Você está na página 1de 102

Saúde I Natureza I História I Sociedade I Ciência I Tecnologia I Ambiente I Comportamento

N.º 215

00215
Março 2016
Mensal l Portugal

5 601753 002096
€ 3,50 (Continente)

www.superinteressante.pt facebook.com/RevistaSuperInteressante

De onde vieram
• O universo
• A matéria
• A vida
• A consciência

Os grandes
ENIGMAS
DA CIÊNCIA
Nordeste Animais Psicologia Olimpíadas
Por detrás A inteligência O que é A estreia
das máscaras canina o presente? portuguesa
2 SUPER
Interessante 3
Reconfirmação 215
www.superinteressante.pt
Março 2016

H á três edições, registávamos a passagem de um século sobre o momen-


to em que Albert Einstein apresentou a sua teoria da relatividade ge-
ral, incluindo nela a gravitação. Outro artigo apontava pequenas discrepân- ANIMAIS 24
cias entre as previsões da teoria e algumas medições: o puzzle einsteiniano Cães, uns bichos espertos
não está a encaixar tão bem como devia. Nesta edição, regressamos ao tema
por outra via: há ou não há matéria escura, e que consequências tem isso
para a teoria (ver pág. 50)? Sabemos que há buracos negros e temos uma
teoria que nos ajuda a compreender como se formaram. No entanto, surge
PALEONTOLOGIA 30
um problema: no centro do buraco negro, há uma singularidade, que é a Imobilizados na pedra
etiqueta que os físicos inventaram para caracterizar condições que escapam
de todo às leis da física. A singularidade é um ponto onde espaço e tempo
deixam de existir, onde a densidade da matéria e a temperatura se tornam
infinitas... Ops! Infinito? Para muitos cientistas, se as equações de uma teo-
CIÊNCIA 36
ria dão resultados infinitos, é porque a teoria não é boa, tem de ser corrigida. A ilusão do agora
Há muita gente a trabalhar nisso, assim como há muita gente a verificar e
reverificar todas as previsões que se podem extrair da relatividade geral.
Uma delas é que corpos extraordinariamente massivos (buracos negros, por DESPORTO 42
exemplo) em aceleração geram ondas gravitacionais, umas ondulações ínfi- A matemática dos golos
mas do espaço-tempo que esperávamos há anos poder detetar com instru-
mentos ultrassensíveis. Já depois do fecho desta edição, foi anunciada a sua
deteção pelo observatório LIGO. Ainda pudemos emendar esta página e as
duas seguintes. Entretanto, o problema persiste: algo não bate certo... C.M.
TECNOLOGIA 46
Pague com o telemóvel

MANUELA HARTLING / REUTERS


GIULIO PISCITELLI

DOCUMENTO 50
Os maiores enigmas da ciência

PSICOLOGIA 66
Dez mitos conjugais

HISTÓRIA 70
Guerra fria: um mundo dividido
Homens ao mar Estou a perceber, sim
O drama dos refugiados não poderia Estudos recentes demonstram
estar ausente do festival Visa pour l’Image, que, efetivamente, aos nossos
que todos os anos transforma a cidade
francesa de Perpignan na capital
cães só falta falar: de resto,
pensam e sentem muito mais
DESPORTO 78
do fotojornalismo mundial. Pág. 92 do que se julgava. Pág. 24 Seis heróis do Olimpo

Parto triplo
Ao longo ANTROPOLOGIA 84
de milhões Por detrás da máscara
de anos, tragédias
súbitas fixaram
momentos na vida
dos animais que
nos precederam
FOTOGRAFIA 92
na Terra.
Rabanadas de realidade
Pág. 30

SECÇÕES

O mundo Observatório 4
Assine com um clique!
JORGE NUNES

ao contrário
Motor 8
amento
ia I Ambiente I Comport
e I Ciência I Tecnolog

Do solstício
I História I Sociedad
Saúde I Natureza N.º 215
00215

Março 2016
Mensal  Portugal
02096

€ 3,50 (Continente)

de dezembro
5 601753 0

até ao Carnaval, De onde vieram


www.superinteressan
te.pt facebook.com/Revista
SuperInteressante

Super Portugueses 10
dezenas • O universo
• A matéria

de festas
• A vida
• A consciência
Histórias do Tejo 14
do Nordeste
Caçadores de Estrelas 18
recorrem
Os grandes
ENIGMAS
às máscaras
Sociedade Digital 22
DA CIÊNCIA
para inverter
a ordem social
e recomeçar Nordeste
Por detrás
das máscaras
Animais
A inteligência
canina
Psicologia
O que é
o presente?
Olimpíadas
A estreia
portuguesa Flash 76
de novo.
Pág. 84 www.assinerevistas.com Marcas & Produtos 98
David Reitze, diretor-executivo do LIGO, descreveu de forma
Observatório gráfica a colisão que terá provocado as ondas detetadas:
“Imagine um corpo com um diâmetro de uns 150 quilómetros
e a massa de 30 sóis, a deslocar-se a metade da velocidade
da luz. Imagine outro corpo igual. Agora imagine que eles

Finalmente,
colidem...” O LIGO (Laser Interferometer Gravitational-Wave
Observatories) divulgou esta imagem para ilustrar a descoberta.

as ondas
É
oficial! Quando o LIGO voltou à ativi-
dade, depois de uma série de melho-
ramentos, em setembro de 2015, os
cientistas tinham expectativas de
que pudesse estar mais perto de detetar aquilo
para que foi construído: ondas gravitacionais.
Não esperavam é que o primeiro sinal inequí-
voco surgisse quase imediatamente. Analisa-
dos os dados, chegaram à conclusão de que se
tratava da assinatura da fusão (ou colisão, é
difícil escolher palavras para eventos desta
dimensão) de dois buracos negros, ocorrida há
1337 milhões de anos, mais coisa menos coisa.
O anúncio foi feito numa conferência de
imprensa realizada a 11 de fevereiro (já esta
edição da SUPER estava fechada), pelo que
nos limitamos a dar aqui nota dela e abordar
superficialmente o assunto, reservando para
momento posterior um artigo mais desen-
volvido sobre o tema, que aliás abordámos
inúmeras vezes na revista. Pela mesma razão,
algumas páginas desta mesma edição ficaram
ligeiramente desatualizadas. É um problema
recorrente do jornalismo impresso: só dá as
notícias de ontem, na melhor das hipóteses.
Regressemos ao assunto: o LIGO é um
observatório composto por dois instrumentos preferem dizer “massivos”, porque o que inte- forma mais geral): construir um instrumento
situados nos Estados Unidos, um no estado de ressa é a massa, não o tamanho), então será destes envolve desafios quase insuperáveis. O
Washington e outro na Louisiana, com um afas- (teoricamente) possível detetar essas ondas, LIGO funcionou entre 2002 e 2010 sem ter dete-
tamento de 3002 km. A duplicação serve para na medida em que, ao comprimir o tecido do tado algo de significativo, e há outros instru-
garantir que os efeitos sentidos num deles não espaço-tempo numa direção e expandi-lo na mentos semelhantes espalhados pelo mundo
se devem a causas locais (microssismos, explo- perpendicular (a seguir, acontece o oposto), que também não conseguiram qualquer
sões em pedreiras, trânsito pesado, etc.). Se o levariam instrumentos como o LIGO a assinalar resultado. Só os melhoramentos introduzidos
sinal surgir nos dois, quase simultaneamente uma pequena diferença no tempo que o feixe ao longo de cinco anos, até meados de setem-
(as ondas gravitacionais propagam-se à velo- laser leva a percorrer cada um dos braços do bro de 2015 (que custaram 620 milhões de
cidade da luz), então deverá tratar-se de algo L. Dizer “pequeno” é pouco. No caso do LIGO, dólares) permitiram o feito agora alcançado.
vindo do espaço e poderá ser certificado como a diferença no percurso de 4 km seria inferior Porém, o Nobel não vai premiar apenas o
digno de nota. ao tamanho do núcleo atómico... engenho da equipa ou a derradeira confirmação
Esses dois instrumentos são construções Foi o que aconteceu às 9h50 de 14 de setem- (enfim, há outros assuntos por resolver, ver
em forma de L, em que cada braço tem quatro bro de 2015: pouco depois de reativarem o pág. 50) da relatividade geral. O que está em
quilómetros de comprimento. No eixo do L (a observatório, após as obras de melhoramento, causa é muito mais profundo. A equipa do LIGO
junção dos braços), é disparado um feixe laser os cientistas descobriram um padrão de inter- demonstrou a operacionalidade de um novo
para cada lado. Os dois feixes percorrem os ferência no instrumento. Verificaram os dados instrumento para sondar o universo, que pode
braços (em 13 milionésimos de segundo), são e... bingo! Não só tinham a assinatura de algo levar-nos (sejamos otimistas) ao próprio
refletidos em espelhos e regressam à origem, nunca antes visto, como as medições se ajusta- momento do Big Bang.
onde são combinados, num processo conhe- vam perfeitamente às previsões que resultam De facto, há muito mais, e mais excitante.
cido como “interferometria”. da teoria de Einstein. Para todos os efeitos Quando pensamos em meios de compreender
Qual é o objetivo? As ondas gravitacionais práticos, o Nobel está a caminho. o universo, abrem-se duas vias: a teórica (Isaac
resultam diretamente da teoria da relativi- É um grande triunfo para a ciência. Trata-se Newton, Albert Einstein ou Stephen Hawking,
dade geral, apresentada por Einstein em 1915: da última grande previsão decorrente da teoria para referir apenas nomes mediáticos) e a prá-
corpos em movimento acelerado provocam de Einstein que ainda não tinha sido possível tica. Esta envolve olhar para fora da Terra. A
ondulações no espaço-tempo. Se os corpos confirmar. É também um grande triunfo da humanidade sempre o fez, e de forma especial
forem suficientemente grandes (os físicos engenharia (e do engenho humano, de uma a partir do momento em que compreendeu

4 SUPER
que o andamento dos astros no céu estava não. Por uma razão simples: só nessa altura a equilátero, separadas por um milhão de quiló-
ligado às migrações animais, primeiro, e, um “sopa primordial” se arranjou nos átomos (de metros. Será o maior instrumento científico (na
pouco depois, à época das sementeiras e das hidrogénio e hélio) que conhecemos. Final- realidade, a maior máquina) jamais construída
colheitas. mente, os fotões (a luz) puderam começar a pelo homem. Antes disso, foi despachada para
Galileu foi o primeiro a servir-se de um teles- circular sem serem imediatamente absorvidos. o espaço, em dezembro passado, a sonda
cópio rudimentar para observar os planetas. Para trás deste momento na história do uni- LISA Pathfinder, para testar e demonstrar
Edwin Hubble descobriu que grande parte das verso, é como se não houvesse luz: havia, mas a viabilidade do projeto. Vale a pena fazer um
“estrelas” do céu eram, afinal, outras galáxias o percurso de cada fotão era muito curto. Nada parêntesis para referir que tem a participação
(e que se afastavam de nós a uma velocidade poderemos ver por essa via, por melhores da empresa portuguesa LusoSpace, que con-
vertiginosa). A radiotelescopia permitiu exami- que sejam os nossos telescópios e qualquer que cebeu o laser de alta potência e estabilidade
nar o céu em comprimentos de onda comple- seja o comprimento de onda em que funcio- que será enviado pela nave-mãe para ser refle-
mentares, mas a atmosfera terrestre bloqueia nem. Pura e simplesmente, a luz não se pro- tido pelas naves-filhas.
a maior parte das radiações provenientes do pagava a grandes distâncias. Resultado: um Portanto, e abreviadamente, o que o Nobel
espaço. Surgiram os telescópios espaciais. A nevoeiro cósmico impenetrável. que certamente coroará o trabalho do LIGO vai
expansão do universo (aparentemente a ace- Quer dizer que essa fase inicial da vida do distinguir é algo de radicalmente novo: além
lerar, devido a uma misteriosa força a que, à universo nos escapará para sempre? Talvez de validar mais uma vez a teoria da relativi-
falta de melhor, chamamos “energia escura”) não. As ondas gravitacionais, para além de não dade geral de Einstein e reforçar a ideia da
faz desviar a luz enviada por corpos muito serem afetadas pela matéria, são independen- existência de buracos negros, coloca ao nosso
distantes (mais próximos da origem do uni- tes do que se passa com fotões e outras par- dispor uma nova forma de estudar o universo.
verso) para o vermelho e daí para zonas fora tículas elementares. O que a equipa do LIGO Sem dúvida, são belas notícias para quem
do espectro visível, como as micro-ondas. demonstrou é que temos ao nosso alcance procura compreender o que são a matéria e a
Colocámos em órbita telescópios capazes de meios para detetar essas ondas e começar a energia escuras, o maior enigma da física atual.
receber essa radiação. Resultado: obtivemos interpretar o que nos dizem. Encontrará mais informações sobre o assunto
uma fotografia de como seria o cosmos 380 Bom prelúdio para a missão eLISA, da Agência nesta edição, embora, agora, tenham ficado
mil anos depois do Big Bang. Espacial Europeia (ESA), que pretende colocar ligeiramente desatualizadas. De facto, o mundo
Seria legítimo pensar que, melhorando os na órbita solar, por volta de 2030, uma versão mudou com uma simples observação.
instrumentos, poderíamos ir mais longe, mas alargada do LIGO: três naves num triângulo C.M./P.A.

Interessante 5
Observatório

Europa
visita
Marte

S
e tudo correr como previsto, a ESA em outubro. Nesse momento, começarão a que possam ter origem biológica, como o
enviará para marte, em meados de funcionar os dois engenhos que compõem a metano. O orbitador estudará também pos-
março, a primeira das duas sondas missão: o orbitador Trace Gas Orbiter (TGO) síveis locais para fazer pousar o rover que
que integram a missão ExoMars, e o módulo de aterragem Schiaparelli, assim a ESA lançará em 2018, e que será a segunda
desenvolvida em colaboração com a agên- batizado em honra do astrónomo italiano parte da missão ExoMars. Pelo seu lado, o
cia espacial russa (FKA). Devido à posição Giovanni Schiaparelli, grande observador módulo Schiaparelli (na imagem, a separar-se
relativa privilegiada que ocupam este ano marciano do século XIX. O TGO ficará insta- do TGO) testará as tecnologias concebidas
a Terra e o planeta vermelho, a viagem lado numa órbita a 400 quilómetros acima para que o veículo pouse sem problemas,
durará apenas sete meses, pelo que a nave da superfície e realizará uma análise porme- como o radar de altimetria e o sistema de
deverá alcançar o nosso vizinho planetário norizada da atmosfera, em busca de gases travagem aerodinâmica.

ESA
Outro monstro

TOMOHARU OKA / KEIO UNIVERSITY


Uma nuvem de gás situada a 200 anos-luz do núcleo da galáxia poderá ocultar
um novo tipo de buraco negro de massa intermédia, o segundo maior da Via Láctea.

O centro da nossa galáxia está ocupado


por um gigantesco buraco negro,
quatro milhões de vezes mais massivo do
que o Sol, conhecido como Sagitário A*.
Agora, uma equipa de investigadores coor-
denada pelo astrofísico Tomoharu Oka, da
Universidade de Keiō (Japão), assegura ter
dado com o rasto de outro destes objetos,
que, na sua opinião, seria, além disso, o se-
gundo maior da Via Láctea. A confirmar-se
a sua existência, este buraco negro teria uma
massa equivalente à de cem mil sóis, isto é,
encontrar-se-ia entre os supermassivos, co-
mo o Sagitário A*, que ocupam o centro das
galáxias, e os estelares, que se formam após
o colapso de uma estrela de massa trinta ve-
zes superior à solar. Para encontrar o objeto
ainda sem nome, os cientistas utilizaram
os radiotelescópios Nobeyama, no Japão,
e ASTE, no Chile, e observaram a invulgar
velocidade de dispersão de uma nuvem
de gás próximo do centro da galáxia, que
sugere que uma imensa força gravitacional,
como a gerada por um buraco negro, estará
a acelerar as suas moléculas.

6 SUPER
Motor Raio X
Audi A4

Técnica vs. ética


A
Opel está a desenvolver um sistema Opel é uma das parceiras. O sistema usa uma
que evita acidentes, tomando conta câmara de vídeo frontal estéreo, mas a mono 3
da direção. Em situações em que o que equipa já hoje muitos modelos da marca
carro que segue à frente se desvia também serve, tal como o radar. Depois, é só
subitamente, deixando à vista um outro carro controlar os travões e a assistência elétrica da
parado ou a baixa velocidade, o sistema de tra- direção. O segredo está no algoritmo, que faz
vagem automática pode não ter tempo para tudo acontecer em milésimos de segundo. O
evitar a colisão. Nesse caso, entra em cena a sistema está pronto e funciona, mas há ainda
direção autónoma, que desvia o carro para a questões burocráticas, psicológicas e éticas a
faixa do lado, em dois golpes de volante, con-
secutivos (direita e esquerda), a uma veloci-
dade de rotação que nenhum ser humano seria
resolver. Enquanto a direção está a ser coman-
dada pelo sistema, passamos a ter um carro
autónomo, e isso ainda não é legal. Depois, há
A nova geração do Audi A4 chegou ao
mercado nacional com um conjunto
de novas tecnologias que o colocam no topo
capaz de imitar. Para garantir que, para evitar questões de outra ordem: o que deve o pro- do segmento das berlinas compactas de
um acidente, não se cria outro, as faixas de grama decidir quando o embate é inevitável prestígio. Vamos descobrir algumas delas.
rodagem adjacentes são monitorizadas, garan- mas a faixa à esquerda está ocupada por outro 1 – Carroçaria com a melhor aerodinâmica
tindo que não há carros em sentido contrário, carro? Bater na traseira do carro em frente ou da classe: a Audi anuncia um Cx de 0,23.
ou no mesmo sentido. Dependendo da velo- arriscar uma saída para a berma? E se o cenário 2 – Motor Diesel 2.0 TDI de 150 cavalos.
cidade e da distância, o sistema pode ficar-se se passar com um peão na estrada e outros em Em versão Ultra, emite apenas 99 gramas
apenas pela travagem de emergência, fazer a redor? Qual ou quais vão ser atingidos se o de dióxido de carbono por quilómetro e é o
manobra de fuga ou bater à menor velocidade atropelamento for inevitável? Ou, simples- mais procurado em Portugal.
possível no carro da frente. Este sistema utiliza mente, é lícito o carro mudar de faixa (porque 3 – Faróis com tecnologia de matriz LED,
um software específico, desenvolvido por um os cálculos do sistema dizem que é possível) disponíveis como opção e com máximos
estudante chinês do projeto UR:BAN, um pro- quando a manobra pode assustar outros con- automáticos, que iluminam sem encandear.
grama de pesquisa de inteligência artificial dutores e provocar-lhes acidentes? Muitas 4 – A utilização de um misto de aço de alta
aplicada à segurança rodoviária, parcialmente vezes, a tecnologia não termina nos enge- resistência e de alumínio permitiu descer
financiado pelo governo alemão e do qual a nheiros.

