Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Desenvolvimento
humano e social
Sumário
CAPÍTULO 2 – Cidadania e Responsabilidade Social..........................................................05
Síntese...........................................................................................................................22
Referências Bibliográficas.................................................................................................23
03
Capítulo 2 Cidadania e
Responsabilidade Social
Luíza e Cláudio são casados e vivem juntos em uma pacata cidade do interior. Após o jantar,
como de costume, deitam-se abraçados no largo sofá da sala, confortavelmente acomodados,
a fim de assistir à sua novela preferida. Hoje é o dia do último capítulo, e o desfecho da história
dos personagens principais ronda os pensamentos de grande parte do povo brasileiro. Luíza e
Cláudio, como tantos, estão ansiosos para o grande final. Mas a empolgação é interrompida
quando o apresentador do telejornal, que antecede a novela, anuncia: “Outro escândalo de
corrupção no Brasil!”. O casal se revolta. “O país está mesmo perdido”, brada Cláudio.
E você, caro aluno, já viu uma cena parecida com essa? Já presenciou ou participou de alguma
discussão sobre política? Talvez nunca tenhamos percebido, mas quais os limites de nossas pre-
ocupações com os rumos do país?
Desde crianças, ouvimos, aqui e ali, a respeito da necessidade de sermos bons cidadãos e de co-
operarmos para o desenvolvimento da sociedade. A todo instante, ouvimos pessoas afirmarem:
“Eu sou um bom cidadão, pois pago meus impostos nos prazos e corretamente”. Mas, afinal, o
que significa isso? Como ser, efetivamente, um bom cidadão? Ao longo deste capítulo, você irá
investigar o conceito de cidadania e sua aplicabilidade em nossa vida cotidiana e profissional
nos campos da política, economia, entre outros.
No primeiro tópico, você estudará a história do conceito de cidadania. Para tanto, retornaremos
aos tempos dos gregos antigos, pois foi na Grécia, sobretudo nos séculos V e IV a.C., que a noção
de cidadania se consolidou na história da humanidade. Em seguida, você verá as implicações
da noção de cidadania na modernidade, a partir dos grandes movimentos intelectuais surgidos
nos séculos XVII e XVIII, como, por exemplo, a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão.
Nesse momento, você conhecerá a Lei de Acesso à Informação e sua aplicabilidade na realidade
brasileira.
Bons estudos!
05
Desenvolvimento humano e social
“Ir para a rua”, nesse momento da história brasileira, significaria participar definitivamente de
uma posição: uma posição política diante da cidade, uma posição ética com relação ao outro,
uma posição de cidadania.
Participar tem sido ultimamente a palavra de ordem (GALLO, 2003, p. 26). Do voto às ruas e às
manifestações, participamos da composição política em nosso município, em nosso estado e em
nosso país. Votamos neste ou naquele prefeito, neste ou naquele vereador. Elegemos o governa-
Para você compreender melhor o que é a cidadania e como ela tem sido exercida ao longo do
tempo, analisaremos a sua história e o seu conceito. Para tanto, regressaremos aos tempos da
Grécia Antiga, berço da civilização ocidental, a fim de compreender como nasceram as primeiras
noções de cidadania.
Você deve estar se perguntando: “por que tenho que estudar isso?”. Compreender a ideia de
cidadania, sobretudo a partir de suas raízes gregas antigas, implica refletir não apenas a respeito
de nossa própria razão de estar no mundo. Muito mais! Você entenderá as razões pelas quais
estamos no mundo em companhia dos outros, vivendo em sociedade. Por que, afinal, não nos
matamos a todos, em busca de nossos interesses mais íntimos? Porque, em algum momento de
nossas vidas, compreendemos que, para além de nós mesmo, existem os outros, com os quais
conviveremos, e que uma busca desenfreada e desregrada pelos nossos próprios interesses não
resultaria senão no extermínio de toda a humanidade.
A criação das primeiras cidades gregas inaugura na Antiguidade um novo modo de composição
das relações humanas. Desde o início do século VIII a.C., o mundo grego se encontrava politi-
camente dividido em um conjunto de pequenas cidades. Ao longo dos anos seguintes, nos sécu-
los VII e VI a.C., mais especificamente, a consolidação das cidades gregas alcançou seu pleno
desenvolvimento, transmutando pequenas aglomerações camponesas e guerreiras em grandes
civilizações, fundamentalmente centradas nas cidades (FUNARI, 2002).
