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ESTADO,

JUSTIÇA
E EDUCAÇÃO
Como Formatamos Moralmente
a Sociedade, as Leis e o Conhecimento?

Alessandro Loiola

Copyright © 2019 ManhoodBrasil


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Sobre a obra:

A menor versão humana natural possível – o Indivíduo – é


produto da associação entre um gameta masculino e outro
feminino que o precedeu. Em nossa versão expandida – o Estado
–, a humanidade apenas repetiu este processo em maior escala, e
nos tornamos o produto da associação entre o pai Governo e a
mãe Sociedade.

Dada sua origem, como poderíamos esperar que o filhote Estado


fosse perfeito? Assim como ocorre com os indivíduos, as
conquistas e as perversões do Estado são um fenômeno
recorrente em nossa história. Em “ESTADO, JUSTIÇA E
EDUCAÇÃO”, o autor Alessandro Loiola oferece o convite para
uma incursão crítica na relação de amor e ódio que nutrimos com
o sistema de convívio social que criamos e mantemos.

Esta é mais uma leitura essencial para sociólogos, economistas,


antropólogos, formadores de opinião, influenciadores digitais,
apaixonados por Filosofia e livres pensadores com interesse e
coragem suficiente para aprofundar-se em estudos sérios acerca
do tema.

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Índice:

1. O Nascimento do Leviatã e seus Dilemas

2. A Moralidade do Estado

3. As Convenções Oficializadas

4. Os Cinco Modelos de Justiça

5. Colocando Óleo na Engrenagem

6. Alimentando seu Monstro de Estimação

7. A Sala de Aula da Utopia

8. Toda Escola tem Partido

9. A Pena Capital

10. Conclusão
1. O NASCIMENTO DO LEVIATÃ E SEUS DILEMAS

Ao longo de milhares de gerações, as somas das Identidades


Pessoais de nossa espécie testaram a validade de incontáveis
programações dogmáticas, enquanto fugíamos da dor e do
sofrimento e buscávamos segurança, prosperidade, amor e
felicidade. A princípio, isso funcionou bem dentro da mais antiga
de todas as confrarias – a família –, mas, tão logo o Neolítico
permitiu, fomos levados a experimentos mais suntuosos. Com a
Revolução da Agricultura, a “família humana” finalmente pode se
tornar maior. Bem maior.
Em A Política, Aristóteles (384-322 a.C.) postulou seu
clássico “o homem é um animal social”2. Se isto é uma Verdade
substantiva, pode-se considerar a formação da sociedade e do
Estado como o destino final da existência humana coletiva3. As
evidências sugerem que Aristóteles estava certo, e nossas
comunidades se tornaram cada vez mais populosas com o tempo.
Entretanto, o impulso gregário que nos conduziu a isto produziu
um imbróglio: devido ao seu pequeno tamanho, a família (ou a
tribo) permitia que seus componentes se conhecessem
pessoalmente, facilitando e estimulando o compartilhamento de
valores Morais. Todavia, em aglomerações enormes, à medida
que os laços se tornam menos pessoais, como aprender a
encontrar regularmente sujeitos estranhos sem tentar matá-los?
Como manter a uniformidade e a paz em um amontado com
centenas de milhares de humanos?11
Esta tarefa inicialmente coube à Religião e seus líderes4, mas
as desavenças sanguinolentas entre povos concorrentes
levantaram a necessidade de um espírito capaz de abarcar várias
religiões ao mesmo tempo, incrementando o número de pessoas
em uma sociedade e, por conseguinte, seu poderio para guerra e a
validade de sua soberania. A este espírito ordenador maior,
qualificado para estabelecer a ordem pública, reprimir as paixões
humanas e guiar o caos da sociedade para uma glória longeva,
demos o nome de Estado.
Brotados nos acampamentos de caçadores-coletores onde os
chefes deliberavam entre si e as conclusões eram meramente
comunicadas ao restante clã, os primeiros Estados foram
incialmente militares e monárquicos1. As repúblicas civis
surgiriam mais tarde, mas manteriam o costume Paleolítico de
prestar obediência à autoridade de um grupo de líderes10.
Rousseau (1712-1778) foi muito ingênuo ou apenas mau
caráter ao propor que os Estados primitivos teriam sido
estabelecidos por meio de convênios “livres e racionais”4: o
Estado nascido da Sociedade não foi um produto da liberdade ou
de um raciocínio fundamentalmente consciente, mas de um
acordo emocional estabelecido entre pessoas que sacrificaram
fatias de independência natural em troca de segurança3,12.
Mesmo no caso de Estados formados pela união de Estados
menores, isto também não derivou de um exercício de liberdade
ou racionalidade: comunidades menores não abandonam
espontaneamente sua soberania e se fundem a unidades
superiores; isso só ocorre por meio da absorção pela conquista ou
outras pressões externas. E este foi o Primeiro Dilema do
Estado para a Sociedade: é melhor manter a condição de
liberdade na Natureza e viver em permanente insegurança, ou
optar pela proteção de um “poder maior”, pagando por ela com
nacos de liberdade cortados da própria carne?
Acreditando que o Estado agiria sempre no interesse do
progresso e da satisfação de nossas necessidades nesta vida,
optamos pela proteção. Em contrapartida, e ciente do risco de
perder seus apoiadores caso não fizesse bem o seu serviço, o
Estado aprendeu com rapidez a importante lição de conservar a
dependência da Sociedade, nutrindo-a sem jamais satisfazê-la,
pois “quem já matou a sede abandona a fonte”9,14. Assim, para
justificar a obediência e a persistente abdicação da liberdade, o
Estado convenceu seus súditos que uma miríade de catástrofes os
espreitava a todo tempo em cada canto, e ele, o Estado, era o
único escudo capaz de defendê-los da morte certa.
Para sedimentar esta autoridade, o Estado estabeleceu um
pacto com a Religião. Afinal, nada mais conveniente que ter uma
Religião que faça os súditos amarem seus deveres por meio da
tradição e da fé4,15. Além disso, havendo uma Religião, se alguma
desgraça sobreviesse, bastaria ao Estado culpar a falta de zelo
com as cerimônias ou os caprichos dos deuses para recuperar o
controle de qualquer possibilidade de rebelião. Por isso, não
causa espanto ver profetas e governos recomendarem com tanta
insistência a Humildade, o Arrependimento e o Respeito aos
dogmas sob o risco de as violações destes preceitos serem
punidas por uma entidade toda poderosa e vingativa – da qual
alguns deles foram convenientemente nomeados porta-vozes7.
Infelizmente, no instante em que um indivíduo admite ser
tutelado por representantes, ele deixa de ser um indivíduo
completo e deixa também de ser livre, pois todos os governos do
mundo têm por natureza usurpar e corromper a soberania da
Identidade Pessoal de cada um de seus cidadãos4.
Derradeiramente, o Estado, desejado pela Sociedade e
sancionado pela Religião, tornou-se a negação oficial de nossa
humanidade em uma coletivização cujo objetivo supremo é
aumentar o poder do próprio Estado em detrimento da liberdade
interna e da justiça externa: pelo preço de sua existência, o
Estado jamais hesitou em sacrificar o sangue dos cidadãos que o
compõe3.
Ao mesmo tempo em que os humanos formavam sociedades
em busca de sobrevivência, e as sociedades formavam Estados
teocráticos e aristocráticos pelo mesmo motivo, Estados e
sociedades reagiam editando os humanos. A aceitação do
contrato de convivência do Estado significou colocar o senso de
Moralidade e Justiça em prateleiras fora de nossas casas. Os
membros das tribos que aceitavam os novos termos passavam a
ser chamados de Cidadãos, e assumiam o dever de subordinar
parte de suas tradições e interesses pessoais à Moralidade e aos
interesses do “bem comum”. No lugar da ética da família,
ganhamos um Estado arbitrário; e no lugar dos líderes tribais,
passamos a ser gerenciados por um corpo intermediário
denominado Governo4.
John Locke (1632-1704) e Rousseau pareciam acreditar
sinceramente no Estado como uma instituição formada sob
medida para conservar e promover bens civis como a vida, a
liberdade e o respeito à propriedade4,5. Thomas Hobbes (1588-
1679), calejado pelos abusos da monarquia britânica pré-
Revolução Gloriosa, dizia que o Estado não passava de “um
homem artificial, de maior estatura e força do que o homem
natural, para cuja proteção e defesa fora projetado”6. Qualquer
que seja a definição mais adequada, o fato é que a criança-Estado
vicejou a partir de nosso medo e de nossa comodidade, tornando-
se um adolescente atrevido ao ponto de substituir sua antiga
aliada, a Religião, como fonte da Lei e da Moral, monopolizando
a justiça, o crime, a unção dos matrimônios e a legitimação da
violência8. Ulteriormente, Estado e Governo produziram
indústria, comércio, unidades monetárias, fronteiras, fusos
horários, leis, ações judiciais, guerras, alianças e infindáveis
outras rotinas que mantêm a aparência de uniformidade no
cotidiano à qual tão bem nos habituamos.
Como não poderia deixar de ser, com tamanho poder, o
Estado tornou-se nossa principal ameaça, e algumas vezes
pensamos que a única maneira de minimizar o risco seria
reduzindo sua envergadura e importância. Mas a Natureza não dá
saltos, certo? E é preciso lembrar também que esta mesma
Natureza odeia o vácuo: assim que retirarmos o Estado, algo
ocupará seu lugar, e algumas vezes este "algo" poderá ser mais
deletério que aquilo que tencionávamos corrigir a princípio. E
este foi o Segundo Dilema do Estado para a Sociedade: se a
renúncia da liberdade em nome da proteção não produzir os
resultados esperados, o melhor a fazer é livrar-se do Estado e
retornar à condição natural humana anterior, ou manter o Estado
e tentar moldar sua voracidade e resolver suas ineficiências? Dê
uma rápida olhada nos últimos 2.000 anos e você perceberá
como a esperança nos conduziu repetidas vezes à segunda
alternativa.
De acordo com Baruch Espinoza (1632-1677), para resolver o
Segundo Dilema, passando de um Estado-parasita para um
Estado realmente Bom e Correto, bastaria contar com cidadãos
movidos pela Razão ao invés de Vontades7. Infelizmente,
Espinoza não informou como determinar qual Razão seria a
melhor Razão – tampouco indicou que parte de Aristóteles
deveríamos consultar para verificar quais Vontades eram
virtudes que poderiam ser mantidas ou vícios que deveriam ser
desprezados. Na confusão, continuamos entendendo por Razão
aquilo que acreditamos que nos será útil em algum momento, e
terminamos sendo arrastados em sentidos contrários uns aos
outros: com grande astúcia, os governos sempre procuraram
trabalhar as vontades violentas dos humanos, aumentando a
intensidade das emoções, ampliando a ansiedade e a impaciência
ao extremo, mantendo a fome e a sede, e dominando-nos
justamente por meio da suspensão da Razão e da Lógica.
Isso não significa que os resultados ruins do Estado e dos
governos tenham sido sempre aceitos de bom grado. Ao longo da
história, fizemos algumas tentativas de tratamento do parasita.
Por exemplo: através do Amor ao Temor, o Cristianismo afirmou
que seria possível remodelar o Estado; e por meio da fantasia do
Contrato Social, Rousseau apostou que isto seria negociável. Os
séculos, as Cruzadas, a Santa Inquisição, os genocídios nas
Américas patrocinados pelas Grandes Navegações e milhares de
decapitações da Revolução Francesa mostraram o quanto ambos
estavam equivocados, e o Estado-Leviatã de Hobbes foi
finalmente retirado de dentro do armário e hasteado com toda
pompa e circunstância para intermediar os termos de nossa
rendição. Alguns pensaram que isto resolveria o Segundo Dilema,
pois o Leviatã cedo ou tarde daria ouvidos à Espinoza e utilizaria
a Razão em benefício de todos. Ledo engano: o instrumento do
Estado é o Consequencialismo como meio de perpetuação do
poder – uma maldição da qual nenhum Estado escapa –,
variando apenas na quantidade de corrupção envolvida e na
qualidade do retorno utilitário devolvido pelo governo
instituído6.
Curiosamente, quando comparamos a concepção de Estado
oferecida por Hobbes com aquela apresentada por Rousseau,
podemos ver o ponto onde a construção teórica do Estado
brasileiro parece ter perdido o bonde da prosperidade:
cometemos um equívoco imenso ao abraçar as fantasias do suíço
romântico em detrimento da realidade nua e crua do filósofo
inglês.
Para Rousseau, o Estado deveria ser uma forma de
associação voltada para a defesa e proteção das pessoas e seus
bens (propriedade), pelo qual “cada um, unindo-se a todos, não
obedeceria senão a si mesmo e permaneceria tão livre quanto
anteriormente”4. Além de não deixar claro exatamente o quê
seria “tão livre quanto anteriormente”, Rousseau afirmou que
“em uma legislação perfeita, a vontade particular ou individual
deve ser nula”4. De que maneira alguém poderia “obedecer senão
a si mesmo” e, ao mesmo tempo, sujeitar-se voluntariamente a
uma “legislação perfeita” que anula qualquer efeito de suas
vontades particulares?
A descrição da utopia rousseauniana vai além: Rousseau
acreditava que, quanto mais numeroso fosse um povo, menos um
governo poderia usurpar-lhe a soberania4. A tirania democrática
da maioria, os votos distritais, os intricados cálculos de
quocientes eleitorais e partidários, as suplências, o marketing
político, o efeito das mídias de massa, o tráfico patente de
influências nos altos escalões, as revoluções comunistas em
países populosos como Rússia e China (respectivamente, 125
milhões de habitantes na década de 1910 e 550 milhões em 1950),
e uma infinidade de outras evidências mostram o contrário do
deduzido por Rousseau: o volume de um povo pouco diz quanto à
facilidade ou dificuldade de apossar-se de sua soberania. Até
porque, uma manada de humanos não necessariamente produz
um discernimento superior a um humano isoladamente – tudo
dependerá da qualidade do humano e das necessidades da
manada.
Não obstante algumas passagens realmente geniais, a
filosofia social de Rousseau deveria ser colocada na estante junto
a outras coleções de ingenuidades imaginárias. Apesar de o
Estado assumir a dívida da proteção ao ser constituído, sob ele o
humano não pode esperar qualquer retorno ao seu estado
natural de liberdade: quando aceitamos o Primeiro Dilema,
aceitamos também o cumprimento de uma multidão de regras e
convenções intrusivas que vão muito além de “obedecer senão a
si mesmo”. Uma sociedade onde os cidadãos obedecem apenas a
si mesmos aproxima-se de uma anarquia de barbaridades – ou a
é ipso facto. Minha impressão é que Rousseau entendeu lhufas
dos ensinamentos centenários de Hobbes e tentou adocicar a
inevitabilidade da submissão do povo ante a força do Estado. A
própria teoria do Estado brasileiro foi concebida mais sobre a
Ilha da Fantasia de Rousseau que sobre as rochas frias, ásperas e
realistas do Leviatã hobbesiano. E pagamos o preço deste
equívoco infantil até hoje.
A favor do Leviatã, é mandatório dizer que a condição
selvagem e solitária fora do Estado é, sim, infinitamente pior e
mais limitada que a existência dentro o Estado. Através do
Estado, ampliamos nossas faculdades. A divisão de trabalho
aumenta nossa capacidade e a assistência mútua reduz a
vulnerabilidade ao acaso, à doença e à senescência,
potencializando os recursos intelectuais disponíveis. No
momento em que percebemos todos estes efeitos do Estado em
nossa sobrevivência, aceitamos nos sujeitar às suas
circunstâncias e regras. E todas as vezes que alguma sociedade
decidiu romper com o Primeiro ou Segundo Dilema, a mudança
fragmentou o tecido social, e a ameaça de desintegração da
ordem facilitou a ascensão de salvadores messiânicos. Foi assim
que as tiranias nasceram e renascem periodicamente10.

