
de ella sobre el pagar de los diezmos los dichos indios". Año 1559. 425 fojas. En la cubierta: trigo seda y ganados].
Citado em: RUIZ MEDRANO, Ethelia. Op Cit., no prelo.

43
Capítulo II – Composição Material

1. O suporte do Códice Telleriano Remensis

O Telleriano Remensis tem como suporte papéis de origem européia e foi organizado num
formato em códice, ou seja, um conjunto de folhas de papel dobradas ao meio e unidas entre si
por sua margem interna. Trata-se, portanto, de um livro com estrutura ocidental, uma vez que não
há registro desse tipo de organização de documento na América pré-colombiana.
Tradicionalmente, alguns livros indígenas também eram confeccionados em papel, os
quais eram feitos com a casca de uma árvore chamada amate, porém apesar da existência desse
produto a maioria dos manuscritos de tradição indígena realizados no período colonial, como o
Códice Telleriano Remensis, têm como suporte papéis fabricados na Europa.
A determinação da origem dos papéis usados na Nova Espanha e de sua estrutura
comercial, dificuldades de acesso, custo, dentre outros, podem nos ajudar a compreender melhor
o mercado novo-hispano, o consumo local de papel, a produção de documentos, a importância
dos documentos produzidos sobre esse suporte, sua datação, além de nos ajudar a entender a
preferência por um bem europeu escasso e caro em detrimento de um similar autóctone, o papel
de amate, que, aparentemente, deveria ser mais acessível, pois era largamente produzido e
consumido no período pré-hispânico.
O século XVI é marcado por um enorme aumento no consumo de papel e um grande
crescimento em sua fabricação, especialmente na Espanha e França, que seguiram os passos da
indústria italiana, conhecida pela qualidade de seu produto e onde já se fabricava e exportava esse
bem em larga escala152. A Nova Espanha não estava alheia a esse mercado e é exatamente a partir
de meados do século XVI que são produzidos importantes códices, hoje essenciais para o estudo
das culturas indígenas.

152
VALLS I SUBIRÀ, Oriol. La Historia del Papel en España: siglos XV-XVI. Tomo II. Madrid: Empresa Nacional
de Celulosas, 1978. BRIQUET, Charles M. Les Filigranes: Dictionnaire Historique des Marques du Papier.
Hildesheim: Georg Olms Verlag, 1991. Tome I.

45
1.1. Produção e exportação de papel europeu para a Nova Espanha no século
XVI

Os principais centros de fabricação e exportação de papel no século XVI concentravam-se


em território italiano. Anteriormente era a Espanha que detinha esse status, onde se iniciou a
fabricação de papel no ocidente153. Porém, devido à implementação de uma série de inovações
técnicas, a indústria papeleira italiana revolucionaria o mercado e faria crescer a preferência por
esse suporte154. Dentre as principais inovações podemos citar: o reforço e a melhor simetria na
construção das formas, a mudança da cola usada como aglutinante, a padronização do formato e a
invenção da filigrana.155 Além disso, não se pode esquecer a agilização no processo de fabrico,
que foi de suma importância para torná-lo competitivo.156 Também contribuiu para a ampliação
do mercado a associação que os produtores fizeram com os mercadores de especiarias, que
levariam o produto através de toda a Europa.
A indústria papeleira espanhola, em resposta à perda de seu mercado iniciou, já a partir do
século XV, um processo de adoção das melhorias técnicas praticadas pelos papeleiros italianos,
de forma a melhorar a qualidade de seu papel. Para isso usaram a estratégia de contratar mestres
papeleiros italianos para ensinar seus métodos e/ ou mesmo produzir papéis segundo suas
técnicas em moinhos na Espanha157. Esses intercâmbios, iniciados principalmente no reinado de
Alfonso V, e que dois séculos antes havia sido em sentido inverso158 seriam a base do novo
desenvolvimento dessa indústria na Espanha.159
Com as melhorias técnicas e agilização no fabrico, possibilitadas pelos intercâmbios, a
indústria espanhola começaria de novo a crescer e reconquistar consumidores em seu próprio

153
VALLS I SUBIRÀ, Oriol. La Historia del Papel en España: siglos X-XIV. Tomo I. Madrid: Empresa Nacional de
Celulosas, 1978.
154
VALLS I SUBIRÀ, Oriol. Op Cit. Tomo II, p. 17-27.
155
VALLS I SUBIRÀ, Oriol. Op Cit. Tomo I, p. 228.
156
HILLS, Richard L. Early Italian Papermaking, a Crucial Technical Revolution. In: Produzione e Comercio della
Carta e del Libro: sécc. XIII-XVIII. Firenze: Felice Le Monnier, p. 73-97, 1992, p. 97.
157
O que foi essencial para modernizar a indústria papeleira espanhola e também uma maneira de reduzir o preço do
papel italiano, evitando o pagamento dos impostos de importação (CARBONELL BORIA, M. José; MANCLÚS
CUÑAT, M. Irene. Papeleros italianos en Valencia (Segundo tercio del siglo XV). In: Actas del III Congreso
Nacional de Historia del Papel en España. Banyeres de Mariola (Alicante), p. 115-122, 1999, p. 116).
158
Diversos pesquisadores, dentre eles Valls I Subirà, acreditam que a indústria papeleira italiana aprendeu seu ofício
na Catalunha.
159
CARBONELL BORIA, M. José; MANCLÚS CUÑAT, M. Irene. Op. Cit., p. 116.

46
território. Mas, isso não seria suficiente, pois a invenção da imprensa no século XV e sua enorme
expansão nos séculos subseqüentes aumentariam cada vez mais o consumo de papel. No século
XVI a produção dos moinhos espanhóis era insuficiente para suprir todas as necessidades locais e
dos reinos vizinhos. E para agravar a situação de carência do produto, ainda era necessário enviá-
lo às colônias, que consumiam uma quantidade considerável de papel, especialmente a Nova
Espanha. Assim, cem ou mais moinhos participavam na fabricação do papel exportado para a
Nova Espanha.160
O papel produzido na Itália entrava na Espanha por portos como o de Sevilha e Cartagena.
Sevilha era o principal centro de comércio genovês em território espanhol161 e era também de
onde saíam os produtos direcionados à Nova Espanha. Todos os produtos que chegavam ou
saíam com esse destino eram controlados pela Casa de Contratación, que fiscalizava162 todas as
compras, vendas e envios marítimos às colônias.163
No século XVI havia uma grande profusão de moinhos de papel espalhados por toda a
Europa, e com a demanda pelo produto em constante avanço era necessária também muita
matéria-prima, ou seja, o trapo de linho. A Coroa espanhola chegou a tentar estimular os colonos,
na Nova Espanha, a enviar à península os trapos para a fabricação do papel, porém, não aprovava
uma produção local. Frei Juan de Zumárraga solicitou o envio de equipamentos para montar um
moinho papeleiro, mas seu pedido não foi atendido. A produção do papel estava incluída entre as
atividades que sofriam proibições e monopólios na colônia. Não era de interesse da metrópole
que ali se fabricassem produtos com os quais obtinha um lucro considerável. 164
Além disso, e mais importante ainda, como nos explica Gonzáles Rodriguez165, a
limitação de acesso ao papel e o controle da imprensa eram estratégias usadas pela Coroa para
evitar a difusão de idéias que pudessem gerar problemas para a administração da colônia, e
também impedir a divulgação de temas que difundissem “ciências falsas” ou estimulassem a

160
LENZ, Hans. Historia del papel en México y cosas relacionadas (1525-1950). México: Miguel Ángel Porrúa,
1990, p. 16.
161
MONTALBÁN JIMÉNEZ, Juan Antonio. El comercio de papel en Cartagena a finales del siglo XVI. In: Actas
del V Congreso Nacional de Historia del Papel en España. Sarrià de Ter (Girona): p. 123-131, 2003, p. 123.
162
É claro que era impossível para a coroa controlar os envios ilegais de ambos os lados do Atlântico, por isso, é
possível que alguns papéis entrassem na Nova Espanha também por essa via.
163
LENZ, Hans. Op. Cit., p. 29-30.
164
LENZ, Hans. Op. Cit., p. 17.
165
GONZÁLES RODRIGUEZ, Jaime. La difusión manuscrita de ideas en el siglo XVI. In: Revista Complutense de
Historia de América. Madrid: n.18, p. 89-116, 1992, p. 90.

47
idolatria entre os índios. Assim, os livros publicados no século XVI na Nova Espanha passavam
por um controle rigoroso, exercido tanto pela Coroa como pela Inquisição.
O papel era uma mercadoria escassa na Nova Espanha, pois as remessas eram
irregulares166 e essa escassez devia contribuir para seu encarecimento. Assim "os estoques
disponíveis de papel eram rapidamente consumidos, impedindo prolongadas armazenagens nos
depósitos."167
Saber que o papel era uma mercadoria cara, escassa e de difícil acesso na Nova Espanha
possibilita-nos determinar a importância dos códices coloniais para seus possuidores, uma vez
que se despendia uma quantidade considerável de dinheiro na compra dos papéis. Isso leva-nos a
pensar que talvez, no caso do TR, tenham sido adquiridos por uma instituição religiosa uma vez
que o códice está estreitamente relacionado com Frei Pedro de los Ríos, que era dominicano. Por
isso, é possível que esse códice não pertencesse especificamente a indivíduos, mas à ordem
dominicana, que teria melhores condições de financiar os custos da obra.
Mas, por que ordens religiosas e indígenas despenderiam tanto dinheiro na confecção de
tais documentos? No caso dos indígenas uma das principais razões era a validade legal das
pinturas nos processos judiciais. Quanto aos missionários, nos explica Escalante Gonzalbo:

"Dos fueron los motivos por los cuales los frailes se dedicaron al estudio de la historia y las
costumbres indígenas. En primer lugar, la Corona, a través del Consejo de Indias, pedía
reiteradamente información sobre las 'nuevas' tierras a las autoridades coloniales. Y en los
primeros años no había nadie mejor facultado que los frailes para reunir esa información: ellos
estaban cerca de las comunidades, iban aprendiendo las lenguas, recorrían sistemáticamente el
territorio y eran habitualmente aceptados por los índios. (...)El segundo motivo se encuentra en
una preocupación religiosa. Los frailes estaban convencidos de que era necesario conocer mejor
los antiguos ritos para erradicar aquellas prácticas que pudieran ser contrarias a la fe cristiana, y
también para rescatar aquellas que fueran útiles y dignas de conservarse".168

166
LENZ, Hans. Op. Cit., p. 15-17.
167
DIBBLE, Charles E.; ANDERSON, Arthur J. O. Florentine Codex. General History of the Things of New Spain.
Introductions and Índices. Santa Fé: Monographs of School of American Research; Salt Lake City: University of
Utah, 1982, p. 25.
168
ESCALANTE GONZALBO, Pablo. Op. Cit. No prelo, p. 75.

48
1.2. Tipos de papel

De um modo geral, os papéis usados no ocidente costumam ser classificados em dois


grandes grupos: o oriental ou árabe e o ocidental. A partir de finais do século XIV o papel
oriental desaparece do ocidente, pois o italiano ganha tão grande aceitação que acaba por eliminá-
lo.169 Após 1300, então, os papéis usados na Península Ibérica são todos da categoria ocidental, e
podem ser divididos em quatro grupos, que apresentavam diferenças específicas, de acordo com a
procedência: papel Árabe-Ocidental ou papel Toledano, papel Ocidental ou Italiano, papel
Catalão e papel Ceptí170.
O Códice Telleriano Remensis é formado por 4 papéis distintos171 (que chamamos de
papel 1, 2, 3 e 4), cada um deles confeccionado em uma forma diferente. O segundo, terceiro e
quarto (em ordem de aparição no códice), provavelmente, provêm da mesma “fábrica” (batedor)
ou moinho papeleiro, enquanto o primeiro pode ser originário de um outro moinho. Suas
características específicas e proveniência serão analisadas e discutidas mais adiante, porém, de
um modo geral, ao comparar esses papéis usados no códice com as características citadas por
Ruiz García172 podemos classificá-los, todos, como papéis ocidentais posteriores a 1300. Pelas
características de suas marcas (deixadas pela forma do papel), que podem ser vistas contra a luz,
podemos descartá-los como papéis catalães, por apresentarem as vergaduras173 bastante unidas e
sem deformações; também não podem ser papéis árabe-ocidentais, porque possuem filigrana (os
papéis árabe-ocidentais não as possuem) e não apresentam as marcas de zig zag, comumente
encontradas nesse tipo de papel; também, possivelmente, não foram fabricados em Castela, pois
têm tramas regulares e possuem filigrana (grande parte dos papéis de Castela não possui
filigrana). Assim, somente resta uma das opções listadas acima, onde podemos classificar nossos
papéis: o papel Ocidental ou Italiano. Apesar das variações existentes dentro de cada uma das

169
RUIZ GARCÍA, Elisa. Op. Cit., p. 78.
170
RUIZ GARCÍA, Elisa. Op. Cit., p. 79-80.
171
Para facilitar a referência a esses diferentes papéis usados na confecção do Telleriano Remensis, passaremos a nos
referir a eles como: papel 1, papel 2, papel 3 e papel 4, segundo ordem de aparição no códice.
172
RUIZ GARCÍA, Elisa. Op. Cit., p. 79-80.
173
Marcas deixadas no papel pelos fios horizontais de arame da forma.

49
categorias de papel expostas, todas174 as características dos papéis do Telleriano podem ser
atribuídas ao papel Ocidental ou Italiano, como veremos a seguir.

1.3. Fabricação do papel

O Códice TR possui algumas características que somente podem ser compreendidas se


conhecermos os métodos usados na fabricação de seus papéis, conhecimento esse que facilitará
também o entendimento de alguns aspectos técnicos, que serão abordados nesse capítulo.
Assim, nos papéis do tipo Ocidental ou Italiano, como os de nosso códice, eram usadas
fibras de linho e cânhamo ou trapos de linho como matéria-prima.175 Esses materiais eram
desfeitos, ou cortados para o caso dos trapos, e deixados em tanques a fermentar em água, sendo
depois esmagados por martelos de madeira acionados por rodas de moinho, que movimentavam
um eixo horizontal (árvore de cames), responsável por levantar o martelo, que caía mediante
força da gravidade contra as fibras.
Normalmente, os trapos ou fibras passavam por três tipos de pilões até que se
transformassem em uma pasta homogênea, que depois era colocada em uma grande tina com
água e lá deixada para homogeneizar o material na superfície. O artesão, então, introduzia a
forma, formada por uma trama metálica, onde ficava retida uma fina camada da pasta. Em
seguida essa película era depositada em um feltro para iniciar o processo de secagem, prensada
diversas vezes e depois estendida. Mais tarde a folha era novamente submetida a uma nova
imersão ou untada com cola, processo denominado encolamento, e depois novamente prensada e
estendida. Quando seca devia ser lustrada e alisada para reduzir as irregularidades.
Segundo informações de Ruiz García176, no processo de elaboração do papel trabalhavam
simultaneamente dois artesãos, que manipulavam um par de formas muito similares, mas que por
terem sido feitas à mão apresentavam pequenas diferenças. As filigranas dessas formas
costumavam ser muito parecidas e são conhecidas hoje como filigranas gêmeas. Por outro lado,

174
Todas as que puderam ser analisadas. Não foram feitos testes químicos ao papel para verificar, por exemplo, o
encolamento aplicado, dentre outras características.
175
RUIZ GARCÍA, Elisa. Op. Cit, p. 66.
176
RUIZ GARCÍA, Elisa. Op. Cit., p. 72.

50
Hans Lenz177 afirma que o artesão chamado “formador”, especialista na manipulação da forma do
papel, trabalhava sempre com duas formas, pois enquanto deixava por breves segundos a
primeira a escorrer, depois de tê-la mergulhado na água para nela depositar a pasta do papel, fazia
a mesma operação na segunda. Em seguida, enquanto a segunda escorria, depositava a primeira
num feltro e imediatamente repetia a operação inicial.
Seja como for, trabalhando dois artesãos formadores ao mesmo tempo ou um único com
duas formas, o fato é que esses papéis apresentavam semelhantes características, por terem sido
fabricados com a mesma pasta de papel. Além disso, essas formas eram muito parecidas,
produzindo papéis com filigranas bastante similares, que são chamadas de filigranas gêmeas.
Esse pode ser o caso de duas das filigranas semelhantes encontradas em nosso códice. Falaremos
com detalhes de suas semelhanças e diferenças no tópico referente à análise das filigranas.
De um modo geral, as características de um papel são de dois gêneros, como nos explica
Briquet178: aquelas referentes à qualidade e as que se relacionam com a forma usada para sua
confecção. Há diversos elementos que podem interferir na qualidade do papel, como a fibra ou
trapos usados na fabricação e o modo como essa matéria-prima foi preparada, lavada e triturada.
Por isso, até mesmo os papéis fabricados no mesmo batedor com o uso de uma única forma
podem apresentar diferenças significativas, devido: à variedade das matérias-primas empregadas;
à habilidade desigual dos artesãos que possam ter participado na fabricação dos papéis, ao longo
dos anos de uso de uma determinada forma; às chuvas, que tornam a água dos rios menos
cristalinas; e aos locais e à situação de armazenamento desses papéis, que podem ser responsáveis
por um maior ou menor amarelamento e flexibilidade das folhas. 179
Quanto à qualidade dos papéis usados na confecção do TR180, podemos concluir que: os
papéis não apresentam uma transparência excessiva, ou seja, apesar de haver transparência, ela
não chega a prejudicar a leitura, nos fólios com ambas as páginas ocupadas. A espessura é regular
em todos os 4 grupos de papéis, apesar do chamado papel 1 parecer menos espesso que os papéis
2, 3 e 4. No que se refere à flexibilidade podemos dizer que o papel 1 é o mais flexível, enquanto

177
LENZ, Hans. Op. Cit., p. 159.
178
BRIQUET, Charles M. Les Filigranes: Dictionnaire Historique des Marques du Papier. Hildesheim: Georg Olms
Verlag, 1991. Tome I, p. 1.
179
BRIQUET, Charles M. Op.Cit. Tome I, p. 1-2.
180
Também não foi realizado nenhum tipo de análise química para a determinação da qualidade dos papéis do TR.
Esse manuscrito pertence a um acervo especial da Bibliothèque Nationale de France, chamado de Grande Reserva,
com acesso bastante limitado e condições particulares de consulta e, por isso, a análise de sua qualidade foi realizada
somente por intermédio da observação direta.

51
os outros possuem menor flexibilidade. Todos eles têm, aparentemente, qualidade similar. Talvez
o papel 1 tenha qualidade um pouco inferior, no entanto, a condição desses fólios, muito mais
deteriorados que as outras partes pode ser a causa dessa impressão. Vale ressaltar que o último
fólio do códice encontra-se também deteriorado, porém, não tanto quanto os primeiros. Nesse
caso, é preciso considerar, ainda, que os primeiros fólios de um livro, normalmente, costumam
sofrer maior manipulação que os últimos, o que pode ser, também, a causa dessa maior
degradação. Enfim, apesar desse maior grau de deterioração no papel 1 é possível afirmar que
todos os tipos possuem um aspecto exterior e, aparentemente, qualidade similares.

1.3.1. A Forma do papel

Uma das partes mais importantes na fabricação do papel era a construção da forma. Sua
estrutura era determinante na qualidade do papel produzido, pois se os fios não estivessem
suficientemente juntos e estirados produziriam um produto defeituoso. Portanto, sua construção
era de suma importância e levada bastante a sério, principalmente pelos papeleiros italianos desde
o início da fabricação de papel em suas cidades. Uma das modificações técnicas que transformou
o papel italiano no mais apreciado a partir do século XV foi justamente as melhorias que
realizaram na construção das formas.
Assim, os papéis usados no códice Telleriano Remensis foram confeccionados em formas
constituídas por fios de latão sustentados por um quadro de madeira. Os fios eram colocados
horizontalmente e são chamados de vergaduras181; eram muito finos e em grande número, sendo
dispostos bem unidos. Para fixá-los no lugar, de modo a evitar defeitos no papel, colocavam no
sentido vertical da forma peças de madeira de seção triangular, chamados de pontusais182, em
pequeno número, espaçados e sobre os quais passavam os fios chamados “correntes”183, usados
para fixar os fios vergadura e que eram presos nas seções de madeira dos pontusais por meio de

181
Nome do termo em português retirado da seguinte referência: PINHEIRO, Ana Virginia (comp.). Glossário de
Codicologia e Documentação. In: Anais da Biblioteca Nacional. Rio de Janeiro: Biblioteca Nacional, v. 115, 1995, p.
124-213, 1998. Disponível em: <http://www.bn.br/fbn/bibsemfronteiras/anais/index.html> Acesso em: 23 out. 2006.
182
Idem ibidem.
183
Termo traduzido do espanhol: cadeneta. (MARSÁ, Víctor (coord.). Gran Diccionário Español-Portugués/
Português-Espanhol. Madrid: Editorial Espasa Calpe, 2001, p. 100).

52
um outro fio, o “fio de união”. Quando a pasta de papel era depositada sobre essa trama de metal,
a área onde passavam os fios dos pontusais e vergaduras retinha menor quantidade de material,
originando relevos ou marcas.184 As imagens a seguir, retiradas do Vocabulaire codicologique de
Denis Muzerelle185, demonstram bem o aspecto da estrutura da forma. Esses desenhos facilitam
nossa compreensão das marcas e outros aspectos deixados no papel pela forma, que ajudarão o
leitor a entender os elementos que serão analisados no estudo dos papéis usados no Códice
Telleriano Remensis.
Assim, na Figura 12 reproduzimos uma imagem da forma de papel e na Figura 13 uma
imagem detalhada do aspecto dos pontusais.

184
GAYOSO CARREIRA, Gonzalo. Op. Cit. Tomo I, p. 30.
185
MUZERELLE, Denis. Vocabulaire codicologique Paris: Editions CEMI, 1985. Disponível em:
<http://vocabulaire.irht.cnrs.fr> Acesso em: 08 out. 2006.

53
Figura 12 Figura 13
A - estrutura A - trama
B - “caixilho” B - “fio de união”
C - “bastidor” C - “ponto de união”
D - pontusais D - “fio de corrente”187
E - vergaduras
F - “fio de corrente”
E + F - trama186

As marcas deixadas pela forma na fabricação do papel são hoje de extrema importância e
responsáveis, muitas vezes, por grande parte das informações que podemos obter para delimitar a
época e o local onde foram produzidos os documentos e manuscritos. Segundo Briquet188, as
características transmitidas pela forma ao papel são de quatro tipos: o formato, as vergaduras, os
pontusais e as filigranas.

186
MUZERELLE, Denis. Vocabulaire codicologique Paris: Editions CEMI, 1985. Disponível em:
<http://vocabulaire.irht.cnrs.fr/fig/pict/pict024.gif> Acesso em: 08 out. 2006.
187
MUZERELLE, Denis. Vocabulaire codicologique Paris: Editions CEMI, 1985. Disponível em:
<http://vocabulaire.irht.cnrs.fr/fig/pict/pict024.gif> Acesso em: 08 out. 2006.
188
BRIQUET, Charles M. Op. Cit. Tome I, p. 2.

54
1.3.2. Formatos

O papel de origem espanhola, nunca teve padronizações gerais de formato. O contrário


aconteceu na Itália, que desde os primórdios de sua indústria papeleira já começaram a definir
suas dimensões. Assim, em Bolonha, por exemplo, a regulamentação chegou a determinar: a
padronização do formato, dos preços sobre cada tipo, do peso e da qualidade. Os formatos
padronizados foram: imperial (imperialle), de 740 X 510 mm; real (realle), de 615 X 450 mm;
mediano (meçane), de 504 X 350 mm; e pequeno (reçute), de 450 X 318 mm189. Dentre todos, os
mais utilizados eram os medianos190, mas o formato que mais se assemelha ao usado no
Telleriano é o chamado reçute.
Quanto aos formatos de papel que circulavam na Espanha, os mais comuns eram: papel de
ofícios, de 340 X 230 mm; papel de marca ou de marca regular, de 440 X 320 mm; papel de
marquilla ou de marquilla regular, de 550 X 380 mm; papel de marca mayor ou de doble marca,
de 640 X 440 mm; e papel de cuádruple marca ou de doble marca mayor, de 880 X 640 mm. 191
O formato mais próximo ao dos papéis de nosso códice é o papel de marca.
Cada período teve suas preferências em relação ao formato do papel. Alguns tamanhos
foram mais aceitos em determinadas épocas e depois passaram a ser menos procurados, em
detrimento de algum outro tamanho mais adequado aos propósitos dos consumidores. Os papéis
de grandes dimensões sempre representaram dificuldades em relação à adequação da estrutura da
fábrica para a sua produção, pois requeriam pias maiores, formas mais desajeitadas, dentre outros
problemas, o que, conseqüentemente, fazia com que seu custo fosse mais elevado,
desinteressando, assim, os consumidores. O papel chamado de reçute, por exemplo, de dimensões
pequenas, foi produzido mais ou menos do século XIV à primeira metade do século XVI, quando
praticamente desapareceu.192
Para a determinação do formato dos papéis do Códice Telleriano Remensis é preciso levar
em consideração uma série de problemas relativos à história desse manuscrito, que colocam

189
É preciso ressaltar que essas medidas são aproximadas, porque há pequenas variações entre os números que nos
informam cada autor especializado na matéria, pois é provável que façam arredondamentos. Os números adotados
acima são os fornecidos por Valls I Subirà. Briquet (Tome I, p. 2) fornece as seguintes medidas para os papéis:
imperialle 740 X 500 mm; realle 615 X 445 mm; meçane 515 X 345 mm; e reçute 450 X 315 mm.
190
VALLS I SUBIRÀ, Oriol. Op Cit. Tomo II, p. 22.
191
RUIZ GARCIA, Elisa. Op. Cit., p. 73.
192
BRIQUET, Charles M. Op.Cit. Tome I, p. 4.

55
dificuldades na análise de suas dimensões. Como antes mencionado, o Telleriano é formado por
quatro grupos de papéis. O primeiro deles, papel 1, foi usado na confecção da primeira parte do
códice, o xiuhpohualli, e os três seguintes na última página do xiuhpohualli e restante do
manuscrito. Todos eles mostram grande deterioração, sofrida ao longo dos séculos, o que causou
graves reduções nas bordas de todas as folhas (fólios), além de terem sido guilhotinadas,
especialmente em seu lado superior.
O manuscrito passou por duas restaurações no século XX, uma realizada entre os anos de
1966-67 e outra entre 1986-87. Antes dessas restaurações os fólios do livro possivelmente
encontravam-se soltos e apresentando falta de material em suas bordas. Na primeira restauração
removeram a capa que possuía quando entrou na Bibliothèque du Roi e inseriram uma nova,
fixando-a possivelmente com as fitas plásticas citadas por Quiñones Keber193. Na segunda
restauração fizeram a aplicação de enxertos de papel em todos os lados dos fólios, de forma a
delinear novamente as bordas interna e externa, e inferior e superior. Esses enxertos dificultam o
cálculo das dimensões originais das folhas de papel, principalmente porque realizaram também a
união dos fólios, ou seja, o restabelecimento dos bifólios (as folhas de papel dobradas ao meio
para formar os cadernos). Com a deterioração, o livro sofreu a separação de seus bifólios, em cuja
margem interna estavam as costuras que serviam para unir o códice.
Apresentamos a seguir na Tabela 1 as medidas aproximadas de algumas das folhas de
papel do TR, obtidas no original, sem levar em consideração os enxertos feitos na restauração, ou
seja, somente foram medidas as partes originais das folhas mediante observação contra a luz. Em
seguida, tentaremos efetuar comparações com as medidas padrões dos papéis de tipo Ocidental
ou Italiano fornecidas por alguns autores, para tentar determinar qual deveria ser a medida
original das folhas de papel do códice. A seguir apresentamos essas medidas aproximadas de
alguns dos fólios:

193
Ninguém na Biblioteca Nacional de França soube nos descrever como se encontrava o manuscrito encadernado
antes da segunda restauração. Uma breve descrição pode ser encontrada na obra de Quiñones Keber (QUIÑONES
KEBER, Eloise. Op. Cit., 1995, p. 121), que também nos forneceu algumas informações por correspondência
eletrônica.

56
Fólio 1 199 X 305 mm Fólio 11 213 X 305 mm Fólio 25 213 X 306 mm

Fólio 2 210 X 307 mm Fólio 13 216 X 307 mm Fólio 27 211 X 306 mm

Fólio 3 213 X 307 mm Fólio 15 210 X 305 mm Fólio 29 214 X 305 mm

Fólio 6 208 X 304 mm Fólio 17 207 X 306 mm Fólio 32 212 X 301 mm

Fólio 7 208 X 303 mm Fólio 19 216 X 307 mm Fólio 38 214 X 306 mm

Fólio 8 207 X 307 mm Fólio 21 210 X 307 mm Fólio 49 213 X 301 mm

Fólio 10 208 X 305 mm Fólio 23 216 X 307 mm Fólio 50 210 X 302 mm

Tabela 1

Ao observar o documento original, logo à primeira vista, é possível perceber que a


primeira parte do códice, ou seja, a parte realizada com o papel 1, devia apresentar um tamanho
superior ao do restante do códice. Os tamanhos foram homogeneizados mediante o uso de uma
guilhotina, provavelmente, numa encadernação realizada antes deste ter sido entregue aos
cuidados da Bibliothèque du Roi. As perdas sofridas nas folhas dessa primeira parte eliminaram
inclusive pequenos pedaços dos desenhos, que se encontram no lado superior das páginas - caso
que não se repete em nenhuma outra parte do TR. Essa característica também foi observada por
Batalla Rosado.194 O restante dos fólios do códice não sofreram perdas nos desenhos,
ocasionados por esse guilhotinamento, e parecem apresentar formato bastante similar.
Os primeiros e os últimos fólios são aqueles que mais apresentam deterioração e, por isso,
é natural que mostrem medidas inferiores. Mas, também no interior do manuscrito há casos de
fólios com medidas inferiores, como a 8, por exemplo, que marca o início da seção do
tonalpohualli, e o fólio 17, que como veremos era um dos meios do caderno. Os fólios 1, 2, 3 e 6
pertencem à primeira parte do códice e ao primeiro papel (papel 1), enquanto os restantes
números pertencem ao papel 2, papel 3 e papel 4. Tentaremos reconstruir a ordem original dos
cadernos do códice no item Organização Material e a partir daí será possível estabelecer teorias
sobre quais dessas folhas pertenciam a que grupo de papel, porém, com os dados analisados até
agora podemos somente indicar que os fólios 7, 8, 10 e 13 pertencem ao papel 2, os fólios 15, 17,
21 e 25 ao papel 3 e os fólios 38 e 49 ao papel 4, porque carregam as filigranas, elementos

194
BATALLA ROSADO, Juan José. Estudio codicológico de la sección del xiuhpohualli del Códice Telleriano
Remensis. In: Revista Española de Antropología Americana. v. 6, n. 2, p. 69-87, 2006, p. 82-84.

57
indicativos de que há três grupos de papel empregados na segunda e terceira parte do códice. Dos
números 11, 19, 23, 27, 29, 32 e 50 podemos dizer, até o momento, que pertencem ao papel 2, 3
ou 4.
As medidas do TR fornecidas até agora são referentes à folha de papel dobrada ao meio,
ou medida dos fólios. Para se obter dimensões aproximadas do formato das folhas de papel é
preciso duplicar o sentido que apresenta o menor comprimento. Por exemplo, nas maiores
medidas de fólios do códice, referidas na tabela acima, de 216 X 307 mm, esta dimensão seria de
432 X 307 mm. No entanto, devido à deterioração sofrida nas bordas, é preciso estabelecer
alguma flexibilidade na busca pelos formatos, procurando aproximações.
Assim, dos formatos encontrados na bibliografia são dois os que, até agora, mais se
assemelham à dimensão aproximada dos papéis usados no TR: o chamado papel de marca ou
papel de marca regular, de 440 X 320 mm e o denominado reçute, de 450 X 318 mm, que,
segundo Briquet195, praticamente desapareceu a partir de meados do século XVI. Esse fato não o
desclassifica como provável formato, pois, de acordo com os estudos realizados até agora, o TR
parece ser um manuscrito de meados desse mesmo século. Apesar da maior medida dos papéis do
Telleriano se assemelharem mais com a do papel de marca, fornecida por Ruiz García196, é
também provável que, originalmente, tivessem as dimensões do reçute.
Há, ainda, um outro dado que pode reforçar o uso do papel reçute na confecção do TR.
Hans Lenz, em sua obra “Historia del papel en México y cosas relacionadas” 197, afirma que Juan
Pablos198, considerado o criador da imprensa no México, em 1539 (juntamente com Juan
Cromberger), usou uma prensa cujo tamanho era adequado para receber folhas de 450 X 320 mm,
apropriados para fazer livros de 220 X 320 mm de dimensão. Essas dimensões são mais parecidas
com as do papel reçute.
Então, se considerarmos que as diferenças de dimensão dos formatos de papel, entre os
autores, pode ter ocorrido devido aos arredondamentos de números e às perdas nas bordas dos
fólios e que o TR sofreu graves perdas em suas bordas, são muito coincidentes todas essas
medidas. Podemos considerar, inclusive, que há uma explicação para o envio desse formato de
papel usado no TR para o México, pois a prensa ali instalada usava essa mesma medida.

195
BRIQUET, Charles M. Op. Cit. Tome I, p. 4.
196
RUIZ GARCIA, Elisa. Op. Cit., p. 73.
197
LENZ, Hans. Op. Cit., p. 54.
198
Na verdade, Giovani Paolo, pois era de origem italiana.

58
As diferenças entre: 318 para 320 mm na altura da folha de papel do formato reçute
(tomado de Vals I Subirá199) e o formato da folha de papel usado na prensa de Pablos (fornecido
por Lenz200), a medida fornecida por Briquet201 para a altura do reçute, de 315 mm, e, ainda, a
largura do papel de marca, de 440 mm, (dado por Ruiz García202), podem ser todas explicadas
por uma série motivos, desde arredondamentos - como deve ser o caso das medidas do papel
reçute, uma vez que Valls I Subirà e Briquet coletaram seus dados na mesma fonte -, até
características da fabricação dos papéis.
De fato, é bem possível até que todos esses dados se refiram ao mesmo formato. Aquele
chamado de reçute na Itália pode ter sido o chamado papel de marca na Espanha. O fato dos
números não serem coincidentes nos autores não invalida a atribuição do formato dos papéis do
Telleriano a qualquer um dos citados, pois há, além dos arredondamentos, outras razões que
podem fazer com que diferentes dimensões sejam atribuídas ao mesmo formato de papel.
Primeiramente, podemos citar a construção das formas, que eram feitas artesanalmente, e por
isso, podiam apresentar pequenas diferenças, mesmo que usassem uma medida padronizada.
Depois, é preciso levar em conta as condições climáticas e a qualidade da pasta de papel, pois
mesmo os papéis confeccionados na mesma forma podiam apresentar diferenças significativas,
pois a pasta variava de acordo com a qualidade do papel a ser produzido. E, ainda que a intenção
fosse produzir uma qualidade idêntica, tudo dependia dos trapos usados em sua confecção. No
caso das condições atmosféricas, essas influíam diretamente no processo de secagem, podendo
ser responsáveis por 2 ou 3 centímetros de diferença entre papéis com filigranas idênticas, de
acordo com Briquet203. Para finalizar, é preciso considerar também as intervenções e
deteriorações sofridas pelo papel, no que se refere ao seu uso e armazenamento. Nesse sentido,
para Valls I Subirà204, há uma série de elementos que dificultam o cálculo exato da medida de um
papel: o primeiro deles é o corte da rebarba. Normalmente, a rebarba, formada pelo vazamento da
pasta de papel em direção às bordas da forma, por ser considerada um defeito, era cortada. Esta
era uma prática normal antes de proceder ao uso do papel, a qual podia ocasionar a perda de
alguns milímetros. Depois, outro importante procedimento que diminuía o tamanho das folhas era

199
VALLS I SUBIRÀ, Oriol. Op Cit. Tomo II, p. 22.
200
LENZ, Hans. Op. Cit., p. 54.
201
BRIQUET, Charles M. Op. Cit. Tome I, p. 2.
202
RUIZ GARCIA, Elisa. Op. Cit., p. 73.
203
BRIQUET, Charles M. Op. Cit. Tome I, p. 2.
204
VALLS I SUBIRÀ, Oriol. Op Cit. Tomo II, p. 198.

59
a encadernação, que, em muitos casos podia ser responsável pelas maiores reduções, pois uma
quantidade considerável de encadernadores guilhotinava muitos milímetros das bordas dos papéis
para compor um códice esteticamente regular. Além disso, há que considerar também o desgaste
do tempo, que causa, muitas vezes, graves perdas nas bordas.
Considerando, então, todos os elementos acima referidos, as diferenças apresentadas entre
as dimensões dos papéis são bastante aceitáveis, pois mesmo se tomarmos a maior medida da
altura fornecida, de 320 mm, a diferença para os papéis do TR seria de 1,3 cm: 320 - 307 = 13
mm. Isso significaria que o fólio do livro perdeu 1,3 cm em sua altura, ou seja, 0,65 cm em cada
um dos lados: superior e inferior. Essa quantia de perda é absolutamente aceitável para qualquer
documento nas condições do TR, assim como a perda de 0,9 cm de cada um dos lados do bifólio
(na margem esquerda, de um lado, e direita, do outro - da folha de papel dobrada para formar o
livro em formato de códice): 450 - 432 = 18 mm.
Para concluir, então, é possível afirmar que o formato original das folhas de papel usadas
no TR poderia ter sido de 315 a 320 de altura, e de 440 a 450 de largura. E também que os 4
grupos de papel encontrados no códice podiam ter distintas medidas, considerando que foram
feitos em diferentes formas e a construção artesanal dessas formas pode fazer com que
apresentem pequenas diferenças. É possível, ainda, que o papel 1 apresentasse altura maior que a
dos outros três, por causa dos cortes de partes do desenho pelo guilhotinamento, na parte superior
de seus fólios. Essa provável diferença de tamanho entre o papel 1 e os outros três não significa
que tivessem distintos formatos. Acreditamos mais na possibilidade de que pertenciam ao mesmo
formato, os quais deviam apresentar algumas diferenças por terem sido confeccionados (o papel 1
por um lado e o 2, 3 e 4 por outro), possivelmente, em diferentes batedores. E mesmo que não
fosse esse o caso as diferenças também podem ser explicadas pelas razões enumeradas acima,
sobre as circunstâncias da fabricação e armazenamento do papel.

60
1.3.3. As Marcas do papel

Quanto às restantes características transmitidas ao papel pela forma, são todas referentes
às marcas deixadas pelos fios de arame. São pequenos relevos resultantes do depósito da pasta do
papel na forma, a qual se acumula em diferentes proporções em regiões onde passam ou não os
fios de arame. As marcas formadas por esse acúmulo irregular podem ser vistas colocando-se as
folhas contra a luz. Na Figura 14 a seguir é possível observar os diversos tipos de marcas:

A - vergaduras
B - pontusais
C/ C’ - “correntes” de
cabeceira
D - pontusal portador
E - filigrana
F - contramarca

Figura 14 G - “ponto de união”


H - tramo205

Nas vergaduras, que são as marcas do sentido horizontal da folha de papel, o número de
fios por centímetro variou muito, de acordo com a época e local de produção. O espaço ocupado
por vinte vergaduras pode ser entre os 16 e os 80 mm.206
A partir da segunda metade do século XV, na Itália, passaram a empregar um arame
bastante tênue nas formas, o que fez com que esse papel fosse mais fino e delicado.207 Os fios
utilizados nas formas dos papéis do TR são todos muito finos, porém, no papel 1 parece ter sido

205
MUZERELLE, Denis. Vocabulaire codicologique Paris: Editions CEMI, 1985. Disponível em:
<http://vocabulaire.irht.cnrs.fr/fig/pict/pict024.gif> Acesso em: 08 out. 2006.
206
BRIQUET, Charles M. Op. Cit. Tome I, p. 7.
207
BRIQUET, Charles M. Op. Cit. Tome I, p. 14.

61
usado fio ainda mais fino que nos outros três. Na Tabela 2 a seguir colocamos o número de
vergaduras por centímetro em cada um dos fólios.

No de fios Fios por Fios por Fios por Fios por


Fólios por cm Fólios cm Fólios cm Fólios cm Fólios cm
1 11 11 9 21 9 31 9 41 9
2 11 12 9 22 9 32 9 42 10
3 11 13 9 23 9 33 9 43 10
4 11 14 9 24 9 34 10 44 10
5 11 15 9 25 9 35 10 45 10
6 11 16 9 26 9 36 9 46 9
7 9 17 9 27 9 37 9 47 10
8 9 18 9 28 9 38 10 48 9
9 9 19 9 29 9 39 10 49 10
10 9 20 9 30 9 40 9 50 10
Tabela 2

Esses dados sobre o número de vergaduras já nos fornece alguns indícios sobre as
diferenças existentes entre as diversas formas usadas na confecção dos papéis empregados no
Códice TR, as quais discutiremos mais adiante.
Como explicado no item “A forma do papel” e ilustrado na Figura 13, os fios vergadura
são unidos uns nos outros pelo “fio de corrente”. Há diversas maneiras de entrelaçar os fios
vergadura entre si, o que pode ser observado na Figura 15.

A, B, C, D – “Corrente” sobre fio fixo


A, B, E, F - Costura fio a fio
C, D - Costura alternada
E - “Corrente” de dois fios ou “Corrente” simples
F - “Corrente” retorcida

Figura 15

62
As vergaduras dos papéis do TR apresentam-se bastante unidas e, aparentemente, todos os
4 grupos de papel identificados apresentam entrelaçamento fio a fio. É bastante provável, ainda,
que todos tenham sido entrelaçados sobre fio fixo, segundo o exemplo A/B da Figura 15.
O número e distância entre os pontusais (marcas verticais e mais espaçadas) também
variaram bastante, de acordo com a época. Briquet208 afirma que, especialmente nos papéis de
origem italiana, ocorre um grande espaçamento entre dois dos pontusais, onde se coloca a
filigrana, como no exemplo da Figura 14. Nesse intervalo, normalmente, adicionavam um
pontusal suplementar209, usado para fixá-la, e que recebe o nome específico de pontusal portador
(letra D da Figura 14). Os papéis usados no códice TR possuem essa característica e as medidas
médias aproximadas210 entre esses pontusais portadores e os pontusais vizinhos são mostrados na
Tabela 3 (colocando as filigranas similares, do papel 2, 3 e 4 no mesmo sentido e posição):

Papel Medidas

Lado 1 Lado 2

Papel 1 2,2 2,2

Papel 2 2,3 2,4

Papel 3 2,3 2,4

Papel 4 2,5 2,3

Tabela 3

Outra característica que começa a surgir nos papéis “...a partir do final do século XIV,
mas de uma maneira contínua no XVI, é um pontusal suplementar em cada uma das bordas da
folha, chamado pontusal de apoio, o qual se separa de seu vizinho por um espaço menor que

208
BRIQUET, Charles M. Op. Cit. Tome I, p. 8.
209
O pontusal suplementar é um pontusal cuja distância entre seus vizinhos é inferior à normal. (OSTOS, Pilar;
PARDO, M. Luisa; RODRÍGUEZ, Elena E. Vocabulario de Codicología. Madrid: Editorial Arco, 1997, p. 69).
210
Os papéis apresentam uma pequena variação nessas medidas, em especial o papel 2, por isso usamos sempre a
média dos tamanhos levantados e/ou a medida mais recorrente. Essas variações são resultantes da impossibilidade de
precisão na coleta dos dados, que foram medidos colocando-se as folhas do documento original em sentido vertical e
contra a luz, sem qualquer apoio possível.

63
aquele existente entre os outros pontusais”.211 Exemplos desses dois tipos de pontusais,
portadores e de apoio, estão na Figura 14, letras D e C/ C’ respectivamente. Aparentemente, no
TR há esse pontusal de apoio.
Em seguida, nas Tabela 4 e na Tabela 5, reproduzimos as distâncias entre os pontusais
dos fólios do TR (documento original), ou seja, as medidas dos tramos (letra H da Figura 14). Na
Tabela 4 se encontram os fólios com filigrana. As filigranas similares foram colocadas no
mesmo sentido e orientação, de forma que os tramos dos dois lados do pontusal portador, onde se
fixa a filigrana, tivessem a mesma posição na tabela. A linha vertical mais escura representa o
pontusal portador. Já na Tabela 5 estão representadas as dimensões dos tramos dos papéis sem
filigrana.212 As células em branco nas duas extremidades (direita e esquerda) da tabela,
significam que não foi possível efetuar essa medida devido à deterioração das bordas dos fólios.

211
BRIQUET, Charles M. Op. Cit. Tome I, p. 8.
212
Deve-se considerar uma pequena margem de erro em todas essas medidas, uma vez que há algumas variações
mesmo entre os fólios comprovadamente idênticos do códice, resultantes da impossibilidade material de coleta de
dados precisos.

64
Papel Fólio mm mm mm mm mm mm mm

1o 3 35 22 22 35 28
1o 4 35 22 22 35 27
2o 7 34 34 24 22 34 23
2o 8 34 34 23 24 34 23 22
2o 9 34 34 23 23 34 23 23
2o 10 35 34 23 24 34 23 23
2o 13 35 34 23 23 34 23 23
2o 14 34 34 24 24 34 22 23
3o 15 31 34 23 23 34 33 20
3o 17 32 34 22 23 34 34 20
3o 20 33 35 23 24 34 34 20
3o 21 33 34 23 24 34 34 20
3o 25 33 34 24 24 34 33 20
2o 30 34 34 24 24 34 22 23
3o 33 32 34 24 24 34 33 20
4o 35 32 25 23 34 31 21
2o 36 34 34 23 24 33 22 23
2o 37 34 34 23 24 34 22 23
4o 38 37 30 24 23 33 30 21
2o 40 35 34 23 24 33 23 23
2o 41 35 33 23 24 33 23 23
4o 44 36 32 25 24 33 31 21
4o 45 37 31 25 23 33 31 21
4o 47 36 32 25 24 34 31 21
4o 49 36 32 26 23 33 31 21

Tabela 4

65
Fólio mm mm mm mm mm mm

1 32 33 33 35 24
2 33 33 34 35 24 26
5 34 33 34 35 27 30
6 34 33 35 35 27 30
11 34 34 33 34 24 24
12 33 34 33 34 24 24
16 34 34 33 34 34
18 34 33 33 34 33 24
19 34 34 34 35 34 24
22 33 34 33 34 33 24
23 33 33 33 34 34 25
24 33 33 34 34 34 25
26 34 34 34 34 24 25
27 34 34 34 35 24 24
28 34 34 34 34 24 24
29 33 33 33 34 32 23
31 33 33 33 34 24 24
32 33 33 33 34 24 24
34 33 33 33 33 23 24
39 32 34 33 33 22 23
42 33 33 33 34 23
43 33 34 33 33 23 24
46 33 33 34 34 34 24
48 33 34 33 33 34 24
50 33 33 33 33 23 22

Tabela 5

Independentemente das pequenas diferenças, que podem ter sido ocasionadas pelo método
de coleta das medidas dos tramos (que apresentam margem de erro de 1 a 3 milímetros), as
medidas dos penúltimos tramos dos fólios, que se encontram na coluna destacada à direita,
mostram a existência de duas categorias de fólios em cada uma das tabelas acima. Na análise
dessas categorias separaremos a análise do papel 1 por um lado e dos papéis 2, 3 e 4 por outro por

66
portarem distintas famílias de filigranas. Assim, é preciso considerar de forma separada os fólios
3 e 4 da Tabela 4 e 1, 2, 5 e 6 da Tabela 5. As diferenças entre as medidas dos penúltimos
tramos do papel 1 na Tabela 5 mostram dois grupos, o primeiro com 24 mm e o segundo com 27.
Essa variação indica a possibilidade de haver um quinto papel, pertencente à primeira família de
filigrana. Dessa forma, é possível que o papel 1 seja dividido em dois grupos, cada um
confeccionado com uma forma distinta. Pela similaridade entre os fólios poderíamos dizer ainda
que devem se tratar de filigranas gêmeas. Contudo, o fato das duas filigranas do papel 1, nos
fólios 3 e 4, terem sido realizadas na mesma forma levou-nos a considerá-lo somente como um
único papel, pois não temos nenhuma filigrana do segundo tipo para comprovar o que sugere a
medida dos tramos. Assim sendo, continuaremos nos referindo ao papel 1 como um único tipo,
uma vez que essa diferenciação não é essencial para a reconstrução da organização material do
códice, visto que estamos de acordo com a hipótese formulada por Batalla Rosado213 sobre a
organização da seção do xiuhpohualli, sobre a qual falaremos no item Organização Material.
No caso dos papéis da outra família de filigrana - papéis 2, 3 e 4 -, na Tabela 4 o primeiro
grupo de números do penúltimo tramo varia de 22 a 23 mm e o segundo de 30 a 34, enquanto na
Tabela 5 o primeiro varia de 23 a 24 e o segundo de 32 a 34. O estado de deterioração do TR,
que causou a separação dos bifólios, e as duas restaurações a que foi submetido trouxeram
imensas dificuldades para a reconstrução da organização original dos cadernos do códice. Esses
dados referentes aos tramos trazem informações valiosas sobre os papéis, que tornarão possível a
formulação de uma hipótese sobre a organização do códice, no item Organização Material. No
caso da Tabela 4, onde sabemos seguramente quais fólios pertencem a cada grupo, por conterem
as filigranas, é curioso notar que as medidas menores do penúltimo tramo, destacadas em cinza
escuro, pertencem, todas, ao papel 2. O papel 4 apresenta medidas de 30 e 31 mm e o papel 3 de
33 e 34 mm.
Além desses dois tipos de marcas do papel analisadas até agora, as vergaduras e
pontusais, falaremos agora do terceiro tipo, as filigranas ou marcas d’água, que se localizam,
normalmente, no centro de um dos lados da folha e se tratam de figuras de fios de latão fixadas,
normalmente nos fios pontusais, com o uso de finíssimos fios. Os quatro grupos de papel usados
no TR apresentam filigranas. As filigranas são as marcas mais comumente usadas em estudos de

213
BATALLA ROSADO, Juan José. Op. Cit., 2006, p. 76.

67
determinação de origem e datação de documentos realizados sobre papéis do tipo Ocidental ou
Italiano.
Além das filigranas, no final do século XV, em Veneza, começaram a introduzir outro
tipo de marca d’água, que são hoje chamadas de contramarcas.214 O exemplo mais antigo desse
sistema é de 1483. É definida como “filigrana de pequenas dimensões situada em um dos ângulos
da metade da folha que não contém filigrana principal; geralmente composta por iniciais que
permitem distinguir os diferentes fabricantes que utilizam o mesmo tipo de filigrana”.215 Na
Figura 14 a contramarca é representada pela letra F. Nos papéis do TR não aparece esse tipo de
marca.

1.4. As filigranas

Aparentemente, a filigrana foi uma invenção italiana da cidade de Bolonha, pois a mais
antiga hoje conhecida encontra-se em papel fabricado nessa cidade, entre os anos de 1292 e
1294.216 Muito rapidamente passou a ser adotada por todos os produtores, tornando-se uma
característica indispensável do papel.217 Para Briquet218 o emprego geral da filigrana deve ter tido
uma utilidade, quer seja para o fabricante, para as autoridades que passaram a exigir seu uso ou,
ainda, para os consumidores do papel.
As figuras usadas como filigranas variaram muito ao longo da história de seu uso.
Inicialmente eram muito simples, mas com o tempo começaram a tornarem-se cada vez mais
complexas – em grande parte devido às imitações. Os motivos iam desde objetos, como âncoras,
tesouras, cruzes, balestras, luvas etc, até elementos e seres, como estrelas, flores, animais, mãos;
enfim, uma infinidade de temas. Muitas vezes, apresentavam motivos combinados entre si e/ ou
acompanhados de letras, que deviam ser iniciais dos nomes do dono do moinho ou mestre
papeleiro; podendo relacionar-se também com outras coisas, como a localidade onde foi
produzida, dentre outras. A verdade é que ninguém sabe a que se referem essas figuras e iniciais

214
BRIQUET, Charles M. Op. Cit. Tome I, p. 14.
215
MUZERELLE, Denis. Vocabulaire codicologique Paris: Editions CEMI, 1985. Disponível em:
<http://vocabulaire.irht.cnrs.fr/fig/pict/pict024.gif> Acesso em: 09 out. 2006.
216
VALLS I SUBIRÀ, Oriol. Op. Cit. Tomo I, p. 226.
217
VALLS I SUBIRÀ, Oriol. Op. Cit. Tomo I, p. 170.
218
BRIQUET, Charles M. Op. Cit. Tome I, p. 8.

68
usadas como filigranas, salvo algumas exceções. Alguns autores tentaram justificar seu uso
associando-as com características simbólicas relacionadas à religião, à região de produção, à
cidade, ao reino, dentre outros, porém, na maioria dos casos essas hipóteses gerais não passam de
especulações. O ideal é que cada moinho conhecido seja estudado individualmente e em alguns
casos é até possível encontrar as raízes da escolha, mas as generalizações são problemáticas.
Segundo Briquet219, de acordo com diversas menções de compras de papel, elas podiam
designar tanto o papeleiro, como o moinho, o formato do papel (os consumidores, muitas vezes,
distinguiam um formato de outro pela filigrana, devido às diferentes dimensões adotadas pelos
fabricantes), ou até mesmo à qualidade (pois há registros de moinhos papeleiros que usavam um
tipo de filigrana para cada qualidade de papel que fabricavam).
Para facilitar seu estudo, os numerosos tipos de filigranas foram classificados em grupos,
ou famílias, de acordo com o tipo de figura que representam, ou alguma outra característica que
chame mais a atenção. Assim, a família da filigrana da cruz latina, por exemplo, uma das
encontradas em nosso códice, é constituída basicamente por uma cruz, mas que pode ser
representada de várias maneiras, estar acompanhada de outros elementos, vir dentro de uma
figura oval, circular etc. Enfim, apresentam a cruz como elemento principal, que pode vir
acompanhada de outros componentes ou não.
De um modo geral não há uma padronização de qualidade e formato para os papéis cujas
filigranas pertençam à mesma família. É comum que filigranas da mesma família apareçam em
papéis com formatos e qualidade muito diversos. Ao mesmo tempo, o tipo de família da filigrana
não nos pode indicar sua origem com precisão, pois são inúmeros os casos onde donos ou
arrendatários de moinhos de papel imitam as filigranas de um outro determinado fabricante para
obter vantagens comerciais, por isso, é necessário que se estude o tipo específico dentro das
próprias famílias. As filigranas de origem italiana foram muito copiadas. Devido à fama do papel
italiano, não foram poucos os produtores que passaram a imitar suas filigranas, principalmente
papeleiros franceses, que rivalizavam com os italianos para vender seus produtos ao mercado
espanhol. Dentre as filigranas mais imitadas estão as da cruz e da mão220, as duas famílias
encontradas no TR. O que chamamos de papel 1 do TR apresenta filigrana da família da cruz

219
BRIQUET, Charles M. Op. Cit. Tome I, p. 11-12.
220
VALLS I SUBIRÀ, Oriol. Op Cit. Tomo II, p. 26 e 110.

69
latina, enquanto os papéis 2, 3 e 4 mostram filigranas da família da mão, as quais,
denominaremos mão 1, mão 2 e mão 3.
Ainda é preciso levar em conta a mobilidade dos mestres papeleiros e dos donos de
moinhos de papel. Há vários casos onde eram oferecidas vantagens ou barreiras comerciais
(como, por exemplo, aumento de impostos de importação no reino onde esse fabricante
costumava introduzir seus produtos) que faziam com que os produtores se estabelecessem em
outra região ou outro reino, a fim de passar a fabricar ali os seus papéis.221
No tocante ao uso dos papéis, vale ressaltar que é muito comum que um mesmo
manuscrito contenha papéis com distintos tipos de filigrana, pois, muitas vezes, os códices eram
compostos por papéis de diversas origens, dependendo do espaço de tempo de sua realização, de
seu planejamento, da disponibilidade das matérias-primas, dentre outros. Porém, geralmente,
esses manuscritos costumam conter papéis de qualidade e tamanho similares. Naqueles onde são
encontradas filigranas idênticas (confeccionadas na mesma forma de papel) ou filigranas gêmeas
(confeccionadas em formas iguais) é provável que tenha havido uma única compra de papel, já
levando em consideração a quantidade necessária para a confecção. Normalmente, isso ocorria
nos casos das cópias, onde se sabia de antemão a quantidade exata de papel necessária.
Para proceder à datação de um papel, segundo Ruiz García222, é preciso considerar que o
período médio de vida de uma forma, usada normalmente, era de aproximadamente dois anos. A
esse período deve-se acrescentar um intervalo de dez a quinze anos, que seria o tempo estimado
entre a fabricação do papel e sua utilização. Briquet223 usa uma média de 15 anos, que acrescenta
antes e depois da data encontrada. Por exemplo, para datar o papel de um dado manuscrito,
devemos buscar suas filigranas idênticas. Caso encontremos uma filigrana idêntica que apresente
o ano de 1530, por exemplo, devemos considerar que o manuscrito que possui esse papel,
provavelmente, foi confeccionado entre os anos de 1515 e 1545, ou seja, esse autor considera um
intervalo de 30 anos. Briquet baseou seus cálculos na análise das datas das filigranas que coletou
para seu trabalho “Les Filigranes: Dictionnaire Historique des Marques du Papier”224. Para o caso

221
A melhoria na qualidade do papel espanhol a partir do século XV deveu-se, em parte, a esses intercâmbios.
222
RUIZ GARCÍA, Elisa. Op. Cit., p. 77.
223
BRIQUET, Charles M. Op. Cit. Tome I, p. XX-XXI.
224
BRIQUET, Charles M. Les Filigranes: Dictionnaire historique des Marques du Papier. Leipzig: Verlag Von Karl
W. Hiersemann, 1923. 3 v.

70
do século XVI, por exemplo, de 982 filigranas, encontrou figuras idênticas, apresentando um
intervalo entre a mais antiga e a mais recente:
- de 1 a 5 anos, em 596 casos
- de 6 a 10 anos, em 264 casos;
- de 11 a 15 anos, em 122 casos.225
Considerando esses dados fornecidos por Briquet, é preciso ressaltar, então, que há uma
maior probabilidade desse papel ter sido utilizado entre 1 e 5 anos depois de sua fabricação,
apesar de existir a possibilidade de ter sido usado posteriormente. No caso da Nova Espanha,
onde o papel era escasso, é possível, como diz Dibble226, que os estoques não durassem muito
tempo e, por isso, pensamos que a consideração do primeiro grupo, de 1 a 5 anos, como o prazo
mais freqüente entre a fabricação e o uso do papel é bastante razoável. "Thus each of the different
watermark categories (such as the hand, the caballero, the cross) appears, attains maximum
frequency, and disappears in a chronological order."227
A seguir reproduzimos na Tabela 6 a disposição e posição das filigranas no códice TR228,
de acordo com seu tipo; respectivamente, a que é encontrada no papel 1 (cruz), no papel 2 (mão
1), no papel 3 (mão 2) e no papel 4 (mão 3). Indicamos também o número da foliação do códice e
o assunto que aparece em cada página:

225
BRIQUET, Charles M. Op. Cit. Tome I, p. XX.
226
DIBBLE, Charles E.; ANDERSON, Arthur J. O. Op. Cit., p. 25.
227
Idem Ibidem.
228
Posição da frente do fólio.

71
Fólio Assunto Filigranas

Cruz Mão 1 Mão 2 Mão 3

3 Xiuhpohualli

4 Xiuhpohualli

7 X. - Nemontemi

8 Tonalpohualli

9 Tonalpohualli

10 Tonalpohualli

13 Tonalpohualli

14 Tonalpohualli

15 Tonalpohualli

17 Tonalpohualli

20 Tonalpohualli

21 Tonalpohualli

25 Anais

30 Anais

33 Anais

72
35 Anais

36 Anais

37 Anais

38 Anais

40 Anais

41 Anais

44 Anais

45 Anais

47 Anais

49 Anais

Tabela 6

De acordo com Quiñones Keber229, a filigrana da cruz aparece no Códice Telleriano


Remensis nos fólios 3 e 4 e a da mão nos fólios 7, 8, 9, 10, 13, 14, 15, 17, 20, 21, 25, 30, 33, 35,
36, 37, 38, 40, 41, 44, 47 e 49. No entanto, Batalla Rosado230 comenta que mesmo na reprodução
do Telleriano Remensis, publicada pela University of Texas, é possível observar que a página 19r
(que seria referente à foliação de número 19 do códice) também possui a filigrana da mão, a qual
não foi referida por Quiñones Keber. De fato, está correta a afirmação de Batalla Rosado, porém,
é preciso mencionar que a autora se refere ao fólio de número 13. Este equívoco, na verdade, não
foi cometido pela autora, mas resultado de um problema envolvendo o códice original e a

229
QUIÑONES KEBER, Eloise. Op. Cit., 1995, p. 122.
230
BATALLA ROSADO, Juan José. Los amanuenses del libro escrito Europeo del Códice Telleriano Remensis. El
caso del xiuhpohualli. In: Actes de la Journeé d’Études de l’Autre: les glosses du Codex Telleriano Remensis
(Méxique, XVIe Siécle). No prelo, p. 4. E também em: BATALLA ROSADO, Juan José. Op Cit., 2006, p. 76.

73
Bibliothèque Nationale de France. A filigrana se encontra no fólio 13 do códice, e não no 19. A
confusão se deve a um problema ocorrido na restauração de 1986-87, mais especificamente na
encadernação, onde trocaram o fólio 13 pelo 19 e vice-versa. Tanto os restauradores como
Batalla Rosado se basearam nos números da foliação do códice, que realmente nos confundem,
pois o número 3 da pessoa que escreveu essa foliação parece um 9 e vice-versa, os quais são
muito difíceis de diferenciar ao longo de todo o documento. Em alguns fólios, inclusive, foi
anotado novo número, provavelmente a lápis, para eliminar a dúvida.
Quando Quiñones Keber analisou o manuscrito esses fólios, 13 e 19, se encontravam em
seus devidos locais, de acordo com informações da própria autora231. Porém, logo após esse
período o manuscrito foi encaminhado à restauração, onde ocorreu a troca de fólios. Na
publicação do facsimilar os editores seguiram a seqüência das páginas do documento original e
quando Quiñones Keber se deu conta do equívoco a primeira edição já havia sido impressa.
Mas, apesar do esclarecimento desse problema, temos ainda uma pequena adição à lista
dos fólios com filigranas. Além das páginas citadas pela autora, é preciso incluir o fólio 45, que
também apresenta a filigrana da mão. Assim, os fólios com filigranas da mão são: 7, 8, 9, 10, 13,
14, 15, 17, 20, 21, 25, 30, 33, 35, 36, 37, 38, 40, 41, 44, 45, 47 e 49, como indicado na Tabela 6.

1.4.1. Análise das filigranas

1.4.1.1. Filigrana da Cruz Latina

Comenta Valls I Subirà232 que, para Briquet, a filigrana da cruz pode ter se originado na
França ou em Gênova, Itália; entretanto, tem outra hipótese para sua origem. Acredita que ela
pode ter nascido na Espanha, onde é abundantemente encontrada e em papéis bem mais antigos
que os analisados por Briquet. Porém, não há somente um tipo de filigrana da família da cruz.
Aparentemente, o tipo que aparece na primeira parte do TR é, em sua maioria, originário de

231
Pessoalmente, em ocasião de nosso encontro no 52o Congreso de Americanistas, em Sevilha, e posteriormente,
por correspondência eletrônica.
232
VALLS I SUBIRÀ, Oriol. Op Cit. Tomo II, p. 128-129.

74
Gênova.233 Briquet classifica a filigrana de nosso códice como cruz latina, e outros autores se
referem a ela, especificamente, como cruz inscrita em figura oval234.
De um modo geral, a filigrana da cruz é encontrada em papéis de muitos formatos, quer
venha de Gênova, Fabriano, Troyes, ou algum moinho espanhol. A qualidade desses papéis é,
normalmente, regular. Alguns, entretanto, são de muito boa qualidade235 .
Analisando as ocorrências do tipo específico de filigrana da cruz do TR, fornecidos pelos
principais manuais de filigrana aqui estudados, podemos notar que ela foi usada,
majoritariamente, no século XVI, com maior ocorrência na década de 60, como pode ser visto no
gráfico da Figura 16.236

Filigrana da Cruz - Incidência

12
Número de ocorrências

10

0
1490 1500 1510 1520 1530 1540 1550 1560 1570 1580 1590 1600
Década

Figura 16

Análise da filigrana da Cruz

No TR somente aparecem dois fólios com esse tipo de filigrana, os de número 3 e 4. Dos
estudiosos que analisaram o códice, quase nenhum se refere às filigranas, e especialmente à
filigrana da cruz. O primeiro autor, - de que temos conhecimento -, que deu atenção às filigranas

233
BRIQUET, Charles M. Op. Cit. Tome II, p. 332.
234
Cruz inscrita en óvalo, em espanhol.
235
VALLS I SUBIRÀ, Oriol. Op Cit. Tomo II, p. 109.
236
Usamos como referência o tipo específico de filigrana da Cruz do Telleriano Remensis (cruz inscrita em figura
oval), encontrados por Briquet e Valls I Subirà.

75
dos papéis do Códice Telleriano Remensis foi Hamy237, em seus comentários sobre o códice,
publicados juntamente com a reprodução do mesmo no ano de 1889. Entretanto, esse autor
somente se refere à filigrana da mão, provavelmente, por não ter notado a existência da filigrana
da cruz ou simplesmente por tê-la ignorado.
A reprodução da imagem de Raio-X da filigrana da cruz do códice TR, publicada por
Quiñones Keber238, encontra-se de ponta cabeça (Figura 17), como observado por Batalla
Rosado239. A autora afirma que não foi possível encontrar filigranas similares a essa no manual
de filigranas de Briquet240. Porém, se a colocarmos em outra posição (Figura 18), mais provável
que seja a correta, a tarefa se torna um pouco mais fácil.

Figura 17 Figura 18

Mesmo na nova posição não foi encontrada nenhuma exatamente do mesmo tipo da usada
no TR. É até possível encontrar filigranas muito similares ao desenho, porém, apresentando
diferentes letras; enquanto aquelas que possuem as mesma iniciais têm um desenho ligeiramente
diferente.

237
HAMY, E.-T. Op. Cit., p. 1-2.
238
QUIÑONES KEBER, Eloise. Op. Cit., 1995, p. 123.
239
BATALLA ROSADO, Juan José. Op. Cit., 2006, p. 76.
240
BRIQUET, Charles M. Op. Cit.

76
Batalla Rosado241 realizou um estudo codicológico da seção do xiuhpohualli do TR e
encontrou em Briquet242 uma filigrana similar à de nosso códice (Figura 19), enumerada como
5693 e datada em Madrid no ano de 1566, e em Lille, entre 1561-71. Apesar de apresentar as
mesmas iniciais, essa filigrana encontrada por Batalla Rosado mostra algumas diferenças no
desenho. Por outro lado, esse papel mede 430 X 320, dimensão parecida à dos papéis do TR.

Figura 19

Encontramos mais três filigranas da cruz inscrita em figura oval com letras parecidas às
do TR nos manuais e trabalhos sobre papel e filigranas (Figura 20, Figura 21 e Figura 22).
Duas delas possuem a letra “I” e uma letra “A” sem o traço horizontal, ou seja, uma letra “V”
invertida. A outra apresenta claramente uma letra “I” e uma letra “A”, além de uma “I” adicional
abaixo da cruz e dentro da figura. Essas três filigranas se parecem mais com a filigrana da Figura
19 que com nossa filigrana, pois as letras se encontram do lado de fora da figura oval, enquanto a
do TR está dentro da figura e abaixo da cruz. Duas delas aparecem em Valls I Subirà: a da
Figura 20 (número 84243) foi datada em Toledo, em 1548 e a da Figura 21 (número 91244) em

241
BATALLA ROSADO, Juan José. Op. Cit. 2006, p. 69-87.
242
BRIQUET, Charles M. Op. Cit.
243
VALLS I SUBIRÀ, Oriol. Op. Cit. Tomo II, p. 198.
244
VALLS I SUBIRÀ, Oriol. Op. Cit. Tomo II, p. 200.

77
Toledo, em 1588. A filigrana da Figura 22 foi reproduzida por Marcos Bermejo245 e datada em
Cuenca, em 1549. Todas elas apresentam medidas similares às dos papéis do TR, porém, é
possível que sejam de proveniência espanhola, pelo menos as da Figura 20 e Figura 22, que são
muito similares. A filigrana da Figura 22 foi encontrada em Cuenca, cidade tradicional na
produção de papel. É mais provável que usassem aí papel de procedência local, que importado.

Figura 20 Figura 21 Figura 22

Em geral, os papéis com filigranas parecidas às do códice aqui estudado apresentam


medidas semelhantes às de seus papéis. Para o caso desse tipo específico de filigrana parece que
havia uma preferência por um formato que variava de 400-440 X 310-320.
Acreditamos que as filigranas da cruz similares encontradas não podem datar os papéis
dessa seção do códice. As diferenças do desenho dessas filigranas para os do TR são ainda muito
grandes: a figura oval da filigrana de nosso códice é mais arredondada que a maioria das outras, a
cruz ocupa dois terços da figura e tem as laterais mais quadradas que arredondadas e as letras
estão inseridas dentro da figura. É preciso encontrar filigranas mais parecidas às do códice para
termos maiores certezas sobre o período de confecção das páginas ocupadas por ela. As datas
obtidas mostram um período muito extenso de tempo: de 1548 a 1588, e necessitamos de uma
delimitação mais precisa. Mas, é possível que a década de 60 seja o período mais provável de seu
uso, de acordo com os dados da Figura 16.
245
MARCOS BERMEJO, María Teresa. La fabricación artesanal de papel en Castilla - La Mancha. Tesis doctoral.
Madrid: Universidad Complutense de Madrid, 1993, tomo II, p. 1549.