Nesse momento, a cidade delimitava uma nova fronteira para as relações políticas e comerciais
e, por conseguinte, um novo espaço das relações humanas.
2. o campo ao redor;
Seu núcleo existencial era o demos, o povo, constituído por uma “coletividade de indivíduos
submetidos aos mesmos costumes fundamentais e unidos por um culto comum às mesmas divin-
dades protetoras” (FUNARI, 2002, p. 25). Ainda segundo o autor:
Em geral uma cidade, ao formar-se, compreende várias tribos; a tribo está dividida em diversas
frátrias e estas em clãs, estes, por sua vez, compostos de muitas famílias no sentido estrito do
07
Desenvolvimento humano e social
termo (pai, mãe e filhos). A cada nível, os membros desses agrupamentos acreditam descender
de um ancestral comum, e se encontram ligados por estreitos laços de solidariedade (FUNARI,
2002, p. 25).
O surgimento dessa nova estrutura social recompôs paulatinamente os mecanismos que regula-
vam, naquele momento, as relações entre os homens.
A economia grega, no período arcaico, constituía-se basicamente pela agricultura e pela cria-
ção. Os grandes proprietários de terra – em geral, os chefes dos clãs – exerciam, por essa razão,
forte influência política e econômica nas cidades, reduzindo, inclusive, a importância da atuação
do rei e assumindo, em regra, o gerenciamento efetivo das instituições, conforme demonstra
Funari (2002). Compunham, por exemplo, um conselho soberano cujo fim consistia em gestar
a instituição jurídica das cidades com base em um “direito tradicional pautado por regras man-
tidas em segredo” (FUNARI, 2002, p. 26). Além disso, porque detinham acesso privilegiado e
exclusivo às armas, a cavalos e servos, ocupavam também importantes funções guerreiras e de
defesa das fronteiras das cidades. Em resumo, esse pequeno grupo de “nobres” detinha a posse
das terras e, por consequência, o domínio das instituições econômicas, políticas, jurídicas e bé-
licas. O regime de administração das cidades, portanto, se caracterizava por uma aristocracia
ou oligarquia da nobreza.
Para a subsistência da nobreza e de seu poder, a cidade comportava ainda outros elementos
também fundamentais. Segundo Funari (2002), escravos, servos, trabalhadores agrícolas livres,
artesãos e também pequenos proprietários compartilhavam a vida nas cidades, juntamente com
a nobreza, embora permanecessem ainda como uma classe inferior.
Com a expansão das cidades gregas para regiões mais longínquas, cresceram o comércio maríti-
mo e o artesanato (que consistia principalmente na produção de armas e cerâmica). O aumento
da produção e o consequente barateamento das armas tornou possível às classes medianas e
pobres o desempenho de atividades bélicas e de defesa das cidades. Como participavam, agora,
da classe guerreira, essas classes iniciaram um longo processo de reivindicação de reformas e
de maior participação política. Tais demandas evoluíram, em inúmeras ocorrências, para guerras
civis. A fim de solucionar esses conflitos, algumas cidades gregas – Atenas, por exemplo – funda-
ram sólidas instituições legislativas, que, em certa medida, reduziriam em longo prazo o poderio
da nobreza, impondo-lhes limites para as interpretações do Direito, restringindo-lhes a interpre-
tação das leis com base em interesses próprios.
Aos espartanos, proibidos por lei de exercer qualquer trabalho, restava a tarefa de administrar a
cidade e suas instituições e guerrear pela conquista de novos territórios. Devido à sua eficiência
bélica, os espartanos, no final do século VII a.C., haviam já dominado um terço do território da
península do Peloponeso.
Contudo, devido ao crescente número de conquistados – em número muito maior que o de con-
quistadores – e temendo o enfraquecimento bélico, os espartanos, por volta do século VI a.C.,
decidiram abandonar certos territórios difíceis de administrar e optaram por fortificar a cidade
de Esparta, fechando-a “às influências estrangeiras, às artes, às novidades e às transformações,
adotando para si próprios costumes rígidos e uma disciplina atroz a fim de manter intacta a
ordem estabelecida” (FUNARI, 2002, p. 29). Nesse momento, solidificou-se o modo de vida
espartano.
Em síntese, o poder político permanecia concentrado nas mãos de um pequeno grupo que exer-
cia influência sempre de acordo com seus interesses.