2. A MORALIDADE DO ESTADO

A noção do Estado como um ordenador Moral provavelmente


surgiu ainda nas primeiras sociedades, quando Estado e Religião
eram indissociáveis. Esta noção foi transmitida para as gerações
seguintes por meio da monarquia e chegou até nós através da
Renascença e dos ideais do Iluminismo. Apesar desta longa
trajetória, a ideia de que cabe ao Estado legislar de modo
absoluto sobre a Moralidade é uma concepção relativamente
nova no currículo humano.
Anteriormente, cabia à Religião o papel de fonte da revelação
dos mistérios do mundo, da saúde, da educação, do bem estar
social, da caridade, da esperança e da salvação. Quando o Estado
conquistou sua autonomia Moral, o resultado foi a paganização
da sociedade e a elevação do Estado ao nível de um deus. Agora,
esperamos que o Estado eduque nossas crianças e jovens; que
ampare os idosos; e que forneça um propósito de vida aos
adultos, salvando-nos de nós mesmos. Todavia, a agenda
Consequencialista e Relativista – típica do cinismo conciliador
dos governos – vem corroendo a autoridade Moral do Estado a
olhos vistos. A cada geração, torna-se mais explícito o quanto a
Moralidade do Estado abarca apenas os interesses do Estado:
com raríssimas exceções, o Estado considera Bom e Correto tudo
aquilo que conserva, exalta e consolida o poder do Estado; e Mau
tudo aquilo que questiona ou coloca esta premissa em risco3.
Quando a humanidade se consolidou em uma miríade de
Estados independentes, seguimos nossos caminhos particulares
desenvolvendo uma infinidade de contratos sociais diferentes e
Moralidades mais ou menos emancipadas umas das outras. Com
o avanço das tecnologias, a aldeia global tomou consciência de
todas as demais aldeias independentes que a constituíam, e duas
alternativas se apresentaram: ou assumíamos uma guerra
generalizada, até que uma única aldeia, um único Estado e uma
única Moralidade prevalecessem; ou adotávamos uma atitude de
tolerância temperada com contendas ocasionais e regionais. Em
grande parte, optamos pela prudência das guerras eventuais, não
por humanitarismo ou altruísmo, mas por sobrevivência: em uma
guerra universal até a morte entre Estados, que garantia você
teria de que seu Estado seria aquele sortudo que escaparia do
extermínio completo?
Na frente do dilema “é tudo ou nada” e “vamos negociar e
tentar conviver”, a maioria das aldeias abraçou a negociação do
convívio; e os Estados prosperaram, assim como as trocas de
mercadorias, o fluxo pessoas e as influências culturais recíprocas.
No século XX, esta prudência não poderia resultar em outra coisa
senão em um Relativismo Moral que outorgasse um Estado a
tolerar até mesmo as piores atrocidades de outro Estado,
mantendo a vantajosa movimentação de bens e serviços entre
ambas as sociedades a despeito de alguns impasses éticos3.
Com este silêncio de transigências interesseiras, a
Moralidade patrocinada pelo Estado – entendida
deontologicamente como a Moralidade dos deveres dos cidadãos
que lhes autoriza viver sob a proteção do Estado – assumiu um
padrão ético inferior em comparação àquele pelo qual a
Sociedade aceita ser medida, julgada e até mesmo confinada. Nas
configurações mais fiáveis, a Moralidade do Estado tem a função
de tornar a sociedade possível, ajudando as pessoas a viverem
juntas sem muitos prejuízos ou conflitos, salvaguardando alguns
interesses como o respeito ao indivíduo e à propriedade privada,
mas até mesmo nestes pontos cruciais a Moralidade estatal
eventualmente se permite relativizar11. E isto nos leva a uma
pergunta: quando um Estado, alegando tolerância utilitária e
prudência consequencialista, faz escolhas ruins e pessoas
inocentes morrem, a quem devemos imputar Moralmente a
culpa?
Por exemplo: se o Estado aumenta o limite de velocidade em
uma determinada rodovia de 80 km/h para 120 km/h e isso
resulta em um aumento de 5% do número de mortes no local, ele
pode ser acionado judicialmente por isso?
Outro exemplo: uma prisão abriga apenas condenados por
homicídio. Durante uma discussão, um dos condenados assassina
outro. O Estado pode ser responsabilizado por esta morte? Afinal,
os presos estavam em uma instituição sob a guarda do Estado e
só foram colocados ali por terem violado regras determinadas
pelo Estado – e não exatamente por eles.
Suponha que o Estado permita que um homicida progrida
para uma pena condicional. Durante o período de semiliberdade,
o sujeito assassina alguém. Como agente Moral, o Estado deve ser
considerado negligente ou omisso? Se positivo, e caso o Estado
seja processado e condenado, como pagará por isso? Ressarcindo
financeiramente as vítimas dos casos acima e seus parentes? Mas
isso significaria que tanto pessoas que concordam quanto aquelas
que não concordam com as práticas do Estado seriam
penalizadas na destinação dos recursos dos impostos recolhidos.
Isso seria justo?
Alguns defendem que é um absurdo aplicar a ética
Deontológica ao Estado, mas, ainda assim, ela é aplicada16,17. Por
exemplo: no Brasil de 2018, existe um benefício previdenciário ao
qual têm direito os familiares de um cidadão contribuinte que se
encontre preso. O princípio condutor deste benefício – chamado
Auxílio-Reclusão – é o da proteção à família. Segundo nossos
legisladores, a família não pode ser punida pelo fato de o Estado
manter o cidadão preso e impedido de trabalhar18. Digamos
então que um bandido, curtindo uns dias de liberdade
condicional, foi preso após assassinar o dono de uma loja em uma
tentativa de assalto. O dono da loja faz parte da estatística dos
mais de 60 mil homicídios que ocorrem no Brasil a cada ano, e o
homicida, por meio do fruto de seus crimes ou através de seu
emprego primário, era um contribuinte do INSS. O assassino é
encarcerado e, durante seu período de reclusão, sua família – que
até então usufruía livremente dos benefícios de seus roubos –
receberá um auxílio derivado do INSS recolhido pelo criminoso
durante seu período de liberdade.
O auxílio será pago com orçamento da Previdência Social e o
cálculo do valor a ser repassado será feito proporcionalmente aos
anos em que o criminoso “trabalhou” sob o Regime
Previdenciário Geral. Todavia, a base de financiamento da
Previdência vem das contribuições dos filiados ao INSS, cujas
fontes incluem trabalhadores, empregadores, aposentados e o
próprio Governo, em suas várias esferas. Em outras palavras: o
recurso repassado para a família do bandido não sairá
diretamente da conta do assassino. Quem pagará o Auxilio serão
os contribuintes do INSS, através de seus tributos, e todos nós,
que recolhemos o imposto ao INSS – incluindo a família do
lojista assassinado, que segue recolhendo regularmente os
impostos de seus funcionários (dentre eles, o INSS) –, estaremos
financiando o bem estar da família do cidadão que, em geral,
tornou-se criminoso não por coerção, mas voluntariamente e
pelas vantagens que esta atividade lhe proporcionava.
Ao prestar o Auxílio-Reclusão no contexto descrito acima, o
Estado assume um papel de agente Moral penalizando
duplamente a família da vítima de homicídio: primeiro, pela
negligência em prover-lhe segurança. Segundo, ao utilizar
recursos de impostos para ressarcir a família de um criminoso. É
preciso ser um Utilitarista profundamente convicto – ou apenas
muito maluco – para pensar que existe algum tipo de justiça
Moral nesse modo de agir. A filosofia implícita a este tipo de
Consequencialismo sempre me assombrou.
Neste ponto, se permite, vou confessar uma dúvida que me
perseguiu durante muitos anos: se pegarmos um único grão de
sal de cozinha, teremos algo salgado nas mãos, certo? Se
juntarmos 1 kg de grãos de sal (e aí existem bilhões e bilhões de
grãos de sal!), teremos algo ainda mais salgado. Se pegarmos um
único grão de açúcar refinado, teremos algo doce nas mãos; se
juntarmos 1 kg de grãos de açúcar, teremos algo ainda mais doce.
E por aí vai. Pois bem: um humano é um animal inteligente. Os
graus de inteligência podem variar, mas certamente, quanto
comparamos um humano a quase qualquer outro animal não-
humano, não restam muitas dúvidas de que o animal humano se
distingue por um nível bem particular – e porque não dizer
”superior” – de inteligência.
Portanto, se pegarmos um único humano, teremos um
animal inteligente na mão. Não obstante, se juntarmos, digamos,
1 milhão de humanos – como se fossem 1 kg de sal ou açúcar –,
temos analogamente mais inteligência que em um indivíduo
isolado? Como observado anteriormente, as massas humanas
com frequência exibem comportamentos que 1 humano
isoladamente acharia no mínimo imoral. A psicologia tem até um
nome para este fenômeno: Comportamento de Manada. É o
Comportamento de Manada que explica as bolhas especulativas,
a moda, a fama dos pop-stars, os linchamentos, a longevidade da
demagogia, a autorização subliminar de genocídios e o
Relativismo da Moralidade do Estado, por exemplo.
Apesar de parecer uma inversão de nossa inteligência
individual, o Comportamento de Manada pode ser explicado de
modo bem simples: na somatória de cada indivíduo, a Sociedade
dentro do Estado não se traduz como uma massa amorfa ou um
mosaico de vontades confusas, mas em um novo organismo,
com aspirações, cobiças e Julgamentos Morais próprios. É assim
que o Estado e a Sociedade legitimam ideias e atividades que
seriam condenáveis por um indivíduo isoladamente. Quando se
entende isso, a coexistência das idiossincrasias individuais com o
Utilitarismo estatal passa a fazer sentido – ainda que seja um
sentido dolorosamente incômodo.
Platão (428-348 a.C.) ingenuamente afirmou que “nenhum
governo proporciona o que é útil a si mesmo, mas o proporciona
e prescreve o que o é ao súdito, pois tem por alvo a conveniência
deste, que é o mais fraco, e não a do mais forte”19. O equívoco de
Platão foi esquecer que, por substância e utilidade, todo Estado é
doutrinário e, exatamente por isso, em maior ou menor medida, é
sempre tirânico de alguma maneira: sem força e sem uma
coletânea de soluções desequilibradas, o Estado seria incapaz de
governar a Manada. Não obstante, como bem observou Locke, “o
direito de governar não traz consigo o conhecimento certo de
como o governo deve ser conduzido”5, e o Estado e os Governos
tornaram-se mestres em mostrar à Sociedade como isto pode ser
verdadeiro.
Além dos desastres gerenciais derivados de Julgamentos
Morais ruins, outro perigo trazido pelo Estado é constituído pelos
governantes que se arrogam, para eles e para a sua seita,
privilégios particulares encobertos sob o nome de “direitos”5.
Nenhum Estado tem o “direito” de atentar contra os bens de seus
cidadãos – sejam estes bens materiais ou imateriais, como a
Propriedade Privada e a Autonomia Pessoal. Quando o Estado
acredita que desfruta de tal direito, ele fragiliza a Lei, dificulta a
prosperidade, desencadeia guerras e incita o roubo, o assassinato,
a escravidão, a opressão, a desordem, a discriminação e o ódio.
Mesmo quando o Estado determina algo como Bom e
Correto, isso pouco ajuda para resolver o Primeiro ou o Segundo
Dilema: a agência Moral do Estado inevitavelmente toma este
“algo” sob o pressuposto de seu poder de comando e, uma vez
que todo comando suscita alguma revolta, o Bom e Correto
estatal se torna um pretexto para insubordinação – que nem
sempre é lúcida ou mesmo válida. Muitas pessoas, ressentidas
com a ética estatal ambivalente ou revoltadas com seu formato
arbitrário e coercitivo, escolhem o caminho alternativo no
Segundo Dilema, anulando completamente a importância dos
ditames do Estado. É claro que isto não é solução alguma, mas
apenas uma fuga problemática. Se fossem adultos maduros e
dotados de Razão e Lógica, os órfãos Morais no Pós-Modernismo
aceitariam que o preço pela existência do Estado é uma guerra
perpétua entre Estados e entre o Estado e seus cidadãos.
Enquanto os Estados existirem, não haverá atmosfera para uma
paz verdadeira3. Infelizmente, neste cenário de decepções, os
mais fracos e sensíveis continuarão sendo seduzidos pelos
extremos do Estado-Total Comunista ou pelo Estado-Algum
Anarquista.
Conforme apontado pelo protossocialista Thomas More
(1478-1535) em Utopia (1516), “como todas as coisas poderiam
ser perfeitas se todos os homens não o forem mais ainda?”20. No
final, a Moralidade do Estado não passa do espelho e da soma dos
caráteres das Identidades Pessoais que responderam em
uníssono ao Primeiro e ao Segundo Dilema. Destarte, quando nos
deparamos com um Estado obsceno e vicioso, isso não informa
coisa alguma sobre a serventia ou licitude dos Códigos Morais do
Estado, mas diz bastante sobre os tipos humanos da Sociedade
que os produziu e sustenta.

3. AS CONVENÇÕES OFICIALIZADAS

Toda Sociedade sonha com ordem: a ideia de ordem traz


embutida em si uma promessa de preservação e prosperidade.
Não por outro motivo os humanos em Sociedade se organizaram
em Estados, sacrificando parcelas significativas das liberdades
individuais para garantir a ordem da segurança física, da
estabilidade da propriedade e do cumprimento dos contratos. A
maneira que encontramos para buscar este tipo de ordem foi
ofertando ao Estado a autoridade de tutelar as convenções
Morais. A estas convenções oficializadas pelo Estado demos o
nome de Lei.
É preciso reconhecer que a Moralidade, a despeito de seus
condicionamentos genéticos rudimentares, é uma entidade
dinâmica em adaptação constante às normais sociais. Este fato,
associado à construção da Identidade Pessoal, faz com que a
perspectiva Moral varie enormemente de uma pessoa para outra.
Para alguns, o Julgamento Moral baseia-se apenas na Razão;
para outros, nas emoções; e, para uns terceiros, em uma mistura
de ambas. Realizar um Julgamento Moral dentro de preceitos
éticos significa levar em conta todas estas múltiplas perspectivas
simultaneamente. Uma vez que em sociedades numerosas é
impossível calcular todas as pessoas que serão afetadas pela
decisão e em qual extensão, criamos a Lei: em essência, a Lei é
um empreendimento Moral com a intenção de registrar, por
escrito, um conjunto afinado de princípios de decência que
assegurem a continuação da vida em Sociedade.
Apesar de ser um filtro para os comportamentos aceitáveis e
inaceitáveis segundo as convicções de uma Sociedade tornada
Estado, a Lei sempre se configura como um caleidoscópio com
facetas demais: nunca haverá um caso onde uma determinada
configuração da Lei será acatada de bom grado por todas as
partes. Está além da capacidade da Lei resolver cada um dos
conflitos éticos para todos os envolvidos em todos os casos, da
mesma maneira que está além da capacidade da Lei legislar sobre
a felicidade ou obrigar o cultivo do afeto.
Na busca pela ordem, o papel da Lei confunde-se com o papel
do próprio Estado. Como observou Hobbes, parafraseando
Aristóteles em Ética a Nicômaco, “em um Estado bem ordenado,
não são os homens que governam, mas, sim, as Leis”6.
Durkheim também posicionou as Leis acima do Estado, dizendo
que “não é possível estabelecer um limite definitivo para as
ações do Estado, mas isso certamente é algo desejável”11. Por
conseguinte, as Leis servem tanto para que o Estado governe as
pessoas, evitando a desordem e o retorno à barbárie, quanto para
que as pessoas limitem o Estado, evitando a tirania e a injustiça.
Ou pelo menos essa seria a intenção, pois o resultado final que
temos das Leis é sempre menos parecido com um “limite” que
com uma manifestação coercitiva dos apetites do Estado.
A legitimidade de uma convenção oficializada não a isenta do
risco de erro, relativização ou catástrofe. Por exemplo: uma das
primeiras tentativas de colocar alguma ordem sobre os crimes de
guerra ocorreu na Conferência de Paz de Haia, em 1899. A
declaração final era bem explícita quanto à proibição de lançar
projéteis e explosivos a partir de balões ou similares. Não
obstante a Primeira e a Segunda Conferência de Haia (onde
fomos brilhantemente representados por Rui Barbosa, em 1907),
ocorreram bombardeios aéreos em todos os conflitos
subsequentes desde então, e não apenas isso: em menos de 100
anos, os bombardeios deixaram de ser uma violação e se
tornaram armas de guerra Moralmente aceitas. Onde teriam ido
parar as Verdades substantivas de Haia? Graças ao dinamismo
condescendente de nossas Moralidades, o que era um crime
eventualmente passa a não sê-lo; e o que era um hábito ou uma
tradição, vira uma transgressão indesculpável. O mesmo vale
para o escrito nas quatro Convenções de Genebra (1863, 1906,
1929 e 1049) e para os enunciados do Direito Internacional
Humanitário.
Da mesma forma que todo Estado produz algum despotismo,
toda Lei produz alguma escravidão – ou submissão à arbitragem,
como você preferir. A princípio, a submissão serviria para
estabelecer a tão desejada ordem, protegendo o indivíduo, a
liberdade e a propriedade privada; e a severidade da Lei só
deveria ser temida pelos criminosos e pelos que ameaçassem a
paz civil. Contudo, o Relativismo Moral dos legisladores Pós-
Modernos levou a severidade desta arbitragem a outros
patamares, e os teoremas abstratos da Lei passaram a proteger
não as inclinações gerais da Sociedade, mas os olhares
particulares daqueles segmentos capazes de fazer mais barulho.
No Brasil, por exemplo, o objetivo prioritário da Lei criminal
passou a ser recuperar o criminoso, não preservar a ordem
pública ou garantir a segurança do indivíduo.
Além da deturpação de sua função, as convenções
oficializadas pelo Estado sofrem de uma enfermidade adicional:
governar por palavras suscita a necessidade de que estas palavras
sejam bem conhecidas por todos aqueles de quem se exige
submissão à arbitragem. Desde a Independência, o Brasil teve
sete Constituições (1824, 1891, 1934, 1937, 1946, 1967 e 1988),
sendo que a mais recente, atualizada em 2017, possui 531
páginas, 250 artigos e 80 emendas21. A versão completa do
Código Civil, editada em 2015, contendo encarte e normas
correlatas, totaliza 373 páginas e 2.046 artigos. Por último, o
Código Penal, datado de 1940, possui nada menos que 27.340
palavras dispostas em 361 artigos. Na somatória das legislaturas
municipais, estaduais e federais, a Casa Civil da Presidência
estima que tenhamos um total de 181 mil leis, mas o emaranhado
é tão grande que ninguém se arrisca a dizer quantas delas estão
valendo de fato e quantas foram revogadas22.
Para More, “é uma suprema iniquidade manter os homens
sob uma infinidade de leis que ninguém chegará jamais a
conhecê-las todas ou mesmo lê-las, além de serem demasiado
confusas para que o cidadão comum possa mesmo compreendê-
las”20. Seu conterrâneo Hobbes também defendeu que “se a lei de
um país não for suficientemente declarada a um homem, de
modo que ele possa conhecê-la se quiser, e se a ação não for
contrária à lei natural, a ignorância é uma desculpa razoável”6.
Em outras palavras: uma Lei obscura ou desconhecida é o mesmo
que Lei nenhuma. Consequentemente, nossa abundância de
códigos e Leis não resulta em mais retidão Moral, mas em mais
interpretações relativistas que muitas vezes se assemelham
bastante com injustiças – na verdade, se assemelham tanto que,
não raramente, nem os especialistas conseguem determinar a
diferença entre o que é Bom e Correto e o que é Justo. Some-se a
isto o fato de que temos 92% de analfabetos funcionais no
Brasil23 e você terá uma dimensão aproximada de como nossas
Leis funcionam para a atuação do Estado, para a proteção do
Cidadão e para a prosperidade de nossa Sociedade como um
todo. Com Leis lidas ou não, o fato é que o Estado age por meio
delas com a autorização subliminar da Sociedade, e, após anotar
suas convenções oficializadas, ele as entrega à sua Executora
Cega, a Justiça.
Em uma recapitulação rápida: constituímos a Sociedade para
fugir do medo, e trocamos nossa liberdade dentro da Sociedade
pela tutela da segurança o Estado, que por sua vez se livrou desta
responsabilidade criando um conjunto de normas que repassou
para uma Executora que age em seu nome. Como resultado deste
escambo de soberanias, a Justiça tornou-se aquilo que aglutina e
sustenta a Sociedade e os indivíduos dentro dela. “Sem justiça,
sociedade alguma é possível”, avisou Platão12. Consideramos
Justiça quase como um sinônimo de Lei, e talvez por isso
tenhamos tantas decepções com as convenções oficializadas do
Estado. Em muitos casos, a falha não está na Lei, mas na
inexatidão conveniente de sua executora. Dizem que o filósofo
cita Anacársis, quando ficou sabendo que Sólon (638-558 a.C.)
havia sido designado para elaborar um código de leis para os
atenienses, afirmou que "as leis em nada diferem das teias de
aranha: como estas, estão aptas a prender os fracos e pequenos
que conseguirem apanhar; contudo, são despedaçadas pelos
poderosos e pelos ricos”24. Esta crítica tem perseguido nossa
esperança por Justiça desde então.
Mesmo assim, Platão, nascido mais de 100 anos depois de
Anacársis, concebia a Justiça como a primeira virtude das
instituições sociais19. Mais tarde, o cristianismo de Tomás de
Aquino (1225-1274) traduziu virtude por benevolência,
colocando esta qualidade da divina providência no centro do
conceito de Justiça. Durante o Iluminismo, David Hume (1711-
1776) percebeu que a virtude de Platão e a justiça individual
proposta por Aristóteles conflitavam com a benevolência de
Aquino, pois nossas convicções sobre virtude e retidão são
comandadas por nossas paixões e não pela Razão10.
No século XX, o filósofo americano John Rawls (1921-2002),
inspirado no racionalismo de Immanuel Kant (1724-1804),
diagnosticou corretamente que, para sobreviver em um mundo
pluralista e hiperconectado, a Justiça necessitaria de construtos
intelectuais fundamentados puramente em Razão25. Cultivar
emoções – como benevolência, prudência ou caridade – como
requerimentos para Justiça é absolutamente inadequado.
Algumas vezes, a Lei realmente representa uma Verdade
substantiva derivada da Razão e sua execução equivale à Justiça
ipso facto, como gostariam Espinoza, Kant, Rawls, Hume e
muitos outros. Na maioria dos casos, entretanto, Lei e Justiça são
apenas manifestações incômodas do Consequencialismo Moral
descrito por Jeremy Bentham (1748-1832), John Stuart Mill
(1808-1973) e Henry Sidgwick (1838-1900).
Ao assemelhar-se bastante à estrutura do Realismo Moral
religioso, a Lei tenta demonstrar alguma objetividade inspirada
na esfera dos significados daquilo que entendemos como
amostras perpétuas do Bom e Correto, mas, derradeiramente, é
impossível negar que qualquer Lei humana não passa de um
postulado de ilusões Relativistas com as quais concordamos
fingindo se tratarem de Imperativos Categóricos transcendentais.
E este é o grande problema da Lei: ainda que ela ostente o si o
título de Verdades substantivas, seus fundamentos muitas vezes
são débeis e expressam um número tão grande de entendimentos
e tradições contraditórias customizadas para servir aos interesses
pessoais que a execução do sistema derivado dela não raramente
se mostra despropositado e absolutamente ilógico.

