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Appadurai Sobernania Sem Territorialidade
Appadurai Sobernania Sem Territorialidade
Arjun Appadurai
Tradução do inglês: Heloísa Buarque de Almeida
RESUMO
O artigo discute a crise do Estado-nação a partir do problema da territorialidade. Refletindo
sobre questões como os novos nacionalismos, os grandes movimentos migratórios, a
produção da localidade, o surgimento de translocalidades, a força de fidelidades transnacio-
nais, o autor busca demonstrar como a idéia de soberania territorial vinculada ao Estado cada
vez mais se distancia do conceito de nação e das novas facetas que este conceito assume na
situação contemporânea. Para tanto, utiliza uma grande gama de exemplos, referindo-se a
questões migratórias e étnicas em várias regiões do mundo.
Palavras-chave: Estado-nação; território; nacionalismos; localidades; diáspora; cidadania.
SUMMARY
This article examines the crisis of the nation-state by focusing on the issue of territoriality. In
discussing the new nationalism, large migrations, the production of places and the emergence
of tranlocalities, and the force of transnational loyalties, the author seeks to demonstrate how
the notion of territorial sovereignty is becoming increasingly removed from the concept of
nation and from the new facets that this concept has acquired in the contemporary context.
The article employs a wide array of examples, referring to migratory and ethnic questions in
several regions of the world.
Keywords: nation-state; territory; nationalism; localities; diasporas; citizenship.
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dor do Estado-nação1, embora muitas outras concepções afetem sua (1) A importância deste mo-
mento é discutida em vários
subsequente capacidade cultural de se imaginar e criar sua própria narrativa. trabalhos. Uma discussão inte-
ressante encontra-se em Gross
Incluem-se aí noções sobre língua, origem comum, consangüinidade e (1973), que coloca os tratados
de Westphalia no contexto de
várias outras concepções de etnia. Ainda assim, a base lógica política e uma discussão mais ampla da
evolução do direito público no
jurídica fundamental do sistema de Estados-nações é a soberania territorial, Sacro Império Romano nos
séculos XVII e XVIII.
mesmo que compreendida de forma complexa e articulada de modo
delicado em cenários pós-imperiais específicos2. (2) Para um discussão interes-
sante sobre o princípio de so-
berania territorial no contexto
da lei internacional e suas ex-
centricidades durante o colo-
nialismo na África, ver Shaw,
Nacionalidade e localidade 1986.
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Soberanias móveis
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Cartografias pós-nacionais
Para onde esta perspectiva leva o hífen entre Estado e nação, um hífen
que já discuti como o verdadeiro lugar da crise? (Appadurai, 1990). Não há
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Hábitos territoriais
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entre aquela dos sikhs sobre o Khalistan e a dos neofascistas alemães sobre Anderson, Benedict. Imagined
communities: Reflections on
a Sudetenland. No primeiro caso, há uma tentativa de criar uma etnia de the origin and spread of natio-
nalism. London: Verso, 1983.
diáspora desenhando uma pátria num território nacional já existente (como
Appadurai, Arjun. "Disjunctu-
no caso sikh com relação à Índia). No caso dos neofascistas alemães, há o re and difference in the global
empenho em estender e expandir uma etnia majoritária no poder de um cultural economy". Public Cul-
ture, .2(2), 1990: 1-24.
Estado-nação territorial para o território de outros Estados-nações já existen- . "Patriotism and its
tes. Esta extensão do nacionalismo oficial por meio da conexão com futures". Public Culture, 5(3),
1993: 411-429.
emigrantes deve ser precisamente diferenciada da construção de um
. Modernity at large:
nacionalismo separatista baseado numa diáspora global. Cultural dimensions of globa-
lization. Minneapolis: Univer-
Ainda assim, estas diferentes tentativas de expandir o imaginário sity of Minnesota Press, 1996.
territorial para situações de mudança política e de diáspora têm algo em Balibar, Etienne. "The nation
comum: a tendência a usar o imaginário territorial do Estado-nação para form: History and ideology".
In: Balibar, E. e Wallerstein, I.
alcançar e mobilizar grandes populações dispersas no mundo contemporâ- Race, nation, class: Ambiguous
identities. London: Verso, 1991.
neo em direção a uma formação étnica transnacional. Esta tentativa quase
Boden, Deidre e Molotch, Har-
sempre gera tensões com um ou vários Estados-nações, dado que as lógicas vey L. "The compulsion of pro-
ximity". In: Friedland, R. e Bo-
de desterritorialização e reterritorialização costumam gerar vários tipos de den, D. (ed.). NowHere: Space,
time and modernity. Berkeley:
reações em cadeia locais, regionais e globais. Como sugeri antes, a limpeza University of Califórnia Press,
1994.
étnica de muitos Estados-nações (especialmente aqueles comprometidos
com algum tipo de ideologia de "filhos da terra") cria inevitavelmente Comaroff, J. e Comaroff, J. L.