CARRO DO MÊS Renault Mégane 1.6 dCi GT Line


A nova geração do Renault Mégane che-
gou ao mercado nacional com muitas
novidades, a começar por uma nova plata-
gurações. Também passou a estar disponí-
vel um mostrador head-up display e a pos-
sibilidade de alterar a cor da luz ambiente e
forma, que partilha com outros modelos da do painel de instrumentos através da tecla
aliança Renault/Nissan. O estilo mudou Multi-Sense, que também altera a resposta
muito, alinhando-se com os mais recentes do acelerador e a assistência da direção, de
modelos da marca, tanto no que diz res- acordo com as preferências do condutor.
peito à imagem da frente, com assinatura Nem falta um modo Eco, para reduzir os
luminosa LED em forma de “C”, como aos consumos. Um dos bons avanços desta
flancos mais pronunciados. No interior, geração está na melhor posição de condu-
a estrutura e a organização do tablier e do ção, com a coluna de direção menos incli-
painel de instrumentos foram remodela- nada e novos bancos com excelente apoio
das, agora com a presença do monitor tátil lateral e massagem, em opção. O aumento
R-Link 2 que permite aceder aos principais de 28 milímetros na distância entre eixos
comandos de funções secundárias e confi- permitiu aumentar o espaço para passa-

8 SUPER
Opinião
4
Regulamentos
A indústria automóvel está subme-
tida a regulamentos, impostos
pelos vários países e instituições de
segurança rodoviária, cuja extensão
é difícil avaliar. Refiro apenas alguns,
6 começando pela condução autónoma,
um assunto que encanta os políticos e
faz os engenheiros gastar horas de tra-
8
5 balho. Resumidamente, trata-se de apli-
car aos automóveis o piloto automático
que os aviões têm há dezenas de anos.
O problema é que, por enquanto, as
leis que regem a circulação de veículos
nas estradas, algumas delas com origem
no início do século passado, dizem
que um automóvel só pode circular se
um condutor estiver ao seu comando.
Portanto, o piloto automático é ilegal.
Outro exemplo vem das seguradoras
7 de alguns países. Para reduzir o preço
das reparações nos toques em cidade, as
seguradoras “obrigam” os construtores
de automóveis a fazer prolongar os
para-choques de plástico para cima, de
forma a deixar o bordo anterior do capô
metálico o mais recuado possível. Mas
o peso da estrutura até um máximo de 120 8 – A disponibilidade de assistentes à há mais, muito mais. Por exemplo, os
quilos, dependendo do motor considerado. condução segura é muito alargada. Um dos espelhos retrovisores. A sua existência,
5 – Estreado no Audi TT, o cockpit virtual mais curiosos antecipa situações da estrada numa altura em que grande parte dos
substitui o painel de instrumentos convencio- e do trânsito, usando o sistema de nave- carros estão equipados com todo o tipo
nal por um monitor LCD de 12,3 polegadas, gação e câmaras, avisando o condutor da de câmaras de vídeo, só continua por-
com gráficos de alta definição e totalmente aproximação de rotundas e cruzamentos ou que as leis da estrada assim o obrigam.
configurável. aconselhando a fazer desvios, em caso de Mais: a sua dimensão, tão prejudicial à
6 – Novo sistema de infotainment com ligação trânsito congestionado. Além disso, inclui o aerodinâmica, segue dimensões míni-
à internet via LTE, hotspot Wi-Fi a bordo e auxílio à manutenção de faixa de rodagem, mas estabelecidas por leis que regem
novo interface para sistemas iOS e Android, cruise control adaptativo com função Stop a largura e outras a altura. Mais um
incluindo ainda prateleira de carga da bateria & Go, estacionamento automático, aviso exemplo? Em alguns países, continua a
do telemóvel por indução. de trânsito cruzado em saídas de parques ser obrigatório que as rodas possam ser
7 – Direção com rácio variável e amorte- sem visibilidade, travagem de emergência, equipadas com correntes de neve. Isto
cimento regulável, dois dos parâmetros iluminação de curva e sistema pre-sense, obriga a um determinado espaço entre
que podem ser ajustados pelo condutor no que prepara o carro para um embate, entre o pneu e a cava da roda, condicionando
comando Audi Drive Select. outros. o tamanho da roda, dos pneus e dos
travões. Isto sem entrar nos testes de
colisão, que muitos construtores usam
no marketing, mas que, por si só, estão
geiros nos lugares traseiros, e isso nota-se. Em termos longe de garantir a efetiva segurança.
dinâmicos, o novo Mégane ficou ainda mais eficaz, com À boca pequena, já ouvi especialistas
uma suspensão capaz de suportar bem mais do que os de algumas marcas dizerem que hoje
130 cavalos do 1.6 dCi que testámos. Este motor Diesel se fazem carros para passar nos testes
é já conhecido de outros modelos do grupo: permitindo de colisão, não necessariamente para
acelerar dos 0 aos 100 quilómetros por hora em dez ser mais seguros. A verdade é que há
segundos e atingir os 198 km/h, tem uma boa resposta regulamentos para tudo, no que aos
ao acelerador, mesmo a baixos regimes, e está bem iso- automóveis diz respeito, com coisas tão
lado, em termos acústicos. Os consumos anunciados são básicas como a obrigatoriedade de cada
de 4,7 litros aos 100 km, em cidade. De resto, esta nova carro ter faróis nos dois extremos da
geração tem disponível um completo conjunto de aju- frente, numa altura em que a tecnologia
das eletrónicas à condução segura, com destaque para de iluminação permitiria a sua coloca-
a travagem ativa de emergência, alerta de saída de faixa, ção em posições bem mais eficazes.
reconhecimento de sinais de trânsito, câmara de mar-
cha-atrás e outros. O preço desta versão GT Line é de FRANCISCO MOTA
29 850 euros, mas, com o motor 1.5 dCi de 90 cv e nível Diretor técnico do Auto Hoje
de equipamento Zen, o preço começa nos 23 200 euros.

Interessante 9
SUPER Portugueses

Um cérebro
real
É tempo, mais que tempo, de fazer justiça
a este rei tão caluniado. Em boa parte,
a Restauração de 1640 foi obra sua,
por muito que isso pese aos românticos.

S
ão já muitos os historiadores e inves- Esta frase traduz bem a menta­li­d ade do
tigadores que, lendo com atenção futuro rei. Tinha um enor­me bom senso e uma
os documentos existentes, resgata- enorme pru­dência, e, ainda, uma cabe­ça per­
ram a memória de D. João IV, oitavo feitamente fria – tanto que po­de­rá não nos ser
duque de Bra­gan­ça e primeiro rei da quarta simpático. Foi essa frieza que salvou muitas
di­nas­tia de Portugal. Porém, na ima­gi­na­ção si­tuações, antes e depois de ele su­bir ao trono.
romântica de alguns, e na ima­gem que pre- A relutância e a in­decisão que muitos leram na
valece na (aliás mui­to confusa) memória his- sua atitude perante os conjurados não eram
tórica dos portugueses contemporâneos, ele mais do que cautela e frie­za. D. João sabia-se
continua a ser uma triste figura, empurrado vigiado de mui­to perto pela corte de Madrid
por uma esposa va­ro­nil e corajosa, o cobarde e sabia que qualquer deslize seria fa­tal, não
que não queria arriscar-se a aceitar a co­roa a somente para si como pa­r a a causa portu-
que tinha direito e a lutar pe­la independência. guesa. Sabia ain­da que havia o risco perma­
Em parte, esta imagem foi criada por incom- nen­te de uma inconfidência ou de uma desis-
petência na consulta da documentação. Numa tência por parte dos con­jurados.
ou­tra parte, a imagem não é ino­cente: houve Estes receios não eram excessivos: três dias
um interesse ideo­lógico e político em denegrir, antes do ataque ao Pa­ço da Ribeira, a 28 de uma das principais fontes para a his­tó­ria da
tan­to quanto possível, a Casa de Bra­gança, novembro, ainda houve conjurados que per­ época –, que D. João con­sul­tou a duquesa
começando logo pelo pri­meiro rei da dinastia. deram o ânimo, por julgarem não haver meios depois de ter de­cla­ra­do aos representantes
Vamos aos factos, tanto quanto o espaço o suficientes para as­se­gurar o êxito, o que obri- dos con­ju­rados que aceitava a coroa.
permite. Que o rei Restaurador tinha defeitos gou João Pinto Ribeiro a enviar, a meio da Não foi por acaso, nem por pres­sões matri-
e cometeu erros, isso é evidente: fala-se aqui noite, um mensageiro a Vi­la Viçosa, pedindo ao moniais, que ele “ce­deu” à insistência dos
de D. João IV e não de São João IV. Esses erros duque de Bra­gança que não tomasse ini­cia­ti­vas. conjura­dos naquele ano de 1640. Em Por­tu­gal,
em nada se relacionam com o re­tra­to sombrio Segundo se lê na Res­tau­ração de Portugal Pro- o descontentamento com o domínio filipino
que dele se fez. Pa­ra tentarmos entender este digiosa, a resposta de D. João foi que “a sua vinha cres­cen­do havia já largos anos e ma­ni­fes­
mo­narca, será útil considerar um pe­queno vida, sendo necessário, havia de ser a primeira tara-se expressivamente nas cha­madas “alte-
episódio: em meados de novembro de 1640, que se desse pela liberdade da pátria”. O duque rações de Évora” (a “revolta do Manueli­nho”),
quando a cons­piração estava em marcha, o estava bem decidido e percebera que era mas o du­que de Bragança agira sem­pre como
du­que de Bragança chamou a Vila Viçosa, com tarde para recuar. elemento apazigua­d or. Sim­p lesmente, em
grande urgência, o seu agente e administrador 1640 a Catalu­nha revoltou-se; Espanha tinha
João Pin­to Ribeiro, que foi um dos princi­pais DISCRETO MAS ATIVO já muitos efetivos empenhados na Guerra dos
organizadores da Restaura­ção. Pinto Ribeiro Uma distorcida “tradição” ro­mân­tica colocou 30 anos; em Fran­ça, o cardeal de Richelieu, pri­
foi encontrar o seu amo tão decidido a avançar a decisão na pes­soa e na voz da duquesa de Bra­ meiro-ministro de Luís XIII, dis­punha-se a auxi-
com a revolta que estava disposto a mobilizar gan­ça, D. Luísa de Gusmão: “An­tes duas horas liar todos os ini­migos do governo de Madrid.
os povos do Alentejo ain­da que em Lisboa rainha que toda a vida duquesa”… Esta é uma Ou seja: chegara, finalmente, uma ocasião
os conjurados não agissem. Entusiasmado, o das muitas variantes. Na realidade, o duque propícia.
administrador do duque ajoe­lhou-se, tratou-o consultou a mulher, cu­ja opinião respeitava, e
de “majestade” e quis beijar-lhe a mão; porém, esta de­cla­rou o seu imediato apoio ao pro­jeto. JORNADA VITORIOSA
D. João esquivou-se e disse-lhe: “Não compre- Porém, é bem claro – por exem­plo, na História Sabemos que a escolha era acer­t ada. A
mos a couve primeiro que a carne”… de Portu­gal Res­tau­ra­do, do conde da Ericeira, jornada do 1.º de De­zem­bro foi uma vitória.

10 SUPER
D. JOÃO IV (1604–1656)

O paço ducal de Vila Viçosa. Aqui nasceu


D. João IV e aqui recebeu os conjurados.

Uma única batalha


D urante o reinado de D. João IV, a
única batalha importante con­tra
as forças espanholas foi a do Mon­ti­jo
(re­presentada na imagem, num painel
de azu­lejos). Isso não significa que não
hou­vesse outras operações mi­li­ta­res.
Aliás, o rei di­ri­giu pes­soal­mente a defesa
da fron­teira no Alen­tejo. No entanto, é
um facto que o maior recontro se deu na
pro­vín­cia de Badajoz, a 26 de maio de
1644. O exér­cito português, coman­da­do
por Ma­tias de Albuquerque, atra­vessou
a fronteira e tomou a pra­ça do Monti­jo,
após o que iniciou a mar­cha de re­gres­so,
mas sempre à espera de um ataque espa­
nhol, que aconteceu, sob o comando do
mar­quês de Tor­re­cu­sa. O desenlace foi
Porém, a Res­tauração não se fez somente no in­ten­so trabalho legislativo; além do Con­selho favorável a Ma­tias de Albuquer­que e a
primeiro dia de dezembro; aliás, o mais impor- de Guerra, D. João IV criou o Tribunal da Junta vitória veio dar grande ânimo aos por­
tante ficava ain­da por fazer. A situação era dos Três Estados, o Tribunal do Con­se­lho Ultra- tugueses, ao mesmo tem­po que causava
dra­mática: Portugal estava sem exér­cito e sem marino e a Companhia da Junta do Comércio. sur­pre­sa nas ca­pi­tais europeias. A partir
marinha, com as fi­nanças arruinadas e poucos Reformou a Secretaria de Estado, para a tor­nar de 1644, o governo de Ma­drid preferiu
alia­dos na Europa. É certo que Pa­ris apoiou a mais operacional. Reuniu cor­t es por cinco esperar que a nova di­nastia caísse, quer
revolução portugue­sa, mas Richelieu morreu vezes, e note-se que se vivia já na Europa em pela morte do rei (para o que contratou
em 1642 e o seu sucessor, Mazarin, mostrou-se ple­no absolutismo monárquico. Porém, o sobe- um as­sas­si­no, cuja missão se malogrou),
bem menos entusiasta: achava que os portu- rano entendia bem a gravi­da­de da situação quer por eventuais querelas internas. Isto
gueses deviam tomar a ofensiva. do reino, sabia que eram precisos muitos sacrifí­ por­que a Espanha tinha as suas me­lho­
D. João IV não tinha ilusões a esse respeito. cios e que todos os portugueses, de todos res tropas empenhadas na Guerra da
A guerra com a Es­pa­nha, inevitável, tinha de os estados, deviam ser en­volvidos nesse esforço Catalunha e na Guerra dos 30 Anos. Ora,
ser essencialmente de­fen­si­va. Logo após a sua e deviam, como tal, ser ouvidos. D. João IV apressou-se a ti­rar partido
aclama­ção so­lene, o rei preocupou-se com Porque não se fala mais deste rei e do seu dessa relativa “trégua”, que lhe permitiu
as ques­t ões prioritárias, que eram mui­t as: governo? Talvez por­que D. João IV preferiu a reorganizar o exército e procurar apoios
a defesa, em primeiro lu­g ar. Logo a 11 de eficiên­cia ao espetáculo, praticava uma es­trita no es­tran­geiro. A Guerra da Restaura­ção
dezembro, D. João criou o Conselho de economia e assumia um es­tilo discreto. Talvez só se rea­cen­deria depois da sua mor­te,
Guer­ra e depois interveio pessoalmente nas porque o seu génio frio e reservado não fala em 1659 (batalha das Li­nhas de Elvas),
operações que se desenrola­ram no Alentejo. à nossa imaginação. Um exem­plo des­sa frieza mas o monarca por­tuguês teve ainda
Também a di­plomacia era essencial, e a cam­ foi o modo im­placável co­mo fez punir a cons­ ou­tras guerras a gerir. Sobretudo, con­tra
pa­nha que lançou, lo­go em 1641, prolongar-se- pi­ra­ção que, lo­go em 1641, se for­mou para o os holan­de­ses, que tiveram im­portantes
-ia du­ran­te todo o seu reinado. Isto ainda não der­rubar e de­vol­ver o trono a Filipe IV. Dos ga­nhos no Oriente mas per­deram em
bastava: havia toda uma ad­m inistração a cons­pi­ra­dores, só escapou à pena de mor­te Angola e no Brasil.
reedi­ficar. Por is­so, este reinado conheceu um o arcebispo de Braga, D. Se­bas­tião de Matos

Interessante 11
SUPER Portugueses

de Noro­nha, que foi enviado sob pri­são pa­ra a apesar dos seus esforços, não con­seguiu liber-
Tor­re de Belém e mor­reria pou­co de­pois em S. tar o irmão, o in­fan­te D. Duarte, que, depois de
Julião da Bar­ra. Os res­tantes foram to­dos exe­ pres­tar brilhantes serviços ao im­pe­ra­dor ale-
cu­ta­dos, incluindo o mar­quês de Vila Real e o mão, foi preso por es­te, pa­ra agradar à Espa-
seu filho, o du­que de Ca­mi­nha. Este último nha, e veio a mor­rer em cativeiro. Outro gol­pe
re­cu­sara-se a par­ti­cipar na conju­ra, somente se mui­to rude foi a morte do prín­ci­pe her­deiro,
ca­lara para não com­prometer o pai. O rei sabia-o, D. Teodósio.
po­rém não lhe co­­mu­tou a pena. Era preciso Em momento algum o rei des­c urou a
dar um exemplo de se­ve­ri­dade e as­sim se fez. defesa e os interesses do reino. Não hesitou,
Mais inocente ainda estaria o se­cretário de mesmo, em pon­derar soluções impopulares:
Estado, Francisco de Lucena, que viria a ser a da­da altura, a situação era tão gra­ve que
vítima de intriguistas que o caluniaram, com chegou a considerar a hi­pó­tese de se retirar
êxito, acusando-o de conspirar contra o rei. A para os Aço­r es e aí reinar sobre o Brasil,
sua execução apon­ta um traço do caráter de en­quan­to no reino ficaria o prínci­pe D. Teodósio,
D. João IV: uma desconfiança doen­tia. Diga-se, que casaria com uma princesa francesa. Solu-
por outro la­do, que é um traço compreensí­vel. ção que, naturalmente, desagradava ao orgu-
Desde muito jovem, soube o que era ser vigiado lho nacional, mas D. João IV, já foi dito, era um
João Pinto Ribeiro foi um dos e espiado, já que, como foi dito, os Braganças pragmático e pen­sou que seria assim possível
organizadores do 1.º de Dezembro eram uma permanente fonte de preo­cupações fa­zer frente com mais eficácia à amea­ça espa-
e um precioso auxiliar de D. João IV. para Madrid. Antes da Restauração, e embora nhola. No entanto, es­te pragmatismo não obs-
Filipe IV o nomeasse governador das ar­mas tou a que ele sempre defendesse a dig­ni­dade
Os colaboradores de Portugal, estava proibido de re­sidir em Lisboa
e mesmo de en­trar na cidade, o que mostra bem
da coroa.
Se considerarmos, no seu todo, o reinado