09
Desenvolvimento humano e social
suas decisões de acordo com seus interesses. Do outro lado, camponeses e artesãos, empobreci-
dos pelas dívidas, submetiam-se à penúria e à escravidão, a fim de saldar os débitos.
O vertiginoso crescimento econômico de Atenas – que, naquele período, estendia seus laços
comerciais com todo o mundo mediterrâneo –, no entanto, enriqueceu algumas das camadas
pobres, como, por exemplo, os pequenos comerciantes. Com o progresso econômico, essas clas-
ses começaram, então, a pressionar a aristocracia, em busca de maior participação nos destinos
da cidade.
Para amenizar os conflitos iminentes, Drácon, legislador ateniense, por volta do ano 620 a.C.,
redigiu o Código de Drácon. A despeito de sua base no direito público e universal, o código
draconiano não conseguiu derrubar a hegemonia aristocrata. Por essa razão, Atenas vivia ainda
sob as ameaças e os conflitos entre as classes populares revoltosas e a aristocracia dominante.
Para caminhar em direção à democracia, em 594 a.C., Sólon, eminente arconte ateniense,
elaborou uma série de medidas que culminariam no fortalecimento das classes mais pobres. Em
primeiro, perdoou as dívidas dos pobres e acabou com o “sistema de escravidão por endivida-
mento”, conforme nos esclarece Funari (2002, p. 33). Além disso, Sólon fortaleceu a assembleia
popular, a Eclésia, e desvinculou os direitos políticos e cidadãos dos privilégios de nascimento,
de sangue e de família, vinculando-os, agora, à fortuna. Sólon instituiu também a Bulé, espécie
de tribunal popular que, mais tarde, por volta do século V a.C., iria se sobrepor às instituições
aristocráticas dos arcontes e do próprio Aerópago.
Mesmo com os significativos avanços na distribuição dos direitos políticos e cidadãos, Atenas
permanecia ainda sob o domínio de um pequeno grupo, os aristocratas. Por isso, Clístenes,
importante estadista ateniense, propôs um conjunto de medidas que, de certa forma, alteraram
substancialmente o cenário político ateniense. De início, reagrupou as tribos e alterou o sistema
de votos e de representatividade política. Conforme comenta Funari (2002, p. 34):
[...] as antigas quatro tribos hereditárias foram substituídas por dez tribos definidas por seu
território geográfico, a Bulé passou de quatrocentos a quinhentos membros, escolhidos por
sorteio, o campo foi dividido em tritias (três por tribo), cada uma com um certo número de
demos. A partir daí, todo cidadão estava alistado em um demos e podia votar na assembleia.
De acordo com os historiadores, a partir do século V a.C., Atenas viveu o apogeu do regime
democrático. Todos os cidadãos influíam diretamente nos rumos da cidade, por meio da Eclésia,
em praça pública. Contudo, vale ressaltar, em contrapartida, os limites da democracia ateniense.
Em Atenas, o direito à cidadania era reservado a todos os cidadãos, desde que homem, maior de
18 anos e ateniense (pai e mãe atenienses). Os direitos cidadãos, de acordo com Funari (2002,
p. 36), consistiam em três direitos fundamentais:
• liberdade individual;
• igualdade com relação aos outros cidadãos perante a lei;
• direito à palavra nas reuniões da Assembleia.
11
Desenvolvimento humano e social
Figura 2 – Ilustração da Revolução Francesa, de Ferdinand Delacroix. “Liberty on the Barricades” (1830).
Fonte: Shutterstock, 2015.
O século XVII definiu, também, novos rumos para a ideia de cidadania. Na modernidade, o con-
ceito de cidadania, assim como para os gregos dos séculos V e IV a.C., encontrava-se também
organicamente ligado à ideia de direito, conforme demonstra Coutinho (1999). Contudo, sobre-
tudo no primeiro momento, e ao contrário dos gregos antigos, a noção moderna de cidadania
vinculava-se mais precisamente “à ideia de direitos individuais ou ‘civis’”, segundo nos indica
Coutinho (1999, p. 43). De acordo com o autor, a ideia que melhor expressa o volume das
transformações políticas ocorridas na modernidade e que melhor representa o desenvolvimento
das instituições democráticas naquele período é a de cidadania. Para compreender essa questão,
veja como o pensamento moderno concebeu o tema da cidadania.