78
1.4.1.2. Filigrana da Mão

A filigrana da mão é originária da Itália, ou seja, é deste local o primeiro papel encontrado
com esse tipo de filigrana.246 Mais especificamente, pode ter sido criada na Ligúria, pois
Briquet247 cita casos de papeleiros da Ligúria que se estabeleceram na França para fabricar seus
papéis com essa marca e Valls I Subirà248 daqueles que foram para a Catalunha.
Dentre todas as filigranas, a da mão foi a mais copiada e, com certeza, é a mais
abundante,249 podendo ser encontrada na Itália, França e Espanha. Além disso, é comum achar
papéis com idênticas filigranas da mão nos manuscritos. Esse tipo de ocorrência é 80% superior
na família da mão, que em outras famílias de filigranas.250 Por isso tudo, não é de estranhar que
seja aquela com maior número de reproduções na obra de Briquet251. É tão numerosa que o autor
foi obrigado a realizar subdivisões.
O tipo de filigrana da mão encontrada no TR foi classificado por Briquet como “mão
aberta, os cinco dedos separados”252. Dos vários tipos listados, o autor considera esse o mais
antigo de todos. Afirma, ainda, que sua existência evidencia a importância da indústria papeleira
genovesa no século XVI, pois, nesse período, essa mercadoria era comercializada na Espanha,
França, Sicília e outras partes do território italiano. Era tão comum na Ligúria que para distinguir
seus produtos os fabricantes começaram a adicionar suas próprias iniciais. O centro dessa
indústria papeleira na Ligúria era Voltri e Varazze.253
A qualidade do papel apresentada por essa filigrana da mão é variável, assim como o
formato. Valls I Subirà254 diz que é bastante curioso o fato de papéis de boa qualidade mostrarem,
às vezes, desenhos da mão extremamente mal formados, enquanto papéis defeituosos, muitas
vezes, apresentam desenhos bem feitos.

246
VALLS I SUBIRÀ, Oriol. Op Cit. Tomo II, p. 110.
247
BRIQUET, Charles M. Op. Cit. Tome III, p. 545-546.
248
VALLS I SUBIRÀ, Oriol. Op. Cit. Tomo II, p. 151.
249
VALLS I SUBIRÀ, Oriol. Op. Cit. Tomo II, p. 151.
250
VALLS I SUBIRÀ, Oriol. Op. Cit. Tomo II, p. 110.
251
BRIQUET, Charles M. Op. Cit.
252
BRIQUET, Charles M. Op. Cit. Tome III, p. 544.
253
BRIQUET, Charles M. Op. Cit. Tome III, p. 545.
254
VALLS I SUBIRÀ, Oriol. Op. Cit. Tomo II, p. 151.

79
Mesmo entre as filigranas classificadas por Briquet255 como “mão aberta com dedos
separados” há diversos tipos. A nossa filigrana representa também uma flor de cinco pétalas
sobre o dedo médio. Muitos dos fabricantes acabaram optando também por adicionarem iniciais,
além de algum outro detalhe ao desenho, como é o caso da de nossos papéis, que mostra na
palma da mão uma espécie de cruz com detalhes no final das três pontas superiores. De cada um
dos lados inferiores dessa cruz aparecem as letras B (do lado esquerdo) e F (do lado direito). Nas
filigranas que chamamos de mão 1 e mão 2 (de acordo com sua ordem de aparição no códice) há
ainda três pequenos círculos unidos no lado inferior esquerdo do pulso.
Analisando os manuais de filigranas e outras obras com reproduções da filigrana da mão
com uma flor de cinco pontas em cima do dedo médio, vemos que são bastante abundantes. As
mais antigas datam do final do século XV, mas seu uso esteve concentrado, predominantemente,
no século XVI.
A seguir reproduzimos um gráfico, mostrado na Figura 23 demonstrando o uso dessa
filigrana da mão ao longo do século XV e XVI256:

Filgrana da Mão - Incidência

25
Número de Ocorrências

20

15

10

0
1440 1460 1480 1500 1520 1540 1560
Década

Figura 23

O gráfico da Figura 23 mostra dois períodos de maior predominância desse tipo de


filigrana da mão, o maior na década de 20 e outro na década de 40.

255
BRIQUET, Charles M. Op. Cit., Tome III, p. 544.
256
Usamos como referência o tipo específico de filigrana da mão do Telleriano Remensis (mão com flor de cinco
pontas, com e sem letras ou outros elementos), encontrados por Briquet e Valls I Subirà.

80
Análise das filigranas da Mão

A filigrana da mão aparece em 23 fólios do Códice Telleriano Remensis. Tratam-se todas


do mesmo tipo de filigrana: uma mão com os dedos separados, com uma flor de cinco pétadas em
cima do dedo médio e uma cruz na palma da mão com as letras B e F, uma de cada lado da cruz.
Provavelmente, foram produzidas pelo mesmo moinho papeleiro, porém, podemos dividi-las em
três grupos.
No estudo realizado por Eloise Quiñones Keber257 e publicado juntamente com a
reprodução facsimilar do manuscrito a autora acrescenta imagens de Raios-X das duas famílias
de filigranas existentes no Códice, da cruz e da mão. Entretanto, Quiñones Keber não faz
qualquer referência em seu trabalho à existência de filigranas da mão provenientes de três formas
de papel. Assim, quer seja porque considerou as três filigranas da mão idênticas258 ou porque não
notou que havia três distintas, o fato é que somente reproduziu a que chamamos de primeira
filigrana da mão ou mão 1 (encontrada no papel 2), que aparece, na realidade, somente nos fólios:
7, 8, 9, 10, 13,14, 30, 36, 37, 40 e 41 (números da foliação do próprio códice). Já nos fólios 15,
17, 20, 21, 25, 33, 35, 38, 44, 45, 47 e 49 encontramos outras duas, diferentes. Elas são
extremamente parecidas com a primeira, mas apresentam diferenças significativas,
principalmente a chamada filigrana da mão 3 (papel 4), a ponto de podermos afirmar que se
tratam de papéis feitos em outras formas. Devido à confecção manual das formas, mesmo aquelas
filigranas que deviam ser iguais e papéis que deviam apresentar as mesmas características
mostram variações. Entre a filigrana da mão 1 (que se encontra no que chamamos de papel 2) e a
filigrana da mão 3 (do papel 4) as diferenças são bem mais evidentes; enquanto aquelas entre a
mão 1 e mão 2 (do papel 3) são quase imperceptíveis. Os fólios que apresentam a filigrana da
mão 2 são: 15, 17, 20, 21, 25 e 33. E aqueles com a filigrana da mão 3: 35, 38, 44, 45, 47 e 49.
Assim, as filigranas da mão 1 e 2 podem ser consideradas filigranas gêmeas259, ou seja,
são quase idênticas, confeccionadas para serem iguais, mas que devido à construção manual das

257
QUIÑONES KEBER, Eloise. Op. Cit, 1995.
258
"Filigranas idênticas: filigranas que procedem de uma mesma forma e que apresentam, algumas vezes, pequenas
deformações resultantes da deterioração natural do instrumento" (Em: OSTOS, Pilar; PARDO, M. Luisa;
RODRÍGUEZ, Elena E. Vocabulario de Codicología. Madrid: Editorial Arco, 1997, p. 71).
259
"Filigranas gêmeas, variedades idênticas: conjunto de duas filigranas muito parecidas. Cada uma delas se fixa em
uma das duas formas que os artesãos manipulam simultaneamente, um na metade direita e outro na metade esquerda
da forma." (Em: OSTOS, Pilar; PARDO, M. Luisa; RODRÍGUEZ, Elena E. Op. Cit., p. 71).

81
formas possuem pequenas diferenças. A filigrana da mão 3, por sua vez, é uma filigrana
similar260 às duas primeiras, o que quer dizer que apresenta diferenças mais significativas que
aquelas existentes entre filigranas gêmeas. Todas as três são proveniente do mesmo batedor.
Reproduzimos a seguir a imagem de Raio-X da filigrana da mão 1 (Figura 22), retirada
do estudo de Quiñones Keber261, e imagens das filigranas da mão 2 e 3 - escaneadas e tratadas -
da reprodução do códice262 (Figura 25 e Figura 26).

Filigrana da Mão 1 Filigrana da Mão 2 Filigrana da Mão 3


(Papel 2)263 (Papel 3)264 (Papel 4) 265

Figura 24 Figura 25 Figura 26

260
"Filigranas similares: filigranas procedentes de um mesmo batedor e que apresentam o mesmo desenho, porém,
com diferenças suficientemente perceptíveis para excluir que tenham saído da mesma forma ou de formas iguais"
(Em: OSTOS, Pilar; PARDO, M. Luisa; RODRÍGUEZ, Elena E. Op. Cit., p. 71).
261
QUIÑONES KEBER, Eloise. Op. Cit., 1995, p. 123.
262
QUIÑONES KEBER, Eloise. Op. Cit., 1995, p. 73, 33, 43, 45 e 69.
263
Imagem de raio-X da primeira filigrana da mão encontrada no Códice Telleriano Remensis, obtida em:
QUIÑONES KEBER, Eloise. Op. Cit., 1995, p. 123.
264
Esse desenho foi obtido através da união de diversas imagens escaneadas de páginas da reprodução do códice que
contêm essa filigrana (reprodução publicada por: QUIÑONES KEBER, Eloise. Op. Cit., 1995, p. 33, 43, 45 e 69).
265
Imagem extraída da página 35r da reprodução do códice TR (publicada por: QUIÑONES KEBER, Eloise. Op.
Cit, 1995, p. 73). Devido à boa qualidade da reprodução e ao fato da página estar em branco, é possível ver
claramente a filigrana. No entanto, para que pudesse ser melhor visualizada aqui, destacamos suas linhas na imagem
escaneada, com o uso de um programa gráfico.

82
A presença de filigranas gêmeas num mesmo manuscrito é bastante normal,
especialmente, como vimos acima, nas filigranas da família da mão. Elas não apresentam
variações significativas e por isso pensamos a princípio se não se tratariam de distorções do
desenho da mesma filigrana, ocasionadas pelo processo de prensagem e secagem do papel.
Entretanto, quando analisamos os outros dados coletados desses papéis, notamos que apesar de
apresentarem a mesma quantidade de vergaduras por centímetro, mostram diferenças nas
distâncias entre os pontusais, ou seja, na medida dos tramos, dados estes reunidos na Tabela 7:

Papel Fólio mm mm mm mm mm mm mm
2o 7 34 34 24 22 34 23
2o 8 34 34 23 24 34 23 22
2o 9 34 34 23 23 34 23 23
2o 10 35 34 23 24 34 23 23
2o 13 35 34 23 23 34 23 23
2o 14 34 34 24 24 34 22 23
3o 15 31 34 23 23 34 33 20
3o 17 32 34 22 23 34 34 20
3o 20 33 35 23 24 34 34 20
3o 21 33 34 23 24 34 34 20
3o 25 33 34 24 24 34 33 20
2o 30 34 34 24 24 34 22 23
3o 33 32 34 24 24 34 33 20
2o 36 34 34 23 24 33 22 23
2o 37 34 34 23 24 34 22 23
2o 40 35 34 23 24 33 23 23
2o 41 35 33 23 24 33 23 23

Tabela 7

As variações mais evidentes são aquelas apresentadas na penúltima coluna, onde


claramente cada um dos papéis mostra pelo menos 1 cm de diferença. Na última coluna também
há uma diferença visível entre elas, nesse caso somente milímetros, mas mesmo assim capaz de
diferenciar um grupo do outro. Desse modo, vemos que a distância entre o pontusal portador e a
borda do fólio é menor na filigrana da mão 1 e, portanto, não pode se tratar do mesmo papel, pois

83
se assim o fosse, teriam a mesma medida de tramos ou estes seriam muito similares, como
acontece entre os fólios de filigranas idênticas (da mão 1 entre si, por exemplo).
Observando com atenção as filigranas da mão 1 e 2, vemos que é possível distinguir
algumas diferenças, tais como: a espessura do dedo médio, o formato do polegar e da palma da
mão, dentre outras pequenas diferenças, como se pode notar em uma comparação entre a Figura
27 e Figura 28.

Filigrana da Mão 1 Filigrana da Mão 2


Figura 27 Figura 28

No que se refere à filigr. da mão 3 em relação às duas primeiras (mão 1 e 2), as variações
são bem mais visíveis e podem ser comprovadas por diversas características, a começar pela
quantidade de vergaduras por centímetro, que é de 9 nas duas primeiras (1 e 2) e de 10 na última
(Tabela 2). A distância entre os pontusais, ou medida dos tramos, também mostra variações, que
são diferentes para cada uma das duas primeiras. Entre a filigrana da mão 3 e da mão 1 elas são
mais marcantes, - como no caso anterior das filigranas gêmeas -, com uma diferença de no
mínimo 7 milímetros na penúltima coluna e de 2 milímetros na última, além de outras pequenas
variações entre as medidas das primeiras 3 colunas (Tabela 8).

84
Filigrana Fólio mm mm mm mm mm mm mm

Mão 1 7 34 34 24 22 34 23
Mão 1 8 34 34 23 24 34 23 22
Mão 1 9 34 34 23 23 34 23 23
Mão 1 10 35 34 23 24 34 23 23
Mão 1 13 35 34 23 23 34 23 23
Mão 1 14 34 34 24 24 34 22 23
Mão 1 30 34 34 24 24 34 22 23
Mão 3 35 32 25 23 34 31 21
Mão 1 36 34 34 23 24 33 22 23
Mão 1 37 34 34 23 24 34 22 23
Mão 3 38 37 30 24 23 33 30 21
Mão 1 40 35 34 23 24 33 23 23
Mão 1 41 35 33 23 24 33 23 23
Mão 3 44 36 32 25 24 33 31 21
Mão 3 45 37 31 25 23 33 31 21
Mão 3 47 36 32 25 24 34 31 21
Mão 3 49 36 32 26 23 33 31 21

Tabela 8

Quanto às diferenças entre a filigrana da mão 2 e 3, essas se restringem a poucos


milímetros, porém, bem marcados. O conteúdo da penúltima coluna (Tabela 9) mostra que cada
um dos dois grupos se restringe a duas medidas: de 30 e 31, para a filigrana da mão 3; e de 33 e
34 para a filigrana da mão 2. Na última coluna a variação é de 1 milímetro, enquanto na primeira
coluna a variação mínima é de 3 milímetros.

85
Filigrana Fólio mm mm mm mm mm mm mm

Mão 2 15 31 34 23 23 34 33 20
Mão 2 17 32 34 22 23 34 34 20
Mão 2 20 33 35 23 24 34 34 20
Mão 2 21 33 34 23 24 34 34 20
Mão 2 25 33 34 24 24 34 33 20
Mão 2 33 32 34 24 24 34 33 20
Mão 3 35 32 25 23 34 31 21
Mão 3 38 37 30 24 23 33 30 21
Mão 3 44 36 32 25 24 33 31 21
Mão 3 45 37 31 25 23 33 31 21
Mão 3 47 36 32 25 24 34 31 21
Mão 3 49 36 32 26 23 33 31 21

Tabela 9

As características mais marcantes entre as duas filigranas gêmeas e a filigrana da mão 3


são as medidas entre os elementos que as constituem. Na Figura 29 apresentamos um desenho da
filigrana da mão 1266, e na Figura 30 um outro, da filigrana da mão 3, as duas com suas
respectivas medidas. As diferenças mais acentuadas entre elas são: a dimensão da flor de cinco
pontas, que tem menos 1 cm de diâmetro na segunda filigrana da mão; o formato da palma, que é
mais arredondado na primeira e mais quadrado na segunda; a altura da mão, que é maior na
primeira, com 0,7 cm de diferença; a ausência dos pequenos círculos no pulso da segunda; dentre
outras características, como pode ser visto na imagem a seguir.

266
Escolhemos a filigrana da mão 1 para apresentar as medidas, ao invés da mão 2, porque ela possui a reprodução
mais clara, por ter sido feita em Raio-X. Baseados nessa imagem, e com o uso de um programa gráfico, destacamos
somente as linhas da filigrana, às quais acrescentamos as respectivas dimensões. A filigrana da mão 2 mostra
medidas similares à primeira.

86
Filigrana da Mão 1 Filigrana da Mão 3
Figura 29 Figura 30

Para buscar o provável período de uso desses papéis é preciso encontrar as filigranas
idênticas e similares na bibliografia e nos manuais de filigranas. Para o caso da filigrana da mão
foi possível encontrar filigranas bastante similares às de nosso códice.
O primeiro interesse em datar as filigranas do TR foi de Hamy267, que buscou a opinião de
Briquet, no tocante à filigrana da mão. Hamy informa que, em correspondência pessoal dirigida a
ele por Briquet, este afirmou que essa filigrana da mão pertence a um papel importado de Gênova
para Espanha em meados do século XVI, tendo apresentado dois decalques que havia feito: um
em Gênova, com data de 1549, e outro em Perpignan, datado em 1555. Revelou também que
encontrou esse gênero de filigrana em papéis usados entre os anos de 1540 a 1598.

267
HAMY, E.-T. Op. Cit., p. 1-2.

87
Robertson268 também faz referência à filigrana da mão do códice Telleriano Remensis em
seu livro “Mexican manuscript painting of the early colonial period”, no entanto, somente repete
as informações fornecidas por Hamy, adicionando um ano a mais nas datas fornecidas por
Briquet, explicando que corresponderia ao transporte desse papel da Espanha para a Nova
Espanha.
Quiñones Keber269 também usa as informações de Hamy, fornecendo somente o período
de meados do século XVI. Ela dá pouca atenção às filigranas, acrescentando que esse meio,
sozinho, não pode datar ou indicar a proveniência de um papel, por ser um produto portável e por
duplicarem as filigranas fora de seu local de origem.
Já Batalla Rosado270, em sua busca por filigranas similares à de nosso códice, encontrou
três: a primeira em Briquet271 (Figura 31), as mesmas referidas acima por Hamy272, e datadas em
Gênova, em 1549 e em Perpignan, em 1555; a segunda em Hans Lenz273 (Figura 32), encontrada
no México, com data de 1560; e a terceira na documentação americana da Real Biblioteca de El
Escorial (Figura 33), em San Lorenzo de El Escorial (Madri), no Legajo &.II.7, datada em 1544-
45274.
Podemos acrescentar, ainda, mais uma filigrana, encontrada também no Legajo &.II.7 da
documentação americana da Real Biblioteca de El Escorial (Figura 34), em San Lorenzo de El
Escorial (Madri), com data de 1542275.

268
ROBERTSON, Donald. Op. Cit., p. 111.
269
QUIÑONES KEBER, Eloise. Op. Cit., 1995, p. 122.
270
BATALLA ROSADO, Juan José. Op. Cit., 2006, pp. 76-77.
271
BRIQUET, Charles M. Op. Cit. Tome III, filigrana no 10736.
272
HAMY, E.-T. Op. Cit., p. 1-2.
273
LENZ, Hans. Op. Cit., filigrana 359.
274
CAMPOS, F. -Javier; SEVILLA, Fdez. de. Catálogo del Fondo Manuscrito Americano de la Real Biblioteca del
Escorial. San Lorenzo de El EScorial (Madrid): Ediciones Escurialenses, 1993, p. 147 e apêndice.
275
CAMPOS, F. -Javier; SEVILLA, Fdez. de. Op. Cit., p. 120, 126 e apêndice.

88
Figura 31 Figura 32 Figura 33 Figura 34

A filigrana do catálogo de Briquet tem 43 X 32,5 mm, enquanto as da documentação


americana da Real Biblioteca de El Escorial apresentam, respectivamente, 42 X 31 mm e 42,6/
43 X 31,8 mm. Todas essas que conseguimos obter as medidas, apresentam dimensões
aproximadas às dos papéis do Telleriano Remensis. O espaço de tempo fornecido pelas datas
desses papéis abrange de 1542 a 1560. Se acrescentarmos 5 anos (por ser o período de tempo
mais comum entre a fabricação e o uso do papel) antes e depois desse intervalo de tempo,
teremos um período que vai de 1537 a 1565.
Porém, 3 dessas filigranas são somente similares às de nosso códice, as representadas nas
Figura 31, Figura 33 e Figura 34. A filigrana da Figura 32 pode ser uma filigrana idêntica à
filigrana da mão 2 do TR. Colocamos as duas lado a lado na Figura 35 e Figura 36 para que
possam ser comparadas.

89
Figura 35 Figura 36

As similaridades entre elas são muito grandes e, por isso, pensamos que se trata do
mesmo papel, ou seja, foram confeccionadas com o uso da mesma forma. Há algumas pequenas
diferenças nas imagens acima, mas elas se devem às dificuldades de cópia da filigrana e
conversão em desenho, que realizamos com extrema dificuldade, através da união de diversas
imagens num programa gráfico, para tentar montar o desenho completo (Figura 35). Assim, se
tomarmos a data do documento onde foi encontrada essa filigrana, 1560, e acrescentarmos 5 anos
antes e depois276, por ser o período de maior probabilidade de uso, teremos um espaço de tempo
que vai de 1555 a 1565, podendo se estender ao período de 1550 a 1570, e raramente ao intervalo
de 1545 a 1575. Com isso, restringimos muito mais o período provável de uso dos papéis.

1.5. Síntese analítica das informações

O Telleriano Remensis é um manuscrito em formato de códice, - ou seja, um livro


composto por um conjunto de folhas de papel dobradas ao meio e unidas entre si por sua margem

276
Esse período de tempo poderia ser maior, até 10 ou mais, antes e depois. No entanto, baseados em dados
fornecidos por Briquet, consideramos que 5 anos sejam suficiente, levando-se em conta também a falta de papel na
Nova Espanha.

90
interna - confeccionado com papel europeu do século XVI. É formado por 4 grupos distintos de
papéis, cada um deles elaborado em uma forma diferente, pois foi possível distinguir 4 filigranas.
Aqueles que chamamos de papel 2, 3 e 4 provêm do mesmo batedor ou moinho papeleiro,
enquanto o papel 1 pode ser originário de um outro produtor. Apesar de terem sido elaborados a
partir de distintas formas, apresentam aspecto exterior e qualidade similares. Todos eles são
classificados como papéis Ocidentais posteriores a 1300; e dentro desse grupo, por suas
características, como papéis Ocidentais ou Italianos. É possível que haja um quinto papel, que
subdividiria o papel 1 em dois grupos. Porém, o fato de não ter sobrevivido no códice nenhum
exemplar dessa quinta filigrana levou-nos a considerá-lo como um único, principalmente pela
irrelevância desse dado para a reconstrução do caderno onde se encontra.
Todos os fólios apresentam grande deterioração, principalmente nas bordas, tendo
ocorrido a separação de quase todos os seus bifólios, o que dificulta a estimativa das dimensões
originais. O manuscrito sofreu duas restaurações no século XX, onde recebeu enxertos de papel
para reconstituir suas bordas e restabelecer os bifólios separados. Porém, levando-se em conta
somente suas partes originais, possui dimensões de fólios ao redor de 216 X 307 mm, o que nos
dá uma folha de papel de 432 X 307 mm. Dos formatos de papel encontrados na bibliografia, que
apresentam dimensões aproximadas aos do TR, encontram-se o papel de marca ou papel de
marca regular (classificação espanhola), de 440 X 320 mm, e o papel reçute (classificação
italiana), de 450 X 318 mm. Nossos papéis podem ter pertencido a qualquer desses grupos que,
inclusive, podem tratar-se do mesmo formato. As diferenças entre as medidas dos papéis do TR e
os formatos apresentados podem se explicar pelas circunstâncias de fabricação e armazenamento,
onde a deterioração dos fólios e a encadernação, que cortou as laterais para homogeneizar o
conjunto, tiveram maior impacto. Nesse sentido, é interessante notar que somente na primeira
seção, a do xiuhpohualli (papel 1), tenha havido corte de partes dos desenhos por uma guilhotina.
Isso pode indicar que esse papel devia ser ligeiramente, ou até razoavelmente maior que o
restante do manuscrito.
As formas usadas na fabricação dos papéis do códice possuem vergaduras (fios
horizontais) regulares e pouco espaçadas, tendo sido confeccionadas com fios de latão bastante
tênues, especialmente a do papel 1, que apresenta 11 fios por centímetro, enquanto os papéis 2 e
3 possuem 9 e o papel 4, 10. As medidas dos tramos ou distância entre os pontusais (fios

91
verticais) revelam diferenças significativas entre esses grupos de papéis, principalmente no
penúltimo tramo de cada fólio (das laterais das folhas de papel).
O códice apresenta dois tipos de filigranas: da família da cruz e da família da mão. A
filigrana da cruz aparece nos fólios 3 e 4, naquele que chamamos papel 1, e a da mão nos fólios 7,
8, 9, 10, 13, 14, 15, 17, 20, 21, 25, 30, 33, 35, 36, 37, 38, 40, 41, 44, 45, 47 e 49, nos chamados
papéis 2, 3 e 4. Os tipos específicos de cada uma das filigranas encontradas no Telleriano são,
possivelmente, de origem genovesa, apesar de haver a possibilidade da filigrana da cruz ser de
origem espanhola. Os dois tipos de filigranas tiveram predominância de uso no século XVI,
sendo que o período de maior incidência da filigrana da cruz foi na década de 60, e da mão, nas
décadas de 20 e 40.
Somente há uma única filigrana da cruz no manuscrito, ou seja, os dois fólios que as
carregam foram confeccionados na mesma forma de papel e, por isso, se tratam de filigranas
idênticas. Já a filigrana da mão, pode ser dividida em três grupos de filigranas idênticas, cada um
deles confeccionado numa forma diferente. A construção manual das formas fazia com que
mesmo aquelas que deviam ser iguais apresentassem diferenças. Comparando esses grupos,
podemos dizer que nosso códice possui duas filigranas gêmeas, que chamamos de mão 1 e mão 2
(dos papéis classificados como papel 2 e papel 3), confeccionadas em formas iguais. A filigrana
da mão 3, por um lado, e as duas anteriores, por outro, são filigranas similares, muito parecidas,
porém que não podem ter pertencido a uma forma igual por apresentarem diferenças que podem
ser consideradas significativas.
Nos fólios com as filigranas da mão, a distância entre os pontusais do penúltimo tramo
diferenciam claramente a filigrana da mão 1 das outras duas, pois apresentam de 21 a 23 mm,
enquanto a filigrana da mão 2, de 33 a 34 e a da mão 3, de 30 a 31. As distâncias dos outros
tramos também mostram algumas variações.
A filigrana da mão 1 (papel 2) aparece nos fólios 7, 8, 9, 10, 13, 14, 30, 36, 37, 40 e 41; a
da mão 2 (papel 3) nos fólios 15, 17, 20, 21, 25 e 33; e a da mão 3 (papel 4) nos fólios 35, 38, 44,
45, 47 e 49.
Nos manuais de filigranas não foi encontrada nenhuma idêntica à filigrana da cruz do TR,
somente algumas similares, mas que ainda apresentam demasiadas diferenças. O intervalo de
tempo obtido através delas vai de 1548 a 1588, um período muito longo, que impossibilita uma
determinação mais precisa dos anos de uso desses papéis. Já o intervalo de tempo fornecido pelas

92
filigranas similares à filigrana da mão vai de 1542 a 1560. É muito provável que uma dessas
filigranas encontradas, e datada em 1560, seja idêntica à filigrana da mão 2, o que nos daria o
período mais provável de uso desse papel entre os anos de 1555 e 1565.
Como notou Batalla Rosado277, é estranho que a filigrana da cruz somente apareça numa
seção específica do TR, o xiuhpohualli, e também a única que teve pedaços dos desenhos
guilhotinados. Isso nos leva a considerar que talvez essa parte do códice tenha uma história
diferente do restante do manuscrito.
O fato dos três grupos de filigranas da mão estarem mesclados entre si, intercalando-se no
códice, denota uma possível compra conjunta de papel, quer seja para a execução específica do
manuscrito ou também para outros fins. Isso faz com que aumente a possibilidade de que as
seções do TR que apresentam a filigrana da mão tenham sido confeccionadas num curto período
de tempo.
Todos esses dados aqui analisados leva-nos a uma série de reflexões e conclusões
preliminares em relação ao Códice Telleriano Remensis. Primeiramente, nos ajuda a datar o
documento e a concluir que nele há uma subdivisão importante: por um lado o xiuhpohualli e por
outro o restante do manuscrito -, como já demonstrado por Batalla Rosado278.
Assim, o trabalho inicial de confecção do códice, o da realização das imagens que
compõem nosso manuscrito, pode ser até o momento subdividido em dois períodos distintos.
Apesar de não termos obtido uma datação muito precisa para os papéis da seção do xiuhpohualli,
os outros aspectos dessa seção indicam que sua realização pode ter sido posterior à do restante do
manuscrito, ou pelo menos sua adição ao restante do grupo, pois pode ser claramente observado
que em um dado momento decidiu-se unir a seção do xiuhpohualli à seção do tonalpohualli. É
possível que nessa ocasião o tonalpohualli e os anais já fossem um único documento, o que não
significa que estivessem encadernados unidos. Aliás, acreditamos mais na possibilidade de que
não estavam unidos por qualquer costura, mas somente por sobreposição de cadernos.
O uso do papel europeu, naturalmente diferente dos suportes comumente utilizados pelos
tlacuilos no período pré-hispânico, transformou diversos aspectos dos códices. O grau de
absorção das tintas e seu colorido com certeza sofreram variações. Também deve ter sido
limitante o fato de usarem um suporte caro e escasso na Nova Espanha.

277
BATALLA ROSADO, Juan José. Op. Cit, 2006, p. 77.
278
Idem Ibidem, p. 82-84.

93
Quanto ao formato do suporte, este foi completamente alterado, pois os códices nahuas
eram normalmente confeccionados em um suporte em formato quadrado, enquanto os papéis
europeus tinham formato retangular. Isso modificou significativamente o planejamento do
manuscrito, alterando a distribuição dos conteúdos.
Mas, uma das alterações mais marcantes em relação ao suporte e confecção do Telleriano
Remensis e outros códices coloniais deve ter sido o formato em códice europeu. Esse novo
formato de livro a que os tlacuilos tiveram que se adaptar ocasionou uma série de transformações
significativas na estrutura e conteúdo dos livros indígenas. Essa adoção do formato em códice,
limitou as múltiplas possibilidades de sentido de leitura e ocupação do espaço proporcionados
pelos formatos pré-hispânicos de livros. E para tornar a adequação ainda mais complexa, também
era preciso deixar espaço livre nos fólios para que fossem acrescentadas explicações ou anotações
em caracteres ocidentais, fazendo surgir um elemento novo na composição das páginas dos
manuscritos indígenas.

94
2. Organização material

2.1. Organização dos cadernos

Para formar um livro em formato de códice, a folha de papel era dobrada sobre si mesma
uma ou mais vezes e depois unida a outras onde fora aplicado o mesmo procedimento. O número
de dobras da folha dependia do tamanho que se desejava dar ao livro. O TR foi construído com as
folhas de papel dobradas somente uma vez ao meio e por isso é denominado um códice in
folio279. As folhas dobradas, cada uma formando uma unidade chamada bifólio, eram colocadas
umas dentro das outras para compor o chamado 'caderno' (ver Figura 37). Um livro em formato
de códice é composto por um ou mais cadernos.

Formação do Caderno:
A e A' - bifólio externo
B - fólio independente
C e C' - bifólio intermediário
D e D' - bifólio interno ou central
E - pestaña280

Figura 37

2.1.1. Organização atual

O Códice Telleriano Remensis, como já mencionado, passou por duas restaurações no


século XX. Nos anos 1986-87, a segunda intervenção, foi realizada a restauração dos fólios
mediante a aplicação de enxertos de papel nas bordas dos fólios e também a reunião de bifólios e

279
RUIZ GARCÍA, Elisa. Op. Cit., p. 150.
280
MUZERELLE, Denis. Vocabulaire codicologique Paris: Editions CEMI, 1985. Disponível em:
<http://vocabulaire.irht.cnrs.fr/fig/pict/pict038.gif> Acesso em: 08 out. 2006.

95
recomposição do manuscrito em cadernos. No entanto, como praticamente todos os fólios
estavam separados, e bastante deteriorados, teria sido difícil para o restaurador/a, sem um estudo
codicológico, determinar a organização original do códice. Por isso, ele/a optou por estruturá-lo
da maneira que lhe pareceu mais adequada. Para realizar esse trabalho utilizou como base a
foliação do próprio manuscrito. E foi exatamente por se basear nela que o encadernador trocou os
fólios 13 e 19 um pelo outro, devido à grande semelhança entre os números 3 e 9 da pessoa que
realizou essa numeração.
Assim, com base nessa indicação da ordem dos fólios o restaurador realizou a união de
bifólios e a nova organização dos cadernos. Em seguida, o documento passou por uma
encadernação, onde os cadernos foram costurados entre si e unidos a uma capa de pergaminho,
em estilo à holandesa.
A costura dos bifólios está extremamente apertada, de forma que foi muito difícil verificar
a estrutura dos cadernos281. Apresentamos a seguir, na Figura 38, a organização atual dos
cadernos do original do Telleriano Remensis. Usamos na organização a numeração dos fólios do
próprio manuscrito.

281
No primeiro dia de trabalho com o original havíamos desistido desse intento, pois não queríamos provocar
qualquer tipo de dano ao documento. Contudo, no terceiro dia, após ter estado aberto por dois dias, foi possível
visualizar a nova organização com o uso de uma lupa.

96
Figura 38282

Como se pode notar, os fólios de número 15 e 21 ficaram sem companheiro e o


restaurador optou por colá-los aos fólios do caderno. Essa solução foi uma opção do restaurador,
porém, se todos os bifólios estavam separados na ocasião que organizou os cadernos, nos
perguntamos por que decidiu colar esses dois fólios, 15 e 21, entre os bifólios anteriores e
posteriores ao invés de proceder a uma união mais uniforme, uma vez que o número de fólios do
caderno é par? Ou seja, porque não uniu os fólios 11 com 22, 12 com 21, 19 (ou 13) com 20, 14
com 13 (ou 19), 15 com 18 e 16 com 17, formando um caderno mais uniforme? Somente há uma
resposta a essa pergunta: havia nesse caderno um bifólio, ou dois, que não estavam separados.
Temos razões para crer que o bifólio formado pelos fólios 13 e 19 devia ainda estar unido, ou

282
No tonalpohualli as indicações 2/1, 1/2, 2/2 etc se referem à primeira ou segunda parte da trecena. No caso 1/2,
por exemplo, significa que nesse fólio foi representada a primeira parte da trecena 2, pois as trecenas do
tonalpohualli do Telleriano Remensis foram desenhadas em duas páginas. Assim, quando houver a indicação 2/2 nos
referimos à segunda parte da trecena 2, 2/3, à segunda parte da trecena 3 e assim por diante, enquanto todas as
indicações começando com 1 (1/2, 1/3, 1/4 etc) fazem menção à primeira parte da trecena referida.

97
pelo menos mostrar sinais claros de que se combinavam, o que também devia ocorrer com o
bifólio 12 e 20. Isso explicaria porque o restaurador precisou colar separadamente os fólios 15 e
21 e também apresentaria as condições para a ocorrência da troca dos fólios 13 e 19, que tiveram
sua posição invertida, provavelmente mediante a realização da dobra do bifólio no sentido
contrário. Igualmente explicaria porque não compôs esse caderno com 5 bifólios, caso de quase
todos os outros cadernos, com exceção do último, que foi formado com os bifólios restantes.
Faria mais sentido que tivesse composto todos os cadernos com 5 bifólios, o que faria, inclusive,
com que o último caderno também ficasse com 10 fólios. Enfim, ao apresentarmos nossa hipótese
sobre a organização original do códice, esses aspectos serão melhor compreendidos.

2.1.2 Reconstituição da organização original

2.1.2.1. Problemas relativos à reconstituição dos cadernos

O Códice Telleriano Remensis, atualmente, apresenta uma série de problemas no que se


refere à reconstituição de seus cadernos. As restaurações a que foi submetido, apesar de
facilitarem o manuseio do documento, dificultaram imensamente o trabalho codicológico. Até
agora não conseguimos obter informações sobre seu estado preciso antes dessas restaurações. O
destino da capa retirada do manuscrito em 1966-67 também é desconhecido. Infelizmente, a
Bibliothèque Nationale de France não permite acesso dos pesquisadores aos relatórios de
restauração, autorizado somente a alguns funcionários da biblioteca283.
No estado que hoje se encontra o códice é possível observar que todos os fólios estavam
deteriorados nas bordas e que quase todos os bifólios deviam estar separados, ou seja, o
documento perdeu sua constituição original.
Para se entender amplamente a história de um determinado manuscrito é de suma
importância realizar seu estudo codicológico, o que significa também conhecer sua organização
material. Esse conhecimento complementa as análises de outros aspectos, ajudando a entender o
documento em toda sua complexidade. É preciso saber como foi formado e modificado, pois

283
Em nossa segunda visita à BnF solicitamos informações sobre as restaurações ao atual diretor do Departamento
de Manuscritos, M. Thierry Delcourt, que comprometeu-se por intermédio de uma das conservadoras a procurar por
relatórios e fornecer-nos as informações que necessitávamos. Infelizmente, ao que parece, a busca não obteve
sucesso.

98
somente assim teremos uma ampla visão de sua história e da história de seu uso. Nesse sentido,
os estudos da composição e da organização material são fundamentais.
A única seção do códice submetida a um estudo da organização material foi o
xiuhpohualli, trabalho executado por Batalla Rosado284, que formulou uma hipótese a respeito de
sua provável organização original. Estamos de acordo com a organização proposta pelo autor e a
apresentaremos juntamente com nossa hipótese sobre a organização do restante do códice, a
seguir.
Essa seção do xiuhpohualli, como já citamos, é formada pelo papel que chamamos papel
1, onde somente aparece a filigrana da família da cruz285. A restante parte do manuscrito, a mais
extensa do códice, possui a filigrana da mão, que se divide em três tipos, produzidos em
diferentes formas e os quais chamamos de papel 2, 3 e 4. A existência dessas três filigranas da
mão no códice é fundamental para a reconstituição dos cadernos. Até hoje nenhum autor se
aprofundou nesse assunto, mas é possível que pensassem que toda essa parte do códice tinha sido
confeccionada com um único tipo de papel, ou seja, fabricado em uma única forma. Por esse
motivo, e pelo fato de todos ou quase todos os bifólios do livro terem se separado, era quase
impossível reconstituir a organização original de seus cadernos. E foi por essas dificuldades que,
até hoje, ainda não haviam sido formuladas hipóteses sobre a organização material.
Para que pudéssemos estar seguros da estrutura que vamos propor abaixo utilizamos todos
os dados coletados no manuscrito original e em sua reprodução286 referentes à composição
material do códice.

2.1.2.2. Reconstituição dos cadernos

Normalmente, para se obter a organização de um determinado manuscrito é necessário


somente uma simples observação do original. As dificuldades, nesses casos, se referem ao
manuseio e à visualização dessas características sem a danificação do documento. No caso dos
códices que tiveram seus bifólios separados, como é o caso do Telleriano Remensis, é necessário
realizar uma reconstituição. Esse procedimento seria mais simples se efetuado numa restauração,

284
BATALLA ROSADO, Juan José. Op. Cit., 2006.
285
Com exceção de sua última página, que se encontra num fólio que apresenta a filigrana da mão. Esse fato será
debatido mais adiante.
286
QUIÑONES KEBER, Eloise. Op. Cit, 1995.

99
onde a separação total do documento de sua encadernação aumentaria as chances de se encontrar
os fólios irmãos, ou seja, de se testar se há possibilidade de junção entre dois fólios que poderiam
pertencer à mesma folha de papel. Como esse estudo não foi realizado durante esse período,
resta-nos agora trabalhar com o documento restaurado e encadernado. O códice TR, de qualquer
forma, exigiria um estudo mais meticuloso, usando também os dados presentes em sua
composição, devido ao grau de deterioração que é possível observar em seus fólios.
Como ponto de partida utilizamos nossas análises sobre os papéis do códice e suas
filigranas, que culminou na constatação da existência de três tipos de filigranas da mão. Foi
somente devido a essa ocorrência que se abriu a possibilidade de se obter a organização original
do manuscrito. Os resultados desse estudo, associados com outros dados coletados no original e
complementados com aqueles obtidos na reprodução, além do que já se sabe sobre seu conteúdo,
deu-nos material suficiente para formular uma hipótese sobre a organização.
Primeiramente, fizemos uma ordenação seqüencial das páginas existentes hoje no
manuscrito, somadas àquelas que, pelo conhecimento prévio de seu conteúdo, sabemos que foram
perdidas. Além disso, adicionamos ainda algumas outras que, provavelmente, existiam no
Telleriano Remensis e que conhecemos seu conteúdo por estarem presentes no Códice Vaticano
A, que possui as três seções do TR, com conteúdo idêntico.
É importante destacar que os primeiros elementos a terem sido plasmados no códice
foram as pictografias, seguidas pelos textos alfabéticos. Por isso, acreditamos que para o estudo
da organização material do manuscrito deve ser considerado, primeiramente, o conteúdo
imagético. A disposição dos textos no códice é muito heterogênea, mesmo daqueles que podem
ser considerados os "textos principais", ou os primeiros a terem sido acrescentados. A seção do
tonalpohualli é a única que poderia suscitar alguma dúvida em relação à ordem de colocação das
imagens e esses "textos principais", porque esses últimos foram executados na mesma área da
primeira página de cada trecena. No entanto, ao analisarmos cuidadosamente essas páginas, é
possível ver que nas primeiras trecenas existe uma pequena variação na altura dessas anotações,
até que se decidiu por uma altura específica, que se manteve até o final da seção. Curiosamente,
escolheram como orientação uma das linhas-guia, esboçadas com tinta vermelha aguada, e que
foram ali colocadas pelo tlacuilo para estruturar as imagens das páginas do tonalpohualli. Nas
páginas onde ocorreu uma variação na altura as anotações variam de acordo com a área ocupada
pelo deus patrono, localizado logo acima do texto. Isso também acontece na seção do

100
xiuhpohualli, onde esse "texto principal" varia na altura, de acordo com o local ocupado pela
imagem. Na seção dos Anais essa adequação é bem mais evidente e os textos são colocados em
locais muito diferentes, dependendo de como as imagens foram ali efetuadas. Os outros muitos
textos e anotações subseqüentes são, claramente, posteriores às imagens porque se ajustam
perfeitamente a elas; os textos foram colocados nos espaços livres deixados por elas. Por isso
tudo, - que trataremos com detalhes mais adiante -, pensamos que as imagens já haviam sido
realizadas quando começaram a inserir as anotações.
Desse modo, apresentamos a seguir, na Figura 39, a seqüência de todos os fólios do
códice e de seus fólios perdidos, acompanhados da indicação do conteúdo de cada um, que
somente se refere ao conteúdo das imagens (as páginas constituídas somente por texto, ou por
desenhos feitos pelos anotadores, foram referidas como “branco”). Os fólios hoje existentes no
manuscrito são indicados por seus números, dos quais, aqueles que estão em negro possuem
filigrana. Os dois fólios trocados na restauração, de número 13 e 19, foram colocados em sua
posição correta e os fólios perdidos estão representados por quadrados brancos. Também
anotamos no esquema o tipo de filigrana que há em cada um dos fólios que as possuem.

101
Figura 39

Tendo em mãos essa seqüência e sabendo que cada um dos fólios com filigrana deve
combinar com outro que não a possua, começamos a pensar nas possibilidades de união. Como o
caderno referente à seção do xiuhpohualli (com exceção de uma de suas páginas), que apresenta a
filigrana da cruz, já havia sido reconstituído por Batalla Rosado287, nos voltamos somente para os
fólios que possuem a filigrana da mão.
De forma a nos ajudar na reconstituição adicionamos aos fólios o número de vergaduras
(marcas horizontais) por centímetro, que podem ser vistos na Figura 40, juntamente com o
número do fólio e a filigrana da mão correspondente.

287
BATALLA ROSADO, Juan José. Op. Cit., 2006, p. 81.

102
Com esse novo dado podemos já realizar com segurança a combinação dos bifólios finais
do códice, na Figura 41.
Na Figura 42 acrescentamos as medidas do penúltimo tramo de cada fólio, que se trata da
distância entre dois dos pontusais. Sabemos que os fólios sem filigrana que se combinam com
aqueles apresentando a filigrana da mão 1 possuem 34 milímetros de medida do penúltimo tramo.
Devido à grande diferença existente entre os tramos dos papéis sem filigrana, da primeira parte
da seqüência (uma parte apresentando números inferiores a 30 mm e outras superiores), é
possível notar quais deles pertencem ao chamado papel 2, ou aquele com a filigrana da mão 1, e
reconstituir a maior parte de outro caderno.
Agora sabemos que os papéis sem filigrana que se combinam àqueles com a filigrana da
mão 1 possuem tramos que variam de 33 a 34 mm; com a filigrana da mão 2, 24 mm; e filigrana
da mão 3, entre 22 e 23 mm. Com isso, podemos supor que os fólios 26, 27, 28, 31 e 32 se
combinam com aqueles que apresentam a filigrana da mão 2; o fólio 34 com a filigrana da mão 3,
porque também possui 10 vergaduras por centímetro; e a única opção de combinação do fólio 29,
com 32 mm, é com a filigr. da mão 1, pois é a única que mostra números superiores a 30 mm.
Acrescentando, então, o número referente à filigrana nesses fólios - e conhecendo quais
combinações são possíveis, e quais não -, podemos unir mais alguns bifólios e cadernos,
demonstrados na Figura 43.
É importante ressaltar que escolhemos o penúltimo tramo como elemento diferenciador
por se tratar daquele com variações mais marcantes, no entanto, as outras medidas de tramo
confirmam as combinações realizadas. Essas outras medidas estão representadas na Tabela 4 e
Tabela 5, na primeira parte desse capítulo.
Os primeiro e último cadernos formados com papéis da filigrana da mão mostram uma
conformação clara de vários bifólios, contudo, a primeira parte da seção dos anais (migração) e o
início da segunda parte oferecem algumas complicações, pois as combinações não são tão
visíveis. Pelas diferenças de espessura de papel e por não haver possibilidade de uma combinação
satisfatória entre os fólios da migração e da segunda parte dos anais pensamos que esses
conteúdos foram representados em diferentes cadernos. Nesse sentido, a combinação entre os
fólios 26, 27 e 28 com os três seguintes, hoje perdidos, poderia ser uma associação possível, no
entanto, esse pode ser o caso somente dos fólios 27 e 28, enquanto o 26 parece estar associado

103
com o fólio 25, pois ambos sofreram deteriorações e rasgos idênticos, sendo aparentemente
combináveis.

104
Figura 40 Figura 41 Figura 42 Figura 43

105
Para as combinações dos fólios restantes propusemos as possibilidades mais prováveis, e
viáveis, baseados no conteúdo do manuscrito, no aspecto, espessura e coloração dos fólios e
também levando em consideração todas as informações codicológicas aqui apresentadas. O
resultado final da organização material do códice pode ser visto na Figura 44.

Figura 44288

No esquema da Figura 44, acima, além dos fólios perdidos, referidos anteriormente e que
aparecem também na Figura 39, adicionamos alguns outros de conteúdo desconhecido, mas que

288
A organização do primeiro caderno do códice, da seção do xiuhpohualli, foi obtida no estudo codicológico dessa
parte do manuscrito realizado por Batalla Rosado (BATALLA ROSADO, Juan José. Op. Cit., 2006, p. 69-87).

106
possivelmente existiam na estrutura original dos cadernos. Estão acima representados por
pequenos círculos. Tentaremos esclarecer agora os motivos que nos fizeram acreditar na
existência desses fólios na organização original do manuscrito. Por ser o mais complexo,
deixaremos para o final a discussão sobre a solução encontrada para o fólio 7 começando, assim,
pelo seguinte, que se encontraria depois do fólio 24. O primeiro fólio perdido do tonalpohualli,
que possuía no seu verso o conteúdo da primeira página dessa seção, devia estar unido ao restante
do caderno com esse conteúdo. No entanto, para que isso fosse possível, devia haver outro fólio,
localizado no final do caderno, onde incluímos o fólio posterior ao 24.
O fólio seguinte, localizado antes do número 29, possivelmente também existia, pois o
fólio 31 também se encontra sem seu companheiro. O local mais lógico para a localização desse
fólio, que devia possuir a filigrana da mão 2, seria antes do fólio 29, onde se inicia essa nova
parte da seção dos anais, que deve ter sido deixado em branco justamente para proteger o início
dessa nova parte. Também há a possibilidade de que a última página da migração (a fundação de
México-Tenochtitlan), que hoje só existe no Codex Vaticano A, estivesse representada no verso
deste fólio.
Como dissemos acima, a migração e o início da segunda parte dos anais, mais
especificamente do fólio 25 ao 35, apresentam algumas complicações. Em nossa hipótese para a
organização material do manuscrito, essa parte mostra-se um pouco distinta do restante do
códice, formado por grandes cadernos. Há diversas características desses fólios que necessitam
ser expostas a fim de esclarecer o porquê de algumas de nossas opções. Os fólios 31, 32 e 33 são
muito similares quanto à espessura e coloração do papel, diferindo dos fólios 25, 26, 27 e 28, que
se associam nesse quesito. Ambos os grupos são distintos, apesar de possuírem a filigrana da mão
2 (no caso do 25 e 33) ou possivelmente combinarem com um fólio que a possua289. O fólio 33 e
o 34 são aqueles que apresentam o maior grau de deterioração nesse setor, com aspecto de que
foram bastante manipulados, o fólio 33 no verso (33v) e o 34 no anverso (34r), devido às sujeiras
e à aparência de que foram levemente raspados - os lados opostos, pelo contrário, 33r e 34v,
mostram-se mais limpos, no caso do 33r, ou bastante limpo, no 34v. Os fólios 31 e 32 também
mostram grande deterioração, contudo, em menor grau se comparados com os fólios 33 e 34.

289
Essas diferenças são normais, pois o artesão pode deixar acumular mais ou menos pasta encima da forma. No
nosso caso essa variação é importante porque nos ajuda a eliminar possibilidades de união entre grupos de fólios.

107
Apesar do fólio 35 ter estado no local que hoje se encontra por séculos, desde a primeira
encadernação do manuscrito290, e por isso compartilhar marcas de umidade e deterioração com
seus vizinhos, fólios 34 e 36, pensamos que este não seja seu local original, por diversos motivos.
Primeiro porque a foliação, ou melhor, um número indicativo da quantidade de fólios do códice,
que aparece na página 50r (sobre o qual falaremos ainda nesse capítulo) não o inclui. A anotação
indica que o códice possuía 49 folhas, ou seja, menos um fólio. É mais lógico, como também
pensou Ramirez291, que o 35 seja o excluído porque se encontra em branco. Segundo, porque se
trata do único fólio em branco no meio do códice que separa conteúdos contínuos do mesmo
desenhista292, o que não faz sentido. Terceiro, seu verso (35v) mostra sujeitas e marcas que
indicam que foi raspado em superfícies sujas por estar no final de algum caderno. Caso estivesse
nesse local separando partes do códice seria lógico que o fólio seguinte, 36, também apresentasse
marcas em seu lado anverso quando os cadernos estivessem sendo manipulados separadamente,
pois se o fólio 35 fosse o último fólio do caderno anterior o 36 marcaria o início do próximo
caderno, o que não é o caso. E quarto, uma mancha de tinta vermelha da página 34v coincide com
uma área pintada com essa mesma cor na página 36r, enquanto o anverso do 35 (35r) não mostra
nenhuma marca de tinta, o que é muito estranho, pois se aí estivesse quando o códice foi pintado
e anotado é comum que apresentasse algum tipo de marca de tinta. Por essa razão é possível que
estivesse em contato com uma outra página em branco nessa ocasião. Enfim, por esses motivos
acreditamos que o fólio 35 encontra-se deslocado, tendo sido aí colocado antes que manuscrito
fosse encadernado. É possível que fosse um fólio que tivesse se soltado do final do códice, e
inserido no meio do conjunto. É provável, inclusive, que se combinasse com o fólio 34, mas
localizando-se no final do último caderno. Assim, se o fólio 35 fosse um dos três fólios que
acrescentamos no final do códice, então, somente se encontram perdidos aqueles que
combinariam com o 36 e 37.
Por fim, falaremos do fólio 7 que, apesar de hoje mostrar uma página pertencente ao
xiuhpohualli, provavelmente, fazia parte do caderno do tonalpohualli (quando esse foi
confeccionado), porque possui a filigrana da mão 1. Baseamos-nos, nesse caso, nos estudos

290
Nos referimos aqui à encadernação retirada na década de 60.
291
RAMIREZ, José Fernando. Citado em: CHAVERO, Alfredo. Apuntes Viejos de Bibliografia Mexicana. México:
Tip. J.J. Guerrero y Cia., 1903, p. 8.
292
Sobre os tlacuilos falaremos nos próximos capítulos.

108
realizados por Batalla Rosado293 sobre a primeira seção do códice. Em seu trabalho, esse autor
concluiu que a imagem relativa aos nemontemi, última página do xiuhpohualli do Telleriano
Remensis, não devia fazer parte dessa seção inicialmente, pois analisando os textos contidos tanto
nessa página como na anterior, da última festa do xiuhpohualli, chamou a atenção para a
referência sobre a existência de 5 dias adicionais (para completar os 365) no ciclo anual na
página desta última festa. O autor questiona o porquê de esse texto ter sido escrito na última festa
e não na página onde esses dias estavam representados. Além disso, a página dos nemontemi
somente possui textos do anotador que faz correções e adições no texto do primeiro, que explica
todas as festas e comenta a existência dos 5 dias adicionais na última festa (como dissemos
acima), mas não faz qualquer tipo de anotação na página onde se encontra representado os
nemontemi. Batalla Rosado também comenta seu estranhamento em relação ao fato dessa
imagem dos nemontemi estar representada exatamente num fólio com outro tipo de filigrana,
diferente daquela que aparece em dois dos fólios do xiuhpohualli,294 lembrando, ainda, que essa
primeira seção do manuscrito com a filigrana da cruz é a única que teve parte de seus desenhos
cortados por uma guilhotina, provavelmente, usada para ajustar esse papel ao restante do
manuscrito. E, para finalizar, conclui que no Códice Vaticano A, que possui a mesma seção do
xiuhpohualli que existe no Telleriano Remensis, não há a representação da imagem relativa aos
dias nemontemi, colocando em causa, inclusive, a hipótese, já bastante aceita, de que o Códice
Vaticano A seja uma cópia do Telleriano Remensis.
Não discutiremos aqui a problemática da relação entre o Telleriano e o Vaticano A, mas
todos esses fatos levam-nos a pensar que se trate de um desenho realizado posteriormente,
quando essa seção do códice foi unida às outras partes, realizadas nos papéis da filigrana da mão,
como afirma Batalla Rosado295. Para ele, o xiuhpohualli foi confeccionado separadamente, sendo
o manuscrito, então, formado por duas partes independentes - de um lado o xiuhpohualli e do
outro o restante do manuscrito -, que em algum momento de sua história foram unidas.
Sendo assim, se o fólio 7r originalmente se encontrava no seguinte caderno, devia formar
um bifólio com outro fólio, localizado no final da seção do tonalpohualli e hoje perdido.

293
BATALLA ROSADO, Juan José. Op. Cit., 2006, p. 69-87.
294
Sobre esse assunto, devemos lembrar que, em nossos estudos, comprovamos que mesmo os outros fólios que
aparecem nessa seção do códice, que não apresentam filigrana, pertencem ao papel com a filigrana da cruz. Assim,
toda a primeira parte do códice foi executada num único tipo de papel, com exceção da representação desses dias
nemontemi.
295
BATALLA ROSADO, Juan José. Op. Cit., 2006, p. 69-87.

109
Pensamos inclusive que podem ter retirado o bifólio completo, fazendo-o envolver a seção do
xiuhpohualli, para depois acrescentar o desenho dos nemontemi no 7r. Como aconteceu com o
restante dos fólios que estavam no início do caderno do xiuhpohualli, esse fólio que se
combinava com o 7r se perdeu.
Considerando a afirmação de Batalla Rosado sobre a divisão entre as famílias a que
pertencem as filigranas do papel do códice, então, o TR pode ser dividido em duas partes. Sendo
volumes independentes, podem ter sido executados em conjunturas completamente diferentes, ou
seja, por distintos tlacuilos, anotadores, e até mesmo distintos locais. Suas histórias se cruzam,
sem dúvida alguma, porque em algum momento foram unidos, mas devem ter tido distintas
circunstâncias de confecção antes que isso se passasse.
Sobre essa questão das divisões do manuscrito, é preciso acrescentar também a opinião de
Quiñones Keber296 que, baseando-se em Ramirez, afirma que o códice é composto por três partes
independentes, que coincidem com as divisões de conteúdo: o xiuhpohualli, o tonalpohualli e os
Anais. Para a autora, essa hipótese explicaria o fato da ordem das seções do Códice Telleriano
Remensis e do Vaticano A não coincidirem. Além disso, acredita que as perdas de fólios das
partes iniciais desses assuntos, mesmo daqueles que se encontram atualmente no meio do códice,
ocorreram justamente por terem estado separadas, apesar de não saber qual era a configuração
material inicial dessas partes. Para essa afirmação partiu do fato de que todos os últimos fólios de
cada seção possuem o verso em branco, concluindo que deviam funcionar como “capas”. Essa
afirmação não pode ser sustentada em todos os casos agora que conhecemos a configuração dos
cadernos, visto que há dois fólios a mais na seção do tonalpohualli, três na segunda parte dos
anais e o xiuhpohualli, inicialmente, sequer terminava nos dias nemontemi.
Apesar das observações de Quiñones Keber297 e outros autores, como Ramirez298 e Paso y
Troncoso299, se basearem quase que exclusivamente no conteúdo do manuscrito, é importante
notar que chamam a atenção para uma importante característica do códice: que seus conteúdos
podem ter sido confeccionados separadamente e assim manipulados antes que fossem unidos
num único manuscrito. Como referido pelos autores, as perdas de fólios no final e início das
seções indicam que inicialmente essas deviam estar separadas, tendo sofrido danos e perdas

296
QUIÑONES KEBER, Eloise. Op. Cit., 1995, p. 123.
297
QUIÑONES KEBER, Eloise. Op. Cit., 1995, p. 123.
298
Em PASO Y TRONCOSO, Francisco del. Op. Cit., 1979, p. 337.
299
PASO Y TRONCOSO, Francisco del. Op. Cit., 1979, p. 38.

110
devido à manipulação. Contudo, do ponto de vista material falam exclusivamente de divisões por
assunto. Mas como podem ser explicadas as perdas ocorridas no final da primeira parte dos anais,
a migração, onde faltam três fólios de conteúdo? Nesse sentido podemos dizer que o fato de uma
determinada parte do códice possuir um único tipo de conteúdo, não significa necessariamente
que tenha a mesma história de confecção, ou se constitua uma unidade do ponto de vista material.
É exatamente esse o caso da terceira seção de nosso códice.
Na Figura 45 mostramos a organização material do códice acompanhada de sua divisão
por assuntos. Separamos a seção dos anais em dois blocos: da migração e da segunda parte dos
anais, que chamamos na imagem a seguir de 'história'. Apesar da existência de uma seqüência
cronológica nessa seção dos anais, há uma série de diferenças entre essas duas partes que nos
levam a considerá-las também independentes, do ponto de vista material. Provavelmente, se
tratam de distintas unidades por possuírem diferentes características de confecção, apesar da
segunda parte dos anais ser uma seqüência e complemento da migração.

Figura 45

O conteúdo (somente no que se refere às imagens) do manuscrito, de um modo geral, está


mais ou menos dividido de acordo com a organização material. O xiuhpohualli se concentra no
primeiro caderno, com exceção de sua última página, cuja razão já foi acima discutida, o
tonalpohualli está no segundo caderno, a migração no terceiro e a segunda parte dos anais está
dividida em 3 cadernos. A configuração dos primeiros cadernos da segunda parte dos anais é a
mais estranha de todas, não somente por começar com 2 pequenos cadernos, mas também porque
no início é formada por todos os papéis com as diversas filigranas da mão encontradas no
manuscrito. Foi bastante difícil descobrir uma configuração aceitável para essa parte do códice
porque diverge bastante das outras seções e do final da seção, todas formadas por grandes
cadernos. No entanto, embora haja uma configuração diferente entre essa primeira parte, formada
por pequenos cadernos, e a última, formada por um único e grande, podemos considerá-las como
uma unidade, pois, dentre outros fatores compartilham o mesmo tlacuilo.

111
Sobre os tlacuilos iremos realizar uma discussão mais aprofundada no terceiro capítulo,
porém, precisamos adiantar aqui que a segunda parte dos anais foi realizada, em sua grande
maioria, pelo mesmo tlacuilo que executou o tonalpohualli. A migração possui uma série de
características que a distingue dessas duas partes citadas, incluindo um distinto tlacuilo.
Assim, apesar da seção dos anais (migração e segunda parte) ser considerada um conjunto
do ponto de vista do conteúdo, não se trata de um conjunto em seu aspecto material, pois se
encontram em diferentes cadernos, possuem distintos tlacuilos, distintos padrões de anotação,
diferentes estilos, e a parte da migração apresenta, ainda, maior número de furos de
encadernação, ou seja, é possível que já tenha recebido costura de bifólios ou tenha estado unida
a outro manuscrito antes de fazer parte da seção dos anais do Telleriano.
Acreditamos, então, que do ponto de vista material o códice possui três unidades: o
xiuhpohualli (com exceção dos dias nemontemi), o tonalpohualli e a segunda parte dos anais
juntos, e a migração. Assim, nosso códice oferece relações bastante intrincadas e somente
poderemos compreendê-lo em sua complexidade se somarmos informações coletadas em seus
diversos aspectos. Cada uma dessas partes ou unidades codicológicas do manuscrito tem histórias
de confecção diferentes em seu início, mas depois passaram a compartilhar outros elementos de
sua formação, que estabeleceram as relações entre si e fizeram de sua heterogeneidade um
conjunto, conhecido hoje como Códice Telleriano Remensis.

2.1.2.3. Comparação entre a organização atual e a reconstituição

Se compararmos a organização estabelecida pelo restaurador de 1986-87 com a


organização que propusemos, somente há coincidência na combinação de 3 bifólios. Na verdade,
claramente, dois, pois um deles, a combinação do fólio 11 com o 21 não é exatamente a união de
um bifólio, seria mais um “trifólio”. O fólio 21 e 22 estão unidos, provavelmente, com algum tipo
de cola, formando uma combinação anormal. Pelas nossas observações é o fólio 22 que se
combina com o 11, tendo sido realizada uma adição do fólio 21, para garantir a seqüência do
conteúdo do manuscrito.
Já as duas outras combinações, do fólio 12 com o 20 e do 13 com o 19, se tratam de
bifólios normais. Inclusive, foi justamente entre o bifólio formado da combinação do fólio 13

112
com o 19 que ocorreu a inversão na parte do tonalpohualli, fato que já relatamos anteriormente.
Assim, como já dissemos anteriormente, se há alguma possibilidade de que alguns bifólios ainda
estivessem unidos antes da restauração, isso se limitaria a essas duas combinações, do fólio 12
com 20 e 13 com 19. É factível pensar que se houvessem ainda bifólios unidos no manuscrito, o
restaurador teria mantido essa união e realizado as outras combinações de forma a manter a
formação original desses bifólios. Possivelmente, pelas razões já expostas na apresentação da
organização atual, esse é o caso dos fólios 12/ 20 e 13/ 19, pois é a única forma de explicar as
soluções encontradas pelo restaurador na organização do caderno onde se encontram esses
bifólios.
Também pela observação da organização atual é possível confirmar que com exceção dos
dois bifólios citados, todos os bifólios do códice estavam separados, pois foram organizados
diferentemente de sua formação original. De qualquer forma, é impossível que o manuscrito
tivesse originalmente a atual composição, pois foram nele realizadas combinações impossíveis,
como, por exemplo, entre dois fólios sem filigranas e entre dois com filigranas. Ora, sabemos que
por ser um manuscrito in-fólio, ou seja, uma folha de papel dobrada ao meio, deve haver um fólio
com a filigrana em sua área central, e outro fólio sem filigrana. No caso do primeiro caderno há
até mesmo combinações da filigrana da cruz com a filigrana da mão. Enfim, é óbvio que para
realizar sua organização, o restaurador não se baseou nas informações reveladas pelos papéis e
tudo indica que, com exceção daqueles citados, todos os fólios estivessem separados quando
executou as uniões.

2.2. Síntese analítica das informações

Batalla Rosado300 alerta sobre os problemas relativos à análise conjunta de imagens e


textos nos códices coloniais, pois para ele são obras distintas, afirmando ser ainda mais grave o
fato de usarem os textos como mediadores no estudo das imagens. Não são raros os casos onde os
textos fornecem informações completamente equivocadas sobre o conteúdo imagético.
Normalmente as imagens são os primeiros conteúdos a serem efetuados nos códices coloniais e
somente depois acrescentadas as anotações. No Telleriano Remensis é visível o ajuste dos textos
300
BATALLA ROSADO, Juan José. El Códice Tudela o Códice del Museo de América y el Grupo Magliabechiano.
2 vol. Tesis doctoral. Madrid: Universidad Complutense de Madrid, 1999.

113
a elas. Por isso, há a necessidade de se realizar análises separadas de cada um desses tipos de
conteúdo, para que possam ser comparados num segundo momento. Usar os textos como guia
para explicar as imagens pode trazer diversos problemas interpretativos.
Além de realizar uma separação analítica entre essas duas partes dos códices coloniais, é
preciso levar em consideração também a confecção desses manuscritos, pois, dentre outros
aspectos, eles podem estar formados por assuntos distintos, como no TR. Esse aspecto é uma das
principais características ditas européias atribuídas aos códices coloniais. Essa mescla de assuntos
pertencentes a diferentes tipos de livros indígenas que ocorre no período colonial relaciona-se
estreitamente ao esforço de compreensão da cultura indígena por parte dos missionários, que
compilavam assuntos que lhes interessavam, os quais eram realizados juntos ou unidos
posteriormente, um procedimento similar ao usado nas enciclopédias. O problema é que muitos
dos assuntos compilados acabaram por serem encadernados como se fossem um conjunto e
estudados como uma unidade. Pensamos que o estudo da história de união dos distintos
conteúdos seja um aspecto necessário e fundamental na compreensão dos códices coloniais.
O estudo da organização material do TR mostrou-se essencial por esclarecer que esse
códice, apesar de ter assuntos delimitados, possui uma estrutura material bem mais complexa. Por
exemplo, as duas últimas unidades que definimos no códice (por um lado o tonalpohualli e a
segunda parte dos anais, e por outro a Migração) podem possuir diferentes períodos de confecção
e, mais importante ainda, podem ter sido confeccionadas em diferentes locais ou por indivíduos
treinados em distintas cidades, devido às variações de estilo. Esboçaremos mais adiante neste
trabalho uma análise estilística das imagens do manuscrito, pois pensamos que cada uma das
unidades determinadas nessa análise material pode expressar diferentes estilos de representação.
As separações físicas estabelecidas pelo estudo da organização material dos códices podem
confirmar ou ajudar a definir os grupos de conteúdos e as partes executadas por cada um dos
indivíduos, quer sejam tlacuilos ou anotadores, nos casos onde exista a participação de mais de
um indivíduo.
No que se refere ao Telleriano Remensis, o estudo da organização material foi importante
para estabelecer as relações existentes entre esse códice e seu irmão, o Códice Vaticano A.
Batalla Rosado301 suscita a hipótese de que talvez existisse ainda outro tipo de conteúdo antes da
seção do xiuhpohualli, devido ao grande número de páginas com conteúdo desconhecido antes
301
BATALLA ROSADO, Juan José. Op. Cit., 2006, p. 81.

114
dessa seção. Havia, assim, espaço disponível para que ali houvesse algum dos conteúdos do
Vaticano A, sem paralelo hoje no Telleriano. O estudo de Batalla Rosado também nos deu alguns
indícios do porquê não existe no Vaticano A a página referente aos dias nemontemi.
Também sobre esse aspecto notamos que o conhecimento de divisões físicas entre as três
seções do códice corrobora o que as divisões de conteúdo já indicavam, e podem explicar o
motivo da alteração da ordem das seções, quando esses conteúdos foram plasmados no Códice
Vaticano A302; isso no caso das seções do Telleriano terem servido de modelo para os tlacuilos do
Vaticano A. Também é curioso notar que no Vaticano A o mesmo anotador fez os comentários
nos fólios cujo conteúdo é igual ao do TR, mesmo havendo seções inteiras onde participou outro
anotador entre um conteúdo similar e outro303.
A reconstituição da organização material do manuscrito foi igualmente essencial no
esclarecimento de alguns aspectos do processo de confecção, formação e uso do códice.
Aparentemente, o tlacuilo do tonalpohualli e segunda parte dos anais - que, em nossa opinião
apresenta o trabalho mais tradicional - realizou no momento mesmo da confecção do manuscrito
adequações da forma tradicional de representar ao formato e finalidade do manuscrito. No âmbito
da organização material isso pode ser constatado no princípio da segunda parte da seção dos
anais, onde o padrão de organização dos cadernos se difere de todo o restante do códice.
Já no tocante à história de uso do TR, o conhecimento da organização material explica o
motivo da ocorrência de algumas perdas e degradação de fólios, mesmo no interior do códice,
como, por exemplo, a perda dos fólios entre os números 14 e 15, 17 e 18, e 43 e 44. Em geral,
houve perdas no final e princípio de quase todos os grandes cadernos do códice, onde as mais
significativas foram aquelas do início e fim do manuscrito, e as da parte final da migração. A
perda dos fólios da metade final do caderno da migração também é um indício de que essa parte
pode ter sido uma unidade independente antes de se juntar aos outros conteúdos do TR.

302
Hipótese já referida por Quiñones Keber (QUIÑONES KEBER, Eloise. Op. Cit., 1995, p. 123).
303
Esse anotador também comentou outras seções, não coincidentes com as do Telleriano Remensis.

115
3. Encadernações

3.1. Encadernação atual

O códice Telleriano Remensis possui hoje uma encadernação de pergaminho flexível do


tipo conhecido como "à holandesa". A encadernação à holandesa, segundo Checa Cremades304, é
um tipo de encadernação que começou a ser aplicada nos últimos anos do século XVI pelos
editores holandeses Elzevier em livros de pequenos formatos, onde utilizavam para as costuras
dos cadernos estreitas tiras de pergaminho ao invés de nervos de pele ou cânhamo. É um tipo de
encadernação muito simples, mas de fácil manuseio e, por isso, foi adotada por vários
encadernadores europeus, especialmente pelos parisienses. No caso do TR foram utilizadas 7
tiras de pergaminho para a costura dos cadernos, as quais estão divididas em seis seções (Figura
46). Não foi executado nenhum tipo de decoração na capa.

Figura 46

304
CHECA CREMARES, José Luis. Los estilos de encuadernación (siglo III d. J. C. - siglo XIX). Madrid: Ollero y
Ramos, 2003, p. 313.