O rei D. João IV teve, ao longo do


seu reina­do, o apoio de um gru­po
de personalidades notáveis. Se­rá justo
a delicadeza da sua posição pe­ran­te Madrid.
Depois, enquanto rei, ele, que era tão econó-
mico, não poupou gastos para comprar es­piões
do fundador da quarta di­nastia, teremos de
admitir que, his­toricamente, os portugueses
de­vem muito a D. João IV. Não ha­verá, naquele
que se mencione, em primei­ro lugar, na corte espanhola. Isto per­mitiu-lhe, muitas período, grandes mo­ti­vos heroicos (se bem
a sua mulher, D. Luísa de Gus­­mão, vezes, an­te­cipar as jogadas do governo es­pa­ que ha­ja muito a dizer sobre a atua­ção militar
espanhola, pertencente à gran­de ca­sa de nhol, mas também o terá levado a observar a portuguesa, tanto no rei­no como em África e
Medina Sidónia, mas que se revelou uma facilidade com que mui­ta e muito boa gente no Brasil), mas nem por isso a dívida é me­nos
excelente por­tu­guesa. O Dr. João Pinto se vendia. larga.
Ri­bei­ro, administrador dos bens da Casa Essa tendência para a descon­fian­ça não pre-
de Bra­gan­ça, teve uma ação deci­si­va para judicou, no entanto, uma prática que caracteri- COMPOSITOR E BIBLIÓFILO
o êxi­to da conspiração de 1640 e serviu zou a a­tuação do rei: ele era, por vezes, len­to a Enfim, é também justo reco­nhe­cer os méri-
depois o rei com a mes­ma lealdade e a tomar decisões porque, além de as ponderar, tos culturais deste rei. Um dos seus mestres,
mesma inteli­gên­­cia. Quanto ao padre costumava ou­vir a opinião dos seus conse­lhei­ o Dr. Je­ró­nimo Soares, deu-lhe uma ex­ce­lente
António Vieira, foi, co­mo se sabe, um ros, ou, mesmo, a opinião dos três estados, instrução em teolo­gia e le­tras clássicas. Em
homem da confiança de D. João IV, como demonstra a realização de cortes por música, estudou com o inglês Robert Tornar,
embora não tenha sido muito feliz nas cinco ve­zes. Depois, tomada a decisão, man­ mes­tre de capela em Vila Viçosa, e com o con-
suas mis­sões diplomáticas. Neste campo tinha-a com firmeza. trapontista (e exce­len­te compositor) João
da diplomacia, des­ta­caram-se, en­tre Lourenço Re­belo, que, além de seu professor,
outros, D. Vasco Luís da Gama, conde LARGA DÍVIDA foi também seu amigo. Sabe-se que D. João IV
da Vidigueira, Fran­cisco de Sousa Cou­ Uma coisa é certa: tendo em con­ta a situa- compôs música sa­cra, mas dela pouco ou nada
tinho, António de Sousa de Macedo e D. ção crítica em que o país se encontrava quando so­bre­viveu, e há ainda dúvidas quanto aos
Antão de Almada, um dos conjurados de D. João IV foi aclamado, muito pou­cos seriam dois motetes que lhe são atribuídos. Não só
1640, em cujo palácio lisboeta (hoje cha­ os homens capazes de fa­zer o que ele fez. compôs mú­si­ca como escreveu sobre mú­si­ca,
mado da Independência) se efe­tuaram Não colhe ar­g u­m entar que não o fez sozi- e formou uma magnífica bi­blio­teca a partir
algumas das reuniões. Haveria muitos nho; ne­nhum governante, nem mesmo um daquela que lhe dei­xara o avô. Infelizmente,
mais para citar, pois a guerra diplomática ditador (que ele não foi), go­verna e sobrevive estava instalada no Paço da Ribeira, em
que Portugal travou no tempo de D. João sem colabora­do­res. No entanto, ele assumiu Lisboa, e desapareceu durante o terramoto
IV e no reinado seguinte não foi menos direta­men­te a orientação política, di­plo­mática de 1755.
im­portante nem menos renhida do que e militar. No final do seu reinado de quinze Não há, portanto, grandes ves­tí­gios da ativi-
a guerra militar. Neste setor, desta­cou-se anos, fora pos­sível expulsar os holandeses do dade cultural de D. João IV. É pena, claro, mas,
Matias de Albuquerque, o ven­cedor do Brasil e de Angola, fazer frente aos espanhóis, ten­do em conta o seu perfil e a épo­ca histórica
Montijo, que o rei fez con­de de Alegrete. encetar a recons­tru­ção da economia, conse- em que viveu, não é es­sen­cial. A sua dedicação
Note-se que a Guer­ra da Restauração guir o re­co­nhecimento diplomático das prin- ao rei­no e a ação que desenvolveu em con­di­
levaria à ri­bal­ta outros grandes chefes cipais potências. ções extremamente des­fa­vo­rá­veis bastam
mili­ta­res, como o primeiro marquês de Isto foi obtido com poucos ras­gos heroicos para o con­sa­grar co­mo um superpor­tu­guês.
Marial­va e D. Sancho Manuel, que se (no Brasil e em An­go­la, sobretudo) e com muita
des­ta­cariam durante o reinado de D. pa­ciên­cia, muita tenacidade, uma vi­são fria JOÃO AGUIAR
Afonso VI. e realista, e também com grandes sacrifícios Este artigo foi publicado originalmente
e alguns des­gos­tos, que não pouparam o rei: na SUPER 125. João Aguiar faleceu em 2010.

12 SUPER
HISTÓRIA
| ANTIGO EGITO |
AS NOVIDADES E O QUE FALTA DESCOBRIR

PROCURE NUMA BANCA PERTO DE SI


Se quiser recebê-la pelo correio, fale com a Sara Tomás:
assinaturas@motorpress.pt ou ligue para 214 154 550

Interessante 13
Histórias do Tejo

A Nossa Senhora dos Mártires pertencia ao topo de gama da construção naval do iníco do

T
século XVII. O objetivo era ir à Índia e voltar com um carregamento de pimenta, o ouro negro.
arde de 15 de setembro de 1606. Ao

A única
passar pela nau Salvação, encalhada
há dois dias nas areias da baía de Cas‑
cais, os passageiros e a tripulação da
Nossa Senhora dos Mártires lamentaram o seu
final inglório. Horas depois, quando o navio
descontrolado se aproximava das rochas

viagem
assassinas do Forte de São Julião da Barra,
rezavam a Deus para ter o mesmo destino
misericordioso. Duzentas pessoas rezaram
em vão.
Ano e meio antes, a Nossa Senhora dos Már-
tires acabara de sair dos estaleiros da Ribeira
de Lisboa e preparava‑se para o batismo mais
nobre que um navio do início do século XVII
podia ter: uma viagem à Índia. A embarcação
No início do século XVII, a nau Nossa Senhora era o topo de gama do seu género. Com mais
de 30 metros de comprimento, 13 de largura e
dos Mártires, carregada com pimenta da Índia, dezenas de canhões, a nau era capaz de trans‑
desfez‑se contra as rochas na barra do Tejo. portar cargas de 300 toneladas. A importância
do tamanho do porão era proporcional ao da
O povo foi a correr apanhar a pimenta que travessia: com mais de um ano a separar a par‑
tida do regresso, compensava usar grandes
cobriu de negro a costa e as margens do rio, navios, para trazer a maior quantidade possível
de especiarias de uma só vez. O que se perdia em
enquanto duzentas pessoas se afogavam. velocidade e agilidade ganhava‑se em músculo.

14 SUPER
Naquele 27 de março de 1605, no entanto, a lugar da forma mais comum na época: com Daí seguiram para Cochim, onde uma imensa
imponente embarcação era apenas mais uma, uma cunha, por graça do seu sangue azulado. carga de pimenta as esperava.
no meio da armada real fundeada no Tejo. Manuel Barreto Rolim era filho de Jorge Bar‑ Havia uma grande pressão para carregar
reto, comendador da Azambuja, e de D. Leo‑ cada navio até ao limite, ou para lá do limite.
MARINHEIROS DE ÁGUA DOCE nor de Moura Rolim, que não aceitaram o seu Assim se aumentavam os lucros e se fazia boa
Ao todo, cinco navios aprontavam‑se para casamento com D. Catarina de Eça. Deserdado, figura junto do rei. Porém, ambição em dema‑
largar as amarras, navegar para o outro lado Manuel teve de fazer pela vida, e a Carreira das sia, como se sabe, costuma dar mau resultado.
do mundo e voltar para a capital carregados Índias era a solução mais lucrativa da altura. Além de as embarcações regressarem a Lisboa
de valiosas especiarias (que valiam o seu Pouco importava que os seus conhecimentos quase sempre sobrecarregadas, o peso tam‑
peso em ouro pela Europa fora), porcelanas de navegação fossem mínimos. Era, aliás, bas‑ bém era mal distribuído, desequilibrando as
e outros tesouros asiáticos. Guiados pela nau tante comum marinheiros de água doce como naus e dificultando a navegação.
Nossa Senhora de Betancor, do experiente ele acabarem a capitanear imponentes navios. A Nossa Senhora dos Mártires largou de
Brás Telles de Menezes, líder da expedição, Com maus resultados, muitas vezes. Cochim a 16 de janeiro de 1606, na compa‑
seguiam ainda a Nossa Senhora da Salvação, a Independentemente dos capitães, a saída nhia da Nossa Senhora da Salvação. O resto da
Nossa Senhora da Conceição e a Nossa Senhora para a Índia de uma armada pertencente ao armada saíra 18 dias antes, ainda em dezembro,
da Oliveira. Duas semanas antes, tinha partido reino era um momento especial na vida de como mandavam as regras. Partidas tardias cos‑
outra armada, que levava a bordo Marim Afonso Lisboa, com milhares de pessoas a encher tumavam resultar em viagens problemáticas,
de Castro para substituir Aires de Saldanha as margens do Tejo para se despedirem dos com correntes e ventos adversos. A razão do
como vice‑rei da Índia: Filipe II queria no posto marinheiros. Foi nesse ambiente entre a festa atraso destes dois navios perdeu‑se no tempo.
um governante mais bélico, para enfrentar e a melancolia que os cinco navios zarparam A bordo, o navio de Manuel Rolim levava
os holandeses nos mares de Malaca, na atual de Belém. Aires de Saldanha, 17.º vice‑rei da Índia, que
Malásia (com a união dos dois reinos da penín‑ terminara a comissão de serviço. Outra figura
sula Ibérica, Portugal herdara os inúmeros PARA LÁ DOS LIMITES de relevo era o padre jesuíta Francisco Rodri‑
conflitos espanhóis). A viagem correu sem mácula. A 28 de gues, que regressava a Portugal após mais de
Aos lemes da Nossa Senhora dos Mártires, setembro, seis meses e um dia após a partida, 20 anos a espalhar a letra da Bíblia no Extremo
ia um comandante que ganhara o prestigiado as cinco naus atracaram no porto de Goa. Oriente. O missionário fazia‑se acompanhar

Interessante 15
Histórias do Tejo

por um jovem japonês, convertido ao cris‑


tianismo e rebatizado de Miguel. A tripular o
barco iam 60 marinheiros e 70 grumetes, um
sacerdote e outros homens especializados
(como um barbeiro, que servia igualmente de
cirurgião quando a ocasião exigia outra fina‑
lidade às suas lâminas). Embora o seu obje‑
tivo fosse o transporte de mercadorias, a nau
deveria ainda levar algumas dezenas de pas‑
sageiros, entre legítimos e clandestinos, e 40
soldados, para o caso de se cruzar com piratas
ou corsários.

TEMPORAL IMPREVISTO
Os meses seguintes foram relativamente
tranquilos, descontando a saúde de Aires de
Saldanha, a definhar ao longo da travessia.
A 18 de junho, dias antes da atracagem na
baía de Angra do Heroísmo, na ilha Terceira,
o ex‑vice‑rei morreu. A nobreza que lhe corria
nas veias e, sobretudo, o facto de os Açores
estarem perto salvou‑o de ser lançado ao mar:
nenhum navio se podia dar ao luxo de ter um
corpo a apodrecer a bordo. Aires de Saldanha
seria convenientemente sepultado na catedral
da cidade. A sua fortuna continuaria o cami‑
nho sem ele.
As duas naus irmãs aventuraram‑se pelo
último percurso em julho. Durante as 850
milhas náuticas que separavam (e ainda sepa‑
ram) a Terceira da capital portuguesa, a Salva-
ção adiantou‑se. Aproximou‑se de Cascais no
dia 12 de setembro.
Não foi um bom momento para chegar. O
vento batia forte de sul, empurrando insis‑
tentemente o navio para a costa. Uma galera
tentou rebocar o navio e falhou. Aos poucos, não avançar pelo estuário do Tejo adentro, condições era suicídio. A sua opção fê‑lo perder
a Salvação perdia as forças e a batalha contra a onde encontraria águas mais calmas. D. João de o navio. No dia seguinte, a embarcação fica‑
natureza. Ainda assim, o comandante preferiu Menezes sabia que passar a barra naquelas ria presa nas areias em frente à vila, mas pelo

Resgatada
E m 1994, os vestígios da Nossa Senhora
dos Mártires foram encontrados no
fundo das águas por uma equipa de arqueó‑
logos. Descobriu‑se o casco (um pedaço
de madeira de 12 metros por sete), vários
canhões, astrolábios, pratos chineses e ainda
uma boa quantidade das especiarias que
deram o nome à tragédia daquele dia 15 de
setembro de 1606: o Naufrágio da Pimenta.
Os arqueólogos subaquáticos, liderados por
Francisco Alves (ex‑diretor do Centro Na‑
cional de Arqueologia Náutica e Subaquáti‑
ca), tiveram de usar uma máquina sugadora,
com collants de senhora a servir de filtro,
para recuperar os grãos de pimenta que ain‑
da se encontravam espalhados entre o lodo,
praticamente 400 anos após o naufrágio.

16 SUPER
Este artigo é
uma adaptação
de um dos
capítulos do livro
Histórias do Tejo,
de Luís Ribeiro
(A Esfera dos
Livros, 2013)
http://bit.ly/1hrY8Zc

Quando encontraram os vestígios da Nossa


Senhora dos Mártires, junto ao Forte de São
Julião da Barra, os arqueólogos subaquáticos
verificaram que ainda havia grãos de pimenta
espalhados no lodo.

algum tempo. Perdido num país estranho,


fez‑se ao mar na primeira oportunidade.
Nunca voltaria a ver as ilhas nipónicas: morre‑
ria pouco antes de lá chegar, em Macau, qua‑
tro anos mais tarde.

SOBREVIVENTES
Quem se salvou para viver os anos dourados
foi Cristóvão de Abreu, um modesto grumete,
que havia feito a sua primeira viagem na Nossa
Senhora dos Mártires. O marujo não ganhou
medo ao mar. Continuou a fazer carreira
na Rota das Índias, subiu na vida e chegou
a mestre (o homem que tem a seu cargo as
manobras do navio e a quem os marinheiros
menos quase toda a gente foi resgatada. A 15 Na margem, milhares de pessoas que respondem diretamente). Morreria 41 anos
de setembro, uma sexta‑feira, a Nossa Senhora tinham vindo esperar os seus familiares assis‑ mais tarde, com uma vida de trabalho honrosa
dos Mártires deparou com o mesmo temporal. tiram, horrorizadas, à tragédia. Alguns pesca‑ quanto baste para que a viúva tivesse direito
Manuel Rolim, vendo o destino da Salvação, dores apressaram‑se a recolher sobreviventes. a uma pensão decente pelos seus serviços à
tomou uma decisão mais audaz do que o seu No final, contaram‑se duzentas vidas perdidas causa real.
colega. A audácia sair‑lhe‑ia cara. às portas do Tejo. Durante os dias seguintes, Outro dos sobreviventes do desastre, con‑
dezenas de corpos deram a terra. tra todos os lirismos marítimos, foi o coman‑
MANOBRA ARRISCADA Horas após o naufrágio, a linha de costa dante. O responsável pelo naufrágio, no
O comandante optou por entrar no rio, entre Lisboa e Cascais enegreceu. Trezentas entanto, não se despenhou em desgraça. A 9
mesmo com perigosos ventos laterais e a maré toneladas de pimenta invadiram as margens do de fevereiro de 1609, voltaria a comandar um
a vazar. Com dois oceanos conquistados sem Tejo e as praias. A população ribeirinha, mise‑ navio, empossado pelo próprio Filipe II. “Pela
soluços, não passou pela cabeça de Manuel rável e desesperada, depressa se esqueceu confiança que ponho em Manuel Barreto
Rolim que a barra do Tejo fosse grande adver‑ dos mortos e acorreu à costa para recolher Rolim, nobre da minha casa, e pela experiência
sário. A soberba e a pressa em fugir da tempes‑ o valioso ouro negro da época. A guarda real que tem em navegação, vejo por bem encar‑
tade, aliadas à sua ingenuidade naval, foram multiplicou os esforços e a violência para ten‑ regá‑lo da capitania da nau Nossa Senhora de
fatais: ao passar a praia de Carcavelos, a Nossa tar evitar o saque, mas a maior parte das espe‑ Guadalupe, que é uma das que este ano viaja‑
Senhora dos Mártires foi sendo empurrada, ciarias acabou nas mãos do povo. rão até à Índia”, mandava o documento real.
lenta mas inexoravelmente, em direção às Acabava assim em tragédia a viagem inau‑ O regresso de Manuel Rolim ao mar não
rochas do Forte de São Julião da Barra. gural da Nossa Senhora dos Mártires. No fundo durou muito. Morreu ao largo do cabo da Boa
Soltou‑se o pavor a bordo. Nada havia a fazer. das águas, junto ao forte, ficariam os restos Esperança, logo na viagem de ida, ironica‑
A nau esmagou‑se contra as pedras e desfez‑se da nau, porcelanas chinesas e outros tesouros mente, de doença. A Nossa Senhora de Guada-
em milhares de pedaços. Passageiros e tripu‑ que vinham a bordo, incluindo os pertences de lupe, entretanto, perdeu o leme e foi obrigada
lantes caíram à água, o que naquele tempo era Aires de Saldanha. a aportar em Angola e a regressar a Portugal,
morte quase certa: pouca gente sabia nadar, e O padre Francisco Rodrigues foi uma das como se uma maldição da Nossa Senhora dos
entre os marinheiros, a maioria recrutada no vítimas do naufrágio. Miguel, o seu aprendiz Mártires perseguisse os sobreviventes do seu
interior do país, ainda menos. japonês, sobreviveu‑lhe, pelo menos durante naufrágio, até depois de mortos.