4. OS CINCO MODELOS DE JUSTIÇA


Em seu papel de executora das convenções normatizadas
pelo Estado, a Justiça apresenta-se como uma tentativa fugaz de
tentar subverter a Lei da Selva com a aplicação da Lei dos
Humanos. É evidente que isto torna a Justiça essencialmente
Consequencialista e Utilitária – assim como o Estado que a
trouxe ao mundo. Todavia, o utilitarismo da Justiça não é
brando, pois a Justiça deve ser “a mão pesada da Sociedade
sobre o indivíduo”, como escreveu Émile Durkheim (1858-
1917): quando sua força não é dura e inclemente o bastante, o
resultado é o desprezo pelas instituições, pelas Leis e, logo em
seguida, pela própria tutela do Estado11. Por isso a Justiça não
deve ser uma sugestão, mas um comando que traz implícito a
presunção de punição por uso da força se preciso; uma punição
que ninguém, em qualquer estrato socioeconômico, deveria ser
capaz de evitar6,11.
É exatamente a esperança deste igualitarismo estrito que
exprime o conceito mais direto de Justiça que possuímos: o
modelo de Justiça Convencional. Basicamente, a Justiça
Convencional diz o seguinte: na frente da Lei, todos são iguais e
ninguém tem preferência. Porém, como Aristóteles tentou
demonstrar, não é possível fazer uma afirmação universal que
seja correta em relação a todos os casos particulares26. Para
contornar esta saia justa, a Sociedade e o Estado tentaram
adaptar os decretos da Justiça Convencional aos fatos,
apresentando outros quatro modelos de Justiça, a saber:
Substancial, Distributiva, Comutativa e Social.
Na prática, todos estes modelos se misturam em um mosaico
confuso onde um direito Substancial (o direito à vida e à sua
defesa, por exemplo) pode se contrapor a um direito Social (o
direito ao aborto ou a regulamentação excessiva para posse de
armas), e onde um direito Social pode ser o mesmo que um
direito Distributivo (a promoção de um Estado de bem estar
social, por exemplo). Vamos dissecar melhor isto:
Ao longo de boa parte de nossa história como espécie, as
pessoas nasciam e permaneciam em uma posição social rígida. A
distribuição dos benefícios e dos fardos econômicos era vista
como determinada pela natureza ou pelos deuses, e estes foram
os tempos áureos da Justiça Substancial. A Justiça
Substancial se apresenta como um tipo de Justiça derivada dos
princípios do Direito Natural, que podem ou não estar
especificados nas Leis dos Homens. Olhando por cima, a Justiça
Substancial parece uma boa maneira de conduzir o
Comportamento de Manada, mas apenas quando as manadas são
suficientemente ignorantes. Talvez por isso – devido ao
progresso cultural, econômico e científico – os Estados tenham
abandonado a simplicidade da Justiça Substancial, optando pelo
modelo de Justiça Convencional. Mas esta, como mencionado,
também tem seus entraves.
O principal problema da Justiça Convencional está na
premissa de que, para serem julgados de modo imparcial, todos
os cidadãos deveriam ser iguais – tanto Moralmente quanto na
sua disposição de bens e serviços. Infelizmente, a prosperidade
de uma sociedade não é uma progressão aritmética de um ponto
ao seguinte: ela pode ser influenciada por avanços tecnológicos,
mudanças políticas, sistemas de produção, disponibilidade de
mão de obra e fluxos migratórios, e esta heterogeneidade
complica bastante a vida de quem quer que pretenda tornar o
igualitarismo uma representação de Justiça verdadeira.
Paralelamente à Justiça Substancial e à Justiça Convencional,
desenvolvemos a Justiça Comutativa – a justiça do
cumprimento dos pactos. É esta a forma de Justiça atuante nas
ações de compra e na venda, de prestação de serviços e em outros
atos de contrato. O modelo Comutativo estabelece equivalência
nas relações sociais de troca e permite o comércio, mas não é um
bom árbitro para definir o que é justo. Ele simplesmente legitima
acordos, mas os acordos podem ser desvantajosos ou opressores
quando um dos lados tem força ou poderes desproporcionais à
contraparte. E isto levou ao desenvolvimento da Justiça
Distributiva.
Quando o padrão de castas socioeconômicas foi questionado
e rompido, e passamos a questionar qual exatamente seria a
função do Estado ante a Sociedade, a noção de Justiça
Distributiva se tornou um tópico inevitável para a Justiça
Convencional. Enquanto Aristóteles propunha a Virtude – ou o
Caráter – como a melhor régua para distribuição econômica, os
herdeiros da filosofia meritocrática de Locke defendiam que as
pessoas merecem possuir aquilo que produzem, e que estes
produtos deveriam representar uma recompensa direta e
equivalente de seu esforço. Todavia, muitas vezes, a
produtividade do indivíduo é influenciada por fatores sobre os
quais ele tem pouco ou nenhum controle. Assim, os Estados e os
governos torceram a Justiça Convencional com Leis que afetam a
distribuição dos ônus e dos bônus em suas sociedades, intervindo
nos impostos, na indústria, na educação e na saúde.
Nos últimos cinquenta anos, a forma mais discutida de
Justiça Distributiva foi aquela descrita por Rawls em Uma Teoria
da Justiça (1971), que apresenta dois princípios: (1) cada pessoa
tem direito a um conjunto idêntico de direitos e liberdades
básicas; e (2) as desigualdades sociais e econômicas devem ser
levadas em conta quando afetam as parcelas menos favorecidas
da sociedade25. Os princípios de Rawls impedem o sacrifício de
liberdades básicas para gerar uma maior equivalência de
oportunidades ou um nível maior de bens materiais, mantendo
uma estreita proximidade com o Utilitarismo coletivista de Stuart
Mill.
O motivo pelo qual algumas pessoas estão em posições
menos favorecidas é relevante para a aplicação da Justiça
Distributiva: em algumas sociedades, a raça, a etnia, a idade ou o
gênero de uma pessoa podem influenciar seu acesso às
oportunidades. Mesmo quando garantimos uma igualdade
formal de oportunidades, ainda existem vários fatores que podem
afetar o acesso a estas oportunidades – por exemplo, o fato de
seus pais não serem capazes de pagar por uma educação de
melhor qualidade pode complicar suas chances competitivas.
Ainda que a Justiça busque normatizar a igualdade de
oportunidades, as pessoas continuarão nascendo em famílias e
em circunstâncias sociais diferentes, e também terão
mentalidades, atitudes, ambições, aptidões, deficiências, saúde e
talentos naturais diferentes. Do ponto de vista de Rawls, a Justiça
Distributiva seria uma boa ferramenta para aliviar a carga destes
fatores, compensando circunstâncias que estão além da
capacidade de escolha dos indivíduos. Como seria de se esperar, a
“sofisticação” (que eu chamo de degeneração) da Justiça
Distributiva levou ao desenvolvimento da Justiça Social – um
conjunto de convicções oficializadas que cuidariam de uma
melhor distribuição da riqueza entre os membros da sociedade.
Os teóricos da Pós-Modernidade são motivados pela ideia de
que o bem-estar e a Felicidade das pessoas têm prioridade sobre
todas as demais teorias de Justiça, e por isso a Justiça deveria
promover e proteger a distribuição de riqueza, certo? Muito bem.
O primeiro desafio dos defensores da Justiça Social é definir
o que é Felicidade e Bem-Estar Social: o que tem valor intrínseco
como “bem-estar”? Prazer, satisfação instantânea, progresso
material, felicidade individual? Na sequência, estes profetas do
hedonismo deveriam determinar quais ações ou políticas seriam
capazes de maximizar estes valores intrínsecos – um dilema bem
conhecido por qualquer Utilitarista Moral desde os tempos de
Bentham e Stuart Mill.
Não obstante, o Utilitarismo não leva a sério as diferenças
entre as pessoas: apesar de um indivíduo aceitar sofrer privações
por um tempo para mais tarde desfrutar de suas conquistas, este
comportamento pode ser considerado inaceitável por outro.
Alçado à amplitude de uma sociedade, o Utilitarismo comete a
imoralidade fazer algumas pessoas sofrerem (por exemplo:
recolhendo altos impostos) para que existam ganhos para outras
pessoas (repasses financeiros através de programas
assistencialistas). Além disso, o Utilitarismo apresenta graves
problemas de especificação e implantação: similarmente à
impossibilidade do Cálculo Econômico em regimes Coletivistas, o
volume de informações necessárias para que o Utilitarismo seja
justo é simplesmente grande demais para ser colocado em uma
equação. No final das contas, a Justiça Social e seu projeto
paternalista de bem estar lida com as pessoas como meras
gavetas de Felicidade, e não como seres responsáveis por suas
ações.
A Constituição Federal de 1988 constitui um excelente
exemplo de como elaborar uma carta de Justiça Social: basta
temperar incontáveis direitos com mínimos deveres. A
Constituição brasileira de 1988 é um testamento ingênuo, uma
carta de amor incondicional de um vegetariano para uma nação
de tigres e leões famintos que aguardam em fila o momento de
arrancar o seu pedaço da carcaça. Em sua coletânea de remendos
benevolentes, a Constituição de 1988 conseguiu a proeza de não
definir com absoluta clareza se os direitos são um reflexo dos
deveres ou possuem uma prioridade sobre eles. É justo conceber
um direito, um poder ou uma permissão a alguém sem
condicioná-lo a uma obrigação?
Indo além e enveredando pelo questionamento de Robert
Nozick (1938-2002) em Anarquia, Estado e Utopia (1974),
pergunto: se o estado de Justiça Convencional plena é um padrão
que pode ser alcançado em um determinado momento, o que
acontecerá quando atingirmos este momento? Será necessário
proibir tudo – nada mais de consumo, criatividade,
empreendedorismo, comércio ou filantropia – para não perturbar
o “padrão perfeito”? Pois uma vez atingida a Justiça Plena,
qualquer liberdade individual poderia interferir em sua
permanência e duração...
Felizmente, antes que apocalipse de Nozick desabe sobre nós,
seguimos desfrutando das simplicidades de Aristóteles e Tomás
de Aquino: consideremos que o que é certo é certo, e torcemos
para que nossa Lei de fato reflita isto. A Justiça, como
instrumentalização da Lei, não é ideal, mas é real e baseia-se em
uma noção transcendental de equidade – e essa ilusão também
nos consola. Contudo, uma vez que um direito é a defesa do que é
considerado individualmente certo, é evidente que os direitos dos
humanos irão colidir entre si – e eventualmente atropelarão
nossas percepções de Lei e Justiça.
Isso significa que é quase uma insensatez tentar definir uma
carta de direitos humanos universais. Ninguém discorda que
genocídio e estupro sejam errados. A questão é determinar se
certos atos individuais podem ou devem ser colocados em
categorias especiais – e o que fazer a respeito disso. Por este
motivo, a Lei será sempre política: ainda que afirme levitar
dentro do Realismo Moral universal, o Consequencialismo da Lei
estará sempre tentando regular a Sociedade para o melhor
funcionamento possível – e não da maneira mais ética possível.
Para assombro de Kant, nossa Lei caleidoscópica utilizou os
Imperativos Categóricos como ferramentas Consequencialistas
para organizar o Estado em torno de Relativismos Morais quase
indecentes. E a Justiça encarregou-se de manter a
operacionalidade forçada deste sistema.
Uma excelente demonstração disso pode ser vista no sistema
carcerário brasileiro: segundo dados de 2018, o Brasil possui
1478 estabelecimentos penais públicos de diversos tipos que
contabilizavam, em 2016, 726.712 presos – uma média de 491
presos por estabelecimento63. De acordo com os relatórios do
Mapa da Violência, do Sistema Integrado de Informações
Penitenciárias e do Ministério da Justiça, temos cerca de 61 mil
mortes violentas por ano. Desconte o fato de que, no Brasil,
apenas 8% dos assassinatos são investigados e resultam em
identificação do criminoso64 – nos EUA, mais de 64% dos casos
de assassinato são solucionados65; na Inglaterra, o índice de
resolução é de 76%66. Mas suponha que vivemos em um país
onde 100% dos crimes são solucionados e que a imensa maioria
dos assassinatos não foi cometida por assassinos seriais ou
recorrentes: considere que existe 1 assassino para cada
assassinato ocorrido. Isso significa que, anualmente, a lista de
assassinos aguardando condenação seria acrescida de mais ou
menos 60 mil indivíduos.
Agora faça uma matemática simples: se cada estabelecimento
penitenciário abriga em média 500 criminosos, e temos uma
superlotação nas vagas já disponibilizadas, quantos novos
presídios precisaríamos construir a cada ano para abrigar apenas
os assassinos condenados? Eu lhe respondo: 122. Cento e vinte e
dois presídios novos a cada ano.
A criação (construção) de uma vaga em presídio gira em
torno de R$40 mil e o gasto médio por preso é de R$ 1.500 por
mês67. Para produzir 61 mil novas vagas por ano, o Estado
brasileiro precisaria investir anualmente R$2,5 bilhões na
construção de novos estabelecimentos penais e outro R$1 bilhão
por ano para manter os condenados por lá. Três bilhões e meio de
reais todos os anos apenas para retirar assassinos de circulação
– e ainda nem falamos de sequestradores, estelionatários,
ladrões, corruptos e afins. É óbvio que esta montanha de dinheiro
não é aplicada neste sentido. A polícia não funciona e a justiça
penal é lenta porque é assim que o Estado precisa que elas sejam:
se ambas fossem eficientes, a (pouca) credibilidade gestora (que
ainda resta) do Estado iria pelo ralo com a extensão das filas de
camburões nas portas dos presídios.
Até hoje, a Moralidade da Justiça brasileira tem
exemplificado bem como funciona a balança entre as demandas
dos cidadãos e a visão de preservação da ordem social promovida
pelo Estado. Enquanto que nas instâncias da intimidade dos
brasileiros Pós-Modernos com tendências Coletivistas qualquer
desejo tenha assumido o peso de uma prerrogativa Deontológica,
nas instâncias superiores de nossos tribunais ninguém se
preocupa com o conhecimento da Verdade, mas apenas em saber
o que pode ser acreditado dentro do viável12.
A Justiça existe para o cumprimento dos pactos válidos, mas
a validade dos pactos só começa com a instituição de um poder
civil decente o suficiente que inspire os homens a cumpri-los.
Infelizmente, há décadas, na impossibilidade de alcançarmos este
mínimo ideal de Justiça, o Estado brasileiro optou por dobrar
utilitariamente a Moral, a Lei e a Executora Cega até que todas
coubessem na pequena caixa de suas próprias realidades
ordinárias.

