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XXIII ENCONTRO DA SOCIEDADE BRASILEIRA DE ACÚSTICA

SALVADOR-BA, 18 A 21 DE MAIO DE 2010

A PAISAGEM SONORA COMO INSTRUMENTO DE DESIGN E


ENGENHARIA EM MEIO URBANO

BENTO COELHO, J. L.
CAPS, Instituto Superior Técnico, TULisbon, Lisboa, PORTUGAL
bcoelho@ist.utl.pt

RESUMO
As paisagens sonoras em cidades são muito variadas. Nos meios urbanos, os sistemas de transporte e as
atividades de entretenimento geram níveis sonoros elevados que determinam o ruído ambiente global. O
controlo de ruído é fundamental para a redução dos níveis sonoros a valores que não sejam suscetíveis de
gerar efeitos negativos na saúde. No entanto, essa redução não pode ser cega e dirigida apenas para o
objetivo de silêncio. As cidades necessitam dos seus sons e ruídos. Há que compreender como
interpretamos o fenómeno sonoro urbano e como o correlacionamos com o conforto acústico do espaço.
Um bom ambiente sonoro é um indicador de qualidade de vida. A qualidade do ambiente sonoro resulta
do confronto de zonas com vivacidade e de zonas com tranquilidade, sendo esta interpretada a partir não
só de menos ruído mas também de composições sonoras com elementos naturais e/ou tradicionais. Para
além da composição, a paisagem sonora é percebida no seu contexto e na sua coerência com as outras
interpretações sensoriais, especialmente a visual. Torna-se, então, importante avaliar a qualidade do
ambiente urbano, através do mapeamento qualitativo. É aqui descrita uma metodologia para mapeamento
sonoro qualitativo, sendo discutidos os resultados. É, ainda, apresentada uma aplicação do conceito de
paisagem sonora como estratégia de design para melhoria do conforto acústico numa praça de Lisboa.

ABSTRACT
The urban soundscapes can be quite varied. In cities, the environmental climate is defined mostly by
noise from transportation and from leisure activities. Noise control is essential to reduce the noise levels
before serious health hazards can occur. However, blind reduction strategies directed towards just silence
as an objective can be a mistake. Cities need their noises and their sounds. The acousticians should be
well aware of the human interpretation process of the urban sound phenomena and how they lead to the
concept of acoustical comfort. This is an indicator of quality of life and wellbeing. The quality of the
urban sound environment results from the balance between vibrant areas and quiet areas, where
tranquillity is felt not just from less noise but also from sound compositions with natural and traditional
elements. Besides the sound composition, the coherence with other sensorial assessments, namely visual,
is essential for our perception of a comfortable environment. The qualitative assessment of the acoustical
environment then becomes important. A methodology is described for qualitative sound mapping in urban
areas and results are discussed herein. An application is presented where the concept of soundscape was
used as a strategy of design of the urban sound environment for improving the acoustical comfort in a
Lisbon square.

Palavras-chave: Paisagens sonoras. Soundscape. Ambiente sonoro. Mascaramento. Mapa de ruído


qualitativo.
1. INTRODUÇÃO
As previsões de evolução das cidades apontam para um padrão de crescimento generalizado das
populações urbanas, a nível mundial, com maior preponderância nos países em desenvolvimento.
Os dados das Nações Unidas permitem prever que em 2050 cerca de 2/3 da população mundial
viverá em cidades. Atualmente, na Europa, entre 75 e 80% da população vive em cidades, de
diferente dimensão.

O desenvolvimento económico e social que ocorreu nas últimas décadas levou a um aumento
generalizado do grau de exigência de qualidade de vida por parte das pessoas. Este refinamento
dos requisitos de qualidade encontra-se, também, diretamente ligado ao envelhecimento das
populações. A tradição ensina-nos que os mais velhos são mais sábios. Mas a questão está aqui,
essencialmente, ligada por um lado, a uma maior capacidade de apreciação das condições de
vida e de uma maior complexidade da percepção do entorno em que nos movemos, que se
aprende e se refina, e, por outro lado, a uma maior consciencialização social dos deveres e
direitos cívicos, que torna as populações urbanas mais exigentes.