116
Segundo informação recebida por Quiñones Keber305 na Bibliothèque Nationale de
France, toda vez que efetuam naquela biblioteca uma substituição de encadernação eles
procuram sempre colocar uma que seja o mais parecida possível com a que estava anteriormente
no manuscrito. Não temos descrições precisas do tipo de capa que foi retirada do códice na
restauração de 1966-67, mas a brevíssima descrição de Hamy306, descrevendo-a como uma
encadernação de pergaminho flexível, faz-nos crer que a encadernação atual podia ser de fato
bastante parecida com a anterior.
O volume é hoje composto pela capa, que mede 22,5 X 31,5 cm, seguida por três folhas
de guarda modernas, inseridas possivelmente na restauração de 1966-67, pois já se encontravam
no manuscrito quando foi analisado por Quiñones Keber307, que o viu antes de ter sido submetido
à nova restauração de 1986-87. Diversos outros fólios se encontram hoje costurados ao volume,
num caderno à parte daqueles com os conteúdos mais antigos.308 Trata-se de cópias dos fólios
encontrados dentro da capa de pergaminho, removidas em 1966-67309. São 6 fólios,
possivelmente cópias do microfilme dos originais, seguidos por mais 1 fólio com registros sobre
o códice, todos anotados após a entrada do manuscrito na Bibliothèque Nationale de France. Por
último mais 2 fólios manuscritos com informações sobre o conteúdo do códice, assinado por
Simeón Remi em janeiro de 1889 e assinalados com as letras A e B. O volume termina com mais
três fólios em branco, companheiros dos três iniciais, que envolvem o conjunto, possivelmente no
intuito de protegê-lo, os quais são seguidos pela contracapa.
O caderno inicial citado acima é uma miscelânea de fólios colados entre si e que foram
adicionados em diferentes momentos ao volume, a maioria deles na própria Bibliothèque
Nationale de France. O mais antigo é o fólio de registros. Como referido por Quiñones Keber310,
esse fólio contém informações adicionadas em três séculos diferentes. A primeira delas, duas

305
Informação de Mme. Monique Cohen (diretora da seção de manuscritos da BnF naquele período) QUIÑONES
KEBER, Eloise. Op. Cit., 1995, p. 326, note 19, chapter 2.
306
HAMY, E.-T. Op. Cit., p. 2.
307
QUIÑONES KEBER, Eloise. Op. Cit., 1995, p. 121.
308
Esses fólios também já haviam sido incluídos do volume na década de 80 (QUIÑONES KEBER, Eloise. Op. Cit.,
1995, p. 121-122).
309
Sobre as quais falaremos abaixo.
310
QUIÑONES KEBER, Eloise. Op. Cit., 1995, p. 122.

117
últimas linhas, é o número de classificação do manuscrito na coleção de Le Tellier311, seguido do
número que recebeu na Bibliothèque du Roi312:

"Codex Telleriano-Remensis, 14
Reg. 1616."

Esses números de classificação foram adicionados possivelmente em 1701. Os textos


seguintes, no canto superior direito do fólio e nas quatro primeiras linhas centrais, foram
inseridos pela mesma pessoa, porém, em momentos distintos. O primeiro adicionado se encontra
no centro do fólio:

"Volume de 50 Feuillets
plus les feuillets A. B préliminaires
Le feuilles 35 est blanc
2 Février 1889."

Esse texto foi inserido dias depois da inclusão dos fólios manuscritos assinados por
Siméon Rémi, citados acima, numerados como A e B e datados em janeiro do mesmo ano de
1889313.
Já o registro "Mexicain 385" (canto superior direito) foi incluído depois que a biblioteca
recebeu a doação dos manuscritos mexicanos da coleção de Eugene Goupil, em 1898, que
constava de 384 volumes, pois nessa ocasião decidiu-se que o Telleriano Remensis receberia o
registro "Mexicain 385", o qual mantém até os dias de hoje. Assim, a mesma pessoa que
acrescentou o texto datado em 1889, aproximadamente dez anos depois incluiu o novo número de
classificação do códice nesse fólio de registro. Essa letra é idêntica à encontrada nos registros de
outros manuscritos mexicanos da coleção da Bibliothèque Nationale de France, como o códice
Ixtlilxóchitl, por exemplo.

311
Catálogo dos manuscritos doados por Le Tellier à Bibliothèque du Roi em 1700 (CLÉMENT, Nicolas. Libri
Manuscripti. MS Latin 9369. Paris: Bibliothèque Nationale de France, 1700, p. 31).
312
Foi adicionado ao catálogo realizado em 1682 (CLÉMENT, Nicolas. Catalogus Librorum Manuscriptorum...
Bibliotecae Regiae. MS N. A. Fr. 5402. Paris: Bibliothèque Nationale de France, 1682, p. 108).
313
Quiñones Keber afirma, em sua descrição do manuscrito, que esse registro foi adicionado na nova catalogação e
titulação do códice. No entanto, ele somente foi recatalogado em 1899, depois que a BNF recebeu, em 1898, a
doação de 364 manuscritos mexicanos da coleção de Goupil. (QUIÑONES KEBER, Eloise. Op. Cit., 1995, p. 122).

118
O último texto foi acrescentado em 1967 quando foi finalizado o trabalho de restauração
do códice:

"Les feuillets retirés des deux plats de


parchemin du Mexicain 385 forment
dorénavant le manuscrit Portugais 133.
24 février 1967."

Os fólios encontrados dentro da capa de pergaminho retirada do códice nessa restauração


receberam a classificação "Portugais 134" ao invés de 133, como citado no texto.
No verso do mesmo fólio de registros há ainda a seguinte anotação: "mex. n. 1". Esse
número era a referência ao documento dentro da biblioteca314 antes que este recebesse o novo
número "Mexicain 385", depois da doação da viúva de Eugene Goupil315. Esse número deve ter
sido atribuído ao códice na primeira metade do século XIX, ou em meados desse mesmo século,
quando Ramirez316 esteve analisando os manuscritos mexicanos da Bibliothèque Impériale (atual
BnF), pois utiliza essa numeração em seu manuscrito, uma descrição dos códices realizada para a
biblioteca, que se conserva sob o número Mex. 427. No início do século XIX, Humboldt
referenciou o códice com os números de classificação que recebeu em 1701, portanto, pensamos
que o registro "mex. n. 1" foi anotado no verso do fólio de registros em meados do século XIX,
por algum funcionário da biblioteca, uma vez que a letra não coincide com a de Ramirez,
primeiro a se referir ao códice por essa numeração.
Os outros fólios incluídos no caderno inicial do códice são mais tardios: os fólios
assinalados como A e B, de Simeón Remi, foram incluídos possivelmente em 1889, quando o
códice foi renumerado; e as cópias do manuscrito Portugais 134 devem ter sido incluídas na
restauração de 1966-67 ou em momento posterior, mas antes da década de 80, quando já se
encontravam no conjunto, pois são descritas por Quiñones Keber317.

314
OMONT, Henri. Catalogue des manuscrits mexicains de la Bibliothèque nationale. Paris: E. Bouillon, 1899, p.
60.
315
BERTHIER, Annie (dir.). Manuscrits, xylographes, estampes: les collections orientales du Département des
Manuscrits: Guide. Paris: Bibliothèque Nationale de France, 2000.
316
RAMIREZ, José Fernando. Noticia de los manuscritos que se conservan em la Biblioteca Imperial de Paris. Mex.
427. Paris: Bibliothèque Nationale de France, 1855, p. 6.
317
QUIÑONES KEBER, Eloise. Op. Cit., 1995, p. 121-122.

119
3.2. Encadernação removida

Foram poucos os autores que analisaram o códice TR quando este ainda possuía a capa
que foi removida em 1966-67, na sua primeira restauração na Bibliothèque Nationale de France.
O códice foi doado à Bibliothèque du Roi (atual Biblioteca Nacional) no ano de 1700.
Depois desse período somente se tem notícias dele no livro "Vues des cordillères et monumens
des peuples indigènes de L'Amérique"318, de Alexander von Humboldt, no ano de 1810. Segundo
Quiñones Keber319, Humboldt retornou à Europa depois de sua viagem à América em 1804,
tendo se instalado em Paris. Ela acredita que foi por volta desse período que Humboldt viu o
códice TR na Biblioteca Nacional. Nesse período ele ainda pode ver o título completo que se
encontrava na capa: "Geroglyficos de que usavan los Mexicanos"320.
Sobre o título da obra, é preciso expor aqui o que acreditamos ter sido um pequeno
equívoco cometido por Quiñones Keber321. É possível que uma nota de rodapé onde Humboldt
referenciou o TR tenha causado uma pequena confusão, pois levou a autora a pensar que havia na
capa de pergaminho mais informações do que o texto acima referido. Todos os outros autores que
se referiram ao título que estava nessa capa sempre consideraram a frase "Geroglyficos de que
usavan los Mexicanos", apesar da palavra "mexicanos" já estar apagada em meados do século
XIX. Segundo a autora, estava escrito na capa: "Geroglyficos de que usavan los Mexicanos.
(Cod. Teller. Remens. 14. Reg. 1616)." Porém, a nota de rodapé completa da obra de Humboldt
é: "Manuscrit de 96 pages in-folio, sous le titre de Geroglyficos de que usavan los Mexicanos.
(Cod. Teller. Remens. 14. Reg. 1616)."
Por ter sido referenciado em nota de rodapé, somente com a primeira parte em itálico e
por serem " Cod. Teller. Remens. 14. Reg. 1616" os números de classificação do manuscrito na
época que Humboldt o consultou, na coleção de Le Tellier e na Bibliothèque du Roi,
respectivamente, acreditamos que essa segunda parte se trate somente da referência e não de uma
parte do título escrito na capa de pergaminho. Isso se torna muito mais evidente quando
observamos o fólio de registro do códice, citado acima, e onde aparecem anotações sobre os
números de classificação e outras informações sobre o manuscrito. É curioso notar que a

318
HUMBOLDT, Al. de. Op. Cit.
319
QUIÑONES KEBER, Eloise. Op. Cit., 1995, p. 116.
320
HUMBOLDT, Al. de. Op. Cit., p. 279.
321
QUIÑONES KEBER, Eloise. Op. Cit., 1995, p. 121.

120
anotação mais antiga coincide com a referência de Humboldt: "Codex Telleriano-Remensis, 14."
e "Reg. 1616.". Os dois números de classificação apresentam leves diferenças de coloração da
tinta, mas foram sem dúvida escritos pela mesma mão. Analisando essa letra podemos notar que é
a mesma que aparece no inventário dos manuscritos de Le Tellier322 e também é idêntica à letra
de uma carta endereçada ao Abade de Louvois, falando sobre as circunstâncias da doação da
coleção dos manuscritos de Le Tellier à Bibliothèque du Roi, a qual foi assinada por Nicolas
Clément em janeiro de 1701323.
Assim, pela semelhança entre as letras é possível afirmar que foi Clément quem realizou
as anotações mais antigas no fólio de registro do códice, na parte inferior da página324. Como
Clément morreu no ano de 1712 e o inventário foi feito, provavelmente, entre 1700-1701, essa
informação já se encontrava no códice quando foi visto por Humboldt em 1804. Além disso, ao
longo de todas as notas de rodapé do livro, Humboldt usa letras itálicas em títulos, sistema
também usado nos nomes dos manuscritos, como por exemplo, na página 36 ("Cod. Vat.
anonymus"), na 101 e na 187 ("Codex Borg." e "Cod. Borg."). Para indicação dos números de
classificação dos manuscritos, indicação das páginas, folhas, tomos etc, usa sempre letra normal.
Se os dados entre parêntesis fizessem parte título do manuscrito o autor teria colocado tudo em
itálico. No caso dos parêntesis, esses são usados na obra para complementar as citações, como,
por exemplo, para indicar o local de impressão e o ano, ou nos casos de citações de revistas,
dando primeiro o título do artigo e depois, entre parêntesis, referenciando a revista. Por isso,
pensamos que Humboldt usou parêntesis na nota sobre nosso códice para dar a referência do
documento e não que essa informação fizesse parte do título. Essa nota sobre o TR na obra de
Humboldt é a única nota sobre manuscritos onde são fornecidos detalhes sobre o volume, como o
número total de páginas, e que é um documento in-fólio. É possível que tenha dado maiores
informações porque, como ele mesmo diz no conteúdo do texto, se trata de um manuscrito muito
pouco conhecido325. Então, a classificação do manuscrito na coleção de Le Tellier acabou
resultando em sua nomeação. Humboldt divulgou a existência do códice e utilizou seus dados de

322
CLÉMENT, Nicolas. Libri Manuscripti. MS Latin 9369. Paris: Bibliothèque Nationale de France, 1700, p. 31.
323
CLÉMENT, Nicolas. Correspondance de l'Abbé de Louvois. Fr. 20052, pp. 129-135. Paris: Bibliothèque
Nationale de France, 1701.
324
Quiñone Keber reproduz em seu trabalho a página do inventário de manuscritos de Le Tellier onde aparece a
referência ao códice TR. (QUIÑONES KEBER, Eloise. Op. Cit., 1995, p. 118).
325
HUMBOLDT, Al. de. Op. Cit., p.279.

121
classificação para referenciá-lo, no entanto, quem de fato o nomeou, possivelmente sem intenção
pois fazia referência ao número do catálogo, foi Nicolas Clément.
Depois desse período, o códice somente voltou a ser analisado em 1855326 por José
Fernando Ramirez. Nesse ano realizou na Bibliothèque Nationale de France (na época
Bibliothèque Impériale.) um catálogo não publicado sobre os 11 manuscritos mexicanos que ali
se encontravam327. Além disso, em momento posterior, escreveu uma análise do TR ainda não
publicada e que hoje se encontra no Archivo Histórico da Biblioteca Nacional de Antropología e
Historia (INAH - México).328 A descrição do códice realizada por Ramirez nesse estudo foi
publicada na obra de Chavero329 e confirma que nessa altura já haviam sido registradas na
primeira página do manuscrito, que chamamos aqui fólio de registros, as informações sobre seus
números de classificação. O texto de Ramirez diz: "Comienza con una foja blanca, en cuyo tercio
inferior se lee - 'Codex Telleriano Remensis, 14. Reg. 1616'"330. Explica também que o volume
terminava com outro fólio, em branco. Acreditamos que ele devia formar um bifólio com o fólio
de registro, envolvendo todos os cadernos, que deve ter sido inserido no conjunto na
encadernação realizada antes que o manuscrito chegasse à Bibliothèque du Roi. Isso é bastante
provável, uma vez que o fólio de registro possui a letra de Clément, o que mostra que se encontra
no manuscrito desde 1700, pelo menos. De fato, esse fólio é um dos poucos elementos que
poderiam nos dar informações mais precisas sobre o período de encadernação do manuscrito,
porém, infelizmente não possui filigrana, que deveria estar no fólio em branco citado por
Ramirez e que deve ter sido descartado na restauração de 1966-67. Por isso, resta-nos recorrer às
poucas informações fornecidas pelos autores que o manusearam no período que possuía essa
encadernação e aos fólios encontrados dentro da capa de pergaminho.
Sobre a capa de pergaminho, as informações de Ramirez são as seguintes: "...un volumen
toscamente encuadernado en pergamino. - A lo largo de un dorso se lee el siguiente titulo, de
letra gotica, escrito con tinta negra - 'Jeroglificos que vsavan los…' La palabra final está borrada.
El baron de Humboldt, que examinó este manuscrito a principios del Siglo, lee - 'de que usavan

326
Sobre o ano que Ramirez analisou o códice, veja: PASO Y TRONCOSO, Francisco del. Op. Cit., 1979, p. 38; e
QUIÑONES KEBER, Eloise. Op. Cit., 1995, p. 119.
327
RAMIREZ, José Fernando. Noticia de los manuscritos que se conservan em La Biblioteca Imperial de Paris.
Mex. 427. Paris: Bibliothèque Nationale de France, 1855, p. 6.
328
QUIÑONES KEBER, Eloise. Op. Cit., 1995, p. 119.
329
CHAVERO, Alfredo. Apuntes Viejos de Bibliografia Mexicana. México: Tip. J.J. Guerrero y Cia., 1903.
330
CHAVERO, Alfredo. Op. Cit., p. 8.

122
los Mexicanos'."331 Interessante notar que Ramirez ou Chavero (quem de fato publicou as
observações de Ramirez) tenha colocado "Jeroglificos" e não "Geroglificos", como nos assegura
Humboldt, Hamy e outros que analisaram o códice quando este continha ainda a capa removida
na década de 60. Provavelmente se tratou de uma modernização da grafia da palavra.
Em 1889 foi publicado um fac-similar do códice, patrocinado pelo Conde de Loubat332,
acompanhado de um estudo realizado por Hamy. Sobre a encadernação do manuscrito esse autor
nos fornece as seguintes informações: "...está atualmente encadernado em pergaminho flexível
com um titulo quase apagado em pesadas letras góticas, que me parece bem de fabricação
castelhana ou aragonesa."333 Aparentemente, Hamy acredita que a encadernação foi executada na
Espanha devido ao tipo de letra gótica utilizada, mas não revela no texto os motivos que o faz
chegar a essa conclusão. E, assim como outros autores nos dá somente uma brevíssima idéia da
encadernação.
Já Paso y Troncoso, na publicação de seu estudo sobre o Códice Borbônico, em 1898,
refere-se à capa de nosso códice com as seguintes palavras: "...un libro de folio común con
cubierta de pergamino y que por fuera dice: 'Geroglificos de que vsavan los'... probablemente
diría 'mexicanos' como asegura Humboldt pero hoy no se puede leer ya el vocablo."334
Então, com os elementos expostos acima, podemos concluir que em 1855 já não se podia
ler a última palavra do título do códice, que ele estava toscamente encadernado com pergaminho
flexível e que possuía uma folha final em branco e inicial com os números de classificação. É
também importante notar que Ramirez, Hamy e Paso y Troncoso não mencionam nada sobre
haver na capa de pergaminho sinais de qualquer outro texto. Ramirez cita a informação fornecida
entre parêntesis na nota de Humboldt como pertencente à primeira página em branco do códice.
Por acreditar que os números de classificação referidos acima - dos catálogos de Le
Tellier e da Bibliothèque du Roi -, faziam parte do título da obra na capa de pergaminho,
Quiñones Keber conecta a encadernação à França. Diz que:

"...the designation 'Cod. Teller. Remens. 14', which Humboldt reported was written on the cover,
no doubt refers to the manuscript's inventory number in the Le Tellier collection, suggesting that

331
CHAVERO, Alfredo. Op. Cit., p. 8.
332
Codex Telleriano-Remensis: Manuscrit Mexicain du cabinet de Ch. M. Le Tellier, archevêque de Reims à la
Bibliothèque Nationale (Ms. Mexicain n° 385). Paris: Bibliothèque Nationale, 1889.
333
HAMY, E.-T. Op. Cit., p. 2.
334
PASO Y TRONCOSO, Op. Cit., 1979, p. 61.

123
the cover may have been added when it was in the archbishop's possession. The additional 'Reg.
1616' label, which refers to its number in the king's library, would have been appended after its
donation in 1700."335

Discordamos da autora quanto ao local dessa encadernação. Forneceremos mais


justificativas que apoiarão essa hipótese nas próximas análises, mas no momento podemos
questionar o porquê do título ter sido escrito em castelhano se a encadernação foi realizada na
França. Além disso: o fato de Ramirez referir que o volume estava toscamente encadernado, dos
fólios iniciais (do xiuhpohualli) terem sido severamente guilhotinados, cortando pedaços de
imagens e textos, e o fato do fólio de número 35, em branco, e possivelmente originário de outra
parte do códice, ter sido incluído no interior do conjunto, mostram que o encadernador não era
muito habilidoso ou não realizou o trabalho com cuidado. É difícil que um bibliófilo da categoria
de Le Tellier contratasse um profissional pouco experiente para encadernar seus preciosos
manuscritos, visto que poderia danificá-los, e também é pouco provável que um encadernador
realizasse um trabalho mal feito para um cliente tão importante.
Por esses motivos e outros que trataremos a seguir, propomos que o Códice Telleriano
Remensis foi encadernado em território espanhol, onde se encontrava quando foi adquirido pelo
próprio Le Tellier em uma de suas viagens ou por alguma outra pessoa que o levou à França e o
vendeu ao arcebispo.
Mas, em que condição se encontrava o códice antes de ter sido submetido a essa
encadernação e quando deve ter sido realizada? Essa foi a única encadernação que recebeu o
conjunto ou há indícios de algum outro tipo de intervenção?
Tanto Ramirez como Paso y Troncoso notaram que o códice deve ter sido encadernado
depois de muito tempo de uso. Basearam essa conclusão na análise das anotações, nas perdas de
fólios no início e final de cada seção e nas interferências posteriores (testes de pena e rascunhos)
e manchas nas páginas finais de cada seção.
Em uma das partes de sua obra Paso y Troncoso afirma o seguinte: "Los Códices Le
Tellier, Ríos y otros posteriores á la conquista que han pasado por mis manos, estuvieron
formados primitivamente por hojas grandes de papel dobladas y reunidas en cuadernillos de más

335
QUIÑONES KEBER, Eloise. Op. Cit., 1995, p. 121.

124
o menos pliegos; y solo después de usarlos mucho se les han puesto las pastas."336 Na obra de
Chavero há um fragmento do texto de Ramirez sobre esse tema: "Examinando detenidamente
este volumen parece componerse de tres cuadernos separados."337 E ainda, no resumo que faz das
conclusões de Ramirez sobre nosso códice, Paso y Troncoso diz que o citado autor infere sobre as
anotações que "…las tres partes corrieron separadas, y el intérprete que se acaba de mencionar las
reunió."338
Sobre esse assunto Quiñones Keber concorda com Ramirez e Paso y Troncoso, pois
também acredita que cada seção do códice foi preparada como uma unidade e então combinada
com as outras, mencionando o fato da ordem das três seções ser diferente na organização do
Códice Vaticano A339.
Como expusemos no estudo da organização material, acreditamos que há ainda uma outra
subdivisão na seção dos anais, separando a primeira parte (migração), da segunda. Vários
indícios indicam essa separação: o fato de haver ocorrido perdas de fólios iniciais e
especialmente finais do caderno da migração; de seu estilo de pintura ser completamente distinto
da seção anterior e da segunda parte dos anais; e de seus fólios apresentarem um número maior
de furos de encadernação, especialmente os fólios 25 e 26. Devido a isso, é possível considerar a
possibilidade de que talvez a migração tenha sido encadernada separadamente em algum
momento de sua história, ou sofreu alguma costura adicional no processo de encadernação. Se
considerarmos que o códice se encontrava com o mesmo número de fólios que hoje apresenta
quando foi encadernado, então, os cadernos deveriam apresentar uma quantidade considerável de
fólios soltos. O encadernador deve ter realizado algumas uniões desses fólios ao conjunto, a fim
de que fosse possível realizar a costura dos cadernos. Deve ter sido por esse motivo que
Ramirez340 pensou que o volume era composto por três cadernos ou é possível que os fólios da
migração já estivessem soltos nesse período, ou seja, desprendidos da costura da encadernação.
De qualquer forma, o importante aqui é ressaltar que tanto no século XIX como nos dias
de hoje - apesar das restaurações e da nova encadernação -, é possível notar que a encadernação
que o códice possuía quando entrou na Bibliothèque du Roi foi adicionada depois que as diversas
partes do manuscrito já tinham sido bastante manipuladas. Nesse sentido, e falando de dois fólios

336
PASO Y TRONCOSO, Francisco del. Op. Cit., 1979, p. 38.
337
CHAVERO, Alfredo. Op. Cit., p. 8.
338
PASO Y TRONCOSO, Francisco del. Op. Cit., 1979, p. 337.
339
QUIÑONES KEBER, Eloise. Op. Cit., 1995, p. 123.
340
Texto transcrito acima (CHAVERO, Alfredo. Op. Cit., p. 8).

125
do tonalpohualli que se perderam, Paso y Troncoso diz: "... los dos folios, aunque salteados, se
conoce por el numero de los intermedios que formaron un solo pliego, el cual probablemente se
desglosó antes de la encuadernación (…) todo parece comprobar que aquel pliego, y otros folios
que también faltan adelante, se perdieron no por celo religioso, sino por obra de la ociosidad, la
ignorancia y el descuido."341

3.2.1. Manuscrito Portugais 134

Como já referido anteriormente, na primeira restauração a que foi submetido nosso códice
na BnF este teve sua encadernação removida. Dentro da capa e contracapa de pergaminho foram
encontrados 6 fólios, com 11 páginas de textos em português e latim, os quais estão classificados
como MS Portugais 134 na seção de Manuscritos Ocidentais da Bibliothèque Nationale de
France. A maioria do conteúdo dos fólios, que são distintos entre si, se refere a processos legais
levados a cabo em alguma comarca portuguesa. Não pudemos até agora encontrar dados no
conteúdo desses textos que nos ajudassem a datar tais fólios, porém, três deles possuem
filigranas, cuja análise preliminar pode nos dar alguma idéia do período em que esses papéis
foram usados.
Esses fólios foram numerados de 1 a 6. Nos de número 2 e 5 encontramos duas variantes
da filigrana da família das arbaletas e no de número 3 há uma filigrana da família da mão. As
medidas dos fólios são as seguintes:
1 - 197 X 284 mm
2 - 202 X 300 mm
3 - 203 X 302 mm
4 - 204 X 295 mm
5 - 199 X 300 mm
6 - 203 X 288 mm

341
PASO Y TRONCOSO, Francisco del. Op. Cit., 1979, p. 39.

126
3.2.1.1. Filigrana da Mão

Não encontramos nenhuma filigrana da mão muito similar à do fólio 3 do manuscrito


Portugais 134, somente parecidas em alguns aspectos. Na obra de Briquet342 esse tipo específico
é classificado pelo autor como "Mão com quatro dedos apertados e polegar afastado". A maioria
delas é de origem francesa. A seguir, na Figura 47, reproduzimos uma imagem343 da filigrana a
que nos referimos e nas Figura 48, Figura 49 e Figura 50 três filigranas mais ou menos
similares a ela; as duas primeiras encontradas na obra de Briquet344 e a terceira na de Gayoso
Carreira345.

Figura 47 Figura 48 Figura 49 Figura 50

A filigrana da Figura 48, número 11316 na obra de Briquet, cujo fólio mede 300 X 430
mm, foi datada em Perpignan em 1593, enquanto a de número 11317 da Figura 49, com medida
de fólio 300 X 420 mm, foi datada em Saumur, em 1594346. Já a filigrana da Figura 50,
encontrada em Gayoso Carreira, número 68, mede 300 X 417 mm e foi datada em Lugo, em
1616347. O período de tempo marcado por essas datas vai de 1593 a 1616. Assim, é possível que o
período de uso mais provável do fólio 3 tenha sido entre 1588 e 1621.

342
BRIQUET, Charles M. Op. Cit. Tome III, p. 562.
343
Imagem realizada a partir de um desenho da filigrana, esboçado mediante observação visual.
344
BRIQUET, Charles M. Op. Cit. Tome III.
345
GAYOSO CARREIRA, Gonzalo. Op. Cit. Tomo III, p. 204.
346
BRIQUET, Charles M. Op. Cit. Tome III, p. 572.
347
GAYOSO CARREIRA, Gonzalo. Op. Cit. Tomo III, p. 208.

127
3.2.1.2. Filigranas da Arbaleta

Também não foram encontradas filigranas muito similares às das arbaletas dos fólios 2 e 5
do manuscrito Portugais 134, mais especificamente no que se refere às iniciais ou letras que
acompanham os desenhos. Em Briquet348 há diversas filigranas de arbaletas dentro de círculos.
Segundo o autor são todas de proveniência italiana, mais especificamente de Veneza349.
Reproduzimos na Figura 51 a filigrana encontrada no fólio 2 do manuscrito, e na Figura 52 a do
fólio 5. As duas arbaletas dentro de círculos que mais se assemelham às do documento foram
encontradas em Briquet350 e estão representadas nas Figura 53 e Figura 54. No
Wasserzeichensammlung Piccard351 (banco de dados de filigranas na Internet) encontramos
também uma bastante similar à do fólio 2, na Figura 55, apesar de vir acompanhada de uma
contramarca. Não notamos a existência de qualquer contramarca no fólio 2, mas é possível que
estivesse na outra parte da folha de papel, pois normalmente se localizam no ângulo da folha352.
A filigrana do banco de dados e sua contramarca se assemelham muito a uma outra reproduzida
em Briquet353, a qual se encontra na Figura 56. Esse último autor acredita que as filigranas da
arbaleta e de outras famílias que carregam essa contramarca da lanterna pertencem ao mesmo
batedor (ou moinho papeleiro)354.

348
BRIQUET, Charles M. Op. Cit. Tome I, filigranas números 739 a 770.
349
BRIQUET, Charles M. Op. Cit. Tome I, pp. 49-50.
350
BRIQUET, Charles M. Op. Cit. Tome I.
351
Banco de dados de filigranas: Wasserzeichensammlung Piccard. Disponível em: <http://
pan.bsz-bw.de/piccard/struktur.php?klassi=009.002.010&anzeigeKlassi=009.002.010.005&Id=100499&sprache=
en&weitere=struktur> Acesso em: 01 nov. 2007.
352
A outra parte do bifólio não se encontra no conjunto, uma vez que os conteúdos dos fólios são todos distintos e a
comparação entre eles mostra que não se combinam.
353
BRIQUET, Charles M. Op. Cit. Tome III.
354
BRIQUET, Charles M. Op. Cit. Tome III, p. 50.

128
Figura 51 Figura 52

Figura 53 Figura 54

129
Figura 55 Figura 56

A filigrana da Figura 53, número 755 em Briquet, de 285 X 390 mm, foi datada em Salo,
em 1592, e em Vicence, em 1594355. A da Figura 54, 763, em Ferrare, em 1597, com medida de
300 X 410 mm356. Já a filigrana da Figura 55 foi datada em Mântua, em 1628, com medida 112
X 380 mm357 e a da Figura 56, número 767 em Briquet, de 315 X 410 mm, foi datada em
Ferrare, em 1584 e 1590, e em Salo, em 1608, 1613 e 1618358. O intervalo de tempo entre as
datações desses papéis, então, é de 1584 a 1628, o quer dizer que o período mais provável de uso
desses papéis do Portugais 134 é entre 1579 e 1633.

3.2.1.3. Análise dos dados do Portugais 134

Em ambos os casos, ou seja, tanto na filigrana da mão como na das arbaletas, pode-se
notar que o tamanho do papel é bem distinto, uma vez que os fólios do manuscrito Portugais 134

355
BRIQUET, Charles M. Op. Cit. Tome I, p. 52.
356
Idem ibidem.
357
Banco de dados de filigranas: Wasserzeichensammlung Piccard. Disponível em: <http://
pan.bsz-bw.de/piccard/struktur.php?klassi=009.002.010&anzeigeKlassi=009.002.010.005&Id=100499&sprache=
en&weitere=struktur> Acesso em: 01 nov. 2007.
358
BRIQUET, Charles M. Op. Cit. Tome I, p. 52.

130
possuem medidas máximas de 204 X 300 mm e os fólios com filigranas similares 300 X 430 mm.
Há duas possibilidades para essas diferenças. É possível que os fólios do manuscrito e as
similares tivessem de fato distintas medidas, mas também é provável que os fólios do manuscrito
tivessem sido guilhotinados, já que algumas das filigranas se encontram descentralizadas nos
fólios. A arbaleta do fólio 2 (Figura 52) é o caso mais acentuado, pois esta localizada bem
próximo do lado direito do fólio, completamente descentralizada no sentido horizontal. Caso
tenham sido de fato guilhotinados, como os textos neles contidos não foram cortados, o corte
deve ter ocorrido antes do uso do papel e não antes de serem usados na encadernação, para
adequá-los ao formato da capa que foi colocada no TR. É importante notar nesse caso que os
fólios estavam dobrados para se encaixarem bem dentro da capa do códice.
De qualquer forma o período mais provável de uso dos papéis do Portugais 134 é de 1584
a 1628, ou seja, devem ter sido utilizados no final do século XVI ou início do século XVII. O fato
de terem sido usados para dar estrutura à capa de pergaminho significa que se tratavam de papéis
descartados, portanto, deve ter se passado vários ou muitos anos entre o período de uso e descarte
desses fólios. Nesse sentido, pensamos que podem ter sido utilizados na encadernação do TR na
segunda metade do século XVII, com toda certeza antes do códice entrar na Bibliothèque du Roi.
Além disso, é preciso avaliar que o fato do conteúdo dos fólios serem de origem
portuguesa reforça a hipótese de uma encadernação espanhola, pois entre 1580 e 1640 Espanha e
Portugal pertenciam ao mesmo reino e por isso possuíam uma relação bem mais estreita entre si
que a existente entre Portugal e França, inimiga dos Habsburgos na Guerra dos 30 Anos.

131
4. Foliações

Atualmente é possível observar que o Códice Telleriano Remensis recebeu numerações de


páginas em três momentos distintos de sua história. As numerações sempre aparecem no canto
superior direito e somente no lado da frente, se tratando, portanto, de foliações.
O manuscrito possui hoje 51 de seus fólios mais antigos. Aqueles que foram adicionados
nos séculos XIX e XX para protegê-lo, possibilitar uma nova encadernação e adicionar
informações sobre o volume não serão aqui analisados. Todos esses fólios antigos foram
numerados, com exceção do fólio de registro, que era o primeiro fólio do códice quando este
entrou na Bibliothèque du Roi. Assim, dos 51 mais antigos, somente 50 foram numerados. Um
fólio em branco (fólio 35), que se encontra no meio do documento, também recebeu foliação,
apesar de nele não ter sido registrada nenhuma imagem ou texto.
Existe no códice uma foliação que pode ser considerada como principal e que foi
registrada em todos os 50 fólios numerados, indo do 1 ao 50359. Acreditamos que essa numeração
foi o segundo registro de foliação realizado. O primeiro deles se trata de uma pequena frase, "49
fojas", que aparece somente no último fólio, também no lado da frente e no canto superior direito.
Quanto ao terceiro registro, foi ali colocado, possivelmente, no século XX, se tratando assim, da
informação mais moderna. Na Figura 57 há exemplos da representação dos números nas três
foliações (em alguns casos do segundo registro, reproduzimos dois exemplos). Para distingui-los,
os chamaremos de "primeira foliação", "segunda foliação" e "terceira foliação", de acordo com a
ordem cronológica de execução, definida acima. É importante ressaltar que no primeiro e último
casos não se tratam propriamente de foliações. A primeira foliação foi mais um registro do
número de fólios que havia no manuscrito, e a terceira simplesmente repetiu somente em alguns
fólios os números da segunda, por motivos específicos, que explicaremos a seguir. Chamamos
todos eles de 'foliação' por mera questão didática.

359
Usaremos sempre esses números como referência quando citarmos os fólios.

132
Primeira Segunda Terceira
Foliação Foliação Foliação

Figura 57

133
Entre as descrições mais antigas do códice, há duas particularmente informativas sobre as
foliações. São elas de Ramirez360 e de Paso y Troncoso361. Ambos somente mencionam as duas
primeiras foliações citadas acima, pois a terceira ainda não se encontrava no códice nesse
período.
Ramirez faz referência às foliações com as seguintes palavras: "Su numeracion es mui
moderna, con excepcion de la ultima que dice - 49 fojas; unica tambien que se encuentra en esta
clase. - Su discrepancia con la moderna, que marca la foja 50, consiste en que aquella contó
solamente las fojas utiles, excluyendo, por consiguiente, la 35a blanca."362
Paso y Troncoso cita a conclusão de Ramirez sobre a discrepância entre as duas
numerações, mas realiza sua própria descrição: "Tal como actualmente se halla, consta el Códice
Le Tellier de una hoja de registro sin numerar, y de 50 fojas con numeración moderna, del 1 al
50. En el frente de la ultima foja queda escrito con caracteres antiguos lo que sigue: 49 fojas,
inscripción que se puso tal vez cuando empastaron el volumen."363
Estamos de acordo com as conclusões de Ramirez sobre a discrepância entre as duas
foliações. É sem duvida muito provável que o indivíduo que registrou a primeira foliação não
tenha considerado o fólio de número 35364, especialmente porque acreditamos que nem sequer se
encontrava no mesmo local. Não é improvável que essa folha em branco tenha ido parar
indevidamente no meio da seção dos anais. Para o registro dessa numeração devem ter sido
considerados somente os fólios que possuíam conteúdo.
Os dois autores citados acima se referem à segunda foliação como moderna e Paso y
Troncoso diz ainda que a primeira foliação foi "escrita com caracteres antigos". Também
pensamos que aquela que chamamos de primeira foliação seja mais remota, não só por apresentar
uma grafia antiga, mas porque o registro já está bastante apagado, em comparação com a segunda
foliação. Na Figura 58 é possível fazer uma comparação, pois a primeira foliação foi registrada
no fólio de número 50 da segunda foliação.

360
Retiradas de fragmentos de seu texto manuscrito, publicadas por Chavero e Paso y Troncoso. (CHAVERO,
Alfredo. Apuntes Viejos de Bibliografia Mexicana. México: Tip. J.J. Guerrero y Cia., 1903; PASO Y TRONCOSO,
Francisco del. Op. Cit., 1979.).
361
PASO Y TRONCOSO, Francisco del. Op. Cit., 1979.
362
RAMIREZ, José Fernando. Citado em: CHAVERO, Alfredo. Op. Cit., p. 8.
363
PASO Y TRONCOSO, Francisco del. Op. Cit., 1979, p. 338.
364
Número da segunda foliação.

134
Figura 58

A grafia, tanto do número quatro como do texto aparenta ter sido realizada no século XVI
ou XVII, pois é bastante similar ao tipo de grafia empregado no corpo do manuscrito pelos
anotadores. Entretanto, é importante notar que quando esse primeiro registro foi realizado, o
códice se encontrava exatamente com a mesma composição que hoje possui. Por esse motivo,
acreditamos que tenha se passado algum tempo entre a confecção do códice e a colocação desse
registro, tendo nesse período sido bastante manipulado e rabiscado, a ponto de ter ocasionado
importantes perdas de fólios.
Outro elemento que nos faz acreditar na anterioridade dessa primeira foliação é o fato do
texto estar escrito em castelhano e não em francês. Nesse sentido, talvez não esteja equivocada a
conclusão de Paso y Troncoso sobre a contemporaneidade entre a primeira foliação e a
encadernação removida em 1966-67, pois o título escrito na capa estava também em castelhano.
Por isso, é possível que a primeira foliação do manuscrito, presente somente no fólio de
número 50, tenha sido inserida antes da encadernação, mas sem dúvida antes de passar para a
mão de franceses.
Como vimos no estudo das encadernações, aquela que foi removida na década de 60
possivelmente foi adicionada ao códice muitos anos depois deste ter sido confeccionado,
provavelmente a partir de meados do século XVII. É grande a possibilidade de que o manuscrito
tenha estado na Espanha e que lá tenha sido encadernado antes de ter sido levado para a França.
Por isso, pensamos que a primeira foliação, ou primeiro registro de páginas existente no
manuscrito ("49 fojas"), tenha sido também ali adicionado.
Quanto à segunda foliação, pode ser mais precisamente datada, pois foi possível encontrar
no códice dados bastante esclarecedores sobre ela.
Quiñones Keber365, em seu estudo sobre nosso manuscrito, afirma que o mesmo recebeu
numeração de fólios em 1889. Esse dado foi retirado do trabalho de Hamy366, na publicação

365
QUIÑONES KEBER, Eloise. Op. Cit., 1995, p. 121.
366
HAMY, E.-T. Op. Cit., p. 1.

135
financiada pelo Duque de Loubat em 1899. Mas, onde pode ter obtido Hamy essa informação?
Em seu texto somente encontramos a referência da data, sem qualquer explicação sobre as fontes.
Podemos articular uma explicação possível se nos voltarmos ao próprio manuscrito, pois uma
inclusão referente ao ano de 1889 é encontrada no volume. Nesse ano foram adicionados ao
conjunto os dois fólios manuscritos de Simeón Remi, datados em 29 de janeiro de 1889, cuja
informação foi anotada no fólio de registro em 2 de fevereiro do mesmo ano. O manuscrito de
Rémi se trata de três páginas de textos, dois fólios, numerados com as letras "A" e "B", os quais
já citamos acima. É possível que Hamy tenha pensado que o códice também recebeu a numeração
de páginas nesse período; e Quiñones Keber incorreu no equívoco usando a informação de Hamy.
Obviamente a segunda foliação não pode ter sido realizada em 1889, pois foi vista e
descrita por Ramirez em 1855. Citamos o fragmento de seu texto acima, onde o autor inclusive
discute o porquê da discrepância existente entre a primeira foliação, que diz ter sido escrita em
caracteres antigos, e a numeração que chama de moderna (segunda foliação). Na Figura 59
representamos os números usados nessa segunda foliação do códice.

Figura 59

Mas, se a segunda foliação não foi executada em 1889, quando teria sido?

136
Estudando a grafia dos diversos textos realizados no códice, encontramos um que pode ser
atribuído à mesma mão que executou a segunda foliação. No último fólio do manuscrito é
possível observar um pequeno texto, composto por duas linhas, paleografado por Ramirez: "Le
présent manuscrit contient cinquante feuillets dont la 38e (sic) échancrée. le 7e Juin 1823."367
Abaixo, na Figura 60, reproduzimos o fragmento.

Figura 60

Encontramos outros dois autores, além de Ramirez e Paso y Troncoso, - que foi quem
reproduziu a frase transcrita por Ramirez -, que citaram ou paleografaram a mesma frase, ambas
divergindo entre si e da paleografia de Ramirez quanto ao ano. Assim, H. León Abrams Jr, em
seu "Comentario sobre la seccion colonial del Codice Telleriano-Remensis", diz: "La última
anotación tiene la fecha de junio de 1893."368 Já a paleografia de Quiñones Keber: "Le présent
manuscrit contient cinquante feuillets dont // le 38e échancré le 7e juin 1899"369
Por que tanta divergência entre as datas fornecidas pelos autores na leitura de um único
texto? A grafia de números, especialmente do número 3, do indivíduo que realizou essa nota e
também a segunda foliação do códice confundiu a muitos. Não foi por acaso que na última
restauração e encadernação do manuscrito ele acabou tendo dois de seus fólios trocados370.
Comparando os números da segunda foliação com os do texto é possível notar as semelhanças
existentes entre eles. Para isso observemos a Figura 61, onde comparamos os números do texto
com os da segunda foliação.

367
Citado em: PASO Y TRONCOSO, Francisco del. Op. Cit., 1979, p. 338.
368
ABRAMS Jr., H. León. Op. Cit., p. 163.
369
QUIÑONES KEBER, Eloise - avec la collaboration de Michel Besson. Paléographie. P385A: TELLERIANO-
REMENSIS, Codex, 1995. Disponível em: <http://www.sup-infor.com/a-propos.htm> Acesso em: 13 jun. 2007.
370
No caso desse texto o número 38 não foi confundido porque, de fato, tratava-se do único fólio chanfrado no
códice (o fólio foi rasgado no canto inferior externo), o qual foi restaurado, possivelmente em 1986-87.

137
Números Texto 2a Foliação 2a Foliação 2a Foliação 2a Foliação
7 7 17 27 37

38 38 33 8 28

1823 18 23 21 22

Figura 61

A grafia dos números é muito similar, especialmente a grafia do três, que tem uma forma
muito particular e facilmente confundível com o número 9. Também o 2 causou equívocos, tendo
sido confundido com um 9.
A atribuição de ambas as grafias à mesma pessoa fornece-nos uma data bastante precisa
para a segunda foliação, pois caso não tenha sido realizada no mesmo dia que o texto, não deve
ter sido em período muito distante. Por isso, propomos que essa numeração do códice foi
realizada em 1823, talvez até no mesmo dia que o texto, em 7 de Junho de 1823, ou seja, mais de
um século depois da entrada do manuscrito na Bibliothèque du Roi.
Existe uma assinatura logo abaixo do texto, mas Ramirez371, que a viu em 1855, não
conseguiu descobrir seu autor, mesmo pedindo auxilio ao conservador da biblioteca naquela
época.
Voltemo-nos agora para a terceira e última foliação. Os números referentes àquela que
chamamos de terceira foliação foram realizados a lápis já no século XX, e ali inseridos por dois
motivos: em um dos casos onde o número da segunda foliação estava apagado; e nos outros
devido à dificuldade em interpretar a grafia. Então, a terceira foliação usa como referência a
segunda e aparece nos fólios 1, 33, 34, 35, 36, 37, 38, 39 e 43, reproduzidos na Figura 62.

371
Citado em: PASO Y TRONCOSO, Francisco del. Op. Cit., 1979, p. 338.

138
Figura 62

Somente o registro de número 1 foi de novo colocado porque a segunda foliação estava
bastante apagada, apesar de uma leve sombra ainda poder ser vista hoje, como pode ser
observado na Figura 63, assinalado com o círculo.

Figura 63

Esse é o único caso onde o novo número foi registrado ao lado da segunda foliação. Nos
outros locais onde existem números da terceira foliação eles aparecem logo abaixo da segunda,
adicionados para que não houvesse dúvida sobre o número do fólio, especialmente no caso do 3,
haja vista que a maioria dos números remarcados a lápis contém o número 3. Veja na Figura 64
dois exemplos da posição dos números dessa foliação em relação à segunda.

Figura 64

139
Mas, quando pode ter sido inserida essa foliação no códice? Acreditamos que tenha
servido como guia em uma das restaurações a que o manuscrito foi submetido na BnF: a de 1966-
67 ou a de 1986-87. Comparamos os números dessa foliação com o texto inserido na primeira
página do códice, e datado em 1967, mas não foram realizados pela mesma pessoa.

4.1. Análise dos dados das foliações

A análise das foliações realizadas no manuscrito não oferece sozinha muitos dados, mas
não é pouco importante porque juntamente com os outros aspectos estudados nesse trabalho pode
nos trazer valiosas informações. Acreditamos que a mais importante informação aqui obtida se
refere à primeira foliação. Sua grafia e a língua usada para representá-la nos dão alguma idéia do
local onde pode ter estado o códice antes que fosse levado à França. Não sabemos o que
aconteceu ao manuscrito depois que foi confeccionado na Nova Espanha. Existe um vácuo entre
o período de sua confecção e o momento que passou da coleção de Le Tellier para a Bibliothèque
du Roi. Qualquer dado que possa nos ajudar a preencher essa lacuna é importante, mesmo que
pequeno.
Descartamos a possibilidade dessa primeira foliação ter sido feita pelos anotadores do
códice, pois a grafia não corresponde a nenhum deles e, além de tudo, quando recebeu esse
registro o manuscrito já havia perdido os fólios que lhe faltam hoje. Foi preciso muitos anos de
manipulação para ocasionar a perda dos fólios e o desgaste das partes iniciais e finais dos
cadernos que o compõem. Por isso, existe uma maior probabilidade de que tenham se passado
muitos anos depois da confecção para que recebesse o registro da primeira foliação. É possível
que tenha sido ali colocada pela mesma pessoa que o vendeu a um comprador francês (talvez até
o próprio Le Tellier). Pensamos, inclusive, que tenha sido adicionada antes de receber a
encadernação removida na década de 60, pois a inclusão do fólio 35 no interior do manuscrito
parece ser obra do encadernador.
Quanto à segunda foliação, alguns autores acreditavam que tinha sido adicionada ao
códice no final do século XIX, mas em verdade constatamos que foi inserida no início desse
mesmo século, possivelmente no ano de 1823, por algum funcionário da BnF cujo nome
desconhecemos.

140
A terceira foliação, por sua vez, foi adicionada em uma das restaurações do manuscrito, já
no século XX.

141
5. Conclusões

A análise do conteúdo material do Telleriano Remensis trouxe alguns novos dados sobre a
história do manuscrito, especialmente no que se referem à sua história de confecção e uso.
Alguns desses dados confirmam hipóteses já estabelecidas por outros autores, porém, também
podem alterar algumas outras.
Robertson372 foi o primeiro a chamar a atenção sobre o problema da utilização do
conteúdo dos textos para datar o manuscrito - o que os autores vinham fazendo desde então -,
delimitando períodos distintos para a realização das imagens e textos. Essa divisão também foi
adotada por Quiñones Keber373, no caso específico da datação, sugerindo o período de 1553 a
1555 para a realização das imagens e 1555 ao início da década seguinte para os textos. Sua
hipótese relativa às anotações parece-nos bastante razoável até o momento, contudo, a datação da
filigrana da mão indica uma maior probabilidade de uso do papel, ou seja, da realização das
imagens (por terem sido os primeiros elementos a serem executados) em período posterior.
A filigrana idêntica encontrada, e datada em 1560, delimita o período mais provável de
utilização desses papéis a partir de 1555, enquanto a filigrana da cruz parece ter sido usada mais
freqüentemente na década de 60. Ainda que as filigranas da mão tenham sido feitas em distintas
formas, tudo indica que são provenientes do mesmo batedor e vieram num único carregamento,
ou seja, os papéis devem ter sido adquiridos na mesma compra, o que é comprovado pelo fato de
estarem mesclados alternadamente na segunda e terceira seções do códice.
O fato de haver duas famílias de filigranas no códice; de haver guilhotinamento em
somente uma das partes; dos períodos predominantes de uso de cada uma das filigranas serem
diferentes, ainda que ambas tenham sido usadas em meados do século XVI; da última página do
xiuhpohualli estar no primeiro fólio do segundo tipo de filigrana, com indicações de que pode ter
sido uma complementação posterior a essa seção; e dos papéis com as filigranas da mão estarem
mesclados, denotando proximidade de período de uso do papel na segunda e terceira seções do
códice; tudo isso corrobora a hipótese de que há dois distintos períodos para a confecção das
imagens do códice, ou pelo menos, indica que o xiuhpohualli por um lado e as outras seções por

372
ROBERTSON, Donald. Op. Cit., p. 109-110.
373
QUIÑONES KEBER, Eloise. Op. Cit., 1995, p. 128-129.

142
outro foram realizados separadamente, tendo sido o xiuhpohualli adicionado posteriormente ao
restante do conjunto374. Foi necessário uma outra compra de papel para a realização do
xiuhpohualli, que pode ter sido executado no mesmo período das outras seções, mas também
podem ter se passado alguns anos entre o uso do papel da filigrana da mão e o da cruz, que parece
ser mais tardia.
Ainda que em toda a seção dos anais tenha sido utilizado papel com a filigrana da mão,
vimos que pode ser claramente separada em duas partes. A perda dos fólios no final da migração;
sua separação em um caderno distinto; o número maior de furos de encadernação; o fato de
possuir diferente padrão de anotações; e do estilo de suas imagens ser completamente diverso da
seção anterior e até mesmo da posterior, a segunda parte dos anais, que apresenta sua seqüência;
tudo isso indica que a migração foi realizada separadamente. Possivelmente os papéis com a
filigrana da mão foram comprados conjuntamente para a realização de manuscritos indígenas,
cujo trabalho foi distribuído entre diferentes indivíduos, com estilos distintos.
O fato dos testes de pena e da maioria dos fólios faltantes marcarem exatamente os locais
que dividem os tipos de conteúdo e o fim da migração são indícios de que esses blocos foram
manipulados separadamente antes que fossem reunidos e encadernados375. Tudo indica que seus
primeiros possuidores, ou seja, os dominicanos que realizaram as anotações em espanhol, nunca
encadernaram o conjunto. Essas partes separadas devem ter sido manipuladas e usadas por
muitos anos antes de receberem a primeira encadernação.
A primeira foliação confirma a hipótese de que o códice foi encadernado quando já
possuía o número de fólios que hoje apresenta; e o fato de estar escrita em espanhol, da mesma
forma que o título (que havia na capa removida em 1966-67) faz-nos supor que o códice tenha
recebido essa numeração e esse título na Espanha.
O estudo dos papéis retirados do interior da capa de pergaminho removida mostra que
foram utilizados provavelmente do final do século XVI ao início do XVII, para depois serem
descartados. Considerando que deve ter se passado algum tempo entre o uso e o descarte desses
fólios (manuscrito Portugais 134) e a manipulação das unidades citadas, para que ocorresse a
perda dos fólios e marcas, associados à referência aos 49 fólios na primeira foliação - número de

374
BATALLA ROSADO, Juan José. Op. Cit., 2006, p. 77.
375
Hipótese primeiramente sugerida por Ramirez (Apud: PASO Y TRONCOSO, Francisco del. Op. Cit., 1979, p.
337), Paso y Troncoso (PASO Y TRONCOSO, Francisco del. Op. Cit., 1979, p. 38) e Quiñones Keber (QUIÑONES
KEBER, Eloise. Op. Cit., 1995, p. 123).

143
fólios existente hoje no códice -, existe uma maior probabilidade de que a encadernação removida
tenha sido acrescentada na segunda metade do século XVII.
Todos esses dados sugerem que o códice devia se encontrar na Espanha no final do século
XVII antes de ser levado para a França, quer seja pessoalmente pelo próprio Le Tellier ou por
outra pessoa. Portanto, não deve ter sido muito longo o período que o arcebispo manteve o
manuscrito em suas mãos, pois deve tê-lo adquirido na segunda metade do século XVII,
possivelmente logo depois de receber a encadernação, que pode ter sido realizada para valorizar o
preço do conjunto para que fosse vendido.
O estudo da composição material forneceu-nos também a base para a subdivisão do
manuscrito que usaremos até o final desse trabalho, pois além das divisões por assunto levaremos
sempre em consideração a divisão da seção dos anais em duas partes.

144
Capítulo III – Número de tlacuilos

1. O estilo Mixteca-Puebla

O TR apresenta características de um estilo artístico e iconográfico que vigorou durante o


pós-clássico376 em algumas regiões mesoamericanas, cujo uso estendeu-se ao período colonial, e
que se convencionou chamar estilo Mixteca-Puebla. Essa classificação foi baseada no mesmo
sentido normativo da palavra 'estilo' aplicada às divisões da arte européia, em 'estilos artísticos',
no entanto o contexto mesoamericano se diferencia razoavelmente do europeu. Por isso, não
entraremos aqui nas discussões sobre os problemas dessas categorias e seus critérios porque
muitas das discussões não se aplicam à Mesoamérica.
O nome 'Mixteca-Puebla' foi dado por George Vaillant em 1938, mas a elaboração mais
precisa do conceito foi realizada somente em 1956 por Nicholson, e complementada
posteriormente por Robertson.377 Em 1996 Escalante Gonzalbo378, enfocando especialmente as
representações do corpo humano, reorganizou e acrescentou novos elementos à lista das
características que definem o aspecto pictográfico dos manuscritos da tradição Mixteca-Puebla
definida anteriormente pelos autores citados e por outros.
Os trabalhos de Nicholson, Robertson e Escalante Gonzalbo serviram como base para a
análise que apresentaremos no capítulo V, onde faremos um estudo sobre o estilo de cada um dos
tlacuilos que participaram na execução do TR, e também forneceram alguns elementos para nos
ajudar a distingui-los. Por isso, é necessário fazer referência a partir de agora a alguns elementos
elencados pelos autores, o uso que fizemos deles e ainda apontar algumas outras características
que observaremos nas imagens.
Apesar de ter sido Vaillant a nomear o estilo Mixteca-Puebla e a apontar para a existência
de características em comum entre diversas representações artísticas mesoamericanas do pós-

376
De 900 a 1521 d.C.
377
Uma síntese bastante esclarecedora sobre o assunto pode ser vista em: ESCALANTE GONZALBO, Pablo. El
trazo, el cuerpo y el gesto. Los códices mesoamericanos y su transformación en el valle de México durante el siglo
XVI. Tesis doctoral. México: UNAM, 1996, cap. 2.
378
ESCALANTE GONZALBO, Pablo. Op. Cit., 1996. Uma versão mais sintética do trabalho está em vias de ser
publicada pela Fondo de Cultura Económica, cujo texto nos foi gentilmente fornecido pelo autor (ESCALANTE
GONZALBO, Pablo. Los códices mesoamericanos, antes y después de la conquista española. Historia de un
lenguaje pictográfico. No prelo).

145
clássico, foi somente Nicholson que o definiu. Em um artigo apresentado em 1956 e publicado
em 1957 o autor formulou as linhas básicas do conceito, onde o afastou do sentido de "cultura"
(cultura Mixteca-Puebla), como fora concebido por Vaillant, levando-o para o caminho de uma
"tradição estilística e iconográfica"379.
Nicholson separou os elementos relevantes que aparecem nos códices e outras
manifestações dessa tradição Mixteca-Puebla em dois grupos, o primeiro sob o ponto de vista do
estilo e o segundo, da iconografia. Portanto, baseando-se no códice Bórgia, o autor apresentou as
seguintes características relativas ao estilo:
- Delineado com precisão quase geométrica;
- Padronização rígida dos símbolos;
- Uso de numerosas e vívidas cores, que desempenham um papel simbólico; e
- Desenhos análogos às modernas caricaturas, com traços relevantes exagerados.380
No tocante à iconografia ofereceu uma lista de elementos comumente encontrados em
representações desse estilo: discos solar e lunar; bandas terrestres e celestes; símbolo de Vênus
ou estrela brilhante; crânios e esqueletos (...); jade ou chalchihuitl381; água; fogo e chama;
coração; símbolos de guerra; montanha ou lugar; pluma; flor; olhos estilizados como estrelas;
xicalcoliuhqui382; caracol espiral fatiado; e os vinte signos do tonalpohualli.383
O trabalho de Robertson também teve uma importância significativa no âmbito dos
estudos sobre o estilo Mixteca-Puebla. Em seu livro "Mexican manuscript painting of the early
colonial period"384 se propôs a analisar o estilo dos manuscritos nahuas do início do período
colonial. A inexistência de documentos pré-hispânicos dessa tradição obrigou-o a utilizar
algumas estratégias para tentar separar os elementos que caracterizariam o estilo no período
anterior à conquista. Elencou, então, três tipos de fontes: os códices coloniais nahuas, de onde
eliminaria os elementos de provável origem européia; as manifestações artísticas em outros

379
NICHOLSON, H. B. The Mixteca-Puebla concept revisited. In: BOONE, Elizabeth Hill (ed.). The Art and
Iconography of Late Post-Classic Central México. Washington, D. C.: Dumbarton Oaks, 1982, p. 227.
380
NICHOLSON, H. B. Op. Cit., 1982, p. 228-229.
381
Pedra preciosa. Em Rémi: Chalchiuitl: "esmeralda em bruto, perla, piedra preciosa verde" (RÉMI, Siméon. Op.
Cit., p. 91).
382
Xicalcoliuhqui é um motivo com significado simbólico que se repete nos códices, na decoração dos edifícios, na
cerâmica, tecidos, dentre outros.
383
NICHOLSON, H. B. Op. Cit., 1982, p. 229.
384
ROBERTSON, Donald. Op. Cit., 1959.

146
meios; e manuscritos do que chamou de "Escola Mixteca"385, que ficou mais conhecida como
estilo Mixteca-Puebla, e dos quais utilizou de fato somente um códice, o Nuttall.386 A análise que
realizou nesse códice determinou a ordem e o tipo de elementos que iria observar nos
manuscritos coloniais, que foram os seguintes: composição da página e espaço, linha, cor, formas
humanas, formas arquitetônicas, formas geográficas e outras formas e signos.
Selecionamos aqui algumas das características do estilo Mixteca-Puebla definidas por
Robertson:
- As figuras existem em um espaço indefinido, ou seja, não há paisagens ou base387;
- As formas são dispostas em "horror vacui"388, ou seja, ocupam densamente o espaço
disponível389;
- As linhas empregadas são "linhas-marco"390, que costumam ser fortes e invariáveis e têm
basicamente dois objetivos, enclausurar áreas de cor e qualificar simbolicamente a área de cor
enclausurada391;
- A cor é usualmente aplicada com uma linha de borda (linha-marco), em áreas planas e sem
modelagem ou sombreado392;
- As formas não são visualmente unificadas, ou seja, podem ser divididas em diferentes
componentes, incluindo a figura humana. Na figura humana a cabeça aparece de perfil, o torso de
frente, os membros de perfil, as mãos têm limitada variação de gestos, as pernas aparecem em
poucas posições e em perfil e os pés também são representados de perfil, mostrando dedos ou
não, sem diferenciar direito do esquerdo393;

385
Em seus trabalhos Nicholson criticou o termo usado por Robertson, objetando a exclusão da palavra Puebla
porque acreditava que atribuir o estilo a uma única etnia, a mixteca, atrapalha a compreensão e distribuição do
fenômeno (Apud: ESCALANTE GONZALBO, Pablo. Op. Cit., 1996, p. 10.). Nicholson coloca-se contra a
utilização de um termo etno-linguístico (mixteca) para nomear uma tradição estético-iconográfica, considerando que
somente a palavra "mixteco" pode causar suposições histórico-culturais dúbias. (NICHOLSON, H. B. Op. Cit., 1982,
p. 233).
386
ROBERTSON, Donald. Op. Cit., p. 9.
387
ROBERTSON, Donald. Op. Cit., p. 15.
388
Horror ao vazio.
389
ROBERTSON, Donald. Op. Cit., p. 16.
390
Linha negra que delimita as áreas de cor das figuras. A expressão usada por Robertson é "frame-line", que foi
traduzida ao espanhol como "línea-marco" (ESCALANTE GONZALBO, Pablo. Op. Cit. No prelo, p. 32).
391
ESCALANTE GONZALBO, Pablo. Op. Cit. No prelo, p. 16.
392
ESCALANTE GONZALBO, Pablo. Op. Cit. No prelo, p. 17.
393
ESCALANTE GONZALBO, Pablo. Op. Cit. No prelo, p. 17-18.

147
- As formas arquitetônicas são limitadas por convenções, que seguem um número limitado de
padrões fixos394;
- Os elementos geográficos são signos formalizados395;
- Todas as representações são estilizadas396.
As características acima se referem ao estilo tradicional do que Robertson chamou de
"Escola Mixteca", as quais foram apresentadas dispersas ao longo do texto. Selecionamos as mais
importantes e relevantes para nosso trabalho, mas vale ressaltar que o autor oferece também
alguns outros elementos específicos. O mesmo acontece com a classificação das características
dos manuscritos coloniais, onde apresentou as principais transformações do estilo tradicional
ocorridas nos códices coloniais. Dentre as principais estão:
- A mudança de formato na maioria dos casos, onde se passou a usar o formato em códice
europeu. A adaptação das convenções nativas ao novo formato causou grandes alterações em
diversos tipos de livros, reduzindo unidades contínuas a partes separadas397;
- As linhas-marco se transformaram, aparecendo pouco alteradas (linha-marco desintegrada) -
como uma "cursiva suja" que perdeu a precisão da linha-marco sem ganhar a expressividade de
uma linha de contorno -, ou bastante alterada - como uma linha de contorno398;
- Nos manuscritos mais próximos à tradição a cor é aplicada como antes, mas sem a precisão e
controle do estilo nativo. Mais tarde começaram a usar dégradés para dar sensação de volume, luz
e sombra399;
- A forma humana mostra profundas diferenças: a cabeça ficou menor em proporção ao resto do
corpo, o torso se tornou mais longo, assim como os braços e as pernas, e o número de posições
representadas aumentaram400;
- Com o aprendizado da perspectiva os edifícios se tornaram objetos no espaço em vez de signos
bidimensionais401;
- As formas geográficas se tornaram elementos isolados da paisagem, passando depois a integrar
a paisagem402.

394
ESCALANTE GONZALBO, Pablo. Op. Cit. No prelo, p. 19.
395
ESCALANTE GONZALBO, Pablo. Op. Cit. No prelo, p. 21.
396
ESCALANTE GONZALBO, Pablo. Op. Cit. No prelo, p. 10.
397
ESCALANTE GONZALBO, Pablo. Op. Cit. No prelo, p. 59.
398
ESCALANTE GONZALBO, Pablo. Op. Cit. No prelo, p. 65.
399
ESCALANTE GONZALBO, Pablo. Op. Cit. No prelo, p. 66.
400
Idem Ibidem.
401
ESCALANTE GONZALBO, Pablo. Op. Cit. No prelo, p. 66-67.

148
Apesar das transformações Robertson afirma que os documentos coloniais preservaram as
formas nativas de muitas maneiras, quer seja usando representações estilizadas, empregando
representações do calendário e nomes de personagens, preservando o tratamento da linha e da cor
ou aplicando organizações tradicionais no espaço e composição das páginas; muito embora
nenhuma delas exista em um estado puro nos manuscritos coloniais nahuas.403
Quanto ao trabalho de Escalante Gonzalbo, podemos dizer que em termos de pictografia e
iconografia, especialmente o primeiro, conseguiu sintetizar e organizar os esforços de ambos os
autores apresentados acima, além de acrescentar preciosas contribuições.
A classificação das características que unificam os manuscritos do chamado estilo
Mixteca-Puebla feita por Escalante Gonzalbo é dividida basicamente em três categorias: estilo,
repertório iconográfico e linguagem pictográfica. Para que pudesse defini-las e classificá-las
empregou um método comparativo, valendo-se dos códices pré-hispânicos da tradição Mixteca-
Puebla404 e de outras manifestações artísticas nesse estilo, especialmente a cerâmica policroma, a
pintura mural e baixo-relevos. Além disso, utilizou as contribuições de Nicholson e Robertson e
trabalhos de alguns outros autores. Desse modo, na categoria "estilo" afirmou que os códices
Mixteca-Puebla pré-hispânicos possuem as seguintes características:
- Um estilo pictórico não naturalista405;
- "Uma tendência muito marcada a reduzir as figuras a estereótipos, que se repetem com pouca
ou nenhuma variação ao longo do relato pictórico"406;
- Figuras construídas com um desenho modular, ou seja, que se compõem de partes claramente
identificáveis407;
- Figuras delimitadas ou encerradas por uma grossa linha negra, chamada linha-marco, e que tem
como função delimitar áreas de cor. Ela não varia de espessura e, portanto, não cumpre com as
funções convencionais da linha de contorno408;
- "O uso da linha-marco e das áreas de cor uniformes resulta em figuras planas, completamente
distantes do propósito de representar a tridimensionalidade"409;

402
ESCALANTE GONZALBO, Pablo. Op. Cit. No prelo, p. 67.
403
ESCALANTE GONZALBO, Pablo. Op. Cit. No prelo, p. 10.
404
Preferiu valer-se de todos os exemplares desses códices, não somente alguns ou um deles, como o fez Robertson.
405
ESCALANTE GONZALBO, Pablo. Op. Cit. No prelo, p. 31.
406
Idem Ibidem.
407
ESCALANTE GONZALBO, Pablo. Op. Cit. No prelo, p. 32.
408
Idem Ibidem.
409
Idem Ibidem.

149
- "A frente e o perfil são manipulados com o propósito de criar figuras claramente identificáveis.
A figura humana, por exemplo, costuma ter o rosto de perfil, os braços e as pernas de perfil, o
tronco de frente e o quadril em três quartos de perfil"410;
- "As figuras que compõem uma mesma cena podem estar representadas em diferentes escalas,
especialmente se são objetos de natureza distinta"411;
- O espaço das cenas é indefinido, primeiro porque não existe uma relação espacial concreta,
somente uma relação conceitual, segundo porque não há uma linha de apoio onde estejam
pousados os personagens e terceiro porque não há linha de horizonte412;
- "A figura humana é representada com muita freqüência, ocupando quase sempre o centro das
cenas. As dimensões atribuídas às diferentes partes do corpo não coincidem com as de um corpo
humano comum. O tronco parece demasiado curto e estreito, assim como os braços e as pernas
(...). As mãos e os pés são muito grandes"413;
- As partes da figura humana têm determinadas formas e posições características:
a) orelha em forma de cogumelo cortado ao meio414;
b) mãos e pés podem estar anatomicamente incorretos (direito no esquerdo e vice-
versa)415;
c) "unhas costumam ser muito visíveis"416;
d) as sandálias costumam ser grandes e evidentes417;
e) "os pés costumam ser ligeiramente mais longos que as sandálias, cujos dedos se curvam
ou se projetam em ângulo reto para baixo ao terminar a sandália"418.
Quanto à iconografia, enumera alguns elementos, dos quais vários deles já haviam sido
apontados por Nicholson. São eles: "disco solar; faixa terrestre; faixa celeste; crânios ou
esqueletos; plumas de sacrifício; chimalis419; caracol grande; Xicalcoliuhqui e xonecuilli,
Chalchihuite420; água; coração; montanha; flor; veado; águia; jaguar; lágrima; vírgulas do som ou

410
Idem Ibidem.
411
Idem Ibidem.
412
ESCALANTE GONZALBO, Pablo. Op. Cit. No prelo, p. 32- 33.
413
ESCALANTE GONZALBO, Pablo. Op. Cit. No prelo, p. 33.
414
Idem Ibidem.
415
Idem Ibidem.
416
Idem Ibidem.
417
ESCALANTE GONZALBO, Pablo. Op. Cit. No prelo, p. 34.
418
Idem Ibidem.
419
Escudos (RÉMI, Siméon. Op. Cit., p. 103).
420
Chalchihuitl.

150
da palavra; casa ou templo; pedra; vaso globular de três pés; trono de base dentada ou
escalonada; Mamalhuaztli (artefato para acender fogo); árvore que se quebra;" 421 além dos signos
do tonalpohualli.422
Já no tocante à linguagem pictográfica, o autor explica que todos os códices Mixteca-
Puebla compartilham a mesma.423 São basicamente cenas que possuem um significado específico,
como por exemplo: a tomada de prisioneiros, com um guerreiro segurando outro pelo cabelo; a
morte, com um personagem de olhos fechados; a atitude de andar, com o bracejo; dentre
outros424.
Com base nas características dos documentos pré-hispânicos da tradição Mixteca-Puebla
o autor apontou, então, quais as que sobreviveram nos documentos coloniais. Assim, em estilo:
- Uso do estereótipo, inclusive na representação de personagens e objetos europeus425;
- "A maior parte dos pintores colocam as figuras em um espaço indefinido, sem linha de
horizonte, sem linha de apoio e criam relações conceituais entre as figuras"426;
- O desenho modular aparece em alguns códices427;
- Assim como a linha-marco;428
- Alguns códices apresentam áreas uniformes de cor, mas a grande maioria não usa sombreado ou
qualquer outro recurso para criar volume429;
- Uso de várias escalas na maioria dos manuscritos, "apesar de que os elementos arquitetônicos e
as plantas tendem a aproximar-se da escala humana"430;
- "Todos os elementos diagnósticos da figura humana na tradição Mixteca-Puebla sobreviveram
depois da conquista"431.
Na categoria iconografia o autor assegura que todos os elementos listados acima podem
também ser encontrados nos códices coloniais do vale do México no século XVI.432

421
ESCALANTE GONZALBO, Pablo. Op. Cit. No prelo, p. 34.
422
Idem Ibidem.
423
ESCALANTE GONZALBO, Pablo. Op. Cit. No prelo, p. 35.
424
Idem Ibidem.
425
ESCALANTE GONZALBO, Pablo. Op. Cit. No prelo, p. 44.
426
Idem Ibidem.
427
Idem Ibidem.
428
Idem Ibidem.
429
ESCALANTE GONZALBO, Pablo. Op. Cit. No prelo, p. 45.
430
Idem Ibidem.
431
ESCALANTE GONZALBO, Pablo. Op. Cit. No prelo, p. 46.
432
Idem Ibidem.