5. COLOCANDO ÓLEO NA ENGRENAGEM

A Moralidade do Estado desenvolve-se a partir da carga


intrínseca das tradições que o antecederam, das ideologias que
vicejaram sob ele e do modo como a Lei e a Justiça configuraram-
se durante sua elaboração. Enquanto que no indivíduo as
engrenagens Morais da Identidade Pessoal são lubrificadas pelas
emoções, no caso do Estado este óleo atende pelo nome de
Política.
Se considerarmos a Política um animal subordinado aos
princípios do Darwinismo, não é difícil perceber que sua evolução
iniciou-se nos clãs familiares monárquicos, passando por tribos
que se ajuntaram aristocraticamente, culminando nos grandes
aglomerados democráticos que temos hoje. Ao longo desta
caminhada, a ocorrência de regimes absolutistas – sejam eles
representados por Monarquias, Oligarquias ou Plutocracias
Constitucionais – foram tropeços inevitáveis.
De todos os filósofos que merecem citação no canteiro de
obras da Política, Thomas Hobbes ocupa um lugar de destaque:
ele pode ser considerado como o primeiro a dissertar com
seriedade sobre a teoria Política moderna13. Os trabalhos de
Hobbes nada ficam a dever a outros do porte de Platão,
Aristóteles, Locke e Kant. Até mesmo a Teoria do Contrato Social
de Rousseau nasceu da maneira elaborada como Hobbes abordou
a Política. Para Hobbes, se a Justiça era um chicote, a Política
poderia ser considerada a melodia sinuosa com a qual o Estado
consolidava a subserviência dos cidadãos. Talvez por ter vivido
no período turbulento que resultou na Guerra Civil da Inglaterra,
Hobbes tinha uma visão bastante pessimista do Estado e da
Política, mas ele nunca esteve só nesta perspectiva.
Por exemplo: para o pragmatismo de Maquiavel (1469-1527),
a Política era o campo perfeito para os inescrupulosos em busca
de poder, e não muito mais que isto28. Para Rousseau, era um
meio de enfraquecer os cidadãos, desunindo-os apenas para
semear uma semente de concórdia e ganhar poder com os
conchavos4. Para o comunista Bakunin, “onde há um rebanho, há
necessariamente pastores para tosquiá-lo e comê-lo”15, e estes
pastores seriam uma definição exata da população que habita o
mundo político e de seu modus operandi. Para Thomas
Friedman, a Política seria “a arte de explorar sem escrúpulos as
emoções despertadas por um Estado paternalista”, alimentando
as esperanças do povo com falsas promessas de satisfação27.
Finalmente, para Jared Diamond – em uma paródia da
Revolução dos Bichos (1945), de George Orwell –, a Política não
passa de “um clube de iguais onde uns são mais iguais que os
outros”1.
A despeito da realidade destas concepções, elas certamente
sofrem de um reducionismo com viés vingativo. Quatrocentos
anos antes de Cristo, Platão escreveu que “a maior penalidade de
recusar-se a legislar é ser legislado por alguém inferior a você
mesmo”19, algo que os escritores modernos traduziram como
“você pode não gostar de Política, mas está condenado a ser
governado por ela”. Esta segunda interpretação não foi
exatamente escrita por Platão, mas reflete bem o sentimento
expresso pelo ateniense em A República.
O fato é que, durante o processo de evolução da Sociedade, as
diferentes molduras econômicas e culturais que devem ser
plasmadas para formar um Estado resultam em distribuições
heterogêneas dos benefícios e dos fardos entre seus membros, e
mesmo estas molduras estão sujeitas a constantes revisões e
mudanças. Buscar uma coexistência pacífica nesta dança de
valores é o primeiro papel fundamental da Política. “Política não
é filantropia”, observou o materialista francês André Comnte-
Sponville, completando: “ela não existe para produzir
Felicidade, mas para combater a infelicidade”8. E por isso
qualquer ódio revanchista à Política pode ser considerado uma
forma de ingenuidade, e o apoliticismo, uma falha de Caráter.
Além de promover a convivência entre as panelinhas sociais,
a Política também atua auxiliando a legitimação das ações do
Governo e seus efeitos. Para Maquiavel, este seria o motivo pelo
qual a Moralidade não merece espaço quando se trata da fazer
Política: Maquiavel defendia que o objetivo da Politica deveria ser
criar e manter um Estado forte capaz de prover o “maior bem
possível para o maior número de pessoas possível”. Neste
sentido, ele era um Utilitarista-raiz tanto quanto Bentham e
Stuart Mill. Curiosamente, vale mencionar que o italiano jamais
escreveu que “os fins justificam os meios”, ainda que este
aforismo seja um resumo digno da Moralidade Política expressa
em O Príncipe (1532) – e uma filosofia considerada admissível
por muitos políticos profissionais.
Em nossa busca pela segurança como um fim e um meio,
aprendemos a admirar e respeitar Estados que ostentam um grau
elevado de Realismo Moral. O Realismo tem cheiro de segurança
não apenas física, mas também de cauções institucionais estáveis
e de planejamentos ajuizados. Para preservar a imagem de
Realismo, o Estado deve emanar uma fragrância de perenidade; é
preciso que o Estado não dê pulos, que ele seja previsível – algo
que os mais Conservadores chamam de prudência9. Contudo, se
fôssemos nos pautar sempre pela agenda mais prudente de todas
as possibilidades mais prudentes imagináveis, o Estado
estagnaria. Foram as pequenas imprudências – algumas vezes
nem tão pequenas assim... – que ampliaram o conhecimento, a
tecnologia, a agricultura, a indústria, o comércio, o conforto, a
saúde, a longevidade e todas as demais energias operacionais que
estimamos. Algumas vezes por ganância, outras por curiosidade,
algumas vezes acidentalmente ou não, mas sempre imprudências
de alguma forma.
Quando esperamos que a Política imunize o Estado contra a
audácia, estamos amarrando os limites de desenvolvimento da
Sociedade. Logo o amor pela prudência passará a rotular uma a
uma as tentativas de mudança como “riscos de aventuras
inconsequentes”, e o engessamento impedirá que avancemos
para a proibição do trabalho infantil, para a abolição da
escravatura, para a escolarização de mulheres, para o sufrágio
universal e para civilidades não-segregacionistas. Para que o
Estado sofra mudanças, ou mesmo para que as mudanças sejam
germinadas dentro do Estado, precisamos da Política.
A boa política nasce da Empatia, do fato de que algumas
pessoas têm preocupações legítimas com o bem estar de outras
pessoas. A má politica, em contrapartida, é essencialmente um
artefato de desejos libidinosos não refreados que tornam a
Sociedade e o Estado reféns dos autointeresses de alguns poucos.
Dessa forma, a pretensa Moralidade da Política pode ser dividida
em dois times: (1) aqueles que sugerem reconciliações possíveis
para evitar consequências ruins e (2) aqueles que competem para
fazer valer sua visão identitária de mundo a despeito dessas
mesmas consequências. No primeiro grupo, estão os
Consequencialistas e todos os Relativistas. No segundo grupo,
estão os Realistas Morais com tendências religiosas absolutistas e
os Deontologistas intransigentes, fãs cegos da filosofia kantiana.
Céticos e Niilistas não se interessam por Política: estão ocupados
demais duvidando de tudo ou se divertindo com alguma
transigência.
A Moralidade explica pelo menos um terço do caráter político
de uma pessoa, tendo mais influência que a cultura e os axiomas
religiosos. Quando consideramos que uma parcela considerável
da Moralidade é genética e hereditária, fica fácil deduzir que o
modo como conduzimos a Política tende a ser recorrente ao longo
da história de nossa espécie, com pequenas variações aqui e ali.
Algumas vezes, a Moralidade escolta a Política na direção de
instituições mais inclusivas, lideranças mais democráticas e
nações mais prósperas; outras vezes, na direção de instituições
mais extrativistas com regimes segregacionistas, líderes
totalitários e nações menos prósperas. Em todos estes casos,
existe um modelo de alternância binária que se repete: ou a
Moralidade resulta em uma Política que dá muito certo, ou muito
errado.
Apesar da questão sobre o que é Bom e Correto dentro dos
interesses do Estado depender do conjunto de valores e virtudes
que uma determinada sociedade adotou, não existe uma maneira
racional para uniformizar normativamente cada um dos itens
deste conjunto, e, portanto, jamais haverá unanimidade na
Política – tampouco exatidão matemática em seus resultados.
Não obstante as adições de variáveis históricas, a observação de
experimentos socioeconômicos semelhantes e as percepções
comportamentais da opinião pública em seus julgamentos, a
Política não é científica. Ela não pode colocar suas propostas em
um tubo de ensaio, levá-las ao laboratório e efetuar uma análise
criteriosa de todos os possíveis efeitos colaterais antes de
empreendê-las no mundo real. E por isso, na mesma medida em
que a noção de Estado inspira abrigo, a noção de Política sempre
inspirou suspeitas. Justamente por causa dos receios atrelados às
peculiaridades de sua flexibilidade ética, a Política tornou-se a
porta-bandeira do Desengajamento Moral – um conceito
desenvolvido pelo psicólogo canadense Albert Bandura29.
Claramente inspirado nos Mecanismos de Defesa do Ego
elaborados por Sigmund Freud e posteriormente aprimorados
por sua filha Anna, os Mecanismos de Desengajamento Moral de
Bandura (a saber: justificação Moral, linguagem eufemística,
comparação vantajosa, difusão da responsabilidade,
deslocamento da responsabilidade, distorção das consequências,
desumanização e atribuição da culpa) estão em permanente
operação na Política. Através da Teoria do Desengajamento, é
possível compreender como fingimos que o Consequencialismo
Utilitário do Estado seja uma forma de Realismo Moral Absoluto
– e como podemos nos sentir confortáveis enquanto suas
engrenagens são lubrificadas pelo Relativismo incessante da
Política.
Se descartássemos os subterfúgios do Desengajamento, a
Política jamais seria capaz de realizar as adaptações necessárias à
Sociedade, e o Estado sucumbiria ao anacronismo. Um bom
exemplo de como a Política se aproveita das oportunidades
criadas por este recurso pode ser encontrado na proclamação da
República do Brasil: na época do evento, o escritor e diplomata
português Eça de Queirós previu que o Império Brasileiro se
esfacelaria em dezenas de Repúblicas independentes, porém o
que se viu nas décadas seguintes foi nada disso30. Motivados por
uma crise econômica adicionada de desculpas religiosas,
encontramos uma saída para a Monarquia aplicando as
negociações Morais descritas por Bandura.
A estupefação circunstancial provocada pelo
Consequencialismo e pelo Relativismo que permeiam a
Moralidade Política nasce da ingenuidade daqueles que
acreditam que alguns fins podem ser alcançados sem recorrer a
meios questionáveis. Algumas vezes, manter as mãos limpas
significa permitir que outros façam uma sujeira maior. Assim, o
empirismo da Política requer que sua Moralidade legislativa
infecte de alguma maneira o Estado por meio do governo, para só
então tentar corrigir o que quer que dê errado na sociedade –
caso ainda haja tempo para tanto. Esse é o tipo de Verdade
substantiva que a Política oferece. Não é perfeita ou íntegra, mas
é o que há e é como esta graxa funciona.
A crise Moral que se arrastou ao longo do século XX e
adentrou o século XXI não foi capaz de fazer com que a Política
deixasse os juramentos messiânicos e as cruzadas ideológicas no
passado. A Política continua sendo utilizada como um teatro
onde interesses corporativos, conveniências comerciais e
ambições controversas são apresentados como “interesses
nacionais”. Nesses casos, em geral observamos os direitos serem
suspensos; as fraudes, oficializadas; e o uso da violência,
transformado em um hábito. Mesmo assim, a imensa tribo
mundial que nos tornamos vem dificultando, cada dia mais, que a
Política funcione como um modelo fechado voltado apenas para
os processos da cultura majoritária local.
Uma vez tornada aberta, a Política pluralista que
engendramos passou a ser obrigada a considerar também o papel
desempenhado pelos interesses das minorias com vozes ativas,
dos negócios multinacionais, das balanças comerciais
transnacionais, das guerras, dos fluxos migratórios, dos
progressos da ciência, das notícias falsas, da complexa
interdependência das forças de produção e de vários outros
factótuns arbitrários que surgem diariamente na agenda da
aldeia global. Talvez seja este modelo aberto, e a consequente
discordância entre o idealizado Estado de Moralidades Absolutas
que desejamos e a realidade da Política de Moralidades Relativas
que o movimenta, que torne a Política uma ferramenta tão mal
vista aos olhos da maioria.
Sem embargo, será apenas mediante ao diálogo crítico
proporcionado pela Política que poderemos forjar cooperação e
tolerância na Pangeia hiperconectada do Século XXI. E caberá à
sociedade organizada setorialmente e integralizada na forma de
Estado decidir se priorizará objetivos ou meios, capacidades ou
intenções, competição ou assistencialismo. Sem uma definição
clara do interesse nacional, o Desengajamento levará a Política
para um vácuo de egocentrismos partidários: deixada por própria
conta, ela seguirá sua tendência em entender o objetivo “interesse
nacional” como “poder nacional”, e tornará o caminho para o
poder o seu único objetivo.
A sobrevivência da Política é ao mesmo tempo uma realidade
ruim e uma necessidade benéfica. Se ela atende às nossas
expectativas pessoais de retidão e Caráter é um assunto
completamente diferente – tão diferente que a Moralidade da
Política parece existir em uma dimensão à parte da crise Moral
que aflige a Sociedade e do Estado. E talvez esta seja a melhor
configuração para a Política, no final das contas.