A nossa percepção do exterior é um fenómeno cognitivo complexo, onde a educação, a cultura e


todo o nosso historial se encontra presente. A nossa percepção de agradibilidade do ambiente
onde nos encontramos passa por aspectos onde todos os nossos sentidos se encontram presentes,
se interligam e se correlacionam. A qualidade do ar que respiramos, a estética arquitetónica, os
cheiros, os sons compõem uma sinfonia complexa de sensações a que reagimos com conotações
positivas e negativas. O ruído é parte deste conjunto e é percebido num contexto integrado. A
noção de coerência entre as múltiplas sensações é fundamental, sendo este, aliás, um dos
aspectos de design utilizado pelos especialistas na acústica de salas de espectáculos.

A engenharia acústica tem incidido, tradicionalmente, na redução do ruído emitido por fontes ou
atividades ruidosas, tendo, como objectivo, a diminuição do factor negativo associado à
percepção do fenómeno sonoro, ou seja, do ruído. O controlo de ruído tem visto um
desenvolvimento notável nas últimas décadas, em termos tanto tecnológicos, seja no campo dos
instrumentos de registo, avaliação e análise sonora, seja nos materiais ou dispositivos de
atenuação, passivas ou ativas, como concetuais, com a procura de novos produtos menos
ruidosos. O resultado transparece nas novas gerações de máquinas, equipamentos e veículos se
apresentarem com emissões sonoras sucessivamente mais baixas. Neste caso, a qualidade sonora
dos novos produtos tem sido procurada como um valor acrescentado, no reconhecimento de que
não basta reduzir os níveis sonoros em dB(A), havendo que melhorar a percepção das emissões
sonoras que lhe estão associadas. Aqui vão intervir conceitos de psico-acústica onde o contexto
de utilização dos produtos joga um papel determinante.

As cidades são meios vivos, dinâmicos, que se desenvolvem em torno das atividades das
populações aglomeradas. Esse desenvolvimento requere-se harmonioso e sustentado em todos os
aspectos. A arquitetura urbana, não apenas na estética dos edifícios mas também na sua
estruturação e confronto entre edificado e espaços públicos, apresenta-se como um factor
primordial de organização da percepção de integração no local, até pela prevalência da sensação
visual, que o desenvolvimento civilizacional tornou como o meio primário de transmissão de
informação, em detrimento da tradição sonora (SCHAFER, 2005). O fenómeno sonoro
continua, no entanto, a assumir um papel relevante na percepção que temos da nossa envolvente
exterior, embora tal não seja, usualmente, reconhecido pelos profissionais envolvidos ou
responsáveis pelas ações de urbanismo, tais como arquitetos ou técnicos de planeamento urbano
(HELLSTROM, 2003). Isto pode explicar a variabilidade da sensação de conforto acústico ou do
incómodo resultante do ruído em cidades, consoante os locais ou as comunidades residentes.
Os especialistas de Acústica têm um papel determinante, como o têm arquitetos e urbanistas, na
definição e estabelecimento de ambientes urbanos confortáveis. É crucial a redução de ruído de
origem mecânica para níveis que não sejam susceptíveis de causar danos na saúde e bem estar
das populações. E aqui tem tido um papel determinante a atividade legislativa, em praticamente
todo o mundo, com o estabelecimento de valores limite para as emissões sonoras e para os locais
com usos do solo sensíveis ao ruído (BENTO COELHO, 2007). É, no entanto, igualmente
importante reconhecer os mecanismos da percepção do fenómeno sonoro e os seus contornos em
termos da interpertação da globalidade dos sentidos (THIBAUD, 1998). De facto, não vemos um
espaço urbano de ouvidos tapados, e não ouvimos o ruído que nos envolve de olhos fechados,
por exemplo. E, mesmo que o fizéssemos, haveria todo um contexto espacial, temporal e de
atividade humana que condicionaria e determinaria a nossa percepção.

O conceito integrado de paisagem sonora, por oposição (SCHAFER, 1977) ou alternativa ao de


controlo do ruído desligado do seu contexto, pode fornecer instrumentos interessantes de
intervenção e design em meio urbano para gestão do ambiente sonoro e para melhoria da
percepção de qualidade de vida por parte dos cidadãos.