Interessante 17
Caçadores de Estrelas

Equinócio,
Lua
e Páscoa
É
tido como certo que a escolha de datas
próximas de Lua Cheia para a realiza-
ção de rituais pagãos ou religiosos,
ao longo dos tempos, terá resultado
da necessidade de aproveitar o luar quer para
as deslocações noturnas quer para manter
alguma iluminação nos locais em que decor-
riam os cultos. Tal tradição, por ocasião da pas-
sagem do inverno para a primavera, terá fixado
festividades, representando para uns simples
festejos associados ao findar de um período
frio e pouco produtivo a que se seguia o res-
surgimento de condições naturais propícias
ao crescimento de cereais e plantas que cons-
tituiriam o indispensável sustento, e para
outros o momento de agradecerem aos seus
deuses a vida que lhes permitia contemplar a
repetição de um ciclo da natureza e orar para
que o ano seguinte lhes trouxesse felicidade
e abundância.
A “passagem” – que alguns investigadores
associam à sucessão do inverno pela primavera
ou à libertação (Pessach) de Israel do regime
escravo do Egito, ou ainda, mais recentemente,
à morte e ressurreição de Cristo – estabeleceu-se
também intimamente ligada à Lua Cheia. Em
todos os casos, a relação com o início da prima-
vera é evidente, ocasião em que o calendário Ícone da igrja ortodoxa representando o primeiro Concílio de Niceia, realizado no ano 325.
hebreu fixou o seu primeiro mês (Nisan) e que
foi também o primeiro mês do ano (março) para
os romanos, até 713 a.C., data em que Numa que atinge esta idade a 21 de março ou imedia- diferentes, sendo certo que as extremas (22 de
Pompílio fez entrar em vigor um calendário de tamente a seguir. março e 25 de abril) são as menos prováveis.
inspiração lunar. Tal decisão, embora tivesse a intenção de O assunto voltou a ser abordado, em 1997,
Nas igrejas cristãs, a celebração da Páscoa conduzir a uma uniformização em toda a igreja, no Conselho Mundial das Igrejas realizado em
gerou, inicialmente, alguma controvérsia: em qualquer região geográfica do mundo, Alepo (Síria), tendo então sido admitido que “a
enquanto uns preferiam uma data certa arrastaria consigo uma característica ainda data da Páscoa passaria a coincidir com o pri-
(mesmo que fosse dia de semana), outros hoje bem conhecida – a data variável da Páscoa meiro domingo após a Lua Cheia astronómica
optavam pelo domingo seguinte a essa data e, com isso, outros momentos com ela relacio- posterior ao equinócio de março”.
e outros ainda – com o objetivo de conformar nados, como o Carnaval – e a particularidade A “Lua Cheia da Páscoa” deste ano de 2016
a ocasião com hábitos anteriores, de judeus de a definição da data, embora muito ligada ocorrerá no dia 23 de março, pelo que o
convertidos – faziam coincidir as celebrações às fases da Lua, ficar sujeita a ocorrências de domingo seguinte (27 de março) será “domingo
com a data da Pessach. incompatibilidades entre o calendário eclesiás- de Páscoa”, circunstância consideravelmente
Depois de três séculos de conflitos, no ano tico e o astronómico, pois o décimo quarto dia diferente do que acontecerá no próximo ano.
de 325, na cidade de Niceia (atual Izniq, na após a Lua Nova pode não corresponder, exa- A primeira Lua Cheia a seguir ao equinócio de
Turquia) reuniu-se um concílio de bispos que, tamente, à fase de Lua Cheia, e o equinócio março de 2017 verificar-se-á a 11 de abril e, con-
para além de outros assuntos da igreja cristã, ocorre mais vezes a 20 do que a 21 de março. sequentemente, a Páscoa será comemorada no
tratou a questão da data da Páscoa, tendo Assim, esta lei impõe uma data da Páscoa a domingo seguinte, 16 de abril.
estabelecido a regra de que a Páscoa é no vagabundear entre 22 de março e 25 de abril, ou MÁXIMO FERREIRA
domingo seguinte ao décimo quarto dia da Lua seja, a poder coincidir com trinta e cinco datas Diretor do Centro Ciência Viva de Constância

18 SUPER
A Nebulosa do Caranguejo (M1).
O céu de março
J úpiter já faz parte do céu observável ao
princípio das noites do mês de março
deste ano e é muito frequente ouvir-se
fino crescente projetado sobre estrelas da
constelação dos Peixes.
Depois, prosseguirá o seu atraso em
Touro e onde Lord Ross, em 1844, viu
filamentos que comparou com as “pernas
de um caranguejo”, Messier atribuiu o
dizer que “é mais bonito do que Saturno”, relação às estrelas, surgindo em cada número 1 do seu catálogo, razão por que
dado que este, excetuando a “novida- noite um pouco mais à esquerda, sempre é conhecida como M1. Na véspera do iní-
de” de se mostrar com uma espécie de nas proximidades da eclíptica, linha cio da primavera, a Lua estará um pouco
“chapéu” (Galileu afirmou que, pelos imaginária no céu que corresponde ao à esquerda de outro enxame, o M44, que,
seus telescópios, pareciam orelhas), não plano da órbita da Terra e que no mapa em ambientes de céu escuro, os olhos
apresenta tantos pormenores e variações das páginas seguintes se representa a podem alcançar e corresponde ao objeto
de aspeto como Júpiter. De facto, o maior tracejado. No dia 13, a Lua passará a celeste já referido em registos anteriores
dos planetas do Sistema Solar evidencia – sul do enxame das Plêiades (M45) e o ao início da nossa era, não se sabendo
mesmo através de um telescópio não mui- seu brilho é já suficiente para ofuscar quem ali imaginou um Presépio ou uma
to grande – como que faixas irregulares aquele grupo de estrelas (popularmente Colmeia, designações que ainda hoje se
mais visíveis na região equatorial e, talvez designado por “sete estrelo”), embora lhe atribuem. Depois do aparecimento do
mais interessante do que isso, as suas qua- ainda seja possível ver as mais brilhantes, telescópio, tornou-se possível perceber
tro luas facilmente observáveis não param apesar de ligeiramente “apagadas”. Dois que a “pequena nuvem” (como lhe cha-
de alterar as posições relativas, simulando dias depois (15 de março), será Quarto mou Hiparco, em 130 a.C.) é constituída
uma espécie de bailado cósmico. Crescente e a Lua projetar-se-á (ainda por centenas de estrelas, das quais Galileu
Por o seu deslocamento pela esfera celes- na constelação do Touro) praticamente terá contado 36.
te ser extraordinariamente lento, todos na direção em que se encontra uma ne- O céu visível a norte mostra a Ursa Maior
os meses Júpiter é ultrapassado pela Lua, bulosa que o astrónomo francês Charles bem alta, logo ao princípio das noites, ao
acontecimento que ocorrerá no dia 21, Messier observou em 1758 e o motivou a passo que a Cassiopeia vai surgindo cada
segundo dia de primavera. Antes disso, elaborar o seu famoso catálogo de man- vez mais perto do horizonte, a noroeste.
já o nosso satélite natural terá percorrido chas que via no céu e que, aos poucos, se Agora como sempre, o céu é visto como
quase todo o céu, tendo surgido no dia foi confirmando englobarem nebulosas, rodando em torno de um ponto “fixo” – o
11 (com a idade de dois dias, ou seja, enxames de estrelas e galáxias. À referida polo – marcado pela Estrela Polar, que
dois dias depois de Lua Nova), como um nebulosa, situada na constelação do “não se move”.

Interessante 19
Mapa do Céu
Como usar
Vire-se para sul e coloque a revista sobre
a cabeça, de modo que a seta fique apon­ta­da
para norte. Se se voltar em qual­quer das outras
direções (norte, este, oeste), pode ro­dar
a revista, de modo a facilitar a leitura, desde
que mantenha a seta apontada para norte.
Os planetas e a Lua estarão sempre perto
da eclíptica. O céu representado no mapa
(no que se refere às estrelas) corresponde
às 20h do dia 5. A alteração que se verifica
ao longo do mês, à mesma hora, não é muito
importante. No entanto, com o decorrer
da noite, as estrelas mais a oeste
irão mergulhando no horizonte,
enquanto do lado este vão surgindo
outras, inicialmente não visíveis.

As fases da Lua
Quarto Minguante Dia 1 às 23h11
Lua Nova Dia 9 às 01h54
Quarto Crescente Dia 15 às 17h03
Lua Cheia Dia 23 às 12h01
Quarto Minguante Dia 31 às 15h17

20 SUPER
NORTE

Interessante 21
Sociedade Digital

Aaron Sartz,
herói digital
Fez no passado dia 11 de janeiro três anos
que Aaron Swartz, então com 26 anos, pôs fim
à própria vida no seu apartamento de Brooklyn,
Nova Iorque. Nesse dia, o programador,
hacker, ativista e empreendedor brilhante
converteu-se naquele que é provavelmente
o primeiro herói da revolução digital.

Q
uando se fala de heróis (ou vilões, sos à frente dos outros jovens da sua idade em
conforme o ponto de vista) da era termos de percurso académico. Na verdade,
da internet, os nomes que ime- quando olhamos para o percurso de vida do
diatamente vêm à baila são os de jovem Swartz, é impossível não notar o para-
Julian Assange ou Eduard Snowden. Ambos lelo com muitos outros jovens que hoje dão
lutaram, à sua maneira, para proteger os cida- cartas nas novas empresas de Silicon Valley.
dãos do poder abusivo dos estados nesta era A diferença, em Swartz, foi que em determi-
de abundância dos mecanismos de vigilância nado momento as suas preocupações políticas
e controlo digital, mas nenhum deles deriva e sociais sobrepuseram-se ao seu empreende-
o seu “heroísmo” daquela que é a essência dorismo e ele tornou-se o ativista que hoje
da revolução digital em curso: a liberdade de conhecemos. Esteve ligado à fundação do
produção e distribuição de informação. Aaron site Reddit, criou a primeira geração do RSS,
Swartz é o primeiro mártir dessa revolução, e desenvolveu as licenças Creative Commons e
provavelmente o seu primeiro grande herói. iniciou o movimento que levou à derrota dos A LIBERDADE DE INFORMAÇÃO
Dois livros editados recentemente ajudam a projetos SOPA e PIPA, que pretendiam com- Por detrás da luta de Aaron Swartz estava
explicar porquê. Um deles – The Boy Who Could partimentar e regular a livre circulação da obviamente a confrontação entre dois mundos
Change the World: The Writings of Aaron Swartz informação na internet. muito diferentes: de um lado, as instituições
– reúne as ideias expressas em vários locais e Uma das coisas que irritava particularmente que continuam a regular e controlar os fluxos
circunstâncias pelo próprio Swartz. O outro Aaron Swartz era o facto de os trabalhos aca- de informação na sociedade (as editoras e os
– The Idealist: Aaron Swartz and the Rise of démicos, cujo valor social e científico é obvia- direitos de autor, por exemplo); do outro, os
Free Culture on the Internet – é uma biografia, mente inestimável, serem mantidos atrás de efeitos desreguladores que as tecnologias de
assinada por Justin Peters, que tem a vantagem uma barreira de copyright que ele considerava informação e comunicação digitais têm sobre
de explicar em pormenor e do ponto de vista antiquada e anquilosada. Foi esse sentimento essas instituições. Para perceber a fundo a
teórico qual a essência e a razão de ser do ati- de injustiça que o levou à cave do MIT para, questão, precisamos olhar para as caracterís-
vismo de Aaron Swartz. O documentário The usando as suas credenciais académicas, des- ticas especiais da informação e para o efeito
Internet’s Own Boy: The Story of Aaron Swartz, carregar milhares de trabalhos da base de que as tecnologias digitais têm sobre elas.
realizado por Brian Knappenberger em 2014 dados do JStor. Parece claro que o seu objetivo Em primeiro lugar, a informação é, ao contrá-
(e disponível no YouTube, naturalmente) ouve não era vender esses documentos nem realizar rio dos outros, um produto “não rival”, o que
familiares, amigos e especialistas para obter o lucro com eles, mas somente colocá-los ao dispor significa que a utilização de uma informação por
mesmo ponto de equilíbrio entre o lado pes- do público em geral (o que aliás tinha sido parte de alguém não impede que outra pessoa
soal de Aaron Swartz e a sua militância política muito antes expresso num manifesto). No a use também. Em segundo lugar, é “não exclu-
e social. Vale a pena ver! entanto, foi isso que levou à acusação de siva”, o que significa que, uma vez que alguém
obtenção ilegal de documentos, entre outras, tenha uma informação, é muito difícil evitar
QUEM ERA AARON SWARTZ? com penas que, no conjunto, podiam ir até que outras pessoas não a tenham também.
Aaron Swartz era o protótipo do menino- aos 35 anos de prisão e um milhão de dólares Por outro lado, a informação é aquilo de que
-prodígio da era da internet. Programador e em multas. Ou seja, a justiça norte-americana são feitas as nossas relações sociais. É através
hacker, desde cedo revelou uma curiosidade queria fazer de Aaron Swartz um exemplo e de trocas de informação que nós coordenamos
insaciável pelos temas da tecnologia e da pro- foi a perspetiva de isso vir a acontecer que ele as nossas ações sociais, sejam elas pessoais
gramação, andando sempre um ou dois pas- não aguentou. ou profissionais, económicas ou não econó-

22 SUPER
Opinião

A informação
quer ser livre
N os estudos sobre informação na
era digital, esta frase surge mui-
tas vezes como um chavão libertário:
“Information wants to be free”. Origi-
nalmente, a frase foi proferida por Ste-
wart Brand, fundador do Whole Earth
Catalog, numa conferência realizada
em 1984, e era ligeiramente mais lon-
ga: “Por um lado, a informação quer
ser cara, porque tem muito valor. A
informação certa no momento certo
pode mudar a nossa vida. Por outro
lado, a informação quer ser livre,
porque o custo de a obter está a ficar
cada vez mais baixo. É por isso que
temos estas duas ideias a lutarem uma
com a outra.” A frase capta a essência
do que está em causa. Por um lado,
o “valor” da informação levou a que,
historicamente, fossem desenvolvidas
instituições e procedimentos sociais
tendentes à captura desse valor, como
o copyright, por exemplo. Porém, as
tecnologias digitais reduzem dramati-
camente os custos de obter, produzir
e disseminar informação e põem em
causa essas regras sociais (e económi-
cas) de captura e incorporação do va-
lor da informação. Ou seja, a desma-
terialização da informação acaba por
sublimar aquelas que são, em termos
abstratos, as suas características dis-
Aaron Swartz foi um lutador pela liberdade de tintivas, nomeadamente o facto de ser
informação, por uma internet livre e aberta. não rival e não exclusiva e de o respe-
micas. Ora, o que a teoria de redes nos diz é Perdeu a vida, mas ganhou a causa. tivo uso aumentar o seu valor em vez
que quanto mais extenso for o alcance de uma de o diminuir, entre outras. Foi isso
rede maior a quantidade e a qualidade de recur- mação (analógica) viajava em suportes físicos que Aaron Swartz percebeu imediata-
sos que cada indivíduo pode mobilizar nessa (um papel, uma fita magnética, um vinil). O mente quando citou Jefferson, um dos
rede. Dito de outro modo, quanto mais extensa copyright era então, o direito literal de fazer “pais” dos Estados Unidos: “Ninguém
e ativa for a rede de contactos sociais de uma uma cópia. A partir do momento em que uma discute seriamente que a propriedade
pessoa, de um grupo ou de uma comunidade, informação (qualquer informação) se torna é uma boa ideia, mas é bizarro sugerir
melhor para essa pessoa, esse grupo ou essa digital, o próprio conceito de cópia deixa de que as ideias possam ser propriedade.
comunidade. Ou seja, uma informação não é fazer sentido, uma vez que a informação não A natureza quer claramente que as
desvalorizada quando é usada; pelo contrário, existe senão como “zeros” e “uns” virtual- ideias sejam livres. Embora possamos
ela é mais valorizada cada vez que é usada. De mente idênticos em todos os computadores guardar uma ideia para nós, assim que
um ponto de vista económico, isto aponta para que os partilhem. a partilhamos, qualquer pessoa pode
a informação como um bem público e que por- Por isso é que Aaron Swartz esteve ligado tê-la. Quando isso acontece, as pes-
tanto deve ser livre. à conceção inicial das licenças Creative Com- soas já não podem desfazer-se dela,
mons. Estas licenças foram (e são) uma tenta- mesmo que queiram. Tal como o ar,
REVOLUÇÃO DIGITAL tiva de enquadrar social e institucionalmente o as ideias não podem ser guardadas e
É aqui que acontece o choque: por um lado as problema dos direitos de autor no novo quadro armazenadas.” Se fosse vivo hoje, é
novas tecnologias de informação e comunica- de abundância e dispersão da informação. possível que Jefferson estivesse a fazer
ção que Swartz dominava tão bem potenciam E, obviamente, são muito mais “abertas” do o mesmo tipo de percurso que levou
os efeitos socialmente benéficos da informação; que o copyright original. Aquilo de que nós Swartz a um confronto tão dramático
por outro lado, enfrentam a resistência de um precisamos, como sociedade em transição de com as autoridades!
conjunto vastíssimo de hábitos, rotinas e ins- um paradigma de informação para outro, é
tituições sociais que vêm do passado mas que precisamente de soluções criativas para estes JOSÉ MORENO
já não servem ao futuro, como o copyright. O problemas. Por isso é que Aaron Swartz fazia Mestre em Comunicação e Tecnologias de Informação
conceito de copyright (ou “direito de autor”) falta. Por isso é que fazer dele um “exemplo” jmoreno@motorpress.pt
foi concebido para uma época em que a infor- foi, afinal, um péssimo “exemplo”!

Interessante 23
Animais
Lição de latim. As capacidades
A inteligência canina cognitivas da espécie Canis lupus
familiaris, domesticada na Europa
há cerca de 18 mil anos, continuam

Cachorros
a espantar os cientistas.

ESPERTOS
Múltiplos estudos e experiências confirmam
o que os seus donos já suspeitavam: por vezes,
só falta aos cães falar. A memória, a empatia
e a capacidade para comunicar caninas estão
muito acima da média no reino animal.