6. ALIMENTANDO SEU MONSTRO DE ESTIMAÇÃO

Abdicamos de fatias de nossa liberdade para abrir espaço ao


monstro Estado, que viria para cuidar de nossa segurança e
diminuir o medo. Quando o monstro chegou, descobrimos com
algum pesar que dar-lhe espaço não era suficiente: ele deveria ser
alimentado periodicamente. Então pegamos o que restava de
nossa liberdade e a fatiamos mais uma vez dentro de unidades de
tempo, e dentro destas unidades trabalhamos com suor
redobrado para produzir o suficiente para nossas necessidades e
confortos e para alimentar o Estado – e a esta cota compulsória
de provisões demos o nome de Impostos.
Os impostos foram criados a partir da crença de que os mais
afortunados em uma Sociedade deveriam ajudar de alguma
maneira os menos afortunados, tendo o Estado como
intermediário “neutro” deste auxílio. Isto tornaria os impostos o
principal instrumento através do qual o sistema político poderia
colocar a justiça econômica em prática. Alguns mais irritados
com este conceito passaram a ver o governo como um
oportunista disposto a profanar cada uma de nossas
vulnerabilidades, e traduziram este auxílio arbitrário como um
sinônimo de roubo. Na infância de minha racionalidade, eu
costumava concordar com estes últimos – de que “imposto é
roubo” –, por considerar a cobrança de impostos uma
imoralidade injustificável. Entretanto, refletindo com um pouco
mais de maturidade e Razão, percebi que existe uma grande
diferença entre dizer que algo é “Moralmente errado” e que algo é
“Economicamente improdutivo”.
Quando você diz “sexo fora do casamento é errado” ou “sexo
é sujo”, você não está enunciando fatos lógicos e objetivos, mas
recitando princípios Morais de cunho religioso. Nenhuma dessas
atividades é intrinsecamente “improdutiva”: elas apenas são o
que são. Pois bem: cobrar impostos é um roubo tanto quanto
sexo é sujo ou um pecado. Os impostos são uma maneira de a
sociedade financiar o Estado que ela mesma elaborou para cuidar
de assuntos que ou estão acima da capacidade resolutiva de um
único indivíduo isoladamente ou lhe são simplesmente
desinteressantes.
Muitas pessoas compartilham a visão de que o papel do
Estado e da Política é proteger os interesses de seus cidadãos –
dentre eles o interesse à propriedade privada –, e de que os
impostos são um assalto a esta propriedade e, portanto, têm nada
a ver com a proteção de seus interesses individuais, não passando
de mais uma violação da liberdade de cada um de nós. Os
argumentos neste sentido em geral são extraordinariamente
eloquentes e igualmente pueris.
Suponha que você mora em um lugar onde não existe Estado
ou governo de qualquer espécie. Um sujeito que mora por perto,
um ex-militar armado com 1,95m de altura, sólidos 110 kg de
peso e um fuzil semiautomático carregado, resolve oferecer
proteção para a vizinhança. Porém, como irá se dedicar
integralmente a esta atividade, ele solicita que você e seus
vizinhos lhe ofereçam algum tipo de assistência – incluindo
dinheiro para comprar balas e manter um padrão de vida similar
à média do restante do bairro. No seu quarteirão, todos os
moradores concordam, menos um (sempre existe um anarquista
por perto). Seria Moralmente correto se os vizinhos dissessem ao
anarquista: “pague sua parcela ou mude-se de bairro”? Ou você
estaria disposto a dividir com os demais a quota daqueles
vizinhos que recusaram o custo da proposta, mas que esperam
receber proteção assim mesmo? Esta é a situação do governo.
O problema central do discurso “imposto é roubo” está em
que ele assume que não existe uma diferença Moral entre um
indivíduo sob alguma forma de governo e um indivíduo sem
governo algum. É óbvio que este raciocínio é falho e que os
impostos algumas vezes são Moralmente corretos, caso nosso
relacionamento com o restante da sociedade tenha esperança de
ser minimamente razoável. Quando questionamos a Moralidade
dos impostos, estamos na verdade questionando a Moralidade da
aplicação destes impostos – ou a ética de sua reciprocidade.
Os gastos do governo e os investimentos do Estado deveriam
ser uma expressão do acúmulo das prioridades que a Sociedade
considera importantes como parte do bem comum; e a
distribuição do dinheiro arrecadado com os impostos deveria
obedecer às leis naturais governadas pelas necessidades,
habilidades e méritos dos cidadãos. Entretanto, isto nem sempre
ocorre como planejado e o princípio distributivo raramente
obedece este padrão. Assim, o debate sobre impostos não
consiste em uma simples discussão de aritmética orçamentária,
mas em um debate complexo da relação Moral entre o Estado e a
Sociedade.
Como mencionado anteriormente, não existe Liberdade
dentro de um Estado – seja seu regime político democrático ou
não. Qualquer Estado nasce da concordância coletiva em limitar
certas Liberdades em nome de segurança, controle, estabilidade e
prosperidade. Os direitos e as ideias de justiça que aceitamos
para estabelecer o convívio em sociedade baseiam-se na premissa
de que cada um de nós precisa ser protegido da agressividade das
ganâncias alheias – esses direitos e ideias, portanto, são
conceitos de tutela. Novamente, como no caso do brutamonte
armado que faz a segurança da vizinhança, esta tutela possui
custos. Se você vive em sociedade, por menores que sejam estes
custos, eles sempre existirão. Quem irá arcar com eles?
Aqui retornamos ao terreno da diferença entre “Moralmente
errado” e “Economicamente improdutivo”: o debate sobre
impostos não trata de uma violação ilegítima da liberdade, da
propriedade privada e da autonomia dos cidadãos, mas de um
juízo econômico sobre a improdutividade do Governo. Para
tornar este argumento ainda mais claro, considere o seguinte: em
2018, o Brasil apresentou uma carga tributária equivalente a 34%
do PIB nacional. Para efeito de comparação, saiba que este é
mesmo valor médio dos 35 países que compõem a OCDE e
aproximadamente o mesmo índice observado na Bulgária, na
República Tcheca, em Malta, na Nova Zelândia, na Polônia, na
Sérvia e no Reino Unido. Nos EUA, a carga tributária
corresponde a aproximadamente 26% do PIB. No grupo dos 15
Países Mais Democráticos (Noruega, Islândia, Suécia, Nova
Zelândia, Dinamarca, Irlanda, Canadá, Austrália, Finlândia,
Suíça, Holanda, Luxemburgo, Alemanha, Reino Unido e Áustria),
esta carga equivale a 38,7% do PIB. No grupo dos 10 Países
com Maior IDH do Mundo (Noruega, Suíça, Austrália,
Irlanda, Alemanha, Islândia, Hong Kong, Suécia, Singapura e
Holanda) equivale a 33% do PIB – variando desde os módicos
13% de Hong Kong até os quase inacreditáveis 47,9% da
Suécia31,32. Que tipo de retorno os Estados destes países oferecem
pelo “alimento” que a sociedade lhes dá?
Se observarmos o grupo dos 15 Países Mais Democráticos,
constataremos um IDH médio de 0,919. Em uma regra de três
simples, se a carga tributária de 38,7% deles é capaz de sustentar
um IDH de 0,919, os nossos 34% deveriam produzir um IDH de
0,807 – e não os atuais 0,754. Obviamente, a cantilena sedutora
deste raciocínio esbarra no equívoco básico de desconsiderar o
valor absoluto da produtividade de cada uma dessas nações: 34%
do PIB nacional de um país com um PIB nominal per capita de
US$ 50.000 não significa a mesma quantidade de dinheiro nas
mãos do Estado que 34% de um país com PIB nominal per capita
de US$ 25.000.
Os 15 Países Mais Democráticos possuem um PIB nominal
per capita de US$ 53.806 por ano; nos 10 Países com Maior IDH,
este valor sobe para US$ 54.140; e, nos sete países citados que
possuem uma carga tributária na casa dos 34%, corresponde a
US$ 20.764. No Brasil, o PIB nominal per capita médio é de US$
13.670 por ano (ou 35% menor que o valor dos sete países com
carga tributária na casa dos 34%). Isso significa que os 34% de
impostos sobre o nosso PIB equivalem a cerca de US$ 0,36
trilhões por ano. Nos EUA, a carga tributária de 26% sobre o PIB
corresponde a US$ 6,54 trilhões por ano33-35.
Em média, os 15 Países Mais Democráticos investem 10% do
PIB em saúde – o equivalente a US$ 5.400 per capita por ano.
Destes países, apenas seis (Noruega, Islândia, Suécia, Finlândia,
Canadá e Reino Unido) possuem sistemas de saúde públicos e
universais sem custos adicionais como o nosso SUS. O Brasil
investe cerca de 7% do PIB em saúde – o equivalente a US$ 780
per capita por ano31-34. Ou seja: em termos de saúde, investimos
quase 7 vezes menos por cabeça e esperamos ter um sistema de
saúde tão bom quanto os demais, apenas pelo fato de estarmos
em faixas aproximadas de taxação sobre o PIB.
De maneira semelhante, os 15 Países Mais Democráticos
investem em média 8,6% do PIB em educação básica e
fundamental, o que equivale a uma média de US$ 11.380 per
capita por ano. No Brasil, repassamos 5,9% do PIB para
educação, o que equivale a uma média de US$ 3.800 per capita
por ano31-34. Em termos de educação, investimos quase 3 vezes
menos por cabeça e esperamos desfrutar de um sistema de
educação tão bom quanto os demais – novamente – apenas
porque estamos em faixas aproximadas de taxação em relação o
PIB. A insistência neste tipo recorrente de ingenuidade sugere
que não se trata apenas de um equívoco aritmético inocente, mas
de uma metanarrativa Relativista que visa torcer a Verdade
substantiva dos fatos em nome de discursos ideológicos míopes.
Tanto no caso da saúde quanto no caso da educação, a
reciprocidade dos Impostos tem uma relação profunda com a
reduzida produtividade do trabalhador brasileiro e no baixíssimo
valor agregado daquilo que produzimos, que geram um PIB
nominal medíocre de onde deriva então o financiamento para a
saúde pública e para a educação, entre outros. Os impostos se
tornam "caros" quando a serventia não é qualitativamente
proporcional ao que foi recolhido. Mas, em um mundo
globalizado e em mentes realistas, esta serventia deve ser
calculada em valores absolutos dos custos totais e não
considerada emocionalmente quando observamos apenas o valor
recolhido em relação ao PIB nacional.
Ainda que alguns se queixem do volume de impostos
cobrados no Brasil, e ainda que uma parcela considerável desta
revolta resida no retorno pífio que o governo oferece pelos
impostos cobrados, é impossível negar que nossa baixa
produtividade econômica faz com que a carga tributária não
pareça apenas mais dolorida, mas seja também mais insuficiente:
em um ranking organizado pelo Fundo Monetário Internacional
envolvendo 185 países, ocupamos a 50ª posição no PIB nominal
per capita, perdendo para nações como Lituânia, Antígua,
Seicheles, Omã, Uruguai, Barbados, Palau, Chipre, Israel e
Macau33.
Sim, impostos consistem em forçar que as pessoas deem
parte do dinheiro que produziram ao Estado. E os impostos são
necessários e até certo ponto desejáveis, pois sustentam o Estado
organizado que, por sua vez, gerencia o funcionamento de vários
serviços básicos como a Lei, a justiça, a segurança das fronteiras,
a manutenção de estradas, a iluminação pública e a coleta de lixo,
entre outros. Uma vez que estas atividades precisam ser
financiadas, o Governo rateará seu custeio entre aqueles que se
abrigam sob o Estado.
Neste ponto, os impostos Brasileiros apresentam outro
problema Moral: nos EUA, 49% da arrecadação do Estado advêm
da tributação da renda. No Brasil, 48% advêm da tributação do
consumo. Muitos afirmam que a opção brasileira por tributar o
consumo e não a renda decorre da alta concentração de renda em
nosso país, mas a verdade é que a baixa produtividade do
trabalhador brasileiro, associada à leniência do Estado, permite
que mais de 80% da população seja dispensada da obrigação de
pagar o Imposto de Renda de Pessoa Física (IRPF): em média,
apenas 3% da população total (ou 6% das pessoas que participam
da População Economicamente Ativa) estão na faixa de
recolhimento do IRPF36,37. Apesar de o IRPF representar míseros
3,63% da arrecadação total anual do governo em impostos, a
carga tributária sobre salários no Brasil supera a de países como
Suíça, Coreia do Sul, Estados Unidos, Reino Unido, Canadá,
Irlanda, Chile, Dinamarca, Chile e Nova Zelândia36-38.
A opção por priorizar a tributação sobre o consumo é mais
uma daquelas soluções estúpidas típicas do Estado brasileiro.
Ainda que os justiceiros sociais reclamem que este método
sobrecarregue as pessoas de baixa renda, esta conclusão tem
cheiro e cor de falácia: dado o volume de consumo, são as pessoas
mais ricas que movimentam e recolhem boa parte do
financiamento que sustenta as escolas públicas, a saúde pública e
a segurança pública. Insatisfeitas com o retorno que obtém, os
3% da população brasileira que recolhem IRPF autotributam-se
triplamente ao recomprar de particulares os serviços que
pagaram primeiramente ao Estado por meio de tributações sobre
sua renda e seu consumo.
Temos um número imenso de pessoas desempregadas e de
baixa renda que sobrevive de auxílios do governo; uma classe
média em menor número, que se esforça para manter seus
compromissos fiscais em dia pela força de seu suor; e uma classe
alta em ainda menor número, que essencialmente custeia a maior
parte da arrecadação do Estado por meio do seu alto consumo. À
dinâmica torta do sistema de arrecadação brasileiro, deve-se
somar ainda o alto volume dos gastos do Estado: apenas nossos
Ministérios possuem um custo operacional de 400 bilhões de
reais por ano.
É óbvio que a falência por fadiga torna este modelo
insustentável no longo prazo: quando o Estado – paquidérmico,
obeso e ineficiente – deixa de estimular o autopertencimento e
passa a distribuir obstáculos para o empreendedorismo e a
inovação, a tendência é que a classe que responde pela maior
faixa de arrecadação pouco a pouco diminua ou abandone as
atividades produtivas, ou simplesmente mude seu local de
produção ou o destino de seus lucros e de seu consumo, e este
movimento, cedo ou tarde, estrangulará o financiamento e
conduzirá todo o conjunto ao colapso. Atualmente, este é o
caminho tributário onde nos encontramos.
Segundo a ordem natural da Moralidade tradicional, o
trabalho duro, a paciência e a prudência tendem a gerar
prosperidade e, por isso, são considerados virtudes. A preguiça, a
indisciplina e a impaciência por outro lado, tendem a resultar em
pobreza e sofrimento, e são considerados vícios de caráter.
Quando o governo rompe com este ditame, taxando a criatividade
e incentivando o vitimismo, ele compromete seu próprio
funcionamento. Ao subverter o senso de justiça e contribuir para
o surgimento de fissuras no tecido social, o Estado deixa de ser
uma parte da solução e torna-se uma fração considerável do
problema.
A corrupção destrói qualquer percepção ética que temos do
Estado, da política e do governo, aumentando a evasão de taxas e
reduzindo o volume de impostos arrecadados: em um ambiente
onde a Moralidade dos impostos é açoitada pelos desvios de
caráter dos governantes, as pessoas passam a se questionar se
deveriam realmente pagar tudo que o Estado lhes cobra – e
terminam não pagando mesmo. Quando isto ocorre, recuperar a
economia torna-se uma tarefa bem mais simples que recuperar a
confiança no Estado e na Moralidade das taxas que ele cobra.
A lista das revoluções históricas em prol da redução de
impostos é imensa, indo desde os Zelotes judeus no século I antes
de Cristo até os tumultos na Nicarágua em 2018, passando por
manifestações em Constantinopla em 1197; na Alemanha em
1524; na Holanda em 1543; na França em 1597; pela Guerra Civil
Inglesa, as revoltas na Itália e na Escócia no século XVII; a
Revolução Americana no século XVIII; e dezenas de outras
ocorrências nos séculos seguintes, em inúmeros países. No Brasil,
em junho de 2013, os protestos contra um aumento de 20
centavos de real nas tarifas de passagens de ônibus urbanos se
transformaram em uma onda de manifestações que varreram o
país de norte a sul. Coroadas por uma crise fiscal e econômica
sem precedentes, o processo culminou com a cassação do
mandato da presidente Dilma Rousseff em 31 de agosto de 2016.
Ao longo da história mundial, os cidadãos sempre se
queixaram de que recolhiam muitos impostos e que os valores
recolhidos eram mal empregados. Esta é uma reclamação
milenar com poucas chances de ser resolvida. Quando o Estado
taxa o cidadão, isso significa que o governo o está ameaçando
com violência de alguma forma, e ameaças “gratuitas” de
violência sempre resultam em repulsa. Como resposta ao risco de
inadimplência, o Estado avisa que você pode perder sua liberdade
e ir preso se não pagar seus impostos. Isso é uma violência. Ainda
que o governo utilize o dinheiro arrecadado em uma boa causa,
isso não exime os impostos de ser, sim, uma forma de
contribuição compulsória – ou roubo, se preferir este termo.
Entretanto, os cidadãos que vivem sob um Estado concordaram
em pagar impostos: esta é uma parte do contrato social, do
acordo que existe entre a Sociedade e o Estado. Quando você
utiliza serviços do Estado – como estradas, escolas, polícia,
garantias para sua propriedade privada e do cumprimento dos
contratos assumidos – você está indicando que aceita o contrato.
A única maneira de viver sob um Estado e tentar refutar a
Moralidade dos impostos é utilizar argumentos que utilizem nada
de lógica ou maturidade. Como defender "zero-imposto" e ao
mesmo tempo exigir que alguém (que fatalmente será um Estado
ou algo no seu molde efetivo) garanta o cumprimento dos direitos
e deveres existentes? Esse "alguém" terá que ser financiado por
contrapartes. De que maneira isso ocorrerá? Voluntariamente?
Quando anarquistas e libertarianos dizem que “imposto é
roubo”, eles deveriam se dispor também, por uma questão de
honra e plausibilidade, a abandonar qualquer forma de Estado ou
governo financiada por estes impostos. Se cobrar impostos é
injusto, condenar os impostos e ao mesmo tempo usufruir
daquilo que estes impostos proporcionam, é no mínimo um
contrassenso hipócrita.
Se, a despeito das vantagens que viver sob um Estado lhe
oferece, você ainda considera que os impostos são um roubo,
então qual seria a saída? Abolir todos os impostos? Alguns
roubos podem ser justificados: se você precisa roubar um pão
para literalmente escapar de morrer de fome, ainda que isso seja
errado, o ato pode ser justificado. De maneira similar, o governo
pode justificar os impostos como uma maneira de evitar
desdobramentos terríveis – como a disrupção da ordem social,
por exemplo. Se o governo tornasse os impostos realmente uma
questão de escolha Moral, de que serviriam as Leis?
Os impostos são um confisco legalizado do dinheiro dos
cidadãos para custear as atividades do Estado, e entre estas
atividades encontra-se a caução de nossa segurança – até mesmo
pelo uso legitimado da violência. Sem impostos, sem Estado. Sem
Estado, retrocederíamos à Lei da Selva. Se você discorda disto,
recomendo que viaje para zonas de guerra e veja como as massas
de animais humanos sobrevivem harmoniosamente quando
abolimos o Estado (e os impostos) de suas vidas.