2. AS PAISAGENS SONORAS URBANAS


A paisagem sonora urbana é uma característica própria de cada cidade, constituída pelos
diferentes eventos ouvidos (SCHAFER, 1977) e com uma dimensão emocional determinada pela
interpretação multi-sensorial que fazemos das suas diferentes componentes (KANG, 2007). E ela
pretende-se mais agitada ou mais calma de acordo com o entendimento dos seus cidadãos quanto
à sua agradabilidade. É o equilíbrio entre a vivacidade e a tranquilidade dos diferentes espaços
ou momentos que determina o conceito de agradabilidade do ambiente sonoro urbano (CAIN et.
al, 2009). A cidade necessita dos seus sons e ruídos, que na verdade devem ser assumidos como
recursos próprios a proteger e gerir (BROWN, 2009), necessita dos seus espaços de
movimentação e agitação; mas também vive dos seus espaços de calma e tranquilidade, de
harmonia estética, tanto visual como sonora como em relação a todos os outros parâmetros que
determinam a nossa percepção de qualidade e bem estar.

Uma urbe demasiado tranquila pode ser percebida por algumas populações, sobretudo aquelas
que desfrutam de climas mais amenos e que, como tal, se movimentam mais no exterior (caso do
Brasil ou dos países da Europa do Sul), como monótona e desinteressante. O ruído, como sub-
produto da actividade humana, pode ser percebido como um indicador de pujança económica ou
de riqueza cultural.

Um espaço muito ruidoso tem, no entanto, manifestos efeitos negativos na saúde humana,
entendida no sentido global de ausência de doença e de bem estar. E uma cidade com alguma
dimensão tem sempre problemas de ruído essencialmente ligados aos meios de transporte, em
praticamente todos os seus modos, resultante da mobilidade e atividade dos seus cidadãos. A
redução e controlo de ruído são, em tais casos, necessários e devem integrar as estratégias de
desenvolvimento, de planeamento urbano e de ordenamento do território. Mas são, também,
necessários, por razões de equilíbrio, momentos espaciais urbanos onde os diferentes sons
compõem paisagens sonoras que são percebidas como agradáveis, quer pela sua tranquilidade
(baixos níveis de ruído), quer pelo seu conteúdo (composição sonora, com elementos naturais
e/ou não agressivos), quer pelo seu contexto (coerência com as outras componentes da
envolvente exterior).

O que é uma cidade ruidosa? Como se define um ambiente sonoro tranquilo num parque urbano,
por exemplo? Ainda não foram encontradas respostas técnicas suficientemente adequadas para
estas questões. Que, no entanto, os especialistas procuram há muitos anos. As respostas
encontram-se, contudo, menos em valores numéricos de indicadores de ruído ambiente
(quantidade de energia percebida) e mais na consideração dos contextos em que as questões se
colocam.

Na Europa, tem havido um esforço crescente na preservação e/ou criação de zonas tranquilas
(quiet areas), sendo que as legislações de alguns países prevêm uma percentagem do seu
território dedicada a este tipo de áreas. A Directiva Europeia 200/49/CE, relativa à avaliação e
gestão de ruído ambiente, entretanto transposta para o direito jurídico de todos os estados
membros, encoraja a preservação de zonas onde o ambiente sonoro é bom e a criação destas
zonas tranquilas. A dificuldade em definir o conceito de zona tranquila tem sido uma clara
demonstração da dominancia do paradigma do controlo de ruído, no sentido da redução do ruído.
Atualmente, começa a haver um consenso generalizado para a definição de zonas de
tranquilidade sonora em termos do contexto do seu ambiente sonoro e do seu valor relativo na
sonoridade da cidade.

A maior parte das cidades dispõe de espaços de lazer, parques, jardins, praças que se constituem
frequentemente como zonas de escape para o usufruto de ambientes mais agradáveis, menos
agressivos, naturais onde o ambiente sonoro joga um papel importante.

Em parques e jardins encontramos, geralmente, uma prevalência de sonoridades de origem


humana (conversas), animal (pássaros, cigarras) ou de outra origem natural (água) que,
sobrepondo-se aos ruídos mecânicos, constituem ambientes sonoros interessantes (LOBO-
SOARES & BENTO-COELHO, 2010). Aqui se ouvem sons de tráfego, de equipamentos mas,
também, outros mais naturais compondo uma paisagem sonora que confere uma noção de
conforto acústico. Os níveis sonoros podem não ser necessariamente mais baixos do que em
outros locais, mas a composição sonora torna o conjunto mais agradável pela junção de
componentes de conotação positiva que mascaram ou se sobrepõem ou se juntam simplesmente a
componentes de conotação negativa (YANG & KANG, 2005). São estes espaços que conferem a
noção de qualidade sonora urbana (AUGOYARD & TORGUE, 1995) pela percepção de
conforto dos seus utilizadores.