O filósofo liberal John Locke, que viveu na Inglaterra do século XVII, ao elaborar seu pensamen-
to político, propôs a existência de direitos naturais. Para Locke, o homem, em sua condição
individual, possui uma série de direitos naturais e, a fim de mantê-los em sua integridade, deve
confeccionar, em conjunto com os demais homens – também detentores de direitos naturais –,
um Estado e um governo, por meio do contrato social.
VOCÊ O CONHECE?
John Locke nasceu na cidade de Wrington, no sudoeste da Inglaterra, em 1632. Era
filho de advogado e pequeno proprietário de terra. Em 1646, começou a frequentar a
Escola de Westminster. Em 1625, em Oxford, matriculou-se no Colégio Christ Church.
Foi membro da Real Society e, em 1689, publicou “Dois tratados sobre o Governo”, um
dos marcos e o fundamento do liberalismo político. Viveu 72 anos, falecendo em 1704.
No contrato social,
[...] cada homem é ao mesmo tempo legislador e sujeito. Ele obedece à lei que ele mesmo
fez. Isso pressupõe uma vontade geral distinta da soma das vontades particulares. Cada
homem possui, como indivíduo, uma vontade particular; mas também possui, como cidadão,
uma vontade geral que o conduz a querer o bem do conjunto do qual é membro (JAPIASSÚ;
MARCONDES, 2001, s/p).
Sem o contrato social, os direitos naturais dos indivíduos estariam ameaçados, na medida em
que, fora da proteção do Estado, vigoraria a condição humana pré-política, em outros termos, a
condição do estado de natureza.
[...] esse conceito de ‘direito natural’ – de direitos que pertencem aos indivíduos
independentemente dos status que ocupam na sociedade em que vivem – teve um importante
papel revolucionário em dado momento da história, na medida em que afirmava a liberdade
individual contra as pretensões despóticas do absolutismo e em que negava a desigualdade de
direitos sancionada pela organização hierárquica e estamental própria do feudalismo.
A afirmação de Locke de que o direito individual antecede e é mais abrangente que o direito
institucional e o direito positivo – aqueles instituídos pela letra da Lei – alterou significativamente
os rumos das relações políticas e, por consequência, das relações entre os cidadãos no período
da modernidade. Nas palavras de Coutinho (1999, p. 44), “os direitos têm sempre sua primeira
13
Desenvolvimento humano e social
expressão sob a forma de expectativa, de direitos, ou seja, de demandas que são formuladas,
em dado momento histórico determinado, por classes ou grupos sociais”. Nesse sentido, as per-
cepções e aspirações do direito individual dos cidadãos constituem a essência das proposições
positivas do Direito. Logo, o Direito nasce nos e por meio dos anseios individuais e das sensações
de direito individuais.
Para compreender melhor essa questão, observe o exemplo dos trabalhadores das fábricas.
CASO
Na época da Revolução Industrial, os operários trabalhavam entre 14 e 16 horas por dia. Para
acelerar o processo produtivo, naquele tempo, era permitido que as crianças trabalhassem, com
jornadas que variavam, em geral, de 10 a 12 horas diárias. Esse era o cenário da vida operá-
ria no final do século XVIII e início do século XIX. A partir do século XIX, os operários, por meio
de sua prática política, foram reconhecendo gradativamente suas más condições de trabalho e
vida. Por isso, reunidos, deram início a uma longa luta, a fim de que fosse determinado, entre
outras pautas, um limite instituído em Lei para a jornada de trabalho, em consonância com as
constatações, já famosas, das “leis do mercado”. No Brasil, por exemplo, apenas em 1932
foram promulgadas as primeiras leis que regulamentavam o limite da jornada de trabalho dos
trabalhadores para 8 horas por dia.
A teoria do jusnaturalismo de Locke marca, portanto, uma severa distinção com relação à com-
posição dos direitos nos períodos anteriores à modernidade, sobretudo se assumirmos como
referência os paradigmas sociais do feudalismo. Os direitos, na verdade, sempre estiveram pre-
sentes em toda e qualquer sociedade, desde os momentos mais remotos da história da civilidade.
Contudo, no feudalismo, esses direitos estavam substancialmente determinados, em sua origem,
pelo status social que, por sua vez, direcionava aos indivíduos o volume de “justiça” cabível,
segundo a proporção da representatividade social. Nos termos de Marschall (1967, p. 64), “na
sociedade feudal, o status era a marca distintiva de classe e a medida de desigualdades. Não
havia nenhum código uniforme de direitos e de deveres”. A teoria dos direitos naturais não rompe
com a distinção das classes sociais. Impõe, no entanto, o princípio da igualdade dos cidadãos,
na medida em que defende que todos, sem exceção, nascem detentores de direitos, a despeito
do status oriundo das riquezas e das posses.