7. A SALA DE AULA DA UTOPIA

Tanto Atenas quanto Esparta possuíam instituições que


preparavam meninos para servir como soldados, mas foi Atenas,
aproximadamente a partir do século VI a.C., que deu início a um
adestramento menos militarizado e mais voltado para a formação
de cidadãos aptos a lidar com a nascente democracia.
Naquela época, havia em Atenas um caminho coberto – ou
stoa – onde as mercadorias eram trazidas para a terra6. Os
comerciantes costumavam reunir-se em segmentos específicos da
stoa para ensinar e discutir sobre suas atividades, e estes trechos
receberam o nome de skhole (ócio ou lazer, em grego). Isto
mostra claramente como as skhole (“escolas”) nasceram como
uma prerrogativa das classes mais altas: a democracia ateniense,
mesmo em sua forma mais plena alcançada por volta do século IV
a.C., era um estilo de vida de uma minoria, abarcando apenas
cerca de 10-15% da população total da cidade, e nem todo mundo
tinha tempo sobrando para ficar jogando conversa fora nas vielas
da stoa.
Quando as skholes se tornaram mais comuns, os pais
passaram a escolher para seus filhos aquelas que oferecessem um
determinado tipo de conteúdo, retribuindo a instrução com o
pagamento de mensalidades. Qualquer pessoa podia começar
uma escola em Atenas – o Estado praticamente não interferia
neste comércio ou no currículo do ensino –, e até mesmo os mais
pobres tentavam manter os filhos nas escolas entre os 7 e 14 anos
de idade para que aprendessem ginástica, música e literatura. As
meninas, entretanto, raramente recebiam educação formal.
Completado o ciclo básico, os menos afortunados partiam
então para aprender algum ofício prático e os mais ricos seguiam
estudando com os sofistas até por volta dos 20 anos de idade,
aprimorando seu conhecimento de retórica, matemática,
geografia, história natural, política e lógica. O ensino superior dos
sofistas era, acima de tudo, utilitarista – algo a que Sócrates se
opunha ferrenhamente. A visão especulativa e metafísica que
Sócrates tinha da educação foi levada adiante por seu aluno,
Platão, fundador da Academia. Mas Platão possuía um
concorrente de peso: Isócrates. Sete anos mais velho que Platão,
Isócrates tinha os pés nos chão e uma visão mais mundana da
vida. Em sua escola, Isócrates priorizada o estímulo à
criatividade, à retórica e ao estudo dos clássicos Homéricos, e não
perdia muito tempo com as ruminações transcendentais de
Platão40.
As tradições de Platão e Isócrates editaram o ensino
Ocidental como conhecemos hoje, mas coube a Aristóteles e ao
seu Liceu o arremate final e o primeiro registro de que a educação
deveria ser controlada pelo Estado. Em A Política, ele afirmou:
“de que servem as melhores leis e os mais estimáveis decretos se
não se acostumar os súditos a viverem segundo a forma de seu
governo?”2. Para Aristóteles, o papel da educação era formar este
“costume” nos súditos.
Quando Alexandre, o Grande, conquistou o Império Persa
entre 334 e 323 a.C., as noções de Aristóteles e Platão foram
disseminadas em uma área muito mais vasta que o tímido
circuito das Cidades-Estados gregas. Este período, chamado
Helenístico, foi seguido pelo surgimento do Império Romano (27
a.C.-476 d.C.), que por sua vez foi substituído pelo Império
Bizantino (300-1453 d.C.). Quando Constantinopla caiu sob o
poderio do implacável Império Otomano em 1453, a tradição
espartana e ateniense da educação militar estatal foi levada
adiante: para evitar revoltas nos proto-reinos muçulmanos à sua
volta, os Otomanos recrutavam crianças cristãs para que fossem
educadas dentro das convicções religiosas islâmicas, formando
mais tarde uma casta de vizires, governadores, comandantes e
soldados sofisticadamente instruídos e leais ao império. Essas
crianças, destituídas de seus laços familiares e submetidas
diretamente ao Sultão, eram chamadas devshirmers e
representam uma ponte magnífica de 1.500 anos ligando os
princípios das skholes atenienses do século VI a.C. e os métodos
da Escolástica Cristã do século XI d.C6.
Desde a Grécia Antiga, o Estado sempre reconheceu o poder
da educação, transformando-a em uma arma de engenharia
social para ser operada a favor de sua sobrevivência – uma arma
muitíssimo mais poderosa que as restrições políticas para o
empreendedorismo, a tirania do papel-moeda ou as penalidades
da Lei que censuram o livre arbítrio. Nos tempos de Platão, a
educação visava transmitir aos alunos uma aparência de
sabedoria e não a Verdade substantiva: para Platão, os alunos
recebiam muitas informações sem instrução e, ao final, se
consideravam pessoas de grande saber, embora continuassem
ignorantes na maior parte dos assuntos12.
Não é demais reafirmar que a intenção da natureza
imaginária do ensino – ou a “falsificação premeditada”, como
descrita por Mikhail Bakunin50 – era desenvolver peculiaridades
no Caráter dos cidadãos que garantissem a estabilidade da
Sociedade. Uma vez que a Sociedade é um pré-requisito para a
existência do animal chamado Estado, o Estado normatizou a
educação em um método chamado Escolarização. E o ideal era
que a Escolarização se iniciasse o mais cedo possível, para que,
quando os cidadãos se tornassem adultos jovens, o hábito já
tivesse substituído a capacidade de raciocínio10.
Sem embargo, Escolarização não deve ser confundida com
Educação, ainda que este engano seja frequente e até estimulado
pelo Estado. Em teoria, a Educação que formata a Moralidade da
Identidade Pessoal de cada um de nós deveria ser recebida não
apenas nas skholes, mas também no seio da família (educação
por meio do amor Ágape); na interação com os amigos (educação
por meio do amor Philia); e até mesmo nas práticas, nos suspiros
e nas decepções do amor Eros. Mas hoje tudo isso não passa de
utopia: os pais da Pós-Modernidade, deslumbrados com as
oportunidades hedônicas que o mundo oferece e encoraja, estão
ocupados demais para oferecer este tipo de formação Moral para
seus filhos. Eles preferem terceirizar a tarefa, aceitando
satisfeitos a confusão entre Escolarização e Educação, deixando
que a identidade Moral das crianças se desenvolva em um
ambiente próximo ao vácuo. Dissimuladamente, fingem que não
estão vendo a ideologia instigada pelas escolas, e, quando algum
conceito se ergue da lama para lhes incomodar, reclamam da
“tirania doutrinária” do estatismo. Não obstante, logo em
seguida, este arroubo cede às tentações do mundo, e os pais
retornam aos prazeres; e as crianças, ao proselitismo adestrador
das instituições de ensino.
Tornar as crianças aptas para labutarem na máquina
econômica nacional significa reduzir o valor do indivíduo à sua
capacidade de executar uma determinada função produtiva,
retirando qualquer direito ao livre arbítrio no decorrer do
processo. Em uma educação nestes moldes, ou você é uma peça
da engrenagem (um devshirmer) ou nada. E, como todos querem
ser alguma coisa, a educação estatizante nos induziu a desejar ser
uma porca ou um parafuso no fumegante motor do Estado.
Com a crise da Moralidade no Pós-Modernismo, o Estado
compreendeu que a “educação para força produtiva” poderia ser
substituída simplesmente por “educação para apoio ideológico”.
Afinal, esta segunda opção é mais barata e não requer que os
cidadãos sejam educados, pelo contrário: ela requer apenas que
eles sejam privados de qualquer formação intelectual ou prática
verdadeira. Como resultado deste novo plano, muitas pessoas
passaram a concluir seus estudos sem ter concluído coisa alguma
– e, pior, sem ter aprendido idem, como previu Platão.
Ao invés de utilizar a Escolarização de modo
Consequencialista e Utilitário, visando o maior bem possível para
a maior parcela possível da população, o Estado a transformou
em uma mera estratégia para tornar a população
intelectualmente miserável a fim de governá-la com maior
desembaraço. Como desejado, a educação Relativista patrocinada
pelo Estado se mostrou bastante eficiente em formar um gado
dócil. Se este gado puxa o arado ou não, não é problema: vez ou
outra, basta ao Estado alimentar-se do produto da carne do
rebanho ao invés do produto de seu trabalho, e o ciclo está livre
para ser reiniciado uma geração depois da outra.
Uma das medidas Relativistas mais eficazes para subverter os
fundamentos da educação foi a adoção do Construtivismo – a
teoria de que o conhecimento pode e deve ser construído
conjuntamente pelo professor e seus alunos. O Construtivismo,
baseado na obra da Jean Piaget, rejeita o objetivismo do
Realismo Moral e torna todo conhecimento uma questão de
opinião. Na sequência, o material didático deixou de tornar os
alunos inovadores ou autoconfiantes, impulsionando a
dependência ao assistencialismo do pai-Estado e exaltando o
acúmulo de certificações no lugar de capacitações. Contudo,
certificados de conclusão nem sempre são prova de competência
e a ênfase neste tipo de indicador apenas atesta a
disfuncionalidade do sistema como um todo.
Para as escolas do Construtivismo, o hedonismo constrói e
toda Moralidade e todo Conhecimentos são relativos. Contudo,
ao invés deste tipo de ensino libertar os alunos, ele na verdade
aprisiona suas mentes em uma dinâmica perversa onde eles
realmente passam a acreditar que as responsabilidades e as
consequências de suas escolhas podem ser apagadas da
Identidade Pessoal sem qualquer ônus. No final, o que temos são
mais e mais jovens adultos prontos para choramingar por seus
direitos enquanto seguem sendo devorados por um Estado que os
convenceu, enquanto ainda eram pequenos leões, que, na
verdade, eles não passavam de ovelhas que deveriam parar de
pensar por si e aceitar passivamente toda a burocracia existente.
Nas mãos do Construtivismo estatal, o propósito da educação
abandonou de uma vez por todas a formação do Intelecto e da
Resiliência física e Moral, e passou a definir-se pela valorização
da Felicidade como uma indulgência e pela adoção irrestrita da
Tolerância como uma maneira de escapar do peso dos
Julgamentos Morais. Karl Popper e seu paradoxo não poderiam
enxergar um anacronismo maior nessa estratégia: nesta seita
Pós-Moderna da Tolerância irrestrita, as opiniões dos estudantes
jamais devem ser ignoradas, mas é uma loucura sem tamanho
acreditar que suas opiniões devam ser determinantes de alguma
coisa, como tenciona o Construtivismo. Se a esmagadora maioria
dos estudantes de uma escola se manifestar exigindo o fim das
avaliações por meio de provas, isso deve ser atendido? Se a
esmagadora maioria dos estudantes em um curso universitário
preencher um abaixo assinado exigindo a retirada de diversas
matérias difíceis do currículo, isso deve ser sumariamente
atendido também?
A crise trazida por esta mudança no paradigma da educação
não poderia ser mais deletéria. As escolas sempre tiveram que
lidar com alunos que não se acomodavam ao código de regras
prevalecente. Contudo, este problema costumava ser restrito às
crianças do nível fundamental, e o desobediente era segregado do
grupo e colocado em alguma forma de castigo ou transferido para
uma turma só de “crianças ruins”. Na maioria das vezes, o
estigma era suficiente para dissuadir as demais crianças e a
humilhação endireitava a ovelha negra. Isso mudou. Com a
disseminação do Relativismo Moral, as instituições de ensino
agora devem lidar com alunos que são praticamente adultos, mas
que se comportam como verdadeiras crianças. Estes alunos são
mantidos compulsoriamente nas escolas por força da Lei e outras
pressões sociais. Como se isso não bastasse, ainda são tratados
como portadores de “transtornos de ajuste de personalidade” ou
“problemas de adaptação cultural”. De fato, estes jovens e
crianças não são totalmente vítimas de suas personalidades: o
que eles têm são graves problemas culturais de Caráter e de
instrução Moral.
A Identidade Pessoal fraca dos adultos nos núcleos familiares
tornou crianças e adolescentes cínicos para qualquer forma de
conhecimento e hostis para qualquer tipo de desafio. Eles querem
ser deixados em paz, querem ser compreendidos em todas as
esferas de suas vontades, e querem o direito à Felicidade – mas
se negam a assumir qualquer custo adicional por isso,
reproduzindo os padrões tortos de intepretação da realidade que
trouxeram de seus lares. A invenção da adolescência e sua
transformação em um enorme mercado consumidor; a
desvalorização Niilista dos relacionamentos; a Relativização da
Identidade Pessoal e da família; a valorização hedonista da
felicidade; a ênfase subjetivista na satisfação sexual; a
coletivização das insuficiências de Caráter; o Ceticismo brutal que
Nietzsche deixou quando assassinou deus – acompanhado de
uma secularização existencial inédita em nossa história –, todos
esses “mimos” antecederam a juventude que aí está. Todos estes
foram presentes nossos que deixamos espalhados pelo mundo
para que os mais jovens encontrassem. E, agora que
encontraram, reclamamos do barulho que fazem batendo os
sinos que nós mesmos fabricamos.
Como se isso não bastasse, espremidos entre a cobrança para
serem condescendentes com os alunos de comportamento
deplorável e a obrigação de sorrir frente à absurda Relativização
construtivista de tudo aquilo que nossos ancestrais sempre
convencionaram ser Bom e Correto, temos dezenas de milhares
de professores em ritmo acelerado de esgotamento mental: no
universo de mais de 2 milhões de docentes do ensino básico
brasileiro (80% dos quais são mulheres), 44% sofrem com
depressão e 70% apresentam sérios problemas de ansiedade41,42.
Some a isto o baixo investimento em educação mencionado
anteriormente e veremos que o acúmulo de problemas vai além
das coincidências: ele atravessa o reino do acaso até assumir o
formato de um plano explícito engendrado pelo Estado para
manter a ignorância e a subserviência de seus súditos, como
sugerido por Aristóteles, Hobbes e David Hume. “O controle da
educação é primordial para garantir a lealdade ao Estado e
estigmatizar toda rebelião como uma imoralidade”, escreveu
Hume, há quase 400 anos10. Não obstante, investir mais dinheiro
na educação pública e melhorar a seleção dos docentes é apenas
uma parte do remédio. De pouco adianta adicionar dinheiro
quando todo o modelo foi formatado para privilegiar a
indisciplina, a displicência, o vitimismo e o hedonismo
generalizado.
A Educação, sem sombra de dúvidas, é essencial para o
florescimento humano (para a Eudaimonia aristotélica),
influenciando desde as chances de sucesso no mercado de
trabalho até os cuidados pessoais com a saúde, o
compartilhamento da governança, o reconhecimento das
próprias responsabilidades e a qualidade dos julgamentos
Morais. Apenas a Educação oferece chances para rompermos
com dogmas equivocados relacionados à classe social, raça,
religião, sexualidade e gênero. Mas o significado exato da
Educação ideal está longe de ser um acordo e, no Brasil, sequer
fomos capazes de abordar a Educação como um valor Moral
intrínseco per se. Como é possível afirmar isso? Simples:
analisando nossos hábitos espontâneos de leitura.
Na Alemanha, 81% das pessoas leram pelo menos 1 livro
inteiro nos últimos 12 meses; no Reino Unido, 80%; no Japão,
79%.; na França, 73%45. No Brasil, 59%. Mais de 40% dos
brasileiros não leem coisa alguma simplesmente porque não
gostam de ler ou não têm paciência para a leitura43. Não se trata
de cansaço ou falta de tempo ou dinheiro; ou problemas de visão
ou outras limitações físicas; ou de não possuírem um lugar
apropriado para a leitura. É simplesmente falta de vontade
mesmo.
Dentro das escolas, 38% dos professores nunca leem livros ou
leem apenas de vez em quando44. Entre aqueles que possuem o
hábito de frequentar livros, a lista dos cinco autores mais lidos é
composta por Augusto Cury, Chico Xavier, Gabriel Garcia
Márquez, Paulo Freire e Benny Hinn (um televangelista
neopentecostal israelense-canadense conhecido por suas
frequentes "Cruzadas de Milagres", onde utiliza o poder de sua
"unção de deus" para "curar" pessoas com diversas
enfermidades).
Segundo o Instituto Pró-Livro, os 59% dos brasileiros que
leem com alguma regularidade terminam 2 livros inteiros por
ano43. Para efeito de comparação, cada cidadão na Inglaterra lê
espontaneamente 10 livros não-acadêmicos por ano; na Finlândia
são 16 livros; e na França, 20 livros. De acordo com a empresa de
consultoria britânica NOP World, em uma lista de 30 países
classificados segundo seus hábitos de leitura, as cinco primeiras
posições são ocupadas por Índia (10:42h por semana), Tailândia
(9:24h), China (8h), Filipinas (7:36h) e Egito (7:30h). O Brasil
ocupa a 27ª posição, com uma média de 5h semanais dedicadas à
leitura45.
Em outra amostra de como os brasileiros têm uma relação
superficial com a Educação, a Escolarização e a Cultura, mesmo o
Estado tendo praticamente universalizado o acesso ao ensino
fundamental, apenas 27% da população entre 15 e 64 anos é
plenamente alfabetizada. Entre os alunos do Ensino Médio,
apenas 41% apresentam nível pleno de alfabetização, e 1 de cada
3 estudantes que ingressam no Ensino Superior não dominam
leitura e escrita.
O governo Federal tem comemorado o ingresso de 96% das
crianças com idades entre 07 e 14 anos no Ensino Fundamental e
83% dos adolescentes entre 15 e 17 anos no Ensino Médio. Essa
estatística poderia ser motivo de alegria se não fosse o fato de
que, entre os alunos que cursam a 4ª série do ensino público,
55% não sabem ler nem escrever. Ou seja, 33 milhões de crianças
são analfabetas funcionais. Na população economicamente ativa,
este é um problema que afeta nada menos que inacreditáveis
68% das pessoas. Se pensarmos em termos de proficiência plena
no uso do idioma, a situação fica ainda pior: apenas 8% dos
brasileiros acima de 15 anos de idade é capaz de elaborar textos
expondo argumentos contextualizados e interpretar tabelas e
gráficos na língua nativa46.
Apesar da relação entre mérito acadêmico e sucesso no
mercado de trabalho ser mais frágil do que gostaríamos, o ensino
formal e o hábito de leitura espontânea influenciam
profundamente o acesso a várias atividades laborais, o exercício
de diversas profissões e até mesmo a renda. Por isso, um dos
vários objetivos da Educação, além de promover o florescimento
Moral do indivíduo, deveria ser prepará-lo adequadamente para
o mercado. Um ensino com este enfoque traria benefícios tanto
para o estado, com aumento do Produto Interno Bruto, quanto
para o indivíduo: com uma renda melhor, ele se torna capaz de
refinar sua qualidade de vida e a segurança daqueles de seu
círculo familiar. Esta seria uma função crítica e Moralmente
adequada do ensino. Novamente e infelizmente, nosso país não
valoriza o suficiente este ângulo, promovendo um ensino
fundamental que de fundamental pouco ensina. Talvez por isso
tenhamos taxas de abandono acima de 35% no Ensino Médio e
acima de 75% mesmo em instituições de ensino técnico39.
É inútil debater a distribuição igualitária das oportunidades
educacionais quando a maioria dos brasileiros enxerga a
Educação com olhos míopes, reduzindo-a a uma simples
ferramenta para ascensão social. Nunca antes na história de
nossa espécie tivemos tamanha possibilidade de conectar-nos a
um volume tão grande de informações potencialmente úteis: a
revolução da Internet, disponível na palma da mão de qualquer
pessoa com um smartphone (considere que no Brasil já temos
mais de 230 milhões de aparelhos assim em atividade68), oferece
mais de 5,5 bilhões de sites para navegação, com milhões de
terabytes de conhecimento absolutamente livres para qualquer
pessoa interessada69,70.
É preciso admitir que uma parte da crise que atinge a
Educação não é exatamente fruto das intenções do Estado, de
políticas maquiavélicas de alienação ou de instituições corruptas,
mas da moleza primária do sujeito, que se reflete em criações de
estilo Permissivo e, por consequência, em gerações sequenciais
de subjetivistas displicentes – perpetuando o ciclo de marasmo
intelectual do qual o Estado bem se utiliza. Tentar transferir para
os governos a responsabilidade de despertar no indivíduo o
interesse pela Educação é apenas um sintoma do velho
paternalismo crônico que nos consome.
Mesmo com toda a facilidade e baixo custo que a leitura
possui atualmente, brasileiros de famílias com renda entre 1 e 2
salários mínimos leem quatro vezes menos que famílias com
renda superior a 10 salários mínimos43. Pense nisso e considere
que Mark Cuban, famoso empreendedor bilionário americano, lê
no mínimo 3 horas por dia; Warren Buffet, um dos três homens
mais ricos do planeta, lê no mínimo 5 horas por dia; Elon Musk,
o visionário por trás da Tesla Motors, chegava a ler 10 horas por
dia durante o Ensino Médio; e Bill Gates consome no mínimo 50
livros por ano47. Quando alguém de uma família de baixa renda
cai dentro dos 40% que não lê porque não gosta ou não tem
tempo, me pergunto por que essa pessoa aprecia tanto fazer parte
da fatia mais miserável do país – pois não está sendo oprimida
por forças patriarcais ou pelo fascismo das elites, mas escolhendo
voluntariamente permanecer na miséria onde se encontra.
A resposta para isso está, em grande parte, na valorização
nacional da desonestidade como valor para sobrevivência e da
autovitimização como resposta para a falta de disciplina –
legitimações que se incrustaram na cultura brasileira em todas as
dimensões possíveis e imagináveis. Com ingredientes assim,
como podemos esperar que a escolarização, isoladamente, seja
capaz de ensinar o respeito às normas, a agir de modo consistente
com a integridade e transmitir os princípios Morais que
enaltecemos?
O ambiente escolar não substitui de maneira alguma o papel
e a influência do núcleo familiar, mas certamente oferece uma
oportunidade para a impressão de valores superiores na
Identidade Pessoal. Todavia, até mesmo esta oportunidade
estamos perdendo devido à esculhambação de um movimento
maluco chamado Escola Sem Partido.