3. MAPEAR A QUALIDADE SONORA URBANA


A avaliação sonora de um espaço urbano permite determinar os níveis sonoros e as
características físicas dos sinais sonoros em cada local. Contudo, não confere adequada
informação sobre o conforto acústico dos locais. Os trabalhos de diagnóstico dos ambientes
sonoros em larga escala urbana, através de mapeamento de ruído, iniciados na década de 90 em
diversos países Europeus, e cuja obrigatoriedade se tornou força de lei a partir da Directiva
2002/49/CE, levantaram, efetivamente, a questão da correlação entre os indicadores de ruído
ambiente e o incómodo induzido pelo ruído, ou, mais genericamente, a qualidade acústica dos
ambientes avaliados. Esta correlação não aparenta ser simples ou imediata. Sem dúvida que
valores muito elevados dos níveis de ruído, sobretudo no período noturno, podem gerar
problemas sérios em consequência, sobretudo, de perturbações das condições de descanso,
conforme documentam os estudos da Organização Mundial de Saúde (BERGLUNG et al., 1999;
WHO, 2009). Mas, na generalidade, as reacções das populações não parecem ajustar-se
perfeitamente aos quadros quantitativos mostrados nos mapas de ruído.

Em Lisboa, o Grupo de Acústica do Instituto Superior Técnico, TULisbon, encetou no início da


década passada um estudo multi-disciplinar sobre a qualidade de ambientes sonoros e o seu
mapeamento, na sequência da sua experiência em mapeamento (quantitativo) de ruído de cidades
em larga escala. Foi desenvolvido um trabalho piloto de elaboração de mapas de ruído
qualitativos para a Praça do Rossio, em Lisboa. Esta é uma praça tradicional, onde circula
tráfego rodoviário e em que duas ruas que dela saem se dirigem para uma praça maior, Praça do
Comércio, talvez a maior da Europa, em frente do Rio Tejo. Numa destas ruas, Rua Augusta,
mais larga e pedonal, há uma vivência comercial, de restauração e de entretenimento, com
alguns locais emitindo música. Na Praça do Rossio, utilizada por passeantes e visitantes, existem
duas fontes de água, árvores e pássaros, ouvindo-se o ruído de água a correr na generalidade da
área, para além do ruído do tráfego e da movimentação das pessoas.

Os mapas de ruído qualitativos foram elaborados através de um processo patenteado de medição


dos níveis de mascaramento de ruído branco para cada uma das componentes sonoras detectadas
auditivamente por sujeitos colocados em diversos pontos de avaliação (BOUBEZARI &
BENTO-COELHO, 2008; 2010). Os sujeitos ouvem o ruído ambiente local sobreposto com um
sinal de ruído branco, injetado em auscultadores, com amplificação variável até diferentes
componentes do ambiente sonora deixarem de ser percebidas por ficarem mascaradas. O nível de
mascaramento define o nível sonoro de cada componente do ambiente sonoro mascarada
(BOUBEZARI & BENTO-COELHO, 2004a; 2005b). No processo de medição, a percepção
auditiva é utilizada como filtro semântico, o que permite estabelecer, para o local em análise, a
topologia das fontes sonoras em presença (BOUBEZARI & BENTO-COELHO, 2005b).

Os resultados permitiram desenhar mapas de ruído percebido em que as diferentes componentes


sonoras se encontram identificadas e individualizadas (BOUBEZARI & BENTO-COELHO,
2004b).

A Figura 1 mostra a evolução da composição da paisagem sonora em diferentes locais de uma


trajetória de passeio desde a Rua Augusta até à Praça do Rossio, em Lisboa.

Figura 1: Evolução das contribuições para a paisagem sonora seguindo um passeio na proximidade da Praça do
Rossio, Lisboa

Enquanto todas as fontes contribuem para os valores globais de energia do sinal sonoro ouvido
(ambiente sonoro), este não é sempre percebido como ruído e, mesmo quando o é, a sua
composição inclui sons (água, música) a que não são atribuídas interpretações necessariamente
negativas. Na proximidade da fonte de água (locais 14 a 19), o ruído de tráfego não é, mesmo,
perceptível, já que é mascarado pelo som da água.