Em seus artigos, essa declaração retoma os conceitos vigentes na modernidade, que versavam,
entre outras coisas, a respeito dos direitos naturais. Segundo Bobbio (1992, p. 93):
[...] o núcleo doutrinário da Declaração está contido nos três artigos iniciais: o primeiro refere-
se à condição natural dos indivíduos que precede à formação da sociedade civil; o segundo,
à finalidade da sociedade política, que vem depois [...] do estado de natureza; o terceiro, ao
princípio de legitimidade do poder que cabe à Nação.
Inicialmente, na Grécia dos séculos V e IV a.C, a cidadania estava condicionada a uma série de
características que determinavam quem estava apto a participar dos destinos da cidade. Mais
adiante, a modernidade, sobretudo a partir do século XVII, começou a moldar o conceito de
cidadania como é visto hoje. O pensamento do filósofo inglês John Locke está nas raízes do
moderno conceito de cidadania, especialmente no que diz respeito à teoria do jusnaturalis-
mo, cuja base e fundamento liberais perduram até os dias de hoje. Um importante documento,
a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, trata a temática da cidadania,
desenvolvendo, no âmbito do poder legislativo francês, o pensamento vigente na modernidade
em John Locke e outros autores.
15
Desenvolvimento humano e social
Marschall (1967), sociólogo britânico, em seu famoso ensaio intitulado “Cidadania, Classe Social e
Status”, propõe a divisão do conceito de cidadania em três partes (ou elementos) aos quais atribui os
nomes de cidadania civil, política e social. De acordo com ele, o acesso aos direitos civis funda-
mentais configura a dimensão básica de nossa vida em sociedade. Nesses termos, para ser cidadão,
é necessário, em primeiro lugar, possuir certos direitos civis. Nos termos do autor, “o elemento civil
é composto dos direitos necessários à liberdade individual” (MARSCHALL, 1967, p. 63).
Para conquistar tais direitos, é necessário, inicialmente, atravessar um longo processo de luta,
com inúmeras derrotas e vitórias. A luta pela garantia dos direitos fundamentais exige nossa in-
serção nos mais diversos movimentos, impulsionando-nos a participar dos rumos da sociedade.
A essa participação efetiva no bem público e comum – cujo fim pretende questionar e propor
caminhos para as instituições democráticas – chamamos direitos políticos. Nesse sentido, o
elemento político trata do “direito de participar no exercício do poder público, como membro
de um organismo investido da autoridade política ou como um eleitor dos membros de tal or-
ganismo” (MARSCHALL, 1967, p. 63). Logo, ao votar e ser votado, estamos exercendo direitos
políticos, assim como ao manifestar nosso descontentamento com as diretrizes adotadas por
certos governos.
Os direitos civis e políticos, por si só, não garantem a força de uma democracia. Toda democra-
cia, quando sólida, fundamenta-se em direitos civis, direitos políticos e, especialmente, em direi-
tos sociais. Os direitos sociais são aqueles direitos que nos garantem, como cidadãos, usufruir
da riqueza coletiva de uma nação. O direito à educação, ao trabalho, ao salário, à saúde, entre
outros, são alguns exemplos. De acordo com os argumentos de Marschall (1967, p. 63-64), “o
elemento social se refere a tudo o que vai desde o direito a um mínimo de bem-estar econômico
e segurança ao direito de participar, por completo, na herança social e levar a vida de um ser
civilizado de acordo com os padrões que prevalecem na sociedade”.
Com base na estrutura proposta por Marschall, podemos compreender que somente exercemos
a cidadania plena por meio do conjunto dos direitos civis, dos direitos políticos e dos direitos
sociais. Se isolados, tais direitos não correspondem ao exercício pleno da cidadania.
Cortina (2005, p. 28), em seu livro Cidadãos do mundo: para uma teoria da cidadania, nos
apresenta dimensões complementares que, em seu conjunto, configuram o exercício pleno da
cidadania. São elas:
• cidadania política;
• cidadania jurídica;
• cidadania social;
• cidadania econômica;
• cidadania civil;
• cidadania intercultural.