E
stiveram presentes nas grandes faça- objetos pelo nome. Além disso, recorda-se
nhas humanas da história: havia cães deles meses depois.
a bordo das caravelas de Cristóvão Efetivamente, as experiências demonstram
Colombo, na conquista do Polo Sul, que eles assimilam vocabulário de uma maneira
na primeira viagem de um ser vivo em redor semelhante à das crianças. Alguns cães
da órbita terrestre (lembra-se da Laika?), e até conseguem mesmo relacionar rótulos abstratos
na operação de captura de Bin Laden. Apesar com objetos concretos. Se ensinar a palavra
disso, estes animais não são simples ferra- “bola” a um cão e esconder uma de futebol
mentas ou máquinas de trabalho com vida. De entre outras coisas, ele irá procurá-la quando
facto, pode ser que ainda não se tenha aper- disser o nome em voz alta. Porém, se depois a
cebido, mas, se tem um cão como animal de retirar e voltar a exclamar “bola!”, mas desta
estimação, está a conviver com um Einstein vez se tratar de uma bola de ténis, deduzirá
em potência. que se está a referir à mesma categoria e esco-
Até há bem pouco tempo, não sabíamos lhe a opção correta.
muito sobre a inteligência dos Canis lupus O psicólogo Paul Bloom, da Universidade de
familiaris, nem sobre como veem o mundo. Yale (Estados Unidos), colocou à prova, de
Todavia, nos últimos anos, multiplicaram-se os forma empírica, essa faculdade de exclusão,
estudos nesse campo e foi possível comprovar misturando livros e brinquedos que os animais
que as suas capacidades cognitivas são seme- não tinham visto antes. Se ordenava “traz um
lhantes às de uma criança. brinquedo”, ele dirigia-se para qualquer dos
objetos que servissem para brincar. Depois,
MEMÓRIA E APRENDIZAGEM quando lhe dizia “traz um não brinquedo”, tra-
Na Odisseia, Ulisses regressa à ilha de Ítaca zia sempre um livro. Noutras experiências, em
vinte anos depois de ter partido para lutar na vez de lhes falar, mostrava-lhes a réplica de
guerra de Troia: para que ninguém saiba quem um objeto. Os animais voltavam a acertar em
é, disfarça-se de mendigo, mas Argos, o seu todas as ocasiões.
velho cão, reconhece-o de imediato. Para além Os cães também conseguem copiar-nos e
dos mitos ou das criações literárias, o que imitar-nos, algo que muito poucos animais fazem
averiguou a ciência sobre a memória canina? e que é fundamental na aprendizagem social.
Desde o início do século XX que se sabe que os Embora não o façam de maneira espontânea,
cães possuem uma capacidade prodigiosa para como os grandes símios, possuem uma aptidão
SHUTTERSTOCK

reter e recuperar informação. Por exemplo, inata. Numa ocasião, os cientistas condiciona-
um border collie sobredotado chamado Cha- ram um grupo de cães a abrir uma porta, empur-
ser, da Carolina do Sul, reconhece mais de mil rando-a. Metade iria receber um prémio por

24 SUPER
Interessante 25
Reconhecem Traz-me o Pokémon!
Estudado por cientistas
do Instituto Max Planck
os donos (Alemanha), o border
collie Rico era capaz

até no ecrã
de identificar 200
objetos pelo nome.
Morreu em 2008.

da televisão
ter emulado os seres humanos, enquanto os res-
tantes foram incentivados para o conseguirem
através dos seus próprios métodos. Resultado?
O grupo de imitadores aprendeu muito mais
depressa. Ou seja, os cães não abordam este
tipo de problemas através de tentativa e erro:
podem resolvê-lo de forma imediata se virem
alguém fazê-lo primeiro.
A conclusão é que a memória canina é mais
parecida com a nossa do que se pensava. De
facto, os cães também possuem a modalidade
declarativa ou episódica, a capacidade de recu-
perar conscientemente memórias associadas a
factos ou conhecimentos.

COMUNICAÇÃO
Plásticas e flexíveis, as cordas vocais dos cães
permitem-lhes emitir sons com significados
que tanto os seus congéneres como os seres
humanos entendem, pois os latidos variam,
consoante o contexto, em amplitude, duração
e tom. Assim, fazem-se ouvir para recrutar outros
em caso de perigo, e identificam os indivíduos
pelos sons que captam, a fim de classificá-los
como amigos ou inimigos.
Parecem também saber ajustar a sua expres-
sividade à audiência. Isso significa que modi-
ficam as vocalizações e os gestos consoante
o que vê ou não vê (e ouve ou não ouve)
quem os acompanha. Assim, os cães-guia que
ajudam as pessoas cegas lambem mais os donos
para que possam receber a informação que
possuem: as lambidelas são a sua resposta por
viver com pessoas que não reagem a sinais
visuais. Do mesmo modo, desobedecem às
ordens se houver perigo para os donos.
Numa determinada experiência, um cão fazia para ajudá-lo. Isto é, tinha consciência do lutiva na Universidade do Colorado, considera
devia escolher entre pedir comida a uma pessoa que tinha visto, ou não, no passado. que ele não pode ser aplicado a espécies que
com os olhos tapados ou a outra que podia ver. Embora os cães não possuam uma linguagem apreendem o mundo através do olfato. Se
O animal dirigia-se sempre à segunda: sabia tão complexa como a nossa, a sua inteligência pensarmos que um cão possui 220 milhões
que podia comunicar com ela se distinguisse os em termos de comunicação é fascinante. de recetores olfativos, e compararmos esse
seus olhos. Trata-se de algo que a maior parte número com os cinco milhões presentes no
dos animais não faz: identificar quem possui a AUTOCONSCIÊNCIA nariz humano, a ideia não parece descabida.
informação desejada. O teste clássico para determinar se um animal De facto, Bekoff concebeu um teste que
A fim de averiguá-lo com maior precisão, o possui perceção de si próprio consiste em con- promete abrir novos debates entre os especia-
psicólogo József Topál, da Academia Húngara frontá-lo com um espelho. Se pintarmos uma listas. Em primeiro lugar, o investigador obtém
de Ciências, ocultou vários objetos em caixas, marca na cara de um chimpanzé ou de um uma amostra de urina de um cão e esconde-a
todas fechadas à chave. Depois de escondê-las elefante sem que ele se tenha apercebido, irá num bosque. Em seguida, passeia a criatura
na presença de um cão chamado Philip, surgia tocar no sinal, ou tentar retirá-lo, ao ver o seu pela zona e examina as suas reações perante
um ser humano que não sabia onde estavam. reflexo, pois sabe que se trata da sua própria a própria micção, a fim de poder compará-las
As reações de Philip foram muito semelhantes imagem. com as que manifesta quando fareja a urina de
às que se obtêm de crianças nas mesmas cir- O problema de utilizar este tipo de testes com outros. Assim, o especialista norte-americano
cunstâncias: apanhava as chaves e conduzia cães é que eles não são tão visuais; por essa conseguiu comprovar que os exemplares não
a pessoa até ao sítio onde o objeto estava razão, nem todos os autores concordam com urinavam sobre as próprias marcas, o que
guardado. Se o voluntário estivesse presente o mérito do teste. Por exemplo, Marc Bekoff, parece constituir um indício de possuírem uma
quando Topál fechava as caixas, o cão nada professor emérito de ecologia e biologia evo- certa consciência de si próprios.

26 SUPER
O mito das raças
G ostamos das listas e dos mitos
urbanos sobre que raças caninas
são mais inteligentes, mas não deve-
mos dar-lhes grande importância: os
testes desenvolvidos em laboratório
chegam à conclusão de que não há
grande diferença entre elas, digam o
que disserem. Após realizar diversas
experiências, Julie Hecht, psicóloga da
Universidade de Nova Iorque, conclui
que existem, na realidade, mais diver-
gências cognitivas entre exemplares
da mesma raça. Além disso, a seleção
reprodutiva foi geralmente levada a
cabo em função de características físi-
cas ou de temperamento, sem tomar
em consideração o quociente inte-
lectual dos cães. Em 2003, quando se
sequenciou o genoma do Canis lupus
familiaris, confirmou-se que a espécie
descende do lobo. Além disso, foram
estabelecidos dois grupos principais
com base nas cerca de duzentas raças
conhecidas no mundo. Como indica o
etólogo Brian Hare, a diferença reside
no seu grau de cooperação com os se-
res humanos, o qual depende da carga
genética proveniente dos lobos. Os
que possuem maiores laços de paren-
tesco com esses animais selvagens (e
que colaboram menos connosco) são
o husky siberiano, o galgo afegão, o
akita asiático, o malamute do Alasca,
o chow chow chinês, o dingo austra-
liano, o cão-cantor da Nova Guiné e
MANUELA HARTLING / REUTERS

o basenji africano, o mais lupino de


todos. No segundo grupo, estariam
as restantes raças modernas, mas isso
não significa que sejam mais espertas;
simplesmente, ligam-nos mais.

EMPATIA E EMOÇÕES soas que simulavam chorar, situadas junto de exemplares adultos, o que significa que já nas-
Como primatas, os seres humanos possuem outras que simplesmente falavam ou canta- cem com esse dom. Porém, embora entendam
a capacidade de se colocarem na pele dos rolavam algo. Custance e Mayer observaram os sinais tanto de conhecidos como de estra-
outros, mas não são os únicos animais a fazê-lo. que os cães mostravam mais preocupação e nhos, isso não significa que lhes seja indiferente
Os cães também são excelentes a identificar-se se aproximavam com maior frequência dos a sua proveniência. O apego canino pelos donos
com a mente alheia. É frequente aproximarem- voluntários que fingiam estar tristes. é de tal ordem que, noutra série de experiências,
-se, de forma natural, de congéneres que foram Outro indicador de empatia é o contágio do se demonstrou que os cães brincavam mais
vítimas de uma agressão para os consolar, bocejo. Para se produzir, é necessário possuir com pessoas desconhecidas na presença dos
e não fazem caso dos vencedores da briga. uma certa estrutura cerebral e os neurónios- donos do que no caso de estes se ausentarem.
Em dois terços das observações feitas pelos -espelho, responsáveis por rirmos, chorarmos Trata-se de uma confirmação da segurança que
especialistas, a parte não envolvida no con- ou abrirmos a boca quando vemos os outros os laços entre as duas espécies conferem, tanto
fronto aproximava-se, efetivamente, de quem fazê-lo. Os cães também obtêm resultados a eles como a nós.
se saíra pior. positivos: em experiências realizadas recente- A empatia canina foi sempre um tema con-
Será que também sentem empatia pelas pes- mente, 67 por cento dos exemplares estuda- troverso, mas chegou a altura de aceitar que
soas? A fim de averiguá-lo, as psicólogas Debo- dos bocejavam ao mesmo tempo que os seres acumulámos cada vez mais provas científicas da
rah Custance e Jennifer Mayer, da Faculdade humanos. sua existência: os nossos animais de estimação
Goldsmiths, da Universidade de Londres, anali- Além disso, não se trata de algo aprendido. são criaturas muito sensíveis e sociáveis. É arro-
saram o comportamento de dezoito exempla- O etólogo Brian Hare, da Universidade Duke gância pensar que somos os únicos seres vivos
res de raças e idades diferentes. O teste con- (Estados Unidos), demonstrou que os cachor- do planeta que se emocionam ou se colocam
sistia em examinar a sua reação perante pes- ros de nove meses fazem-no tão bem como os no lugar dos outros.

Interessante 27
Docemente. Foi demonstrado
que os cães são sensíveis ao tom
de voz com que lhes falamos.

AGE
INTERPRETAÇÃO DE SINAIS
Desde que nasce, antes mesmo de saber Aproximam-se mais das pessoas
falar, o Homo sapiens comunica com quem
o rodeia através de expressões, olhares ou que demonstram estar tristes
mesmo gestos com a mão ou os dedos. Inter-
pretar tais sinais é fundamental para a nossa plares que tinham sido criados por pessoas e cérebro canino manifestava maior atividade
sobrevivência: quando se vive em grupo, é pre- aprendido, por conseguinte, a entendê-las. Os em resposta às entoações positivas do que às
ciso reconhecer e prever o que farão os nos- cientistas pensaram ter conseguido confirmar negativas, como revela o estudo que publica-
sos companheiros. Anteciparmo-nos ao com- a existência de uma característica exclusiva da ram na revista Current Biology. Além disso, rea-
portamento dos restantes pode ajudar-nos nossa espécie até terem repetido a experiênca gem, tal como nós, às emoções transmitidas
a coordenar a nossa conduta na caça ou na fuga, com cães: eles, sim, encontravam a comida à pela voz do falante ou às características sono-
para dar dois exemplos práticos. Não há dúvida primeira tentativa. Compreendem-nos perfei- ras que distinguem o sexo. Quando o estímulo
de que a gesticulação constitui um tipo de tamente, de forma inata. lhes faz sentido e a pessoa atenua ou elimina
informação social que o torna possível. A linguagem não-verbal também funciona diretamente as características de género ou
A fim de testar essa capacidade em símios, um com os seus congéneres. Num ensaio, os cien- entoação, utilizam o hemisfério esquerdo da
grupo de investigadores dirigido pelo primató- tistas escondiam comida à vista de um cão e, massa cinzenta. Todavia, se lhes falarem num
logo escocês Jim Anderson, da Universidade de depois, deixavam entrar outro exemplar. O idioma que não conhecem ou se colocarem os
Stirling (Reino Unido), escondeu comida numa recém-chegado utilizava o olhar do compa- fonemas numa ordem diferente, ativam o lado
caixa, de forma a não libertar odor, e colocou- nheiro para adivinhar onde estava a saborosa encefálico direito.
-a entre outras idênticas. Depois, os investi- recompensa. “Os nossos resultados sugerem que o pro-
gadores indicaram com gestos aos animais É verdade que o melhor amigo do homem cessamento dos componentes do discurso no
onde se encontrava a recompensa. Anderson e depende muito das mensagens olfativas, como cérebro canino se divide entre ambos os hemis-
os seus colegas fizeram primeiro a experiência já referimos, mas não deixa de apoiar-se nos férios, de forma muito semelhante ao que
com macacos-capuchinhos, mas estes falharam sinais visuais e auditivos. De facto, comprovou- acontece na mente humana”, explica Ratcliffe.
sucessivas vezes; foram necessárias mais de cem -se que consegue mesmo reconhecer o dono A investigação apoia, por conseguinte, a ideia
tentativas para acertarem. em ecrãs de televisão ou outros aparelhos ele- de que os cães não só dão atenção a quem
Em seguida, fizeram o teste a chimpanzés, trónicos. somos e à forma como dizemos as coisas como,
pensando que estes teriam rapidamente êxito, Recentemente, descobriu-se que o tom de também, ao que dizemos. Trata-se de uma boa
devido à sua intensa vida social e à sua proxi- voz também é relevante para os cães. Victo- notícia para quem ama estes animais, pois pas-
midade evolutiva dos seres humanos. Fracas- ria Ratcliffe e David Reby, da Universidade samos muito tempo a falar-lhes.
saram igualmente, exceto no caso dos exem- de Sussex (Inglaterra), comprovaram que o P.H.

28 SUPER
AGORA MAIS FÁCIL

ASSINE AS ✆
www.assinerevistas.com

LINHA DIRETA ASSINANTES

21 415 45 50
EDIÇÕES ESPECIAIS PEÇA A SUA REFERÊNCIA

2ª A 6ª FEIRA, 9H30-13H00 E 14H30-18H00

SUPER INTERESSANTE HISTÓRIA [Fax] 21 415 45 01

+
[E-mail] assinaturas@motorpress.pt
SUPER INTERESSANTE SAÚDE

* Valor por exemplar na assinatura por 12 edições. A assinatura inclui apenas especiais História e Saúde.

Sim, quero assinar as Edições Especiais (História e Saúde): 12 edições com 25% desconto por 35,55€ (ex. 2,96€)

(oferta e preços válidos apenas para Portugal)
Favor preencher com MAIÚSCULAS
Nome Morada
Localidade Código Postal -
Telefone e-mail Profissão
Data de Nascimento - - NIF (OBRIGATÓRIO)

MODO DE PAGAMENTO
Cartão de Crédito nº válido até - CVV Indique aqui os 3 algarismos à direita da assinatura no verso do seu cartão
NÃO ACEITAMOS CARTÕES VISA ELECTRON

Cheque nº no valor de , €, do Banco à ordem de G+J Portugal


Remessa Livre 501 - E.C. Algés - 1496-901 Algés

Valor das assinaturas para residentes fora de Portugal (inclui 20% desconto) 1 Ano 12 Edições - Europa 58,71€ - Resto do Mundo 71,79€
Ao aderir a esta promoção compromete-se a manter em vigor a assinatura até ao final da mesma. A assinatura não inclui as ofertas de capa ou produtos vendidos juntamente com a edição da revista.
Os dados recolhidos são objeto de tratamento informatizado e destinam-se à gestão do seu pedido. Ao seu titular é garantido o direito de acesso, retificação, alteração ou eliminação sempre que para isso contacte por escrito o responsável pelo ficheiro da MPL.
Caso não pretenda receber outras propostas comerciais assinale aqui Caso se oponha à cedência dos seus dados a entidades parceiras da Motorpress Lisboa, por favor assinale aqui

SIE
Interessante 29
Paleontologia

Os fósseis mais impressionantes

Imobilizados
na PEDRA
Nem todos os organismos fossilizados estão
imóveis. O fóssil também inclui pegadas, sinais de
luta ou indícios de ação, pois a morte surpreende
muitas vezes os animais em plena atividade:
a caçar, a acasalar, a parir... Pensemos num trilho
de pegadas e como revela a forma como uma
espécie caminha, corre ou salta. Por vezes, esses
atos ficam gravados em pedra e oferecem à ciência
uma informação preciosa. Estes são os instantâneos
fósseis mais expressivos da paleontologia.

Q
ue um combate entre dinossauros habitantes do deserto de Gobi. Os nossos dois
possa ficar fossilizado parece exa- protagonistas estariam já mortos? Ou talvez
gerado. Todavia, o paleontólogo moribundos, fatalmente feridos pelos ata-
Mark Norell, do Museu Norte-Ame- ques recíprocos? Ou terá acontecido enquanto
ricano de História Natural, e muitos outros combatiam? Norell está convencido de que
especialistas argumentam que é possível. continuavam a lutar. Kenneth Carpenter,
Um dos fósseis mais fascinantes (tesouro outro estudioso do fóssil, defende que o her-
nacional da Mongólia) mostra dois esqueletos bívoro, ferido de morte pelos ataques do Velo-
com 74 milhões de anos, lado a lado e envol- ciraptor, se defendeu e conseguiu imobilizá-lo.
vidos de uma forma que não parece acidental. Quando a duna os enterrou, ambos os corpos já
Um Velociraptor, deitado de costas, dirige as estavam ressequidos. Isso explica a razão pela
suas quatro perigosas patas em direção a um qual faltam três patas do Protoceratops (os
Protoceratops (dinossauro herbívoro), que animais necrófagos tiveram tempo de levá-las)
está ligeiramente acima dele. A sua garra e pela qual o Velociraptor tem o pescoço
esquerda repousa na enorme cabeça da presa. dobrado numa postura de morte típica das
A célebre garra da pata em forma de foice do grandes aves quando ficam mumificadas.
Velociraptor está sobre o pescoço do vegeta-
riano, como a querer furar-lhe a jugular ou a A GRANDE MÃE
carótida. Porém, o Protoceratops, muito mais Se nos disserem que um dinossauro chocava
robusto e pesado, esmaga com o seu corpo a os seus ovos como se fosse uma galinha, há
perna direita do predador enquanto lhe morde 80 milhões de anos, não ficaremos muito
JOSÉ ANTONIO PEÑAS

o braço direito. Aparentemente, partiu-lhe os surpreendidos. Porém, em 1955, os cientistas


ossos. ainda estavam a tentar habituar-se à ideia da
O desmoronamento de uma duna sepultou-os íntima ligação entre as aves e os gigantes da
bruscamente, como aconteceu a muitos outros pré-história. A verdade é que cada vez mais

30 SUPER
De garras de fora. Não deverá ter
sido muitro diferente desta ilustração
a cena que ficou gravada na pedra do
deserto de Gobi (Mongólia), descoberta
em 1971: o enfrentamento mortal entre um
Protoceratops e um jovem Velociraptor.