151
E, por fim, em linguagem pictográfica aponta uma série cenas características dos códices
Mixteca-Puebla pré-hispânicos que continuaram a ser usadas no período colonial.433
Escalante Gonzalbo reconhece que as características atribuídas às imagens da tradição
Mixteca-Puebla somente a definem de um ponto de vista geral, pois existem variações entre os
manuscritos que determinam estilos regionais, ou mesmo locais, e que ainda não foram
satisfatoriamente estudadas.434
Entretanto, além das variantes locais, há ainda variações de outro caráter, que preferimos
chamar aqui de "pessoais", e que se referem inicialmente à formação e preferências de cada
artista. Sobre esse assunto Escalante Gonzalbo diz:

"A pesar de la necesaria rigidez de los estereotipos, a pesar de que los esquemas a que se
reducían las formas dejaban poco espacio para la creación libre, existen claras muestras de
que el talento, la formación y el estilo propios de cada escuela, y acaso de cada artista,
influían en el resultado final de las obras. Había artistas, como el pintor del Bodley, que
preferían las líneas rectas y las figuras angulosas, otros, como el pintor del Vindobonensis,
se las ingeniaban para contagiar sus formas de cierto realismo"435

Outro elemento citado pelo autor que parece sofrer o que chama de "margem de
interpretação do artista" é a representação das bocas, que em alguns momentos aparecem
fechadas e em outros, abertas - mostrando os dentes ou não -, apesar de algumas vezes serem
nelas agregados elementos que modificam seu significado.436
A essa margem de interpretação de cada artista, citada por Escalante Gonzalbo, e que se
trata de opções estéticas é preciso acrescentar as variações ligadas à habilidade técnica de cada
um dos desenhistas, que pode ser responsável por diferenças significativas entre um indivíduo e
outro, mesmo se estiverem copiando com todos os detalhes uma mesma imagem. O principal
elemento diferenciador nesse caso é o traço, que pode conter linhas múltiplas, ser mais grosso ou
mais fino, apresentar variações de espessura, quebras, dentre outros.

433
Somente faremos menção a essas cenas quando forem relevantes ao assunto dessa tese. A lista oferecida pelo
autor está em: ESCALANTE GONZALBO, Pablo. Op. Cit. No prelo, p. 47-48.
434
ESCALANTE GONZALBO, Pablo. Op. Cit. No prelo, p.31.
435
ESCALANTE GONZALBO, Pablo. Op. Cit. No prelo, p. 15.
436
ESCALANTE GONZALBO, Pablo. Op. Cit. No prelo, p. 15 e 16.

152
Nos documentos coloniais não é incomum que o mesmo desenhista apresente variações
no traço e no modo de desenhar alguns pequenos detalhes do rosto e outras partes do corpo. Isso
ocorre principalmente por falta de estruturas de ensino que dessem continuidade à formação e
prática no sistema de notação tradicional. No período pré-hispânico as variações na representação
dos rostos eram mínimas, porque havia a intenção de se desenhar as figuras o mais similares
possível, devido ao treinamento orientado nesse sentido, que buscava atender ao caráter
comunicativo dos documentos. Nos manuscritos coloniais tornam-se comuns as variações entre
as figuras de um mesmo desenhista. Escalante Gonzalbo faz algumas referências a esse tipo de
variação na representação dos rostos, que algumas vezes podem sugerir emoções, mas que em
geral, segundo o autor, se tratam de "...variaciones involuntarias en el trazo, una vez que se ha
roto el esquema rígido de la antigüedad (...) al perderse disciplina en el trazo, los personajes
adquirieron "personalidad" por cuenta propia"437. E referindo-se às imagens dos códices coloniais
em geral: "...el trazo de todas estas figuras carece de la disciplina antigua: titubea la línea y varían
las formas de una página a otra"438
Esse tipo de variação na representação de elementos que costumavam ser idênticos entre
uma página e outra nos documentos tradicionais pré-hispânicos ocorre também em nosso códice.
De um modo geral, não há um conjunto coerente de formas que possam definir um estilo
em comum para os manuscritos coloniais do século XVI. Esses códices são repletos de
experimentações e variações e são poucos os tlacuilos coloniais que conseguiram encontrar certo
equilíbrio no uso das convenções nativas e européias, como explica Escalante Gonzalbo:

"...el proceso de colonización los había despojado de varios mecanismos tradicionales de


transmisión del saber y de los oficios, y los había privado - debido a la destrucción practicada - de
muchos de los mejores ejemplos del arte antiguo. Al mismo tiempo sucedía que los modelos de la
tradición europea que estaban a su disposición no eran suficientes y tenían las limitaciones
inherentes a su genero... (...) Era más fácil yuxtaponer trazos y formas que fundirlos".439

437
ESCALANTE GONZALBO, Pablo. Op. Cit. No prelo, p. 209.
438
ESCALANTE GONZALBO, Pablo. Op. Cit. No prelo, p. 245.
439
ESCALANTE GONZALBO, Pablo. Op. Cit. No prelo, p.227.

153
O TR especificamente mostra no mesmo manuscrito uma grande variedade de formas de
tratamento de ambas as convenções e soluções distintas na adequação dos conteúdos tradicionais
às suas novas funções, aos novos formatos e às exigências ou necessidades dos usuários.

2. Os tlacuilos

Para diferenciar um tlacuilo de outro no interior do códice usamos uma série de


estratégias. Nesse caso nos detivemos especialmente às características que os diferenciam uns dos
outros, deixando a descrição detalhada de suas especificidades para o capítulo V. Assim,
realizamos comparações entre elementos que se repetem em diversas páginas (principalmente a
figura humana) observando seu modo de representação, que pode coincidir ou não com as
características do estilo Mixteca-Puebla. Além disso, analisamos as características chamadas
acima de "pessoais", ou seja, que refletem as opções estéticas e a habilidade técnica de cada um
dos tlacuilos envolvidos. A reconstrução da organização material do códice também auxiliou
nosso trabalho, que foi confirmado, na medida do possível, com a comparação entre os tons de
tinta no documento original. Já para determinar o estilo440 de cada um dos tlacuilos, que
realizaremos no quinto capítulo, abordaremos sobretudo as características gerais do estilo
Mixteca-Puebla definidas pelos três autores citados acima, especialmente a lista organizada por
Escalante Gonzalbo.
Antes de iniciar o estudo das imagens propriamente dito gostaríamos de discutir a ordem
de confecção dos elementos que compõem atualmente o conteúdo do manuscrito, ou seja, suas
imagens e textos. Há uma série de indícios, em todo o TR, indicando que as imagens foram os
primeiros elementos a terem sido plasmados sobre os papéis (com exceção de alguns acréscimos
nos desenhos, que em casos específicos foram adicionados depois dos textos). São eles de duas
categorias: a primeira se refere à ocorrência de sobreposições da tinta dos textos sobre as
imagens; e a segunda sobre o perfeito ajuste dos textos aos espaços livres, ou seja, espaços não
ocupados pelas imagens - isso ocorre inclusive nos textos padronizados em uma série de páginas,
mostrando que foram adaptados de acordo com a localização das imagens e não inseridos
440
Nesse caso não nos referiremos somente às características pictóricas convencionais da tradição Mixteca-Puebla,
mas também às influências que os desenhistas sofreram das convenções pictóricas européias.

154
anteriormente a essas. Exemplos do primeiro caso podem ser vistos na Figura 65. Na Figura 66
colocamos também alguns exemplos de adaptações de textos às imagens.

Exemplos retirados das páginas: 3r, 4v, 10r, 10v, 16v, 19r, 32v, 44v e 46r
Figura 65

Fragmentos das páginas: 6v, 8r, 45v e 25r (abaixo)


Figura 66

Essa ordem de execução imagens-textos é bastante visível e óbvia, tendo sido assim
considerada por todos os autores que alguma vez estudaram o manuscrito, a ponto de nenhum
deles jamais ter discutido uma hipótese contrária. José Fernando Ramirez, por exemplo, estudioso
que realizou o primeiro esforço de análise do TR, já partiu do fato dos textos terem sido
acrescentados após a realização das imagens. Em seus "Apuntes Viejos"441 Chavero cita o

441
CHAVERO, Alfredo. Apuntes Viejos de Bibliogafia Mexicana. México: Tip. J.J. Guerrero y Cia., 1903.

155
seguinte texto de um manuscrito de Ramirez442: "Algunos de sus poseedores, cuatro por lo
menos, quisieron esclarecer el sentido de las figuras, y al efecto le añadieron algunas
explicaciones en lengua castellana, escribiendolas encima, á los lados, al pie y aun dentro de las
mismas figuras."443
Levando em consideração somente as imagens, objetos de estudo principais desta tese, e
de modo a organizar a análise, propomos uma divisão do códice TR em três grandes blocos, que
coincidem com as divisões da organização material, já discutida anteriormente. São elas: o
xiuhpohualli; a migração; e o tonalpohualli conjuntamente com a segunda parte dos anais
históricos. Esses três blocos principais apresentam algumas diferenças muito marcantes, que se
referem especialmente à organização material e aos tlacuilos. Alguns autores, como Robertson444
e Quiñones Keber445, por exemplo, acreditam que essas diferenças se devem ao fato dos assuntos
terem sido copiados de diferentes livros indígenas, ou seja, de distintas fontes, cada uma
marcando estilos locais446. Estamos de acordo com alguns dos argumentos utilizados para essa
afirmação, entretanto, pensamos que eles não se aplicam a todo o manuscrito. As diferenças
estilísticas entre as imagens não devem ser somente atribuídas a essa possibilidade, mas em
primeiro lugar e principalmente ao fato de terem sido realizadas por diversos tlacuilos, que
apresentam, além de diferentes características regionais/ locais e pessoais, características que os
distanciam mais ou menos das convenções pictográficas pré-hispânicas. A consideração dessa
heterogeneidade é essencial na análise desse códice.
Essa particularidade do TR foi bem notada por Escalante Golzalbo: "la coexistencia de
varios estilos y diversos grados de familiaridad con las formas antiguas y con las nuevas se pone
de manifiesto, muy claramente, cuando observamos un manuscrito pintado por varias manos, lo
cual es bastante frecuente. Uno de los mejores ejemplos en que puedo pensar es el del Telleriano
Remensis"447.

442
Infelizmente não pudemos ter acesso ao manuscrito citado porque este se encontrar na Biblioteca Nacional de
Antropología e Historia (INAH), na Cidade do México.
443
CHAVERO, Alfredo. Op. Cit., p. 10.
444
ROBERTSON, Donald. Op. Cit., p. 107-115.
445
QUIÑONES KEBER, Eloise. Op. Cit., 1995, p. 123.
446
Discutiremos os argumentos desses autores mais adiante nesse trabalho.
447
ESCALANTE GONZALBO, Pablo. Los códices mesoamericanos, antes y después de la conquista española.
Historia de un lenguaje pictográfico. No prelo, p. 223.

156
O primeiro autor, que temos conhecimento, a se referir a essa heterogeneidade gráfica do
códice é Afredo Chavero448, que realizou um breve estudo sobre o Telleriano publicado em
1903449: "Para distinguir una pintura de otra, basta comparar los signos de los días, especialmente
los cuatro cronográficos; y son muy diferentes los del códice histórico de los de la parte
cronológica. Igual diferencia se nota en el dibujo y color de las figuras, los cuales son muy
superiores en la primera parte."450.
Chavero usou uma comparação entre as representações dos signos calendáricos para
afirmar que existem diferenças entre as duas partes citadas. No entanto, mesmo levando em
consideração somente esses signos é possível perceber que participaram mais indivíduos em sua
execução. Batalla Rosado451, que também realizou uma comparação entre os signos calendáricos
do códice, afirma que foram desenhadas por 3 tlacuilos, com a qual estamos de acordo.
Comparando 4 signos, usados tanto no tonalpohualli como nos anos da seção dos anais
(na migração e na segunda parte da história), é possível notar as diferenças. Confira as
reproduções de alguns signos na Figura 67. Note que aqueles que aparecem em toda a seção do
tonalpohualli e dos anais entre as páginas 30v e 48r foram realizados pelo mesmo desenhista.
Assim, os signos foram representados por três tlacuilos: o primeiro deles desenhou os do
tonalpohualli e dos anais históricos da página 30v à 48r; o segundo foi responsável pelos da
migração; e o terceiro executou os signos dos anais da página 29r à 29v.

448
CHAVERO, Alfredo. Apuntes Viejos de Bibliografía Mexicana. México: Tip. J.J. Guerrero y Cia., 1903, p. 3.
449
Mas que foi escrito, segundo o próprio autor, pelo menos 30 anos antes.
450
CHAVERO, Alfredo. Op. Cit., p. 11.
451
BATALLA ROSADO, Juan José. Op. Cit. No prelo. E também em: BATALLA ROSADO, Juan José. Op. Cit.,
2006, p. 73.

157
Tonalpohualli Anais pp. 30v a 48r Anais pp. 29r e 29v Migração

12v 47v 29r 27r

13v 38r 29r 27r

10r e 13r 31r 29r 27v

13r e 19v 34r e 40r 29r 28v

Figura 67

Entretanto, os signos nos ajudam a solucionar apenas uma parte do problema, pois há
casos onde um tlacuilo desenhou os signos e outro realizou o restante das imagens, assim como
existem páginas do códice que não contém nenhuma representação de signo calendárico, como é
o caso de toda a seção do xiuhpohualli. Por isso é necessário comparar todos os elementos,
estudando minuciosamente as características dos desenhos.

158
Também Quiñones Keber452 notou que o TR foi realizado por mais de um indivíduo.
Porém, acredita que foram somente dois os tlacuilos envolvidos, um principal, que desenhou todo
o tonalpohualli, a parte dinástica e colonial dos anais históricos (as quais preferimos chamar de
segunda parte dos anais) e a maior parte do xiuhpohualli. O segundo tlacuilo, de acordo com a
autora, um provável assistente do primeiro, pintou algumas figuras do xiuhpohualli - dos fólios
1r, 1v, 4v, 5r e 6v -, a seção da migração e os signos calendáricos do fólio 29 (páginas 29r e
29v)453.
Não estamos de acordo com o número de tlacuilos proposto pela autora, mesmo porque,
como vimos acima e usando somente um elemento - os signos calendáricos - já foi possível
distinguir três. Ela afirma que a maioria das imagens do xiuhpohualli foram feitas pelo primeiro
tlacuilo, que seriam as páginas 2r, 2v, 3r, 3v, 4r, 5v e 6r, o qual também realizou o tonalpohualli
e a segunda parte dos anais, com exceção dos signos calendáricos das páginas 29r e 29v.
Concordamos somente com a afirmação de que foi o mesmo tlacuilo que desenhou o
tonalpohualli e a segunda parte dos anais, mas não acreditamos que ele tenha pintado qualquer
imagem do xiuhpohualli. Além de representar os objetos, roupas e outros adereços de uma forma
mais estereotipada que os desenhistas do xiuhpohualli, o tlacuilo das trecenas possui linhas-
marco mais próximas às tradicionais e diferentes modos de representar alguns elementos,
incluindo a figura humana454. Para que se possa ter uma idéia das diferenças encontradas entre
eles, faremos algumas comparações de imagens, nas Figura 68,Figura 69 eFigura 70.

452
QUIÑONES KEBER, Eloise. Op. Cit., 1995, p. 123-124.
453
Idem Ibidem.
454
Falaremos detalhadamente sobre as características estilísticas de cada um dos tlacuilos do códice no Capítulo V.

159
Linha superior: imagens das páginas 3v, 6r e 5r (xiuhpohualli)
Linha inferior: imagens das pp. 23r, 12v, 14v, 21v, 8r (tonalpohualli) e 43r (2a parte dos anais).
Figura 68

Na Figura 68, as imagens representadas na linha superior foram retiradas da seção do


xiuhpohualli e as da linha inferior pertencem à seção do tonalpohualli, com exceção da última
figura, a qual se encontra na segunda parte da seção dos anais. Todas essas imagens (da primeira
e segunda linha) foram atribuídas por Quiñones Keber ao tlacuilo que chama de principal. As
figuras aqui usadas como exemplos possuem diversos elementos em comum, apesar de não
representarem os mesmos deuses455, com exceção de Tlaloc (última figura da linha superior e
duas últimas da inferior).
A diferença mais visível entre ambos os grupos, da linha inferior e da superior, se refere
ao estilo pictórico, que é mais naturalista no primeiro grupo que no segundo. O desenhista das
trecenas e da segunda parte da história possui um modo mais estereotipado e simplificado de
representar a maioria dos elementos, enquanto os do xiuhpohualli são mais “realísticos”. Um
exemplo bem claro pode ser visto na representação das plumagens, especialmente as de cor

455
A identificação de um número grande de deidades do TR, sobretudo no xiuhpohualli, apresenta uma série de
problemas, principalmente porque algumas dessas figuras mostram atributos de diversos deuses. Não é nossa
intenção aqui discutir a identidade de cada uma delas. Escolhemos as imagens para comparação, nesse e em outros
exemplos, baseados nos elementos da roupa, do toucado e outros objetos em comum, porque é difícil encontrar
figuras equivalentes para comparação em todas as seções analisadas, porque representam temas distintos.

160
verde, que são mais largas e em menor número na linha de cima, além de algumas vezes
apresentarem gradação de cor. A segunda figura (primeira linha) possui grande detalhe na
representação das plumagens e uma linha-marco mais fina, o que confere à imagem um aspecto
mais “realist”, enquanto abaixo as figuras são mais estereotipadas. Além disso, apresentam
diferenças razoáveis na representação dos rostos, especialmente na região da boca, pois o
desenhista da linha inferior realiza uma curva bem mais acentuada entre a boca e o queixo, nariz
melhor definido e uma testa mais evidente.
Diferenças entre os grupos também podem ser vistas em outros elementos, como: no
escudo (presente nas figuras das páginas 3v, 6r e 12v); nos corações e no espelho fumegante,
representados no toucado das primeiras figuras de ambas as linhas (atributos de Tezcatlipoca); ou
mesmo no elemento presente na parte de trás da cabeça da figura da página 6r e acima da cabeça
da figura da página 21v (identificado por Quiñones Keber456 como um cuauhpilolli, um acessório
de pena de águia, atributo do deus Mixcoatl).
Mesmo nas representações do mesmo deus, como é o caso do deus Tlaloc, também existe
diferenças, como no modo de desenhar o toucado, que é mais alto e tem a linha superior
segmentada no primeiro grupo (na imagem da página 5r), além de apresentar as penas num
conjunto mais arredondado. Também há diferenças no modo de representar os dentes, os brincos,
e outros pequenos elementos. A linha-marco quase não existe como tal na primeira imagem, que
possui traços finos, que já podem ser considerados linhas de contorno ao estilo ocidental.
É mais fácil perceber a diferença entre os grupos se observamos as mãos, especialmente
quando estão segurando algum objeto. O desenhista da linha inferior desenha as mãos em duas
partes, que às vezes parecem desconectadas; uma delas representa uma parte da palma da mão
com o polegar e a outra o restante dos dedos em posição fechada. Assim, o desenho desse
membro é bem mais estereotipado no segundo grupo que no primeiro, onde as partes das mãos
têm um aspecto mais unitário e naturalista. Além disso, os braceletes (rentes ao pulso) das figuras
do xiuhpohualli mostram certa tridimensionalidade, o que não ocorre nos exemplos da segunda
linha.
Enfim, há uma série de elementos distintivos marcando os dois grupos, tanto no modo de
representação como nos traços. Essas variações nos levam a afirmar que as imagens do primeiro
grupo e do segundo não podem ser de autoria do mesmo indivíduo. O mesmo acontece com as

456
QUIÑONES KEBER, Eloise. Op. Cit., 1995, p. 186.

161
imagens atribuídas por Quiñones Keber ao segundo tlacuilo, das quais selecionamos algumas, nas
Figura 68 e Figura 69.

Linha superior: imagens retiradas das páginas 1r, 1v, 5r e 6v (xiuhpohualli)


Linha inferior: imagens das páginas 25r, 25v, 27v, 28r e 28v (migração).
Figura 69

Nesse caso, as diferenças estilísticas são ainda mais evidentes. Se observarmos as


proporções corporais usadas nos dois grupos é possível perceber que nas representações da
primeira linha a dimensão da cabeça é exagerada, os membros curtos e as pernas grossas, o que
torna as figuras mais estereotipadas que aquelas da segunda linha. A representação dos pés é
diferente, ressaltando mais a visão lateral real na linha inferior, onde são desenhados na maioria
dos casos os ossos do tornozelo. As mãos também são muito distintas, especialmente quando
seguram algum objeto, pois dá um aspecto mais volumoso o modo como o dedão é projetado a
partir da palma da mão nas figuras da linha superior; as da inferior possuem dedos mais longos e
finos, os quais são pouco diferenciados, a ponto de não se distinguir claramente cada um dos
dedos. Ainda é possível ver no segundo grupo que as figuras quase não possuem testa, pois o
cabelo começa logo no início do nariz, que é mais pontudo se comparado com o primeiro. Enfim,

162
nesse caso o desenhista do xiuhpohualli se aproxima mais do padrão convencional das
pictografias indígenas que o da migração.
As imagens da Figura 70, retiradas da migração (primeira linha) e do primeiro fólio da
história, ou segunda parte dos anais (segunda linha), também foram atribuídas por Quiñones
Keber ao segundo tlacuilo. É possível notar, nesse caso, que o primeiro grupo apresenta um traço
mais fino e delicado, especialmente no caso das linhas retas, que inclusive são mais precisas.
Também há uma diferença grande na dimensão e na disposição dos círculos que representam os
números dos anos: na linha superior são mais delicadas, menores em relação à figura central e
dispostas numa fileira contínua, que somente se curvam em 90 graus quando atingem o canto;
enquanto as da linha inferior são representadas no máximo em grupos de cinco elementos e
dispostas de diferentes modos no interior do quadrado/retângulo. A forma de representar os
signos também é diferente em ambos os grupos.

Imagens retiradas das páginas 25r, 26r, 27r, 28r, 29v, 29r, 29r e 29v
Figura 70

Por todos os motivos citados acima discordamos de Quiñones Keber sobre o número de
tlacuilos do Telleriano Remensis. Pensamos que o número é bem superior aos dois definidos pela
autora.
Para concluir a lista de exemplos de autores que apontaram para a existência de mais de
um indivíduo na execução das imagens do códice, não podemos deixar de citar Escalante
Gonzalbo, a quem fizemos referência páginas acima. Esse autor faz uma diferenciação de estilo
quase oposta entre o tonalpohualli e segunda parte dos anais com a migração (ou primeira parte

163
dos anais): "...en lo tocante a la figura humana, el pintor de la primera parte de la sección
histórica – que narra la migración mexica - se encuentra en una posición diametralmente opuesta
a la del pintor de la segunda parte de dicha sección. Ya hemos visto, por ejemplo, que las
proporciones que dibuja el primero llegan a ser muy esbeltas, mientras que las del segundo se
apegan estrictamente a la tradición Mixteca-Puebla."457 Com essas palavras e ao longo de todo
seu estudo Escalante Gonzalbo deixa muito claro que o TR foi realizado, no tocante às imagens,
por diferentes pintores, chegando mesmo a dizer que podem ter sido três ou quatro.458
Como veremos adiante, a determinação do número de tlacuilos do TR é muito mais
complexa do que até hoje se supôs. O fato do manuscrito que hoje conhecemos ser o resultado de
uma compilação de documentos dificulta enormemente a análise, mas também pode nos dar
diversas informações sobre o modo como eram coletados os assuntos sobre os quais seus
possuidores tinham interesse.
Para facilitar o estudo realizaremos as análises das imagens separadamente, de acordo
com a divisão em blocos proposta acima. Seguiremos a seqüência do próprio manuscrito,
começando com o xiuhpohualli, depois o tonalpohualli e história, por estarem esses dois unidos
no mesmo bloco, e por último a migração.

2.1. Análise do Xiuhpohualli

O xiuhpohualli ocupa os primeiros 13 fólios do códice. Pelos motivos explicados na


análise material, estamos de acordo com Batalla Rosado quando afirma que a imagem referente
aos nemontemi foi realizada posteriormente. Também o estudo dos anotadores confirmou essa
hipótese. Por isso, acreditamos que esse desenho não foi executado por nenhum dos desenhistas
das 12 primeiras páginas, pois deve ter sido realizado posteriormente. Não existem ali muitos
elementos para serem comparados com as outras imagens (veja reprodução da imagem na Figura
71), a não ser a cor das tintas - preto e vermelho -, que possuem tons parecidos aos usados nas
outras imagens da seção. É um desenho muito simples e por isso difícil de avaliar a habilidade e

457
ESCALANTE GONZALBO, Pablo. Op. Cit. No prelo, p. 223.
458
ESCALANTE GONZALBO, Pablo. Op. Cit. No prelo, p. 142.

164
estilo do desenhista. Não descartamos a possibilidade de que tenha sido um dos tlacuilos que
realizou as imagens anteriores a fazê-lo em momento posterior, porém, para isso o possuidor ou
possuidores do códice teriam que haver voltado a procurar esse tlacuilo. Parece mais provável
que um terceiro indivíduo tenha realizado essa imagem, de forma a complementar a seção com o
desenho dos nemontemi; além disso, não há evidências que comprovem que tenha sido qualquer
dos dois tlacuilos anteriores a realizá-la. Por esses motivos preferimos atribuir uma distinta
autoria para esse desenho.

Imagem da página 7r (representação dos nemontemi)


Figura 71

Excetuando-se a representação dos nemontemi, participaram 2 indivíduos na execução


dessa seção. Um deles é mais habilidoso, e é provável que se tratasse do mestre do outro. Esse
último se afasta mais do estilo tradicional de representação, se comparado com o primeiro459.
Assim, pela ordem de aparição no manuscrito, os chamaremos de tlacuilo 1 e 2, sendo que o
tlacuilo 2 é o que dissemos ser o mestre. Das doze imagens dessa seção, sem contar os
nemontemi, que possivelmente foi realizada por um terceiro desenhista, - no caso tlacuilo 3 -, o
tlacuilo 1 realizou nove imagens, enquanto o 2 executou três.
Na Figura 72 reproduzimos os 9 desenhos do tlacuilo 1, que se tratam: da sétima festa,
tecuilhuitontli, da oitava, hueytecuiluitl, décima primeira, ochpaniztli, décima segunda,
pachtontli, décima terceira, hueypachtli, décima quarta, quecholli, décima quinta, panquetzaliztli,

459
Sobre essas características falaremos no último capítulo.

165
décima sexta, atemoztli e décima oitava, izcalli (respectivamente, páginas 1r, 1v, 3r, 3v, 4r, 4v,
5r, 5v e 6v).

Imagens desenhadas pelo tlacuilo 1 nas páginas 1r, 1v, 3r, 3v, 4r, 4v, 5r, 5v e 6v.
Figura 72

O tlacuilo 2 realizou a nona festa, miccailhuitontli, a décima, hueymiccailhuitl, e a décima


sétima, tititl (respectivamente, 2r, 2v e 6r), reproduzidas na Figura 73.

166
Imagens desenhadas pelo tlacuilo 2 nas páginas 2r, 2v e 6r.
Figura 73

O tlacuilo que chamamos de mestre dessa seção se trata do tlacuilo 2, enquanto o 1


apresenta maior afastamento das convenções pictográficas pré-hispânicas. O tlacuilo 1 é aquele
que possui o estilo mais heterogêneo, pois mostra variações técnicas, que podem denotar que
algumas vezes copia de um modelo a imagem que representa e outras não. No capítulo V
falaremos mais sobre as características estilísticas de cada um desses pintores, num estudo mais
específico; agora nos limitaremos a apresentar algumas diferenças básicas entre eles. O tlacuilo 2
possui um desenho mais estereotipado, o que o aproxima mais do estilo convencional,
especialmente nas imagens das páginas 2r e 2v. Na página 6r o desenho ganha mais detalhes e
uma linha-marco mais fina, além de possuir uma característica alheia ao estilo nativo: trata-se do
uso de um dégradé, acompanhado de uma linha no interior das penas verdes de quetzal que a
figura leva encima e atrás da cabeça, inexistentes na imagem da página 2r, que também possui o
mesmo tipo de penas. O número de detalhes no desenho é bastante superior ao usado nas duas
primeiras figuras e as linhas-marco, tradicionais linhas negras que delimitam as áreas de cor, são
mais finas que nas outras imagens de sua autoria. No entanto, é preciso levar em consideração
uma possibilidade quanto à questão do dégradé e linha interna nas penas verdes de quetzal do
toucado. É possível que a tinta mais escura, aplicada à base das penas e a linha no interior da
pena tenham sido aplicadas por outro indivíduo, provavelmente o tlacuilo 1, pois no original é
possível notar que os tons de verde utilizados nas imagens do tlacuilo 1 que possuem esse detalhe
são idênticos às aplicadas na imagem da página 6r. Portanto, uma das características que

167
consideramos inovações aplicadas às imagens pelo tlacuilo 2 podem não ter sido feitas pelo
mesmo.
De qualquer forma, apesar do número superior de detalhes e linhas-marco mais finas a
imagem da página 6r ainda se diferencia muito daquelas que atribuímos ao tlacuilo 1, que possui
um traço impreciso e vacilante. No geral o tacluilo 1 desenha as mãos e pés de um modo distinto
do tlacuilo 2, apesar de tentar imitar o desenho das mãos em dois casos, nas páginas 3r e 3v. É
possível que nesses casos estivesse copiando diretamente de um modelo realizado pelo tlacuilo 2.
Os rostos de ambos os desenhistas são também distintos, usando o tlacuilo 2 uma representação
mais aproximada aos padrões pré-hispânicos, com um nariz bem pronunciado e grande e uma
cabeça bastante grande em proporção com o corpo. O tlacuilo 1 representa, na maioria dos casos,
pernas muito grossas, além de algumas vezes realizar de modo distinto cada um dos pés, para
diferenciar o esquerdo do direito, que no único exemplo do tlacuilo 2 (único onde aparecem os
pés) são representados da mesma forma.
O tlacuilo 1 é aquele que mais imagens realiza nesse bloco analítico (que abarca o
xiuhpohualli). É possível que tenha sido ele que realizou a maior parte das pinturas dessa seção,
principalmente se considerarmos que pode ter sido também responsável pelas imagens da outra
parte de cada um dos bifólios460, o que parece lógico, pelo fato de desenhar quase sempre as
imagens em ambos os lados de cada fólio, com exceção do fólio 6, onde realiza uma imagem no
anverso, enquanto o verso foi usado pelo tlacuilo 2.
Comparando no original os tons de tinta aplicados à seção observamos as seguintes
características: algumas cores apresentam tons similares em determinadas imagens, que reforçam
as autorias sugeridas acima, apesar de um dos tons de verde ser similar em todas as páginas; na
maioria dos casos os tons de marrom são aplicados embaixo das linhas-marco e o vermelho, ocre,
verde e azul costumam ir por cima, com algumas exceções, como é o caso da representação da
água, em azul, na página 5v; e a figura que apresenta os tons de tinta que mais se diferenciam dos
outros está na página 6r, apesar das outras figuras atribuídas ao tlacuilo 2, das páginas 2r e 2v,
também mostrarem tons que não são encontrados em nenhuma outra imagem da seção.

460
Veja organização material dessa seção proposta por Batalla Rosado, no capítulo II.

168
2.2. Análise do Tonalpohualli e da Segunda parte dos Anais Históricos

O tonalpohualli e a segunda parte dos anais históricos foram realizados quase na


totalidade por um único tlacuilo, com exceção de alguns elementos muito específicos. Para que
possa ser identificado nos referiremos a ele como tlacuilo 4.
Foi esse indivíduo o responsável pelas imagens de todo o tonalpohualli e dos anais
históricos da página 29r até a 48r, com exceção dos glifos anuais das páginas 29r e 29v. Além
disso, seu desenho sofreu acréscimos e intervenções em algumas páginas dos anais históricos,
sobre os quais falaremos mais adiante.
Não foram somente semelhanças entre as representações gráficas, ou seja, o modo de
desenhar determinados objetos e figuras (o que inclui as proporções corporais usadas nas figuras
humanas e o modo de representar mãos, pés, rosto, dentre outros)461 que nos fizeram crer que as
partes mais extensas de nosso manuscrito foram realizadas por esse tlacuilo 4. As similaridades
podem ser observadas também em outros aspectos, relacionados a características particulares do
desenhista (que denominamos de "pessoais"), como as opções estéticas e a habilidade técnica,
que se reflete em seu traço. Além disso, analisamos os elementos que marcam sua proximidade
ao estilo pré-hispânico, ou seja, ao estilo Mixteca-Puebla.
Não nos baseamos somente no modo de representar graficamente os objetos e figuras por
considerarmos que poderia haver a possibilidade de que estivessem distintos indivíduos copiando
essas imagens de uma única fonte, que apresentasse homogeneidade na representação. Nesse
caso, se os indivíduos envolvidos na cópia tivessem sido fiéis à fonte haveria em seus desenhos
similaridades no modo de representar essas figuras e objetos. Por isso, analisamos também
aspectos que pudessem demonstrar características pessoais de desenho, ainda que o modo de
representação fosse semelhante.
Assim, nessas partes do códice que atribuímos ao tlacuilo 4 existem semelhanças em
todas as características analisadas. No caso do modo de representação gráfica as analogias
existem entre diversos elementos, como animais, objetos, roupas, adereços, topônimos, dentre
outros. No tonalpohualli são idênticas as representações dos senhores da noite e dos tonalli,
assim como de diversos adereços e objetos encontrados nas figuras centrais - os deuses patronos e
figuras complementarias. Nas Figura 74, Figura 75 e Figura 76 reproduzimos exemplos dessas

461
O que Escalante Gonzalbo chama de estilo pictórico.

169
semelhanças de representação. Note que mesmo as cores utilizadas nas representações são
similares ou possuem apenas pequenas variações. Na Figura 74 é possível observar, que nas
diversas páginas dessa seção o senhor da noite mictlantecuhtli é representado exatamente do
mesmo modo, como pode ser notado pelo desenho do cabelo, do toucado e outros adereços. O
mesmo ocorre na Figura 75, com o tonalli cipaztli.

Senhor da noite Mictlantecuhtli representado pelo tlacuilo 4 nas páginas


9r, 11r, 12r, 13r, 16r, 19r, 22r e 24r.
Figura 74

Tonalli Cipaztli representado pelo tlacuilo 4 nas páginas 9r,


10v, 12r, 14r 18r, 20r, 22r e 23r.
Figura 75

No caso dos deuses patronos e figuras complementarias também existem neles adereços e
objetos análogos, apesar de se tratarem de figuras distintas. Na Figura 76 reproduzimos um dos

170
elementos que aparece em várias dessas figuras, no caso, uma espécie de bracelete que adorna o
pulso dos deuses.

Braceletes das figuras centrais representadas nas páginas 8v, 10r, 11v,
12v, 13v 14r, 15v, 20r, 22v e 24r (tlacuilo 4).
Figura 76

Os exemplos citados acima se referem somente a uma das seções representadas pelo
tlacuilo 4. No entanto, as semelhanças existem igualmente entre as imagens dos anais históricos,
também desenhadas por ele. Reproduzimos alguns exemplos abaixo, nas Figura 77e Figura 78.

Topônimos de Mexico Tenochtitlan representados nas páginas 30r, 33v, 36v, 37r,
38v, 39r, 43r, 43v, 45r e 46r (tlacuilo 4).
Figura 77

171
Vultos mortuários representados pelo tlacuilo 4 nas
páginas 29r, 34v, 39v, 41r, 42r, 43v, 44r e 45r.
Figura 78

As semelhanças também podem ser verificadas entre as duas diferentes seções desenhadas
por ele, ou seja, entre imagens do tonalpohualli e da história. São dezenas de elementos que
apontam para uma unidade entre essas duas seções. Nas Figura 79 e Figura 80 reproduzimos
alguns exemplos.

Bolsas representadas pelo tlacuilo 4 nas páginas


21r e 22r do tonalpohualli e 33v, 37v e 39r dos
anais históricos.
Figura 79

172
Cabeça de águia representada pelo tlacuilo 4 nas páginas 13r,
15v, 18r e 21r do tonalpohualli (signo cuauhtli) e 30r e 33v da
seção histórica.
Figura 80

Além dessas afinidades, outras mais específicas referentes ao modo de representar próprio
desse tlacuilo (características que chamamos de "pessoais") podem ser vistas nas figuras
humanas, que foram desenhadas de forma idêntica e possuem a vantagem de aparecerem ao
longo de quase todas as páginas do códice.
Abaixo, na Figura 81, reproduzimos exemplos de alguns rostos retirados dessas páginas.
Os rostos da seção do tonalpohualli foram desenhados em sua maioria com a boca levemente
aberta, onde aparecem os dentes, enquanto na seção dos anais as figuras se encontram
normalmente com a boca fechada. É preciso ressaltar que as representações da primeira seção
citada são maiores que da segunda, resultando que nessa última o desenhista realizou um menor
número de detalhes. Note também que os olhos de alguns dos personagens da seção histórica
estão maiores, proporcionalmente em relação à cabeça se comparados com os da outra seção,
justamente por essa diferença de escala. No segundo grupo de imagens colocamos representações
de rostos de alguns personagens mortos.

173
1a linha: história páginas 41r, 42v, 43r, 44r, 44v, 45v e 46r
2a linha: tonalpohualli páginas 10v, 9r, 18v, 14r, 12r, 21r e 16r

Figura 81

No seguinte exemplo, da Figura 82, incluímos algumas representações de pés das figuras
do tlacuilo 4, tanto com sandálias como descalças. No caso dos pés com sandália é interessante
notar que no tonalpohualli, na maioria dos casos, foram representadas com o laço, enquanto na
seção histórica esse detalhe aparece raras vezes. Nas primeiras páginas dessa última
(exemplificado com a representação da página 29r, na terceira linha) os desenhos estão
razoavelmente maiores, o que provavelmente justificou o uso desse tipo de detalhe.

174
1a linha: tonalpohualli págs. 8r, 8v, 9v, 10r, 10v, 11v, 12v, 13r, 13v e 14r.
2 linha: tonalpohualli págs. 14v, 15r, 15v, 16v, 17v, 21v, 22r, 22v, 23v e 24r.
3a linha: história págs. 29r, 29v, 30r, 31r, 33v, 37r, 37v, 38v, 39r e 39v.
4a linha: história págs. 40r, 40v, 41r, 42r, 42v, 43r, 43v, 45v e 46r.

1 linha: tonalpohualli págs. 9r, 9r, 17r, 17r, 17r, 17r, 18r, 18r, 21r e 21r.
2a linha: história págs. 32v, 33r, 33v, 34r, 34r, 34v 36v, 36v, 37r, 45r, 45v e 46r.

Figura 82

Também selecionamos alguns exemplos de representações de mãos do mesmo tlacuilo, na


Figura 83, para que possam ser constatadas as semelhanças.

1 linha: tonalpohualli págs. 8v, 9r, 10v, 11v, 12v, 13v, 14r, 15v, 21r, 22r, 22v e 23v.
2a linha: história págs. 29r, 29v, 30r, 33v, 36v, 37v, 40r, 41r, 43r, 44v, 45v e 46r.

Figura 83

A utilização das cores por esse tlacuilo 4, tanto no tonalpohualli como na segunda parte
dos anais, segue o seguinte padrão: o marrom, laranja e alguns outros tons usados como cor de
pele costumam vir por baixo das linhas-marcos, com algumas pequenas exceções, enquanto o

175
vermelho, verde, ocre e azul vêm por cima. Comparamos os tons de tinta em ambas as seções
para verificar se existe algum tipo de conexão que possa nos ajudar a esclarecer qual delas foi
primeiramente realizada, contudo as cores não puderam esclarecer essa questão.

2.2.1.Outros tlacuilos

Na maioria das páginas de autoria do tlacuilo 4 foi ele o responsável pela realização de
todas as imagens. No entanto, nas duas primeiras páginas da história ele desenhou somente o
conteúdo histórico, enquanto a representação dos glifos anuais foi feita por outro. Além disso, em
algumas páginas, também da seção histórica, houve pequenos acréscimos e intervenções em seu
desenho.

2.1.1. Os Glifos Anuais

Abaixo, na Figura 84, reproduzimos as páginas 29r e 29v, cujos glifos anuais foram
pintados por outro desenhista, que chamaremos de tlacuilo 6, de modo a numerar os tlacuilos de
acordo com a seqüência de sua aparição no códice, pois a primeira parte dos anais históricos, ou
seja, a migração, antecede a segunda parte dos anais.
Em seguida, na Figura 85, colocamos os signos utilizados nos glifos anuais desenhados
pelos dois tlacuilos (4 e 7) para que possam ser observadas as diferenças existentes entre eles.

176
Página 29r Página 29v
Figura 84

177
Tlacuilo 4 Tlacuilo 6

47v 29r

38r 29r

31r 34r 29r

34r 40r 29r

Figura 85

Nessa comparação entre os signos somente o segundo desenho do signo cana do tlacuilo 4
tem o mesmo tipo de representação usada pelo tlacuilo 6. Ele empregou essa forma uma única
vez no códice, na página 34r. Mas, apesar dessa semelhança, pode-se notar algumas diferenças
entre as imagens, especialmente na figura central (possivelmente representação de uma pluma),
que é circular no desenho do tlacuilo 4 e tem o formato de um leque do tlacuilo 6. Nesse caso é
possível que o tlacuilo 4 tenha reproduzido o signo cana do tlacuilo 6 para tentar usá-lo como

178
uma variante - como fez com o signo pedernal, para o qual utiliza dois modos de representação
nos anais. No entanto, parece que optou por não variar a forma do signo cana, uma vez que ela
aparece do modo novo uma única vez, preferindo continuar usando sua própria maneira de
desenhá-lo.
Sobre esse assunto, da alternância na forma de representação de alguns elementos que
precisam ser repetidos diversas vezes, como os signos calendários, Escalante Gonzalbo diz o
seguinte: "...el pintor parece haber estado en libertad de escoger y combinar las formas del
repertorio de acuerdo con su criterio estético y su estrategia para crear una obra clara y
comprensible. La alternancia parece ser parte de esa estratégia".462 Assim, não é estranho que
apareçam nas seqüências de signos calendáricos e de portadores de anos variações na forma de
representação, como acontece nas seqüências de glifos dos anais e nas do tonalpohualli do TR,
pois se tratam de estratégias com fins estéticos utilizadas nos manuscritos tradicionais do estilo
Mixteca-Puebla para quebrar a monotonia das repetições.
De um modo geral, com exceção do signo cana citado acima, todos os outros portadores
de anos, incluindo os outros signos cana, são representados de forma distinta por ambos tlacuilos.
Além desse motivo, há ainda outros que nos levam a crer em diferentes autorias para cada um dos
grupos citados. A análise do traço dos desenhistas mostra que o tlacuilo 4 é mais habilidoso e
possui uma linha mais precisa, fina e delicada. Ao mesmo tempo, os quadrados ou retângulos
onde estão contidos os signos, e que fazem parte da representação dos signos anuais, são mais
irregulares nas representações do tlacuilo 6. Outro aspecto se refere à forma de realizar os
pequenos círculos dentro desses quadrados ou retângulos nos glifos anuais463, representativos dos
números, e que vão do 1 ao 13. Nas representações com maior número de círculos464,
normalmente acima de 10, o tlacuilo 4 costuma separá-los em grupos e uni-los com pequenas
linhas465. Veja exemplos na Figura 86. Nas representações da página 29r e 29v não aparecem
essas linhas, como pode ser visto na Figura 84. Ao mesmo tempo, em nenhuma ocasião os
quadrados ou retângulos dos signos de anos do tlacuilo 4 são unidos uns aos outros, como
acontece na linha inferior de signos da página 29r, de autoria do tlacuilo 6 (veja na Figura 84).

462
ESCALANTE GONZALBO, Pablo. Op. Cit. No prelo, p. 169.
463
As representações dos anos do calendário são compostas pela combinação de 4 signos com 13 números,
totalizando 52 anos.
464
Começam a aparecer em representações com número acima de 5, mas são mais comuns nas com número superior
a 10.
465
Vale ressaltar que nem todos os signos com números acima de 10 são unidos com essas linhas, mas a grande
maioria sim.

179
Signos de anos retirados das páginas 30v, 31r, 34r, 41r, 44r e 48r.
Figura 86

Por todos os motivos citados acima pensamos que esses glifos anuais, das páginas 29r e
29v não foram realizados pelo tlacuilo 4, que pintou somente as imagens centrais das mesmas
páginas. Podemos dizer também que é bastante provável que os signos tenham sido desenhados
primeiro que as outras imagens dessas páginas, por dois motivos: primeiro porque é coerente com
a dinâmica de trabalho usada nas seguintes, como pode ser constatado nas duas últimas páginas
com imagens do códice, 47v e 48r (página 48r foi representada na Figura 4), onde aparecem
somente as representações dos glifos anuais - que deviam ser as primeiras a serem desenhadas,
para depois se acrescentar o conteúdo histórico; segundo porque a partir das páginas seguintes é o
próprio tlacuilo 4 o responsável pelo desenho dos glifos. Como em todas as outras ele realizou
tanto os signos como o conteúdo histórico, nos perguntamos por que isso não aconteceu nas
páginas 29r e 29v. Há duas hipóteses para isso: ou ele iniciou o trabalho nessa seção com o
auxílio de um ajudante, que deixou de ajudá-lo por algum motivo; ou ele assumiu o trabalho que
estava sendo realizado por outro indivíduo. É difícil esclarecer completamente essa questão
porque foi perdida uma quantidade considerável de fólios entre essa segunda parte da seção dos
anais e a primeira, da migração, as quais poderiam fornecer informações adicionais. No entanto, a
semelhança entre os tons de vermelho e azul desses glifos anuais com os das páginas seguintes,
sugerem que pode ter sido o tlacuilo 4 a colorir esses glifos, indicando, portanto, que eles não
estavam finalizados quando o tlacuilo 4 assumiu a execução do trabalho, o que nos leva a dar
maior crédito à segunda hipótese: de que tenha assumido o trabalho de outro tlacuilo.

180
2.1.2. Acréscimos e Intervenções

2.1.2.3. Acréscimos

Há uma série de acréscimos realizados na segunda parte dos anais históricos, nas páginas
realizadas pelo desenhista que denominamos tlacuilo 4, as quais não são de sua autoria. A
probabilidade de que todos esses acréscimos tenham sido feitos por um único indivíduo que
chamaremos de tlacuilo 7, é muito grande, não só pela semelhança entre as representações de
alguns desses elementos, mas também pela cor das tintas, que aparentemente têm o mesmo tom
no manuscrito original. É muito provável que esses desenhos tenham sido acrescentados logo
depois da realização das imagens, por alguém que fiscalizava o trabalho ou que simplesmente
resolveu adicionar algumas informações466, pois os textos também esclarecem o significado
desses acréscimos e, além disso, essas imagens também se encontram no códice Vaticano A.
É preciso chamar a atenção para o fato desse novo desenhista, o tlacuilo 7, representar os
glifos toponímicos e outros elementos corretamente, ou seja, usando todos os elementos que os
caracterizam na escrita pictográfica. Contudo, seu modo de representá-los, na maioria dos casos,
é distinto do usado pelo tlacuilo 4. Por exemplo, representa a pedra e o nopal (cacto)
característicos do glifo toponímico da cidade de Mexico-Tenochtitlan, mas o modo como desenha
o nopal é diferente daquele usado pelo tlacuilo 4 (veja Figura 91).
Há sete tipos de acréscimos nas páginas da segunda parte dos anais, normalmente
incluindo alguma nova informação sobre os acontecimentos ocorridos nos anos referidos. Mas,
quer sejam a adição de alguma informação esquecida pelo tlacuilo 4, ou algum novo evento -
como fenômenos astronômicos, geológicos, ou qualquer outro dado -, todas as imagens são
claramente diferentes das realizadas pelo talcuilo 4, tanto no modo de representação como no tom
das tintas ou na qualidade do desenho.
Nas imagens que se seguem fizemos uma comparação entre esses acréscimos do chamado
tlacuilo 7 e imagens do tlacuilo 4 coletadas em diversas páginas e que mostram as diferenças
existentes entre os dois desenhistas.

466
Quer seja porque tinha conhecimento ou foi informado sobre os eventos ou porque os viu em algum outro
documento. Também há um caso onde faltava uma informação, provavelmente um pequeno descuido do tlacuilo 4.

181
Na Figura 87 (na coluna da esquerda), pode ser vista uma das intervenções, realizada na
página 29v (conectada ao ano 2 cana): a inserção do glifo do Fogo Novo467.
Na coluna da direita representamos o mesmo glifo desenhado em outras páginas pelo
tlacuilo 4. Comparando as imagens das duas colunas pode-se notar a diferença na espessura das
linhas, que é muito mais grossa na primeira imagem, do tlacuilo 7. Esse indivíduo também realiza
esse glifo com pouca precisão, que acaba por causar problemas na identificação dos elementos
que fazem parte do desenho. Além disso, nota-se que possui habilidade técnica inferior à do
tlacuilo 4. Vale notar que em todo ano dois cana era realizada a cerimônia do Fogo Novo e,
normalmente, ao longo das páginas seguintes à 29v do códice, o tlacuilo 4 sempre representa esse
glifo nos anos correspondentes. Nesse caso específico da página 29v provavelmente houve um
esquecimento e por isso a informação foi acrescentada posteriormente pelo tlacuilo 7.

Tlacuilo 7 Tlacuilo 4

29v 32v, 39r e 42r

Figura 87

O mesmo tipo de diferença pode também ser notado nas imagens da Figura 88 (coluna da
esquerda). As imagens do tlacuilo 7 são mais “realistas” que as do tlacuilo 4 ou pelo menos mais
distantes das estilizações nativas. Compare os pequenos arbustos no canto superior esquerdo e no
inferior direito da segunda coluna com aqueles da imagem da primeira coluna. O tlacuilo 4 não
tenta imitar a realidade, mas representa um estereótipo dos arbustos, que possivelmente podiam
ser identificados com a planta correspondente pelos indivíduos versados nessas convenções
pictográficas.

467
Glifo indicativo do fechamento do ciclo de 52 anos e da cerimônia do Fogo Novo. Para uma descrição detalhada
da cerimônia ver Sahagún (Livro sétimo, caps. X a XIII).

182
Quanto à representação da flor, apesar de não termos encontrado uma flor desenhada pelo
tlacuilo 4 que se assemelhasse à usada pelo tlacuilo 7, é possível perceber que o primeiro realiza
uma imagem mais estereotipada, enquanto o segundo tenta reproduzir a aparência “real” desse
tipo de flor. No caso do elemento que pode ser identificado como um pé de milho (terceira
imagem no desenho do tlacuilo 7 e primeira da linha inferior do tlacuilo 4), a representação do
tlacuilo 7 resultou pouco clara e o pictograma mais simplificado que o do tlacuilo 4.

Tlacuilo 7 Tlacuilo 4

32v 39v, 41r, 41r e 41v

Figura 88

Na Figura 89 as imagens dos dois grupos possuem uma diferença evidente, especialmente
porque o tlacuilo 7 não pintou o interior do retângulo que equivale possivelmente a duas porções
de terra. No segundo grupo os pontos (que podem equivaler a grãos de areia) são dispostos
enfileirados, enquanto no primeiro são colocados aleatoriamente de forma a ocupar o espaço
dentro do retângulo. Apesar de utilizar diferentes modos de representar o terremoto, diferenças
tais que podem se relacionam à intensidade do fenômeno, número de tremores ou simplesmente à
uma opção estética de variação do elemento, o tlacuilo 4 sempre usa as mesmas cores para pintar
as faixas de terra e as desenha, assim como ao signo movimento, com maior precisão que o

183
tlacuilo 7. Também a diferença entre os tons de tinta empregados no glifo é bem evidente no
documento original e pode ser notado inclusive no fac-similar468.

Tlacuilo 7

33r, 34v e 40v


Tlacuilo 4

38r, 42r, 43r, 46r , 42v, 4r e 45r

Figura 89

Tons de tinta mais claros também são usados em nosso próximo exemplo (Figura 90),
que se trata do topônimo da cidade de Cozcacuauhtenanco (lugar do muro de zopilote)469.
Retiramos de outras partes do códice desenhadas pelo tlacuilo 4 representações dos elementos
que compõem o glifo, que se tratam da cabeça de um zopilote470 rei e do que equivale a um muro.
As cores usadas nas representações desse último são completamente distintas nas duas imagens; e
a cabeça do zopilote rei realizada pelo tlacuilo 7 é menos estereotipada que a do tlacuilo 4.

468
QUIÑONES KEBER, Eloise. Codex Telleriano-Remensis: ritual, divination and history in a pictorial Aztec
manuscript. Austin: University of Texas Press, 1995.
469
Grafia e significado utilizados por: QUIÑONES KEBER, Eloise. Op. Cit., 1995, p. 225, 226 e 309.
470
Espécie de urubu do continente americano.

184
Tlacuilo 7 Tlacuilo 4

39v 21r e 36v

Figura 90

Esse mesmo tipo de diferença é visível também na comparação entre as imagens de


ambos tlacuilos da Figura 91, especialmente na representação do nopal, que faz parte do
topônimo da cidade de Mexico-Tenochtitlan. Novamente o tlacuilo 4 realiza os desenhos com um
traço mais fino e preciso e com tons de tinta diferentes. A característica distintiva mais evidente
nesse caso é o modo de representar o nopal, cuja forma se mantém inalterada em todos os
desenhos do tlacuilo 4, nas 12 vezes que aparece na seção histórica.

185
Tlacuilo 7

37v, 41v e 45v


Tlacuilo 4

38v, 43r e 46r

Figura 91

A próxima intervenção é o desenho de um cacaxtli471, uma armação de madeira usada


pelos carregadores para levar os fardos de alimentos ou outros produtos. Essa representação do
cacaxtli no Telleriano, acréscimo do tlacuilo 7, é muito similar à usada na Matricula de Tributos
(veja Figura 93). Assim, a imagem representa a armação de madeira usada pelos carregadores
com um fardo de carga que parece ser de milho.
Na mesma página do TR onde se encontra esse acréscimo há uma representação de um
tameme levando nas costas um cacaxtli com um fardo (Figura 92 - lado direito), o qual foi
desenhado pelo tlacuilo 4. O modo como o fardo é representado nessa imagem é completamente
distinto do desenho do tlacuilo 7. Somam-se a isso as características também observadas nas
comparações acima: diferenças nos tons de tinta e traço mais grosso do tlacuilo 7.

471
Segundo anotação em desenho similar da Matricula de Tributos. Anders e Jansen também usam o nome em
nahuatl (ANDERS, Ferdinand; JANSEN, Maarten. Religión, Costumbres e Historia de los antiguos mexicanos: libro
explicativo del llamado Códice Vaticano A. México: Fondo de Cultura Econômica, 1996, p. 348). Cacaxtli significa,
segundo Karttunen, "escalerillas de tablas para llevar algo a cuestas el tameme" (KARTTUNEN, Frances. An
Analytical Dictionary of Nahuatl. Norman: University of Oklahoma Press, 1992, p. 19), sendo que tameme se trata
do tradicional carregador.

186
Tlacuilo 7 Tlacuilo 4

41v 41v

Figura 92

Matricula de Tributos, pág. 11v

Figura 93

A última imagem dos acréscimos (Figura 94 - lado esquerdo) é a representação de uma


porção do céu e um cometa. A representação do céu é similar à do tlacuilo 4, mas falta a borda
amarela na parte inferior do desenho e as estrelas são desenhadas de modo distinto. Quanto ao
cometa, é pintado com o aspecto de uma cobra pelo tlacuilo 7, enquanto o tlacuilo 4 utiliza uma
representação que não faz alusão a esse animal, a não ser no fato do corpo ser alongado.
Novamente as imagens são distintas em ambos tlacuilos, os tons das tintas utilizadas pelo tlacuilo
7 são bem mais claras que as usadas pelo tlacuilo 4 e o desenho do primeiro é mais "impreciso"
que os do segundo.

187
Tlacuilo 7 Tlacuilo 4

44r 42r, 42v e 39v

Figura 94

Enfim, como vimos acima, todas as imagens acrescidas pelo chamado tlacuilo 7 mostram
claras diferenças daquelas realizadas pelo tlacuilo 4. As dessemelhanças são tanto de âmbito
estilístico como técnico.
É interessante notar que todos os acréscimos se encontram também representados no
Códice Vaticano A (veja reproduções abaixo, na Figura 95). Isso aumenta a probabilidade de
que essas páginas do códice Vaticano A tenham sido de fato copiadas do Telleriano Remensis.
Vale a pena discutir aqui um pouco mais essa questão. Caso o TR e o Vaticano A tenham
sido copiados de um protótipo em comum, como afirmou Thompson472, poderíamos dizer que o
tlacuilo do TR que copiou essas páginas do protótipo deve ter se esquecido desses elementos, que
foram posteriormente acrescentados por outro indivíduo, que notou sua falta ao comparar os
manuscritos. Entretanto, se assim o fosse, o tlacuilo do Vaticano A não se esqueceu de copiá-los.
Nesse caso os elementos deveriam ter sido representados com a mesma forma do restante do
restante do manuscrito, ou seja, deveria ter o mesmo modo de representação, o que não é o caso.
Como pode ser observado na Figura 95, o modo que esses elementos são representados no
Vaticano A é idêntico ao do Telleriano Remensis. Sendo assim, somente podemos concluir que
ao menos no que se refere a essas páginas o primeiro é uma cópia do segundo.

472
THOMPSON, J. Eric S. The prototype of the mexican codices Telleriano-Remensis and Vaticanus A. In: Notes
on the Middle American Archaeolgy and Ethnology. Washington: v. I, n. 6, p. 24-26, 1941.

188
Códice Vaticano A

Imagens das páginas 74v, 77v, 78r, 79v, 84v, 83v, 81v, 86v, 92v, 86v e 91r do
Códice Vaticano A, equivalentes às 29v, 32v, 33r, 34v, 40v, 39v, 37v, 41v, 45v, 41v e 44r
do Telleriano Remensis, representadas nos exemplos anteriores.
Figura 95

2.1.2.4. Intervenções

Além dos 'acréscimos' inseridos na segunda parte da seção dos anais, houve ainda nessa
mesma parte da seção outro tipo de inclusão de elementos, aos quais nos referiremos como
'intervenções'. Preferimos separar os dois grupos porque o segundo pode interferir diretamente na
interpretação das imagens do tlacuilo 4, mais do que os elementos citados acima. Além disso, os
acréscimos foram adicionados nos espaços livres deixados pelo tlacuilo 4, enquanto as
intervenções são aplicadas diretamente nas imagens desse pintor/escriba.
Nos manuscritos da tradição Mixteca-Puebla é comum encontrar, especialmente nos
documentos de conteúdo histórico, um glifo onomático acima da cabeça dos personagens. Nos
manuscritos coloniais é bastante comum o uso de uma linha negra unindo o glifo ao personagem.
Isso acontece na segunda parte da seção histórica de nosso códice. Porém, além de conectar os
personagens aos seus respectivos nomes, as linhas negras também foram usadas para conectar
personagens entre si, personagens a glifos toponímicos ou outros glifos e objetos, e para conectar
todos esses elementos ao glifo anual correspondente, ou seja, conectar os acontecimentos aos

189
anos que eles ocorreram. Contudo, notamos que nem todas essas linhas foram acrescentadas no
momento da confecção das imagens e dentre aquelas que possivelmente foram existem algumas
com características que merecem ser aqui discutidas, ainda que seja difícil encontrar uma
resposta definitiva sobre o assunto.
Em três casos é possível ver claramente que as linhas foram adicionadas por anotadores
do códice. Essa constatação é possível graças às diferenças acentuadas de tonalidade entre elas e
as outras linhas negras das mesmas páginas, tonalidades essas que coincidem com as de textos
acrescentados por anotadores. Na Figura 96, lado esquerdo, apontamos a localização de duas
delas na página 29v, e no lado direito a de outra na página 47r.

Página 29v Página 47r


Figura 96

No lado esquerdo da figura acima as setas amarelas indicam as linhas que foram
acrescentadas pelo anotador que escreveu a palavra "vytzilihuitl", indicada pela seta laranja. A
seta azul mostra a linha usada para conectar um dos acréscimos, já mencionado anteriormente.
Ela também foi uma adição posterior, mas foi realizada pelo mesmo indivíduo que fez o desenho
do glifo do fogo novo, que chamamos de tlacuilo 7, pois o tom da linha é exatamente o mesmo
usado no contorno do desenho. O outro caso de uso de uma linha para conectar um dos
acréscimos a alguma outra imagem acontece na página 37v e, como no caso citado acima, foi

190
realizado pelo mesmo indivíduo que desenhou o acréscimo, o tlacuilo 7. A linha conecta o glifo
de México-Tenochtitlan a um dos personagens representados.473
Na imagem da direita da Figura 96 (página 47r) também indicamos com uma seta
amarela a linha de conexão acrescentada e com seta laranja o texto que possui a mesma
tonalidade de tinta usada na referida conexão.
Além dos casos citados vale notar que algumas vezes na mesma página aparecem linhas
feitas de modo mais “cuidadoso”, com traços finos ou pelo menos da mesma espessura utilizada
nas linhas-marco - que normalmente ocorrem nas conexões entre personagens e seus nomes
glíficos - enquanto outras são mais espessas. É provável que essas últimas tenham sido realizadas
em momento posterior, pois contrastam bastante com as mais finas.
Em dois casos elas aparecem por cima de textos inseridos nas páginas, que pode significar
que algumas delas possivelmente não foram executadas pelo tlacuilo 4, uma vez que um destes
textos é o do último anotador do códice. Assim, é possível que tenha sido prórpio tlacuilo 4 a
desenhar muitos ou a maioria dessas linhas, mas não se pode descartar a hipótese de que podem
ter sido inseridas depois por algum outro indivíduo, como é o caso das citadas acima.
É provável que o próprio tlacuilo 4 tenha inserido essas linhas a pedido da pessoa que
encomendou o trabalho, para esclarecer a localização de alguns dos eventos, uma vez que as
anotações no documento foram feitas ano a ano. A não compreensão da vinculação exata de um
determinado evento ao seu ano correspondente dificultaria imensamente a descrição desses
eventos. Nesse caso, as linhas acrescentadas nesse segundo momento teriam sido feitas com certa
pressa ou descuido.
Qualquer linha de conexão acrescentada no trabalho do tlacuilo 4 interfere diretamente na
interpretação dos eventos históricos desenhados por ele. As páginas 29v e 30r (representadas na
Figura 4), são bons exemplos da confusão que elas podem causar, pois conectam personagens
que podem não estar relacionados diretamente com a específica história referida474, causando
contradições. O modo como o tlacuilo 4 dispôs as imagens nessas páginas torna sua compreensão
bastante difícil a olhos ocidentais. Há divergências entre os estudiosos quanto à interpretação dos
acontecimentos relatados nessas páginas e por isso é preciso levar em consideração os problemas

473
O mesmo tom de tinta negra usada nos acréscimos, que se trata mais de um cinza que de um negro, foi também
utilizado para dividir as imagens que pertencem ao ano 10 coelho (1502) - na página 41r - do ano anterior, 9 casa -
que se encontrava numa das páginas perdidas do códice.
474
Pois essas páginas relatam vários eventos.

191
que envolvem as linhas de conexão, deixando de atribuir-lhes uma função definitiva na
interpretação do conteúdo das imagens.

2.3. Análise da Migração

A migração ou primeira parte dos anais históricos ocupa as páginas 25r a 28v de nosso
códice, ou seja, localiza-se mais ou menos no centro do manuscrito. O mais interessante sobre
esses fólios é que apresentam um número maior de furos de encadernação que o restante do
códice, o que significa que essa parte pode ter sido encadernada separadamente, quer estivesse
unida a outro tipo de conteúdo ou não, antes de se juntar ao conjunto hoje conhecido como
Códice Telleriano Remensis. Essa seção apresenta uma série de características que a diferenciam
bastante do restante do manuscrito. No que se refere às imagens encontra-se entre duas partes do
códice que foram realizadas pelo tlacuilo 4, ou seja, separa os conteúdos trabalhados por esse
pintor, por isso é evidente que foi aí adicionada ou o tlacuilo 4 realizou o que poderia ser uma
complementação do conteúdo da migração, no que se refere aos anais históricos.
Vale ressaltar que apesar do número maior de perfurações nos fólios o intervalo de tempo
entre a realização de um conteúdo e outro (migração e segunda parte dos anais) não deve ser
muito longo, pois o mesmo tipo de papel usado na migração é também encontrado na segunda
parte da história e no tonalpohualli, ambos realizados pelo tlacuilo 4.
Para proceder às análises dividimos o conteúdo das imagens em dois grupos, o primeiro
se refere às imagens centrais, acompanhadas das pegadas que indicam os caminhos seguidos
pelos migrantes; e o segundo é a linha temporal dos signos de anos acrescentada abaixo dessas
imagens centrais.
Chamaremos de tlacuilo 5 o indivíduo que realizou as imagens do primeiro grupo, e logo
veremos quem foi o autor dos signos dos anos, pois necessitaremos discutir os problemas
relativos a eles antes de apresentarmos alguma conclusão.
Então, no momento, podemos dizer que o tlacuilo 5 realizou as imagens centrais das
páginas 25r a 28v. Existem muitas semelhanças entre os elementos dessas imagens,
especialmente nas figuras humanas. Na Figura 97 reproduzimos alguns exemplos.

192
1a linha: 25r, 25v, 27r, 28r e 28v; 2a linha: 26r, 26v, 27r, 27v e 28r; 3a linha: 26v, 27r, 27v e 28r
Figura 97

Há similaridades entre todas as partes dos corpos, as armas e as roupas. Nos rostos os
narizes são grandes e proeminentes, o queixo aparece recuado, os olhos são grandes e os
personagens possuem pouca ou nenhuma testa; os dedos das mãos são irregularmente
representados; cada um dos pés é desenhado de um modo diferente, de forma a distinguir o
direito do esquerdo; o osso da canela aparece na maioria das figuras; enfim, não temos dúvida de
que foram pintadas pelo mesmo indivíduo.
Robertson475 faz referência aos variados tipos de proporção da figura humana utilizados
nessa seção, sobre os quais falaremos mais no capítulo V, quando analisaremos o estilo do
tlacuilo 5. No momento é preciso apenas fazer algumas referências a esse caso. O autor identifica
três estilos de representação da figura humana nas páginas da migração, no entanto, não
acreditamos que tal variação signifique que as páginas foram pintadas por distintos tlacuilos.

475
ROBERTSON, Donald. Op. Cit., p.113 - 115.

193
Nosso tlacuilo 5 altera as proporções do corpo dos personagens, mas ainda é possível notar
diversas características em comum entre eles. A diferença mais marcante está entre a página 26v
e a 27r. O número de personagens que aparece na primeira é muito inferior ao da segunda, de 3
para 13. Assim a falta de espaço na página 27r obrigou o tlacuilo a reduzir o tamanho das figuras.
Parece que quando passou à página seguinte preferiu manter as representações das figuras em
uma escala menor, ao invés de desenhá-las mais esbeltas e grandes, como vinha fazendo
anteriormente. Discutiremos melhor esses detalhes na análise de seu estilo; agora nos
concentraremos mais nas semelhanças entre as imagens que representou nessas páginas, pois
além das figuras humanas outros elementos também podem ser relacionados entre si, como as
armas que carregam os personagens e os topônimos. Na Figura 98 reproduzimos alguns
exemplos dessas analogias.

Imagens da migração, das páginas 25r, 28v, 25r, 27r, 26v e 27v.
Figura 98

O traço dos desenhos do tlacuilo 5 nessas imagens apresenta linhas duplas e variação de
espessura. Usa uma paleta de cores bastante pobre, se comparada com a usada pelo tlacuilo do
tonalpohualli e segunda parte dos anais, o tlacuilo 4, linhas negras que usa no contorno das
imagens se parecem mais com os contornos ocidentais que com as linhas-marco da tradição
Mixteca-Puebla. Sobre a aplicação das cores nessas imagens centrais notamos que aparentemente
o marrom e as cores usadas como tom de pele foram na maioria dos casos aplicadas por baixo
dos contornos em negro, enquanto o vermelho, ocre, verde e os poucos azuis estão por cima. Há
uma enorme variação nos tons das cores, especialmente no preto e verde.
A situação das cores nesta parte do Códice é bem complexa, pois essa parte do Códice é
bem mais heterogênea que as outras no tocante às tonalidades das tintas.

194
Quanto às marcas de pés ou pegadas que traçam o caminho percorrido pelos personagens
nas imagens centrais, essas apresentam vários estilos ou formas de serem representadas. Há
alguns que definem a marca do calcanhar e outros que não; uns mostram o sinal de 4 dedos e
outros de 5, que aparecem às vezes em forma de um ponto e outras em forma de traço; a planta
do pé pode aparecer representada com uma linha em forma de c ou em forma de s; em algumas
seqüências intercalam o sentido das curvas, de forma que haja a distinção entre pé direito e pé
esquerdo, enquanto em outras não existe essa diferenciação; podem ser razoavelmente bem
representados ou terem sido feitos às pressas, com grande descuido. Enfim, a variação é
realmente muito grande, apesar de se tratar de um único elemento e até bastante simples. Veja
exemplos na Figura 99.

Fragmentos das páginas: 25r, 25v, 26r, 26v, 26v e 27r;


27v, 27v, 28r, 28r e 28v;
26v e 27r (lado inferior esquerdo); 27r e 27v (lado inferior direito)
Figura 99

No documento original é possível ver as diferenças entre os tons de tinta negra usadas na
realização dessas pegadas, que variam inclusive na mesma página. Em quase todas o tom das
pegadas é mais escuro que o usado nos contornos das figuras. Somente nas três últimas páginas o
negro utilizado é bem escuro e parecido com o aplicado nos contornos dos signos dos anos.
Todos esses fatos levaram-nos a questionar se as pegadas foram realizadas pelo tlacuilo 5 ou por
outro ou outros indivíduos.

195
Ainda que haja diversos estilos de pegadas na migração é possível que todas elas tenham
sido realizadas pela mesma pessoa, pois encontramos na maioria das páginas alguma ou algumas
que se assemelham a outras existentes nas páginas anteriores ou seguintes. A variação no estilo
parece ser explicada pelo maior ou menor cuidado na execução desses elementos. Enquanto
alguns foram feitos “cuidadosamente” outros parecem ter sido realizados “às pressas”.
Quanto à variação nos tons de tinta negra, esse aspecto já é um pouco mais complexo.
Aparentemente os desenhos centrais foram realizados com a mesma tinta negra, que continuou
negra em fragmentos de imagens de algumas páginas. No entanto, na maioria das imagens esse
negro sofreu um clareamento, tornando-se um cinza. Essa mesma tinta pode ter sido usada nas
pegadas realizadas nas páginas 25r, 25v, 26r e nas pegadas “melhor” desenhadas concentradas no
lado inferior das páginas 26v e 27r (circundadas em vermelho na Figura 100). Elas também
sofreram clareamento, mas não tão acentuado quanto o que afetou as imagens centrais, ou seja, os
desenhos dos topônimos e das figuras humanas. As pegadas da parte superior das páginas 26v e
27r (circundadas em amarelo na Figura 100), além de aparentemente terem sido desenhadas com
“menos cuidado”, são mais claras que as da parte inferior dessas páginas (em vermelho). É
possível que tanto os desenhos centrais como ambos os tipos de pegadas tenham sido realizados
com a mesma tinta, porém as pegadas mais “descuidadas” e os contornos da maioria dos
desenhos centrais nessas duas páginas sofreram maior desgaste que as pegadas “melhor
desenhadas” e algumas figuras da página 26v, cujo negro sofreu pouca alteração.