A Figura 2 compara extratos dos mapas qualitativo e quantitativo de uma área específica da
proximidade da Praça do Rossio.
(a) (b)
Figura 2: Mapa de Ruído da zona Sul da Praça do Rossio, Lisboa (extratos); (a) mapa quantitativo; (b) mapa
qualitativo

Os dois mapas são distintos. Ou seja, a reacção a um ambiente sonoro, diga-se a percepção
sonora, incorpora não só as características acústicas do sinal sonoro (energia, espetro, história
temporal) mas, igualmente, a interpretação da sua significância e contexto.

4. O CONCEITO DE PAISAGEM SONORA COMO INSTRUMENTO DE DESIGN


A introdução de sons naturais em ambientes urbanos pretende configurar a paisagem sonora do
lugar para melhorar a percepção aural, conforme comprovado no mapeamento qualitativo sonoro
urbano de Lisboa e em diversos outros estudos (JANG & KOOK, 2005; MEMOLI et al., 2009).
Tais sons podem, mesmo, mascarar determinados sons mecânicos, desta forma alterando
substancialmente a sonoridade percebida.

Esta metodologia foi aplicada num caso de estudo que incidiu numa praceta em Alcântara,
Lisboa, situada por debaixo da Ponte 25 de Abril, junto ao Rio Tejo. Esta é uma zona
visualmente muito agradável, na proximidade imediata de uma marina e do rio, com diversos
barcos ancorados, com uma zona de entretenimento com bares, restaurantes e espaços de lazer, a
qual é muito utilizada pela população e visitantes durante o dia e até altas horas da noite.

A percepção aural na praceta em estudo é, contudo, muito negativa já que o ambiente sonoro é
dominado pelo ruído de tráfego rodoviário e de tráfego ferroviário na ponte que atravessa o rio.
Esta é uma estrutura metálica aberta que vibra e transmite níveis sonoros elevados. No local,
ouve-se, ainda, o ruído do tráfego rodoviário na avenida próxima e o ruído do tráfego ferroviário
na linha de Cascais, também próxima. A sonoridade local é muito desagradável, não encorajando
a permanência no local.

A Figura 3 mostra uma imagem da praceta em estudo. Vê-se, no plano superior, a ponte metálica
onde passa um intenso tráfego, por debaixo uma pala metálica protectora, e ao fundo o Rio Tejo.
Atualmente, o local é apenas de atravessamento e passagem.
Figura 3: Área de intervenção

No âmbito de um projeto de recuperação desta área, com o objetivo de trazer passeantes, adultos
e crianças, para o local, foi desenvolvido um estudo de arquitetura paisagista, simples mas
notável, que introduziu diversos elementos (zonas ajardinadas, máquinas e dispositivos de
ginástica, brinquedos para crianças) destinados a melhorar a percepção espacial do passeante,
atraíndo-o quer por razões da melhoria cénica quer pela criação de novas atividades lúdicas e
desportivas.

A Figura 4 ilustra a área em estudo, atualmente e em projeto.

Figura 4: Área de intervenção, antes e depois (projeto)

Verificando-se uma completa desadaptação entre a imagem visual prevista e a sonoridade


existente, muito desagradável, tornava-se necessário proceder a uma intervenção para conferir
maior coerência entre a percepção visual e a auditiva.

Foi efetuado um programa prévio de medição dos níveis sonoros em 3 locais, tendo sido obtidos
valores médios do nível sonoro contínuo equivalente global da ordem dos 74 dB(A), conforme
se mostra na Tabela 1. Durante a passagem ferroviária na ponte, aqueles valores atingem e
ultrapassam os 80 dB(A). A passagem do tráfego ferroviário na Linha de Cascais próxima não
assume importância relativa no conjunto.
Os valores registados podem considerar-se relativamente elevados. Intervenções de fundo para
redução de ruído encontravam-se fora do âmbito do projeto, em face da diversidade de entidades
responsáveis (diferentes autoridades de transportes, autarquia local, autoridade portuária), dos
custos envolvidos e do tempo necessário para a sua implementação, face à dimensão do projeto,
cuja intervenção era muito localizada.