Interessante 31
Mãe extremosa. O fóssil Big Mama,
encontrado em Ukhaa Tolgod (Mongólia)
é de uma fêmea de dinossauro
que morreu a chocar os ovos.

A mãe dinossauro Big Mama formação de barbatanas em patas produziu-


-se através das fascinantes transformações

morreu a proteger o seu ninho sofridas por alguns peixes carnívoros. Os


especialistas estudam o processo com recurso
a fósseis de transição, como o Panderichthys,
fósseis muito bem preservados começavam a PEGADAS INQUIETANTES que viveu há 380 milhões de anos, e o Tiktaalik
estabelecer esse parentesco com crescente As pegadas fósseis têm grande interesse (375 M.a.). Esses seres tinham barbatanas.
força. Duas gotas acabaram por fazer trasbordar científico, nomeadamente se forem desco- Porém, em 2010, foi descoberto um fóssil revo-
o copo: as impressões de penas e os ins­tan­tâ­neos bertas misturadas as de carnívoros com as de lucionário: antiquíssimos vestígios com 295
de comportamentos típicos das aves. herbívoros. Em 1938, Roland Bird, do Museu M.a. encontrados numa pedreira do sueste
O fóssil batizado com o nome de Big Mama Norte-Americano de História Natural, desco- da Polónia. Trata-se das pegadas de vários
causou sensação. Trata-se de uma mamã dinos- briu perto do rio Paluxy, no Texas, o que pare- animais com cerca de dois metros de compri-
sauro, encontrada na Mongólia, que morreu cia ser uma cena de caça: pegadas de uma mento. Não há barbatanas a arrastar-se, mas
ipso facto, sepultada por uma duna, enquanto manada de saurópodes (herbívoros de pescoço marcas de patas em que até se consegue dis-
estava sentada num ninho sobre mais de vinte comprido), presumivelmente perseguidos tinguir os dedos. Provam que os primeiros
ovos. Dotada de um bico e de uma crista, tra- por um Acrocanthosaurus, terópode predador vertebrados quadrúpedes (tetrápodes) come-
tava-se de uma versão maior (cerca de 3 metros que parece correr junto de uma das presas e, çaram a caminhar fora de água quase 20 M.a.
de comprimento) do conhecido Oviraptor. O a certa altura, saltar para abatê-la. Recente- antes do que se pensava e que o fizeram,
seu nome científico é Citipati osmolskae. mente, porém, James Farlow, paleontólogo da talvez, saindo do mar e aproveitando a maré
De acordo com uma lenda, os citipatis Universidade Purdue (Estados Unidos), voltou baixa para se aventurar na praia e devorar ani-
foram dois monges tibetanos decapitados por a analisar o caso e crê que as pegadas mostram mais moribundos ou cadáveres.
um ladrão enquanto se encontravam em pleno que os dinossauros estavam em movimento,
transe da meditação. A Big Mama não tem a mas não se pode afirmar que corriam nem que ORGIA DE TRILOBITES
cabeça e parte do esqueleto, mas o que resta o caçador tivesse lançado um ataque. É pos- As trilobites figuram entre os grandes líderes
é inconfundível: grandes patas com três garras sível que perseguisse os herbívoros, mas não do registo fóssil e da história da evolução. Já
curvas estendem-se dos dois lados do corpo podemos sabê-lo, segundo Farlow. foram descritas mais de 20 mil espécies e extraí-
para proteger os ovos. Sabemos, hoje, que Outro tipo de pegadas que intrigam os dos milhões de exemplares de numerosas
esses braços estavam, muito provavelmente, paleontólogos são as que refletem os saltos jazidas nos cinco continentes (Portugal é par-
revestidos de penas, como acontece com as da evolução. Descendemos do macaco mas ticularmente rico). A classe Trilobita abrange o
asas dos seus parentes próximos, as aves. também (e muito antes) do peixe. A trans- grupo mais diversificado de animais extintos,

32 SUPER
Em grupo. Trilobites da
espécie Ellipsocephalus hoffi.
Estes extintos artrópodes tinham
um comportamento gregário.
SPL

que sobreviveram nos mares e oceanos do nove pares de tartarugas do Eoceno, com 47 as serpentes antigas não dispunham das mes-
planeta durante quase 300 M.a. Por tudo isto, M.a., na jazida alemã de Messel, a sul de Frank- mas capacidades de muitas das suas descen-
as fotos fossilizadas com diferentes formas e furt. Em tempos, foi um lago tropical formado dentes modernas. Assim, a Sanajeh indicus,
comportamentos abundam neste grupo de numa cratera profunda, cujo fundo, sem oxi- do Cretácico tardio, não tinha um crânio apto
artrópodes ou invertebrados marinhos. Foram génio e talvez saturado de substâncias tóxicas, para engolir um grande ovo, nem dentes
encontradas, por exemplo, muitas provas da conservou de forma espetacular os corpos de capazes de perfurar uma casca grossa. Talvez
morte em massa de trilobites devido a catás- muitos animais. pudesse partir os ovos esmagando-os com o
trofes súbitas produzidas por furacões. Podemos afirmar que as tartarugas, nove corpo, como faz atualmente a Loxocemus bico-
Rochas cheias de indivíduos da mesma machos e fêmeas da espécie Allaeochelys cras- lor americana, mas precisaria de muita força.
espécie e tamanho revelam que esses antigos sesculpta, estavam a copular? Os machos são Teria sido mais fácil rondar os ninhos alheios,
seres podiam ser gregários. Alguns fósseis 17 por cento mais pequenos e possuem uma detetar pelo ruído os que tinham ovos prestes
contêm centenas de exoesqueletos de mudas cauda mais comprida, enquanto as fêmeas têm a eclodir e esperar tranquilamente pelo nasci-
recentes. Tal como alguns caranguejos moder- na carapaça uma parte móvel com uma espécie mento da cria para a devorar.
nos, as trilobites juntavam-se em grandes aglo- de dobradiça, útil para pôr os ovos. Em dois dos É a estratégia que se pode deduzir de um
merações para lançar operações delicadas e de fósseis, as caudas estão em posição de acasa- fóssil encontrado na Índia, em 1984. Contém
risco, mas necessárias para a sua sobrevivência: lamento. Porque terão morrido no ato? As tar- um ninho de ovos de titanossauro, um grande
em concreto, mudar a carapaça e, aproveitando tarugas aquáticas acasalam na água. Quando dinossauro saurópode de pescoço comprido
a nudez, acasalar em autênticas orgias. a fecundação ocorre, o casal em êxtase que não protegia os seus ovos. A nidificação
Na costa norte de Portugal, junto do Porto, afunda-se por alguns momentos. Nesse caso, à contém os restos de uma cria recém-nascida
foram encontrados restos fossilizados que medida que desciam até às camadas mais baixas com meio metro de comprimento. Dezassete
mostram longas cadeias de pequenas trilobites do lago, aumentava a concentração de gases anos depois, após um novo exame feito ao
em comboio. Trata-se de filas migratórias, um tóxicos, os quais invadiam a corrente sanguínea fóssil, descobriu-se a serpente. Estava enro-
comportamento social que observamos hoje dos amantes, matando-os em segundos. lada junto do bebé dinossauro, em redor de
nos gafanhotos e que tem, aparentemente, vestígios do que fora o seu ovo. Tinha cerca
mais de 400 milhões de anos de antiguidade. A SERPENTE QUE ROUBAVA OVOS de 3,5 m de comprimento. Antes de ter podido
Os amantes dos documentários sobre a natu- devorar o pobre recém-nascido, um monte de
ACASALAMENTO FATAL reza recordam certamente aquela serpente sedimentos caiu-lhes em cima e sepultou-os
Os paleontólogos descobriram muitos africana que consegue engolir um ovo inteiro, para sempre.
exemplos fossilizados de cópulas entre insetos maior do que a sua cabeça. Mandíbulas de bor- Os paleontólogos descobriram restos de
e ácaros, mas não havia um de animais verte- racha e grandes goelas são também caracterís- Sanajeh indicus noutros ninhos de titanossauro.
brados. Por fim, em 2012, foram encontrados ticas de boas, pitões, cobras, víboras... Porém, Interpretam, por conseguinte, que a associação

Interessante 33
Creche. Restos de um ninho
de Psittacosaurus lujiatunensis,
um tipo de dinossauro-papagaio.

REX
Talvez os jovens dinossauros nas goelas do predador para toda a eternidade,
preservadas no lodo sem oxigénio. O pte-

ajudassem a criar os mais novos rossauro Rhamphorhynchus é um dos mais


abundantes na zona. Cinco exemplares desse
pequeno réptil voador com cauda em forma
não é fortuita e que se trata de etofósseis, isto maneciam ali juntas até que uma avalancha de losango surgem junto de um inesperado
é, de momentos fossilizados que captam real- de detritos vulcânicos as sepultou. Entre elas, companheiro, um peixe de mais de meio
mente o comportamento dos animais. havia um esqueleto maior: teria pertencido a metro denominado Aspidorhynchus.
uma mãe ou um pai? Em 2014, um novo estudo Porque se teriam transformado em fósseis
BERÇÁRIO COMUNITÁRIO determinou que esse indivíduo também não juntos, com a boca do peixe em contacto com
A província chinesa de Liaoning já proporcio- chegara à idade adulta. Tratava-se, nesse caso, as asas do pterossauro?
nou impressionantes fósseis que mudaram, em de um irmão mais velho? Nesta espécie de dinos- Segundo os paleontólogos Frey e H. Tisch­
poucos anos, a paleontologia, nomeadamente sauros, os jovens nascidos em anos anteriores linger, os dentes finos e muito juntos do pri-
inúmeros restos de dinossauros em diferentes talvez ajudassem a cuidar das novas crias. meiro ficaram presos na densa rede de fibras
fases evolutivas (desde simples pelinhos a plu- da asa do dinossauro, formadas por um tecido
magens complexas). Contudo, proporcionou QUEM CAÇA QUEM? muito complexo. Num exemplar de “peixe-
também exemplos fossilizados de compor- As rochas calcárias de Solnhofen, no sul da -morde-um-pterossauro” ainda mais espeta-
tamentos. Em 2004, foi anunciada a desco- Alemanha, preservaram detalhes extraordiná- cular, o Rhamphorhynchus exibe um peixinho
berta de um ninho com vinte e quatro crias rios de fósseis do Jurássico, tão emblemáticos intacto no gasganete e restos de peixe meio
de dinossauro Psittacosaurus lujiatunensis. como os da ave primitiva Archaeopteryx. Ani- digeridos no estômago. Os especialistas suge-
A quantidade de miniesqueletos sugere que mais de todos os géneros, desde alforrecas a rem que esses répteis voadores planavam
havia no local filhos de várias mães: um exemplo crocodilos, morriam e os seus corpos afunda- muito perto da superfície da água para pescar,
de um berçário comunitário. vam-se no fundo de lagoas de água salgada. como algumas aves modernas. Nessa altura,
As crias já tinham saído dos ovos, mas per- Algumas presas ficaram literalmente presas eram atacados por baixo pelos Aspidorhyn-

34 SUPER
Arriscado. Fóssil de Chaohusaurus
dando à luz três crias, que saíam
assomando primeiro a cabeça. O esquema
à direita ajuda a compreender a imagem:
a preto e azul, a coluna vertebral da mãe
e a sua pélvis; a verde, a caixa torácica;
a amarelo, a cria a nascer; a laranja,
o embrião ainda no ventre da mãe;
a vermelho, vestígios da cria já nascida.

1 cm

chus. O pterossauro acabava por se afogar e que tinha no estômago um peixe da espécie e o parto se complicar, a cria poderá afogar-se.
o peixe, como não conseguia desprender-se, Acanthodes. O segundo é de um Chaohusaurus, o ictios­
morria de exaustão. Os tubarões de água doce já não existem, sau­ro mais antigo que se conhece (248 M.a.).
nem esse tipo de anfíbios ou os primitivos peixes Com apenas 1 m, de corpo alongado e barba-
TRÍPTICO DA CADEIA ALIMENTAR Acanthodes. O tríptico fóssil constitui uma tanas pouco desenvolvidas, nadava ondulando
Há 290 milhões de anos, um Triodus, antigo fotografia de enorme valor da ecologia de o corpo. A sua estirpe estava há pouco tempo
tubarão de água doce, devorou um primitivo uma época muito remota e diferente da nossa. no mar e ainda não adquirira a forma de fuso.
anfíbio que comera, imediatamente antes, um No parto pertrificado, é possível observar três
peixe. O tubarão, satisfeito e de barriga cheia, O PARTO DO ICTIOSSAURO crias: uma ainda dentro da mãe, outra fora e a
morreu sepultado sob um monte de sedimen- Poucos instantantâneos fósseis podem ser terceira a nascer, de cabeça primeiro. Não
tos. Os sucos gástricos não tinham tido tempo tão dramáticos como os de um parto, mas parece acidental, pois as três possuem a mesma
de digerir praticamente nada, de modo que mostram interessantes alterações na repro- orientação, mas nascer de cabeça é tão vanta-
ficou perfeitamente preservado o instantâneo dução dos animais extintos. Os ictiossauros joso num animal terrestre como perigoso no
de uma cadeia alimentar com três sequências, (lagartos-peixes) foram répteis marinhos caso de um aquático.
cada uma dentro da outra, à semelhança das semelhantes aos golfinhos. Não punham ovos, Os investigadores deduzem que, antes de
bonecas russas matrioskas. mas pariam as crias dentro de água. Foram se adaptar a viver na água, os antepassados
Este fóssil excecional foi encontrado no encontradas centenas de fêmeas com dos ictiossauros davam à luz em terra. Embora
sudoeste da Alemanha e descrito em 2007. Os embriões no seu interior e são conhecidos pelo fossem répteis, tinham deixado de pôr ovos.
cientistas tiveram o cuidado de esclarecer que menos dois partos em diferentes etapas. Depois, à medida que a evolução modelava
os animais não tinham surgido juntos dessa O primeiro é de um Stenopterygius, um um corpo apto para a vida marinha, o parto
forma por acaso, mas porque cada um devo- género muito comum que viveu há 180 M.a. aquático melhorou. Em algum momento entre
rara o seguinte. Na realidade, o tubarão não (Jurássico). A mãe tem cerca de 3 m. A cria o Chaohusaurus e o Stenopterygius, as crias
comera um anfíbio, mas sim dois: um Arche- nasce de nádegas, com a cauda primeiro, como deram a volta.
gosaurus em fase larvar e um Cheliderpeton, os golfinhos. Tem lógica: se a cabeça surgir antes E.C.

Interessante 35
Ciência

O que é o presente?

A ilusão
GETTY / TRATAMENTO DIGITAL: J. A. PEÑAS

36 SUPER
do AGORA
Corrente temporal. Para que uma
sucessão de instantes se organize no
nosso cérebro como um fluxo que circula
do passado para o futuro, estruturamo-los
de modo que cada um forma os tijolos
com que se constrói o seguinte.

O presente é uma coleção


de janelas que permanecem
abertas durante apenas três
segundos, no contínuo decurso
do tempo. Mais do que isso:
o agora de que temos consciência
é apenas uma miragem
construída pelo nosso cérebro.

Interessante 37
O tempo flui,
mas nós
estamos sempre
no presente

N
ão é fácil saber o que é o presente.
O termo indica uma ação que
ocorre no momento em que esta-
mos a falar, algo instantâneo. Por
isso, dizemos “estou a comer” e não “como”.
Alguns estudiosos acreditaram ter encontrado
uma definição para o fenómeno num dos Afo-
rismos do Ioga de Patanjali, escritos entre os
séculos IV e III a.C., nos quais se sugere que só
através da supressão dos processos mentais
podemos experimentar o agora; o simples ato
de pensar traz à cabeça experiências passadas,
o que nos impede de conhecê-lo.
Seja como for, se quisermos saber algo
sobre o presente, será necessário entender
como apreendemos a passagem dos minutos
e das horas. Embora não tenhamos um sistema
sensorial específico para o tempo, desenvol-
vemos algumas estruturas biológicas que nos
ajudam a delimitá-lo, como o córtex cerebral,
o cerebelo e os gânglios basais. Além disso,
temos na parte central do hipotálamo o núcleo
supraquiasmático, que controla os ciclos circa-
dianos e do qual dependem os ritmos regulares
seguidos pelo nosso organismo.
O psicólogo Warren Meck, da Universidade
Duke (Estados Unidos), um dos maiores espe-
Para as crianças, o tempo passa mais
DARREN HOPES / AGE

cialistas no assunto, assegura que a nossa devagar, pois estão constantemente


capacidade para apreciar o tempo se deve à ati- a experimentar coisas novas. As rotinas
vidade oscilatória das células do córtex supe- fazem o tempo passar mais depressa.
rior do cérebro, cuja frequência é detetada
pelo núcleo estriado, outra zona do encéfalo.