Página 26v Página 27r


Figura 100

196
Já as pegadas realizadas nas páginas 27v, 28r e 28v mostram um tom de negro muito mais
forte que o das pegadas anteriores e do negro utilizado nas imagens centrais. Pensamos que
nessas pegadas das últimas três páginas da migração foi utilizada uma tinta diferente, mais escura
que a dos desenhos centrais (topônimos e personagens) e das pegadas das páginas anteriores.
Encontramos duas evidências dessa diferença nas páginas 27v e 28r. Na primeira foi refeito o
contorno do chapéu de um dos personagens com a nova tinta de tom mais escuro, e na segunda a
aljava (bolsa de carregar flechas) de outro. Veja as reproduções na Figura 101.

Imagens retiradas das páginas 27v e 28r


Figura 101

O tom de negro usado nessas últimas pegadas é parecido ao aplicado nos glifos anuais,
cuja tonalidade é invariável da primeira página, 25r, à última, 28v. É possível que esses dois
últimos tons de negro sejam da mesma tinta.
A análise química das tintas utilizadas em algumas pinturas murais de culturas pré-
hispânicas mexicanas indica que a tinta negra é composta basicamente de carbono, que em alguns
casos é somente de origem vegetal476, cuja tinta é conhecida como 'negro de fumo' e em outros o
carbono vegetal é mesclado com um carbono cristalino, na forma de grafite477.

476
"This pigment is produced as soot of the incomplete combustion of organic matter, such as plants, oil, bones,
ivory, etc. Pre-Columbian people generally used charcoal as black pigment in paint and in ink".
(VANDENABEELE, P.; S. Bod´e; A. ALONSO, A.; MOENS, L. Raman spectroscopic analysis of the Maya wall
paintings in Ek’Balam, México. In: Spectrochimica Acta. Part A 61, p. 2349–2356, 2005, p. 2355).
477
"Para el pigmento negro se aprovechó tanto un carbón cristalino que se presenta en forma de grafito, como un
material no cristalino irreconocible en nuestros difractogramas. Lo más seguro es que este último sea el
ampliamente difundido negro de humo o tlilli ócotl". (LÓPEZ LUJÁN, Leonardo; et. al. Línea y color en

197
É possível que cada uma das tintas negras da migração mencionadas acima, por possirem
diferenças radicais de tonalidade e uma delas apresentar variações de tons, inlcusive na mesma
linha, tenham sido preparadas com carbonos de distintas origens (vegetal ou carbono cristalino),
quer fossem mesclados em diferentes porcentagens ou não. O grafite apresenta-se em partículas
maiores e tende a ser mais cinza enquanto o carvão vegetal tem partículas menores e tende a ser
mais negro. É possível que a tinta que sofreu mais alteração tenha sido preparada com uma
porcentagem maior de carbono cristalino, que é mais suscetível a desprender-se do papel pela
manipulação, fato esse que explicaria as alterações de cor irregulares nos desenhos centrais e
primeiras pegadas. Já a segunda tinta mencionada, que deve ter sido usada tanto nas pegadas das
últimas três páginas, como nos glifos anuais, pode ser composta por carbono vegetal, que por
possuir partículas mais finas adere melhor ao papel. O carbono é um elemento bastante estável, o
que explicaria o fato dessa segunda tinta negra ter se mantido inalterada mesmo depois de
transcorridos tantos séculos478.
Os glifos que se encontram na parte inferior das páginas e seu desenho apresentam
algumas diferenças em comparação com os desenhos centrais. Eles são feitos com “mais
cuidado”: o traço é mais firme, preciso, delicado e razoavelmente homogêneo no que se refere à
espessura e apresenta poucas linhas duplas e as linhas retas são traçadas com mais precisão. Por
outro lado, ainda que as diferenças técnicas sejam grandes, podemos encontrar entre os dois
grupos (imagens centrais e signos dos anos) algumas semelhanças no modo de representação, ou
seja, tanto nas imagens centrais como nos glifos anuais existem elementos desenhados de um
modo similar e, às vezes, até mesmo idênticos.
Os signos dos glifos anuais são apenas 4: cana, pedernal, casa e coelho479, os quais se
repetem ao longo das 8 páginas. Buscamos nas imagens centrais das páginas representações
desses signos ou figuras que contivessem os mesmos elementos neles utilizados de forma a poder
compará-los. Veja abaixo, na Figura 102, as semelhanças encontradas.

Tenochtitlan: escultura policromada y pintura mural en el recinto sagrado de la capital mexica. In Estudios de
Cultura Náhuatl. México: n 36, p. 15-45, p. 22).
478
Informações técnicas fornecidas pelo químico Dr. Luciano Andrey Montoro.
479
Diferentes signos são usados em outras regiões mesoamericanas para designar os 4 signos portadores de anos.

198
Signos: 25v, 26r e 28v Signos: 26r, 26v e 27v Signos: 26v, 27v e 28v
Imagens centrais: 26r e 26r Imagens centrais: 25r, 25r e 28v Imagens centrais: 28v

Figura 102

Como as diferenças entre os dois grupos se referem mais às características técnicas que ao
modo de representação: ou os signos dos glifos anuais estão desenhados com maior precisão
porque se tratam de elementos simples e repetitivos; ou o tlacuilo 5 ganhou experiência e
habilidade técnica entre uma seção de trabalho e outra, ou seja, entre a realização dos desenhos
centrais e dos glifos anuais; ou ainda um outro tlacuilo, copiando os signos de um provável
protótipo480, ou observando como o primeiro tlacuilo (5) os pintou, realizou o desenho dos glifos.
Até o momento, e devido às similaridades no modo de desenhar os elementos
reproduzidos na Figura 102, preferimos atribuir também ao tlacuilo 5 a realização dos glifos
anuais da migração, das páginas 25r à 28v.
Pelos exemplos encontrados em outras seções do TR e também no Vaticano A notamos
que em geral, como os signos calendáricos se tratam de elementos bastante repetitivos, os
tlacuilos preferem usar um modo próprio de realizá-los. Por isso, pensamos que se tivesse sido
outro tlacuilo a desenhar os signos ele teria utilizado uma forma particular de representá-los.
Sobre esse assunto e fazendo referência às diferenças existentes entre algumas
representações do Telleriano Remensis e do Códice Vaticano A, Quiñones Keber481 afirma que as
divergências não são necessariamente evidências de uma cópia menos cuidadosa ou do uso de um
diferente modelo, mas escolhas dos artistas. Há vários exemplos de diferenças entre as

480
Sobre a possibilidade dessa seção e outras terem sido copiadas de protótipos falaremos mais adiante nesse
trabalho.
481
QUIÑONES KEBER, Eloise. The Codex Telleriano Remensis and Codex Vaticanus A: Thompson's prototype
reconsidered. In: Mexicon, v. IX, n. 1, p. 8-16, 1987.

199
representações dos signos calendáricos do tonalpohualli do TR e do Vaticano A, como aponta a
autora. Essas alterações também são evidentes quando comparamos os glifos anuais da seção
histórica do Vaticano A com os do TR: apesar dos diferentes modos que cada um deles é
desenhado na seção histórica do Telleriano Remensis, por terem sido desenhados por distintos
tlacuilos, são representados sempre de uma única maneira no Vaticano A 482.
Isso tudo nos ajuda a concluir que no caso da relação entre as imagens centrais e os signos
da migração as semelhanças na forma de representação são um indício de que foram realizadas
por um único tlacuilo, o tlacuilo 5. Nesse caso citamos duas possibilidades acima, das quais
tendemos à primeira, pois ainda que a cor negra nos indique que os signos foram realizados em
um período de trabalho distinto devido ao uso de uma nova tinta, ela não pode nos fornecer dados
sobre a distância temporal entre uma seção e outra. Além disso, o vermelho e o ocre usados em
ambos os grupos são idênticos, o que significa que foram coloridos conjuntamente, pois tanto
uma como outra são cores que foram aplicadas por cima das linhas de contorno. De qualquer
forma é difícil fazer qualquer afirmação precisa com base nas tintas utilizadas, pois nossas
hipóteses se fundamentam em observações visuais, uma vez que não foi possível realizar análises
químicas dos pigmentos.
Assim, podemos dizer somente que o tlacuilo 5 executou os signos dos anos com mais
cuidado que o dispensado nas imagens centrais e possivelmente usando uma tinta negra mais
escura. Também deve ter sido o autor de todas as pegadas realizadas nessas páginas.

3. Conclusões

Apesar de haver indicações de que o papel utilizado na segunda e terceira seções do


códice foi adquirido numa mesma compra, possivelmente com a intenção de se realizar um
manuscrito indígena, a confecção do mesmo mostrou-se bastante complexa e diversificada. A
impressão que se tem ao observar o códice é que não houve um planejamento exato do tipo de
conteúdo que o formaria. Parece mais um trabalho de coleta de informações. Obviamente devem

482
E, como vimos anteriormente, essa seção é aquela que mostra mais evidências de que esse códice foi copiado do
TR.

200
ter existido alguns interesses nessa investigação, que foram determinando o que deveria ser
representado e o que não. Mas há um fator, além dos interesses dos patronos, que deve ter
orientado a escolha dos conteúdos. Acreditamos que deve ter sido limitante encontrar indivíduos
que tivessem conhecimento de tais assuntos e pudessem materializá-los em pictografias. Com a
grande mortandade de indígenas devido às epidemias que se seguiram à chegada dos espanhóis e
também devido ao desmoronamento do antigo sistema de ensino, deve ter sido difícil encontrar
indivíduos que soubessem pintar os conteúdos tradicionais dos códices em meados do século
XVI. Nesse sentido, a utilização de pictografias pré-hispânicas (sobreviventes das destruições) e
coloniais, textos (em caracteres ocidentais) e informantes deviam ser necessários.
Devido aos conteúdos adicionais que existem no Códice Vaticano A, é possível que
houvessem mais assuntos compilados por Pedro de los Ríos e outros de seus irmãos dominicanos
além dos que existem hoje no códice TR, os quais se perderam.
A análise das imagens mostrou-nos que trabalharam 7 tlacuilos no códice TR, sendo que 4
deles poderiam ser considerados desenhistas principais, pois os outros 3 somente realizaram
pequenas partes ou acréscimos ao trabalho dos primeiros. Mas, por que o TR foi realizado por
tantos indivíduos? E qual teria sido a ordem de execução dessas imagens?
Nos códices pré-hispânicos também há casos onde trabalharam mais de um indivíduo,
como no códice Nuttall e no Cospi, por exemplo. Porém, nenhum exibe tanta variação de mãos
como a que ocorre em nosso códice e outros manuscritos coloniais. A explicação pode estar na
questão da mescla de assuntos. Os códices pré-hispânicos mostram assuntos similares num
mesmo códice, quer sejam históricos por um lado, quer sejam religiosos por outro. Por isso não
deveria haver tlacuilos que dominassem todos os assuntos unidos num mesmo manuscrito pelos
patronos. É realmente surpreendente que os missionários tenham encontrado o tlacuilo 4, que
mostra características bastante tradicionais para a época em que o manuscrito foi realizado. Mas,
por que não realizou também as outras partes do códice? Falaremos mais sobre esse assunto mais
adiante, mas o fato dos deuses das trecenas não virem acompanhados dos diversos elementos que
normalmente os rodeiam e de haver “erros” na localização de dois deles, com necessidade de
correções, pode indicar que não era um especialista nesse tema, apesar de possivelmente possuir
conhecimento sobre os calendários e o sistema religioso, que deve ter sido parte de sua educação,
caso tenha sido, como suspeitamos, educado no período pré-hispânico.

201
O trabalho de coleta de informações na forma de pictografias deve ter se estendido por
mais de uma cidade e necessitado do envolvimento de diversos indígenas e missionários,
lançando mão dos materiais que havia à disposição nesse período, pois essa seria a única
explicação para a heterogeneidade do códice, tanto do ponto de vista material como no que tange
ao número de tlacuilos e anotadores envolvidos, assim como à diversidade estilística, como
veremos.
Quanto à ordem de execução, até o momento temos dados para determiná-la somente
dentro de cada uma partes. No xiuhpohualli o tlacuilo 1 e 2 devem ter trabalhado ao mesmo
tempo, ou seja, estavam ambos envolvidos na execução desse conteúdo, pois as imagens onde
trabalharam estão intercaladas ao longo da seção, onde é utilizado inclusive o mesmo papel. Já o
tlacuilo 3, como vimos, realizou o desenho dos nemontemi em momento posterior, quando este
conteúdo foi unido ao tonalpohualli. Como não devia haver um fólio disponível no final do
xiuhpohualli para acrescentar a nova página foi necessário remover o fólio ou bifólio inicial da
seção do tonalpohualli. Como indicou Batalla Rosado483, o desenho deve ter sido acrescentado
depois que o primeiro anotador já tinha feito seus comentários.
O tlacuilo 4 possivelmente realizou o tonalpohualli e a segunda parte dos anais
seguidamente, no entanto, até agora não temos dados suficientes para determinar qual foi a
seqüência, ou seja, se o tonalpohualli foi realizado primeiro e a segunda parte dos anais em
seguida ou o contrário.
Como vimos, o tlacuilo 5 pode ter realizado seu trabalho em duas etapas devido às
diferenças entre as tintas negras. É possível que somente tenha trocado de tinta no decorrer do
trabalho ou pode ter realizado a primeira parte e algum tempo depois finalizado esse conteúdo
com a inserção dos signos dos dias e algumas pegadas. No entanto, o fato dos tons de tinta ocre e
vermelha ser idêntico em ambas as etapas de trabalho indicam que esse período de tempo não
deve ter sido longo
O tlacuilo 6 realizou poucos elementos, por não ter trabalhado em nenhuma das páginas
seguintes da segunda parte dos anais deve ter deixado a tarefa inteiramente nas mãos do tlacuilo
4. Não deve ter trabalhado conjuntamente com o tlacuilo 4 porque sua participação se limita ao
desenho dos glifos no início do trabalho. É mais provável, então, que tivesse iniciado o trabalho e
depois abandonado por motivos que não podemos saber, tendo o tlacuilo 4 assumido a tarefa.

483
BATALLA ROSADO, Juan José. Op. Cit. No prelo.

202
Inclusive, os mesmos tons de tinta vermelha e azul aparecem nesses glifos e nos aplicados aos
seguintes, realizados pelo tlacuilo 4. Isso significa que o tlacuilo 6 somente realizou os desenhos,
deixando-os sem pintar, trabalho que foi efetuado possivelmente pelo tlacuilo 4.
Quanto ao tlacuilo 7 esse seguramente realizou seus acréscimos depois que o trabalho do
tlacuilo 4 já estava pronto. Podem ter se passado muitos anos entre o trabalho do tlacuilo 4 e do
tlacuilo 7, mas seguramente o segundo o realizou antes de que os textos fossem escritos, pois já
nos primeiros textos explicativos dessa seção são relatados os acontecimentos representados nos
glifos inseridos pelo tlacuilo 7. Além disso, também o realizou antes que fosse feita a cópia desse
conteúdo no manuscrito que viria a ser conhecido como Códice Vaticano A.
Sobre o Vaticano A, a análise dos tlacuilos da segunda parte dos anais mostra que deve
ser, de fato, uma cópia do TR - pelo menos no que se refere a essa parte específica -, pois caso
tivesse sido copiado de um protótipo em comum com o TR é estranho que esse protótipo não
mantivesse a unidade na forma de representar os glifos e pictogramas que aparece em todo o
resto das imagens. O Vaticano A mostra as mesmas diferenças existentes entre ambas
representações.
Assim, no xiuhpohualli houve um trabalho conjunto entre o tlacuilo 1 e o 2, enquanto o
tlacuilo 3 fez a imagem dos nemontemi em momento posterior, inclusive quando já tinham sido
realizados os primeiros textos explicativos na seção. No tonalpohualli trabalhou somente o
tlacuilo 4, que deve tê-lo feito de uma única vez, quer dizer, seqüencialmente. Já a seção dos
anais mostra uma execução bastante complexa. Não temos dados suficientes ainda para
determinar se a migração foi a primeira a ser realizada ou não, pois as duas hipóteses são válidas,
especialmente por causa do maior número de furos de encadernação da migração. Analisaremos
mais detalhadamente a relação entre essas duas partes do códice mais adiante. A migração, como
vimos, é trabalho somente do tlacuilo 5, que pode tê-la realizado em dois momentos distintos,
mas também é possível que esses momentos tivessem sido seqüenciais. O tlacuilo 4 foi o autor
principal da segunda parte dos anais, que deve ter assumido o trabalho iniciado pelo tlacuilo 6;
enquanto o 7 somente realizou alguns acréscimos nas imagens prontas do tlacuilo 4.
Muitas vezes diferentes tlacuilos trabalham juntos na execução de um mesmo manuscrito,
realizando cada um uma parte, distribuídos por cadernos (no caso dos manuscritos coloniais,

203
como em algumas partes do Códice Tudela484, por exemplo) ou por partes do documento. Isso
devia passar-se em ateliês, onde possivelmente havia um mestre encarregado do ensino de alguns
alunos. Esse tipo de distribuição do trabalho é visível tanto nos manuscritos coloniais como nos
pré-hispânicos, como nos afirmou Maarten Jansen485, que chamou-nos a atenção sobre esse
procedimento dando-nos o exemplo de um manuscrito pré-hispânico mixteca. Concordamos
inteiramente com Jansen: de fato há manuscritos ou partes de manuscritos onde vemos
claramente a alternância de duas ou mais mãos na execução do trabalho, de forma quase
simultânea. É provável que uma parte do Telleriano tenha sido assim executada, porém,
pensamos que esse modelo não se aplica a todo o manuscrito.
No TR possivelmente esse tipo de distribuição do trabalho ocorreu na seção do
xiuhpohualli, onde há a alternância entre imagens do tlacuilo 1 e 2. O fato do tlacuilo 2 ser mais
habilidoso que o tlacuilo 1 e do estilo de ambos ser similar, inclusive com indicações de que em
dois casos o tlacuilo 1 estava copiando imagens do tlacuilo 2 - devido à similaridade na forma de
representar determinados elementos -, mostram que é possível que o tlacuilo 2 fosse o mestre do
1 e que estivessem trabalhando simultaneamente na seção. No entanto, acreditamos que esse
modelo não se aplica às outras partes do códice, pois os estilos do tlacuilo 4 e do 5 são muito
diferentes, tanto no modo de representação de alguns elementos como na forma de organizar e
distribuir as imagens nas páginas486. Já os outros tlacuilos da segunda parte da seção dos anais
realizam suas imagens antes ou depois do trabalho do tlacuilo 4. O tlacuilo 7, particularmente,
apresenta um modo distinto de representar pictogramas e glifos, claramente complementando o
trabalho do tlacuilo 4.
A explicação de alguns pesquisadores para esse fato, como Robertson487 e Quiñones
Keber488, se apóia na hipótese de que copiavam tais conteúdos de diferentes fontes, as quais
provinham de distintas tradições do México central. Essa hipótese é bastante razoável, porém, é
necessário discutir mais detalhadamente essa questão, que faremos no capítulo 4 desse trabalho.
Pensamos, contudo, que essa variação de autores e diferenças estilísticas nas imagens do TR

484
Comprovado pelo estudo codicológico desse códice, realizado por Batalla Rosado (BATALLA ROSADO, Juan
José. El Códice Tudela o Códice del Museo de América y el Grupo Magliabechiano. 2 vol. Tesis doctoral. Madrid:
Universidad Complutense de Madrid, 1999, p. 3.).
485
Comunicação pessoal realizada durante a realização do Segundo Simposio Europeo sobre Códices del Centro de
México, entre 25 e 27 de outubro de 2007.
486
No capítulo 4 e 5 trataremos esse assunto com mais detalhes.
487
ROBERTSON, Donald. Op. Cit., p. 107-115.
488
QUIÑONES KEBER, Eloise. Op. Cit., 1995.

204
sejam muito mais complexas do que a explicação fornecida até agora, sobre os prováveis
protótipos.

205
Capítulo IV – Formato e organização do espaço

1. Patronagem européia

Por organização do espaço aqui nos referimos à distribuição e disposição das imagens e
textos nas páginas do códice. Nesse capítulo trataremos especificamente do caso das imagens,
onde também incluiremos algumas discussões sobre o formato do TR e outros códices que
também possuem os conteúdos nele representados.
As imagens foram os primeiros elementos a serem realizados no manuscrito, mas é
possível notar que havia a intenção de incluir textos explicativos na parte inferior das páginas,
pois aí foram deixados espaços às vezes mais ou menos padronizados para a colocação de textos
em caracteres latinos. Diversos autores se referiram a esses espaços em branco deixados no papel
depois da execução das imagens. Manrique Castañeda, por exemplo, diz: "Al parecer no hay
duda de que este códice fue 'escrito' a solicitud de algún miembro del nuevo régimen, porque a
diferencia de los códices prehispánicos (y de varios coloniales apegados a la tradición) el trabajo
de mano indígena ocupa más o menos la mitad o dos tercios de la parte superior de cada página,
mientras que abajo se dejó espacio para el texto en caracteres latinos."489
Isso significa que o códice foi concebido para receber imagens e textos, ou seja, a
estrutura das páginas foi planejada de modo a restar espaço para as anotações, depois da
execução das imagens. Os livros pré-hispânicos da região central do México que chegaram até
nós têm formato quadrado e não possuem espaços em branco abaixo ou acima das imagens. Quer
seja pelo uso do papel europeu, em formato retangular, ou pela necessidade de se colocar
explicações em caracteres latinos, fato é que a maioria dos conteúdos indígenas copiados ou
realizados em papel europeu no período colonial teve em algum grau sua organização alterada.
Segundo Robertson, as mais importantes características que marcam as diferenças entre os
manuscritos pré-hispânicos do estilo Mixteca-Puebla e os coloniais são o uso do formato em

489
MANRIQUE CASTAÑEDA, Leonardo. Los códices históricos coloniais. In: Arqueología Mexicana. México: v.
VII, n. 38, p. 25-31, 2000, p. 29.

207
códice e a forma como os conteúdos pictóricos foram adaptados a ele.490 Então, a alteração no
formato dos manuscritos afetou profundamente seu aspecto visual. Mas, o que mudou? Quais as
implicações visuais dessas alterações e as dificuldades para analisá-las?
O uso do espaço sem dúvida é o elemento mais contrastante entre o Telleriano Remensis e
os códices pré-hispânicos do estilo Mixteca-Puebla, ainda que esse modo de compor e
"...distribuir as cenas no espaço não afetem as semelhanças básicas das formas, os símbolos e os
estereótipos pictográficos".491
Cada parte do códice mostra distintos desafios, pois apesar de todas elas apresentarem um
aspecto visual alterado devido ao uso do papel europeu, do formato em códice e sentido de leitura
de esquerda à direita, outros elementos também marcam suas diferenças. Algumas partes
apresentam maiores dificuldades que outras na determinação das alterações porque não existe
nenhum códice anterior à conquista que mostre aquele conteúdo, como é o caso do xiuhpohualli,
ou o conteúdo específico daquela região, caso do conteúdo histórico, que sobreviveu somente em
manuscritos mixtecas. No que se refere aos códices históricos há ainda um grau maior de
dificuldade, pois mesmo aqueles que pertencem à mesma região podem apresentar diferenças. O
formato e organização do espaço estavam diretamente relacionados à tradição histórica específica
que representavam, uma vez que havia diferenças significativas entre os livros de cada etnia e/ou
altépetl. O tonalpohualli é o único que pode ser comparado diretamente com manuscritos pré-
hispânicos que possuem esse mesmo conteúdo.
Não existem dúvidas sobre a patronagem européia de nosso códice. Ainda que o conteúdo
das imagens seja nativo, é evidente que o patrono ou patronos selecionaram os conteúdos que
deveriam ser pintados, escolheram os tlacuilos que iriam realizar o trabalho, fizeram as anotações
que lhes pareceram pertinentes, assim como também devem ter direcionado a forma como
determinados conteúdos foram executados, como, por exemplo, o sentido de leitura e alguns
outros elementos sobre os quais falaremos mais adiante. Entretanto, parece-nos que essas
alterações não modificaram tão profundamente os conteúdos nativos como pensam alguns
autores. Por exemplo, Boone afirma que o Códice Telleriano faz parte de um grupo de
documentos baseados nas enciclopédias medievais:

490
ROBERTSON, Donald. Op. Cit., p. 59.
491
ESCALANTE GONZALBO, Pablo. Op. Cit. No prelo, p.50.

208
"The ethnographic projects of the mendicants, as well as official interest in Aztec history and
culture, led to the creation of the cultural encyclopedia. This compendium of indigenous customs
stems not from Aztec roots but from the late medieval encyclopedia tradition, which classified
culture according to such categories as history, gods and religion, burial customs, and the like."492

De fato, as divisões de conteúdos de alguns manuscritos e até mesmo o formato são muito
similares às enciclopédias européias. O Códice Florentino, por exemplo, assemelha-se
consideravelmente a elas, tanto na escolha como na distribuição dos conteúdos, como
demonstram Robertson493, Escalante Gonzalbo494 e outros. Nele, muitas vezes, as imagens têm
um papel secundário, especialmente no livro XI. De acordo com Rodríguez495, que analisou a
seção sobre pássaros, os animais em muitos casos não se assemelham às espécies descritas,
mostrando que não houve a preocupação de caracterizá-los, apenas de ilustrar o livro496.
No caso do TR, Tudela e outros códices incluídos nesse grupo delimitado por Boone as
semelhanças com as enciclopédias são muito menores.
Para entender melhor o tipo de semelhança e diferença é preciso separar conteúdo de
forma. O modo como os conteúdos são coletados e organizados, muitas vezes mesclando
assuntos que tradicionalmente eram representados em livros distintos, devem ser de fato baseados
em tratados europeus. Sobre essa questão o TR ainda possui uma problemática: em nossa
concepção esse códice não se trata de um trabalho acabado. Sua mescla de assuntos ocorreu
porque em um determinado momento alguém decidiu unir os conteúdos, que não foram
inicialmente planejados para estarem juntos. O TR não é um trabalho finalizado sobre a cultura
indígena, como acontece com o Códice Florentino, que foi organizado por temas. Depois de
observar o manuscrito original e após o estudo codicológico essa impressão torna-se muito mais
clara. Por diversos motivos acreditamos que foi somente na fase final das anotações que
decidiram unir os conteúdos, inclusive temos razões para crer que eles ainda não se encontravam

492
BOONE, Elizabeth Hill. Op. Cit., 1994, p. 59-60.
493
ROBERTSON, Donald. Op. Cit., p. 173-178.
494
ESCALANTE GONZALBO, Pablo. Los animales del Códice Florentino en el espejo de la tradición occidental.
In: Arqueología Mexicana. México: vol.VI, n. 36, p. 52-59, mar./abril 1999.
495
RODRÍGUEZ , María Josefa. “El arte plumario de los amantecâ según el Códice Florentino”. Trabalho
apresentado no Segundo Simpósio Europeu sobre Códices del Centro de México, ocorrido entre 25 e 27 de outubro
de 2007 em Madrid.
496
Os glifos de animais nos códices pré-hispânicos quando se referem a uma espécie específica costumam mostrar
características no desenho que nos fazem distingui-los, como no caso do signo zopilote em nosso códice, que
representa um dos animais dessa espécie, o zopilote rey.

209
unidos quando seus conteúdos foram copiados no Códice Vaticano A: primeiro porque nesse
último códice falta a página com os dias nemontemi na seção do xiuhpohualli, que foi realizada
posteriormente no TR em um fólio possivelmente retirado da seção do tonalpohualli,
demonstrando que essa união deve ter sido feita quando o último anotador estava trabalhando no
códice497; segundo porque a ordem das seções no Vaticano A é distinta da usada no TR; e terceiro
porque a perda dos fólios nos inícios e finais das seções comprovam que foram utilizados
separadamente durante bastante tempo. Soma-se a isso o fato da seção da migração do TR não
possuir textos do anotador que realiza comentários em todo o tonalpohualli e em grande parte da
segunda parte dos anais, o que pode ser um indício de que não tinha a migração em mãos ou
ainda não haviam mandado confeccioná-la quando esse indivíduo trabalhava nas anotações.
O Códice Vaticano A, por outro lado, já pode ser considerado um trabalho planejado para
conter diversos assuntos, onde foram incluídos os conteúdos que posteriormente seriam unidos
num mesmo conjunto, chamado hoje de Códice Telleriano Remensis. Assim, ainda que a união
dos assuntos do TR não tivesse sido planejada inicialmente, acabaram optando por ela, pois está
aí o Vaticano A para provar. Esse segundo códice mostra já o estágio seguinte, a realização de
um trabalho acabado498.
A nosso ver o TR é o resultado de um trabalho de coleta de material cujos conteúdos os
frades tinham interesse em disseminar, pois só assim se explica o investimento despendido para
sua realização, uma vez que era necessário pagar o trabalho dos tlacuilos, realizar compras de
papel, tintas e outros materiais necessários. A seleção dos conteúdos foi européia, sem dúvida,
apesar de que ainda há ressalvas sobre isso, porque eles somente podiam escolher dentre as
opções existentes, com o agravante de que precisavam encontrar um tlacuilo nativo que soubesse
fazê-lo, pois como vimos era uma minoria da população que sabia pintar/escrever no período pré-
hispânico. Mesmo que no período colonial essa 'profissão' tivesse se estendido a outros
indivíduos da população, eles não teriam conhecimento pleno dos assuntos pré-hispânicos que
eram ensinados exclusivamente aos membros das elites.
Já no tocante à forma, acreditamos que o TR não se assemelha às enciclopédias
medievais, como afirma Boone499. Primeiro porque as imagens não adquirem um papel

497
Como demonstrado por: BATALLA ROSADO, Juan José. Op. Cit., 2006.
498
Que no final acabou por ficar inacabado, pois o trabalho de inserção dos textos foi interrompido.
499
BOONE, Elizabeth Hill. Op. Cit., 1994, p. 61.

210
secundário ou função de ilustração, pelo contrário, elas são os elementos centrais; os textos foram
inseridos para explicá-las. E segundo porque os mesmos textos não estão padronizados, como
acontece nas enciclopédias ou no Florentino, inclusive aqueles que podemos chamar de
'principais' ou os primeiros a serem inseridos. Os anotadores foram obrigados a modificar o
padrão de anotação por causa da disposição das imagens e não o contrário, diferentemente do que
acontece no Florentino, onde os textos foram os primeiros a serem inseridos, deixando espaço
para a colocação das imagens; uma prática européia. A única seção do TR cujas imagens se
assemelham mais à ilustrações é a seção do xiuhpohualli, e mesmo assim têm também um papel
central e foram as primeiras a serem inseridas.
Desse modo, ainda que a escolha dos assuntos tenha sido direcionada pelos
patrocinadores, ou patrocinador - cujos interesses podem ter se baseado na tradição enciclopédica
européia -, a organização espacial e centralidade dada às imagens afastam o TR dessas
enciclopédias. Na verdade o TR parece ser um documento híbrido bastante equilibrado no tocante
à organização do espaço, pois apesar da alteração do formato e orientação única do sentido de
leitura, as pictografias, aparentemente, mantiveram-se dentro de padrões indígenas.
Sobre esse assunto e referindo-se às histórias de migração sob o ponto de vista de sua
narrativa Navarrete Linares500 afirma que a coerência e a natureza sistemática dessas histórias não
correspondem às experimentações fragmentadas e adoção do estilo, forma e convenções
européias que ocorreram no século XVI; e mesmo nos casos onde algumas delas foram utilizadas,
como a perspectiva, por exemplo, foram empregadas para reforçar a mensagem narrativa. Além
disso, afirma não ter encontrado nenhum instrumento narrativo visual equivalente no ocidente
naquele período. Por isso "...in the case of Mexica histories, the adoption of European forms and
techniques was subordinated to the chronotope501 that gave them generic validity"502. Assim,
ainda que convenções européias tenham sido usadas, a estrutura da narrativa nas histórias de
migração continuou a ser indígena.
Essa conclusão nos leva a pensar se isso se passou somente na parte da migração ou se
ocorreu também nos outros conteúdos de nosso códice. Será que a alteração no formato dos livros

500
NAVARRETE LINARES, Federico. The path from Aztlan to Mexico. On visual narration in Mesoamerican
codices. In: Anthropology and Aesthetics. Cambridge: v. 37, p. 31-48, Spring, 2000, p. 44-46.
501
Cronotropo é um conceito criado por Bakhtin para se referir à "conexão essencial de relações temporais e
espaciais assimiladas artisticamente na literatura". (Em NAVARRETE LINARES, Federico. Op. Cit. The path
from… 2000, p. 38).
502
NAVARRETE LINARES, Federico. Op. Cit. The path from… 2000, p. 45.

211
e a imposição de um único sentido de leitura alteraram a estrutura das histórias e outros
conteúdos presentes no TR? É o que tentaremos discutir na análise específica de cada uma das
seções.

2. A questão dos protótipos

Desde que Thompson503 elaborou sua discussão sobre a existência de um provável


protótipo em comum utilizado como modelo para a execução do Códice Telleriano Remensis e
do Vaticano A que todas as variações são explicadas em função desse modelo, ou desses
modelos, pois Robertson504 acredita que foram utilizados pelo menos dois. Essa hipótese deu
lugar à escolha de um nome para esse documento, Huitzilopochtli - baseado num estudo não
publicado de Barlow, que usa o nome dado pelo anotador do TR à suposta figura desse deus
mexica representado no início da seção da migração para nomear um protótipo que teria sido
utilizado na realização dessa parte específica dos códices TR e Vaticano A505. Por isso o TR e
Vaticano A são classificados como "Grupo Huitzilopochtli" no Handbook of Middle American
Indians506.
Apesar de alguns autores ainda continuarem a se referir a esse provável protótipo comum,
baseados naqueles que citaram a proposta de Thompson, já é sabido, devido a um artigo de
Quiñones Keber507, que os argumentos utilizados por Thompson não podem ser sustentados na
observação dos originais e até mesmo das reproduções hoje disponíveis, pois para Quiñones

503
THOMPSON, J. Eric S. The prototype of the mexican codices Telleriano-Remensis and Vaticanus A. In: Notes
on the Middle American Archaeolgy and Ethnology. Washington: v. I, n. 6, p. 24-26, 1941. Essa possibilidade foi
primeiramente sugerida por Paso y Troncoso (PASO Y TRONCOSO, Francisco del. Op. Cit., 1979, p. 350) e Ehrle
(EHRLE, Franz. Il Manoscritto Messicano Vaticano 3738 detto il Codice Rios. Roma: Stabilimento Danesi, 1900,
pp. 13-17), mas nenhuma delas teve tanta repercussão como o pequeno artigo de Thompson.
504
ROBERTSON, Donald. Op. Cit., p. 108.
505
GLASS, John B.; ROBERTSON, Donald. A Census of Native Middle American Pictorial Manuscript. In:
CLINE, Howard F.; WAUCHOPE, Robert (editores). Handbook of Middle American Indians. Vol. 14 - Guide to
Ethnohistorical Sources, part 3. Austin: University of Texas Press, 1975, p.137.
506
GLASS, John B. A Survey of Native Middle American Pictorial Manuscripts. Handbook of Middle American
Indians. In: CLINE, Howard F.; WAUCHOPE, Robert (editores). Handbook of Middle American Indians. Vol. 14 -
Guide to Ethnohistorical Sources, part 3. Austin: University of Texas Press, p. 3-80, 1975, p. 13.
507
QUIÑONES KEBER, Eloise. The Codex Telleriano-Remensis and Codex Vaticanus A: Thompson's Prototype
Reconsidered. Mexicon. Vol. IX, Nr. 1, pp. 8-16, Januar 1987.

212
Keber508 esse autor utilizou em sua análise a reprodução do duque de Loubat, que possui muitos
problemas por ter sido realizada com técnica fotocromográfica. A relação entre os dois códices
ainda necessita de uma revisão - apesar de Quiñones Keber já ter apresentado respostas
convincentes para muitos dos problemas anteriormente colocados -, pois pensamos que no futuro
seria necessária uma comparação minuciosa entre os dois também no âmbito codicológico.
Quanto à hipótese de Robertson, esta nos interessa mais aqui porque independentemente
da relação do TR com o Vaticano A ela admite a utilização de dois modelos para a confecção do
TR. Para esse autor o Telleriano "...é um trabalho de síntese mais do que um simples documento
que deriva de uma única fonte, como sugeriu Thompson, a não ser que tenha derivado de uma
fonte que seja um documento síntese"509. Afirma ainda que o estilo de cada parte de nosso códice
varia de acordo com o documento utilizado como modelo, os quais deviam se diferir em termos
de proximidade ou afastamento do estilo tradicional. Sobre as figuras humanas, por exemplo, diz
o seguinte: "o estilo muda no desenho das figuras humanas quando varia da cópia próxima ao
estilo nativo para mudanças paralelas àquelas dos anos 1540."510 Isso significa que para ele o
códice foi copiado de um manuscrito de estilo tradicional e de outro confeccionado num "estilo
colonial", que apresentaria as mudanças próprias do período, ou seja, mudanças que
caracterizariam os documentos realizados depois de aproximadamente 20 anos de colonização.
Aparentemente a hipótese de Robertson é baseada na seção da migração, que possui
características bastante particulares em comparação com outros manuscritos que também
apresentam esse conteúdo. O fato da rota percorrida pelos migrantes algumas vezes seguir em
sentido inverso à linha temporal abriu caminho para uma hipótese, primeiramente sugerida por
Barlow511: a de que a seção foi copiada diretamente de um mapa sem a realização de adaptações
ao novo formato em códice. A partir daí Robertson supôs que as outras seções também
derivassem da cópia direta de outro manuscrito. Ele não considerou, portanto, a hipótese de
múltiplos autores, nem tampouco a possibilidade de um conhecimento prévio dos assuntos por
parte dos tlacuilos.
Quiñones Keber também propõe o uso de modelos como explicação para as diferenças
estilísticas e de organização do espaço das seções do TR. Seus argumentos contra a utilização de

508
QUIÑONES KEBER, Eloise. Op. Cit., 1995, p. 130.
509
ROBERTSON, Donald. Op. Cit., p. 109.
510
ROBERTSON, Donald. Op. Cit., p. 115.
511
Citado em: QUIÑONES KEBER, Eloise. Op. Cit., 1995, p. 197.

213
protótipos somente se referem ao Vaticano A, pois para ela esse manuscrito foi copiado
diretamente do TR e não de um modelo ou modelos em comum com o TR. Por outro lado, para
ela nosso códice mostra características de um documento que pode ter sido copiado de distintos
manuscritos, que por sua parte podiam ser pré-hispânicos ou coloniais. Por exemplo, para a seção
do xiuhpohualli afirma: "If individual figures were one way of representing the veintena periods,
the Codex Telleriano-Remensis images could have been copied directly from an indigenous
prototype. If more complex 'scenic' arrangements, like those of Codex Borbonicus, were
characteristic, a singe representative figure might have been extracted from the more crowded
composition of the prototype manuscript of the Codex Telleriano-Remensis".512 Já sobre a seção
histórica:

"The historical section further differs from the rest of the manuscript in that it encompasses
material from both the pre- and postconquest words. Of the prehispanic eras, the migration
account and dynastic chronicle are so dissimilar in style and format that it seems clear that
originally they must have been based on two unrelated sources rather than on a single historical
manuscript unless that model was already-collated history. The colonial portion, on the other
hand, represents an original contribution drawn by either the manuscript's primary artist or by the
artist of the prototype for this subsection".513 (…) "Rather it was drawn expressly for the Codex
Teleriano-Remensis or possibly for an earlier colonial prototype from which it was them
copied".514

Assim, Quiñones Keber considera a possibilidade de que o conteúdo colonial da seção


histórica pode ter sido uma contribuição de um dos tlacuilos do códice, enquanto as outras partes
devem ter se originado de protótipos, sendo que a migração por um lado e o conteúdo pré-
hispânico da segunda parte dos anais por outro se originaram de distintos modelos tradicionais ou
um protótipo que já fosse uma síntese. Na verdade, quando analisa especificamente a migração
sugere que o conteúdo pode ser o resultado da cópia de diversas fontes. Desse modo, considera
que podem ter existido várias fontes e não somente duas, opinião também compartilhada por
Escalante Gonzalbo, para quem "...el artista indígena debe de haber contado con varios

512
QUIÑONES KEBER, Eloise. Op. Cit., 1995, p. 137.
513
QUIÑONES KEBER, Eloise. Op. Cit., 1995, p. 195.
514
QUIÑONES KEBER, Eloise. Op. Cit., 1995, p. 198.

214
documentos pictográficos antiguos, cuyo contenido adaptó para presentarlo en el formato de las
páginas europeas.515
A possibilidade de um tlacuilo não estar copiando o conteúdo de nenhuma fonte somente
é considerada por Quiñones Keber para a história colonial, sendo que pode ter ocorrido também
em outras partes do códice. Manrique Castañeda lembra que "...había tlacuilos o escribas
especializados en determinados asuntos que memorizaban no sólo el sistema de registro gráfico,
sino las normas de distribución de los signos en el espacio de cada pagina particular…"516
Não estamos de acordo com as hipóteses que advogam por um único protótipo, ou mesmo
dois, para a realização do TR, pois é provável que muitos tenham sido consultados, assim como
também é necessário considerar que algumas partes podem ter sido confeccionadas sem o auxilio
de nenhuma fonte material, pois se o tlacuilo 4 recebeu uma formação tradicional, como
suspeitamos, é bastante provável que soubesse representar alguns conteúdos sem a necessidade
de consultar quaisquer protótipos.
Outra questão que discordamos se relaciona à crença de que as cópias eram feitas ipsis
literis, ou seja, que eram pintadas de forma idêntica. Primeiro porque é possível que tenham
copiado somente elementos ou partes do modelo ou modelos; e segundo porque mesmo nos casos
onde copiavam estritamente o assunto contido no modelo há a possibilidade de que tenham
preferido uma forma pessoal de realizar determinados detalhes, como acontece com a
representação de elementos conhecidos pelos tlacuilos, por exemplo, os signos do tonalpohualli,
que mesmo em casos onde estão procedendo a uma cópia estrita de um protótipo alguns tlacuilos
optam por utilizar um modo pessoal de desenhar alguns signos. Isso acontece entre a seção do
tonalpohualli do TR e do Vaticano A, onde no segundo, apesar de estar sendo bastante fiel ao
modelo, o tlacuilo decidiu utilizar uma forma particular em alguns casos.
Além disso, é preciso considerar também a hipótese de que em algumas ocasiões pode ter
ocorrido somente a recolha de informações dos modelos ou fontes - sem necessariamente terem
realizado uma cópia do material -, por exemplo, para saber exatamente qual deus é o patrono de
determinada trecena, ou em que ano ocorreu determinado evento. A elaboração das imagens em
si pode ter sido realizada 'de memória', pois é provável que os tlacuilos conhecessem, mesmo em

515
ESCALANTE GONZALBO, Pablo. Los Códices. México: Consejo Nacional para la Cultura y las Artes, 1999.
Disponível em: <http://copernico.mty.itesm.mx/phronesis/archi_txt/codices.txt> Acesso em: 10 dez. 2007.
516
MANRIQUE CASTAÑEDA, Leonardo. Op. Cit., p. 28.

215
meados do século XVI, a forma e atributos de diversos deuses, assim como deviam saber
desenhar determinados pictogramas e glifos sem a necessidade de copiá-los diretamente de um
manuscrito. Alguns indícios mostram que é possível que o tlacuilo 4 não estivesse copiando
alguns conteúdos de protótipos, mas construindo os conteúdos exigidos pelo ou pelos patronos a
partir de seu conhecimento de sua cultura e/ou informações orais de outros indígenas.

3. Xiuhpohualli

Nenhuma representação pré-hispânica do xiuhpohualli é hoje conhecida e por isso é


difícil avaliar o quanto o sistema calendárico europeu e suas formas de representação
influenciaram o aspecto visual desse sistema indígena, principalmente no que se refere a algumas
representações, como a de nosso códice, pois outras formas de representar as veintenas se
assemelham claramente às ilustrações existentes nos Livros de Horas medievais.
As veintenas foram representadas em vários manuscritos do México Central, porém, todas
elas datam do período colonial e mostram diferenças significativas entre si no tocante ao aspecto
visual. Kubler e Gibson517 afirmam que existem basicamente 5 modos de ilustrar os grupos de 20
dias das veintenas:
1 - ilustrações simultâneas: onde são representados diversos ritos dispersos em uma unidade
pictórica (Figura 103);
2 - ilustrações analíticas: cada parte do ritual como uma unidade pictórica separada (Figura 104);
3 - ilustrações emblemáticas: uma única figura engajada em uma ação cerimonial, algumas vezes
acompanhada de símbolos e atributos adicionais518 (Figura 105);
4 - ilustrações "teomórficas": representação da deidade patrona da veintena ou que a simboliza
(Figura 106);
5 - ilustrações ideográficas: um elemento pictórico abreviado representando a veintena, como
algum atributo ou parte de uma deidade, um instrumento ritual, um signo fonético ou uma
combinação de signos (Figura 107).

517
KUBLER, George; GIBSON, Charles. Op. Cit., p. 39.
518
Nesse caso não se trata da representação de uma deidade.

216
Veintena quecholli - Códice Borbônico Veintena tecuilhuitontli -

Códice Florentino - Livro II

Figura 103 Figura 104

Veintena uey tecuilhuitl - Códice TR Veintena panquetzaliztli - Códice TR

Figura 105 Figura 106

217
Signos representativos de algumas veintenas - Códice Vaticano A (pp. 89r e 89v519)

Figura 107

Segundo Quiñones Keber520, as veintenas do TR possuem elementos da quarta categoria,


com alguns exemplos da terceira. A autora explica também que muitas das consideradas "single
figures" do TR representam na verdade imagens que agregam características de distintos deuses
reverenciados durante as cerimônias de uma determinada veintena. Em sua análise das veintenas
Quiñones Keber521 reconhece que as figuras das páginas 2r, 2v, 3v, 5r e 6r são todas 'imagens
compostas'.
Exemplos da quinta categoria definida por Kubler e Gibson, as chamadas 'ilustrações
ideográficas', também podem ser encontradas em nosso códice, em algumas páginas da segunda
parte dos anais históricos (Figura 108). Elas aparecem especialmente em duas páginas perdidas
do TR, as quais se encontram no Códice Vaticano A (Figura 107).

Signos das veintenas no Códice Telleriano Remensis. Páginas: 32r (veintena Panquetzaliztli), 32r (Tozoztontli), 32v
(Tecuilhuitontli ou Uey tecuilhuitl), 42r (Tozoztontli), 43r (Etzalqualiztli), 44r (Etzalqualiztli) e 46r (Tozoztontli).

Figura 108

519
Codex Vaticanus 3738. Facsímil del Codex Vatic. Lat. 3738 de la Biblioteca Apostólica Vaticana. Graz (Austria):
Akademische Druck- u. Verlagsanst (ADEVA), 1996.
520
QUIÑONES KEBER, Eloise. Op. Cit., 1995, p. 136.
521
QUIÑONES KEBER, Eloise. Op. Cit., 1995, p. 139-152.

218
Acreditamos que esses signos da segunda parte da seção histórica do TR especificam o
"mês" ou veintena do ano em que ocorreram os fatos relatados.
O primeiro signo é a conhecida representação da veintena panquetzaliztli, desenhada em
diversos códices, como na Roda Calendárica Boban (Figura 109) ou no Códice em Cruz (Figura
118). Essa bandeira costuma aparecer na mão de figuras representadas nessa veintena, como
acontece no TR (Figura 106). No Vaticano A esse signo é representado no terceiro elemento da
primeira imagem522. Quiñones Keber523 o cita, mas indica somente na nota que pode representar a
veintena panquetzaliztli, sugestão fornecida por Nicholson.
O segundo, quarto e último elementos representam um pássaro, o qual parece se referir à
veintena tozoztontli, pois são idênticos ao signo dessa veintena no Vaticano A, que se trata do
desenho do mesmo pássaro524. Para o caso da página 32r Quiñones Keber525 considera que o
pássaro representa os animais que também pereceram no desastre de 1447, relatado nessa página.
Sobre a página 42r diz que o pássaro se trata de um papagaio amarelo e o considera um dos
elementos do topônimo que identifica o local onde ocorreu o desastre relatado no ano de 1507.
Abrams526 somente menciona, mas não identifica o pássaro da página 46r, enquanto Quiñones
Keber sequer o menciona.
O terceiro elemento pode ser a representação de duas veintenas, tecuilhuitontli ou uey
tecuilhuitl, já que no Códice Vaticano A o mesmo desenho é utilizado para as duas (veja Figura
107: dois últimos elementos da primeira imagem e 4o e 5o da segunda). Quiñones Keber527
igualmente acredita que esse desenho pode simbolizar uma das duas veintenas.
Quanto ao quinto e sexto elementos, tanto Abrams528 como Quiñones Keber529 não
conseguiram identificar ao da página 44r. O mesmo ocorre com o da 43r, analisado somente pela
segunda autora. Pensamos que não foi possível identificar o que pensaram ser um topônimo
exatamente porque não se trata de um. Esse signo parece se referir à veintena etzalqualiztli, que
deve estar especificando, como nos outros casos, o período do ano que ocorreram os dois

522
Há um pequeno rasgo no papel no local onde se encontra representado esse signo, que eliminou uma parte do
desenho. Contudo, ainda assim é possível notar que se trata da representação de uma bandeira.
523
QUIÑONES KEBER, Eloise. Op. Cit., 1995, p. 216 e nota 51, p. 334.
524
Tototl: (sustantivo) pájaro; (en sentido figurado) miembro viril, verga, niñito. (RÉMI, Siméon. Op. Cit., p. 722).
525
QUIÑONES KEBER, Eloise. Op. Cit., 1995, p. 231 e 233.
526
ABRAMS Jr., H. León. Op. Cit., p. 149.
527
QUIÑONES KEBER, Eloise. Op. Cit., 1995, p. 217; e nota 53, p. 334.
528
ABRAMS Jr., H. Op. Cit., p. 143.
529
QUIÑONES KEBER, Eloise. Op. Cit., 1995, p. 231/233.

219
terremotos relatados e não o lugar onde esses eventos aconteceram, como pensaram os dois
autores citados. Apesar do desenho pouco claro no Códice Vaticano A, onde aparecem nas duas
páginas que foram perdidas do TR, é possível notar a representação do pé de milho com espigas e
do jarro (veja Figura 107: 12o elemento da primeira imagem e 2o da segunda).
É provável que outros elementos representados na segunda parte da história também se
refiram às veintenas, porém seria necessária uma análise mais minuciosa, o que não poderemos
realizar aqui.
Kubler e Gibson assinalam que as tabelas de símbolos das veintenas, como as dos
calendários Boban e Veytia, nas Figura 109 e Figura 110, são uma invenção colonial,
"...produzidas sob estímulo do contato com práticas calendáricas européias, como os signos do
zodíaco, e reforçados pela tradição indígena de representação de signos compactos de dias, ou
signos para os períodos de coleta de tributos"530.

Roda Calendárica Boban Roda calendárica Veytia

Figura 109 Figura 110

530
KUBLER, George and Charles Gibson. Op. Cit., p. 53.

220
Sonneninstrument mit "Landtafel Teutscher nation", 1525531

Figura 111

Essa hipótese parece ter estimulado autores como Brown532 a propor que a representação
das veintenas do calendário indígena de 365 dias é uma criação colonial. A autora afirma que os
calendários mensais do início do período colonial como são apresentados nas crônicas são uma
interpretação européia dos dados do cerimonialismo mexica, explicando que não devia existir
uma fórmula convencional para a sua representação no período pré-hispânico.533 Num artigo mais
tardio ela é um pouco mais cuidadosa na afirmação, dizendo que: "...o tipo de calendário de
meses descrito nas crônicas do início do período colonial não foi um calendário institucionalizado
importante para os astecas pré-conquista"534, elucidando que as cerimônias certamente existiram,
mas talvez não tivessem formado parte de um calendário fixo ou de "meses".
A hipótese de Brown se baseia em algumas semelhanças entre as representações das
veintenas e ilustrações encontradas nos Livros de Horas medievais. Para ela as ilustrações das
veintenas freqüentemente empregavam formatos de composição que tinham precedentes nas

531
Unikat, Inv. - Nr.: XI, 13 No 3. Öffentliche Bibliothek der Universität, Basel. Foto de Facsimilar do
Geographisches Institut, Universität Essen.
532
BROWN, Betty Ann. European Influences in Early Colonial Descriptions and Illustrations of the Mexica
Monthly Calendar. Ph. D. dissertation. University of New México, 1977, p. 347.
533
BROWN, Betty Ann. Op. Cit., 1977, p. 343.
534
BROWN, Betty Ann. Early Colonial Representations of the Aztec Monthly Calendar. In: CORDY-COLLINS,
Alana (ed.). Pre-Columbian Art History. Selected Readings. Palo Alto, California: Peek Publications, p. 169-191,
1982, p. 171.

221
ilustrações da tradição calendárica européia535. Diz que "as ilustrações do tonalpohualli,
notavelmente similares nos vários exemplos do início do período colonial, foram desenhadas a
partir de convencionais protótipos pré-hispânicos. Em contraste, existe diversidade de
composição, conteúdo e marcada influência européia nas ilustrações dos calendários de meses.
Isso indica que não existia uma fórmula convencional disponível para os artistas do início do
período colonial copiarem ou repetirem. E se não estava disponível para os artistas do início do
período colonial, talvez uma fórmula convencional não tivesse existido no período pré-
hispânico."536
De fato, algumas representações das veintenas têm uma semelhança visível com
composições calendáricas européias, caso das chamadas rodas calendáricas, como as das Figura
109 e Figura 110, que se assemelham bastante com as rodas européias. Veja a Figura 111.
Porém, concordamos com a afirmação de Quiñones Keber537 de que o fato de não existirem
exemplos pré-conquista não implica na inexistência desse tipo de representação. Afinal, a
'ausência de evidência não é evidência da ausência'.
A representação desse sistema em diferentes partes do México durante o período colonial
mostra-nos duas coisas: a primeira, que havia um interesse especial por parte dos espanhóis,
especialmente dos missionários, por esse assunto; e a segunda, que os relatos sobre esse ciclo por
diversos cronistas e sua representação em distintos códices demonstram que não pode ter havido
os mesmos problemas de compreensão dos cerimonialismos por distintos indivíduos, em
diferentes locais. O que eles não compreenderam foi a possibilidade de manipulação do
calendário pelos diversos grupos para adequá-lo às suas próprias histórias, o que gerava
diferenças locais no tocante à veintena que principiava o ano, aos signos portadores de anos,
dentre outros.
Uma interessante hipótese sobre essas diferenças é fornecida por Jansen, quando expõe
suas idéias sobre o que chamou de "place-dates", ou seja, a constante relação entre lugares e
datas, repetidos conjuntamente em diferentes contextos nos códices mixtecos. Jansen encontrou
em Veytia textos que fornecem algum esclarecimento sobre o uso de determinadas datas por
grupos indígenas. O autor diz que "de acordo com Veytia, as datas funcionam como datas-base

535
BROWN, Betty Ann. Op. Cit., 1977, p. 348.
536
BROWN, Betty Ann. Op. Cit., 1977, p. 347.
537
QUIÑONES KEBER, Eloise. Op. Cit., 1995, p. 136.

222
para cálculos calendáricos, historiografia e ritual das pessoas envolvidas"538. Cita um trecho de
Veytia onde o cronista explica como diferentes contas cronológicas coexistiam no México
Central539, concluindo que com isso Veytia nos faz entender a coexistência de diferentes
portadores de anos no México antigo, onde as discrepâncias não são causadas porque são dados
diferentes nomes para os mesmos dias, mas por situarem o portador de ano em outro dia,
escolhendo outro momento para iniciar o ano, de acordo com um evento histórico540. "The place-
date combination was a important element of dynastic historiography: it connected spatial and
temporal categories, it ordered the region in terms of a conceptual, calendrical structure, and by
doing so it created a universe of significance, a mechanism for ordering and interpreting
history."541
Desse modo, os eventos históricos importantes, que normalmente são distintos para cada
grupo, acabam por guiar, até certo ponto, a estrutura calendárica desses grupos. Buscamos muitas
vezes uma homogeneidade que de fato nunca deve ter existido em determinados aspectos dessas
culturas.
Os Livros de Horas realmente influenciaram na forma de representação de alguns
manuscritos, como as rodas calendáricas mostradas acima e as veintenas de Durán, por exemplo
(veja Figura 112 e Figura 113), como mostrado por Brown. Porém, também podem ter existido
distintas formas de representar as veintenas no período pré-hispânico. Elas podem ser fruto de
diferentes combinações, não somente entre elementos europeus e indígenas, mas também entre as
próprias tradições indígenas.

538
JANSEN, Maarten. Dates, deities and dynasties, non-durational time in mixtec historiography. In: JANSEN,
Maarten; VAN DER LOO, Peter; MANNING, Roswitha (editores). Continuity and Identity in Native America:
essays in honor of Benedikt Hartmann. Leiden (Netherland): E. J. Brill, p. 156-192, 1988, p. 171.
539
JANSEN, Maarten. Op. Cit., 1988, p. 172.
540
JANSEN, Maarten. Op. Cit., 1988, p. 172.
541
JANSEN, Maarten. Op. Cit., 1988, p. 183.

223
Veintena Quecholli - Códice Durán Página de Livro de Horas542

Figura 112 Figura 113

No caso dos ritos das veintenas é provável que tenha existido uma forma convencional
mais complexa de representá-los, como as encontradas no Códice Borbônico (Figura 103) e
algumas dos Primeros Memoriales (Figura 114) e ainda outras mais simplificadas, como as do
TR543, do Códice Tudela (Figura 115) e do Magliabechiano (Figura 116), por exemplo. A
alteração colonial nesse caso teria sido na forma de distribuição e organização dessas imagens no
espaço das páginas em formato de códice, porque outros assuntos representados tanto em
manuscritos pré-hispânicos como coloniais assim o demonstram, principalmente por causa do
novo suporte. Mas, a simplificação também pode ter sido uma transformação colonial em alguns
casos, uma vez que o texto escrito passou a fornecer os detalhes relativos aos ritos de cada
veintena, deixando de ser necessária a representação de imagens tão detalhadas. Ou seja, as
imagens passaram a assumir o papel de ilustração, perdendo a função comunicativa da escrita
pictográfica.

542
Roman Horae de 1490, em: BROWN, Betty Ann. Op. Cit., 1977, p. 178
543
Apesar de que podem não ser tão simplificadas como pensamos, como sugere Quiñones Keber (QUIÑONES
KEBER, Eloise. Op. Cit., 1995, p. 136).

224
Veintenas teotleco, tepeilhuitl e Veintena quecholli - Veintena quecholli -
quecholli - Primeros Memoriales Códice Tudela Códice Magliabechiano
Figura 114 Figura 115 Figura 116

Na outra margem da discussão se encontram os signos representativos dessas veintenas,


que são encontrados na segunda parte do TR, nas rodas calendáricas e em alguns outros códices,
como no Mendonza - na parte tributária - (Figura 117) e no Códice em Cruz - histórico - (Figura
118). Ayala Falcón544 se refere a eles como 'signos-meses'. Segundo a autora, foram utilizados
nos períodos nomeados Monte Albán I e II, deixando de ser anotados depois desse período, com
exceção da área maia, onde continuaram a ser empregados. Explica que "os signos dos meses são
identificados porque vão acompanhados de numerais que excedem a trezena, ou seja, de 0 a
19"545.

Signos das veintenas ochpaniztli e tlacaxipehualiztli Signo da veintena panquetzaliztli


- Códice Mendoza - Códice em Cruz
Figura 117 Figura 118

544
AYALA FALCÓN, Maricela. Op. Cit., p. 167-168.
545
AYALA FALCÓN, Maricela. Op. Cit., p. 168.

225
Não temos conhecimento de nenhum registro desses signos-meses em monumentos,
objetos ou códices pré-hispânicos da área central do México, porém, isso não prova que não
tenham sido ali utilizados. É possível que os nahuas empregassem esses signos-meses em
registros específicos, como alguns tipos de códices, por exemplo. O fato de serem encontrados
em monumentos e objetos de outros períodos e grupos mesoamericanos mostra que não se tratam
de uma invenção colonial, apesar de terem se valido deles nas rodas calendáricas inspiradas nos
Livros de Horas europeus.
Na verdade, estamos convencidos de que coexistiram dois modos distintos de pintar as
veintenas no período pré-hispânico, em forma de ritos e em forma de signos-meses, por isso há
tanta variação entre as representações coloniais desse ciclo. Por um lado alguns preferiram
utilizar a forma de signos-meses, tanto de um modo mais tradicional - dentro dos relatos
históricos e listas de tributos -, como nas rodas calendáricas de tradição européia, porque eram
mais adequados para esse tipo de representação. Por outro lado, outros preferiram utilizar a forma
de ritos, quer seja apresentando diversas cenas ou uma única figura. Distintas formas de
representação para as veintenas são compatíveis com a variação que existia entre as contas
calendáricas dos diversos grupos mesoamericanos. Também Quiñones Keber546 afirma que é
possível que coexistissem variadas formas de representar as veintenas.
Levando em consideração o que dissemos acima, no que se refere à organização do
espaço é provável então que as representações das veintenas em forma de signos-meses na parte
histórica de nosso códice não sejam tão distintas do modo como eram empregadas no período
pré-hispânico, contudo, não podemos dizer o mesmo da seção do xiuhpohualli. Mesmo que
tivesse existido uma convenção onde fosse representada uma única figura em cada veintena, a
forma de organizar essas representações nas páginas, para formar o xiuhpohualli completo, devia
ser diferente da empregada em nosso códice. Primeiro porque os manuscritos deviam manter a
forma quadrada, que é a utilizada nos códices pré-hispânicos nahuas conhecidos, em contraste
com o formato retangular do Telleriano, que obedece ao formato dos papéis. Segundo porque não
deviam deixar espaço em branco abaixo ou ao lado das imagens para a adição de outras
informações, principalmente nessa parte do códice, onde os espaços são muito maiores. Terceiro
porque as figuras possivelmente não estariam representadas cada uma em uma página com tanto
espaço livre ao redor, uma vez que as pictografias em si constituíam um sistema de escrita por si

546
QUIÑONES KEBER, Eloise. Op. Cit., 1995, p. 137.

226
mesmo e por isso os espaços eram melhor aproveitados. Quarto porque a leitura não devia
necessariamente obedecer a ordem de esquerda-direita, pois os códices pré-hispânicos mostram
uma grande variedade de sentidos de leitura, incluindo bustrofédica. De qualquer forma, então,
mesmo que existissem representações do xiuhpohualli como as encontradas no TR, de uma única
figura, elas apresentariam uma aparência visual distinta da de nosso códice e, portanto, no tocante
à organização do espaço essa seção sofre alterações importantes em conseqüência do uso do
papel europeu, do formato em códice e do sentido de leitura ocidental, mas também e
principalmente da necessidade de se deixar espaços em branco para o acréscimo de textos em
caracteres latinos.

4. Tonalpohualli

O tonalpohualli organizado em grupos de trezenas sobreviveu em alguns outros


manuscritos além do TR e Vaticano A. Dentre os pré-hispânicos as trecenas existem no Códice
Bórgia e no Códice Vaticano B. Também são encontradas no Tonalamatl Aubin e no Códice
Borbônico, cuja origem (pré ou pós-hispânica) ainda é discutida. Veja Figura 119.

227
Trecena 12 - Códice Bórgia547 Trecena 12 - Códice Vaticano B548 Trecena 12 - Tonalamatl Aubin549

Trecena 12 - Códice Borbônico550 Trecena 12 - Códice Telleriano Remensis551

Figura 119

A disposição dos glifos dos dias e senhores da noite em formato de 'L' do Telleriano
Remensis coincide com a dos manuscritos pré-hispânicos, apesar dos Códices Bórgia e Vaticano
B somente possuírem os primeiros, os quais não vêm acompanhados dos pequenos círculos
representando os numerais dos treze dias de cada uma das trecenas. Certamente consideravam
esse elemento desnecessário, uma vez que era bastante conhecida a seqüência dos signos e o fato

547
Codex Vaticanus 3738. Facsímil del Codex Vatic. Lat. 3738 de la Biblioteca Apostólica Vaticana. Graz (Austria):
Akademische Druck- u. Verlagsanst (ADEVA), 1996.
548
Idem Ibidem.
549
Reprodução por cromolitografia, de Loubat, 1901. Disponível em:
<http://www.famsi.org/spanish/research/loubat/Tonalamatl/thumbs0.html> Acesso em: 27 dez. 2007.
550
Codex Vaticanus 3738. Facsímil del Codex Vatic. Lat. 3738 de la Biblioteca Apostólica Vaticana. Graz (Austria):
Akademische Druck- u. Verlagsanst (ADEVA), 1996.
551
QUIÑONES KEBER, Eloise. Op. Cit, 1995.

228
de que cada trecena continha exatos 13 glifos. Porém, a opção de se adicionar ou não os círculos
representando os numerais pode ter razões estilísticas552, constituindo-se em uma opção,
específica da tradição a que pertence o manuscrito. Assim sendo, o Códice Bórgia e o Vaticano B
mostram outras similaridades, que levaram Eduard Seler553 a incluí-los num mesmo grupo, o
conhecido Grupo Borgia. Note na Figura 119 as diferenças iconográficas existentes entre o
Bórgia e o Vaticano B por um lado e os outros três manuscritos por outro, especialmente nas
representações centrais.
As mesmas razões de fundo estilístico poderiam explicar a inclusão ou não das seqüências
dos senhores da noite, pássaros agoureiros e senhores dos dias, pois nos dois códices pré-
hispânicos citados somente representaram os glifos dos dias, no TR e Vaticano A incluíram
também os senhores da noite, enquanto nos restantes, Borbônico e Tonalamatl Aubin, aparecem
todas as seqüências. Esses dois últimos são aqueles que mais se assemelham ao TR no tocante às
representações centrais, dos deuses patronos e figuras subsidiárias, especialmente as do
Borbônico, que mostram diversas semelhanças iconográficas com o nosso códice, incluindo o
modo de representá-las.
Outro elemento que os diferencia é o sentido de leitura. Veja Figura 120.

552
Aqui nos referimos a 'estilo' como escolhas formais, efetuadas por determinados grupos de indivíduos, dentre as
possibilidades oferecidas por um repertório convencional mais amplo.
553
SELER, Eduard. Comentários al Códice Borgia. México: Fondo de Cultura Econômica, 1963.

229
Códice Bórgia554 Códice Vaticano B555 Códice Tonalamatl Aubin556

Códice Borbônico557 Códices Telleriano Remensis e Vaticano A558

Figura 120559

Aparentemente haviam variados sentidos de leitura aplicados às trecenas, como


demonstram os esquemas acima. Porém, apesar das diversas opções, no TR foi utilizado
justamente o sentido de leitura europeu. Certamente esse fato não se trata de uma coincidência.
Essa decisão deve ter sido tomada no planejamento da seção, que obedeceu ao sentido de leitura
do futuro ou futuros usuários do códice. Portanto, esse elemento da organização do espaço foi

554
Desenho de: MONTORO, Gláucia Cristiani. Dos Livros Adivinhatórios aos Códices Coloniais: uma leitura de
representações pictográficas mesoamericanas. Dissertação de Mestrado. Campinas: UNICAMP, 2001, p. 118.
555
Idem Ibidem.
556
Idem Ibidem.
557
Idem Ibidem.
558
Idem Ibidem.
559
Os números de 1 a 13 representam os glifos dos dias; as letras maiúsculas os Nove Senhores da Noite; as letras
minúsculas os Treze Senhores dos Dias; e os números em romano os 13 pássaros agoureiros.

230
direcionado pela nova função desse tonalamatl560, que foi adaptado aos seus futuros usuários.
Essa opção, entretanto, não representou uma alteração significativa, pois o fato de nenhuma das
outras trecenas mostrarem coincidência no sentido de leitura denota que havia certa flexibilidade
na escolha desse aspecto, que devia depender do tamanho do suporte, espaço disponível para a
seção e/ ou da tradição a que pertencia o documento.
A disposição das imagens das trecenas do TR no espaço das páginas apresenta uma
aparência visual similar à tradicional, onde os glifos são inseridos individualmente dentro de
molduras traçadas em vermelho e os deuses patronos ocupam uma área maior e central, que
segundo Robertson, já não está presa à rígida, "...quase matemática estrutura das caixas de dia
dos manuscritos precedentes".561 No TR e Vaticano A as figuras centrais foram representadas em
espaços mais "arejados" devido ao formato do fólio e ao fato das trecenas terem sido distribuídas
em duas páginas, onde havia muito espaço disponível. O TR e Vaticano A são os únicos que
representam cada trecena em duas páginas, cuja escolha deve ter sido impulsionada pela
necessidade de se deixar espaço para as anotações em caracteres latinos. A distribuição de
conteúdos em um número maior de páginas que o utilizado tradicionalmente é uma ocorrência
comum no período colonial, devido justamente à necessidade de inserção de textos. A adição
desse novo componente foi um dos principais impulsionadores das alterações na forma de
distribuição das pictografias no suporte, somado, é claro, à obrigatória forma retangular do papel
europeu. Esses espaços deixados para as anotações no TR são o que mais o diferencia dos outros
códices representados na Figura 119, pois a distribuição das trecenas em duas páginas não altera
tão radicalmente o aspecto visual.
Quiñones Keber afirma que o fato de cada uma das trecenas do TR estar representada em
duas páginas poderia representar o afastamento do "standard layout", no entanto pode ser o
resultado da adequação da organização que o conteúdo tinha num suposto protótipo utilizado para
a cópia dessa seção. Ela acredita que esse protótipo devia estar em sentido horizontal com
formato em duplo painel, o qual foi acomodado no lado superior de duas páginas européias.562
Abaixo, na Figura 121, reproduzimos a reconstrução do modelo.

560
Livro adivinhatório.
561
ROBERTSON, Donald. Op. Cit., p. 111.
562
QUIÑONES KEBER, Eloise. Op. Cit., 1995, p. 158.

231
Reconstrução das trecenas do TR em formato sanfonado por Quiñones Keber563
Figura 121

A autora fundamentou sua teoria nas linhas de esboço vermelhas que aparecem em todas
as páginas das trecenas, as quais foram usadas como base para a delimitação e organização da
área onde seriam realizados os desenhos. Na Figura 122 reproduzimos uma página onde
destacamos essas linhas.