16 Laureate- International Universities
Segundo a autora, a cidadania é essencialmente política, na medida em que proporciona ao
cidadão participar de uma comunidade política. As raízes políticas da ideia de cidadania, con-
forme vimos, remontam à democracia ateniense dos séculos V e IV a.C.
Outra dimensão fundamental da cidadania advém de seu caráter jurídico. A definição jurídica
de cidadão, sobretudo a partir dos romanos, vincula-se fundamentalmente ao Direito. Segundo
Cortina (2005, p. 42), do ponto de vista jurídico, cidadão é aquele que “atua sob a lei e espera
a proteção da lei”, ou seja, é “membro de uma comunidade que compartilha a lei”.
De acordo com a abordagem social, a cidadania também se configura por meio das garantias
de proteção do Estado nacional, o Estado de “bem-estar” social. Nesse caso, ser cidadão é estar
ciente da existência de um “Estado de justiça”, cuja finalidade é proteger e prover, por meio das
riquezas, o justo sustento da sociedade, conforme afirma Cortina (2005).
A cidadania econômica, por sua vez, trata do respeito ao direito de participar da gestão e dos
lucros de determinados organismos públicos e, também, privados. A cidadania civil, conforme já
indicamos anteriormente, trata da legitimação dos valores cívicos.
Por fim, a cidadania intercultural se refere a um projeto ético e político pautado nos valores da
interculturalidade, em contraposição aos valores afirmados de modo etnocêntrico.
Nessa perspectiva, para atuarmos de forma cidadã, é preciso inicialmente estar a par do caráter
múltiplo da sociedade, admitindo as diferenças e as diversidades existentes. Agir de modo etno-
cêntrico, priorizando esta ou aquela cultura como moralmente mais aceita e dominante, pode
nos levar a noções equivocadas de cidadania e de pertencimento social. Um gravíssimo exemplo
doentio dessa postura etnocêntrica pode ser observado nos modos como, na Alemanha do sécu-
lo XX, foram traçados os perfis necessários para participar da cidadania alemã, culminando em
um dos mais terríveis capítulos da história da humanidade: o nazismo.
Outro exemplo bastante grave, e mais recente, pode ser observado na postura etnocêntrica de
uma jornalista que, em 2013, publicou em uma rede social sua impressão a respeito das médicas
cubanas, contratadas pelo Programa Mais Médicos, do Governo Federal. De acordo com repor-
tagem do G1 (2013), ela afirmou que as médicas cubanas tinham “uma cara de empregada do-
méstica”, temendo, por isso, a ineficiência dos serviços médicos a serem prestados à população.
Sua postura é duplamente etnocêntrica, na medida em que, em primeiro, associa aparência e
competência, indicando que a aparência impactaria, necessariamente, nas aptidões médicas das
profissionais cubanas, e, em segundo, porque pretende instituir, a rigor, uma aparência pejorati-
va associada às empregadas domésticas.
17
Desenvolvimento humano e social
A questão central a que nos dedicaremos, a partir da compreensão da ideia de cidadania de-
senvolvida até o momento, circunscreve-se às seguintes problemáticas: quais as implicações da
noção de cidadania para o mundo contemporâneo? Do ponto de vista da consolidação das de-
mocracias, quais os aspectos que ainda são frágeis com relação à participação do cidadão? E,
por fim, quais as configurações possíveis para a ideia de cidadania, a partir do avanço tecnoló-
gico e industrial, sobretudo quando nos referimos ao crescente desenvolvimento das tecnologias
de comunicação no mundo contemporâneo?
O mundo produz, a cada instante, novas exigências decorrentes de seu prodigioso crescimento e
desenvolvimento. Todos os dias, novas configurações sociais emergem. As minorias, antes aquie-
tadas pelos processos dominantes, hoje se fazem ouvir por meio dos mais diversos mecanismos
de comunicação, como a internet, entre outros.
A participação das mulheres na vida política pode nos indicar, por exemplo, quão marcantes são
as diferenças entre o mundo contemporâneo e o passado. Do ponto de vista histórico, a inserção
das mulheres na vida política faz parte de um processo extremamente recente. No Brasil, apenas
tardiamente, em novembro de 1927, surgiu em Mossoró, no Rio Grande do Norte, a primeira
eleitora. Na Itália, a despeito da solidez de suas instituições democráticas, as mulheres perdura-
ram ainda mais tempo à margem da participação política, sendo impedidas de votar até 1946.