RITMOS IMPLÍCITOS Como é possível que uma série de agoras se que se dedicavam habitualmente à meditação e
No seu modelo fisiológico, Meck estabelece transforme nesse rio de tempo que flui sem a outras 38 que não o faziam que observassem
uma distinção entre ritmo temporal implícito e interrupção? Segundo Marc Wittmann, do Ins- um cubo de Necker, uma estrutura cuja pers-
explícito. O segundo determina a duração de tituto de Áreas Limítrofes da Psicologia e da petiva parece mudar continuamente devido a
um estímulo, enquanto o primeiro estabelece Saúde Mental, de Friburgo (Alemanha), há uma uma ilusão ótica. Os voluntários tinham de pre-
quanto tempo separa um evento de outro hierarquia nesses instantes, dos quais cada mir um botão de cada vez que pensassem ver
iminente; o ritmo implícito seria, pois, o modo um forma os tijolos com os quais se começa a uma alteração. Desse modo, era possível esti-
como o cérebro define o agora. Nestas duas construir o seguinte. De acordo com Wittman, mar a duração do presente psicológico. Com
formas de estimativa temporal, regista-se a tudo começa com um momento funcional, isto base nos dados obtidos, Wittmann conseguiu
intervenção de diferentes áreas neuronais: é, a reação do cérebro a um estímulo externo, estabelecer que era de quase quatro segundos.
a implícita, que surge, por exemplo, quando o qual dura geralmente, quanto muito, uma Aparentemente, a meditação não favorecia o
vamos efetuar uma atividade motora, implica dezena de milésimos de segundo. Depois, apego ao presente que apregoava. Contudo,
o cerebelo e o córtex parietal e pré-motor todos os momentos funcionais combinam-se o especialista observou que os que a pratica-
esquerdos; por sua vez, a explícita utiliza habi- para formar o agora consciente, uma tarefa vam conseguiam ver a mesma perspetiva do
tualmente o córtex pré-frontal direito e a área que leva ao cérebro três segundos. Por último, cubo de Necker durante oito segundos, mais dois
motora suplementar, uma parte do córtex que o nosso órgão pensante constrói essa imagem do que os que não o faziam: o que a meditação
contribui para controlar o movimento. de que o tempo flui, o que lhe exige apenas melhora é a capacidade de atenção.
Todavia, o nosso sentido implícito do tempo meio minuto.
apresenta dois aspetos, aparentemente O que chamou a atenção de Wittmann foi TRABALHO DE SINCRONIZAÇÃO
incompatíveis: por um lado, mostra-nos que uma das premissas do ioga, a qual afirma que Como explica o neurocientista David Eagle-
existimos de forma permanente no presente; meditar nos faz estar mais em contacto com o man, que dirige o Laboratório de Perceção
por outro, que o tempo flui continuamente e presente. Intrigado com essa ideia, concebeu e Ação da Faculdade de Medicina de Baylor
sem saltos, do passado para o futuro. uma experiência. Wittmann pediu a 38 pessoas (Texas), devemos tomar em consideração, para

38 SUPER
Tempos desiguais
A nossa perceção da passagem do
tempo depende da idade: à medida
que envelhecemos, parece passar mais
depressa. Para o neurocientista David
Eagleman, esse fenómeno está sobretudo
relacionado com a novidade. Quando
somos jovens, experimentamos muitas
coisas pela primeira vez: os primeiros
aniversários, as primeiras férias, o primei-
ro beijo... Eagleman assinala que há mui-
to para recordar dessas ocasiões. A lista é
tão densa e as memórias ficam tão aper-
tadas que temos a sensação, ao evocá-las,
de que devem ter durado muito. “É pos-
sível comprová-lo no nosso quotidiano”,
indica. “Quando se conduz, pela primeira
vez, até um novo local de trabalho, o ca-
minho parece mais longo. Porém, quan-
do já se fez o percurso diversas vezes,
parece mais curto, pois o cérebro deixou
de armazenar informação.” Contudo,
“estas sensações não passam de uma ilu-
são, uma fantástica construção do nosso
cérebro”, explica Eagleman. “Quanto
mais recordações tivermos associadas a
algo, mais tempo o nosso cérebro pensa
que duraram”, diz. Na sua opinião, o que
acontece é que o encéfalo conserva as
novas experiências de um modo distinto
do habitual. Além disso, descobriu-se
que utiliza mais energia quando tem de
dar forma a uma evocação inédita. Por
outras palavras, o acontecimento original
suscita abundantes recordações, enquan-
to coisas rotineiras do nosso quotidiano,
posteriores ao episódio inédito, não pas-
sam de meros esboços na nossa cabeça.

entender como construímos o presente, que que a informação mais lenta demora a chegar”, roimagem Cognitiva do Centro de Investigação
o cérebro processa a informação a uma velo- explica Eagleman. A tarefa complica-se se tiver- Neurospin, em Gifsur-Yvette (França), desen-
cidade diferente da que lhe é proporcionada mos presente que a luz e o som viajam a velo- volveu um ensaio para lançar um pouco de luz
pelos sentidos. O nosso sistema auditivo, por cidades distintas, pelo que os nossos sentidos sobre o fenómeno. Os cientistas expuseram
exemplo, pode distinguir dois sons separados não os captam ao mesmo tempo, mesmo que um grupo de voluntários a uma série de clarões
entre si por um milésimo de segundo, mas o tenham sido produzidos em simultâneo, como e bips produzidos uma vez por segundo,
visual quase não consegue entender como dis- acontece, por exemplo, no caso de um espetá- mas separados entre si por dois décimos de
tintas duas imagens que distem menos de uma culo de fogo de artifício. segundo. Em simultâneo, registaram a sua ati-
dezena de milésimos de segundo. As coisas vidade cerebral. Descobriram, assim, que se
complicam-se quando procuramos determinar PREVISÕES EM SÉRIE produziam duas ondas cerebrais, uma no córtex
se dois acontecimentos ocorrem de forma Como consegue a nossa cabeça lidar com tudo visual e outra no auditivo, com uma frequência
simultânea. A nossa mente crê que é isso que isto? Os neurocientistas pensam que, para con- igual de uma vez por segundo.
aconteceu quando o intervalo entre ambos é segui-lo, o encéfalo faz continuamente previ- Inicialmente, os sinais acústicos e visuais
inferior a cinco milésimos de segundo, mas sões sobre o que irá acontecer. Essa caracte- estavam desfasados; para os voluntários, cla-
detetar a ordem pela qual se produzem os estí- rística foi aproveitada nos primeiros dias da rões e sons eram estímulos separados. Toda-
mulos exige-nos bastante mais tempo: pode televisão, quando se procurava harmonizar os via, quando começaram a apreendê-los em
chegar aos cinquenta milésimos de segundo. sinais de vídeo e áudio. Os engenheiros per- simultâneo, as suas ondas cerebrais começaram
Tal conclusão implica que o nosso cérebro tem ceberam que o cérebro dos telespetadores a ajustar-se. Segundo Van Wassenhove, “esse
de compaginar essas disparidades para poder sincronizava automaticamente ambos se eles facto reflete a existência de um mecanismo
criar uma imagem unificada do meio circun- chegassem dentro de um intervalo de um ativo no cérebro que lhe indica como lidar com
dante. “Para que o cérebro visual possa apreen- décimo de segundo. o tempo”. O estudo sugere que o cérebro
der os diferentes eventos, é preciso esperar Uma equipa de cientistas coordenada por inconsciente é que decide o que é o agora.
pelo menos um décimo de segundo, o tempo Virginie van Wassenhove, da Unidade de Neu- Em 2014, David Melcher, investigador prin-

Interessante 39
Em fuga. Para o neurocientista
David Eagleman, quando a nossa
consciência consegue processar
a informação necessária para construir
o agora, ela já passou à história.

KRIS KRÜG
Viver perto do presente Laboratório de Psicologia Social e Cognitiva da
Universidade Blaise Pascal (França), indica que

é uma vantagem evolutiva tal acontece porque o medo estimula a amíg-


dala cerebral, o que acelera o nosso relógio
interno. Segundo Droit-Volet, tratar-se-ia de um
cipal do Grupo de Perceção Ativa da Univer- bro estar sempre a lidar com informação obso- mecanismo de defesa ancestral, desenvolvido
sidade de Trento (Itália), demonstrou que o leta. A janela não pode ser demasiado grande. para podermos decidir sem demora se enfren-
presente se prolonga por dois a três segundos. O facto de o encéfalo trabalhar tudo o mais tamos uma ameaça ou fugimos dela.
Para comprová-lo, pegou numa película e cor- perto possível do presente é uma nítida van- Um estudo publicado na revista PLoS One por
tou algumas cenas em troços mais pequenos. tagem evolutiva. Se vivêssemos, por exemplo, especialistas do Reino Unido e da Irlanda esta-
Em alguns casos, duravam milésimos de demasiado no passado, correríamos o risco de beleceu, pelo contrário, que as pessoas depri-
segundo; noutros, vários segundos. Depois, não nos inteirarmos do que acontece no agora. midas estimam com maior precisão a duração
montou-os de forma aleatória e reconstituiu as É por isso, segundo Eagleman, que o cérebro dos intervalos que se prolongam por três a
cenas. Melcher descobriu que os voluntários permite aos nossos sistemas de perceção um 65 segundos. Curiosamente, as substâncias
que participavam na sua experiência acompa- atraso máximo de um décimo de segundo estimulantes fazem-nos sobreestimar os perío-
nhavam o argumento como se nada se tivesse para poder, depois, construir o presente, que dos de tempo, enquanto os antidepressivos e
passado no caso de a duração dos pequenos na realidade já decorreu, em pouco mais de os anestésicos têm o efeito oposto.
cortes não ultrapassar os 2,5 segundos; para dois segundos. “A nossa perceção do mundo Do mesmo modo, a nossa perceção tem-
além desse limite, os espetadores percebiam está colocada no passado”, diz o especialista. poral acelera à medida que envelhecemos.
que se passava algo de estranho. Quando se pediu a dois grupos de pessoas, um
O efeito, segundo Melcher, é semelhante ao PERCEÇÃO VARIÁVEL com indivíduos entre os 19 e os 24 anos, e outro
que acontece quando se vê um texto no qual se No nosso encéfalo, há estruturas que utili- com voluntários dos 60 aos 80, para calcularem
suprimiu ou mudou de lugar algumas letras de zam os ciclos de luz e de escuridão para ajustar a passagem de três minutos, observou-se que
cada palavra. Apesar disso, conseguimos lê-la, determinados ritmos biológicos, mas ainda não os jovens erravam, em média, cerca de três
pois o cérebro preenche as ausências. No se esclareceu como registam a passagem dos segundos. No segundo caso, o erro era de 40
entanto, falha quando modificamos sistemati- segundos e dos minutos. Efetivamente, há segundos. A que se deverá isto? Mistério...
camente, por exemplo, a primeira e última letra situações que alteram a nossa perceção do A verdade é que Einstein já parecia perceber
de cada palavra. tempo: um estudo feito com estudantes de o que acontece no nosso cérebro quando afir-
Melcher explica que essa janela de quase psicologia demonstrou que estes sobreesti- mou, referindo-se à relatividade, que “a distin-
três segundos de que dispomos para perceber mavam a duração de determinado intervalo ção entre passado, presente e futuro constitui
o agora é consequência de um mecanismo que depois de terem visto fragmentos de filmes uma ilusão persistente”.
resolve um problema alucinante: o de o cére- de terror. Sylvie Droit-Volet, professora do M.A.S.

40 SUPER
AGORA MAIS FÁCIL
ASSINE A www.assinerevistas.com

✆ 21 415 45 50
LINHA DIRETA ASSINANTES

PEÇA A SUA REFERÊNCIA

2ª A 6ª FEIRA, 9H30-13H00 E 14H30-18H00


[Fax] 21 415 45 01
[E-mail] assinaturas@motorpress.pt

* Valor por exemplar na assinatura por 2 anos. Promoção válida até à publicação da próxima edição.

Sim, quero assinar a Super Interessante durante: 1 ano 25% desconto por 31,50€ (ex. 2,63€)

2 anos 35% desconto por 54,60€ (ex. 2,28€)
(oferta e preços válidos apenas para Portugal)
Favor preencher com MAIÚSCULAS
Nome Morada
Localidade Código Postal -
Telefone e-mail Profissão
Data de Nascimento - - Já foi assinante desta revista? Sim Não Se sim, indique o nº NIF (OBRIGATÓRIO)

MODO DE PAGAMENTO
Cartão de Crédito nº válido até - CVV Indique aqui os 3 algarismos à direita da assinatura no verso do seu cartão
NÃO ACEITAMOS CARTÕES VISA ELECTRON

Cheque nº no valor de , €, do Banco à ordem de G+J Portugal


Remessa Livre 501 - E.C. Algés - 1496-901 Algés

Para autorização de Débito Direto SEPA entre em contacto através do email assinaturas@motorpress.pt ou através do telefone 214 154 550

Valor das assinaturas para residentes fora de Portugal (inclui 20% desconto) 1 Ano 12 Edições - Europa - 54,66€ - Resto do Mundo 67,74€
Ao aderir a esta promoção compromete-se a manter em vigor a assinatura até ao final da mesma. A assinatura não inclui os brindes de capa ou produtos vendidos juntamente com a edição da revista.
Os dados recolhidos são objeto de tratamento informatizado e destinam-se à gestão do seu pedido. Ao seu titular é garantido o direito de acesso, retificação, alteração ou eliminação sempre que para isso contacte por escrito o responsável pelo ficheiro da MPL.
Caso não pretenda receber outras propostas comerciais assinale aqui Caso se oponha à cedência dos seus dados a entidades parceiras da Motorpress Lisboa, por favor assinale aqui

SI 215
Desporto

Análise de dados no relvado


MARIO GÖTZE

Matemática
Tempo jogado: 39 minutos
Distância percorrida: 5447 metros
Velocidade máxima: 28 km/h
Passes longos: 1
Passes curtos: 15
Passes certos: 81,3%
Faltas cometidas: 1

do GOLO
Remates à baliza: 2
Golos marcados: 1

O desporto mais popular do mundo enfrenta


uma alteração radical: treinadores e jogadores
trabalham com sensores, câmaras, programas
de vanguarda e analistas de dados para
quantificar e analisar ao milímetro o
rendimento do futebolista e melhorá-lo.

O
futebol é belo porque é simples”, 2014, que ganhou com eficácia, mostrando por
afirmou, uma vez, o treinador vezes uma grande superioridade sobre os
sérvio Vujadin Boskov. Boskov, adversários, embora seja impossível determinar
que faleceu em 2014, foi também a influência da utilização da solução tecnológica
o autor da célebre frase “futebol é futebol”, nas suas vitórias. Funciona como uma plata-
que exprimia com precisão a complexa simpli- forma multifuncional que se alimenta do con-
cidade deste desporto, tão fácil de entender, ceito big data aplicado ao futebol: como existe
aparentemente, que qualquer pessoa se atreve alta tecnologia com capacidade para registar
a opinar, e tão fascinante que esconde milhões uma enorme quantidade de dados provenientes
de variáveis, frequentemente impossíveis de da prática do jogo, será possível desenvolver
prever. O que o técnico balcânico ignorava programas que possam aglutinar essa infor-
quando pronunciou essas palavras é que, um mação numérica, classificá-la e interpretá-la.
dia, toda essa suposta simplicidade iria ser cali-
brada ao milímetro. GANHAR OU PERDER
A multinacional alemã SAP, especialista em “Há quinze anos, a utilização da análise de
melhorar os processos informáticos de empre- dados no desporto era controversa; agora, é
sas de todas as dimensões e setores, estuda a diferença entre ganhar e perder. Os fute-
há anos a incorporação dos seus programas bolistas criam milhões de dados com os seus
de gestão em vários desportos, incluindo (e movimentos, algo que nem sequer o melhor
sobretudo) o futebol. De facto, os responsá- treinador pode ver. Ajudamos as equipas a
veis da companhia orgulham-se de ter criado o transformar essa massa de números em infor-
SAP Sports One, segundo eles, a solução infor- mação que sirva para que corram melhor,
mática mais potente destinada ao desporto ganhem desafios e não sofram lesões”, explica
mais global, um aglutinador de ferramentas à Sebastian Brunnert, diretor de Soluções da
disposição de clubes e seleções para poderem SAP Sports & Entertainment.
GETTY / TRATAMENTO DIGITAL: J.A. PEÑAS

otimizar quase todas as parcelas do seu tra- Como se obtêm os dados? Através de senso-
balho: técnicas de treino, formação da equipa, res ou peças de vestuário com GPS incorporado Campeões. Mario Götze (Alemanha)
estado físico dos jogadores, e mesmo a rela- usadas pelos futebolistas: camisolas, pulsei- bate Sergio Romero (Argentina) na final
do Mundial do Brasil, em 2014. A seleção
ção com os sócios e os adeptos. ras, botas e caneleiras... (embora também se alemã usou tecnologia de análise de dados
O SAP Sports One é uma evolução do SAP possam colocar noutros atores do jogo, como (os da imagem são reais) para melhorar
Match Insights, um programa pioneiro testado balizas ou a própria bola). Assim, é possível a prestação dos seus jogadores.
pela seleção alemã no Mundial do Brasil de registar diferentes parâmetros, desde a dis-

42 SUPER
MARTÍN DEMICHELIS
Tempo jogado: 129 minutos
Distância percorrida: 11 165 metros
Velocidade máxima: 28,9 km/h
Passes longos: 3
Passes curtos: 40
Passes certos: 75%
Faltas cometidas: 2
Remates à baliza: 0

SERGIO ROMERO
Tempo jogado: 129 minutos
Distância percorrida: 4233 metros
Defesas: 4
Golos sofridos: 1

Interessante 43
FIVETHIRTYEIGHT
Lionel Messi vs. Cristiano Ronaldo
Golos (sem penaltis) e assistências

Quem rende mais? M  essi, embora por pouco. FiveThirtyEight é um portal especializado
na análise de estatísticas e dados sobre vários temas, incluindo o desporto. Na última
temporada futebolística, fez um estudo exaustivo sobre os números de Messi e Ronaldo
em vários aspetos do jogo. Conclusão: o argentino superou o português globalmente,
e em aspetos como os golos marcados e as assistências dadas. Parece ter merecido o prémio.