Página 14r do TR -
destaque para as linhas de delimitação
Figura 122

Cada um desses retângulos está localizado exatamente no centro de cada página no


sentido horizontal, onde deixaram margens dos dois lados. No sentido vertical localiza-se mais
próximo do lado superior, onde também há uma pequena margem, mais ou menos semelhantes às

563
QUIÑONES KEBER, Eloise. Op. Cit., 1995, p. 113.

232
das laterais. Somente no canto inferior é que foi deixado um espaço maior, certamente para a
colocação dos textos explicativos. Esse perfeito encaixe desses retângulos nas páginas do códice
faz-nos suspeitar que eles não foram baseados num protótipo, como acredita Quiñones Keber, e
sim delimitados por instrução do patrono ou patronos, que devem ter indicado a necessidade do
espaço maior abaixo das imagens para a adição dos textos em caracteres latinos e dos espaços
menores nas laterais e lado superior, um procedimento necessário em documentos em formato de
códice devido à possibilidade de futuros acertos nas bordas dos fólios para a realização de
encadernações, que poderiam remover pedaços das imagens caso essas fossem distribuídas tão
próximas das laterais como as dos manuscritos nativos. Note que nenhum dos outros códices
representados acima, na Figura 119, possui essas margens. Neles as faixas gradeadas em formato
de 'L' - onde estão incluídos os glifos dos dias, senhores da noite e outros elementos - foram
pintadas bem próximas às laterais das páginas, que tiveram quase todo seu espaço disponível
aproveitado para a colocação dos conteúdos.
É estranho também que no suposto protótipo reconstruído por Quiñones Keber haja um
espaço em branco abaixo das estruturas gradeadas (abaixo dos números 13), espaço esse
inexistente em quaisquer das trecenas mais tradicionais citadas acima (veja Figura 119), onde
ocupam toda a extensão disponível, mesmo que isso implique em divisões irregulares, nos
sentidos vertical e horizontal dos retângulos reservados para os desenhos dos glifos dos dias e
outros elementos. Veja o Códice Borbônico (Figura 119). Isso comprova que as alterações mais
evidentes ocorridas no TR - em comparação com os outros manuscritos -, ou seja, a distribuição
de cada trecena em duas páginas e os espaços em branco ao redor da região onde foram inseridas
as imagens, ocorreram para atender às novas necessidades, tanto dos usuários, que precisavam de
textos explicativos, como do novo suporte, que exigia alguns procedimentos que acabaram por
alterar aspectos tradicionais dos conteúdos nativos.
Outros aspectos na organização do espaço das trecenas do TR também advogam contra a
hipótese de um protótipo tradicional de onde foi copiado o conteúdo. As figuras centrais das
trecenas foram reduzidas na maioria dos casos a dois personagens, um em cada página564. Nos

564
Há somente duas exceções, uma delas é a trecena reproduzida acima, na Figura 119, onde foram desenhados um
homem e uma mulher, e a outra a representação dos guerreiros águia e jaguar da página 16r (segunda parte da
trecena 11). Também há o caso da representação de Chalchiuhtlicue, que nas trecenas normalmente aparece
associada a uma corrente de água onde no TR se encontram duas pequenas figuras humanas e uma cesta
(aparentemente contendo um colar de pedras preciosas), na página 11v (primeira página da trecena 5). Em todos os

233
outros códices reproduzidos na Figura 119 são desenhados elementos adicionais, especialmente
no Códice Borbônico, cujos patronos vêm sempre acompanhados de grande variedade de objetos.
Robertson565 se refere a eles como "scattered-attributes", porém Quiñones Keber566 prefere
utilizar os termos "accessory items" ou "accessory articles", pois segundo ela, pertencem a
distintas categorias. Alguns são de fato atributos, porém outros estão relacionados a rituais
associados com a trecena onde aparecem. Mas, o importante é que ambos os autores chamam a
atenção para o fato do TR e Vaticano A possuírem um número reduzido de elementos em
comparação com as trecenas de outros manuscritos. Segundo Quiñones Keber:

"The presence of so many accessory articles in other trecenas suggests that those in the Codex
Telleriano-Remensis may have been selected from a prototype manuscript that contained a larger
array of figures. A number of reasons may have contributed to streamlining the visual components
of its folios. For example, eliminating the surrounding symbols would have obliterated reminders
of what Spaniards would have regarded as idolatrous rites. On a practical level, it would have
provided additional space for the annotators to add their comments."567

A omissão desses 'itens acessórios' no TR pode ter uma outra explicação, diferente das
propostas por Quiñones Keber. Pensamos que ela pode também confirmar a inexistência de um
protótipo utilizado pelo tlacuilo.
Caso houvesse de fato especializações entre os tlacuilos devemos supor que o tlacuilo 4
não devia ser especialista nos dois tipos de assuntos que desenha em nosso códice, o
tonalpohualli e a segunda parte da história, uma vez que pertencem a distintos temas, pois as
trecenas são um tema religioso/calendárico e a segunda parte da história genealógico/histórico.
Devia haver convenções específicas em cada um dos assuntos que não eram dominadas por todos
os tlacuilos, somente por aqueles encarregados daquele determinado tema. No entanto, se esse
tlacuilo recebeu formação ou grande parte de sua formação antes da chegada dos espanhóis,
como suspeitamos, conhecia a forma do tonalpohualli distribuído em trecenas e pelo menos os
elementos principais que o formavam, como os deuses patronos, os Senhores da Noite e

outros casos as representações centrais estão reduzidas a duas figuras, o deus patrono e um outro deus ou figura
subsidiária.
565
ROBERTSON, Donald. Op. Cit., p. 90.
566
QUIÑONES KEBER, Eloise. Op. Cit., 1995, p. 159-160.
567
QUIÑONES KEBER, Eloise. Op. Cit, 1995, p. 160.

234
certamente os glifos dos dias. É possível, então, que a existência de especializações entre os
tlacuilos explique a simplificação na representação dos elementos centrais das trecenas do TR,
pois deviam ser necessários determinados conhecimentos, restritos aos sacerdotes que se
ocupavam da leitura da sorte e manutenção das tradições religiosas, para que se pudesse
compreender detalhes particulares das trecenas. Supomos que esses detalhes, especialmente
aqueles relativos aos prognósticos, não deviam ser de domínio público, pois a garantia do
trabalho dos adivinhos devia estar contida nos segredos de sua "profissão". Inclusive os livros
utilizados por esses indivíduos deviam ser confeccionados nos templos por eles mesmos ou por
escribas/pintores especializados nesse assunto e/ou outros de caráter religioso. De acordo com
Arellano Hoffmann, que analisa nesse caso os dados provindos da região maia:

"Podemos especular que los entrenados en los palacios eran especialmente escribanos y cronistas;
es decir, que estaban relacionados con las funciones administrativas y con la confección de anales
históricos y que poco tenían que ver con la función de sacerdotes y adivinadores. Se puede
suponer que, a su vez, los templos eran otros centros educativos, debido a la función específica
que los sacerdotes dentro de la población tenían, que no solamente era de carácter religioso
adivinatorio, sino también astronómico y económico."568

Então, a falta dos itens acessórios no TR pode ser um indício de que nosso tlacuilo 4 não
era um especialista no assunto, apesar de conhecer ou ter podido obter informações sobre o
conteúdo geral de cada uma das trecenas. Para reforçar essa hipótese lembramos que ocorreram
alguns 'erros' na representação de determinadas imagens das trecenas. Dois dos deuses patronos
foram inseridos em locais indevidos - tendo sido cobertos por tinta branca, a qual foi saindo com
o tempo (hoje é possível notar inclusive qual a figura que o tlacuilo tinha realizado
anteriormente) - e outros vários equívocos foram cometidos nos senhores da noite e glifos dos
dias. Há de se pensar se o tlacuilo teria cometido tantos enganos de local de representação se
estivesse simplesmente copiando o conteúdo de um modelo. Portanto, é preciso considerar a
hipótese da não existência de um protótipo tradicional usado para a representação das trecenas de
nosso códice e a possibilidade de que o tlacuilo 4 talvez tenha desenhado esse conteúdo
especialmente para o TR.

568
ARELLANO HOFFMANN, Carmen. Op. Cit., p. 230.

235
Outra explicação fornecida para a ausência dos itens acessórios é dada por Robertson. O
autor afirma que essa omissão pode ser esclarecida se considerarmos o período de confecção de
cada um dos códices, pois o tonalpohualli do TR é posterior ao do códice Borbônico e por isso
"...falta a elaborada coleção de atributos e símbolos de cerimônia."569 Essa afirmação reforça
nossa hipótese, uma vez que o esquecimento de detalhes relativos ao campo religioso pode
também confirmar que esse conteúdo não deve ter sido copiado de nenhum protótipo, pois se
houvesse um modelo tradicional possivelmente conteria os itens acessórios próprios de cada
trecena.

5. Anais Históricos

5.1. Múltiplas Histórias

As tradições históricas indígenas, segundo Navarrete Linares570, não concebiam a


'verdade' histórica como algo único, mas como uma pluralidade de versões. Cada altepétl e até
mesmo cada grupo específico dentro dessas unidades políticas, os calpulli571, tinham sua própria
versão sobre o passado. De acordo com o autor, o cronotopo histórico ocidental pode ser
representado por uma linha contínua ou um caminho, dividido em etapas e com pretensão de
unicidade, o qual é fundamentado na convicção de que existe uma verdade única de propriedade
do ocidente. Esse cronotopo estabelece continuamente equivalência entre distância espacial e
temporal, assim como a existência de uma evolução ou progresso. Por outro lado, o cronotopo
mesoamericano concebe o tempo como uma ronda de turnos572 "Mientras que la razón occidental
busca la unidad, la razón mesoamericana es aditiva y busca la pluralidad. (...) mientras que dentro

569
ROBERTSON, Donald. Op. Cit., p. 111.
570
NAVARRETE LINARES, Federico Diálogo con M. Bajtin sobre el cronotopo, [1998]. Disponível em:
<http://homepage.mac.com/fnavarrete2003/Bajtin%20cronotopo.pdf> Acesso em: 18 dez. 2007.
571
"Calpolli o calpulli: aumentativo de calli. Casa grande, vasta sala, barrio, subúrbio, aldea, poblado, distrito; plural
calpoltin o calpultin". (RÉMI, Siméon. Op. Cit., p. 62).
572
NAVARRETE LINARES, Federico Diálogo con M. Bajtin sobre el cronotopo, [1998]. Disponível em:
<http://homepage.mac.com/fnavarrete2003/Bajtin%20cronotopo.pdf> Acesso em: 18 dez. 2007.

236
del camino lo nuevo deja necesariamente atrás a lo viejo, la rueda de turnos puede crecer para
incorporar lo nuevo, sin por ello desplazar a lo ya existente"573.
Essa visão histórica indígena pluralista se reflete na diversidade de suas próprias
representações. As variações formais encontradas nos códices históricos indígenas ou de tradição
indígena que chegaram até nós mostram um repertório absolutamente variado de formas de
organização dos conteúdos. Certamente uma parte dessas variações, especialmente as que
priorizam as visões lineares, se deve às distintas soluções encontradas pelos tlacuilos para
adequar os antigos conteúdos aos novos usuários e suportes no período colonial, porém, a
presença de estruturas organizacionais inexistentes na cultura ocidental leva-nos a crer que
muitas dessas diferenças já existiam no período pré-hispânico e caracterizam soluções específicas
encontradas por cada um dos grupos para atingir determinados objetivos.
As histórias indígenas, com ênfase em aspectos distintos por cada um dos grupos, eram
em grande parte a construção de um discurso que tinha por objetivo mostrar que seu grupo tinha
direitos legítimos sobre determinados privilégios e um território específico. Em muitos casos
tentavam demonstrar que seus direitos eram mais legítimos que os de outros grupos, tanto no que
se refere aos altepétl vizinhos, como ao seu próprio altepétl, ou seja, os diferentes calpulli.
Assim, os códices históricos "...encerram importantes conceitos de legitimidade política e
fundamentação dos direitos sobre a terra."574
As disputas dinásticas eram bastante acirradas na região do vale do México,
especialmente entre os grupos próximos. Navarrete Linares afirma que a inimizade de Alvarado
Tezozomoc contra os tatelolcas "...é um indício de que as disputas mais fortes eram entre dois
grupos que pertenciam à mesma entidade política. Esta possessividade pode ser compreendida se
tomarmos em conta que as histórias tratavam não só da origem e legitimidade do altepétl em seu
conjunto, mas também dos direitos e posições das linhagens e grupos dominantes em seu
seno."575 Então, cada linhagem ou calpulli reivindicava ser "dona da tradição histórica da
entidade política a que pertencia, negando às demais facções o mesmo título"576.

573
NAVARRETE LINARES, Federico Diálogo con M. Bajtin sobre el cronotopo, [1998]. Disponível em:
<http://homepage.mac.com/fnavarrete2003/Bajtin%20cronotopo.pdf> Acesso em: 18 dez. 2007.
574
ESCALANTE GONZALBO, Pablo. Los Códices. México: Consejo Nacional para la Cultura y las Artes, 1999.
Disponível em: <http://copernico.mty.itesm.mx/phronesis/archi_txt/codices.txt> Acesso em: 10 dez. 2007.
575
NAVARRETE LINARES, Federico. Op. Cit. Mito, historia… 2000, p. 34.
576
NAVARRETE LINARES, Federico. Op. Cit. Mito, historia… 2000, p. 34.

237
Os temas gerais das histórias indígenas, de acordo com Navarrete Linares577 são: a origem
e conformação do altepétl, que definia sua identidade específica; a conformação política e
história interna de seu governo; e suas relações com outros altepétl, mostrando seu direito
exclusivo sobre um território particular na região por intermédio da aquisição legítima do mesmo,
por possuírem os bens culturais chichimecas e toltecas que o equiparavam aos outros altepétl da
região e os títulos de sua linhagem de tlatoque. Escalante Gonzalbo, por sua vez, diz que de
forma geral os códices históricos seguem um mesmo padrão: "...relatan el surgimiento del grupo
y sus dirigentes, describen un proceso migratorio tras el cual llegaron a su asiento definitivo,
señalan sus relaciones con otros pueblos y finalmente, refieren algunos episodios tocantes al
establecimiento del régimen colonial".578
Aparentemente existia certa flexibilidade nas tradições históricas, que eram moldadas de
acordo com os interesses dos grupos dominantes, a fim de manter seus direitos e privilégios
frente aos altepétl vizinhos, especialmente os mais poderosos. Assim, essas tradições
estabeleciam um constante diálogo com os centros de poder mais importantes da região. Para
Navarrete Linares:

"Las historias de los altepétl más poderosos se convertían, naturalmente, en puntos de referencia
para las demás tradiciones. Por eso es que la mayoría de las fuentes provenientes de los diversos
altepétl del Valle de México hacen mención, aunque sea breve, a la historia mexica, mientras que
las fuentes mexicas no mencionan la historia de ningún otro pueblo."579

O mesmo tipo de adaptação histórica à realidade política ocorreu após a conquista


espanhola, quando os grupos indígenas dominantes tiveram que realizar alterações no conteúdo e
às vezes também na estrutura de suas tradições históricas a fim de tornar válidos seus argumentos
legitimadores frente à nova ordem dominante, de forma a manter seus privilégios e direitos sobre
territórios específicos. Os discursos legitimadores tiveram que ser adequados à nova realidade.580

577
NAVARRETE LINARES, Federico. Op. Cit. Mito, historia… 2000, p. 38-41.
578
ESCALANTE GONZALBO, Pablo. Los Códices. México: Consejo Nacional para la Cultura y las Artes, 1999.
Disponível em: <http://copernico.mty.itesm.mx/phronesis/archi_txt/codices.txt> Acesso em: 10 dez. 2007.
579
NAVARRETE LINARES, Federico. Op. Cit. Mito, historia… 2000, p. 66.
580
NAVARRETE LINARES, Federico. Op. Cit. Mito, historia… 2000, p. 69.

238
5.2. Formato e organização do espaço nos códices históricos

Diversos autores abordaram o assunto dos formatos e organização do espaço utilizado nos
códices históricos. O mais importante deles é Donald Robertson, quem definiu 3 modos de
organizar esses conteúdos no período pré-hispânico: o modo mixteca, mais compacto e "event-
oriented", o mexicano, "time-oriented" em uma contínua linha temporal, e o texcocano, "place-
oriented". Sobre as histórias mixtecas afirma que os eventos são localizados no espaço pelo uso
dos glifos de lugares e no tempo pelos glifos calendáricos. Essas histórias fundem duas
dimensões da história, onde os eventos são a estrutura e o tempo e os lugares os qualificadores581.
O segundo tipo exemplificou com dois manuscritos nahuas: a Tira de Tepechpan582 e o Códice
Boturini. O primeiro mostra uma história dependente dos signos temporais, onde os signos de
lugares e os eventos estão subordinados e relacionados entre si pela contínua linha temporal583. O
Códice Boturini, por outro lado, mostra blocos de unidades de tempo agrupadas e lidas de modo
serpenteado. "Os blocos de tempo agem como divisores entre as cenas dos eventos históricos. (...)
A corrente de signos temporais continua inquebrável de qualquer modo, apesar de ajustada à
seqüência de lugares e eventos."584 Assim, os signos de tempo são concentrados, enquanto os de
lugar são enfatizados. O terceiro grupo seria das histórias governadas pelos signos de lugares. Diz
que esse tipo de história está associado à cidade de Texcoco, visível no mapa de Tlotzin e no
Códice Xolotl. Ambos apresentam histórias livres da dominação temporal.
Boone585 segue a classificação proposta por Robertson, pois afirma que as histórias são
apresentadas em três formas: aquelas orientadas pelos eventos, as cartográficas e as contínuas
contas de anos em forma de anais, sendo que cada forma condicionava o tipo de histórica que era
contada. Esse também é o caso de Escalante Gonzalbo, que se refere somente aos formatos
utilizados pelos nahuas, classificando-os em: tiras, onde a informação é apresentada em uma
linha contínua, como o Códice Boturini; e mapas, onde são representados no mesmo âmbito
geográfico acontecimentos relativos a diferentes anos, como o Códice Xolotl. "Cuando la
información se presenta de manera lineal o en meandros, cada secuencia de sucesos es precedida

581
ROBERTSON, Donald. Op. Cit., p. 62.
582
A Tira de Tepechpan apresenta paralelamente uma versão histórica acolhua e outra mexica. O documento é de
origem acolhua e não mexica, apesar de diferenciar-se bastante de outros documentos históricos dessa tradição, cuja
maioria possui a forma de mapa, chamados histórico-cartográficos, como o Códice Xólotl.
583
ROBERTSON, Donald. Op. Cit., p. 63.
584
ROBERTSON, Donald. Op. Cit., p. 63.
585
BOONE, Elizabeth Hill. Op. Cit., 1994, p. 51.

239
por un glifo que indica la fecha. En la historia-mapa, en cambio, los hechos están unidos por una
línea a la fecha correspondiente o situados muy cerca de ella, puesto que en el mismo espacio se
juntan acontecimientos verificados en momentos distintos".586
Já Nicholson587 assegura que os óbvios rearranjos e modificações nas cópias e versões
pós-conquista dificultam bastante a classificação dos formatos empregados nos códices
históricos. Ele realiza a seguinte classificação, baseando-se majoritariamente no modo como os
signos de anos estão organizados: anais com contagem contínua de tempo; anais esporadicamente
datados ou sem datas; formatos cartográficos que incorporam registros históricos, dinásticos e
genealógicos; genealogias; e listas dinásticas.588
Para além das classificações gerais os autores necessitam especificar o modo como cada
um desses códices históricos são organizados, pois ainda que os enquadrem em grupos,
praticamente não existe um igual ao outro. Quiñones Keber589, por exemplo, diz que o Códice
Boturini é ordenado cronologicamente, integrando espaço e tempo; o Códice Azcatitlan é
orientado por eventos e lugares, pois a cronologia expressada pelos signos anuais possui uma
importância secundária; já o Códice Mexicanus mostra outra forma de integrar espaço e tempo,
dominado por uma linha horizontal de tempo, com os eventos representados em cima e embaixo;
o Códice Aubin por outro lado é controlado por uma linha temporal vertical com os eventos
próximos do ano correspondente; dentre outros.590
No Handbook of Middle American Indians591 a seção histórica do TR é apontada como
uma variante das histórias "time-oriented" de Robertson, ou seja, aquelas em formato de Anais.
Na verdade o autor citado elabora uma organização um pouco mais complexa para nosso códice,
dizendo que se trata de uma tentativa de síntese entre histórias "time-oriented" e "place-oriented",
fundindo tradições históricas mexicanas e texcocanas.592

586
ESCALANTE GONZALBO, Pablo. Los Códices. México: Consejo Nacional para la Cultura y las Artes, 1999.
Disponível em: <http://copernico.mty.itesm.mx/phronesis/archi_txt/codices.txt> Acesso em: 10 dez. 2007.
587
NICHOLSON, H. B. Pre-Hispanic Central Mexican Historiography. In: Investigaciones Contemporáneas sobre
Historia de México. México: UNAM, p. 38-81, 1971, p. 47.
588
NICHOLSON, H. B. Op. Cit., 1971, p. 47-52.
589
QUIÑONES KEBER, Eloise. Op. Cit., 1995, p. 195.
590
QUIÑONES KEBER, Eloise. Op. Cit., 1995, p. 195.
591
GLASS, John B. A Survey of Native Middle American Pictorial Manuscripts. Handbook of Middle American
Indians. In: CLINE, Howard F.; WAUCHOPE, Robert (editores). Handbook of Middle American Indians. Vol. 14 -
Guide to Ethnohistorical Sources, part 3. Austin: University of Texas Press, p. 3-80, 1975, p. 32.
592
ROBERTSON, Donald. Op. Cit., p. 64.

240
Essa classificação geral das histórias proposta por Robertson é contestada por Navarrete
Linares, pois analisando o aspecto narrativo das histórias de migração usando o conceito de
"cronotopo" de Bakhtin esse autor concluiu que a classificação dos documentos com base em seu
formato é um pouco arbitrária, uma vez que colocam em categorias distintas documentos que
fazem parte do mesmo "gênero histórico". Além disso, acredita ser inadequada a equiparação
entre os chamados "anais históricos" indígenas com os anais europeus, que são simples listas de
eventos organizadas cronologicamente, enquanto as histórias indígenas colocadas nessa categoria
são muito mais complexas, podendo ser consideradas um gênero narrativo completo, que
organiza e dá coerência aos eventos descritos.593
A proposta de Navarrete implica na separação dos chamados anais históricos do TR em
duas partes, a migração por um lado e o restante da história por outro. O autor divide a história
mexica em eras:

"La migración es una era con características muy particulares: se define por la búsqueda constante
de una patria, de un centro espacial, que sustituya el que fue dejado atrás. (...) el tiempo y el
espacio son representados como un continum, definido por el movimiento del pueblo en busca de
su lugar de asentamiento definitivo. Las convenciones narrativas de los códices resaltan la unidad
de este viaje, su carácter irreversible y unívoco, por encima de las múltiples peripécias que lo
marcan"594

Ela se inicia com a partida de Aztlan e termina com a fundação de México, que por sua
vez marca o início de outra era, cujo foco central passa a ser a expansão de seus domínios595.
Segundo o autor, os códices que tratam da migração podem ser considerados gêneros históricos
específicos, que combinam os gêneros ocidentais de mapas, anais e histórias orientadas por
eventos.596
Mas, além das diferenças na narrativa, essas duas partes da história do TR apresentam
evidentes variações de estilo, de grau de influência da tradição pictórica européia e forma de
organização e disposição dos conteúdos. É obvio que com tantas diferenças entre si elas devem

593
NAVARRETE LINARES, Federico. Op. Cit. The path from… 2000, p. 42.
594
NAVARRETE LINARES, Federico Diálogo con M. Bajtin sobre el cronotopo, [1998]. Disponível em:
<http://homepage.mac.com/fnavarrete2003/Bajtin%20cronotopo.pdf> Acesso em: 18 dez. 2007.
595
NAVARRETE LINARES, Federico Diálogo con M. Bajtin sobre el cronotopo, [1998]. Disponível em:
<http://homepage.mac.com/fnavarrete2003/Bajtin%20cronotopo.pdf> Acesso em: 18 dez. 2007.
596
NAVARRETE LINARES, Federico. Op. Cit. The path from… 2000, p. 42.

241
ser analisadas separadamente, uma vez que esses conteúdos mostram diferenças também em
outros manuscritos. Na verdade a seção histórica do TR consegue ser mais heterogênea que a
maioria dos outros códices que apresentam conteúdos similares. Sob o ponto de vista de seu
conteúdo, por exemplo, Quiñones Keber afirma que ela é anômala, pois normalmente os códices
históricos apresentam uma história enfocada em um determinado grupo, mostrando soberanos e
acontecimentos locais, como é o caso do Códice Mendoza. O TR, por outro lado, retrata uma área
mais extensa, além das fronteiras de México-Tenochtitlan - seu principal foco - mostrando, por
exemplo, soberanos e eventos relacionados a outras cidades. Isso pode ser explicado, segundo
diz, pela utilização de diferentes fontes (no caso se refere a protótipos) para compor uma visão da
história das principais cidades do vale do México, especialmente México-Tenochitlan, mas
também Texcoco, Tlacopan e Tlatelolco.597

5.3. Migração

A migração do TR é uma unidade atípica de acordo com Quiñones Keber, tanto em


comparação com o restante da seção histórica do códice, como em relação a outras migrações
existentes598. Do ponto de vista interno cita os glifos anuais da migração, que possuem cores e
padrões distintos da segunda parte; o fato de faltarem as extensas anotações, que são restritas
somente aos nomes dos topônimos e números de anos; e a simplicidade das imagens, que não
possuem os ricos detalhes da segunda parte, tanto do ponto de vista artístico como de conteúdo.
Em comparação com outros manuscritos diz que nenhum outro mostra linhas de topônimos sobre
uma linha de tempo, como acontece no TR599.
Robertson por sua vez, desenvolvendo uma idéia de Barlow600, diz que a migração
"...deriva claramente de um protótipo pintado em uma longa tira. A continuidade do desenho da
tira original é quebrada pelo artista do Tellerino-Remensis para adequar o material às páginas

597
QUIÑONES KEBER, Eloise. Op. Cit., 1995, p. 194-195. Quando os espanhóis chegaram ao México a região
central e algumas áreas adjacentes eram dominadas por uma tríplice aliança entre os altépetl de México-
Tenochtitlan, Texcoco e Tlacopan. Tlatelolco era o altépetl vizinho a Tenochtitlan (ver Figura 7), submetido por
esse último no final do século XV.
598
QUIÑONES KEBER, Eloise. Op. Cit., 1995, p. 196.
599
QUIÑONES KEBER, Eloise. Op. Cit., 1995, p. 202.
600
Em QUIÑONES KEBER, Eloise. Op. Cit., 1995, p. 197.

242
individuais do códice. Como resultado dessa alteração a primeira seção da história é confusa e
difícil de ler."601 O autor afirma que essa parte combina uma história governada por signos de
tempo ("time-oriented") com outra governada por signos de lugar ("place-oriented"), o que
justificaria a confusão e a falta de claridade da relação tempo-lugar. Refere-se, então, ao fato do
caminho dos migrantes seguir muitas vezes contra a linha temporal, ou seja, ainda que a
seqüência dos glifos anuais seja lida de esquerda para direita, as pegadas em alguns casos seguem
de direita para esquerda. Por esses motivos acredita que a confusão se resolva se pensarmos que
esse conteúdo estava ordenado com base em signos de lugar, ou seja, em forma de mapa, o qual
foi transferido para um conjunto baseado em signos de tempo sem os ajustes necessários.602 Veja
na Figura 123 a reconstrução realizada pelo autor.

União das páginas 25r a 28v do TR603


Figura 123

A organização da migração baseada em signos de lugar ("place-oriented") é bastante


característica de documentos provindos da cidade de Texcoco, como o códice Xólotl, por isso
Robertson604 propôs uma origem texcocana à migração do TR. Para ele tentaram introduzir um
formato mexica ("time-oriented") num formato texcocano ("place-oriented") e por isso acredita
que este é o local de origem de um suposto protótipo utilizado por um tlacuilo ou escriba de
tradição mexica para compor a seção.
Argumentando contra essa teoria Quiñones Keber605 afirmou não ter encontrado nenhum
indício significativo que confirmasse essa hipótese, uma vez que não vê nenhuma ênfase especial
a Texcoco, cujo topônimo aparece uma única vez na migração e os governantes dessa cidade

601
ROBERTSON, Donald. Op. Cit., p. 109.
602
ROBERTSON, Donald. Op. Cit., p. 110.
603
Em: ROBERTSON, Donald. Op. Cit., p. 109.
604
ROBERTSON, Donald. Op. Cit., p. 108-115.
605
QUIÑONES KEBER, Eloise. Op. Cit., 1995, p. 127.

243
somente são representados duas vezes no que chama de 'seção dinástica' - ou seja, o período
posterior à migração e anterior à conquista espanhola -, afirmando que a história acolhua no
códice acontece de modo disperso. A análise dessa autora baseia-se no conteúdo da seção
histórica, porém entendemos que os argumentos de Robertson se referem mais particularmente à
forma e não ao conteúdo.
Mas, de qualquer modo, as migrações em forma de mapas não estão restritas a Texcoco,
pois existem manuscritos de outros locais que utilizam esse mesmo tipo de formato e organização
do espaço como, por exemplo, o Mapa Sigüenza, que mostra a migração mexica, e o Mapa de
Cuauhtlinchan 2, de Cuauhtinchan (estado de Puebla); ambos na Figura 124.

Mapa Sigüenza Mapa Cuauhtinchan 2


Figura 124

A migração do TR para Quiñones Keber606 é o resultado da combinação de imagens de


diferentes migrações, as quais estavam baseadas em variados tipos de organização. Para a autora,
tanto na migração como na segunda parte da seção histórica foram mesclados conteúdos das
cidades de México-Tenochtitlan, Tlatelolco, Texcoco e Tlacopan. Essa hipótese é corroborada
pelas conclusões de Navarrete Linares607, quem identificou diferentes rotas na migração de nosso

606
QUIÑONES KEBER, Eloise. Op. Cit., 1995, p. 202.
607
NAVARRETE LINARES, Federico. Op. Cit. Mito, historia… 2000, p. 164.

244
códice que podem estar relacionadas com as tradições históricas dos altépetl citados por
Quiñones Keber.
Essas variações no formato e no modo de organizar os relatos históricos são compatíveis
com o caráter pluralista das tradições mesoamericanas. A existência de 'gêneros históricos'
associados a tradições étnicas segundo Navarrete Linares, é sugestiva, pois:

"correspondían a las necesidades narrativas e temáticas de cada tradición: los mexicas daban gran
importancia a su migración, por eso encontraron una manera de narrarla que enfatizaba la unidad
y continuidad de su viaje; en cambio, los acolhuas daban importancia a la repartición del linaje de
Xólotl en diversas dinastías gobernantes establecidas en los distintos altépetl del Valle del México
y por eso desarrollaron un tipo de narración que podía mostrar simultáneamente sucesos y
genealogías en varios lugares. Eso quiere decir, a mi juicio, que cada una de las tradiciones
históricas indígenas definió géneros escritos propios para la historia de su altépetl."608

Comparando as duas partes dos anais históricos do TR é possível notar diferenças


bastante significativas quanto à organização do espaço. Concordamos com Navarrete Linares
sobre a utilização de gêneros históricos distintos para cada 'era' ou período da história mexica
especificamente. No entanto, as diferenças entre essas duas partes de nosso códice não podem ser
explicadas pelo uso de gêneros específicos, pois quando incluímos na seqüência os fólios
perdidos, que existem ainda no Códice Vaticano A, a ruptura entre as duas partes não parece ser
tão evidente. No Vaticano A somente mais uma página será similar à forma utilizada na migração
(71r). A partir da página seguinte, sobre a estadia em Chapultepec (71v), as cores dos glifos
anuais e sua disposição no espaço das páginas se assemelham mais à segunda parte da história
que à migração. Para que possamos analisar a disposição dos glifos anuais dispusemos na Figura
125: as duas últimas páginas da migração do TR, seguidas pelas do Vaticano A (que faltam no
TR) e finalizadas com a primeira página da segunda parte dos anais do TR609.

608
NAVARRETE LINARES, Federico. Op. Cit. Mito, historia… 2000, p. 47.
609
Essa última (29r) é a página 74r do Vaticano A, idêntica à do TR, assim como todas as seguintes.

245
Organização dos glifos de anos no Telleriano Remensis (TR) e Vaticano A610 (Vat. A)
Figura 125611

Como pode ser visto na imagem, a partir da página 71v do Códice Vaticano A as cores
utilizadas para os glifos anuais são iguais às da segunda parte dos anais do TR e distintas
daquelas usadas na migração. O número de glifos anuais inseridos em cada página, tanto no
sentido horizontal como vertical varia em cada uma das páginas que utilizam glifos
vermelho/azuis, enquanto as que possuem amarelo/vermelhos são formadas por grupos de 10,
apesar de na última página ter sido inserido um grupo de 10 adicional (disposto verticalmente). A
Quiñones Keber612 lhe parece estranho que sejam utilizados grupos de 10 glifos na migração do
TR, pois se trata de um intervalo de tempo incomum para as culturas meoamericanas e comum
nas culturas européias, o que segundo ela, indica que os glifos anuais foram artificialmente
agrupados nessa seção.
É possível que os glifos anuais da migração tenham sido inseridos para que pudesse unir-
se à seqüência temporal iniciada a partir da página 71v do Vaticano A, que se assemelha à
migração do Códice Boturini, por exemplo, que possui uma seqüência que intercala topônimos e
eventos com blocos de signos anuais lidos de forma serpenteada. Veja Figura 126, abaixo.

610
Numeração de páginas do Vaticano A de acordo com: ANDERS, Ferdinand; JANSEN, Maarten. Codex Vaticanus
3738. Facsímil del Codex Vatic. Lat. 3738 de la Biblioteca Apostólica Vaticana. Graz (Austria): Akademische
Druck- u. Verlagsanst (ADEVA), 1996.
611
As páginas do TR representadas no esquema também foram copiadas no Vaticano A.
612
QUIÑONES KEBER, Eloise. Op. Cit., 1995, p. 205.

246
Códice Boturini613
Figura 126

Aparentemente a migração do TR (e Vaticano A), foi copiada de documentos que


possuíam formas distintas de organização do espaço. O códice não possui uma ruptura no final da
migração, mas depois da página que sobreviveu no Vaticano A, a 71r, isso no que se refere à
organização dos signos anuais. Quanto às imagens centrais, a partir da própria 71r (Figura 127)
já se inicia uma modificação no conteúdo, onde são representados também eventos relacionados à
migração, não somente topônimos e guerreiros. Por isso, pensamos que é possível que a partir da
página 71r tenham sido utilizadas fontes mexicas similares ao Códice Boturini para a coleta de
informações ou cópia direta do conteúdo, enquanto para o conteúdo anterior devem ter sido
usados diversos documentos, uma vez que representa rotas de migração de distintas tradições.

Página 71r Vat. A614 Página 71v Vat. A615 Página 72r Vat. A616
Figura 127

613
Desenho de: NAVARRETE LINARES, Federico. Op. Cit. The path from… 2000, p. 32.
614
Codex Vaticanus 3738. Facsímil del Codex Vatic. Lat. 3738 de la Biblioteca Apostólica Vaticana. Graz (Austria):
Akademische Druck- u. Verlagsanst (ADEVA), 1996.
615
Idem Ibidem.
616
Idem Ibidem.

247
5.3. As rotas da migração do TR

Segundo Navarrete Linares, o único modo de tornar mais compreensíveis as rotas da


migração do TR, consideradas anômalas por Quiñones Keber617, é pensar que nela são
representadas migrações de distintos grupos. Identifica, então, 5 diferentes rotas na migração do
códice: o primeiro grupo vai de Ayahualolco até Tlatoltépetl; o segundo parte de Tzompanco,
passa por Ehecatépetl, onde se divide em dois grupos, um que vai para Tetzcoco e outro para
Tecpayocan; o terceiro sai de Tecpayocan até Tetzcoco; o quarto parte de Tecpayocan e seguem
para México-Tenochtitlan (que somente existe no Códice Vaticano A); e um quinto grupo que
parte de Tlaxcala até Tetzcoco.618
Essa hipótese torna compreensível o conteúdo dessa seção e esclarece inclusive o porquê
de determinadas diferenças, como entre os escudos de alguns dos personagens. De qualquer
forma é obvio que o tlacuilo que realizou a seção teve imensas dificuldades para unir tais
conteúdos nos mesmos espaços, ou pelo menos teve dificuldades em incluí-los em um formato
em códice. Provavelmente isso não acontece somente por causa das variadas rotas, mas também
porque algumas delas tinham um modo distinto de ser organizadas, ou esse modo era diferente
daquele que o próprio tlacuilo estava habituado, referente à sua própria cultura. Além disso, as
trajetórias identificadas parecem demonstrar apenas uma parte da migração de alguns grupos
referidos e na migração do grupo mexica que fundou México-Tenochtitlan é realizada uma
ruptura entre as duas primeiras páginas e as seguintes. Também entre as três primeiras páginas e
o restante do conteúdo ocorreu uma modificação na forma de organizar o espaço,
especificamente no modo de distribuir os topônimos, sendo incluídos a partir daí somente
topônimos dos lugares que fazem parte das paradas dos migrantes. Veja Figura 128, abaixo.

617
QUIÑONES KEBER, Eloise. Op. Cit., 1995, p. 196.
618
NAVARRETE LINARES, Federico. Op. Cit. Mito, historia… 2000, p. 164.

248
Esquema das distintas rotas de migrações do TR
Figura 128

Na Figura 128 estão diferenciadas por cores as rotas de migrações presentes no códice,
porém nelas não é possível identificar rotas de todos os altépetl citados por Quiñones Keber e
Navarrete Linares, ou seja, México-Tenochtitlan, Tlatelolco, Texcoco e Tlacopan. A migração
mexica-tenochca parece estar fragmentada, pois Michuacan ou Michoacán é um dos locais
importantes de passagem da migração desse grupo, que aparece interrompido no códice (rota em
azul claro, páginas 25r e 25v) e Ayavalulco é um local absolutamente estranho para se iniciar a
rota.
Na página 25r aparece pela primeira vez um personagem identificado pelo anotador como
Huitzlopochtli, o qual carrega um escudo vermelho e um envoltório sagrado ou tlaquimilolli619,
que voltarão a ser portados por um personagem a partir da página 27r.
Na página 26r se inicia novamente uma rota em Tzompanco. Esse altépetl é outro local
importante na migração mexica-tenochca. Dali os migrantes seguem até Ehecatepec, onde o
grupo se divide, sendo que um deles se dirige para Texcoco e depois retorna para Tzompanco
(indicado no esquema pelas pegadas vermelhas), enquanto o outro segue outra parte da rota
mexica-tenochca, que no TR se encerra na página 28v, mas que no Códice Vaticano A culmina
com a fundação de México-Tenochtitlan. A rota em vermelho, portanto, mostra uma parte da
migração dos mexica-tenochcas. O personagem que representa esse grupo porta o escudo
vermelho e o tlaquimilolli utilizados por aquele identificado como Huitzlopochtli na página 25r.
Curiosamente ele sempre aparece caminhando com o arco e as flechas baixos enquanto outros
personagens estão em posição de combate com outras figuras que aparecem flechadas, indicando

619
Os tlaquimilolli eram mantas ou tecidos enrolados que guardavam objetos sagrados ou relíquia, usadas para a
comunicação com as deidades. Eles aparecem com freqüência nas histórias de migração e representam as deidades
tutelares, que são carregadas pelos teomamas ou sacerdotes, que eram a ponte entre o grupo e o deus que lhes
indicava o caminho que devia ser seguido na migração. (NAVARRETE LINARES, Federico. Op. Cit. Mito,
historia… 2000, p. 192).

249
que foram conquistados. Isso acontece inclusive na última página (28v), onde estiveram de fato
em guerra, segundo outras versões dessa migração.
Em Tecpayocan, enquanto o grupo representado pela figura de escudo vermelho continua
o caminho pelas páginas seguintes, perdidas no TR, outro retorna, dirigindo-se para Coatepec e
depois Texcoco (em azul escuro, páginas 28v até 26v). Nessa rota um único personagem é
mostrado na página 26v, onde aparentemente conquista Coatepec. Esse guerreiro porta um
escudo gradeado e uma aljava.
Já a rota em verde é completamente estranha às migrações conhecidas dos grupos do vale
do México. Aparentemente mostra um grupo que saiu de Tlaxcala, segundo Navarrete Linares620,
ou Texcala (estado de Morelos), segundo Quiñones Keber621, e se dirigiu a Texcoco. Caso se
refira de fato a Tlaxcala, parece que havia uma relação de parentesco entre tlatoques de Tlaxcala
e Texcoco, pois Ixtlilxóchitl622 diz que o primeiro senhor de Tlaxcala, Xiuhquezaltzin, era um dos
filhos de Tlotzin e, portanto, irmão de Quinatzin, que por sua vez era avô de Nezahualcoyotl,
quem se aliou com os mexicas de México-Tenochtitlan e tepanecas de Tlacopan na tríplice
aliança que dominaria o vale e outras regiões até a chegada dos espanhóis. Os guerreiros
conquistadores dessa rota de migração são mostrados de forma idêntica aquele que conquista
Coatepec e se dirige para Texcoco (rota azul escura), portando escudos gradeados e aljava. Eles
aparecem de modo bastante militarista, uma vez que empreendem lutas e conquistam todos os
altépetl por onde passam.
Quiñones Keber623 tentou localizar no mapa de México os altépetl que aparecem na
migração do TR e curiosamente vários deles se localizam na região sul do atual estado de Puebla.
Alguns inclusive também se encontram nas rotas da Historia Tolteca-Chichimeca, relacionada a
essa mesma região, e com o qual a migração do TR tem algumas outras coisas em comum.
É bastante interessante que o início da migração do TR apresente topônimos alinhados na
base até sua terceira página, o que coincide com a forma de organização de algumas seqüências
da Historia Tolteca-Chichimeca624 (veja Figura 129). Outra característica é a constante utilização
do pictograma 'cerro' na representação dos topônimos. Nas histórias mexicas muitos dos

620
NAVARRETE LINARES, Federico. Op. Cit. Mito, historia… 2000, p. 164.
621
QUIÑONES KEBER, Eloise. Op. Cit., 1995, p. 203.
622
IXTLILXOCHITL, Fernando de Alva. Obras Históricas. Tomo I - Sumaria relación. México: Editora Nacional,
1965, p. 284.
623
QUIÑONES KEBER, Eloise. Op. Cit., 1995, p. 203.
624
No caso da História Toteca-Chichimeca esse tipo de alinhamento marca os limites territoriais do altépetl em
questão.

250
topônimos não possuem esse pictograma, enquanto sua utilização é bem mais freqüente nos
documentos da região poblana. Também podemos incluir aqui o enfoque nas conquistas
realizadas ao logo do caminho, especialmente na última rota, bastante comum nas histórias de
migração desse último códice, pois as migrações 'descritas' na história Tolteca Chichimeca têm
uma conotação bastante bélica e ainda o fato dos locais conquistados serem indicados com
guerreiros flechados, o que igualmente acontece na História Tolteca-Chichimeca.

Historia Tolteca-Chichimeca (páginas 32v e 33r)625


Figura 129

O caráter bélico da migração do TR, para Quiñones Keber626, contrasta com o registro do
início da migração de outros manuscritos, onde outros tipos de eventos também são inseridos. De
fato, diferentes manuscritos mexicas incluem outros tipos de eventos além dos enfrentamentos
bélicos mostrados no TR, porém essa autora não analisou separadamente as rotas de migração, as
quais foram, por outro lado, referidas por Navarrete Linares627. O caráter demasiado belicista
inexistente nas rotas de migração do grupo mexica que fundou México-Tenochtitlan em outros
códices também não existe no TR, uma vez que o personagem que representa essa tradição não é
representado em posição de enfrentamento - como acontece com outros grupos (especialmente os

625
Em: LEIBSOHN, Dana. Primers for Memory: Cartographic Histories and Nahua Identity. In: BOONE, Elizabeth
Hill; MIGNOLO, Walter D. (editores). Writing without words: alternative literacies in Mesoamerica & the Andes.
Durham and London: Duke University Press, p. 161-187, 1994, p. 170.
626
QUIÑONES KEBER, Eloise. Op. Cit., 1995, p. 205.
627
NAVARRETE LINARES, Federico. Op. Cit. Mito, historia… 2000, p. 164.

251
representados em verde na Figura 128) -, apesar de sempre portar o escuro, o arco e as flechas,
símbolos de seu caráter guerreiro.
Para Quiñones Keber: "...discrepancies between the chronology, migration stops, names
of migrating groups, format and style in the migration story of the Codex Telleriano-Remensis
and other more canonical Aztec versions highlights its differences and confirm its non-Aztec
origin."628 Segundo a autora: "The emphasis on Chichimec origins and the groups enumerated
suggest that the source of the migration section was not the Basin Mexico. Since several of the
groups relate to the vicinity of present-day Puebla and the neighboring region, it is this area rather
than the Basic Mexico that was very likely the origin of the migration section.629"
Assim, a autora citada acredita que a migração de nosso códice é originária da região de
Puebla, com o que estamos de acordo. Contudo, pensamos que mais do que utilizar fontes de
altépetl dessa área a semelhança se deve porque o tlacuilo que realizou essa parte do códice deve
ter pertencido a alguma de suas tradições. Isso explicaria a fragmentação que realiza na migração
dos mexicas fundadores de México-Tenochtitlan; a indicação de lugares estranhos de paradas dos
migrantes; e o enfoque dado a outras migrações, especialmente aquela que pode se relacionar a
seu grupo (rota em verde na Figura 128), conectando-o a Texcoco, um dos principais centros de
poder do México Central antes da chegada dos europeus.

5.4. Segunda parte dos Anais

O enfoque dos códices de tradição mexica depois da fundação de México-Tenochtitlan é


dado à história dinástica, possivelmente porque disso dependia a legitimidade do poder dos
tlatoque, uma vez que todos necessitavam reconhecer o direito de governar desses soberanos.

"Las dinastías de tlaloque de los altépetl del Valle de México se enorgullecían de su origen
chichimeca, pero también, como en el resto de mesoamérica, debían tener vínculos directos con
una dinastía de origen tolteca, descendiente del mismo Quetzalcóatl. Por ello las tradiciones

628
QUIÑONES KEBER, Eloise. Op. Cit., 1995, p. 205.
629
QUIÑONES KEBER, Eloise. Op. Cit., 1995, p. 204.

252
históricas indígenas describen con detalle los pactos políticos y dinásticos que permitieron a los
chichimecas adquirir una prosapia tolteca".630

O conteúdo dessa parte dinástica nos códices que mais seguramente pertencem à tradição
mexica se concentra nos períodos de poder desses tlatoanis e nas conquistas que foram
empreendidas durante seus governos, um enfoque bastante distinto da migração. "De ahí que los
códices que tratan de este periodo adopten convenciones narrativas radicalmente diferentes, como
la representación de las conquistas (no del camino) y la periodización en función de la coronación
y la muerte de los tlatoque (y no en función de la estancia y partida de lugares).631 A migração
tenochca por um lado e a história de Tenochtitlan depois de sua fundação por outro são
representadas de maneira distinta no Códice Aubin, por exemplo. Em alguns casos esses formatos
e/ou formas de organizar os conteúdos devem refletir práticas pré-hispânicas, mas também
podem ser o resultado de adaptações coloniais, como afirma Nicholson.632 As alterações que
ocorrem na organização dos conteúdos da segunda parte dos anais do TR poderia ser um exemplo
do segundo caso.
O início da segunda parte dos anais em nosso códice é organizado de um modo similar ao
do final da migração, que sobreviveu somente no Códice Vaticano A, no entanto, após algumas
páginas a disposição dos conteúdos é modificada. As rupturas na forma de organização do espaço
na seção histórica do TR ocorrem em locais absolutamente distintos dos outros manuscritos com
conteúdos similares, pois o mesmo acontece com a migração.
Os eventos históricos na segunda parte dos anais são estruturados de acordo com a
distribuição dos glifos anuais. Veja Figura 130. A partir da página 32v eles são representados
sempre no lado superior das páginas e em números que variam de 2 a 4. Porém, antes dessa
página há algumas variações, como pode ser visto também na Figura 130. Primeiramente a
organização dos glifos segue o padrão que vinha sendo utilizado na página 73v do Códice
Vaticano A (Figura 125), da fundação de México-Tenochtitlan (supõe-se que também existia no
TR). Tanto no Vaticano A como no TR essa estrutura em forma de 'U' é usada quando há poucos
eventos a serem registrados nos anos ali representados, caso contrário nos dois códices é utilizada

630
NAVARRETE LINARES, Federico. Op. Cit. Mito, historia… 2000, p. 41.
631
NAVARRETE LINARES, Federico Diálogo con M. Bajtin sobre el cronotopo, [1998]. Disponível em:
<http://homepage.mac.com/fnavarrete2003/Bajtin%20cronotopo.pdf> Acesso em: 18 dez. 2007.
632
NICHOLSON, H. B. Op. Cit., 1971, p. 47-48.

253
uma formação em 'L'. Aparentemente a partir da página 31v decidiu-se manter o alinhamento dos
glifos em sentido horizontal no lado superior das páginas. Suspeitamos que esta tenha sido uma
opção em prol da melhor compreensão do conteúdo pelos futuros usuários europeus do códice -
uma adaptação realizada pelo próprio tlacuilo ou solicitada pelo patrono ou patronos do
documento.

Organização dos glifos anuais nas primeiras páginas da segunda parte dos anais do TR
Figura 130

Vale relembrar que os glifos anuais das páginas 29r e 29v foram desenhados pelo tlacuilo
6 e não pelo 4, quem pintou a maioria das imagens da segunda parte dos anais. E é justamente na
página onde o tlacuilo 4 começou a desenhar os glifos que ocorre uma anomalia que necessita ser
analisada com mais cuidado: na página 30v a maioria dos signos são desenhados invertidos,
enquanto em todas as outras páginas, anteriores e posteriores, são realizados de pé. Veja primeira
imagem da Figura 131.

254
Página 30v do TR Página 31r do TR
Figura 131

Os signos da primeira linha vertical, assim como os três primeiros da linha horizontal da
página 30v são representados de ponta cabeça, enquanto os dois últimos signos dessa última
seqüência e aqueles da seguinte linha vertical (do lado direito da página) foram posicionados de
pé. Possivelmente o tlacuilo 4 iniciou o trabalho utilizando uma orientação tradicional, pois uma
forma similar de organização e orientação espacial dos glifos pode ser vista na seqüência do
xiuhmolpilli do Códice Borbônico (Figura 132)633. Como na própria página 30v a posição dos
signos é "corrigida" para estar de pé pode-se supor que tenha ocorrido uma intervenção externa,
solicitando que o tlacuilo utilizasse uma orientação mais comum à cultura européia. Já na página
seguinte, 31r (Figura 131), todos os signos são desenhados de pé e inclusive a forma de dispor as
caixas é distinta.

633
Em outros códices, como o Quinatzin, por exemplo, podem ser vistas representações orientadas de acordo com o
centro da página, ou seja, a base voltada para o centro.

255
Códice Borbônico - página 19634
Figura 132

Além disso, nessas duas primeiras páginas onde começa a desenhar os glifos o tlacuilo 4
os coloca bem próximos às bordas dos fólios, deixando uma margem menor que a utilizada pelo
tlacuilo 6 na 29r e 29v. Também há diferenças entre as caixas onde são inseridos os signos dos
glifos anuais, que possuem um formato mais retangular na 30v e 31r.
Essas ocorrências comprovam que o tlacuilo 4 foi adaptando formas mais tradicionais de
organização às exigências e/ou necessidades dos usuários a quem o documento iria servir.
Levando em consideração o modo como o conteúdo colonial do códice está organizado, que é
idêntico ao empregado a partir da página 32v do conteúdo dinástico, é possível dizer que essas
alterações na disposição dos glifos podem ser um indício de que esse último conteúdo também
não estava sendo copiado de um protótipo, pelo menos não no que se refere à organização do
espaço. Quer dizer, já que certamente não havia manuscritos tradicionais (ou seja, pré-hispânicos)
que contivessem o conteúdo relativo à história colonial, supõe-se que este deve ter sido uma
contribuição do tlacuilo 4, pintado exclusivamente para o TR.635 E como as páginas da história
colonial possuem o mesmo modo de organizar os glifos anuais encontrados a partir da 32v - onde
são representados acontecimentos pré-hispânicos -, é possível supor igualmente que talvez o
conteúdo dessas páginas tenha sido também realizado exclusivamente para o TR.

634
Disponível em: <http://www.famsi.org/spanish/research/graz/borbonicus/index.html>
635
Uma hipótese defendida por: QUIÑONES KEBER, Eloise. Op. Cit., 1995, p. 198.

256
Quiñones Keber636 afirma que essa mudança que ocorre na disposição dos glifos a partir
da página 31v foi realizada para que restasse mais espaço para as anotações. No entanto, ainda
que essa possa ter sido uma das razões, acreditamos que não foi a principal, pois as anotações
nem sequer ocupam todo o espaço disponível deixado para elas nas páginas anteriores. É mais
provável que a modificação tenha sido motivada por uma maior clareza na exposição dos
conteúdos, para torná-los menos confusos a um 'leitor' europeu. Pensamos isso porque a
vinculação dos eventos aos anos correspondentes a partir da página 31v é bem mais simplificada
que nas páginas anteriores, onde as imagens são centralizadas nas formações em 'U' ou dispersas
pelas páginas. Como vimos no capítulo III algumas ou muitas das linhas negras conectando as
imagens aos glifos anuais correspondentes podem ter sido adicionadas depois, especialmente no
que se refere às primeiras páginas realizadas pelo tlacuilo 4. Inclusive, nas páginas 30v e 31r as
linhas negras parecem estar por cima dos textos e se isso de fato ocorreu elas foram adicionadas
muito tempo depois da realização das imagens, quando já tinham sido inseridos uma parte ou
todos os textos do último anotador.
Enfim, deve ter parecido confuso a um usuário ocidental a disposição dos glifos em
formato de 'U' ou 'L', sem qualquer pista sobre a organização dos eventos representados nas áreas
centrais. Por isso, parece mais provável que a alteração na organização do espaço dessas páginas
tenha ocorrido em função dessa problemática que da necessidade de mais espaço para a
colocação dos textos em caracteres latinos.
Sendo assim, ainda que o tlacuilo estivesse utilizando um protótipo para a realização das
páginas da seção a partir da 31v, e mais particularmente da 32v, possivelmente a organização
espacial do conteúdo não devia estar sendo copiada ipsis literis para o TR, uma vez que a
mudança na forma de organizar os glifos entre essas páginas e as anteriores - do final da
migração do Vaticano A e início da segunda parte dos anais do TR, que se assemelham mais às
estruturas tradicionais - não marcam nenhuma mudança de era, de enfoque ou tipo de conteúdo
que pudesse justificar a utilização de uma convenção narrativa distinta.
A estrutura dos glifos anuais do final da migração do Vaticano A e segunda parte da
história do TR - em sentido vertical e leitura serpenteada - é bastante similar à forma de
organização utilizada no Códice Boturini, que pertence à tradição cultural mexica. Infelizmente

636
QUIÑONES KEBER, Eloise. Op. Cit., 1995, p. 217.

257
não sobreviveu nenhum códice histórico pré-hispânico mexica637 para que pudéssemos efetuar
uma comparação, porém, a estrutura do códice citado, a ordem de leitura e disposição de alguns
outros conteúdos nos códices pré-hispânicos e coloniais e o fato desse tipo de organização não ser
uma prática européia leva-nos a crer que esta seja de fato uma convenção indígena.
No caso da segunda parte dos anais é possível dizer que a alteração na organização do
espaço foi ainda mais profunda do que a que ocorreu no tonalpohualli, por exemplo, pois não
foram somente o formato em códice, o papel retangular e a necessidade de se deixar espaço para
as anotações os responsáveis pelas modificações no aspecto visual da seção, mas também uma
opção de mudar a disposição e sentido de representação das imagens no suporte para torná-lo
mais compreensível ao usuário europeu.
A análise da organização e ordem de leitura dos glifos anuais de alguns códices em
comparação com o TR pode ilustrar um pouco melhor essa questão da estrutura das páginas. O
Códice Aubin, por exemplo, apresenta uma forma de organização muito similar ao Códice
Boturini (Figura 126) na parte da migração, agrupando os glifos anuais em blocos, intercalados
com as paradas dos migrantes e alguns eventos. Apesar disso, a ordem de leitura desses blocos de
glifos já se encontra bastante influenciada pela ocidental. Primeiro porque o sentido de leitura é
de esquerda para direita, ou seja, não possui o sentido serpenteado de leitura; segundo porque
sempre é representado um único signo no topo para restar espaço para a colocação de textos; e
terceiro porque estão organizados sucessivamente do mesmo modo, com os glifos no lado
superior e topônimos no inferior, com exceção dos locais onde os migrantes permaneceram muito
tempo, onde necessitaram distribuir as imagens em mais de uma página. Veja o primeiro
esquema da Figura 133. No caso da seção dinástica e colonial a leitura é sempre feita no sentido
topo-base com agrupamentos máximos de 5 glifos em cada página, quantidade certamente
influenciada pela cultura européia (segundo esquema da Figura 133). O número de glifos é
menor quando há muitos eventos a serem inseridos em determinados anos, resultando muitas
vezes na representação de um único glifo em algumas páginas.

637
Todos os códices históricos pré-hispânicos que chegaram até nós são mixtecos e procedem da região de Oaxaca,
como o Códice Nuttall e Vindobonensis, por exemplo. Todos os códices de provável origem mexica foram
confeccionados no período colonial.

258
Códice Aubin - parte da migração

Códice Aubin, a partir da fundação de Tenochtitlan


Figura 133

O mesmo tipo de leitura topo-base da seção dinástica do Códice Aubin ocorre no Códice
Mendoza (Figura 134), porém aqui a leitura continua em sentido anti-horário até alcançar outra
vez o topo da página, nos casos onde o número de glifos é grande o suficiente para isso (como
acontece na página da fundação de México-Tenochtitlan), ou seguem em sentido esquerda-direita
quando chegam na base até alcançar a página seguinte (duas últimas páginas no esquema da
Figura 134). Essa ordem é utilizada inclusive na lista de topônimos da seção tributária e
possivelmente se trata de uma forma tradicional de organização.
O Códice Mendoza mostra o que Nicholson638 chamou de 'listas dinásticas', onde o
período de governo e conquistas de cada soberano é apresentado separadamente, com os glifos
anuais agrupados de acordo com o número de anos de governo de cada um dos tlatoanis.

638
NICHOLSON, H. B. Op. Cit., 1971, p. 47-52.

259
Códice Mendoza (representadas somente as páginas com glifos anuais)
Figura 134

O códice Mexicanus por sua vez é orientado por uma contínua linha temporal de glifos
anuais (lidos de esquerda para direita) conectados aos sucessivos soberanos, conquistas e outros
eventos. Nesse caso, ainda que seja representado um longo período - que engloba a migração, o
período dinástico (período após a fundação de Tenochtitlan) e o colonial - não existe quebra na
linha temporal; ou seja, todos os conteúdos são estruturados da mesma forma. As diferenças mais
marcantes nesse caso ocorrem na migração, onde são utilizadas as marcas de pé, que mostram o
deslocamento espacial, e uma linha rosa indicativa do período de estadia em cada local (Figura
135).639

Códice Mexicanus (início da migração)640


Figura 135

É difícil dizer se esse tipo de organização do conteúdo é nativo ou influenciado pelas


convenções européias. Como a estrutura das histórias muda de uma tradição cultural para outra é
possível que essa fosse uma forma utilizada por algum grupo, especialmente por causa do modo
como foram utilizadas as pegadas e as linhas rosas para conectar espaço e tempo nesse
manuscrito.
No caso dos códices Vaticano A e TR a disposição e forma de leitura dos glifos anuais em
algumas partes se assemelham às do Códice Boturini (Figura 126), como dissemos acima e,
portanto, de convenções narrativas de grupos mexicas e parecem possuir uma estrutura mais

639
NAVARRETE LINARES, Federico. Op. Cit. The path from… 2000, p. 32-33.
640
Desenho de: NAVARRETE LINARES, Federico. Op. Cit. The path from… 2000, p. 33.

260
tradicional. Isso acontece no final da migração, cujo conteúdo existe somente no Vaticano A, e
início da segunda parte dos anais dos dois códices. Observe Figura 136. A quantidade de glifos
representada aparentemente depende dos eventos históricos, pois onde há poucas ocorrências a
serem registradas existe uma aglomeração maior de glifos anuais, enquanto outras páginas sequer
os possuem (por exemplo, a 30r do TR).

Sentido de leitura das últimas páginas da migração do Cod. Vaticano A641 e início da segunda parte dos anais do TR
Figura 136

Representamos em cores as páginas que pensamos possuir maiores influências européias


na forma de organização e distribuição dos glifos anuais. A primeira página do esquema possui
uma organização em grupos de 10 glifos (10 no sentido horizontal e 10 no vertical), que dá
seguimento à estrutura usada nas páginas anteriores, com exceção de que nessa página
acumulam-se duas seqüências de 10 glifos ao invés de uma. Como dissemos acima, essa
quantidade associada à distribuição regular por página, ou seja, exatos 10 glifos em cada página
sugerem uma inclusão 'artificial', de acordo com Quiñones Keber642, e não parece ser uma forma
indígena de organização. Igualmente, na página 31v e nas seguintes a distribuição dos glifos e
também a disposição dos eventos podem estar bastante alterados, especialmente porque as linhas
temporais dos glifos dos anos ganham maior importância que nas páginas anteriores.
De qualquer modo, ainda que conteúdos históricos orientados por linhas ou seqüências
temporais serpenteadas, semelhantes às utilizadas no final da migração do Vaticano A e princípio
da segunda parte dos anais do TR, pareçam ser um tipo de convenção narrativa utilizada
tradicionalmente por grupos mexicas, é possível que seu uso tenha se ampliado durante o período
colonial, por ser de fácil compreensão aos 'leitores' europeus. Na verdade o TR possui duas
páginas que se assemelham muito aos códices históricos em formato de mapa. As páginas 29v e
30r (Figura 4) de nosso códice são de difícil interpretação, principalmente devido à dificuldade

641
Codex Vaticanus 3738. Facsímil del Codex Vatic. Lat. 3738 de la Biblioteca Apostólica Vaticana. Graz (Austria):
Akademische Druck- u. Verlagsanst (ADEVA), 1996.
642
QUIÑONES KEBER, Eloise. Op. Cit., 1995, p. 205.

261
de compreensão de sua estrutura e ordem de leitura. Em nossa opinião elas se relacionam
estreitamente com alguns grupos de imagens das últimas lâminas do Códice Xólotl, por exemplo.
Veja Figura 137.

Códice Xólotl (lâmina 9)


Figura 137

Para Quiñones Keber643 o conteúdo dessas 2 páginas do TR foi copiado de um manuscrito


genealógico, porém, é sabido que em muitos dos chamados códices históricos estão representados
também genealogias. Sobre esse assunto Escalante Gonzalbo afirma que:

"Aunque es probable que ciertos códices fueran exclusivamente genealógicos y se los empleara
para regular las alianzas matrimoniales entre las familias nobles de diferentes señoríos, los
documentos que han llegado hasta nosotros, tanto prehispánicos como coloniales, combinan la
información genealógica con datos históricos y geográficos."644

643
QUIÑONES KEBER, Eloise. Op. Cit., 1995, p. 214.
644
ESCALANTE GONZALBO, Pablo. Los Códices. México: Consejo Nacional para la Cultura y las Artes, 1999.
Disponível em: <http://copernico.mty.itesm.mx/phronesis/archi_txt/codices.txt> Acesso em: 10 dez. 2007.

262
É possível considerar, então, que a segunda parte dos anais do TR pode ser um tipo de
adaptação em formato de anais - ou seja, eventos orientados em função de seqüências temporais -
de conteúdos históricos que normalmente eram representados em formato de mapa. Isso
explicaria o porquê dos poucos eventos relatados no início dessa parte do códice - onde a
descendência das linhagens de governantes devia ocupar uma posição de destaque -, bem mais
escassos que aqueles próximos ao período colonial ou à própria história colonial.
A necessidade de tornar as histórias mais acessíveis aos usuários europeus pode ter
causado simplificações nos conteúdos, como a eliminação das informações genealógicas, por
exemplo - por terem sido consideradas incompreensíveis e desnecessárias a olhos europeus -, as
quais somente foram inseridas nas páginas 29v e 30r, justamente no início do trabalho do tlacuilo
4.

6. Conclusões

Todas as seções do códice, independentemente das organizações particulares de cada uma


de suas partes, sofreram as conseqüências da adaptação de conteúdos nativos ao suporte e
formato de livro europeu. Algumas seções foram mais alteradas em virtude do tipo de
organização que possuíam tradicionalmente. Em comparação com os códices mixtecas a
organização das pictografias tem um aspecto visual mais "arejado", no entanto essa diferença não
é tão radical se comparamos o TR com alguns códices mais tradicionais da região central do
México, como o Borbônico e o Boturini, por exemplo, mostrando que esse aspecto poderia até
certo ponto representar opções locais. Porém, é claro que em muitos códices coloniais, como o
TR, essas partes em branco tornam-se bem mais evidentes por causa da necessidade de se deixar
espaços para os textos em caracteres latinos. Assim, se comparado com os códices pré-hispânicos
ou com os coloniais mais tradicionais, especificamente aqueles que não foram planejados para
restar espaços significativos para as anotações, esse aspecto talvez seja a alteração que mais afete
a aparência visual do TR em relação aos manuscritos tradicionais.
Em relação a esse aspecto é provável que o xiuhpohualli seja a seção do códice que mais
sofreu alterações. Os textos nessa seção são mais extensos que nas outras e ocupam uma posição

263
mais relevante. A representação das figuras isoladas no topo das páginas dá uma aparência mais
próxima aos livros europeus que a códices indígenas, e nesse caso podem ter sido consideradas
meras ilustrações dos "meses". No entanto, não acreditamos que as veintenas se tratem de
criações coloniais. As grandes variações existentes entre elas devem ocorrer por haver mais de
uma forma de representá-las no período pré-hispânico, por exemplo, em forma de ritos e em
forma de signos-meses, e devido a distintos modos de adaptar esses conteúdos aos formatos,
suportes e necessidades européias.
Os signos-meses (glifos simplificados representativos das veintenas) devem ter sido
empregados no período pré-hispânico da mesma forma que se encontram na segunda parte dos
anais do TR. Porém, as veintenas representadas por uma única figura, como as de nosso códice,
podem ser um tipo de simplificação sofrido pelos xiuhpohualli no período colonial. Mesmo que
fossem assim representadas antes da conquista, certamente não teriam o mesmo aspecto visual
que possuem no TR.
No tocante ao tonalpohualli, algumas das diferenças que existem entre nosso códice e os
outros que possuem esse mesmo conteúdo podem ter ocorrido devido às variações existentes
entre as diferentes tradições indígenas, como a inclusão ou não de seqüências de elementos nas
faixas gradeadas em formato de L e a inserção dos numerais junto com os glifos dos dias, porém
a maioria é fruto das adaptações ao suporte e usuários. A opção pelo sentido de leitura esquerda-
direita, que coincide com o sentido de leitura utilizado pelos futuros usuários, certamente foi
planejada. Porém, o sentido de leitura não representou uma alteração significativa porque não
alterou a estrutura tradicional das trecenas e aparentemente havia bastante liberdade nesse
aspecto durante o período pré-hispânico.
A alteração mais evidente no caso do tonalpohualli é a distribuição das trecenas em duas
páginas e o espaço deixado para a colocação de textos, que vieram atender às necessidades dos
usuários europeus, que precisavam de textos explicativos, e do novo tipo de suporte, que exigia
alguns procedimentos, como a inclusão de margens, que acabou por alterar aspectos tradicionais
desse conteúdo nativo. Essas modificações deram uma aparência visual mais "arejada" à seção,
que a difere dos manuscritos que também possuem esse conteúdo.
Já a falta dos itens acessórios na área central de cada trecena pode significar que a seção
não foi copiada de um protótipo, ou pelo menos o tlacuilo pode tê-lo simplificado. Preferimos
optar pela primeira hipótese, pois essa ausência associada a alguns 'erros' cometidos pelo tlacuilo,

264
a representação de alguns deuses patronos, glifos dos dias e senhores da noite em locais
indevidos, podem ser indícios de que nosso tlacuilo 4 não era um especialista nesse tipo de
assunto
Os códices históricos indígenas ou de tradição indígena que chegaram até nós mostram
formas de organização dos conteúdos bastante variadas. Muitas dessas estruturas organizacionais
utilizadas nos pós-conquista devem ser soluções encontradas pelos tlacuilos para adequar os
conteúdos tradicionais aos novos suportes e às necessidades dos novos usuários, principalmente
aquelas que mostram visões históricas mais lineares. No entanto, algumas dessas diferenças já
existiam no período pré-hispânico e caracterizam soluções específicas encontradas pelas diversas
tradições culturais mesoamericanas. A alteração da estrutura com leitura serpenteada das
primeiras páginas da segunda parte dos anais do TR para a estrutura linear com leitura esquerda-
direita pode ser um exemplo do primeiro caso. Nesse aspecto o primeiro tipo de organização dos
glifos pode estar mais próximo das formas tradicionais que o segundo. Não acreditamos que a
mudança tenha sido motivada pela necessidade de mais espaço para as anotações e sim para
facilitar a um usuário europeu a compreensão do conteúdo. Inclusive, na nova estrutura as linhas
temporais dos glifos dos anos ganham maior importância que nas páginas anteriores. Também é
improvável que represente uma alteração estrutural tradicional utilizada para essa parte da
história, pois entre as páginas onde ela ocorre não há nenhuma mudança de era, de enfoque ou
tipo de conteúdo que pudesse justificar a utilização de uma convenção narrativa distinta. Na
verdade, é provável que mesmo a forma de organização mais tradicional com leitura serpenteada
tenha sido alterada, pois a anomalia que ocorre na página 30v parece confirmar que houve uma
adequação na orientação dos glifos para que deixassem de estar de ponta-cabeça.
A adaptação dos conteúdos pré-hispânicos dessa segunda parte da história ou de algumas
de suas páginas pode ter sido ainda mais acentuada se considerarmos que o conteúdo pode ter
sido adaptado de histórias em formato de mapa, o que explicaria a existência das páginas 29v e
30r, de difícil compreensão e cujo conteúdo se assemelha bastante a essas histórias. Assim,
mesmo que a seqüência temporal serpenteada pareça ser um tipo de convenção narrativa utilizada
tradicionalmente, especialmente por grupos mexicas, é possível que seu uso tenha se ampliado
durante o período colonial. O fato do tipo de representação presente nas páginas 29v e 30r, que
parecem conter informações genealógicas, não voltarem a aparecer no códice pode significar que
esse tipo de conteúdo foi suprimido na adequação das informações, no caso de se estar copiando

265
de um protótipo em formato de mapa, ou simplesmente não representados pelo tlacuilo 4, no caso
de estar realizando esse conteúdo especificamente para o TR. É provável, então, que o conteúdo
chamado 'dinástico' do TR tenha sido bastante alterado, pois na adaptação podem ter eliminado
eventos de menor interesse para os europeus, como as genealogias. A presença desses conteúdos
genealógicos nessas duas páginas, que são considerados os conteúdos mais confusos da seção
histórica do códice, pode significar que talvez o tlacuilo 4 tenha a partir daí recebido instruções
para simplificar os conteúdos.
Já a migração pode ser o resultado da união de conteúdos coletados em diversos
protótipos, os quais podiam ter distintas formas de organização. Também é possível que o
tlacuilo 5 tivesse partes fragmentadas ou somente informações orais sobre algumas das rotas que
insere devido à ruptura na rota da migração mexica e à ausência de diversas informações
importantes normalmente incluídas em representações da migração desse grupo. O aspecto visual
desse conteúdo sugere que o tlacuilo deve ter estruturado o conteúdo utilizando uma forma
própria de sua tradição cultural para unir os conteúdos na página em formato de códice, tradição
essa onde as histórias de migração deviam ser representadas em formato de mapa.
A presença de topônimos alinhados, de guerreiros flechados para representar conquista, o
invariável uso do pictograma 'cerro' na representação dos topônimos e o enfoque acentuadamente
bélico aproximam esse conteúdo de nosso códice ao de documentos poblanos, especialmente a
História Tolteca Chichimeca. Porém, mais do que usar documentos dessa região, pensamos que o
tlacuilo deve ser originário dela.
A inserção da linha temporal dos glifos anuais na migração parece ter sido um encaixe
'artificial', como diz Quiñones Keber, pois além de não ser compatível com uma organização em
formato de mapa, mesmo que adaptada ao formato de códice, essas seqüências mostram exatos
10 glifos em cada página, ou 20, que é compatível com formas de organização européias.
A análise da organização do espaço do TR revelou que há diversos tipos de mesclas
envolvidas na realização das pictografias desse códice, quer seja aquelas que provêm da tradição
pictórica, livresca e enciclopédica européia ou as que são originárias das diversas tradições
culturais que coexistiam na região central do México. Mesmo que essas mesclas possam ser
consideradas distintas, preferimos não usar diferenciações como as de Gruzinski, que faz uma
divisão entre mestiçagem e hibridismo. Ele usa o termo 'mestiçagem' para designar "...as misturas
que ocorreram em solo americano no século XVI entre seres humanos, imaginários e formas de

266
vida, vindos de quatro continentes - América, Europa, África e Ásia" e 'hibridação' para as
"...misturas que se desenvolvem dentro de uma mesma civilização ou de um mesmo conjunto
histórico - a Europa cristã, a Mesoamérica - e entre tradições que, muitas vezes, coexistem há
séculos."645 Termos definitórios como esses podem dar a impressão que sempre existem duas
unidades dicotômicas e que essas unidades são homogêneas, o que definitivamente não se aplica
a nosso caso, ainda que tenha sido necessário estabelecer vinculações determinadas para tornar as
análises factíveis e compreensíveis. Porém, é impossível demarcar espaços e limites claros entre
uma cultura e outra ou entre tradições culturais específicas dentro dessas primeiras.