Trata-se, portanto, em comparação às centenárias instituições democráticas, de um processo
ainda embrionário, com pouco mais de meio século.
A despeito disso, as mulheres, que antes eram impedidas do exercício do voto, hoje já ocupam
importantes cargos no executivo, no legislativo e no judiciário. As grandes empresas têm assumi-
do a importância do gerenciamento feminino. No Brasil, na Alemanha e em outros importantes
países da economia mundial, por exemplo, as mulheres estão à frente das instituições democrá-
ticas, ocupando os cargos executivos de primeiro escalão.
Vivenciamos outros tempos para a cidadania e para a democracia. Por isso, é preciso compre-
ender as implicações do conceito de cidadania no mundo contemporâneo, para que possamos
traçar os limites de nossa ação. Do ponto de vista profissional, político e ético, receberemos os
benefícios da ação cidadã consciente em relação a nós mesmos e aos demais cidadãos.
19
Desenvolvimento humano e social
partilhar suas posturas políticas ou comentar as posições alheias nas redes sociais, os cidadãos
travam, entre si, o debate político que antes, na Grécia dos séculos V ou IV a.C., por exemplo,
ocorria na praça pública, demandando intenso movimento organizativo. Agora, o cidadão pode
estar conectado a um sem-número de informações, refletindo e discutindo sobre elas quase no
mesmo instante em que ocorrem em qualquer parte do mundo.
No Brasil, uma importante experiência relacionada à tecnologia e à cidadania pode ser cons-
tatada pela aprovação da Lei nº 12.527, promulgada em 18 de novembro de 2011. É a Lei de
Acesso à Informação, que garante aos cidadãos interessados acesso às informações dos poderes
judiciário, executivo e legislativo nos âmbitos municipal, estadual, distrital e federal.
Por meio dos mecanismos tecnológicos, a Lei de Acesso à Informação institui um novo paradig-
ma de atuação cidadã, regulamentando um direito essencial: o de “receber dos órgãos públi-
cos informações de seu interesse particular, ou de interesse coletivo ou geral” (BRASIL, 2011).
Ao garantir a publicidade imediata dos atos públicos, a tecnologia produz uma nova forma de
participação cidadã, reduzindo substancialmente a distância entre os cidadãos e as instituições
democráticas. De suas casas, os brasileiros podem atuar de forma cidadã, conhecendo e ques-
tionando os gastos públicos, os contratos públicos, enfim, a coisa pública.
21
Síntese Síntese
• Em meados de 2013, o Brasil vivenciou um intenso movimento de manifestações
populares de descontentamento com relação às práticas governamentais. Esses protestos
conclamavam os brasileiros à rua, a fim de que participassem, de forma cidadã, das
questões do país.
______. Lei nº 12.527. Brasília, 18 de novembro de 2011. Regula o acesso a informações pre-
visto no inciso XXXIII do art. 5º, no inciso II do § 3º do art. 37 e no § 2º do art. 216 da Constitui-
ção Federal; altera a Lei nº 8.112, de 11 de dezembro de 1990; revoga a Lei nº 11.111, de 5 de
maio de 2005, e dispositivos da Lei nº 8.159, de 8 de janeiro de 1991; e dá outras providências.
Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2011/lei/l12527.htm>.
Acesso em: 22 maio 2015.
______. Tribunal Superior Eleitoral. Série inclusão: a conquista do voto feminino no Brasil. Bra-
sília: TSE, 2013. Disponível em: <http://www.tse.jus.br/noticias-tse/2013/Abril/serie-inclusao-
-a-conquista-do-voto-feminino-no-brasil>. Acesso em: 22 maio 2015.
CORTINA, A. Cidadãos do mundo: para uma teoria da cidadania. São Paulo: Edições Loyola,
2005.
G1. Jornalista diz que médicas cubanas parecem “empregadas domésticas”. G1, Rio Grande do
Norte, 2013. Disponível em: <http://g1.globo.com/rn/rio-grande-do-norte/noticia/2013/08/
jornalista-diz-que-medicas-cubanas-parecem-empregadas-domesticas.html>. Acesso em: 28
maio 2015.
MARCONDES, D.; JAPIASSU, H. Dicionário Básico de Filosofia. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Editora, 2001.
MARSCHALL, T. H. Cidadania, Classe Social e Status. Tradução de Meton Porto Gadelha. Rio
de Janeiro: Zahar Editores, 1967.
23