"Of totemism and ethnicity".
problemas com refugiados para sociedades vizinhas ou distantes, exacer- In: Ethnography and the histo-
rical imagination. Boulder:
bando assim problemas locais nas relações sempre delicadas entre residên- Westview Press, 1992.
cia, raça e direitos nas sociedades modernas. Deleuze, G. e Guattari, F. A
thousand Plateaus: Capitalism
Portanto, o território pode ser encarado como um problema crucial na and schizophrenia. Minneapo-
lis: University of Minnesota
crise contemporânea do Estado-nação ou, mais precisamente, na crise da Press, 1987.
relação entre Estado e nação. Na medida em que os Estados-nações Gilroy, Paul. The black Atlan-
existentes apóiam-se em alguma idéia implícita de coerência étnica como tic: Modernity and double cons-
ciousness. Cambridge: Harvard
base da soberania estatal, tendem certamente a transformar em minoria, University Press, 1993.
degradar, penalizar, assassinar ou expulsar aqueles que são vistos como Godlewska, Anne e Smith, Neil
(eds.). Geography and empire.
minoria étnica. Na medida em que estas minorias (como trabalhadores Oxford: Blackwell Publishers,
1994.
imigrantes, refugiados ou estrangeiros ilegais) participam de uma nova
Gross, Hans. Empire and sove-
forma de organização política, exigem reterritorialização dentro de uma reignty: A history of the public
law literature in the Holy Ro-
nova ordem cívica, abalando as referências ideológicas de coerência étnica man Empire, 1599-1804. Chi-
e direitos de cidadania, dado que toda ideologia moderna de direitos cago: Chicago University Press,
1973.
depende em última instância de um grupo fechado (enumerado, estável e
Hanchard, Michael. "Black Cin-
imóvel) de merecedores da proteção e do amparo estatal. Deste modo, derella? Race and public sphe-
re in Brazil". Public Culture,
cidadãos de segunda ou terceira classe representam condições de cidadania XD, 1994: 165-185.
inevitáveis na migração, não importando se a ideologia étnica do Estado que Price, Monroe. "The market for
loyalties: Electronic media and
recebe os migrantes é plural, nem se é flexível sua acomodação de the global competition for alle-
giances". The Yale Law Jour-
refugiados e de outros estrangeiros sem documentos. nal, 104(3), 1994: 667-705.
Nada disso seria um problema se as condições da economia, mão-de- Rudolph, Suzanne. Religion,
obra e organização tecnológica globais não criassem novas pressões em the State and transnational ci-
vil society. Program in Interna-
favor do deslocamento de indivíduos e grupos para novos cenários tional Peace and Security —
SSRC, s/d (mimeo).
nacionais. Dado que estes indivíduos e grupos precisam ser reconhecidos
Sahlins, Marshall. Stone age
em algum tipo de vocabulário quanto a direitos e reivindicações, ainda que economics. Chicago: Aldine-
Atherton, 1972.
limitado e precário, eles representam uma ameaça à coerência étnica e
moral de todos os Estados-nações que os recebem, pois estes têm como . Culture and practi-
cal reason. Chicago: Universi-
fundamento último uma etnia singular e estática. Nestas condições, o Estado ty of Chicago Press, 1976 [Cul-
tura e razão prática. Rio de
como fator de pressão em diásporas étnicas é constantemente obrigado a Janeiro: Zahar, 1979],
remover as fontes de ruído étnico que ameaçam ou violam sua integridade Sassen, Saskia. Global city: New
York, London, Tokyo. Prince-
como uma entidade territorial etnicamente singular. Mas, por outro lado, ton: Princeton University Press,
virtualmente todo Estado-nação moderno é forçado ou seduzido a aceitar 1991.
em seu território toda uma ordem de não-nacionais que demandam e criam . Cities in a world eco-
nomy. Thousand Oaks: Pine
uma grande variedade de reivindicações territorialmente ambíguas quanto Forge Press, 1994.
a direitos e recursos cívicos e nacionais. Shain, Yossi. The frontier of
loyalty: Political exiles in the
Aqui, estamos no núcleo da crise do Estado-nação contemporâneo. À age of the Nation-Stale. Midd-
letown: Wesleyan University
primeira vista, parece que a crise se relaciona ao mero fato da pluralidade Press, 1989.
étnica, resultado inevitável do fluxo de populações do mundo contemporâ- Shapiro, Michael J. "Moral ge-
neo. Mas, ao se observar mais atentamente, o problema não é o pluralismo ographies and the ethics of
post-sovereignty". Public Cul-
étnico e cultural em si, mas a tensão entre o pluralismo de diáspora e a ture, 6(3), 1994: 479-502.
estabilidade territorial do projeto do Estado-nação moderno. O que a Shaw, Malcolm: Title to terri-
tory in Africa: International
pluralidade étnica faz (especialmente quando é produto de movimentos de legal issues. Oxford: Clarendon
Press, 1986.
população de memória recente) é violar a sensação de isomorfismo entre
Zolber, A., Sahrke, A. e
território e identidade nacional na qual se baseia o Estado-nação moderno. Aguayo, S. Escape from violen-
ce: Conflict and the refugee cri-
O pluralismo de diáspora particularmente expõe e intensifica a distância sis in tbe developing world.
entre o poder do Estado de regular as fronteiras, monitorar as divergências, Oxford: Oxford University
Press, 1989.
distribuir direitos dentro de um território finito e a ficção da singularidade
étnica na qual, em última instância, a maioria das nações se apóia. Em outras
palavras, a integridade territorial que justifica os Estados e a singularidade
étnica que valida as nações são cada vez menos vistas como aspectos
complementares. Dito de outra forma, dado que Estados, territórios e idéias
de singularidade étnica nacional são sempre co-produções históricas com-
plicadas, o pluralismo de diáspora tende a embaraçar todas as narrativas que
buscam naturalizar tais histórias.
Conclusão
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abrir mão do princípio de integridade territorial. Este princípio dificilmente Arjun Appadurai é professor
de antropologia da Universi-
sobreviverá a longo prazo, mas seria imprudente procurar algum novo dade de Chicago.
princípio organizacional simples para a organização política em larga escala
das sociedades humanas. Pode ser que a maior peculiaridade do Estado-
nação moderno tenha sido a idéia de que fronteiras territoriais poderiam
sustentar indefinidamente a ficção da singularidade étnica nacional. Esta
idéia utópica pode ser nossa memória mais duradoura do Estado-nação
moderno.