8. TODA ESCOLA TEM PARTIDO

O Relativismo Moral, que bradou durante anos seus bordões


de anti-maturidade e autoindulgência sem qualquer
antagonismo, viu sua hegemonia ser abalada pelo aumento
insuportável dos índices de delinquência, hostilidade ostensiva à
autoridade, vandalismo, insolência, uso indiscriminado de drogas
e de várias outras formas de culto à desordem em inúmeras
instituições de ensino – a tal ponto que segmentos da sociedade
começaram a considerar que havíamos perdido o fio da meada e
falhado miseravelmente em repassar valores Morais básicos de
uma geração para a seguinte. Como resposta, observamos o
crescimento do desejo por propostas curriculares que incluam
noções fortes de sobriedade, resiliência emocional, disciplina,
responsabilidade, senso de dever e respeito pela autoridade
constituída.
No Brasil, uma das manifestações deste desejo atendeu pelo
nome de Escola Sem Partido (ESP). As origens deste movimento
podem ser identificadas em 2004, enquanto o conservadorismo
brasileiro ainda era um embrião recém-ressuscitado. Em 2015, a
iniciativa ESP ganhou notoriedade com a apresentação do projeto
de Lei número 867, que propunha novas bases para a educação 51.
Infelizmente, todos os conceitos por trás desta iniciativa são, para
dizer o mínimo, ridículos. Para compreender o tamanho deste
delírio e ter um panorama do texto como um todo, considere
algumas diretrizes da proposta para o programa ESP71:
No artigo 1º, o projeto propõe que a educação atenderá ao
princípio da neutralidade política, ideológica e religiosa,
permitindo o pluralismo de ideias no ambiente acadêmico e a
liberdade de crenças, garantindo aos pais que seus filhos recebam
uma educação que esteja Moralmente de acordo com suas
próprias convicções.
No artigo 3º, informa que “é vedado o uso de técnicas de
manipulação psicológica destinadas a obter a adesão dos alunos
a determinada causa”.
No artigo 4º, afirma que o professor respeitará o direito dos
pais dos alunos a que seus filhos recebam a educação religiosa e
moral que esteja de acordo com as suas próprias convicções. E
mais: no inciso II do mesmo artigo, determina que o professor
não favorecerá nem prejudicará os alunos em razão de suas
convicções políticas, ideológicas, morais ou religiosas, ou da falta
delas. Ou seja: as diretrizes que fundamentam a ESP
recomendam que os professores não emitam conceitos morais
sobre o que está sendo ensinado (princípio da neutralidade), ao
mesmo tempo em que autorizam a liberdade de expressão
(princípio do pluralismo). Mas as incongruências não terminam
aí...
Por exemplo: se a Evolução Darwiniana e a Seleção Natural
estiverem sendo ensinadas na escola, e porventura a educação
Moral que uma criança recebeu em casa diga que o mundo
começou há 6.000 anos e que os esqueletos de dinossauros foram
colocados debaixo da Terra por Lúcifer para testar a lealdade de
nossa fé em deus, então a opinião dessa criança deve ser
respeitada – afinal devemos permitir a liberdade de crença e
“garantir aos pais que seus filhos recebam uma educação que
esteja de acordo com suas próprias convicções”.
Outro exemplo: ao impedir que os professores emitam juízos
Morais, a proposta da ESP permite que os docentes falem que o
nazismo foi um crime contra a humanidade, pois isto consta no
material didático oficial. Todavia, eles não poderão dizer que o
Comunismo foi uma atrocidade, ainda que ao longo do século XX
o Comunismo tenha matado quase 10 vezes mais pessoas que o
nazismo, devendo, por mérito, receber um julgamento Moral no
mínimo equivalente. Contudo, segundo a proposta do ESP, isto
não pode ser dito em sala de aula, pois tal julgamento Moral não
consta com todas as letras nos livros de história . Não obstante,
como tal conteúdo é elaborado e ensinado por professores cuja
ideologia é 85% socialista-comunista52 , ele segue a ética torta da
perpétua luta de classes, dos oprimidos humanizados versus
opressores sem alma, da dívida racial histórica, da meritocracia
como uma ferramenta de desigualdade social e do lucro como um
pecado. Na presença de um material didático deste naipe, que
chance há de garantir equilíbrio nos julgamentos Morais por
meio de uma lei com nove artigos propondo colagem de cartazes
de advertência?
As diretrizes defendidas pela ESP não são apenas ruins: são
péssimas e têm uma chance de enorme de produzir efeitos
exatamente opostos àqueles a que se propõem. Não vamos
modificar a mentalidade dos alunos ou impedir qualquer forma
de doutrinação que os professores possam fazer em sala de aula
por meio impedindo a liberdade de expressão em ambos os lados
do espectro ideológico. Considerar que isso seja de alguma forma
possível é um raciocínio que beira a utopia ou se afunda na
ingenuidade.
É óbvio que as escolas exercem uma influência considerável
na formação do caráter das crianças e dos adolescentes. Apenas
alguns poucos teóricos desconectados da realidade ainda ousam
afirmar que, se o mundo adulto deixasse o caminho livre, as
crianças se desenvolveriam em adultos plenamente realizados. A
história da Identidade Pessoal e da Moralidade mostra que isto
está a anos-luz de distância da realidade: crianças humanas não
nascem como tábulas rasas, mas certamente nascem indefesas e
precisam dos cuidados e da orientação dos mais velhos para
ultrapassar a infância e aprender a viver harmoniosamente em
sociedade. A educação formal que elas receberem condicionará
uma parte considerável das respostas de suas Identidades frente
aos desafios do mundo, e esta mesma educação pode ser
empregada para reforçar a validade de qualquer sistema
(socialismo, comunismo, capitalismo, democracia, tirania,
teocracia ou monarquia constitucional).
Quando alguém fala de “Escola Sem Partido”, a esmagadora
maioria está se referindo a “escola sem o partido que eu não
apoio”. E o mesmo vale para “escola sem religião” ou seu avesso:
quando alguém concorda com o ensino religioso nas escolas, em
geral está se referindo apenas ao conjunto das religiões que
aceita, segue e tolera. Quanto às demais, não sente problema
algum em vê-las excluídas da grade curricular.
A princípio, a proposta da ESP soa sedutoramente lógica: os
sistemas educacionais refletem e são formados por processos
ideológicos que se iniciam na Identidade Pessoal, sendo então
extrapolados para todos os níveis organizacionais das instituições
que os divulgam e executam. Quando autorizamos por omissão
que a doutrinação Progressista fundada no autovitimismo ocorra
livremente na escola, estamos permitindo que as crianças não
aprendam o que deveriam fazer quando adultas, mas o que
deveriam esquecer.
Uma escolarização ideal deveria tanto capacitar o aluno para
a criatividade e inovação quanto adequá-lo aos processos do
mercado e da indústria. Infelizmente, nosso sistema educacional,
no presente formato, não cumpre qualquer uma dessas metas – e
ainda vai além, minando a ordem e o progresso ao demonizar a
competição e sobrevalorizar o igualitarismo. Segundo o raciocínio
do ESP, temos uma oportunidade ímpar de corrigir estes desvios
de caráter nas salas de aula, pois o vínculo do professor com o
aluno é um poderoso estimulante para o aprendizado. Os
professores não são apenas prateleiras de informação, mas
possuem a faculdade de serem educadores de caráter: quem
consegue negar que escola é uma extensão do lar e os professores
são como pais in loco?
Sem embargo, o controle absoluto dos julgamentos Morais
no ambiente escolar é incompatível com uma sociedade
democrática, ainda que a intenção deste controle seja poupar os
alunos de alguma forma de doutrinação – e se torna ainda pior
quando a intenção é estimular nos estudantes o raciocínio crítico
e a capacidade de arbítrio. Um professor pode perfeitamente
afirmar que um determinado ponto de vista tem a sua preferência
e, ao mesmo tempo, apresentar opções a ele, encorajando
explicitamente que os alunos busquem os seus próprios. Um
professor obrigado à neutralidade compulsória está amputado
desta prerrogativa. Apesar dos defensores do ESP afirmarem que
esta limitação é imprescindível para preservar a autonomia do
aluno, o efeito prático é a redução do potencial do verdadeiro
aprendizado.
Se autonomia consiste muito mais do que ser depositário de
um conhecimento escolástico, mas em ser capaz de pensar por si
mesmo, o sistema educacional deveria priorizar o
desenvolvimento do raciocínio crítico e não o acúmulo de
informações. Como atingir esta meta abdicando da exposição dos
alunos a Julgamentos Morais em sala de aula? Uma educação
neutra produz bibliotecas ambulantes ou desertos de ideias, não
seres pensantes. A escolarização deve demandar, em algum
momento, o envolvimento, a tensão e a discórdia com crenças,
críticas, valores e arbítrios convencionados, pois apenas assim
poderemos transformar o hedonismo infantil em Ética e Caráter
na idade adulta. Mas, obviamente, isso não significa um salvo
conduto para a baderna – escolas desorganizadas e com
estruturas físicas deterioradas prejudicam o ensino e aumentam
o absenteísmo53.
Foi exatamente considerando a influência do ambiente
escolar sobre o aprendizado dos alunos que, na década de 1990,
na esteira de política de segurança pública antidrogas, o U. S.
Office of Education (o Ministério da Educação dos EUA) adotou
uma conduta chamada Tolerância Zero54. A política educacional
do programa Tolerância Zero consistia em enfatizar a ordem, a
disciplina e o trabalho (não as brincadeiras). Nada de correrias,
gritos ou brigas – nem mesmo durante os intervalos e recessos.
Foram adotas filas únicas para entrar e sair das salas de aula,
proibiu-se saídas ao banheiro no correr da aula; os lugares
ocupados pelos nas salas passaram a ser determinados pelos
professores; e interrupções e perguntas irrelevantes tornaram-se
sujeitos à punição.
O sistema disciplinar adotou também um protocolo de
recompensas e punições – neste caso, isolamento à parte do
grupo. O aluno disruptivo era colocado em uma pequena sala mal
iluminada com uma única cadeira e deixado lá por um período de
tempo, para refletir sobre sua conduta antes de ter uma conversa
dura com a coordenação da escola. Apesar da política de
Tolerância Zero ter sido questionada nos EUA por diversas
entidades, podemos traçar um paralelo entre ela e as escolas
brasileiras, comparando especialmente os desempenhos das
Escolas Militares e das Escolas Públicas Civis.
Quando utilizamos o ENEM com régua para comparar as
performances dos estudantes brasileiros, e mesmo quando são
corrigidos os vieses estatísticos, as Escolas Militares – que
adotam políticas semelhantes ao Tolerância Zero norte-
americano – apresentam um desempenho digno de nota: das 30
melhores escolas públicas do país, 10 são militares55. A
mensagem é simples: não é preciso militarizar todas as escolas,
mas devemos retirar o foco do autovitimismo e da
condescendência e reposicioná-lo com toda força na Disciplina. O
objetivo da Escola não é oferecer um lugar para que o aluno seja
feliz. Escola é um lugar de Aprendizado.
E esta é a grande lição que os Colégios Militares têm para
ensinar à fraqueza de caráter que impera nas demais escolas de
ensino publico no Brasil: ter pena nunca ensinou coisa alguma –
nem galinha a voar. Não se aprende por misericórdia, mas por
Disciplina, e o primeiro fundamento da Disciplina é o Respeito; o
segundo, a Consistência. Sem Respeito, a Disciplina não brota.
Sem Consistência, ela não permanece. Sem ambos, a burrice se
perpetua. A educação Moral das escolas deveria mostrar aos
cidadãos o ambiente selvagem da realidade de “lutas perpétuas”
que constitui o mundo; não o ecossistema infantil dos
enfrentamentos marxistas de classes, das burocracias imorais ou
dos nacionalismos breves, mas o ambiente de batalha pela
própria sobrevivência dos ideais democráticos de
autodeterminação, autopertencimento, autoconsciência e livre
mercado.
Em um acesso digno dos melhores exemplos de
desengajamento Moral descritos por Albert Bandura, os
professores brasileiros desviam o foco das consequências de suas
filosofias colocando a culpa no financiamento insuficiente da
educação e nas situações de risco social das crianças, enquanto o
Governo finge não ver o completo desastre em andamento.
Todavia, nossos resultados no teste PISA de 2015 dizem bem
sobre os efeitos práticos da ideologia Construtivista que tem sido
empregada nas escolas: entre 70 países avaliados, ficamos na
63ª posição em Matemática, 58ª em Leitura e 65ª em Ciências,
sendo que 61% dos estudantes brasileiros sequer conseguiram
chegar até a última questão da primeira parte da prova56. Entre
os estudantes da Finlândia, este índice é de apenas 6%55.
Não existe uma única área da diligência humana que possa se
dizer 100% neutra com relação aos valores e convicções Morais
socialmente construídos. Essas influências, conscientes ou não,
afetam o modo como nos posicionamos com respeito à religião,
ao amor, ao sexo, à amizade, à felicidade, ao casamento, aos
filhos, às leis, ao Estado e às peculiaridades da Identidade
Pessoal. Nenhuma instituição existe sem uma fundamentação
Moral. Seria um absurdo falar que Moralidade e caráter, ou
Moralidade e política, ou Moralidade e dinheiro, ou Moralidade e
relacionamentos, não devem ser misturados. Ainda assim,
algumas pessoas acreditam que é possível desvincular valores e
convicções Morais da Educação – sim, alguns puritanos
realmente creem que Moralidade e Educação podem ser
desligadas uma da outra. E vão além: pensam não apenas que
podem ser, como devem ser!
Sempre que testemunho opiniões assim, pergunto o que pode
ter dado errado durante a anfimixia daquele indivíduo. Pois algo
deve ter saído muito errado para que os neurônios dos
escolarizadores brasileiros até hoje não tenham percebido algo
tão óbvio: toda Educação tem uma Moralidade implícita e toda
Moralidade procura educar intrinsecamente de alguma forma.
Quando separamos a Moralidade da Educação – ou vice-
versa –, estamos aceitando que a Sociedade enverede por um
caminho tão imoral quanto ignorante. A pergunta correta a ser
feita não é “Como iremos dissociar as convicções Morais daquilo
que é ensinado nas escolas?”, mas “Quais convicções Morais
indissociáveis estamos dispostos a ensinar nas escolas?”. Estas
convicções poderão ser Absolutistas, Deontológicas,
Consequencialistas, Utilitaristas, Relativistas, Socialistas,
Capitalistas, Individualistas, Coletivistas, Objetivistas,
Humanistas, Céticas, Hedonistas ou Niilistas. Qualquer que seja
nossa escolha, teremos que optar em algum momento, e isto
definirá a Sociedade e o Estado que seremos nas décadas por vir.
Dentro de um Estado, a Moralidade individual predominante
define a ideologia. A ideologia reflete na Política. A Política molda
as instituições. As instituições definem a economia. E a economia
determina a longevidade do Estado. Como pelo menos 40% da
Moralidade depende de fatores externos – como ambiente
familiar, cultura e relacionamentos interpessoais72 –, e como o
Estado, feito um organismo qualquer, deseja sobreviver a
qualquer custo, não deveria causar admiração constatar
movimentações no Estado para conduzir o ambiente familiar, a
cultura e os relacionamentos interpessoais. Quanto mais rápido
essa superintendência se abatesse sobre o cidadão, tão melhor:
formatar a Identidade Pessoal de uma criança é sem dúvida
alguma muito mais fácil (e eficaz) que editar um adulto. E que
lugar melhor para efetuar esta engenharia Moral que a
Educação? Bastaria pegar crianças na mais tenra idade e educá-
las com preceitos de servilismo e a violência para obter sujeição
se tornaria quase desnecessária mais adiante. Até os Espartanos e
os Otomanos sabiam disso.
Ainda que uma educação com direcionamento ideológico
atue efetivamente como uma prisão, ela transmite ao detento-
mental a falsa percepção de autonomia de raciocínio, e isso basta
para alentar seu espírito. Esta lição – nada nova – foi desnudada
de modo brilhante pelo marxista italiano Antonio Gramsci (1891-
1937), que a desenvolveu sob a alcunha de Teoria da Hegemonia
Cultural. Gramsci foi o responsável por descrever, com todas as
letras, que a Educação é a ferramenta derradeira da revolução
sem revolução48,49.
Parte da Moralidade que o Estado obriga que as escolas
ensinem às crianças é grosseira, e a outra parte é absolutamente
imprestável – mais ou menos com a própria escolarização em si.
Todavia, ainda que esta Moralidade seja deletéria e indutora de
autovitimização, é impossível divorciar a educação Moral da
educação em geral: é impossível ensinar a plenitude dos fatos
positivos da realidade deixando de fora a exposição dos vários
enfoques Morais que estes fatos suscitam. Sem valores Morais, os
fatos não passam de pedaços irrelevantes de informação.
Como mencionado anteriormente, a finalidade de uma boa
educação deveria ser inspirar as gerações mais novas com uma
visão crítica e realista daquilo que podem se tornar, e qual o
trabalho necessário que deverão desempenhar para que esta
visão se concretize. E isso jamais será possível se proibirmos a
liberdade de expressão dos julgamentos Morais em sala de aula.