645
GRUZINSKI, Serge. O Pensamento Mestiço. São Paulo: Companhia das Letras, 2001, p. 62.

267
Capítulo V – Estilo dos Tlacuilos

Utilizamos o termo 'estilo' para nos referir a conjuntos de características formais que
diferenciam as pictografias de um grupo em relação aos outros e também o trabalho de um
tlacuilo específico em relação ao de outros, ou seja, as diferenças entre as características
particulares de um determinado escriba/pintor em relação a outros escribas/ pintores de seu
próprio grupo e também aquelas que diferenciam suas pictografias e de outros indivíduos de seu
grupo em relação a outros grupos étnicos ou altépetl, que seriam as variações regionais/ locais.
As pictografias do códice TR possuem diferenças formais significativas entre si, que não
são totalmente explicadas pela variação dos assuntos ou por terem sido realizadas por distintos
tlacuilos. Na verdade, o fato de possuir vários tlacuilos ocasionou as diferenças, mas o
manuscrito poderia ter sido realizado por mais de um indivíduo e ainda assim manter uma
unidade visual. A heterogeneidade é marcante por diversos motivos: os tlacuilos mostram
contraste de habilidades técnicas, variados graus de influência européia e possivelmente
pertencem a distintas tradições do México central. Elas podem ser decorrentes da formação (no
sentido profissional) dos próprios tlacuilos que realizaram o TR ou daqueles que executaram
algum ou alguns dos possíveis protótipos de onde podem ter sido copiados conteúdos, ou ainda, o
que é mais provável, uma combinação de ambos.
A questão do estilo se relaciona à da proveniência, pois aparentemente as tradições
históricas de um determinado grupo guiavam diversos aspectos de suas tradições, incluindo suas
expressões artísticas. Mas, nem todos os autores concordam que seja possível diferenciar os
estilos pictográficos existentes no pós-clássico de acordo com seus locais de origem. Jansen, por
exemplo, afirma que:

"El estilo pictórico y las convenciones iconográficas, sin duda, tuvieron expresiones específicas
según los talleres o escuelas de pintores, pero dentro del periodo Posclásico mesoamericano (ca.
900-1519) es muy difícil atribuir con precisión algún determinado trabajo artístico a determinado
lugar."646

646
JANSEN, Maarten. Op. Cit., 2002, p. 283.

269
Essa dificuldade se deve principalmente aos poucos exemplares de pinturas murais e
códices pré-hispânicos hoje existentes. A maior parte de nosso códice relaciona-se estreitamente
ao vale do México647 e por isso deve apresentar as características estilísticas específicas dos
códices tradicionais Mixteca-Puebla dessa região. Mas, quais seriam elas?
Infelizmente, não foi preservado nenhum manuscrito seguramente pré-hispânico do vale
do México e, por isso, determinar se os tlacuilos do TR mantêm o estilo pré-hispânico próprio
dessa região não é tarefa muito fácil. Existem ainda muitas discussões sobre a definição desse
estilo, exatamente devido à falta de documentos pré-hispânicos e outros tipos de representações
pictóricas seguramente provenientes do vale do México. Robertson e outros estudiosos
necessitaram lançar mão de manuscritos oriundos de outros locais para inferir sobre o estilo em
vigor na antiga capital mexica e seus arredores. A cerâmica policroma encontrada em escavações
na Cidade do México pode ajudar nos estudos sobre o estilo Mixteca-Puebla em geral, mas
oferece alguns problemas para a definição do estilo específico da região, visto que são objetos
portáveis que poderiam ser originários de diversos locais, levados à capital como tributos.648 O
mais seguro seria utilizar pinturas murais, mas:

"Podemos contar con los dedos de las manos los ejemplos de pintura rupestre y mural
pertenecientes a esta civilización. Al primer grupo pertenecen las ya borradas pinturas de la Cueva
de los Tecotines, en Ecatepec y las de la Barranca del Ventorrillo en el Popocatépetl. En el
segundo grupo se encuentran los pocos murales descubiertos en Tenochtitlan y Tlatelolco, y los ya
desaparecidos de Malinalco. La pobreza de este corpus ha complicado la definición del estilo
pictórico azteca."649

647
Mostra influência poblana somente na migração.
648
ESCALANTE GONZALBO, Pablo. Op. Cit. No prelo, p.42.
649
LÓPEZ LUJÁN, Leonardo; et. al. Op. Cit., p. 33.

270
1. A questão do naturalismo mexica

A discussão mais acirrada sobre o chamado 'estilo pictórico asteca650' diz respeito a um
elemento bastante visível nos códices coloniais do vale do México, incluindo as partes mais
tradicionais do TR, realizados pelo tlacuilo 4: uma tendência ao naturalismo. A grande questão é
saber se essa tendência é uma transformação ocorrida por influência européia ou se de fato os
manuscritos do vale do México possuíam essa característica mesmo antes do contato com a
tradição pictórica européia.
Sobre esse assunto Elizabeth Hill Boone651 publicou um importante trabalho em 1982. Em
sua análise utilizou alguns fragmentos de pinturas murais, esculturas, baixos relevos e o Códice
Borbônico, cuja provável origem pré-hispânica já tinha sido colocada em dúvida por
Robertson652. Sobre esse fato Boone argumentou que mesmo que seja um documento realizado
depois da chegada dos europeus, isso não significa que todos os elementos que o diferem dos
manuscritos mixtecas e do grupo Bórgia sejam intrusões européias, que seriam: um relativo
naturalismo, que ocasiona tendência a certas proporções da figura humana e o uso de específicas
convenções iconográficas653. Deste modo, compara alguns elementos do Borbônico, como mãos,
pés direito e esquerdo diferenciados, signos calendáricos e alguns outros com exemplos similares
encontrados em pinturas murais, baixos relevos e esculturas654. Conclui, então, que "...a tendência
ao naturalismo e a representação de figuras mais alongadas e magras aparentemente já existia na
pintura asteca antes da chegada dos espanhóis", concordando com Nicholson em classificar o
'estilo asteca' como um sub-estilo do estilo Mixteca-Puebla.655
Escalante Gonzalbo, por sua vez, discorda de algumas premissas utilizadas por Boone,
principalmente a de usar o Códice Borbônico como o manuscrito mais representativo do que teria
sido o 'sub-estilo asteca', afirmando que:

650
A palavra 'asteca' se origina de Aztlan, o local de origem dos mexicas em suas histórias de migração. A aplicação
do termo algumas vezes é generalizada à tríplice aliança e outras até mesmo aos seus domínios e por isso seu uso é
bastante criticado por alguns autores. Contudo, ainda é utilizado sem "preconceitos" por diversos autores mexicanos,
americanos e europeus.
651
BOONE, Elizabeth Hill. Towards a more precise definition of the Aztec painting style. In: CORDY-COLLINS,
Alana (ed.). Pre-Columbian Art History. Selected Readings. Palo Alto, California: Peek Publications, p. 153-168,
1982.
652
ROBERTSON, Donald. Op. Cit., p. 86-93.
653
BOONE, Elizabeth Hill. Op. Cit., 1982, p. 157-158.
654
Vale notar que quando Hill Boone publicou esse artigo ainda não eram conhecidos os murais da zona
arqueológica do Templo Mayor, como afirma López Luján et. al. (LÓPEZ LUJÁN, Leonardo; et. al. Op. Cit., p. 35).
655
BOONE, Elizabeth Hill. Op. Cit., 1982, p. 166.

271
" ...parece cuestionable la elección del Borbónico como el manuscrito más cercano al estilo
antiguo. En mi análisis formal de los códices coloniales descubro que el Telleriano Remensis656 se
encuentra mucho más cerca que el Borbónico de sus ancestros precolombinos, a pesar de haber
sido pintado sobre papel europeo. En cualquier caso, ambos son documentos coloniales, y en ellos
se observa ya el aprendizaje de nuevos recursos pictóricos y el uso de grabados europeos como
modelos para algunas composiciones"657

Argumentando contra a utilização do Borbônico Escalante Gonzalbo fala ainda sobre


algumas pinturas murais que não possuem o naturalismo encontrado nesse códice e explica que
ocasionalmente os pés podem aparecer diferenciados em algumas obras, o que se deve a uma
opção de alguns artistas, prática essa intensificada no período colonial, mas que não chegou a
generalizar-se.658
Num estudo publicado por López Luján e outros autores659 intitulado "Línea y color en
Tenochtitlan: escultura policromada y pintura mural en el recinto sagrado de la capital mexica" os
autores introduzem, como eles mesmos afirmam, novos elementos para a discussão do estilo
pictórico asteca, uma vez que os murais do Templo Mayor foram encontrados em período
posterior às discussões de Robertson, Nicholson e Boone. Já Escalante Gonzabo pode utilizá-las,
especialmente um dos achados da chamada Casa de las Águilas, dos reinados de Motecuhzoma I
y Axayácatl, entre 1440 e 1481660. Ao analisá-las López Luján (et. al.) afirma que seu estilo se
ajusta perfeitamente ao que Robertson chamou de 'Escolas' mixteca e nahua e assegura que não
possuem o naturalismo apontado como uma das características do sub-estilo asteca, pelo
contrário, se aproximam mais dos códices mixtecas e poblano-tlaxcaltecas661 que dos códices
coloniais do vale do México662. É possível, então, que mesmo os códices coloniais considerados
mais apegados à tradição já tenham sofrido importantes alterações estilísticas, adquirindo certo
naturalismo, em função do contato com a cultura européia. Nesse sentido, conclui Escalante
Gonzalbo:

656
Refere-se ao que chama de parte mais tradicional do Telleriano, o tonalpohualli e segunda parte da história, ou
seja, o trabalho do pintor que chamamos tlacuilo 4.
657
ESCALANTE GONZALBO, Pablo. Op. Cit. No prelo, p. 52-53.
658
ESCALANTE GONZALBO, Pablo. Op. Cit. No prelo, p. 53.
659
LÓPEZ LUJÁN, Leonardo; et. al., Op. Cit.
660
LÓPEZ LUJÁN, Leonardo; et. al., Op. Cit., p. 35.
661
Região onde pode ter se originado o Códice Bórgia, por exemplo.
662
LÓPEZ LUJÁN, Leonardo; et. al., Op. Cit., p. 37.

272
"Creo que una buena parte de lo que se ha dicho sobre el mayor naturalismo de la pintura nahua se
explica por el hecho de que se están empleando obras coloniales en el análisis. Una franca
tendencia hacia el naturalismo habría ido en contra de las reglas del lenguaje pictográfico
(propenso siempre a esquematizar y estereotipar). Sin embargo, tampoco quiero irme al extremo
de negar la posibilidad de que algunos pintores, o algunos tipos de pintura tendieran hacia formas
más redondeadas, figuras humanas más esbeltas y, en suma, rasgos más naturalistas.663

Porém, a questão do naturalismo asteca ainda não chegou a um resultado conclusivo,


como se pode ver pela forma como López Luján finaliza o artigo acima citado:

"A nuestro juicio, esta falta de correspondencia entre la definición y la evidencia arqueológica es
fácilmente explicable. Basta considerar, por un lado, que nuestras pinturas fueron realizadas antes
de 1481 d.C. y, por el otro, que el naturalismo es un criterio de definición que deriva de
observaciones hechas en monumentos escultóricos de la época de Tízoc y Ahuítzotl, en pinturas
murales que seguramente datan del reinado de Motecuhzoma II y en códices coloniales. A partir
de lo anterior y pese a que carecemos de murales mexicas de las cuatro décadas anteriores a la
Conquista, podemos proponer que es precisamente durante los reinados de Tízoc, Ahuítzotl y
Motecuhzoma II cuando el estilo pictórico azteca se define. Al menos, así sucede en el caso de la
escultura, donde las imágenes humanas, animales y vegetales adquieren su máximo realismo
durante las cinco décadas previas a la Conquista. Creemos que la pintura bien pudo haber tenido
una transformación radical semejante a la de la escultura, registrando cambios dramáticos en un
tiempo sumamente corto."664

O naturalismo que vemos no TR é uma característica observada nos códices coloniais do


vale do México e também nas esculturas dos anos anteriores à conquista. É possível que essa
tendência tivesse sido iniciada no período pré-hispânico e se intensificado ao longo do período
colonial.

663
ESCALANTE GONZALBO, Pablo. Op. Cit. No prelo, p. 57.
664
LÓPEZ LUJÁN, Leonardo; et. al. Op. Cit., p. 38.

273
2. Vínculos estilísticos

A forma de organização do espaço no capítulo anterior confirmou algumas conclusões de


Quiñones Keber quanto à proveniência do códice. A seção do xiuhpohualli, nesse aspecto, foi a
única que ainda não discutimos. A organização do espaço das veintenas não pode dar pistas sobre
esse aspecto, mas a presença do deus Huitzlopochtli em uma das veintenas, de panquetzaliztli,
confirma a filiação mexica dada pela autora. Assim, ou os tlacuilos que a realizaram pertenciam a
essa tradição, de Tenochtitlan ou Tlatelolco, ou usaram um protótipo mexica. Preferimos, como
Quiñones Keber, associar a confecção dessa seção aos próprios mexicas, pois estilisticamente não
encontramos nenhum elemento que possa indicar o contrário. É difícil determinar em qual dos
altépetl irmãos foi executada, uma vez que a proximidade entre os dois altépetl e a história
comum devem ter resultado em estilos similares. Basta saber que a seção deve ser originária de
México. No futuro, um estudo mais detalhado do conteúdo poderia esclarecer melhor essa
questão. Os dias nemontemi, como vimos, podem ter sido desenhados depois e não mostram
nenhum elemento que nos ajude a vinculá-lo a uma determinada região.
Já a segunda parte dos anais apresenta algumas diferenças de conteúdo se comparada com
outros documentos onde aparece a história tenochca, pois embora mostre os soberanos de
Tenochtitlan omite diversas conquistas importantes para a história desse grupo e inclui soberanos
de outros altépetl do vale do México665.
Para Quiñones Keber666 essa parte do códice pode ser de origem tlatelolca, pois o fato de
aparecerem todos os principais governantes de Tlatelolco antes que a cidade se opusesse a
Tenochtitlan e fosse despojada de um governante próprio; de não aparecer os nomes glíficos dos
guerreiros de Tenochtitlan, enquanto os de Tlatelolco sim; dos períodos de comando atribuídos
aos governantes tenochcas, especialmente os mais antigos, serem diferentes de outros
manuscritos de segura origem tenochca; e de suas conquistas serem apresentadas de um modo
irregular, mostra um ponto de vista que não é de Tenochtitlan e sim de Tlatelolco. Essa hipótese,
associada à provável simplificação dos conteúdos históricos, podem explicar as 'anomalias'
atribuídas a essa parte da seção histórica.

665
QUIÑONES KEBER, Eloise. Op. Cit., 1995, p. 128.
666
QUIÑONES KEBER, Eloise. Op. Cit., 1995, p. 128.

274
A seção do tonalpohualli e a segunda parte dos anais são unificadas pelo tlacuilo 4, que
realizou os dois conteúdos e que parece mostrar consistência estilística. Como afirmou Quiñones
Keber667, a ênfase no deus Quetzalcoatl, referida por Cline668, pode também conectar a seção à
Tlatelolco, onde o culto a esse deus tinha grande importância.
A migração também apresenta uma visão diferente da história tenochca e mostra ainda
diversas outras rotas que aparentemente não se relacionam à história desse grupo. A rota tenochca
aparece interrompida e faltam muitas paradas, além de outros aspectos mencionados
anteriormente. No entanto, vimos no capítulo anterior que isso se explica pela associação do
tlacuilo a alguma das tradições culturais da região poblana. No campo estilístico essa associação
se confirma. Veja na Figura 138 reproduções de elementos encontrados na História Tolteca-
Chichimeca e no Mapa de Cuauhtinchan 2. Compare com imagens das Figura 3, Figura 10,
Figura 97 e Figura 98.

Mapa de Cuauhtinchan 2 (imagens 1 e 2) e História Tolteca-Chichimeca (pp. 68, 67 e 72)


Figura 138

3. Análise dos tlacuilos

Os tlacuilos do TR mostram muitas diferenças entre si: distintos graus de proximidade do


estilo Mixteca-Puebla; diversas paletas de cores; habilidade técnica variada; distintas formas de
representar determinados elementos; dentre outras. Às vezes a desigualdade entre algum aspecto
chega a ser bastante radical, como nos afirma Escalante Gonzalbo:

"...en lo tocante a la figura humana, el pintor de la primera parte de la sección histórica - que narra
la migración mexica - se encuentra en una posición diametralmente opuesta a la del pintor de la

667
QUIÑONES KEBER, Eloise. Op. Cit., 1995, p. 128.
668
CLINE, Howard F. Op. Cit., p. 11.

275
segunda parte de dicha sección. Ya hemos visto, por ejemplo, que las proporciones que dibuja el
primero llegan a ser muy esbeltas, mientras que las del segundo se apegan estrictamente a la
tradición Mixteca-Puebla."669

Na análise que se segue tentaremos identificar nas pictografias de cada um dos tlacuilos
do códice os elementos comumente encontrados nos manuscritos da tradição Mixteca-Puebla. A
intenção aqui é tentar determinar, ainda que seja em linhas gerais, se eles mantêm as convenções
tradicionais desse estilo e se incorporaram aspectos, aqueles mais evidentes, das convenções
pictóricas européias. Obviamente é impossível determinar com exatidão se as características
formais do estilo Mixteca-Puebla selecionadas refletem os aspectos das tradições pré-hispânicas a
que os tlacuilos se vinculavam ou os elementos que consideramos europeus podem determinar o
"grau de influência das convenções européias", pois nesse tipo de estudo há sempre uma grande
carga de subjetividade. Tentaremos nos ater às características mais evidentes.
Nosso ponto de partida são as características do estilo Mixteca-Puebla e aquelas que
surgiram no período colonial por influência européia, ambas definidas por Nicholson, Robertson
e Escalante Gonzalbo e expostas no capítulo III. A fim de facilitar o estudo organizamos os
aspectos a serem analisados por grupos, onde analisamos paralelamente elementos dos dois tipos
de convenções, do estilo Mixteca-Puebla e da tradição pictórica renascentista européia. Com isso
não queremos dizer que esses aspectos sejam opostos, mas que tendem a ocorrer em paralelo. Por
exemplo, no que se refere às estilizações e naturalismos, o primeiro dos itens elencados, em
muitos casos ainda que haja uma tendência ao naturalismo a estilização continua presente. As
estrelas, por exemplo, são representadas de um modo europeu, que é mais naturalista670 que o
indígena, do ponto de vista ocidental, no entanto continuam sendo elementos estilizados. A
oposição que realizamos entre esses elementos foi uma estratégia expositiva, para facilitar a
compreensão das características tradicionais nativas que foram sendo alteradas ao longo do
período colonial, pois mesmo que haja exceções a busca por uma aparência naturalista tendeu a
sacrificar o caráter estereotipado das representações indígenas. As divisões das características
ficaram, então, divididas da seguinte forma:

1 - Estilização e naturalismo;

669
ESCALANTE GONZALBO, Pablo. Op. Cit. No prelo, p. 223.
670
Utilizamos o conceito naturalista ocidental desenvolvido a partir do renascimento.

276
2 - Linhas-marco e linhas de contorno;
3 - Desenho modular e unificado;
4 - Cor;
5 - Formas, posições e proporção corporal da figura humana; e
6 - Espaço671, escala e perspectiva.

Os elementos iconográficos encontrados na tradição Mixteca-Puebla e listados pelos


autores também estão presentes em nosso códice, sempre de acordo com o tipo de conteúdo
observado. Quanto à linguagem pictográfica, uma das categorias definidas por Escalante
Gonzalbo672, o TR é repleto dos exemplos expostos pelo autor, que inclusive afirma surpreender-
se pelo fato do Telleriano possuir quase todas as cenas tradicionais.
Decidimos iniciar essa análise com os tlacuilos que apresentam características mais
próximas ao estilo Mixteca-Puebla, não com o intuito de apresentar uma classificação do mais
tradicional para o que apresenta maiores influências da arte européia, mas porque essa
organização facilita a compreensão dos elementos que iremos analisar em todos eles. Dessa
forma, iniciaremos com o tlacuilo 4, que realizou o tonalpohualli e a maioria das pictografias da
segunda parte dos anais, seguido do tlacuilo 2, desenhista de três figuras do xiuhpohualli. Após a
apresentação desses dois escribas/pintores passaremos a seguir a seqüência normal de aparição
dos tlacuilos no códice, ou seja, o tlacuilo 1, depois o 3, 5, 6 e 7.

3.1. Características do tlacuilo 4

Entre os tlacuilos do TR o tlacuilo 4 é aquele que mais se aproxima do estilo Mixteca-


Puebla, ou seja, aquele que apresenta mais características tradicionais desse estilo, possuindo um
traço limpo, preciso e uniforme. Realizou as imagens do tonalpohualli (Figura 2) e da segunda
parte dos anais (Figura 4), com exceção dos signos dos anos do fólio 29. Analisemos em seu
trabalho, então, as categorias listadas acima.

3.1.1. Estilização e naturalismo

671
Por 'espaço' aqui nos referimos à relação das imagens entre si, chamado por Escalante Gonzalbo de "espaço das
cenas". Nas pictografias indígenas esse espaço é indefinido, ou seja, não há linha de horizonte e linha de apoio e as
relações são conceituais.
672
ESCALANTE GONZALBO, Pablo. Op. Cit. No prelo, p.48.

277
Embora realize alguns poucos experimentos, esse tlacuilo sempre emprega estereótipos na
representação de todos os elementos que compõem suas imagens: figuras humanas, animais,
objetos, plantas, dentre outros. Veja exemplos na Figura 139.

Representações de figuras humanas das páginas 11r, 29v, 30r, 39r e 43v.

Animais extraídos das páginas 8v, 9r, 9v, 11r, 17r, 30v, 33r, 41v, 43r e 45v.

Fuso, pág. 11v; caracol, 13r; espigas de milho, 14r; osso, 15v; casa, 16r; raiz, 19r.
Templo, 40r; flor, 40r; pé de milho, 41r; pedra, 42v; e rio, 46r.
Figura 139

Ao iniciar o período colonial na seção histórica ele emprega estereótipos inclusive na


realização dos elementos e personagens do mundo europeu, transportando à linguagem
pictográfica figuras inexistentes no repertório de imagens da tradição Mixteca-Puebla. Representa

278
uma série de elementos europeus, como roupas, cetros, espadas, elmos, escudos, cadeiras, dentre
outros. Exemplos podem ser vistos na Figura 140.

Imagens das páginas 46r, 46r e 46v.


Figura 140

Faz algumas dessas transposições de maneira magistral, muitas vezes adaptando formas
conhecidas na elaboração desses novos elementos, como a representação do cavalo, que segundo
Escalante Gonzalbo673 é uma adaptação do pictograma veado. Veja os exemplos na Figura 141,
abaixo.

Representação de um cavalo, da página 44v


e do signo veado, da 20r
Figura 141

As experimentações que consideramos tentativas de aproximação das representações


naturalistas da arte européia são as seguintes: sangue de um auto-sacrifício na página 9r (Figura
148); fogo ou fumaça de uma tocha encontrada na 29r (Figura 142); uma árvore na 32r (Figura
673
ESCALANTE GONZALBO, Pablo. Op. Cit. No prelo, p.47.

279
142); novamente sangue em uma mulher, na 38v, nas escadarias de templos na 38v e 39r e saindo
de uma árvore na 46v (Figura 148); um eclipse na página 40v (Figura 143); estrelas com uma
forma européia nas páginas 40v, 42r, 42v, 44r, 45r e 45v (Figura 143); nuvens nas páginas 41r e
42v (Figura 143); uma montanha fumegante na página 42r (Figura 142); e fumaça saindo de
uma pedra na 42v (Figura 142).

Nuvens das páginas 41r, 42v e 42v

Páginas 29r, 32r, 42r e 42v Estrelas das pp. 40v, 42r, 42v, 44r, 44v, 45r e 45v

Figura 142 Figura 143

Todas as imagens reproduzidas acima têm algo alheio ao estilo Mixteca-Puebla


tradicional. A mancha de tinta colocada diante da tocha possivelmente foi com o intuito de
representar o fogo se espalhando em direção ao templo. Esse artifício não parece ser originário da
escrita pictográfica indígena.

280
Na terceira imagem da Figura 142 reproduzimos uma árvore cujas folhas foram pintadas
somente com o uso da tinta verde, sem a utilização da tradicional linha-marco para demarcar a
região (veja uma representação mais habitual da copa de uma árvore na extrema direita da Figura
148). Na Figura 142 (pag. 42v) há outro caso de fumaça distinta das realizadas tradicionalmente.
Na primeira imagem do grupo de estrelas da Figura 143 reproduzimos um eclipse -
segundo o autor do texto um grande eclipse do sol -, mostra um sol tradicional contrastando com
uma representação da lua anormal, aonde o negro vai se tornando mais claro conforme se afasta
do centro, e de estrelas ao modo europeu (o que ocorre também com quase todas as suas estrelas,
na Figura 143), pois no modo tradicional utilizam círculos ou pictogramas que se parecem com
olhos. Veja um exemplo na Figura 144. No eclipse é possível que o tlacuilo tenha tentado
representá-lo de uma forma européia, porém não conseguiu desvincular-se do estereótipo do sol.
Esse é o único caso onde o eclipse é representado dessa forma. Nos seguintes o tlacuilo preferirá
versões mais simplificadas, uma espécie de união entre o seu modo de representar o eclipse,
utilizado na página 37r (Figura 145), e o novo, onde usou os novos recursos pictóricos. Veja a
Figura 145. Parece inclusive que utilizou o recurso da variação674 na representação desse
elemento porque não há nenhum igual ao outro. Aliás, esse é um recurso que o tlacuilo 4 emprega
em diversas representações, que mostra sempre variedade no modo de combinar os elementos
que fazem parte de determinadas figuras, especialmente quando se trata de fenômenos
astronômicos e geológicos, no caso da seção histórica.

Páginas 37r, 42r, 42v e Páginas 37r, 42r, 42v e 44r


44r
Figura 144 Figura 145

Já na segunda imagem da Figura 142, que representa uma montanha soltando fumaça a
transformação é ainda mais radical. São utilizados recursos pictóricos similares às convenções

674
Característica referida por Escalante Gonzalbo, que se trata da alternância nos modos de representar determinados
aspectos das imagens com o intuito de torná-las mais interessantes do ponto de vista estético.

281
européias. Essa imagem destoa completamente das outras da página, pois representa de forma
distinta da que vinha utilizando tanto a montanha como a fumaça. Para que se possa comparar
reproduzimos na Figura 146 alguns exemplos de fumaças e no lado esquerdo da Figura 147
duas montanhas. Essa pode ter sido uma tentativa de criar uma imagem com mais 'realismo'. Para
isso o tlacuilo utilizou uma forma de montanha que costuma vir representada em historias em
forma de mapa, como o Códice Xólotl e o Mapa de Cuauhtintlan 2, por exemplo. Na imagem é
possível observar algo bastante curioso no documento original e inclusive no fac-similar675: neles
aparecem linhas de esboço realizadas com uma tinta negra bem aguada, feitas seguramente para
guiar o desenho definitivo. O que vemos nesse esboço não é condizente com a imagem definitiva
que foi realizada acima: o desenho da montanha foi feito no estilo que utilizava anteriormente,
apesar do esboço da fumaça apresentar um aspecto parecido com a representação definitiva. É
absolutamente estranho que representações como essas apareçam em meio a outras tão fiéis ao
estilo Mixteca-Puebla, inclusive na mesma página, pois na própria página 42r foram
representados cerros numa forma mais estereotipada (última imagem da direita na Figura 147).

Páginas 31r, 32v e 44r Páginas 42r, 33v e 42r


Figura 146 Figura 147

Por que resolveu o tlacuilo mudar o desenho? Nesse caso é possível que tenha preferido alterar a
representação da montanha/ vulcão para diferenciá-la dos topônimos. De qualquer forma é

675
QUIÑONES KEBER, Eloise. Op. Cit, 1995.

282
estranho que use cores mescladas, ao invés de áreas uniformes de cor. A opção de alterar a
imagem do espaço para o desenho definitivo pode ter sido uma opção própria, mas também é
possível que a mudança tenha sido estimulada por uma intervenção. A possibilidade de
intervenções não podem ser descartadas, especialmente em algumas imagens, como a que se
encontra na página 38v do códice (segunda imagem da Figura 148), que se trata de uma
representação do sangue bastante distinta dos modos indígenas. Essas mesmas manchas de tinta
vermelha para representar o sangue aparecem também nas escadarias de dois templos e numa
árvore quebrada na página 46v (última imagem da Figura 148). Quer sejam manchas de sangue
ou gotas, esses modos de representar o sangue são muito mais próximos da tradição européia que
da indígena. Uma forma intermediária foi utilizada na página 9r (primeira imagem da Figura
148).

Imagens das páginas: 9r, 38v, 38v, 39r e 46v


Figura 148

Essa questão da representação do sangue merece um pouco mais de atenção. Na Figura


149 reproduzimos cinco outros casos de representação do sangue no trabalho do tlacuilo 4. Todos
eles assemelham-se ao modo tradicional de representação desse elemento. As três primeiras
imagens da Figura 149 mostram o sangue da mesma maneira que aparece em algumas páginas
do Códice Bórgia, por exemplo, que é um códice de origem pré-hispânica. Já o sangue em jorro
da página 8v é uma forma muito comum de representá-lo em vários manuscritos tradicionais,
enquanto o último caso mostra o sangue acompanhado da conta verde, possivelmente de jade,
símbolo de precioso. Veja exemplos desses casos, retirados de manuscritos pré-hispânicos, na
Figura 150.

283
Imagens representadas nas páginas17r, 17r e 21r Páginas 8v e 19r
Figura 149

Códice Cospi, página 9; Bórgia 53; Fejérváry Mayer 2; e Nuttall 49. Bórgia 66 e 53; e Nuttall 36

Laud 45; Fejérvary 29; Cospi 11, Nuttall 15 e 29; Vaticano B páginas 81 e 92

Figura 150

Quando necessitam fazer com que o sangue saia em uma determinada direção nos
manuscritos tradicionais utilizam o sangue em jorro, que nunca se divide durante o caminho
(como a grande maioria das imagens da Figura 150). Na primeira imagem da Figura 148, pelo
contrário, o sangue é dividido em grandes gotas. Um detalhe interessante é o fato de o desenhista
ter inclusive colocado a linha-marco em torno das gotas, o que não ocorreu nas outras imagens da
Figura 148. É possível que essa forma de representar o sangue seja inspirada no modo europeu,

284
mas também é preciso levar em conta que os exemplares pré-hispânicos que chegaram até nós
mostram também uma grande variedade de formas de representar esse elemento.
No que se refere ao sangue encontrado na mulher da página 38v, nos templos das 38v e
39r e até mesmo a árvore da 46v, todos na Figura 148, foram sem dúvida influenciados pelo
estilo pictórico europeu. Há alguns casos nos códices pré-hispânicos onde se utiliza um recurso
adicional para a representação do que poderiam ser gotas de sangue espirrando de alguma ferida,
para o qual usam somente a tinta vermelha sem linhas-marco, com linhas sempre limpas e
ordenadas (incluímos alguns exemplos na Figura 151 - lado esquerdo). Entretanto, todas elas
diferem bastante das gotas acompanhadas de manchas da mulher da 38v, ou somente as manchas
nas escadarias dos templos. Esta forma é bastante característica do período pós-conquista e de
acordo com Batalla Rosado676, vinha acompanhada de teatralidade e hiper-realismo.

Bórgia 19 e 23; Fejérváry 39 e 39; Vaticano B 38; Vaticano B 63; Fejérváry 26 e 41;
Nuttall 49 e 74; e Laud 5 e 38 Nuttall 39, 74, 87 e 90
Figura 151

Pode parecer estranho que o tlacuilo 4 tenha lançado mão de tantas formas de representar
o sangue, inclusive algumas inspiradas na tradição pictórica européia, contudo, essa alternância
nas fontes também ocorre nos manuscritos pré-hispânicos, elas devem representar algumas vezes
contextos específicos, porém é possível que os motivos sejam estáticos.

676
BATALLA ROSADO, Juan José. Datación del Códice Borbónico a partir del análisis iconográfico de la
representación de la sangre. In: Revista Española de Antropología Americana, v. 24, p. 47-74, 1994, p. 71.

285
É possível que algumas formas utilizadas por nosso tlacuilo não tenham sido baseadas nas
representações européias, pois ainda que exista um repertório limitado de elementos na tradição
Mixteca-Puebla, aparentemente os tlacuilos usufruíam de grande liberdade para compor suas
obras. Esse caso da representação do sangue foi somente utilizado como exemplo para
demonstrar a versatilidade de nosso tlacuilo 4, tanto para manipular o repertório pictográfico
tradicional que aprendeu, possivelmente no período pré-conquista, como sua capacidade de
absorver as novas formas de representação do universo europeu, empregando ambos para
confeccionar uma obra harmônica de seu ponto de vista.
Vale destacar que as variações não se aplicam a todos os tipos de elementos, pois alguns
se mantêm invariáveis, como a representação dos topônimos, por exemplo.
Ainda no tocante à utilização de recursos pictóricos ou modos de representar europeus, e
para finalizar, gostaríamos de incluir aqui mais um caso, apesar de não ser exatamente um
exemplo de aproximação ao naturalismo. Refere-se a uma modificação no modo de representar o
sol, citada por Escalante Gonzalbo677. O autor afirma ser uma representação comum no
renascimento e que para realizá-la o tlacuilo pode ter se inspirado em algum livro europeu. Os
dois casos aparecem na página 46r, os quais reproduzimos na Figura 152. Nas páginas anteriores
o tlacuilo utiliza a forma tradicional, que pode ser vista na Figura 145, acima.

Páginas 46r e 46r


Figura 152

Apesar das exceções aqui analisadas, nesse aspecto dos estereótipos ou estilização, esse
tlacuilo mostrou-se bastante fiel ao estilo Mixteca-Puebla. As experimentações que realiza são
ainda muito tímidas e não chegam a causar transformações significativas em seu trabalho, o qual
se encontra muito distante do estilo naturalista europeu. As mudanças afetaram isoladamente as

677
ESCALANTE GONZALBO, Pablo. Op. Cit. No prelo, p. 113-114.

286
figuras citadas, pois na maioria das imagens emprega técnicas e formas tradicionais do estilo
Mixteca-Puebla.
É difícil saber por que esse tlacuilo de estilo tão tradicional decidiu realizar essas
experimentações. Pode tê-las realizado como tentativas de modernização e adaptação de seu
trabalho aos novos gostos, o que resta saber é se foi por interesse próprio ou por insistência dos
patrocinadores.
Sobre esse assunto da naturalização das pictografias Escalante Gonzalbo diz o seguinte:
"dicho propósito podía surgir de la coacción de los frailes, quienes seguramente conminarían a
los indios a dejar de pintar figuras 'monstruosas' y 'mal entalladas', pero también de cierto nivel
de aceptación, interés o curiosidad por experimentar con las nuevas formas."678 Assim, as duas
vias são possíveis.

3.1.2. Linhas-marco e linhas de contorno

As linhas que o tlacuilo 4 aplica nas imagens são muito parecidas às tradicionais linhas-
marco do estilo Mixteca-Puebla.679 Utiliza as linhas para delimitar áreas de cor e realizar detalhes
nos desenhos.
As duas seções onde trabalhou possuem características similares no tocante às linhas-
marco. No tonalpohualli aparecem linhas mais espessas, o que naturalmente se deve à questão da
escala, pois as imagens centrais dessa seção são bem maiores que as da seção histórica.
As pequenas variações na espessura das linhas não parecem ser propositais e não
representam o intuito de sugerir volumes ou áreas de luz e sombra, como são usadas as linhas de
contorno na tradição pictórica européia. Elas são empregadas do mesmo modo que eram usadas
tradicionalmente, para delimitar as áreas de cor, ainda que existam casos de cores não
delimitadas. Alguns deles são frutos de experimentações, no entanto, a maioria parece tratar-se de
opções estéticas, também comuns nos manuscritos pré-hispânicos. Abordaremos melhor esse
assunto no item sobre o uso das cores, abaixo.

678
ESCALANTE GONZALBO, Pablo. Op. Cit. No prelo, p. 143.
679
ESCALANTE GONZALBO, Pablo. Op. Cit. No prelo, p. 142.

287
3.1.3. Desenho modular e unificado

O desenho modular comumente utilizado nos códices pré-hispânicos subsiste no trabalho


do pintor que chamamos de tlacuilo 4, afirmação também apoiada por Escalante Gonzalbo680.
Essa característica aparece em quase todos os desenhos executados por esse tlacuilo (como por
ser notado nos diversos elementos desenhados por ele, que reproduzimos acima nesse mesmo
capítulo), mas é particularmente visível na representação das figuras humanas (Figura 153),
especialmente no desenho das mãos (Figura 153, lado direito).

Páginas 21r, 29r, 33v, 41r e 41v Página 11v


Figura 153

Diferentemente do estilo pictórico europeu, onde as imagens possuem um aspecto


bastante unificado, a maioria das representações de nosso tlacuilo é composta por elementos que
poderiam ser separados, como as peças de um quebra-cabeça. Além disso, as figuras humanas
muitas vezes apresentam uma estrutura impossível do ponto de vista anatômico. Veja
alinhamento e posição dos braços e pernas em relação ao tronco nos exemplos da Figura 154.

Páginas 11v, 16v, 21v e 30r


Figura 154

680
ESCALANTE GONZALBO, Pablo. Op. Cit. No prelo, p. 44.

288
3.1.4. Cor

Nos manuscritos tradicionais a cor é aplicada uniformemente, sem a utilização de


sombreados ou dégradés. O uso de cores uniformes cercadas pelas linhas negras (linhas-marco), a
"ausencia de sombreado (...) y el uso casi nulo de otros recursos para sugerir volumen, crean la
sensación de figuras planas, como adheridas al papel"681. Essa característica da cor aparece em
quase todas as imagens pintadas pelo tlacuilo 4. Suas figuras têm o mesmo aspecto plano visto
nos documentos pré-hispânicos da tradição Mixteca-Puebla, com exceção de alguns poucos
casos.
Nas duas seções onde ele trabalha nota-se que algumas tintas foram aplicadas por baixo
da linha negra, enquanto outras aparecem por cima. Em algumas figuras é possível identificar
uma tênue linha de esboço executada com o uso de uma tinta negra bem aguada. Nos casos onde
cometeu algum “erro”, ou seja, executou alguma figura em local indevido, realiza a correção
cobrindo as linhas negra, e algumas vezes também alguma cor aplicada anteriormente com uma
tinta branca, que não disfarçou totalmente o engano. Em vários desses casos no TR ocorreu o
desgaste tanto dessa tinta branca como das outras pertencentes à imagem executada por cima
dela, revelando o desenho que se encontrava por baixo (colocamos alguns exemplos na Figura
155).

Páginas 14r, 16v, 17v e 30r


Figura 155

O uso do papel europeu e o abandono de técnicas usuais na confecção de um


manuscrito causou alguns problemas, como nesse caso das correções, pois segundo Escalante
Gonzalbo no período pré-hispânico:
681
ESCALANTE GONZALBO, Pablo. Op. Cit. No prelo, p. 45.

289
"La pintura del códice no se realizaba directamente sobre la piel o el papel; era preciso aplicar a
esas superficies una capa de estuco, llamada de imprimación (…) si el pintor se equivocaba al
trazar una figura o simplemente quería borrar algo, aplicaba color blanco encima de ello y tenía
nuevamente ante sí un espacio igual al lienzo limpio. En la época colonial los pintores de códices
usaron capas de imprimación muy delgadas o bien, en la mayoría de los casos, abandonaron su
empleo; así, ya no fue posible corregir o hacerlo sin dejar una mancha blanca."682

Em nosso manuscrito não foi aplicada nenhuma capa de imprimación e como resultado
das correções aconteceu o que descrevemos acima, pois a coloração do papel não é exatamente
branca e sim levemente amarelada. Uma outra estratégia de correção era a de tentar utilizar as
linhas do desenho anterior na composição da nova imagem, ou mesmo disfarçar as linhas no
interior do novo desenho, como aconteceu no exemplo reproduzido na Figura 156.

Página 11r
Figura 156

Esse tlacuilo costuma aplicar os tons de marrom e as cores usadas como tons de pele antes
da realização das linhas-marco. A maioria das cores, contudo, é aplicada depois, pelo menos
aparentemente, e muitas vezes cobrindo o negro das linhas-marco e diminuindo sua intensidade.
Há diversos casos de cores que não foram circundadas ou demarcadas pelas linhas-marco
e também há detalhes realizados diretamente com a tinta vermelha. Ambos são encontrados em
pequenos detalhes, como pinturas faciais ou corporais, pormenores decorativos em adereços e
outros elementos. Selecionamos alguns exemplos na Figura 157. Possivelmente, o uso desses
detalhes sem a delimitação da linha-marco não surgiu por influência européia, pois encontramos
dezenas de exemplos desse tipo de ocorrência também em documentos pré-hispânicos.

682
ESCALANTE GONZALBO, Pablo. Los Códices. México: Consejo Nacional para la Cultura y las Artes, 1999.
Disponível em: <http://copernico.mty.itesm.mx/phronesis/archi_txt/codices.txt> Acesso em: 5 out. 2007.

290
Reproduzimos alguns deles na Figura 158. Trata-se de detalhes que enriquecem esteticamente as
figuras representadas, uma prática aparentemente comum entre os tlacuilos.

13r, 14v, 18r, 20r, 21v, 22v, 23r, 23v, Féjervary 8 e 27; Vaticano B 38;
30r, 32r, 41v, 43v e 46v Nuttall 2; e Bórgia 24 e 26
Figura 157 Figura 158

Outra prática é a de utilizar uma determinada cor bem aguada ou um tom mais claro e
sobrepor alguns detalhes com a tinta mais forte, ou mesmo com outra cor de tinta. O tlacuilo 4
também realiza diversos detalhes com esse artifício. Abaixo mostramos alguns desses casos em
manuscritos pré-hispânicos na Figura 159 e no TR na Figura 160.

Nuttall 13 e 78; Vaticano B 20 e 44 Telleriano 12v, 22v, 22v e 33v


Figura 159 Figura 160

Porém, ainda que a maioria das imagens desse tlacuilo apresente características idênticas
às realizadas nos manuscritos tradicionais, encontramos alguns casos insólitos no tocante à

291
aplicação das cores. A maioria deles ocorreu em imagens já citadas anteriormente,
principalmente na análise das tentativas de naturalização. Há os três casos já citados de manchas
de tinta vermelha para a representação do sangue, dois nas páginas 38v e um na 39r (nas
escadarias dos templos e na mulher), reproduzidos na Figura 148. A forma como o sangue foi
representado na árvore da página 46r, última imagem da Figura 148, também nos parece uma
forma mais próxima da européia que da indígena, principalmente porque nessa mesma imagem o
tlacuilo realizou algumas manchas verdes no tronco da árvore, possivelmente numa tentativa de
criar volume. Essa técnica também é aplicada em outras imagens da seção histórica: na montanha
que solta fumaça, da página 42r, representada na Figura 142, com tintas marrom, vermelha e
amarela; na árvore da 32r, também na Figura 142, onde pintou as folhas das árvores de um modo
bem diferente do tradicional, com o uso de manchas de tinta verde; e para sugerir volume nas
nuvens, com um preto aguado ou um cinza, nas páginas 41r e 42v, na Figura 143. Nos eclipses
das páginas 40v (primeira imagem das estrelas da Figura 143), 42r e 44r (segunda e quarta
imagens da Figura 145) realiza uma espécie de dégradé com tinta preta normal e aguada; assim
como na fogueira da página 29r (primeira imagem da Figura 142), nesse caso já com o uso de
mais de uma cor. E por fim, utiliza a tinta negra aguada na realização do que poderíamos chamar
“sombreados”, em imagens das páginas 44v, 46r e 47r, reproduzidos abaixo, na Figura 161.

Imagens das páginas 44v, 46r e 47r


Figura 161

292
Os três exemplos acima são duas representações do bispo Zumárraga (primeiro e terceiro)
e o outro personagem que, de acordo com Anders e Jansen683, é a representação de uma monja, e
com Escalante Gonzalbo684, de um frade. Esses são os únicos casos onde o tlacuilo 4 usa
sombreados nas pregas das roupas e no banco onde se senta a segunda figura. É interessante notar
que todas elas são membros da igreja católica. Certamente não havia paralelo pré-hispânico em
que se baseasse nosso tlacuilo para a realização dessas imagens, por isso é possível que tenha se
inspirado em gravados ou pinturas européias de santos ou figuras de religiosos. Isso explicaria o
porquê do uso dos sombreados e também o aparecimento de outros elementos, sobre os quais
ainda falaremos nos próximos itens a serem analisados.
Para concluir a análise das cores podemos dizer que, como no caso dos estereótipos, o
tlacuilo 4 utiliza as cores do modo tradicional. As experimentações ocorrem de modo isolado, e
afetam apenas algumas poucas figuras. Das duas seções onde trabalha o tlacuilo somente a
segunda mostra alterações. As cores no tonalpohualli mantêm sempre as características
tradicionais, provavelmente devido ao próprio conteúdo restrito de elementos nativos. A seção
histórica por sua vez, especialmente as páginas que se referem ao período colonial, necessitavam
de soluções para os problemas, cujos modelos deveriam ser todos provenientes da cultura
européia e por isso as possibilidades de inclusão de elementos alheios à tradição indígena eram
muito maiores.

3.1.5. Formas, posições e proporção corporal da figura humana

No estilo Mixteca-Puebla as figuras humanas costumam ser representadas com


proporções corporais não compatíveis com as naturais, ou seja, a dimensão das diferentes partes
do corpo é orientada pela simplificação dos seus elementos e não pela semelhança anatômica.
Como explicamos anteriormente, esse estilo não é naturalista e por isso não busca imitar a
natureza. Assim, a cabeça, as mãos e os pés costumam ser demasiado grandes em comparação
com o restante do corpo, o tronco é curto e estreito e os braços e pernas finos e retos.685

683
ANDERS, Ferdinand; JANSEN, Maarten. Religión, Costumbres e Historia de los antiguos mexicanos: libro
explicativo del llamado Códice Vaticano A. México: Fondo de Cultura Econômica, 1996, p. 366.
684
ESCALANTE GONZALBO, Pablo. Op. Cit. No prelo, p. 179.
685
ESCALANTE GONZALBO, Pablo. Op. Cit. No prelo, p. 33.

293
Escalante Gonzalbo realizou um estudo sobre as proporções corporais empregadas nos
manuscritos pré-hispânicos da tradição Mixteca-Puebla, utilizando a altura da cabeça como base
e verificando quantas vezes essa medida cabe no restante da figura. Encontrou, assim, figuras
com mínimo de 1:2,3 e máximo de 1:5,5. A maioria delas, contudo, se encontra entre 1:3,5 e
1:4686. Esse mesmo método foi empregado também nos documentos coloniais, incluindo nosso
códice, onde o autor encontrou proporções que variam de 1:3 a 1:4 nas páginas desenhadas pelo
tlacuilo 4, as quais coincidem com as encontradas nas figuras dos documentos pré-hispânicos687.
Desse modo, nosso tlacuilo 4 conserva as proporções corporais tradicionais do estilo Mixteca-
Puebla e apresenta as mesmas características no tocante às partes do corpo: tronco curto, braços e
pernas finos e longos e cabeça, mãos e pés grandes. Na Figura 153, assim como em outras
reproduções das figuras humanas desse tlacuilo apresentadas nesste trabalho, podem ser notadas
as características citadas.
Robertson688 e Escalante Gonzalbo689 afirmam que no estilo tradicional a figura humana é
comumente representada com a cabeça e as pernas de perfil, o tronco de frente e o quadril em três
quartos de perfil690. Essa mesma posição do corpo aparece em dezenas de figuras humanas
representadas pelo tlacuilo 4, sendo que quando as figuras se encontram em pé o quadril costuma
ser desenhado em três quartos de perfil e quando estão sentadas o quadril é mostrado de perfil. As
figuras que aparecem sentadas nos "tronos" costumam ter também os troncos de perfil. Todas
essas posições são compatíveis com a forma tradicional.
As características possivelmente não tradicionais nesse aspecto das posições corporais
aparecem nas últimas páginas do códice em figuras já citadas anteriormente e reproduzidas na
Figura 161, acima. Trata-se de três figuras, duas delas desenhadas com a cabeça de frente e uma
com as pernas e pés de frente, ainda que a cabeça esteja de perfil. A primeira e última são
representações do bispo Juan de Zumárraga e a segunda possivelmente de um frade. A posição
corporal da terceira figura pode não ser necessariamente de inspiração européia, pois nos códices
da região mixteca aparecem algumas formas de representar as pernas e os pés vistos de frente ou
de costas. Veja Figura 162. Essas posições são utilizadas exclusivamente para mulheres, mas não

686
ESCALANTE GONZALBO, Pablo. Op. Cit. No prelo, p. 33.
687
ESCALANTE GONZALBO, Pablo. Op. Cit. No prelo, p. 151.
688
ROBERTSON, Donald. Op. Cit., p. 17-18.
689
ESCALANTE GONZALBO, Pablo. Op. Cit. No prelo, p. 32.
690
Essa última categoria somente é citada por Escalante Gonzalbo.

294
é inadmissível que o tlacuilo tivesse adaptado alguma forma pré-hispânica para a representação
do bispo morto.

Nuttall 13, 13 e 29 e Fejérváry 25, 33 e 38


Figura 162

Também é preciso mencionar uma alteração na posição dos vultos mortuários na página
46v, que, ao invés de serem representados na tradicional posição para enterramento, foram
representados de corpo esticado (Figura 163 e Figura 164). Ainda que se trate de uma adaptação
à nova realidade, é interessante observar a solução encontrada na representação do "trono" para
indicar que um dos cadáveres era o governante de Colhuacan (Figura 163).

Página 46v Página 46v

Figura 163 Figura 164

Na representação dos rostos o tlacuilo 4 desenha sempre um nariz proeminente e as bocas


projetadas para frente, mostrando uma preferência por representar os deuses do tonalpohualli,
desenhados em maior escala, com a boca aberta e mostrando os dentes enquanto os personagens
da história aparecem normalmente com a boca fechada.
Relembremos agora as características citadas por Escalante Gonzalbo quanto às formas e
posições comumente encontradas nas representações de figuras humanas nos códices da tradição
Mixteca-Puebla. Lista o autor cinco itens: orelha em forma de cogumelo cortado; mãos e pés
anatomicamente incorretos; unhas evidentes; sandálias grandes e também evidentes; e pés mais

295
longos que as sandálias, com dedos projetados para baixo.691 Também em relação aos pés
Robertson afirma que nos manuscritos tradicionais não há diferenciação entre direito e
esquerdo.692
Observando as figuras humanas desenhadas pelo tlacuilo 4 podemos identificar todos os
elementos citados acima. Escalante Gonzalbo, inclusive, cita o caso do Telleriano na
identificação da maioria das características693.
A orelha em forma de cogumelo cortado, inteira ou em parte, aparece nas páginas 9r, 9v,
14r, 14v, 15r, 15v, 19r, 21r, 23v, 29v, 32v, 38v, 39r, 40r, 40v, 41r, 41v, 42v e 46r. A maioria é
desenhada em deuses no tonalpohualli e homens preparados para serem sacrificados na seção
histórica. Normalmente são representados usando alguma espécie de brinco e por isso a maior
parte mostra somente o lado superior da orelha, visto que o lado inferior se encontra coberto com
a representação do brinco.
No tocante às mãos anatomicamente incorretas há dezenas de casos nos desenhos do
tlacuilo 4, tanto no tonalpohualli como na seção histórica, quer seja empunhando objetos ou
realizando algum outro gesto, como pode ser observado em alguns deles na Figura 165.

Páginas 14r, 22r, 22v, 37v e 44v


Figura 165

Quanto aos pés, nosso tlacuilo costuma representá-los sem diferenciação entre direito e
esquerdo (Figura 166 - primeira coluna). Escalante Gonzalbo694 afirma que nas representações
pré-hispânicas do estilo Mixteca-Puebla os pés são desenhados iguais: ou são neutros ou há a
possibilidade de identificá-los devido à representação do dedão, e nesses casos são sempre
desenhados dois pés direitos quando as figuras se dirigem para a direita e dois esquerdos quando

691
ESCALANTE GONZALBO, Pablo. Op. Cit. No prelo, p. 33-34.
692
ROBERTSON, Donald. Op. Cit., p. 17-18.
693
ESCALANTE GONZALBO, Pablo. Op. Cit. No prelo, p. 46.
694
ESCALANTE GONZALBO, Pablo. Op. Cit. No prelo, p. 174.

296
seguem para a esquerda. Diz ainda que o tlacuilo 4 do TR se encontra no segundo caso695. É
possível interpretar dessa forma os desenhos dos pés de nosso tlacuilo 4, pois ele realiza a divisão
entre os dedos com o uso de pequenos riscos. Em alguns casos o lado que seria o equivalente às
costas do pé parece apresentar um espaço maior entre a borda e o primeiro risco da divisão dos
dedos, dando a impressão de que se trata da representação do dedão (ver Figura 166 - segunda
coluna). Pensamos que essa distância maior se deve a uma ocorrência não intencional, pois na
maior parte das figuras ela não ocorre. Em nossa interpretação o tlacuilo 4 não desenha, ou não
tenta desenhar o dedão e por isso não é possível saber se representa um pé direito ou um
esquerdo, somente excetuando-se dois casos, que acontecem no final do manuscrito, sobre os
quais falaremos a seguir. Em alguns códices pré-conquista é possível ver que de fato representam
o dedão (Figura 167), no entanto em outros, como o Bórgia, por exemplo, ele não foi definido
(Figura 168), do mesmo modo que no Telleriano.

TR primeira coluna: 13r, 33r e 42v Nuttall 78, Cospi 10, Bórgia 62 e 70,
TR segunda coluna: 8r, 9r e 37v Fejérváry 9 e 44 Vaticano B 45 e Fejérváry 3

Figura 166 Figura 167 Figura 168

Há somente duas exceções no caso da representação dos pés, uma delas na página 46r e a
outra na 47r, ambas reproduzidas na Figura 169.

695
"El autor de la segunda parte histórica del Telleriano, por ejemplo, no corrige los pies (utiliza dos izquierdos o
dos derechos según la orientación de la figura)..." (ESCALANTE GONZALBO, Pablo. Op. Cit. No prelo, p. 174).

297
Páginas 46r e 47r
Figura 169

Escalante Gonzalbo cita esse detalhe sobre a distinção entre os pés da página 46r,
referindo-se a ele como um caso do que chama de "hipercorreção dos pés". Hipercorreção é o
termo que utiliza para nomear os casos onde os pintores indígenas tentaram imitar alguma
característica pictórica inexistente no período pré-hispânico696. Na figura da 46r a representação
ficou um pouco estranha: no pé esquerdo o dedão é bem definido e os outros dedos se projetam
para cima; enquanto no pé direito tenta fazer a mesma coisa projetando os 4 dedos menores para
baixo e o resultado é uma mistura entre a representação do pé de perfil com os dedos de frente. Já
na segunda ocorrência, da página 47r, obteve sucesso. Ali os dedões estão claramente
diferenciados, pois são representados um pouco mais largos e levemente separados do restante
dos dedos. Esses são os únicos casos onde os pés estão diferenciados no trabalho do tlacuilo 4.
Em relação ao próximo item, as unhas evidentes, também aperecem principalmente nas
imagens de maior dimensão, como as do tonalpohualli, mas também nas figuras de reduzida
dimensão da seção histórica. Ainda que não sejam representadas em todas as figuras, as unhas
aparecem em muitas delas, representadas normalmente mediante uma linha que corta a ponta dos
dedos de um lado a outro, tanto dos pés como das mãos. Na Figura 165, acima, aparecem unhas
nas mãos dos personagens representados e na Figura 166 (da página 37v - terceira imagem da
segunda coluna) reproduzimos um pé onde foram desenhadas as unhas. Outros exemplos podem
ser vistos nas Figura 82 e Figura 83.
A sandália proeminente é encontrada na maioria das figuras humanas do tlacuilo 4,
excetuando-se somente os indivíduos descalços e aqueles com sapatos europeus, já na parte

696
Em suas próprias palavras: "En varios de los cambios que se produjeron en la pictografía del siglo XVI he podido
apreciar una pauta de énfasis, una realización especialmente frecuente o exagerada de algunos rasgos que no existían
o eran distintos en las antiguas pictografías. He llamado a dicha pauta hipercorrección. Creo que la hipercorrección
nos habla, precisamente, del propósito del pintor indígena de acercarse a las nuevas formas y reglas de
representación". (ESCALANTE GONZALBO, Pablo. Op. Cit. No prelo, p. 143-144).

298
colonial da história. Todas essas representações das sandálias mostram os pés maiores que as
mesmas com os dedos se projetando para baixo (veja Figura 82). Esse detalhe da curvatura está
presente também nos pés descalços e inclusive nas representações dos sapatos espanhóis, detalhe
este observado por Escalante Gonzalbo697. Veja Figura 170.

Retirados da página 44v


Figura 170

Portanto, também na questão das formas, posições e proporção corporal o tlacuilo 4


mostra-se muito tradicional, somente excluindo-se as experimentações citadas, as quais não o
tornam menos fiel ao estilo nativo, pois não exercem uma transformação significativa em seu
trabalho e se restringem a elementos da história colonial.

3.1.6. Espaço, escala e perspectiva.

No estilo Mixteca-Puebla o espaço na relação entre as imagens, ou seja, na relação das


figuras entre si, chamado de 'espaço das cenas' por Escalante Gonzalbo698, é indefinido, pois a
relação existente é apenas conceitual, não existindo linha de apoio e tampouco linha de horizonte.
Não há, portanto, um espaço onde ocorrem as cenas. Os elementos geográficos são signos
formalizados e as formas arquitetônicas limitadas por convenções, como definiu Robertson699.
Essa mesma ausência de paisagem, relação conceitual entre as figuras representadas,
inexistência de linha de apoio e linha de horizonte pode ser notada no trabalho do tlacuilo 4.
Nesse aspecto é sempre fiel à tradição, mesmo no tratamento do conteúdo histórico do período
colonial.
As escalas no estilo nativo não se baseiam nas relações reais, por isso, é comum que
edifícios e seres humanos apresentem semelhantes dimensões, por exemplo. Nas seções
trabalhadas pelo tlacuilo 4 os edifícios, as plantas, os animais e outros elementos que interagem

697
ESCALANTE GONZALBO, Pablo. Op. Cit. No prelo, p. 139.
698
ESCALANTE GONZALBO, Pablo. Op. Cit. No prelo, p. 32- 33.
699
ROBERTSON, Donald. Op. Cit., p. 21.

299
com os personagens tendem a se aproximar da escala humana, que é exatamente o mesmo tipo de
tratamento dado a esses elementos no estilo Mixteca-Puebla. Assim, ele também mostra apego à
tradição no que se refere a esse aspecto.
Na questão da perspectiva, já podem ser encontrados alguns poucos experimentos, na
verdade apenas dois - ambos citados por Escalante Gonzalbo700. Esses dois casos, assim como os
outros experimentos realizados pelo tlacuilo 4, aparecem isoladamente nessas figuras e não
alteram o caráter tradicional do trabalho desse tlacuilo. O primeiro deles é a representação de um
banco ou mureta onde está sentado o frade, reproduzido na Figura 60, que segura um livro e um
terço (segunda figura, da página 46r). Além do banco o tlacuilo parece ter tentado desenhar o
livro aberto em perspectiva na mão do religioso.
O outro exemplo se encontra na página seguinte do códice, 47v, reproduzido na Figura
164. Ali o tlacuilo representou alguns vultos mortuários onde aplicou uma solução pictórica
ocidental para dar a idéia de que morreram muitos mais. Trata-se de pequenas linhas curvas
desenhadas sobre as cabeças dos mortos. Segundo Escalante Gonzalbo: "El recurso de la
aglomeración de curvas para indicar multitud empezó a usarse en el grabado gótico en madera y
fue empleado con gran frecuencia en los siglos XV y XVI."701

3.2. Características do tlacuilo 2

O tlacuilo 2 pintou três imagens do xiuhpohualli, das páginas 2r, 2v e 6r (reproduzidas na


Figura 73). O fato de ter realizado somente três imagens no códice limita bastante a análise, mas
ainda assim pode-se notar que suas representações também são bastante apegadas ao estilo
Mixteca-Puebla.

3.2.1. Estilização e naturalismo

Nas três imagens é possível notar a utilização de estereótipos nos objetos que carregam os
deuses, como cetros e escudo, assim como nas peças do vestuário e adereços. Sua representação

700
ESCALANTE GONZALBO, Pablo. Op. Cit. No prelo, p. 114-115/ 179.
701
ESCALANTE GONZALBO, Pablo. Op. Cit. No prelo, p. 114-115.

300
da figura humana também é estereotipada (veja Figura 73). Há somente um elemento que chama
a atenção sobre a questão do naturalismo na página 6r: as penas verdes de quetzal no topo do
toucado. Nelas foi utilizado um recurso alheio ao estilo tradicional, o uso de um tom de verde
claro no topo da pena e outro escuro na base, fazendo uma espécie de dégradé. Isso ocorre em
apenas uma das mechas de penas, enquanto na outra a aplicação do verde mais escuro é feita com
uma divisão clara entre as cores. Falaremos mais sobre eles quando tratarmos das cores, mas é
possível que o tom de verde mais escuro, acompanhado de uma linha negra no centro das penas
tenham sido adicionados por outro indivíduo, possivelmente o tlacuilo 1.
Quando comparamos elementos representados nas imagens do tlacuilo 2 com as do
tlacuilo 4 notamos que o segundo tem um desenho mais estereotipado que o primeiro. Já
discutimos brevemente as diferenças existentes entre esses dois tlacuilos nas comparações
realizadas no Capítulo III.

3.2.2. Linhas-marco e linhas de contorno

Assim como o tlacuilo 4, o tlacuilo 2 também possui uma linha-marco muito similar a
usada nos manuscritos tradicionais do estilo Mixteca-Puebla. A linha negra é usada para
demarcar as áreas de cor e acrescentar detalhes. As linhas de seus desenhos costumam manter a
mesma espessura, apesar da imagem da página 6r mostrar uma linha mais fina. Um possível
motivo dessa diferença é porque na última há mais detalhes na roupa e adereços do que nas duas
primeiras, veja Figura 73.

3.2.3. Desenho modular e unificado

Poderíamos dizer que o desenho desse tlacuilo 2 e até mesmo o do tlacuilo 4 parece bem
mais unificado em comparação com os códices pré-hispânicos. Não podemos deixar de
considerar a hipótese de que talvez essa diferença adevenha de uma característica estilística
regional ou local.
No caso desse tlacuilo em particular há poucas imagens para serem avaliadas, e não
existem códices pré-hispânico do vale do México para que pudéssemos realizar uma comparação.
Mas também há a possibilidade de que esse aspecto mais arredondado possa ser de fato uma

301
influência da arte européia, visto que o TR foi realizado em meados do século XVI, ou seja, já
havia transcorrido pelo menos 30 anos de convivência com a cultura européia.
De qualquer forma as imagens do tlacuilo 2 têm uma aparência mais unificada mesmo em
comparação com o tlacuilo 4, sem com isso abandonar o modo modular de representar as figuras.
Por exemplo: a cabeça e os elementos do vestuário das imagens parecem peças encaixadas,
especialmente nas duas primeiras figuras (das páginas 2r e 2v, Figura 73); a orelha e o cabelo da
segunda (2r) têm a aparência de mais dois adereços agregados à figura; na terceira imagem (6r)
os dedos da mão encontram-se isolados, como se não formassem uma unidade com o dedão e a
palma, e a cabeça também parece encaixada no restante do corpo.

3.2.4. Cor

Na maioria dos casos a cor é aplicada de modo uniforme e sem a utilização de recursos
pictóricos nas imagens do tlacuilo 2, com exceção das penas verdes do toucado da figura da
página 6r que referimos acima. Há alguns poucos casos onde as cores foram aplicadas sem linha-
marco mas, como no caso das imagens do tlacuilo 4, trata-se de pequenos detalhes que também
aparecem sem linha-marco nos manuscritos pré-hispânicos.
Algumas linhas de esboço são visíveis, especialmente na figura da página 2r. Na página 6r
vê-se claramente que linhas negras foram traçadas por baixo da figura definitiva e que aparenta
ter sido um equívoco do tlacuilo. Aparentemente, ao invés de cobrir o “erro” com tinta branca, o
tlacuilo preferiu cobri-las somente com o novo desenho, encaixando a cabeça da nova figura no
local exato onde estava a anterior. Esse detalhe é importante porque na interpretação dessa
imagem é preciso levar em conta que a figura que de fato foi desenhada no mesmo local pode ter
adquirido algumas características da imagem que estava sendo realizada embaixo, que
possivelmente seria a figura agora localizada na página seguinte, na 6v. Parece que o tlacuilo
tentou cobrir com a tinta vermelha a pintura facial de cor negra que passa pela região dos olhos,
assim como os dois traços paralelos negros que tinha realizado na bochechas. O fato do tlacuilo 2
ter realizado essa figura depois e antes de imagens executadas pelo tlacuilo 1 nos fizeram crer a
princípio que talvez ele tivesse intervindo para corrigir um erro provocado pelo tlacuilo 1, porém,
as linhas que se revelam diferem do estilo usado para representar a figura da 6v, especialmente a

302
forma do cabelo. Portanto, é possível que o erro tenha sido cometido pelo próprio tlacuilo 2. Veja
reprodução de fragmentos das duas imagens na Figura 171.

Páginas 6r (tlacuilo 2) e 6v (tlacuilo 1)


Figura 171

No tocante à aplicação das cores podemos dizer que normalmente são inseridas por cima
das linhas-marco, incluindo os tons mais fortes, como o marrom. Aparecem claramente por cima:
o tom de marrom mais escuro, o ocre, azul, vermelho e verde da imagem da página 2r; o ocre, o
azul e o vermelho da página 2v; e o vermelho, o ocre, o azul e os verdes da página 6r. As outras
cores encontradas nessas figuras podem ter sido aplicadas por baixo das linhas negras. A maioria
das cores aplicadas na figura da 6r possuem tons diferentes das usadas nas outras imagens do
xiuhpohualli, excetuando-se os verdes aplicados nas penas do toucado, que se parecem
especialmente com os usados nas penas dos toucados das figuras das páginas 4r, 4v, 5r e 6v,
incluindo o tom de negro usado na linha central. Um dos tons de marrom e o vermelho da 2r
também se diferem bastante dos usados nas outras figuras, com exceção da imagem da 2v, com
quem compartilha o vermelho, o azul e o ocre.
Como dissemos anteriormente, o caso mais estranho no tocante às cores que ocorre nessas
imagens do tlacuilo 2, especialmente por esse indivíduo apresentar todas as características da
tradição Mixteca-Puebla, é o uso do dégradé nas penas do toucado (veja Figura 73). Nas penas
do cuauhpilolli o tom de verde escuro é usado na base, mas sem o recurso do dégradé empregado
nas penas do alto da cabeça. O modo como foi aplicado nesse primeiro caso é idêntico ao usado
nas figuras das páginas 4r, 4v e 5r. Já o dégradé do alto do toucado é igual ao que aparece na
imagem da 6v. Além disso, a linha negra (ou verde muito escura) desenhada na parte central das

303
penas é mais espessa que as usadas no restante da imagem, similares às realizadas nas penas dos
toucados das outras imagens que apresentam esse detalhe, todas do tlacuilo 1.
Enfim, é realmente muito estranho que todos os tons das cores usadas nessa figura da 6r
sejam distintos dos usados nas outras imagens, com exceção dos aplicados nessas penas. E
também é muita coincidência que tanto esses tons de tinta, como o modo de realização sejam
idênticos aos das figuras do tlacuilo 1. Por isso, preferimos sustentar a hipótese de que esses
detalhes foram incluídos pelo tlacuilo 1.