Tabela 1: Níveis sonoros registados em 3 locais da zona por dabaixo da Ponte 25 de Abril, em Alcântara, Lisboa

Local 1 Local 2 Local 3


LAeq [dBA] LAeq [dBA] LAeq [dBA]
Ruído global 74,1 73,6 74,5

Ruído de tráfego rodoviário 73,4 71,5 70,6

Ruído ferroviário na Ponte 25 de Abril (pass-by) 79,5 83,4 84,8

Ruído ferroviário na Linha de Cascais (pass-by) - 73,6 74,8

Procurou-se, então, uma solução alternativa, estudando estratégias para a configuração da


paisagem sonora local no sentido de a tornar acusticamente mais confortável, através de uma
intervenção ativa de alteração da qualidade sonora do ambiente local (HELLSTROM, 2008;
BOUBEZARI et al., 2009).

Foi adotada uma dupla abordagem: (i) introdução de sons naturais (água, pássaros), para
melhorar a coerência entre percepção visual e auditiva, e (ii) mascaramento de ruído de tráfego
(rodoviário e ferroviário) por sons de água e ruído associado a atividade marítima (barcos). Os
níveis sonoros e os espetros de frequência dos sons introduzidos foram ajustados às caraterísticas
dos ruídos a mascarar, por razões de otimização. Os sons de água foram introduzidos com
alguma predominância não só pela sua capacidade de composição sonora e de consequente
mascaramento (CHAN et al. 2008; WATTS et al, 2009), mas, também, pela sua coerência com a
envolvente cénica do local.

O projeto de intervenção a nível sonoro (BOUBEZARI et al., 2009) contempla um sistema de


emissões sonoras naturais, através da introdução de fontes e quedas de água e de dispositivos de
explosões de água, e um sistema electroacústico para reforço das emissões dos sinais sonoros
naturais, emitindo sons de pássaros, sons de água a correr, roncas de barcos.

O sistema electroacústico funciona de forma dinâmica. É constituído por um conjunto de 3


microfones associados a mecanismos de trigger para disparo automático do sistema de emissão
sonora e para ajuste das potências das fontes de água (com jogos de água) e dos amplificadores
de som, e de 8 altifalantes distribuídos em locais chave da área no sentido de serem eficazes mas
o menos intrusivos possível.

As simulações (o projeto ainda não se encontra implementado) revelam uma alteração


significativa na composição da paisagem sonora da área, percebendo-se elementos sonoros
naturais ou típicos de uma zona ribeirinha, sobrepostos ao ruído dos transportes, e conseguindo-
se um mascaramento razoável na generalidade e eficaz quanto ao ruído de passagem das
composições ferroviárias, a componente mais agressiva, quer pela sua emergência no ruído
global, quer pela resultante vibração de toda a estrutura metálica da ponte.
Os valores dos níveis sonoros não são substancialmente alterados: não há redução de ruído,
havendo mesmo um pequeno acréscimo nos níveis sonoros resultante da junção de novos sons.
Ou seja, os valores da Tabela 1 mantêm a sua ordem de grandeza. Aqui, a contabilização
quantitativa não parece avaliar a situação acústica adequadamente (FIUMICELLI & McKELL,
2009; BROWN, 2009). A zona não fica acusticamente mais tranquila, com menos energia
sonora. No entanto, a sua sonoridade é manifestamente alterada, percebendo-se como menos
agressiva. Os nossos filtros subjetivos interpretam o local como sendo mais agradável, sendo a
composição sonora mais apelativa e conferindo ao local um maior grau de conforto.

A procura de conforto acústico em meios urbanos passa por soluções integradas que deverão
respeitar as sonoridades tradicionais dos locais, melhorando-as, ou seja, reduzindo as
componentes negativas e identificando e valorizando as que interpretamos como positivas, e
enquadrando-as e tornando-as coerentes com as outras componentes sensoriais que determinam a
nossa avaliação subjetiva de um lugar.

AGRADECIMENTOS
Este trabalho foi desenvolvido com suporte do financiamento plurianual FCT-CAPS/IST através
do programa POS_C e fundos do FEDER e do Projecto FCT EYE hEAR, Qualitative sound
maps for visualization of the urban soundscapes, PTDC/AMB/73207/2006, da Fundação de
Ciência e Tecnologia.

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