9. A PENA CAPITAL

“Bandido bom é bandido morto” é um slogan bem comum e


manifesta a essência de uma noção bem familiar: pessoas que
praticaram atos imorais deveriam pagar por seus erros com juros
e correção monetária. Por que pensamos assim? Porque não
parece justo que um assassino continue vivendo quando sua
vítima não recebeu o mesmo direito. Entretanto, o debate sobre a
pena de morte não é uma discussão apenas técnica ou empírica,
mas fundamentalmente Moral. Em uma sociedade que aspira ser
Moral e justa, não parece no mínimo paradoxal que tencionemos
ensinar que “matar é errado” matando outras pessoas. À primeira
vista, isso não se parece com justiça, mas apenas uma forma
sanitária de vingança. Mas, obviamente, existem divergências:
Para Tomás de Aquino, se um indivíduo é perigoso para a
comunidade e comete “subversões pecaminosas”, o tratamento
recomendado é a sua execução para preservar o bem comum10.
Ao afirmar isso, Aquino estava apenas reeditando o postulado
por Aristóteles 1500 anos antes dele: “um homem mau é pior que
uma besta selvagem – e bem mais perigoso”2, escreveu o grego,
defendendo que matar um homem cuja natureza intrínseca é má
seria uma conduta válida.
A pena de morte reforça a crença de que coisas ruins devem
acontecer para pessoas que merecem – e de que boas coisas
acontecerão para aqueles que forem bons. Dessa forma, a pena
capital oferece um bálsamo psicológico para nossa eterna
expectativa por recompensas. Como forma de punição legalizada,
a pena capital é adotada em mais de 50 países – incluindo Iêmen,
Afeganistão, Egito, Sudão, Paquistão, Cuba, Kuwait, Uganda e
Vietnã –, tendo sido banida em aproximadamente outros 100 –
incluindo Austrália, Canadá, México, Ruanda e boa parte da
Europa. Segundo estatísticas da Anistia Internacional, a China é a
campeã em execuções, com uma média de 1.500/ano. Irã, EUA,
Arábia Saudita e Paquistão compõem o restante do time dos
países que mais executam pessoas “legalmente”60.
Para uma análise criteriosa, seria recomendável abordar a
pena de morte à luz dos quatro principais objetivos da punição
pela Lei a pela Justiça: Reabilitação, Retribuição, Dissuasão e
Incapacitação. Vamos a elas:
Na Reabilitação, o objetivo seria mudar a predisposição
criminosa do indivíduo, evitando que ele reincida no delito
quando for restituído à vida em sociedade. Com as atuais taxas de
recidiva de 70% entre os ex-presidiários brasileiros, a
Reabilitação não parece ter sido muito bem sucedida por aqui. Na
Noruega, os índices de recorrência no crime em 2 anos chegam a
42%. Na Inglaterra, 59%. Na Suécia, 66%57.
Nos EUA, um levantamento feito a partir de dados de mais de
25.400 reclusos em Prisões Federais, descobriu que 49% deles
reincidem no crime nos primeiros 8 anos de liberdade (em geral,
a reincidência tende a ocorrer nos primeiros 21 meses de
liberdade). Dos reincidentes, 31% são condenados novamente e
24% são reencarcerados. A incidência de recorrência é de 52%
nos ex-presidiários que foram liberados após o cumprimento da
pena total e de 35% nos ex-presidiários colocados em liberdade
condicional, chegando a 67% nos ex-presidiários que alcançam a
liberdade antes dos 21 anos de idade. Ex-reclusos de Presídios
Estaduais apresentam índices de recorrência ainda piores: 76%58.
Realmente, no universo da população criminosa, a Reabilitação
como punição é quase uma piada.
Na Retribuição, o castigo corresponde ao dano causado,
seguindo a lex talionis, um conceito extraído do Código de
Hamurabi babilônico datado de 1.759 a.C. Na cultura judaico-
cristã, o princípio “olho por olho, dente por dente” também é
representado em passagens como: “e quem matar a alguém
certamente morrerá. Mas quem matar um animal, o restituirá,
vida por vida. Quando também alguém desfigurar o seu
próximo, como ele fez, assim lhe será feito: quebradura por
quebradura, olho por olho, dente por dente; como ele tiver
desfigurado a algum homem, assim se lhe fará. Quem, pois,
matar um animal, restitui-lo-á, mas quem matar um homem
será morto” (Levítico 24:17-21).
A Retribuição quase sempre é a primeira justificava a ser
apresentada em favor da pena capital. Por exemplo: para Kant, a
pena de morte fundamenta-se na ideia de que cada pessoa tem
algum valor e merece respeito por sua habilidade em formular
escolhas racionais. Portanto, o assassino também merece respeito
como ser humano e, consequentemente, demonstramos este
respeito tratando-o da mesma maneira que ele acha que outros
seres humanos devem ser tratados: assassinando-o. O argumento
de Kant – abordado no clássico Metafísica dos Costumes (1797) –
não soa tão selvagem quanto sua consequência: ele assume que,
se uma pessoa racional decide tratar outra de uma determinada
maneira, esta pessoa está declarando que, do ponto de vista dela,
é assim que todos devem ser tratados – inclusive ela mesma. Ao
assassinar alguém, o indivíduo declarou como ele deve ser
tratado. Ao executá-lo, a sociedade estaria respeitando sua
decisão sobre como reagir a um mau comportamento.
Outra linha de defesa da pena de morte como Retribuição se
dá através do contrato social: ela seria uma ferramenta
necessária para manter a paz, eliminando do convívio pessoas
hostis – incluindo aí a execução de algumas, quando necessário.
Antes da criação do Estado, os humanos habitavam condições
naturais bastante hostis que tornavam nossa existência um
evento brutal, relativamente solitário e certamente breve. Foi
nosso desejo por uma vida longa e produtiva que nos levou ao
desenvolvimento de sociedades, da civilização e do Estado – e o
contrato social é o mecanismo que nos permite concretizar este
desejo.
Segundo Hobbes, para que o Estado assegure o cumprimento
do contrato, ele deve ter a autoridade de punir qualquer um que
quebre suas regras, até mesmo condenando-o à morte. Porém, se
um dos objetivos do Estado é preservar a vida, como ele pode
reservar-se o direito de tirá-la? A solução para Hobbes foi
argumentar que podemos assumir um contrato que permita ao
Estado tirar sua vida no caso de crimes graves, mas isso não
significa que você deva aceitar passivamente este destino.
Não obstante, se todos devem ser iguais perante a Lei, e a Lei
proíbe assassinatos, um Estado que adota a pena de morte como
ferramenta de punição está colocando-se acima de suas próprias
regras? Para Rousseau, quando aceitamos o contrato, estamos
assinando também uma permissão para que o governo nos julgue
e nos execute caso nossas atitudes interfiram com o bem-estar
social maior. Na Revolução Francesa, durante o período
conhecido como Reino do Terror, mais de 15 mil pessoas foram
executadas utilizando esta premissa filosófica como justificativa.
Para Locke, ao nascermos, recebemos o direito à vida, à
saúde, à liberdade e à propriedade, e manteremos esses direitos
durante toda nossa existência exceto se atentarmos contra os
direitos fundamentais de outras pessoas. Quando entramos em
guerra contra alguém, por uma questão de igualdade de
intenções, estamos abdicando de nosso direito à vida – e isto
autorizaria seu inimigo a lhe matar. Este raciocínio poderia ser
aplicado inclusive em uma situação de assalto: sob a ameaça de
um criminoso, você pode deduzir que ele está disposto a lhe tirar
muitas coisas, até mesmo sua vida, e isto justificaria um revide
violento de sua parte, tirando a vida do assaltante em retaliação.
Esta é a principal premissa do argumento daqueles que defendem
a posse e o porte amplo de armas de fogo.
Uma vez estabelecida a sociedade, transferimos boa parte do
poder de vigilância e punição para o Estado, que passou a
monopolizar a autoridade sobre os agressores em nome da
Ordem e da Harmonia. Com um Leviatã acima da Lei,
concedemos ao Estado a permissão de fazer muitas coisas que as
pessoas comuns não podem. E matar legalmente é uma delas.
Mas a punição por Retribuição – seja esta punição estatal ou
individual – tem o risco de fomentar o surgimento de vigilantes e
vendetas sem fim.
Além disso, se você é um retributivista, provavelmente
acredita que todos (ou quase todos) os assassinos devam
responder pelos seus crimes sob o preço da pena capital.
Contudo, se consideramos Moralmente aceitável assassinar os
assassinos, não seria correto também estuprar os estupradores,
atropelar os atropeladores e queimar a casa dos incendiários?
Para que a justiça retributivista seja feita, quantas vezes teremos
que matar um serial killer? Se alguém assassinou seu filho, é o
filho desta pessoa quem deve ser assassinado ao invés dela? Se
alguém roubou sua casa, a punição adequado seria roubar a casa
desta pessoa? A fórmula “olho por olho” não garante que a
punição seja apropriada ou mesmo lógica em todos os casos...
Sendo um retributivista, e defendendo a “pena de morte”
para todos os assassinos, como você julgaria os homicídios
cometidos em legítima defesa? Nestes casos, dados os atenuantes
do contexto, a pena capital se tornaria Moralmente inaceitável?
Considerando que a autodefesa seja uma motivação
suficientemente relevante para a ação violenta, não deveríamos
considerar relevantes também a intensidade do estado emocional
no momento do crime, os traumas na infância, a educação
acadêmica insuficiente, a drogadição ou a presença de doenças
mentais? Se positivo, então como esta proporcionalidade de
motivações seria determinada? Ela seria estabelecida por um
grupo de revisores com fé pública? Se alguns atenuantes fossem
considerados relevantes, então um mesmo crime (homicídio)
sujeito a uma mesma lei (pena de morte aos assassinos) seria
interpretado utilizando-se um peso com duas medidas. Qual o
nível de desengajamento moral necessário para chamar esta
incongruência de Justiça?
Na Dissuasão, o objetivo é utilizar a punição do criminoso
como uma ferramenta para desencorajar outros de cometerem
delitos similares. Se você está convicto de que matar um ser
humano pode ser Moralmente justificado, pois isso
desencorajaria a ação de potenciais criminosos, então acredita
que a função da punição não é a retribuição, mas a dissuasão.
Para o filósofo Utilitarista Jeremy Bentham (1748-1832), a
pena de morte, além do apelo popular de garantir que 100% dos
assassinos punidos jamais cometeriam qualquer crime
novamente, era uma excelente ferramenta de dissuasão.
Contudo, até mesmo Bentham foi capaz de elencar algumas
desvantagens da execução: a eliminação de qualquer
possibilidade de restituição ou serviço especial por parte do
criminoso; e a criação de uma perda financeira para a sociedade
ao neutralizar permanentemente a capacidade de mão de obra do
homicida. Além disso, a pena capital não é uma punição severa o
suficiente quando o indivíduo tem pouco pelo que viver; e é
irreversível em caso de erro. O parecer final de Bentham foi de
que a pena de morte tem mais desvantagens que vantagens, e
deveria ser abolida para qualquer tipo de crime. Para ele,
qualquer outra forma de punição que seja igualmente ou mais
eficaz deve ser preferida à pena de morte. Mas esta é apenas a
visão de um único Utilitarista.
O britânico John Stuart Mill (1806–1873), também examinou
a questão e chegou a uma conclusão diferente de Bentham: ele
acreditava na validade da pena de morte especialmente devido ao
seu peso como ferramenta de Dissuasão. Para quem está de fora,
a pena de morte parece mais terrível que a prisão perpétua, e por
isso fornece uma impressão mais forte e duradoura. Para Mill, a
fórmula é bem simples: a pena de morte é menos dolorosa para o
criminoso, mas possui um efeito de dissuasão maior sobre o
público, ao passo que a prisão perpétua tem características
diametralmente opostas.
Sem embargo, todo defensor da pena de morte como
ferramenta de Dissuasão deve responder a duas perguntas.
Primeiro: será que a ameaça de execução realmente é mais eficaz
que a ameaça de prisão perpétua para impedir alguém de
cometer crimes hediondos? Segundo: ainda que a pena de morte
seja uma ferramenta de Dissuasão eficaz, isso basta para torná-la
Moralmente justificável?
Para responder à primeira questão, seria necessário conduzir
um estudo científico comparando duas sociedades idênticas –
uma sem adoção da pena de morte (sociedade-controle); outra
com adoção da pena (sociedade-teste). O problema é que é
praticamente impossível isolar duas sociedades idênticas para
conduzir uma análise dessas, pois incontáveis fatores deveriam
ser levados em conta, tais como índices de desemprego, uso de
drogas, educação, posse e porte de armas, religiosidade, perfil
psicológico, criação familiar etc. Na falta de um experimento
cientificamente perfeito, os pesquisadores tentaram outras
abordagens: passaram a comparar as taxas de homicídios entre
Estados que possuem e que não possuem a pena de morte como
recurso Legal – ou comparar as taxas de homicídio em um
mesmo Estado antes e após a adoção ou a abolição da pena de
morte. Como esperado, foi impossível eliminar o impacto de
influências econômicas e temporais, e talvez por isso esses
estudos não tenham sido capazes de produzir conclusões
definitivas sobre o real poder de Dissuasão da pena de morte.
Em resposta à segundo questão – a ética da pena de morte
como ferramenta de Dissuasão –, vale lembrar que, de acordo
com o Consequencialismo, se de cada 100 homens executados, 99
forem culpados e apenas 1 for inocente, ainda assim a pena de
morte vale à pena. Contudo, este Utilitarismo contradiz o
princípio Deontológico de in dubio pro reo (na dúvida, coloque-
se a favor do réu): a morte de um único inocente não se torna Boa
e Correta pela morte de 99 culpados.
Mas vamos supor que a pena de morte possui de fato um
poder de Dissuasão superior à prisão perpétua e é Moralmente
aceitável. Com que frequência ela deveria ser imposta para
alcançar este efeito? De repente, executar 10 assassinos seja
suficiente para evitar que outros 10 potenciais assassinos
cometam seus crimes. À medida que o número de execuções
aumenta, será que o número de vidas salvas aumentaria
proporcionalmente? Talvez, ao executarmos 100 criminosos, a
taxa de Dissuasão atinja um platô – ou diminua. Se pretendemos
empregar a pena de morte justificando-a somo um instrumento
ético de Dissuasão, precisamos saber qual o porcentual de
vítimas salvas por cada execução – do contrário, estaríamos
executando criminosos um atrás do outro sem qualquer efeito
Utilitário concreto sobre o número de vidas salvas. Considerando
ainda a irreversibilidade da pena e a falibilidade do sistema
judiciário, também seria imprescindível determinar quantos
culpados estaríamos dispostos a exterminar para cada inocente
executado. É praticamente impossível calcular estes números de
modo exato.
Vale lembrar, ainda, que quanto mais o processo legal
distancia o crime de sua punição, menos eficaz é a punição em
termos de Dissuasão. É, portanto, principalmente a distância
entre o ato e seu julgamento que promove dissuasão – e não
exata e unicamente a severidade da punição.
Finalmente, na punição do estilo Incapacitação, o objetivo
é impedir o criminoso de repetir seu delito, em geral
restringindo-o fisicamente (por meio de encarceramento pelo
resto da vida, por exemplo). Prender perpetuamente alguém em
um local com cama, abrigo, três refeições por dia, banho de sol,
tempo de recreação e nenhuma obrigação de trabalhar, não
parece uma punição adequada para alguém que cometeu um
assassinato: a perda de liberdade não pode ser comparada à
perda de uma vida. Se a cadeia é punição para o roubo, a punição
para um homicídio deveria ser proporcionalmente mais severa,
caso você considere uma vida humana mais preciosa que um bem
material. Não obstante, justificar a pena de morte sob o pretexto
de que as cadeias são frágeis e “facilitam fugas” é um argumento
infantil e preguiçoso.
O argumento mais comum a favor da punição por
Incapacitação é que, na pena de morte, cedo ou tarde um
inocente será executado por equívoco ou por falhas no sistema, e
este erro, uma vez consumado, não pode ser modificado. A pena
de morte legitima um ato irreversível de violência por parte do
Estado. Inevitavelmente, ela ceifará a vida de inocentes em algum
momento – enquanto a justiça humana for imperfeita, o risco de
assassinar uma pessoa virtuosa não pode ser eliminado. E
existem vários exemplos de erros assim: segundo a Anistia
Internacional, nos EUA, desde a adoção dos testes de DNA na
década de 1970, 144 pessoas no corredor da morte foram
inocentadas. Estes “condenados” haviam sido julgados e
sentenciados à morte em um processo que deveria ser
completamente à prova de falhas – algo que ele não é.
Ainda que tenhamos claro em nossa mente que alguém
merece ser morto, isso não garante ao Estado a autorização para
fazê-lo. Para que um Estado tenha o direito de matar uma pessoa,
ele deve avaliar criteriosamente a culpa, analisando provas de
valor inquestionável e ouvindo as apelações de modo justo,
competente e confiável. Além disso, este Estado deve ter regras
bem estabelecidas que impeçam inocentes ou aqueles cuja culpa
ainda apresente dúvidas de serem executados injustamente. Não
é preciso ser um gênio para perceber que nosso Estado e nosso
sistema investigativo e judiciário não atendem nem de perto a
estas premissas.
Em Dos Delitos e as Penas (1764), Cesare Beccaria (1738-
1794), aristocrata milanês e principal representante do
Iluminismo Penal, chamou atenção para os desequilíbrios no
sistema judiciário europeu. Beccaria acreditava que todo o
conceito de punição criminal necessitava ser revisto, e a
sociedade deveria adotar métodos de sanção que tivessem um
impacto psicológico mais duradouro sobre o prisioneiro e a
opinião pública. Segundo Beccaria, a finalidade das penas não é
atormentar e afligir um ser sensível, mas impedir que o réu cause
novos danos aos seus concidadãos e dissuadir os outros de fazer o
mesmo. Todavia, para Beccaria, gradualmente nos
acostumaríamos a aumentos na severidade das punições, e estes
aumentos perderiam o efeito desejado com o tempo: “À medida
que as punições se tornem mais cruéis, a mentalidade popular
se tornará mais dura e insensível”, afirmou Beccaria,
concluindo: “Após 100 anos, uma sentença de morte não
causaria mais terror que uma condenação perpétua”62.
Beccaria era claramente contra a pena de morte e afirmava
que o encarceramento perpétuo era mais eficaz que a execução,
exceto nos casos de líderes rebeldes ou chefes do crime que,
mesmo detrás das grades, continuavam a corromper a sociedade
por meio de sua influência. Inspirados pelos argumentos de
Beccaria, vários legisladores europeus passaram a reduzir ou
banir a aplicação da pena capital a partir do século XVIII.
Os defensores da pena de morte dizem que os recursos do
Estado seriam mais bem empregados se fossem direcionados
para prisioneiros que podem ser reabilitados, ao invés de gastá-
los com psicopatas que jamais irão mudar. Entretanto, em muitos
países que adotam a pena capital, o preço de uma execução
supera o preço de se deixar o sujeito encarcerado pelo resto de
sua vida: segundo o Death Penalty Information Center, o custo
anual para manter um sujeito encarado no corredor da morte é
90 mil dólares mais caro que mantê-lo em prisão perpétua59.
Em todas as variantes de castigo pela Lei a pela Justiça
(Reabilitação, Retribuição, Dissuasão e Incapacitação), o
componente filosófico do debate sobre a pena de morte envolve
definir se executar criminosos pode ser considerada uma forma
de punição Moralmente Boa e Correta – e é bastante difícil
separar isto do desejo por vingança, que significa agir em
retaliação, motivado por raiva ou ressentimento. Acostumamo-
nos a pensar na vida humana como algo valioso, sagrado. Aqueles
que adotam este conceito acima de qualquer contestação
consideram a pena de morte injustificável sob quaisquer
aspectos. Para eles, nem mesmo os piores assassinos deveriam
receber uma pena capital: o valor da vida do criminoso não pode
ser destruído devido à sua má conduta – ainda que ele tenha
trucidado outra pessoa. Ainda assim, em nosso cotidiano, a
vingança é uma força propulsora poderosa e tende a sugerir
punições frequentemente mais severas que o crime cometido. Em
geral, não queremos apenas que um estuprador, torturador ou
latrocida seja pego: queremos que ele sofra muito, imensamente
muito, para sublimar nossa necessidade de fechar um ciclo de
“organização psicológica do mundo”. Entretanto, não há
imparcialidade na retribuição por vingança – e, sem
imparcialidade, não pode haver Justiça.
Como instrumento do Estado para preservação da Ordem e
da Harmonia, a Justiça deveria ter dois propósitos: proteger a
integridade física dos cidadãos e fiscalizar para que os recursos
da sociedade sejam utilizados da melhor maneira possível. Mas a
Lei, o substrato da Justiça, é uma argila flexível e, com alguma
criatividade, pode ser esculpida em várias formas diferentes.
Frequentemente, a moldamos segundo nossas convicções do
momento, ao invés de consultá-la como uma oráculo imparcial
capaz de guiar-nos na direção do que é Bom e Correto.
Parte do sistema de Leis que criamos visa dar alguma
satisfação às vítimas de crimes. Existe, sim, um senso de que as
vítimas deveriam ser “vingadas” pelo mal que lhes foi causado.
Todavia, em uma sociedade minimamente civilizada, esta
punição deve ser definida e executada dentro dos ritos da Lei –
caso contrário, podemos desistir de nossos avanços éticos e
tecnológicos duramente conquistados até aqui e retornar todos
ao estado de barbárie primitiva da Lei de Talião, onde cada um é
o tribunal, o juiz e o executor “legítimo” de cada um. Quanto mais
deixarmos nossas emoções fora de nossas sentenças, tão melhor
será para a organização, solidez e confiabilidade do tecido social.
No curso da história do Ocidente, várias instituições
anteriormente consideradas dentro dos limites éticos da
sociedade, como a Escravidão e a Tortura, tornaram-se
absolutamente imorais. O desejo popular pela pena de morte
parece ser apenas outro representante deste mesmo grupo.

10. CONCLUSÃO

Aristóteles já havia nos avisado há muitos e muitos séculos: o


Homo sapiens possui um desejo inato pela vida em comunidade,
um desejo que só pode ser satisfeito por meio de associações
voluntárias. Estas associações, por sua vez, nos oferecem um
senso de propósito e realização, mas ao mesmo tempo limitam
nossa liberdade, cobrando-nos obediência a conjuntos bem
específicos de comportamentos e princípios Morais.
Derradeiramente, será a autoridade que emana destas
associações que irá condicionar nossos hábitos. Foi assim no
Paleolítico, continua sendo assim no Neolítico.
Com o aumento do tamanho de nossas associações, a fé na
autoridade das convenções familiares foi substituída pela fé em
um instrumento maior, mais poderoso e mais apto para garantir
nossa segurança e obediência nas imensas coletividades que
criamos. A este instrumento revolucionário demos o nome de
Estado61.
O Estado detém o controle das Forças Armadas, da
propriedade, das fronteiras, da liberdade, da educação, da
economia e das regras que nos regem. Por isso, todo Estado é
Absoluto – do contrário, não seria um Estado. Um exemplo da
amplitude deste controle pode ser observado quando
constatamos que o crime legalizado é um privilégio do Estado:
simplesmente não há um Estado que permita aos seus cidadãos
tudo aquilo que permite a si mesmo. Maquiavel foi um dos
primeiros a diagnosticar e afirmar isso abertamente: um Estado
poderoso só poderia ser fundado e mantido por meio do crime e
pela contemporização de qualquer noção de honestidade. Cem
anos depois de Maquiavel, Hobbes levaria este conceito ao
extremo em O Leviatã (1651).
Para árbitro de seu poder, o Estado criou a Lei. Para
executora da Lei, criou a Justiça. Para manter-nos obedientes à
Justiça, normatizou a Educação, colocou rédeas no conhecimento
e doutrinou o livre pensamento. Para financiar toda esta
dinâmica, enviou o Governo para nos assaltar periodicamente
com impostos e taxas. E para predispor os homens à submissão e
punir os transgressores de sua tolerância protetora, ameaça-nos
em toda parte com amputações da pouca liberdade que ainda
dispomos. Não obstante, depois de mais de 10 mil anos vivendo à
sombra de diferentes formatos de governança, nossa espécie
acostumou-se à ideia de que a preservação da Sociedade e do
Conhecimento depende do poder de vida ou morte do Estado. De
um meio, o Estado tornou-se um fim.
É pouco provável que algum dia evoluamos para um sistema
social à parte da configuração de algum Estado: mesmo sob a
ameaça do progresso da Inteligência Artificial e seus algoritmos
consequencialistas, o que nos aguarda será sempre uma forma ou
outra de tutela acima de nosso autopertencimento. Somos
animais carnívoros, predadores industriosos, agressivos,
audaciosos e ambiciosos, e uma cultura universal de paz jamais
prevalecerá enquanto houver um único povo com uma cultura de
guerra.
A despeito de suas incontáveis imperfeições, o Estado
representa nossa melhor tentativa de nos guardarmos da
violência dos autointeresses de outros de nossa espécie. Afinal,
por mais poético que você seja, flores e livros não param balas.
Andar por aí pregando a paz pode ser lindo, mas é tão eficiente
para promover a paz quanto evangelizar pelo fim das sombras é
eficiente para esfriar o Sol. Algo parecido vale para nossas
eternas queixas contra o Estado, as Leis e a Justiça. Nas palavras
de Thomas Paine (1737-1809): qualquer forma de governo,
mesmo no seu melhor estado, é tanto um mal quanto uma
necessidade.

____________________

Referências
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