3.2.5. Formas, posições e proporção corporal da figura humana

A avaliação geral das proporções corporais somente pode ser feita na última figura, da
página 6r, pois é a única que se encontra representada de corpo inteiro e em pé. Infelizmente
Escalante Gonzalbo não fornece as medidas que tomou dessa seção do códice, mas esclarece que
seu método se baseou em medir as cabeças, do queixo à parte mais alta da cabeça, a partir de uma
linha traçada na frente do rosto da figura702. Na seção histórica e até mesmo em algumas figuras
do tonalpohualli é possível realizar essa operação sem qualquer problema, mas a maioria das
figuras do tonalpohualli e especialmente do xiuhpohualli mostram algumas dificuldades, pois
foram desenhadas em partes ou em genuflexão. Soma-se a isso o fato da maioria portar um
toucado e nesses casos não sabemos qual foi o procedimento utilizado por Escalante Gonzalbo.
De qualquer forma preferimos excluir o toucado, medindo as figuras a partir do topo da
representação do cabelo até o queixo. Obtivemos, então, a proporção de 1:3.3 na figura da página
6r, ou seja, a proporção se encontra dentro dos padrões utilizados nos manuscritos do estilo
Mixteca-Puebla.
No tocante às posições corporais nosso tlacuilo 2 mostra a cabeça sempre de perfil, o
tronco aparentemente de frente nas duas primeiras figuras, enquanto na última o tronco e quadril
estão em três quartos de perfil e as pernas e braços de perfil. Isso significa que ele também
mantém as posições corporais tradicionais.
Desenha sempre um nariz grande e a boca aberta, nos dois últimos casos revelando os
dentes. A orelha em forma de cogumelo cortado aparece claramente na segunda figura, da página
2v. Vemos que não há diferenciação entre pé direito e esquerdo na figura da página 6r. Nos pés e

702
ESCALANTE GONZALBO, Pablo. Op. Cit. No prelo, nota 21 - p. 33.

304
na mão esquerda que aparece na imagem da 6r não há unhas. As sandálias são grandes e
evidentes como nos manuscritos tradicionais e os pés mostram-se maiores que as sandálias,
projetando-se para baixo.
Dessa forma, vemos que a única característica das figuras humanas do estilo Mixteca-
Puela que esse tlacuilo não possui é a representação das unhas. Nos outros aspectos parece
manter o modo tradicional703.

3.2.6 Espaço, escala e perspectiva.

Como as imagens do tlacuilo 2 aparecem isoladas nas páginas nota-se somente que não
utiliza paisagem ou linha de horizonte, mas é impossível avaliar o modo como tratava a escala,
pois não existem mais figuras para que possamos analisar suas relações. No tocante à perspectiva
podemos dizer que não utiliza esse recurso, apresentando sempre figuras planas e bidimensionais.
Nesses aspectos, portanto, apresenta as características do estilo Mixteca-Puebla.

3.3. Características do tlacuilo 1

O tlacuilo 1 realizou as imagens das páginas 1r, 1v, 3r, 3v 4r, 4v, 5r, 5v e 6v. A
heterogeneidade de suas representações, causou-nos dificuldades na definição das páginas exatas
em que trabalhou. Produz imensa variação na espessura das linhas, modifica ocasionalmente a
forma como representa algum determinado elemento, desenha grande quantidade de linhas
interrompidas e refeitas, enfim, suas imagens são extremamente heterogêneas e por isso muito
difíceis de analisar do ponto de vista estilístico, uma vez que há pouca unidade. Em alguns casos
suas figuras apresentam um aspecto rígido e bastante plano, especialmente em certos detalhes,
enquanto em outros elas parecem mais naturalistas e similares às do tlacuilo 2, pois utiliza formas
mais arredondadas e linhas mais delicadas.

703
É preciso considerar que o número de figuras desenhadas por esse indivíduo é muito pequeno para fazermos
qualquer afirmação definitiva sobre esses elementos.

305
3.3.1. Estilização e naturalismo

Na maioria dos casos ele utiliza estereótipos na representação de suas figuras e nos
elementos que elas portam ou as rodeiam, no entanto arredondamentos e preocupação em definir
alguns pequenos detalhes são visíveis em algumas imagens, que por isso acabam adquirindo uma
aparência naturalista. Isso ocorre especialmente em alguns pés (veja exemplos na Figura 172).

Páginas 1v e 6v
Figura 172

Um caso interessante ocorre na página 1v, onde o tlacuilo esmerou-se em dar um aspecto
mais natural ao desenho, definindo as curvas da perna e dos pés e acrescentando pormenores que
distinguem o braço do antebraço. Também a mão esquerda mostra o dedão no centro da mão.
(Figura 173).

Todas da página 1v
Figura 173

Outros elementos que apresentam algum naturalismo são as penas de quetzal do toucado
de alguns dos deuses, caso idêntico ao citado sobre o tlacuilo 2. Esse detalhe, associado à
inclusão da linha negra no centro da pena e ao fato de terminarem em ponta, em vez de

306
arredondadas, como fazem os tlacuilos 2 e 4, tornam o aspecto dessas penas mais naturalista que
no desenho dos dois outros tlacuilos. Veja exemplos dessas ocorrências na Figura 178.
Reproduzimos na Figura 174 dois outros casos da aparência mais realista de alguns
elementos das imagens do tlacuilo 1 em comparação com os dois já analisados, tlacuilos 4 e 2.

Fusos, das páginas 3r (tlacuilo 1) e 19v (tlacuilo 4)


Cuauhpilolli, páginas 4v (tlacuilo 1), 6r (tlacuilo 2) e 21v (tlacuilo 4)
Figura 174

3.3.2. Linhas-marco e linhas de contorno

As linhas negras que o tlacuilo 1 aplica em suas imagens já se distanciam razoavelmente


das antigas linhas-marco e podem ser consideradas linhas de contorno. Em geral são demasiado
finas e descontínuas, aparecendo às vezes duplas e quebradas, especialmente nas páginas 1r, 4r e
5r (Figura 175).

Páginas 1r, 1r, 1r, 4r, 4r, 5r e 5r


Figura 175

307
Em outros momentos as linhas finas contrastam com outras espessas na mesma imagem,
como na 1v e especialmente na 5v (Figura 176).

Páginas 1v, 1v, 1v, 5v, 5v e 5v


Figura 176

3.3.3. Desenho modular e unificado

No que se refere à aparência modular as imagens do tacuilo 1 apresentam alguma


variação. Algumas figuras têm um aspecto mais fragmentado - os melhores exemplos são aqueles
das páginas 1r, 4v, 5r e 5v (veja Figura 72). Outras, entretanto, parecem mais unificadas, como é
o caso da figura da página 1v (Figura 72)..

3.3.4. Cor

Na maioria dos casos ele aplica as cores de modo uniforme, porém, há ocasiões onde
realizou uma espécie de dégradé. Na figura da página 6r, aparentemente, cometeu um “erro” que
foi corrigido com tinta branca e coberto depois pela imagem definitiva. Veja Figura 177.

Página 6v
Figura 177

308
Com exceção dos dégradés, há umas poucas cores aplicadas sem linha de contorno, mas
somente ocorrem em pequenos detalhes, como decoração das franjas dos escudos e pinturas
faciais, casos onde às vezes também não são contornadas nos manuscritos pré-hispânicos.
O uso do dégradé, referido acima, ocorre nas penas de quetzal dos toucados das figuras.
Nelas aparecem dois tons de verde, sendo que o mais escuro foi utilizado na base das penas.
Algumas vezes a mais escura é aplicada em contraste com a mais clara, ou seja, sem a realização
de uma passagem gradual entre uma cor e outra ou pelo menos com uma passagem bem pouco
gradual (Figura 178 - lado esquerdo), enquanto em outros foi feito um dégradé (Figura 178 -
lado direito).

Páginas 4v, 4v, 5r e 5r Páginas 6v e 6v


Figura 178

O tlacuilo 1, portanto, aplica as cores do modo tradicional na maior parte das vezes, mas
no dégradé das penas mostra utilização de recursos pictóricos europeus.

3.3.5. Formas, posições e proporção corporal da figura humana

Na maioria dos casos o tlacuilo 1 representa uma cabeça grande em contraste com um
corpo curto, tal como costumam aparecer nos manuscritos da tradição Mixteca-Puebla.
Entretanto, ocorrem algumas desarmonias em determinadas figuras, por exemplo: a figura da
página 1v mostra um cabelo muito alto, enquanto o braço esquerdo parece mais longo que o

309
direito; a da página 5r teve o tronco e as pernas alongados, mas ostenta um rosto pequeno onde
foi colocado um toucado alto; e a figura da 6v, por sua vez, foi representada com o tronco e os
braços levemente alongados e com adereços (escudo, cetro e penas de quetzal do toucado e do
adorno nas costas) bastante grandes. (ver Figura 72).
Há somente duas figuras humanas em pé, que mostram 1:4 e 1:2.6 de proporção entre
cabeça e corpo. A medida das duas alongadas que citamos acima (5r e 6v) deve ser um pouco
maior, mas é difícil medi-las por estarem em genuflexão. No entanto, todas as proporções devem
manter-se dentro dos limites encontrados nas representações do estilo Mixteca-Puebla e, portanto,
esse tlacuilo mantém as proporções tradicionais, ainda que tenha gerado figuras desarmônicas do
ponto de vista das convenções indígena e européia.
Todas as suas figuras têm a cabeça de perfil, assim como as pernas e os braços. Quanto
aos troncos a maioria está de frente, com exceção da imagem da página 1v, que aparentemente
está em três quartos de perfil. O quadril aparece normalmente de perfil, mas algumas estão em
três quartos de perfil. Apresenta, então, posições encontradas nos manuscritos tradicionais do
estilo Mixteca-Puebla.
As orelhas aparecem em duas figuras, na da página 3v e na da 6v. Curiosamente, em cada
uma delas é desenhada com um formato distinto. No primeiro caso em uma forma similar à
tradicional e no segundo já bastante simplificada. Veja reproduções na Figura 179.

Páginas 3v e 6v
Figura 179

A maioria das imagens possui posição dos pés indefinida - ou apresentam dois esquerdos,
pois não há definição da posição do dedão -, com exceção de duas figuras, da página 1r e da 1v,
onde esquerdo e direito foram diferenciados. Veja a Figura 180 (lado esquerdo). Quanto às mãos
estão todas na posição anatomicamente correta. Na página 1v a mão esquerda é representada com
uma forma inexistente na tradição Mixteca-Puebla, com o dedão no centro da palma, a qual

310
reproduzimos na Figura 180 (lado direito). As unhas, tanto das mãos como dos pés, não foram
representadas por esse tlacuilo.

Páginas 1r e 1v Página 1v
Figura 180

No que se refere às sandálias, são evidentes na maioria das imagens que as possuem, no
entanto, a representação dos dedos dos pés somente aparece com uma forma parecida à
tradicional na figura da 4v. Nas outras os dedos são somente um pouco maiores que as sandálias
e se dobram muito levemente para baixo, sendo que alguns são bastante arredondados. Assim,
essas formas já se encontram bastante alteradas e se diferenciam razoavelmente do estilo
tradicional.

3.3.5. Espaço, escala e perspectiva

Assim como o caso do tlacuilo 2 as imagens do tlacuilo 1 também aparecem isoladas nas
páginas sem aplicação de linha de horizonte ou paisagem e do mesmo modo, não é possível
analisar a maneira como trata a escala, uma vez que as figuras são representadas isoladas.
Somente na página 4r há a representação de uma montanha por trás do deus, que teve só a cabeça
desenhada e a relação entre os dois elementos parece ser somente conceitual, como nos casos do
estilo Mixteca-Puebla.

311
3.4. Características do tlacuilo 3

Não se pode dizer muitas coisas baseados na única imagem realizada pelo tlacuilo 3, da
página 7r. Na verdade nem sequer é possível afirmar seguramente que se trata de um tlacuilo
distinto, pois é possível que a imagem tenha sido feita pelo mesmo indivíduo que chamamos de
tlacuilo 1. Porém, como a página mostra evidências de que foi acrescentada posteriormente à
seção do xiuhpohualli, preferimos atribuir essa imagem a outro tlacuilo.
Não é possível analisar nesse tlacuilo as características que vínhamos observando até
agora, pois não há elementos suficientes na imagem para isso. Nem sequer existe um paralelo
entre essa figura e as de outros códices, pois até onde sabemos é a única representação
pictográfica existente dos nemontemi.
Podemos, então, tentar obter algumas conclusões a partir da análise dos elementos
nela existentes. No desenho aparecem as linhas de esboço, pois as figuras finais foram deslocadas
do local antes definido para elas. A figura em forma de espiral que se encontra na parte superior
do quadrado apresenta linhas negras, mas é difícil determinar utilizando somente esse elemento
se são linhas de contorno ou linhas-marco. E do ponto de vista da habilidade técnica a imagem
parece não ter sido realizada por um indivíduo habilidoso, pois há irregularidades entre as
figuras.

3.5. Características do tlacuilo 5

Chamamos de tlacuilo 5 o indivíduo que realizou as imagens da migração, ou seja,


páginas 25r a 28v (Figura 3). Consideramos esse tlacuilo o mais ocidentalizado do códice pelas
razões que exporemos abaixo.

3.5.1. Estilização e naturalismo

No caso dos glifos anuais, pela simplicidade e repetição dos elementos poderíamos dizer
que se mantém o modo estereotipado de realizá-los, no entanto é preciso considerar que não
havia equivalente destes elementos na arte européia, de modo que:

312
" su representación se desarrolló hasta cierto punto al margen de los impulsos transformadores
traídos por las enseñanzas y los grabados de los europeos (...) el cuerpo y los glifos se encuentran
en extremos estrictamente opuestos en lo que se refiere a la velocidad de la transformación
estilística operada en la época colonial. Los religiosos se empeñaron en enseñar a los indios a
pintar el cuerpo humano de otra manera, porque necesitaban que los indígenas pintaran santos,
Vírgenes y Cristos.704

Mas, se os signos mantiveram os estereótipos não podemos dizer o mesmo das imagens
centrais, pois nelas a tendência à naturalização se torna bastante clara. O tlacuilo 5 apresenta
muita variação na representação dos diferentes elementos que desenha. Não define alguns
detalhes nas figuras, como as mãos, por exemplo, que muitas vezes parecem amontoados de
linhas. Para que se possa ter uma idéia do aspecto mais naturalista e menos estereotipado
utilizado por ele selecionamos, na Figura 181, alguns elementos de suas imagens (na primeira
linha) e comparamos com os do tlacuilo 4 (segunda linha).

Imagens retiradas das páginas 25r, 25v, 26r, 26v e 28r (tlacuilo 5)

Páginas 30r, 33v, 41r, 43r e 37r (tlacuilo 4)

Figura 181

704
ESCALANTE GONZALBO, Pablo. Op. Cit. No prelo, p. 239.

313
Nos desenhos desse tlacuilo nota-se uma preocupação em aproximar as representações da
forma mais naturalista européia, quer seja incluindo detalhes, arredondando as formas,
posicionando os corpos de uma forma anatomicamente correta, dentre outros. Note, por exemplo,
na quarta imagem do tlacuilo 4 (segunda linha - página 43r) o problema ocorrido na
representação dos diferentes planos no desenho do arco, um tipo de confusão que não acontece
com o tlacuilo 5, que representa corretamente a posição do braço que passa na frente do arco e o
que passa atrás. O mesmo acontece com a flecha que atravessa o corpo do tolteca na imagem
seguinte, da página 28r.
Na terceira imagem do tlacuilo 5, ainda na Figura 181, pode-se notar o desenho do osso
do tornozelo (tálus) na representação do pé esquerdo, um detalhe inexistente nos manuscritos da
tradição Mixteca-Puebla (também notado por Escalante Gonzalbo705) e que foi representado por
esse tlacuilo em várias de suas figuras. Compare também o desenho do peixe, que é bastante
estereotipado na imagem do tlacuilo 4, onde acrescentou inclusive uma língua, enquanto o
tlacuilo 5 o desenhou com escamas, as barbatanas e as guelras ajustadas na posição correta.
Dentre outros elementos das imagens do tlacuilo 5 que apresentam naturalismo podemos
ainda destacar: as roupas de alguns guerreiros chichimecas, que mostram a textura dos pelos e
dobras do tecido (páginas 25v e 26r); a disposição dos troncos de madeira, que aparecem
cruzados, também na 28r; e o sangue saindo das feridas ou partes decapitadas dos personagens
mortos na 28v. Veja reproduções abaixo na Figura 182.

Páginas 25v, 26r, 28r, 28v e 28v


Figura 182

Os desenhos do tlacuilo 5, portanto, já se afastam bastante do estilo Mixteca-Puebla no


tocante aos estereótipos, apesar de ainda guardar vínculos com ela, especialmente no uso dos

705
ESCALANTE GONZALBO, Pablo. Op. Cit. No prelo, p.149-150.

314
signos dos anos, dos glifos dos topônimos e das pegadas indicando os caminhos seguidos na
migração.

3.5.2. Linhas-marco e linhas de contorno

Já não se pode referir às linhas negras usadas nos contornos dessas figuras como linhas-
marco, pois nesse tlacuilo ela já perdeu sua homogeneidade e a função inicial de separar as áreas
de cor e adquiriu características das linhas de contorno da tradição pictórica ocidental. Na maioria
dos casos os traços não são contínuos, apresentando linhas duplas em grande parte das imagens,
especialmente nas figuras humanas, onde são menos espessas em comparação com os glifos dos
topônimos, por exemplo. Veja exemplos de imagens dessa seção nas Figura 69 (segunda linha),
Figura 97 e Figura 98.

3.5.3. Desenho modular e unificado

O desenho do tlacuilo 5 apresenta-se já bastante unificado, apesar de ainda aparecerem


figuras um pouco modulares, mostrando algum ou alguns elementos que parecem encaixar-se no
restante do conjunto, como os exemplos da Figura 183. A primeira figura aparenta ter a cabeça e
o braço esquerdo conectados, mas o cabelo, o outro braço e até mesmo um pedaço da roupa na
altura do peito parecem ali encaixados. Contudo, é difícil dizer seguramente se essa ocorrência se
deve a resquícios do modo tradicional de representar as figuras ou à falta de habilidade técnica de
nosso tlacuilo 5. Na seguinte imagem o braço esquerdo e as penas também parecem encaixados,
mas já em menor grau que no primeiro caso.

315
Páginas 26r e 27r
Figura 183

De modo geral suas imagens são bastante unificadas e, apesar de apresentar alguns
resquícios da tradição, vê-se que existe uma preocupação em reproduzir os cânones da arte
européia.

3.5.4. Cor

A cor por esse tlacuilo é aplicada uniformemente, mas algumas cores mostram-se
manchadas. Possivelmente se trate de alterações causadas pelo tempo. Isso ocorre
particularmente com o verde. Os marrons e os rosados, utilizados como tom de pele, costumam
estar bastante diluídos e no geral a paleta de cores é mais pobre que a usada pelo tlacuilo 4.
O tlacuilo 5, na grande maioria dos casos, não emprega nenhum tipo de recurso pictórico
europeu, como dégradés e sombreados, com exceção de um elemento na página 26r, um crânio
representado em um tzompantli706 (Figura 184). O volume de algumas partes do crânio é dado
com uns leves sombreados. Mas, apesar desse elemento, em geral a cor é sempre uniforme, ainda
que diluída em alguns casos.

706
Tzompantli: estaca, poste donde se colgaban las cabezas de las victimas (RÉMI, Siméon. Op. Cit., p 733).

316
Página 26r
Figura 184

Mesmo aplicando a cor uniformemente as figuras não têm a mesma aparência plana vista
na tradição Mixteca-Puebla, pois a linha de contorno usada não favorece esse aspecto. Algumas
imagens, inclusive, sugerem um leve volume devido à forma como foram desenhadas.
Aparentemente o marrom, que parece diluído, foi aplicado por baixo das linhas negras que
fazem os detalhes indicativos dos pelos das roupas dos chichimecas, mas é possível que tenha
sido aplicado por cima do contorno que delimita a área da roupa. Já o bege rosado do tom de pele
e o cinza, possivelmente feito com o negro aguado, parecem estar por baixo das linhas negras,
enquanto o restante das cores aparentemente vão por cima, especialmente o verde, o vermelho, o
ocre e o azul.

3.5.5. Formas, posições e proporção corporal da figura humana

No que se refere à figura humana esse tlacuilo apresenta uma grande heterogeneidade, tão
grande que acabou gerando uma hipótese bastante complexa sobre essas diferenças na obra de
Robertson707. O autor caracteriza três estilos de figuras nessa seção: o estilo 1 se refere à figura
maior da página 25r e às duas da página seguinte, 25v (primeira e segunda imagens, na segunda
linha, da Figura 69), e que apresentam cabeça pequena, longo e magro torso e longos membros;
no estilo 2 se encontram todas as figuras representadas nas páginas 26r e 26v (personagens 6, 7 e
11 da Figura 94708), que mostram média estatura (são mais baixas que as do estilo 1 e mais altas
que estilo 3), estrutura confusa na altura do ombro, onde o mais próximo é mostrado de perfil e o

707
ROBERTSON, Donald. Op. Cit., p. 114.
708
Primeira e segunda imagens da segunda linha e primeira da terceira linha.

317
mais distante de frente (veja primeira imagem da Figura 183), sendo que a nuca nasce do ombro
mais próximo e atrás da linha intermediária na figura de túnica branca dos toltecas (Figura 86); e
no estilo 3 estão as figuras pequenas que se encontram em cima e dos lados do topônimo de
"Tonanicaca", no topo da página 25r, e todas as figuras da página 27r a 28v (personagens 2, 3, 4,
5, 8, 9, 10, 12, 13 e 14 da Figura 97709), que se caracterizam por apresentar as proporções do
estilo nativo, com cabeças grandes, corpos grossos e formas fechadas710.

Página 26v
Figura 185

De fato, são bem grandes as diferenças de proporções das figuras desse tlacuilo 5, mas
estabelecer uma lógica que as separe não ajuda muito a entender o porquê de tantas diferenças. É
possível, no entanto, fazer algumas suposições, avaliando as ocorrências a partir da maior
discrepância: entre as páginas 26v e 27r. Até a 26v o tlacuilo vinha representando as figuras
humanas em maior escala e mais alongadas, pois o número de elementos nessas páginas era
pequeno, mas quando necessitou colocar muitas figuras numa mesma página (13 na 27r) reduziu
drasticamente seu tamanho. Os topônimos, de importância central para a compreensão do
conteúdo, mantiveram a mesma altura. Na página seguinte o número de elementos diminuiu (para
5 na página 27v), mas aparentemente o tlacuilo optou por manter as mesmas proporções e escalas
empregados na página anterior, 27r.
Escalante Gonzalbo711 fornece as proporções corporais das figuras dessa seção de nosso
códice, que segundo o autor variam de 1:3,5 a 1:7,2, ou seja, o mesmo tlacuilo apresenta
proporções próximas às usadas nos manuscritos tradicionais e também àqueles mais

709
Ou seja, 4 últimas figuras da primeira linha, 3 últimas da segunda e 3 últimas da terceira.
710
ROBERTSON, Donald. Op. Cit., p. 114.
711
ESCALANTE GONZALBO, Pablo. Op. Cit. No prelo, p. 151.

318
ocidentalizados. Por que tanta variação? Possivelmente ocorreram por motivos aleatórios, ou
seja, a explicação que demos acima, falta de espaço ou bastante espaço disponível etc. O fato de
estar entre duas tradições pictóricas bastante contraditórias, devia dividir imensamente um
tlacuilo que não tivesse tido uma formação específica sobre os aspectos a serem contemplados,
uma vez que realizava o trabalho para patrocinadores de um dos grupos enquanto o conteúdo
pertencia ao outro.
Escalante Gonzalbo afirma que quando alguns pintores tentam alongar suas figuras se
produz uma falta de harmonia, citando como exemplo o caçador da página 25v do nosso tlacuilo
5 (Figura 186), que "ostenta una cabeza diminuta en contraste con un cuerpo esbelto, muy
gruesos brazos y anchas caderas".712

Página 25v
Figura 186

E falando sobre as proporções da figura humana explica:

"...parte del proceso de naturalización que afectó a la representación de la figura humana en la


pictografía, después de la conquista, consistió en reducir el tamaño de cabezas, pies y manos e
incrementar el de las extremidades y el tórax. Algunos pintores llegaron a prolongar
desmesuradamente ciertas partes del cuerpo, como el cuello y las piernas, para contrarrestar la
antigua tendencia; esto dio lugar a figuras de proporciones incoherentes..." 713

712
ESCALANTE GONZALBO, Pablo. Op. Cit. No prelo, p. 232.
713
ESCALANTE GONZALBO, Pablo. Op. Cit. No prelo, p. 150.

319
Quanto às posições corporais há também bastante variação. Todas as figuras aparecem
com a cabeça de perfil, com exceção de uma delas, representada de costas, na página 28r (veja
Figura 187). Os pés são todos mostrados de perfil, enquanto a posição dos braços e do tronco já
apresenta muitas variantes: há figuras com o tronco e os braços de perfil (como os personagens 2,
3, 4, 5, 9 e 10 da Figura 97714); com o tronco e os braços de frente (personagens 11, 12, 13 e 14
da Figura 97715); com o tronco de frente e os braços de perfil (sexta imagem da Figura 97716); e
com o tronco em três quartos de perfil e os braços de perfil (imagens 1, 7 e 8 da Figura 97717).

Página 28r
Figura 187

Como pode ser visto a heterogeneidade também se estende às posições corporais. Há


novas posições, inexistentes na tradição Mixteca-Puebla, como a figura de costas, mas também
aparecem posições tradicionais, como o braceio característico do ato de caminhar.
Quanto às formas da tradição Mixteca-Puebla, praticamente nenhuma subsiste nas
imagens do tlacuilo 5. As orelhas em forma de cogumelo cortado estão ausentes, mesmo porque
nem sequer representa orelhas em seus personagens. Desenha sempre o cabelo cobrindo a região
da orelha e da testa. As mãos são sempre desenhadas com muita imprecisão, muitas vezes
parecendo um amontoado de linhas, onde não são colocadas unhas. Aparentemente realizou um
esforço para que nelas não ocorressem problemas anatômicos. O mesmo ocorreu com os pés,
sempre diferenciados (o esquerdo do direito) e onde desenhou a unha do dedão no pé mais
distante de algumas figuras. Além disso, acrescentou um sinal que representa o osso da canela na
maioria dos desenhos.

714
Respectivamente, imagens da 25v, 27r, 28r, 28v (na primeira linha da Figura 33), 27v e 28r (na segunda linha da
mesma Figura 33).
715
Imagens da 26v, 27r, 27v e 28r (na terceira linha da Figura 33).
716
Ou primeira imagem da segunda linha, reprodução da página 25v.
717
Primeira imagem da primeira linha (da página 2r), e segunda e terceira da segunda linha (26v e 27r).

320
A sandália da figura localizada no lado superior esquerdo da página 25r (Figura 3), única
com esse detalhe, não tem a mesma aparência das vistas no estilo tradicional. Os pés até
apresentam uma leve curvatura, mas já não possuem os dedos ultrapassando a sandália e se
projetando para baixo.
Assim sendo, esse tlacuilo não utiliza mais as formas tradicionais comuns, aproximando-
se de muitas das convenções pictóricas da arte européia.

3.5.6. Espaço, escala e perspectiva

Robertson afirma que nessa seção os signos indicativos dos lugares por onde passam os
migrantes são distribuídos nas páginas sem indicação de paisagem, ou seja, são apenas signos e
não elementos da paisagem. "As pegadas que conectam os signos de lugares e as figuras são
apenas instrumentos de conexão e não elementos que criam uma pintura do mundo".718
Igualmente, a escala das figuras em relação aos topônimos parece seguir as características
tradicionais e a perspectiva não é utilizada. Nesses aspectos então, o tlacuilo 5 apresenta
características similares àquelas dos manuscritos tradicionais do estilo Mixteca-Puebla.

3.6. Características do tlacuilo 6

O tlacuilo 6 foi o responsável pela execução dos glifos anuais das páginas 29r e 29v
(Figura 84). O número de elementos representados por ele é bastante restrito e por isso a análise
se torna bem limitada.
Os glifos representados parecem razoavelmente estilizados, porém, como se tratam de
elementos simples e repetitivos é difícil avaliar se o trabalho desse indivíduo não estaria
influenciado pelo naturalismo. Seria necessário que tivéssemos alguns exemplos menos
convencionados.
As linhas-marco usadas por ele são espessas e irregulares. Não possui a precisão
observada no trabalho do tlacuilo 4, mas utiliza a linha para delimitar as áreas de cor e

718
ROBERTSON, Donald. Op. Cit., p. 113.

321
acrescentar os detalhes devidos a cada imagem. É difícil saber se em outro tipo de representação,
as linhas-marco seriam aplicadas da mesma forma que nos manuscritos tradicionais.
As cores são aplicadas em áreas planas e homogêneas, exatamente como nos manuscritos
tradicionais, sem a utilização dos recursos pictóricos europeus, porém aparentemente os glifos
foram pautados pelo tlacuilo 4, pois suas cores são similares a usadas nos glifos desse último.
Como são elementos simples também não é possível avaliar se as representações desse
tlacuilo tendem mais a módulos ou a desenhos unificados, os glifos, portanto, parecem
representantes de modo convencional.
Não há representações de figuras humanas para que realizemos sua análise e tampouco
elementos suficientes para que possamos avaliar as questões das relações espaciais, escala e
perspectiva.

3.7. Características do tlacuilo 7

O desenhista que denominamos tlacuilo 7 acrescentou 11 imagens719 nas páginas


trabalhadas pelo tlacuilo 4 (primeiras imagens das Figura 87, Figura 88, Figura 89, Figura 90,
Figura 91, Figura 92 e Figura 94), todas na segunda parte dos anais históricos. Trata-se de
poucas imagens, mas por elas já é possível notar que o pintor era familiarizado com os glifos pré-
hispânicos, pois representou de sua própria maneira aqueles que decidiu inserir. Como não há
muitos elementos para serem analisados faremos, como no caso do tlacuilo anterior, uma análise
conjunta dos itens.
Assim, na questão da estilização podemos dizer que esse indivíduo tende mais ao
naturalismo que o tlacuilo 4, apesar de ainda estilizar os elementos que desenha. Isso pode ser
notado nas comparações realizadas no estudo onde diferenciamos o trabalho desses dois tlacuilos,
nas Figura 87 a Figura 94.
Suas linhas-marco já se encontram bastante deterioradas: varia a espessura das linhas, que
muitas vezes são quebradas e duplas, ainda que em outras se aproximem mais das linhas-marco
tradicionais.

719
Na página 32v realizou 6 pequenas representações juntas que contamos como uma única por se referirem ao
mesmo tema. Pelo mesmo motivo na 41v analisamos separadamente duas imagens acrescentadas na mesma página.

322
A aparência modular praticamente se perdeu nesses desenhos. Ainda que a maioria dos
glifos que representa seja uma composição de elementos, eles apresentam uma aparência
unificada.
A paleta de cores utilizada nessas imagens não possui as cores vibrantes vistas nas do
tlacuilo 4. Todos os tons são mais fracos e inclusive o negro tende ao cinza.
A figura humana não é representada e por isso não podemos aqui analisar suas
características.
Como as interferências são pontuais é difícil avaliar como esse tlacuilo tratava as questões
do espaço e da escala, pois que na maioria dos casos representa apenas uma única figura. Por
respeitar as escalas utilizadas pelo tlacuilo 4, desenhando sempre os elementos introduzidos mais
ou menos no mesmo padrão usado por esse último, é possível que tratasse esses aspectos da
forma tradicional. Também não encontramos o uso da perspectiva, assim, aparentemente
apresenta características tradicionais nesses três aspectos.

Conclusões

Cada um dos tlacuilos do códice teve possivelmente distintos tipos de formação.


Enquanto o tlacuilo 4 parece ter recebido treinamento antes da conquista por ainda manter as
características do estilo Mixteca-Puebla, outros, como o tlacuilo 1 e o 5, já mostram alguma
influência dos cânones europeus. Não podemos ter certeza se todas as características que os
diferenciam desse estilo são de origem européia, pois é possível que as tradições culturais
específicas a que se vinculavam possuíssem algumas características distintas, o que pode ser o
caso do tlacuilo 5 na questão das proporções corporais e dos tlacuilos 2 e 4 na do naturalismo,
pois mostram um certo arredondamento das figuras e menor estilização se comparados com os
tlacuilos da área mixteca.
Os tlacuilos mais tradicionais de nosso códice são o 4 e o 2. O tlacuilo 4 apresenta todas
as características do estilo Mixteca-Puebla. Mas, mesmo tendo um trabalho tão tradicional, 30
anos de convivência com novas convenções não poderiam ter passado em branco. É bastante
significativo que utilize convenções pictóricas européias quase que exclusivamente no período
colonial, onde é obrigado a inserir dezenas de novos elementos, que não possuíam equivalente

323
em sua cultura e certamente não estavam convencionados nas pictográficas. As inclusões mais
radicais, como o uso da perspectiva e sombreados nos religiosos, devem ter ocorrido devido à
utilização de gravados europeus. Na maioria dos casos parece empregar os elementos pictóricos
ocidentais como recurso de variação. Sobre o trabalho no tonalpohualli específicamente,
Escalante Gonzalbo afirma que: "...debe de haberse formado todavía en la antigua tradición pues,
a pesar de haber adaptado la composición del calendario a la página europea, su línea y sus
figuras son extraordinariamente conservadoras." E sobre a segunda parte da história: "Esta
sección del Códice Telleriano parece ser la mejor pista disponible sobre el antiguo estilo nahua de
pintar manuscritos históricos".720
Quanto ao tlacuilo 2, também possui as características do estilo Mixteca-Puebla, mas
como fez somente três imagens do códice não é possível avaliar se aplicava alguns recursos
ocidentais em suas obras. Nas imagens que realizou no TR mostra um estilo conservador, pois
vimos que o único elemento em suas imagens que poderia ser considerado uma alteração, que é a
questão do dégradé, possivelmente não foi realizado por ele, e sim pelo tlacuilo 1. Apresenta um
arredondamento maior das formas e mostra figuras não tão estereotipadas como as do tlacuilo 4,
mas também é fiel ao estilo Mixteca-Puebla.
Já o tlacuilo 1 apresenta algumas experimentações e sua habilidade técnica é inferior à
do tlacuilo 2. As linhas de seus desenhos já não podem ser consideradas linhas-marco, no
entanto, ainda mantém as proporções corporais tradicionais e a maioria de suas figuras mostra um
aspecto plano. Esse trabalho, portanto, já se afasta um pouco do estilo tradicional Mixteca-
Puebla.
O tlacuilo 5 apresenta diversas características que o aproximam dos cânones europeus,
no entanto, também e necessário levar em conta que possivelmente pertence a uma tradição
cultural distinta dos outros tlacuilos envolvidos e deve ser também por isso que suas imagens
apresentam um contraste tão radical com as do tlacuilo 4, por exemplo. Os aspectos que mais o
aproximam das convenções européias são relativos à figura humana, principalmente o das
proporções corporais. Porém, é possível que em sua tradição essas proporções corporais fossem
distintas das utilizadas pelos tlacuilos de México e outros locais.

720
ESCALANTE GONZALBO, Pablo. Los Códices. México: Consejo Nacional para la Cultura y las Artes, 1999.
Disponível em: <http://copernico.mty.itesm.mx/phronesis/archi_txt/codices.txt> Acesso em: 10 dez. 2007.

324
Os outros tlacuilos que trabalharam no TR fizeram poucos elementos e por isso é difícil
analisar seu estilo. No entanto, o tlacuilo 7 parece manter algumas das características do estilo
Mixteca-Puebla, ainda que mostre uma linha-marco alterada; e o talcuilo 6 usa glifos do modo
tradicional.
As variações encontradas entre elementos de um mesmo tlacuilo poderiam ser
explicadas pelo desmoronamento das estruturas de ensino que garantiam a manutenção da
tradição pictográfica e pelos cânones tão díspares com que tinham que lidar. Segundo Escalante
Gonzalbo:

"A diferencia de la Italia del Renacimiento, (...) no puede hablarse de que los artistas indios de
Nueva España, y del valle de México en particular, estuvieran siguiendo una misma tendencia
básica -hacia la naturalización, hacia la perspectiva, hacia el paisaje, etc.- o se orientaran
siempre hacia metas estéticas comunes. El proceso de cambio, en el caso de la pintura indígena,
resulta mucho más heterogéneo y contradictorio que en otros casos; ello se debe, seguramente, a
la enorme distancia que existía entre las dos vertientes culturales que entraron en contacto."721

Cada um dos tlacuilos do TR, portanto, adaptou e adequou as opções que tinham à
disposição da maneira que lhes pareceu mais apropriada.

721
ESCALANTE GONZALBO, Pablo. Op. Cit. No prelo, p. 225.

325
Conclusões Finais

O Códice Telleriano Remensis é um exemplar entre os muitos de tradição indígena


produzidos durante as primeiras décadas do período colonial mexicano. Cada um desses
manuscritos é um documento único porque mostra as concepções sociais, históricas, religiosas,
culturais etc de indivíduos específicos, que pertenciam a grupos específicos. O TR é uma
miscelânea, formado como uma colcha de retalhos que reflete, esplendidamente, a complexidade
e pluralidade das tradições indígenas e algumas formas de adaptá-las a materiais, convenções e
concepções ocidentais.
Aparentemente há dois esforços nele reunidos, um relacionado à compilação de
pictografias indígenas e outro de tentativa de compreensão desses conteúdos. É composto por três
seções: duas são ritual-calendáricas e uma histórica, que foram coletadas e anotadas no transcurso
de vários anos. A unidade de fato foi dada somente pelo último anotador, um frade dominicano,
que rasurou e complementou as anotações precedentes, porque, de fato, trata-se de um conjunto
bastante heterogêneo, tanto do ponto de vista da composição material como do conteúdo.
A mescla entre distintos tipos de conteúdo é muito comum em documentos coloniais e sua
seleção no TR certamente obedeceu aos interesses de seu patrono ou patronos europeus,
provavelmente frades. No entanto, ainda que a escolha dos assuntos possa ter-se baseado na
tradição enciclopédica medieval, não acreditamos que o TR seja diretamente comparável a elas.
Provavelmente trata-se de uma das peças - na verdade mais de uma, devido aos vários assuntos -,
coletadas com a intenção de se realizar um trabalho similar às enciclopédias, caso do Códice
Vaticano A, que pode ser considerado uma segunda etapa de trabalho, ainda que continue
mantendo a mesma organização do espaço presente no TR.
A estrutura das pictografias em nosso códice não apresenta mudanças tão radicais como as
que ocorrem em outros exemplares coloniais, como o Florentino, por exemplo, onde muitas das
imagens são meras ilustrações. No TR as pictografias são o elemento central, mesmo na seção
que consideramos a mais alterada sob esse aspecto, o xiuhpohualli, onde os textos em caracteres
latinos ocupam uma posição mais destacada que nas outras seções e o conteúdo pictográfico é
isolado em unidades restritas ao topo das páginas, assemelhando-se mais a livros europeus que a
códices indígenas tradicionais. Por outro lado, nas outras seções as pictografias ocupam uma

327
posição relevante, as quais direcionam e delimitam a região onde os textos em caracteres latinos
são inseridos, especialmente na seção histórica, onde os anotadores são obrigados a alterar a
estrutura organizacional dos textos de uma página a outra. Os textos, portanto, foram adaptados
às imagens e não o contrário, procedimento que difere da prática européia. As imagens nesse caso
não adquirem a função de ilustração, pelo contrário, os textos foram inseridos em função delas,
para explicá-las. Além disso, o documento não parece ser um trabalho final, pois a união de seus
assuntos deu-se tardiamente, o que pode ser comprovado pelas perdas de fólios entre as seções e
as irregularidades na inclusão das anotações, onde alguns anotadores participaram somente em
algumas delas.
O trabalho de compilação parece ter-se estendido por mais de um altépetl e necessitado do
envolvimento de vários escribas/ pintores e pode ter precisado do apoio de códices mais antigos,
quer sejam pré-hispânicos ou coloniais, e talvez informantes. É provável que tenham compilado
mais alguns conteúdos além daqueles que existem hoje no TR, principalmente porque o Códice
Vaticano A possui conteúdos adicionais.
Além da divisão por conteúdo, a mais óbvia, e separada em três grupos - xiuhpohualli,
tonalpohualli e anais históricos -, o TR apresenta outros tipos de divisões: as relacionadas ao
suporte e aos tlacuilos. No primeiro aspecto há duas separações: as estabelecidas pelo estudo das
filigranas e as determinadas pela organização material. No segundo pelos tlacuilos, que
subdividimos com base nas separações anteriores.
O manuscrito possui dois tipos de filigranas, da cruz e da mão, que o dividem em dois
grupos: o primeiro composto pelo xiuhpohualli, com exceção do fólio com os dias nemontemi,
que pertence ao segundo, juntamente com o restante do códice.
Os fólios com filigrana da cruz formavam inicialmente - ou seja, antes que seus bifólios se
separassem - um único caderno, cujos fólios iniciais estão hoje perdidos. A formação dos
cadernos com papéis da filigrana da mão já é muito mais complexa, mas a existência de três
filigranas da mão distintas e mescladas entre si possibilitaram o estabelecimento de uma hipótese
sobre sua organização. O bifólio com os dias nemontemi foi possivelmente retirado do caderno
que formava o tonalpohualli e usado para envolver o caderno do xiuhpohualli em cujo anverso do
segundo fólio foi pintado os dias nemontemi. O segundo caderno é formado pelo tonalpohualli
que, excetuando o bifólio que foi removido para ser colocado junto ao caderno do xiuhpohualli,
teve outro bifólio perdido, formado pelo primeiro fólio, que possuía a primeira pintura do

328
tonalpohualli, e o último fólio, possivelmente em branco e hoje perdido. O terceiro caderno era
formado pela migração, sendo que seu primeiro fólio, que possuía a primeira imagem da seção, e
os três últimos estão perdidos. Os seguintes cadernos formavam o que chamamos de segunda
parte dos anais. Assim, o quarto caderno era formado por dois bifólios, que teve seu primeiro
fólio perdido. É possível que o verso desse fólio contivesse o que pode ter sido a primeira
imagem da segunda parte dos anais, hoje presente somente no Códice Vaticano A, cujo conteúdo
é relativo à fundação de Mexico-Tenochtitlan. O quinto caderno era composto por um único
bifólio. E por último estava o sexto caderno, que possivelmente excluía o fólio em branco do
meio da seção, o fólio 35, o qual ou não fazia parte desse caderno ou era seu último fólio, ou seja,
localizava-se no final do códice.
A divisão do documento em duas unidades estabelecidas pelas filigranas é reforçada pelo
fato do caderno com a filigrana da cruz ter sofrido guilhotinamento de seus fólios enquanto o
mesmo não se passou com o restante do códice. Possivelmente, esses cortes ocorreram em sua
primeira encadernação. Esse aspecto é uma evidência de que esses fólios deviam ser maiores que
os que possuem a filigrana da mão.
Foram 7 os tlacuilos identificados no códice, dentre os quais 4 poderiam ser considerados
principais - 1, 2, 4 e 5 -, enquanto os outros fizeram acréscimos ou pequenas partes. Os tlacuilos
1 e 2 partilharam a execução do xiupohualli, sendo que o segundo poderia ser o mestre do
primeiro, pois mostra habilidade técnica superior e há sinais de que o primeiro - que já não possui
todas as características do estilo Mixteca-Puebla - utilizou como modelo pelo menos duas
imagens anteriormente desenhadas pelo segundo, que por sua vez parece manter os padrões
tradicionais.
O tlacuilo 3 desenhou somente os dias nemontemi, última página do xiuhpohualli. Por
outro lado, o tlacuilo 4 fez toda a seção do tonalpohualli e quase toda a segunda parte dos anais,
com exceção dos glifos anuais de suas duas primeiras páginas e algumas pequenas imagens nessa
mesma seção, acrescentadas pelo último tlacuilo. A análise de suas características revelou um
estilo bastante apegado à tradição Mixteca-Puebla e pensamos que recebeu sua formação ou parte
dela antes mesmo da chegada dos espanhóis. Seu desenho é inclusive mais estereotipado que o do
tlacuilo 2, que também apresenta características tradicionais.
A migração foi realizada pelo tlacuilo 5, que é aquele cujas imagens mais se afastam do
estilo Mixteca-Puebla. Porém, nem todas as suas características podem advir de uma influência

329
européia, pois é possível que a tradição específica a que pertencia mostrasse algumas
características distintas, como, por exemplo, nas proporções corporais e até mesmo nas posições,
que poderiam ser um pouco mais variadas que as usadas nos códices mixtecas e mexicas, por
exemplo. O fato de pertencer a uma tradição distinta causa extremo contraste entre suas
pictografias e as do tlacuilo 4, por exemplo, que pinta a segunda parte dos mesmos anais
históricos.
O tlacuilo 6 realizou os glifos anuais das duas primeiras páginas da segunda parte dos
anais e ainda que mostre habilidade técnica inferior ao do tlacuilo 4, que realiza o restante das
imagens, não mostra nenhuma característica que o afaste muito das práticas tradicionais, contudo,
os glifos anuais são elementos bastante simples e convencionados e não temos como saber quais
seriam suas soluções para outros casos.
Quanto ao tlacuilo 7, realizou intervenções nas páginas pintadas pelo tlacuilo 4 na seção
histórica e possui habilidade técnica inferior a desse tlacuilo. Também trabalha com elementos
bastante convencionados, mas já se pode notar afastamento do estilo Mixteca-Puebla na questão
da linha-marco.
Possivelmente esses indivíduos não trabalharam no manuscrito ao mesmo tempo, ou seja,
num mesmo "ateliê", dividindo o trabalho por assuntos ou por páginas; pelo menos não a maioria
deles. A análise das filigranas mostrou que os dois primeiros tlacuilos podem ser separados dos
seguintes, principalmente por causa do que se passa com os dias nemontemi. Caso o xiuhpohualli
tivesse sido realizado no mesmo local que o tonalpohualli, então, por que os textos explicativos
em sua última página (nemontemi) foram inseridos depois daqueles das páginas anteriores, ou
seja, das festas das veintenas, e em uma página pertencente ao segundo tipo de filigrana? E por
que o Códice Vaticano A não possui os dias nemontemi? O mais lógico é que o xiuhpohualli por
um lado e o resto do manuscrito por outro tenham sido realizados separadamente, mesmo que
tivesse sido no próprio ano ou período em que realizavam as outras partes. A perda dos fólios
inicial (com a primeira imagem do tonalpohualli) e final (que estava possivelmente em branco)
da seção do tonalpohualli indica que esse caderno foi manipulado por algum tempo
separadamente. Essa manipulação deve ter enfraquecido ou mesmo separado os fólios de seu
primeiro bifólio, o que possivelmente causou sua perda posterior. Assim, o estudo das filigranas e
organização material primeiramente separam os tlacuilos 1, 2 e 3 por um lado, e o restante por
outro.

330
Os tlacuilos 1 e 2 devem ter trabalhado simultaneamente na seção, uma vez que suas
imagens estão intercaladas e possuem um estilo similar, ainda que a habilidade técnica do
primeiro seja inferior a do segundo. O tlacuilo 3 deve ter pintado a imagem dos nemontemi algum
tempo mais tarde, ou talvez anos depois de terem sido realizadas as outras imagens dessa seção.
Isso ocorreu pelo menos depois que o primeiro anotador já tinha inserido os textos explicativos
nas veintenas.
Os outros tlacuilos - 4, 5, 6 e 7 - provavelmente também não trabalharam juntos. O
tlacuilo 4 deve ter pintado os conteúdos do tonalpohualli e anais históricos seguidamente. É
difícil dizer qual das seções o tlacuilo 4 pintou primeiro, porém, aparentemente foi o
tonalpohualli, uma vez que a segunda parte dos anais foi deixada incompleta, pois acrescentou
glifos anuais até 1555 e eventos somente até 1548. Cada uma dessas partes deve ter sido
manipulada separadamente, pelo menos por algum tempo, já que o tonalpohualli perdeu fólios do
início e final do caderno e a segunda parte dos anais possivelmente perdeu o fólio de início do
primeiro caderno e os três finais do último caderno. É possível que o fólio 35 seja um desses três
fólios finais. Nesse caso, então, o caderno teria perdido somente dois fólios, o penúltimo e o
antepenúltimo. A segunda parte dos anais pode ser considerada uma subseção da seção dos anais,
unidade dada pela mão do tlacuilo 4 e pela organização material.
O tlacuilo 6 trabalhou também na segunda parte dos anais, entretanto, como somente fez
os glifos anuais iniciais, os quais inclusive devem ter sido coloridos pelo tlacuilo 4, pensamos que
tenha deixado a tarefa inteiramente nas mãos do tlacuilo 4. Já o tlacuilo 7 seguramente inseriu
suas imagens depois de finalizado o trabalho do tlacuilo 4 e certamente antes que essas páginas
recebessem as explicações de seus primeiros anotadores. Portanto, a seqüência de execução do
trabalho da segunda parte dos anais seria: tlacuilo 6, depois tlacuilo 4 e por último tlacuilo 7.
A migração seria a outra subseção dos anais históricos. Encontrava-se possivelmente num
caderno separado do restante da seção, que perdeu seu primeiro e três últimos fólios, indicando
que talvez tenha sido manipulado separadamente do restante da seção histórica. Foi realizada
paralelamente à segunda parte dos anais e possivelmente em um altépetl distinto, porém, é difícil
saber a seqüência de realização. Temporalmente não deve ter sido muito longo esse período
porque nas duas subseções foram utilizados os papéis com a filigrana da mão, os quais podem ter
sido comprados conjuntamente para a execução das pictografias. Algumas características indicam
que a migração pode ter sido realizada antes da segunda parte dos anais e outras podem sugerir

331
que foi depois. Nela somente aparecem textos do último anotador do códice, o que pode
significar que o anotador principal do tonalpohualli e de algumas páginas da segunda parte dos
anais não teve acesso à migração ou que esta ainda não tinha sido realizada. Por outro lado, o
maior número de furos de encadernação em seus papéis poderia sugerir que essa parte do códice
foi encadernada em outro conjunto ou individualmente antes de se juntar à segunda parte dos
anais. Mas, também os furos podem ser o resultado de costuras auxiliares realizadas para que
esses fólios fossem unidos em sua primeira encadernação, uma vez que já deviam estar soltos,
pois nessa altura o documento já havia perdido as páginas que lhe faltam - que sabemos devido à
sua foliação mais antiga, que marca o mesmo número de fólios com conteúdo que hoje possui.
Cada uma das divisões e subdivisões dos conteúdos de nosso códice sofreu em maior ou
menor medida, de acordo com suas possíveis organizações originais, as conseqüências de sua
transposição para o suporte e formato europeu de livro. Os elementos afetados podem ser
divididos em quatro aspectos gerais: o sentido de leitura, a orientação espacial dos glifos e
pictogramas, as adaptações dos conteúdos às páginas descontinuas (se comparadas aos formatos
indígenas) e retangulares do formato em códice, e os espaços em branco deixados abaixo das
imagens para a inclusão de textos explicativos para os usuários ocidentais.
O primeiro aspecto afetou particularmente a seção dos anais, pois os dois primeiros
conteúdos, o xiuhpohualli e especialmente o tonalpohualli, não demonstram alterações estruturais
em função da necessidade de uso dessa direção em particular, pois esse sentido de leitura também
era uma opção nos manuscritos tradicionais.
Na migração o sentido de leitura possui duas variantes: uma dada pelo sentido dos glifos
anuais estritamente de esquerda para direita, o qual fornece a seqüência temporal, e outra
oferecida pelas pegadas, que mostram variados sentidos de leitura, indicando o deslocamento
espacial. Nesse caso a seqüência temporal foi encaixada nas páginas e sua distribuição em grupos
de 10 mostra a introdução de uma lógica de numeração ocidental. De qualquer forma, apesar da
seqüência de glifos orientar a ordem de leitura da página, na observação dos conteúdos centrais é
forçoso seguir a orientação das pegadas, e por isso, sua ordem de leitura é independente da
seqüência temporal.
Já na segunda parte dos anais a ordem de leitura tem como base a organização dos glifos
anuais, que seguem inicialmente um sentido de leitura serpenteado, com as seqüências
horizontais direcionadas de esquerda à direita, os quais são alterados para um sentido linear

332
também esquerda-direita. O sentido de leitura europeu pode ter influenciado na decisão do
tlacuilo em alterar essa estrutura, uma vez que ela seria facilmente compreendida por um usuário
europeu.
Quanto às possíveis mudanças na orientação dos glifos e pictogramas quando o conteúdo
foi adaptado às páginas do TR, efetivamente somente aparecem em uma página da segunda parte
dos anais. Nela são representados alguns glifos orientados de forma distinta da ortogonal à base
empregada em todas as outras páginas do códice. No caso de terem ocorrido mudanças nesse
aspecto durante o ajuste do conteúdo, a orientação dos pictogramas também pode ter variado de
acordo com a localização dos glifos anuais, ou seja, de acordo com sua orientação vertical ou
horizontal. Nesse caso essa adaptação pode ter causado grandes alterações no modo de estruturar
o conteúdo nas páginas.
As pictografias tradicionais eram realizadas ou em longas tiras (dobradas em forma de
biombo ou enroladas) fracionadas em unidades, normalmente em formato quadrado, ou
distribuídas em uma extensa área, similar aos mapas ocidentais. Os conteúdos representados
nesses tipos de formato não poderiam deixar de sofrer algum tipo de transformação ao serem
transpostos ao formato de livro europeu - páginas descontínuas (se comparadas aos formatos
indígenas). O emprego desse formato e do papel retangular no TR teve conseqüências distintas
para cada uma das partes do códice. No xiuhpohualli causou o isolamento e distribuição de cada
uma das veintenas por páginas. Nos códices pré-hispânicos como o Bórgia, por exemplo, quando
apresentam deuses de forma isolada, estes são representados numa seqüência contínua, e
normalmente serpenteada, dividida em segmentos pelas usuais linhas vermelhas e distribuídos em
grupos, que podem ser de 9 por página, ou no caso de seguirem somente uma única seqüência
horizontal, os espaços restantes das páginas são preenchidos com outros tipos de conteúdo. No
tonalpohualli a inclusão de margens é um resultado dessa adaptação ao tipo de suporte, que
exigia espaços em branco nas laterais para os procedimentos técnicos próprios desse formato de
livro, como os cortes no papel realizados durante o processo de encadernação.
Na migração é evidente o esforço do tlacuilo 5 para adaptar um tipo de conteúdo
normalmente distribuído em uma área extensa nas páginas segmentadas e limitadas do livro em
formato de códice. O resultado foi a fragmentação e aparente desordem do conteúdo.
Um esforço semelhante pode ter sido exigido do tlacuilo 4, da segunda parte dos anais,
pois é possível que também tenha tido que adaptar conteúdos normalmente representados em

333
formato de mapa às páginas retangulares e fragmentadas de nosso códice, pelo menos é o que as
páginas 29v e 30r sugerem. Se esse for o caso, então, também é possível que esse tlacuilo tenha
realizado simplificações dos conteúdos históricos tradicionais, eliminando informações
genealógicas, por exemplo. Para um usuário europeu não devia fazer sentido incluir esse tipo de
informação em um manuscrito de fundo histórico.
Mas, mesmo que os conteúdos históricos também fossem tradicionalmente estruturados
com base nos glifos anuais com leitura serpenteada, como os do códice Boturini e das primeiras
páginas da segunda parte dos anais do TR, eles também sofreram transformações em nosso
códice, a partir da página 31v. Acreditamos que a partir dessa página o tlacuilo 4 decidiu por
alterar a estrutura dos conteúdos, cujos glifos passaram a ser organizados horizontalmente no
lado superior das páginas com leitura esquerda-direita, com o intuito principal de torná-los mais
compreensíveis aos usuários europeus, o que também teria a vantagem de fazer restar mais
espaços para as anotações.
As adaptações ao formato em códice, portanto, podem ter causado as alterações mais
significativas na transposição dos conteúdos, uma vez que obrigaram os tlacuilos a fragmentá-los.
No entanto, os espaços deixados em branco para a colocação de textos em caracteres latinos dão
às páginas do códice o aspecto visual que mais contrasta com as pictografias dos códices pré-
hispânicos. O aspecto mais "arejado" dessas imagens do TR são em grande parte o resultado da
necessidade de espaços para a colocação de textos explicativos.
No xiuhpohualli os textos ganham, inclusive, uma importância superior à dos outros
conteúdos. Suas imensas áreas deixadas para os registros em caracteres latinos afastam ainda
mais esse conteúdo das formas tradicionais de representação. O tonalpohualli, apesar de ter
mantido uma estrutura similar à dos códices pré-hispânicos e aqueles mais próximos da tradição,
teve cada uma de suas trecenas distribuída em duas páginas, possivelmente para que restasse
mais espaço para as anotações em caracteres latinos. Na migração os espaços deixados para as
explicações foram pouco utilizados e a disposição das imagens de forma "arejada" é compatível
com seu tipo de organização original. Já na segunda parte dos anais, os maiores contrastes com os
documentos tradicionais ocorrem a partir da página 31v, onde são bastante significativos os
espaços deixados em branco abaixo das pictografias.
Essas análises também lançaram luz sobre a relação do TR com o Vaticano A. A falta dos
dias nemontemi (última imagem da primeira seção) no segundo manuscrito já não pode provar

334
que o Vaticano A não é uma cópia de nosso códice, uma vez que sua inclusão no TR foi tardia.
Quando o conteúdo da seção foi copiado no Vaticano A, então, somente havia no xiuhpohualli os
textos do primeiro anotador, ou pelo menos somente uma parte daquelas realizadas pelo segundo,
o que significa que o anotador dessa seção do Vaticano A não teve acesso aos textos do último
anotador.
Além disso, as imagens do tlacuilo 7 oferecem evidências bastante seguras de que a
segunda parte dos anais do Vaticano A de fato foi copiada do TR, pois as mesmas diferenças na
forma de representação das figuras que esse tlacuilo apresenta em relação aquele que fez a maior
parte do conteúdo - tlacuilo 4 - são visíveis também no Vaticano A. Essa característica invalida
em grande parte, ao menos no que se refere a esse conteúdo, a hipótese de que o Vaticano A e o
TR foram copiados de um protótipo em comum.
Quanto à questão dos prováveis protótipos do TR, ainda continua sem uma solução
definitiva. Mas, certamente não foi utilizado somente um modelo para todo o códice ou sequer
dois, devido ao número de tlacuilos que nele trabalharam e às diferenças estilísticas que
apresentam entre si. É possível inclusive que tenham sido vários os protótipos, consultados ou
copiados parcialmente, especialmente se levarmos em conta a estrutura das imagens, uma vez que
é provável que tenham copiado os pictogramas, mas alterado a organização, o que poderia ser o
caso da segunda parte da seção histórica; ou ainda da migração, onde o tlacuilo pode ter adaptado
o conteúdo de uma migração ou várias representadas em formato distinto do utilizado em sua
própria tradição. Assim, mesmo que utilizassem modelos, é preciso considerar que talvez não
tenham copiado o conteúdo ipsis literis, pois tanto os conteúdos como sua organização podem ter
sido alterados - simplificados, selecionados de acordo com o interesse, ou adaptados aos novos
usuários europeus -, assim como podem ter preferido representar alguns elementos de um modo
particular, como os signos usados nos glifos dos dias e nos glifos anuais, topônimos, dentre
outros.
Outra possibilidade seria a não utilização de modelos para algumas partes. O tlacuilo 4,
por exemplo, quem acreditamos ter recebido formação ou parte dela no período pré-hispânico,
devia saber representar alguns conteúdos sem a necessidade de consultar qualquer protótipo, quer
seja utilizando seus próprios conhecimentos de sua cultura ou consultando outros indígenas.

335
Cada uma das partes delimitadas nos estudos das filigranas, organização do espaço e
tlacuilos mostraram possibilidades distintas quanto a essa questão dos protótipos, por isso as
conclusões sobre uma das partes não podem ser generalizadas às outras.
O xiuhpohualli pode ou não ter sido copiado de um modelo ou de mais de um por causa
da inclusão tardia dos dias nemontemi. O fato de duas imagens do tlacuilo 1 (da 3r e 3v) se
assemelharem às do tlacuilo 2 em alguns detalhes pode ser um indício de que suas outras imagens
não estavam sendo copiadas e que ele estivesse representando essas últimas sem a utilização de
modelos, apesar de certamente pertencer à mesma tradição do tlacuilo 2, devido à unidade entre
suas imagens.
Já o tonalpohualli, devido aos casos de representações em locais indevidos, que
aconteceram com todos os tipos de elementos, e à não representação dos itens acessórios
comumente encontrados nas trecenas de outros códices, pode não ter sido copiada diretamente de
um protótipo, ou o tlacuilo 4 realizou uma simplificação dos elementos centrais, se estava usando
um modelo.
Na migração o tlacuilo deve ter usado protótipos de distintas tradições, que deviam estar
estruturadas de forma distinta. Deve ter adequado o conteúdo ao mesmo tempo ao seu modo de
representar, em formato de mapa, e ao formato de códice europeu.
A segunda parte dos anais, por sua vez, pode ter sido copiada de protótipos ou não. Nos
dois casos o tlacuilo teria, de qualquer forma, realizado adaptações que devem ter mudado um
pouco ou muito o aspecto visual característico desses documentos.
Essas análises expostas confirmaram as hipóteses de Quiñones Keber sobre a
proveniência dos conteúdos do códice, ou pelo menos não desacreditam qualquer das filiações
propostas pela autora. Em nosso caso a questão da origem passou pela identificação e análise dos
tlacuilos e pelo estudo da organização do espaço, sintetizados acima, uma vez que neste trabalho
não nos dedicamos ao estudo das pictografias do ponto de vista iconográfico e interpretativo.
O xiuhpohualli, o tonalpohualli e a segunda parte da seção histórica foram conectados por
Quiñones Keber à Tlatelolco. A organização do espaço e estilo dos tlacuilos do xiuhpohualli não
demonstram qualquer característica que possa desabonar essa hipótese. A presença do deus
Huitzlopochtli em uma das veintenas, de panquetzaliztli, conecta essa seção aos mexicas, cujos
tlacuilos deviam pertencer a essa tradição, ainda que seja difícil saber onde exatamente foi
realizado, Tenochtitlan ou Tlatelolco. No momento é difícil saber se os dias nemontemi também

336
são daí provenientes, pois não mostram nenhuma característica que possa identificá-los a um
local ou etnia. O início da segunda parte da história revelou um tipo de organização do conteúdo
similar ao utilizado em documentos de tradição mexica, como o Códice Boturini, por exemplo. O
enfoque do conteúdo na tradição histórica mexica, mostrando, como expôs Quiñones Keber, um
ponto de vista tlatelolca, indica que o tlacuilo 4 possivelmente pertencia a este altépetl. Como ele
também realizou a seção do tonalpohualli e ambas as partes possuem coerência estilística,
supomos que essa seção também possa ser conectada a Tlatelolco, uma vez que nos aspectos
abordados não possui nada que possa invalidar essa hipótese e segundo Quiñones Keber, o
enfoque dado ao deus Quetzalcoatl nessa seção também pode conectá-la a Tlatelolco.
A migração possui diversas rotas, sendo que uma delas é certamente a tenochca. Porém, o
documento apresenta uma organização do espaço incomum nos documentos que representam
essa migração e mostra algumas características - como a presença de topônimos alinhados, a
representação de altépetl conquistados mediante a representação de um guerreiro flechado, o
constante uso do pictograma 'cerro' na representação dos topônimos, e um enfoque
acentuadamente bélico -, que a associam à tradição do altépetl de Cuauhtinchan, estado de
Puebla, ou algum outro local em suas imediações.
Dessa forma, a maior parte do manuscrito foi confeccionada no México, possivelmente
Tlatelolco, e a migração foi realizada em algum altépetl da região de Puebla ou por um tlacuilo
originário de um altépetl poblano.
O período de confecção dessas pictografias se restringe a meados do século XVI. Porém,
quando exatamente? Alguns textos informam 1562 e 1563, contudo, essa datação pode ser aceita
somente para os textos, pois tanto Robertson como Quiñones Keber alertam sobre a necessidade
de separar as pictografias dos textos na datação, uma vez que possivelmente esse período não é
válido para as pictografias, que devem ter sido pintadas anteriormente.
Quiñones Keber forneceu o período de 1553 a 1555 para a realização das imagens - com
base primeiramente nos glifos anuais do final da segunda parte dos anais -, contudo, a datação da
filigrana da mão indica que há maior probabilidade de que as pictografias tenham sido realizadas
a partir de 1555, pois encontramos uma filigrana idêntica a uma das utilizadas no TR e esta foi
datada em 1560. Os 5 anos de maior probabilidade de uso a partir dessa data nos leva a 1555.
O período de vida de uma forma onde era feita uma determinada filigrana era de dois anos
e depois de terminado esse período o papel ficava ainda disponível no mercado para venda

337
durante algum tempo, contudo, como havia escassez desse item na Nova Espanha, não devia
tardar muito tempo até ser vendido, por isso, é difícil que papéis que se encontrassem à venda a
partir de 1553 - quando segundo a autora citada, teriam sido adquiridas as folhas a serem usadas
na confecção do TR, possivelmente numa única compra - ainda estivessem em uso em 1560, ou
seja, 7 anos depois. Pensamos, então, que essa data de início de confecção seja mais tardia, pelo
menos a partir de 1555, podendo ter se estendido a anos subseqüentes.
Outro dado em que se apóia Quiñones Keber para determinar que a confecção do
manuscrito foi iniciada em 1553 é a estadia de Pedro de los Ríos na Cidade de México nesse ano,
tendo no ano seguinte sido transladado ao Convento de Santo Domingo, em Puebla. Ela acredita
que durante o tempo que esteve no México compilou a maioria das pictografias do TR e depois
em Puebla mandou realizar a parte referente à migração.
Contudo, baseados especialmente na datação do papel, preferimos apoiar a hipótese de
que nesse período no México Pedro de los Ríos se interessou pelo assunto das pictografias e
sentiu-se compelido a obtê-las. Para isso deve ter tido que angariar fundos para pagar os custos de
execução e, quiçá, precisado inclusive convencer outros religiosos da necessidade da empreitada,
que pode ter levado a cabo sozinho ou com o auxílio de outros frades de sua ordem. O fato de ter
se transladado a Puebla não impede que tenha mandado confeccionar pictografias no México,
pois qualquer outro frade de sua ordem poderia ter supervisionado os trabalhos e depois enviado
as pinturas a Puebla ou o próprio Ríos poderia ter se deslocado a México para cuidar do trabalho,
uma vez que no Códice Vaticano A ele é referido como o compilador das pinturas. Enfim,
pensamos que a mudança a Puebla não invalida a hipótese de uma confecção mais tardia.
Uma vez compiladas, as pictografias seguiram caminhos paralelos, tendo passado pelas
mãos de vários indivíduos, que lhes incluíram textos explicativos. Alguns desses textos poderiam
ser considerados 'principais', enquanto outros se limitaram a complementar as informações,
rasurá-las e/ ou corrigi-las. Em meio a esse processo os conteúdos pictográficos foram copiados
no Códice Vaticano A, provavelmente na década de 1560, e depois reunidos em um conjunto que
viria a ser chamado Telleriano Remensis. Com a morte de seu compilador, por volta de 1565,
seguiria por um caminho desconhecido até a Europa, possivelmente para a Espanha. No processo
e com o passar dos anos perdeu muitas de suas páginas.
Nosso estudo de sua primeira encadernação mostrou que no período que ela foi realizada
o manuscrito devia estar em território europeu pertencente à coroa de Espanha, possivelmente um

338
local onde se falava a língua castelhana, pois a capa que lhe foi retirada na primeira de suas
restaurações na atual Bibliothèque Nationale de France, realizada em 1966/67, possuía um título
escrito em espanhol e alguns fólios de conteúdo jurídico originários de alguma comarca
portuguesa, devido a algumas referências nos textos e ao fato de estarem escritas em português e
latim. A análise das filigranas desses papéis indicou seu uso num período que se estende do final
do século XVI ao início do XVII. Considerando que deve ter-se passado alguns anos desde seu
uso até seu descarte - uma vez que foram usados dentro da capa de pergaminho flexível para lhe
dar algum suporte -, calculamos que a segunda metade do século XVII seja o período mais
provável para o acréscimo dessa primeira encadernação do TR. Outros elementos confirmam essa
hipótese como, por exemplo, o fato da encadernação ter sido colocada quando o códice já havia
perdido os fólios que hoje lhe faltam. A foliação mais antiga do códice indica que possuía 49
fólios, ou seja, o mesmo número que hoje possui, excetuando-se o fólio 35, em branco, e também
está escrita em castelhano.
Da Espanha para a França deve ter seguido pelas mãos do próprio Le Tellier, arcebispo de
Reims, quem doou o códice à Bibliothèque Nationale de France no ano de 1700, ou por algum
comerciante ou colecionador de quem o arcebispo o comprou ou ganhou. Suspeitamos, então,
que entrou na coleção de Le Tellier e na da BnF com a encadernação que lhe colocaram em
algum local sob jurisdição da Espanha.
Nesse mesmo ano de 1700 o bibliotecário real acrescentaria em sua página inicial - um
fólio em branco inserido na encadernação e que ainda hoje se encontra no códice - sua primeira
referência, o registro de seu número no catálogo de manuscritos de Le Tellier, o qual daria
origem a sua alcunha: Telleriano Remensis. Esse nome, o título que constava na capa de
pergaminho, dentre outras informações, foram primeiramente referidas por Humboldt no início
do século XIX e depois por outros autores. Em 1523 receberia o que pode ser considerada sua
foliação principal. Além da restauração de 1966/67, quando teve a antiga capa removida, passaria
por outra entre 1986/87, quando adquiriu a configuração que hoje possui.

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