É possível seguir o movimento


com intervalos de 0,1 segundos
tância percorrida ou a velocidade média ao corridas, outras mais complexas, como a zona desenvolvida pela empresa espanhola 1d3a.
ritmo cardíaco. por onde se movimentou determinado jogador Com recurso a uma fonte de vídeo externa,
Foi a empresa SAP que iniciou a revolução, ou mesmo o conjunto de futebolistas de uma o Er1c permite aos analistas e preparadores
há um par de anos, ao assinar um acordo de equipa, informação diretamente associada tomar notas e criar etiquetas para classificar
colaboração com o TSG 1899 Hoffen­heim, da ao jogo coletivo e às transições ofensivas e todos os aspetos que desejem da equipa. O
primeira divisão alemã. O método consiste na defensivas, à colocação dos efetivos durante diretor da empresa, Jesus de Pablos, afirma:
recolha e análise de uma infinidade de parâme- uma jogada da equipa adversária, etc. “Não podemos competir com as companhias
tros em tempo real. A informação é mostrada que se dedicam ao tracking, como a Nike, a Adi-
aos técnicos e aos jogadores durante a própria RESTRIÇÕES DA FIFA das, a Microsoft ou a Apple, nem com as que
sessão de trabalho, de forma que possam diver- Todavia, a possibilidade de todo o corpo gerem grandes bases de dados, como a SAP.
sificar a dinâmica do treino ou indicar o que técnico (incluindo analistas táticos, médicos e A nossa ambição é facilitar a investigação da
poderá revelar-se útil para os próximos desafios. o próprio treinador) poder ter acesso a uma parte mais subjetiva do futebol.”
“Os treinadores continuam a ser treinadores, grande quantidade de dados do jogo, obtidos Um dos impulsionadores do projeto foi o
mas, graças a esta tecnologia, têm agora a enquanto decorre, conduz-nos a um território antigo futebolista e treinador espanhol Luis
possibilidade de analisar tudo o que aconteceu ainda vedado. A 7 de julho passado, o orga- Aragonés (já falecido), que era amigo de Jesus
durante o treino. Podem mesmo mostrar de nismo máximo do futebol mundial, a FIFA, de Pablos: “O Luis dizia que os dados biométri-
imediato aos jogadores algum aspeto impor- autorizou a incorporação de sistemas de reco- cos eram muito bonitos, mas que, mais do que
tante do jogo, ou enviar-lhes vídeos ou registos lha de dados na indumentária dos jogadores saber se um futebolista tinha corrido dois ou
para o telemóvel, para serem vistos mais tarde”, durante os desafios oficiais, embora tenha cinco quilómetros, o que lhe interessava era se
indica Brunnert. imposto uma série de condições para a sua o jogador estava onde era necessário quando
Graças à sua grande capacidade de análise, utilização. isso lhe era pedido. Se o fizera e, além disso,
o SAP Sports One pode também receber e Entre todas, destaca-se a proibição de que tinha poupado alguns metros de corrida,
interpretar informação obtida de plataformas o material recolhido por estes sensores seja melhor para ele.”
externas, como a da Prozone, a primeira transmitido, em tempo real, à área técnica, A empresa começou por criar um programa
empresa a apostar na análise de dados baseada zona em que não pode haver qualquer aparelho que servisse de ferramenta e base de dados de
em vídeo. O seu programa, utilizado por quase recetor nem dispositivo técnico. A informação jogadas, jogadores e equipas, tudo classificado
todas as equipas que integram a Premier Lea- reunida durante os jogos será muito útil para a de acordo com os critérios do pessoal respon-
gue inglesa, baseia-se na informação registada análise posterior do encontro e a evolução do sável pelo scouting (análise de adversários) e
por oito câmaras distribuídas pelo estádio, que rendimento individual e coletivo ao longo da a tática da própria equipa: “É o analista que
seguem os movimentos de cada jogador em temporada, mas nunca para o treinador mudar irá selecionar e classificar as jogadas no vídeo,
intervalos de apenas 0,1 segundos. de tática ou substituir um jogador na sequência mas o sistema propõe variantes em função das
A partir desse fluxo constante de dados, o de um choque. estatísticas que importa de outros ficheiros”,
programa elabora instantaneamente estatísti- É à interpretação mais subjetiva do futebol explica Pablos. “É assim que se começa a criar
cas, algumas básicas, como as distâncias per- que se destina a plataforma informática Er1c, uma base de dados por jogador, clube, jogos,

44 SUPER
Não é só o futebol
O futebol é sempre a ponta do
icebergue pela sua relevância
mediática, mas os sistemas de recolha
de dados para otimizar o rendimen-
to estão a chegar a quase todos os
desportos e, em alguns casos, até em
maior medida. É o caso do râguebi: os
técnicos podem receber informação
durante os desafios, em tempo real,
e utilizá-la para alterar as suas táticas.
A multinacional alemã SAP já aplica
a sua tecnologia a modalidades como
o hóquei sobre gelo, a vela, o golfe,
a Fórmula 1, o futebol americano,
o basebol, o basquetebol e o ténis,
entre outros. Neste último despor-
to, chegou a acordo com a WTA, a
Associação de Ténis Feminino, para
proporcionar métodos e equipas de
análise de dados que ajudam as atletas
a estudar o seu jogo e a aperfeiçoar
a estratégia. Uma das novidades da
temporada em curso é uma aplicação
móvel que os treinadores podem
utilizar nos jogos para analisar o ren-
dimento das suas jogadoras.

EFE

condições climáticas, árbitro... Imaginemos Há uma área em que nenhum clube tem dúvi- Alguns receiam que a tecnologia possa apro-
que vamos defrontar o nosso maior rival daqui das sobre a utilidade da tecnologia: a médica. fundar a brecha entre profissionais e catego-
a um mês. A equipa de analistas começa por Tem lógica, pois boa parte do rendimento rias amadoras, mas a realidade desmente essa
estudá-lo e assinala as principais jogadas. Uma do ano (no campo desportivo e económico) preocupação: os amadores também utilizam
semana antes do desafio, o treinador-adjunto depende de a enfermaria se encontrar mais ou métodos avançados. Segundo Brunnert, muitas
já tem todo o material e pode ver o que quiser: menos cheia: “Estima-se que, na temporada coisas são testadas nos juvenis e, quando a
por exemplo, as perdas de bola espontâneas passada, o custo médio das lesões nas quatro tecnologia está madura, passa para as equipas
do lado direito da equipa adversária nas últi- ligas europeias mais importantes foi de mais de principais.
mas seis jornadas. Seria de grande ajuda para onze milhões de euros por cada campeonato. Há também programas específicos, como
uma formação específica do lateral.” Também se estima que os clubes perdem, o Scout7, que oferecem bases de dados com
O Er1c evoluiu muito, afirma o diretor da todos os anos, entre 10 e 30 por cento dos milhares de futebolistas de todo o mundo,
empresa: “Os utilizadores já podem impor- seus jogadores por causa das lesões. Se se con- classificados pela posição em que jogam,
tar dados biométricos captados por sensores seguir reduzir significativamente os problemas nacionalidade, clube, idade, lesões e outros
e GPS. Além de analisar uma jogada, o facto físicos, os clubes pouparão muito dinheiro”, parâmetros muito úteis para as direções des-
de ter essa informação na frente permite ava- defende Brunnert. portivas dos clubes profissionais.
liar se o jogador perdeu a bola porque estava Outros programas de análise, como o Er1c,
em sobreesforço. Talvez sejamos a única pla- ANTECIPAR LESÕES também oferecem esse serviço, com uma
taforma internacional que proporciona, em A SAP trabalha numa solução para o pro- opção adaptada às equipas técnicas dos clubes.
simultâneo, estatística e análise subjetiva.” blema: o Injury Risk Monitor, que será integrado É muito semelhante ao que os treinadores
A empresa, com sede em Barcelona, dispo- na plataforma SAP Sports One. O programa usam, mas incorpora um módulo independente
nibiliza a sua tecnologia a várias equipas da obtém dados relevantes sobre um jogador atra- com uma base de dados sobre jogadores de todo
primeira e da segunda divisões espanholas, vés dos chips integrados na sua indumentária o planeta. É possível ver aí as diversas facetas
incluindo o próprio Barcelona. Todas tiveram ou outros dispositivos externos. A informação do futebolista escolhido: a defender, a driblar,
de alterar a estrutura técnica para melhor se é recolhida durante os treinos, os testes físicos a marcar golo, a marcar o avançado rival...
ajustarem às novas necessidades associadas à e os jogos, e aplica-se uma fórmula matemática Trata-se de ferramentas de grande utilidade,
tecnologia, como a torrente de estatísticas que para estimar o risco de o futebolista sofrer uma embora o fator humano continue a ser insubs-
é preciso processar sobre os treinos, os jogos lesão. Isso ajuda médicos e fisioterapeutas a tituível. As bases de dados de jogadores, nem
e os adversários, embora ainda não ao mesmo conhecer os pontos fracos do atleta e a escolher que seja pela quantidade de informação que
nível da Premier League inglesa, onde estão os cuidados necessários. Desempenha também contêm, são importantes quando se trata de
mais avançados: “Depende muito da entidade, um papel fundamental nas fases de recupera- avaliar possíveis contratações, e constituem
mas, em Inglaterra, chega a haver cinco pessoas ção, pois avalia os ritmos de restabelecimento uma boa ajuda, mas não se contrata alguém
para analisar dados numa equipa de segunda, e proporciona dados de prevenção para evitar que não se tenha visto jogar ao vivo umas
ou 50 num dos grandes clubes”, afirma Sebas- que o problema se agrave ou se torne crónico. quantas vezes.
tian Brunnert. D.L.

Interessante 45
Tecnologia

A nova era do dinheiro digital

Pague com o
TELEMÓVEL
Após vários anos de ensaios, os sistemas de
pagamento por telemóvel começam, finalmente,
a surgir como uma alternativa cómoda e segura
às transações com dinheiro e cartões. Descubra
as opções disponíveis e como funcionam.

A
bra a carteira e conte o número de Outro sistema que não exige uma grande
cartões de crédito e de débito que infraestrutura é o dos códigos QR. As cadeias
contém. Segundo dados do Banco Starbucks e VIPS, por exemplo, permitem
Central Europeu (BCE), os portu- pagar o consumo através desses quadrados
gueses tinham, em 2011, dez milhões de car- com padrões bidimensionais de pontos e ris-
tões de débito (Multibanco) e 9,3 milhões de cos que surgem no ecrã do telemóvel, graças
cartões de crédito, o que significa que cada a uma aplicação que se carrega com o nosso
português possuía, em média, dois cartões de cartão de crédito ou débito.
pagamento ativos. Noutros países onde as tran- O pagamento direto através de aplicações
sações com dinheiro de plástico são ainda mais como o PayPal ou o Square também está a
frequentes, como os Estados Unidos, o valor adquirir importância: no último ano, a sua
sobe para 3,2 per capita. É verdade que ainda implantação cresceu quase 40 por cento,
pagamos muitos bens e serviços com dinheiro segundo a consultora Juniper Research. Essas
vivo, mas o recurso aos cartões é maioritário. plataformas digitais estão diretamente asso-
Porém, há outro dado, talvez ainda mais ciadas à conta à ordem e enviam o dinheiro
ISTOCK

interessante, a tomar em consideração: dentro como se se tratasse de uma transferência


de poucos anos, é possível que a maior parte do bancária.
dinheiro de plástico desapareça, e o culpado será
também algo que anda connosco na mala ou ENTRAM OS PESOS PESADOS
no bolso. Falamos, claro, do telemóvel. Efetiva- Contudo, os especialistas concor-
mente, os ingredientes para poder dar o salto dam que a fórmula mais segura e
e começar a pagar com o telefone estão sobre disseminada será o pagamento por
a mesa há já algum tempo, embora as inicia- NFC (Near Field Communication),
tivas para impulsionar a medida tenham tido uma tecnologia que
uma receção relativamente tímida. Será este o transmite informa-
ano da sua descolagem definitiva? ção entre dispositi-
As transações podem ser geridas de diver- vos separados por
sas formas. Um dos primeiros mecanismos, poucos centímetros.
que se começou a utilizar no início da década Vários bancos e ope-
passada, funcionava através de SMS: mensa- radores de telemó-
gens associadas à conta do utilizador permi- veis desenvolveram
tiam pagar pequenas despesas, como uma serviços baseados
deslocação de táxi, com a possibilidade de no NFC, embora com
ISTOCK

incorporar a quantia na fatura do telemóvel. aplicações muito limi-

46 SUPER
Interessante 47
JOSÉ ANTONIO PEÑAS
Uma transação, passo a passo
Rápido e fiável: mostramos-lhe como se efetua uma compra, desde o gesto de tirar
o telefone do bolso até ao momento em que o banco lança a despesa na nossa conta.

Transac. cod. BANCO


7865B33F17

65,2
7865B33
OK OK

Ao aproximar o Selecionado Verificada O banco recebe


telefone do terminal o cartão com a identidade, o código da
(o mesmo que que se pretende o telefone envia transação
se usa agora), pagar a conta, um código único e gere-o como
abre-se a aplicação o telemóvel pede de transação, se se tratasse
de carteira virtual, a confirmação em vez do número de um pagamento
com a verba a pagar da identidade. do cartão ou outros convencional.
e os diferentes Alguns sistemas dados pessoais, Alguns serviços
cartões de débito exigem impressão o que aumenta incluem programas
e de crédito digital, noutros pode a segurança de desconto
disponíveis. usar-se um PIN. da operação. ou de fidelização.

O êxito dos sistemas dependerá


de a experiência ser agradável
tadas. O apoio das companhias Apple, Sam- os bancos perdem quase cinco cêntimos em
sung e Google, que criaram plataformas exclu- fraudes, número que acaba por se repercutir
sivas junto de grandes entidades financeiras na nossa carteira, através das comissões
e emissoras de cartões de crédito, poderá cobradas pelo uso dos terminais.
representar o reconhecimento definitivo do Uma espécie de carteira digital permite o
processo. acesso aos cartões armazenados no telemóvel.
O seu funcionamento é muito simples. O Ali, há espaço para muito mais do que as clássi-
empregado regista a compra normalmente. cas modalidades de pagamento por crédito ou
Para pagarmos, aproximamos o telemóvel do débito: alguns sistemas são compatíveis com
terminal de pagamento. Abre-se automatica- cartões de fidelização ou de oferta. A van-
mente uma aplicação, a carteira digital, que tagem é que não é preciso selecioná-los por
permite escolher o cartão bancário. Feita a separado, pois os pontos acumulados, por
escolha, a operação é confirmada através da exemplo, são acrescentados de forma auto-
impressão digital ou introduzindo um código mática à conta do utilizador.
pessoal. O telemóvel envia o código necessário
para a transação e o terminal transmite sinal ao A DUAS VELOCIDADES
banco para efetuar a transferência ou o débito Como afirmou, um dia, o norte-americano
no cartão de crédito. William Gibson, o futuro já chegou, só que não
se encontra equitativamente distribuído. Este mas para efetuar pagamentos com telemóvel,
AUMENTO DA SEGURANÇA tipo de soluções, que ainda nos podem parecer nomeadamente o MB Way, o sistema da Seqr
Além da comodidade de não ter de remexer algo de remoto, já funcionam diariamente no e o Meo Wallet, da PT. Por outro lado, verifica-
a carteira à procura do dito cartão, este processo Japão e começam a acelerar nos Estados Uni- -se um crescente interesse por estas opções
oferece uma vantagem importante relativa- dos, onde as transações movimentaram mais após a chegada dos cartões sem contacto: um
mente às formas tradicionais de pagamento: o de 3500 milhões de dólares. cartão de débito ou crédito normal mas que
nosso dispositivo guarda uma réplica codificada A Europa vai mais devagar, embora surjam inclui um chip de comunicação sem fios (NFC);
do cartão de crédito ou débito, mas não os seus novas iniciativas. O Apple Pay, o serviço da com- quando se aproxima de um terminal que
dados concretos: há apenas um número válido panhia da maçã, foi lançado no Reino Unido. suporte esta tecnologia, a transação é automa-
para cada pagamento. Os utilizadores podem usar o seu iPhone não ticamente validada. O mesmo poderá ser feito
Trata-se de um pormenor fundamental, pois só para compras em lojas como para pagar os através do telemóvel.
evita o risco de poderem intercetar ou duplicar transportes públicos em Londres. A Visa con- Nos países onde estes serviços já são uma
o número do nosso cartão, ou o perigo de firmou que os seus cartões europeus serão realidade, a reação do público tem sido boa,
alguém com más intenções poder usar um leitor também suportados pelo formato da Google, embora nem sempre estejam isentos de pro-
próximo para enganar o telemóvel. Hoje, por o Android Pay, que deverá chegar este ano. blemas. A Apple, por exemplo, conseguiu que
cada cem euros gastos com dinheiro de plástico, No que se refere a Portugal, há vários siste- quase 11% dos agregados norte-americanos

48 SUPER
Sorriso único. Jack Ma, presidente da
Alibaba, o gigante chinês do comércio Numa loja
eletrónico, apresenta um sistema
de identificação facial para garantir
a segurança das transações.
perto de si
O s utilizadores portugueses já têm
à sua disposição algumas das
opções mais avançadas de pagamen-
tos através do telemóvel. Explicamos,
resumidamente, as duas principais. A
SIBS, entidade que gere a rede Multi-
banco, lançou o serviço MB Way, que
permite aos consumidores o acesso a
algumas das funcionalidades associadas
ao Multibanco, como pagamentos e
transferências, a partir de um telemóvel.
Para isso, devem dirigir-se a uma caixa
Multibanco e associar os seus cartões
bancários ao número do telemóvel, es-
colhendo um PIN com seis dígitos (se-
rá este que permitirá os pagamentos).
Este método já pode ser utilizado, por
exemplo, nas lojas Jumbo e Pão de Açú-
car ou na compra de bilhetes através da
Rede Expressos. Por outro lado, a Seqr
Portugal, empresa do grupo Seamless,
um dos principais fornecedores de sis-
temas de pagamento para telemóveis a
nível mundial, oferece um serviço que
define como sendo uma carteira móvel
gratuita para os consumidores, econó-
mica para os lojistas e 50 por cento mais
rápida do que os sistemas de pagamen-
to convencionais. Através da aplicação
SEQR, o utilizador tem apenas de
reconhecer um QRcode quando estiver
a pagar e aprovar a compra através de
um código PIN. Não é pois necessário
andar com a carteira cheia de cartões
de pagamento ou de fidelização, já que
tudo pode ficar guardado no telefone.
O sistema está disponível, por exemplo,
na cadeia MacDonald’s, na Starfoods
(que inclui a Companhia das Sandes
e a Loja das Sopas), na empresa de
brinquedos Science4you e nas lojas do
Grupo Lanidor.
REUTERS

colocassem uma cópia do seu cartão no tele- NFC, de qualquer terminal de um ponto de os pagamentos, pois os terminais saberiam
móvel. Contudo, nos primeiros meses, as lojas venda. Embora não tenha leitor de impressões instantaneamente se a pessoa que aproxima
não estavam preparadas ou não sabiam como digitais ou de outro tipo de identificação, é o aparelho do sensor é quem diz ser. É o fim
esclarecer as dúvidas dos clientes. relativamente seguro: só pode ser utilizado das incómodas palavras-passe, cada uma com
enquanto permanecer em contacto com a seu conjunto de critérios...
AVANÇOS BIOMÉTRICOS nossa pele e depois de ter sido desbloqueado O reconhecimento facial é outra alternativa,
Seja como for, o êxito dependerá, em grande com um código pessoal. muito fácil de desenvolver graças às câmaras
medida, de a experiência se revelar cómoda. Novos avanços no campo da biometria na frente dos telemóveis. A Alibaba, a grande
Esse tem sido o calcanhar de Aquiles para mui- poderão deixar definitivamente sem trabalho companhia chinesa de comércio eletrónico,
tas dos projetos surgidos até agora, porque os ciberladrões. A empresa canadiana Bionym pegou na possibilidade e fez várias experiên-
obrigavam o utilizador a associar-se a um ser- criou um sistema que se baseia no nosso ritmo cias. Os utilizadores podem pagar olhando a
viço especial ou a formalizar um complicado cardíaco, pois os padrões seguidos pelo cora- câmara com um sorriso. A foto é introduzida
processo de adesão. Por isso, vários fabrican- ção ao bater são tão complexos que cada indi- nos servidores da empresa e analisada para
tes começam a optar pelo pulso: o lançamento víduo possui o seu próprio ritmo. Um sensor garantir que é mesmo o utilizador que está a
do Apple Watch abriu um novo canal. Basta em forma de braçadeira, ou integrado no pró- fazer a compra. Tão simples como isto.
aproximar o relógio, equipado com um chip prio relógio, poderá ser a solução para facilitar A.J.L./I.J.

Interessante 49
Documento

As teorias dos
Big Bangs
Que tudo começou com uma grande explosão
parecia ser uma ideia inquestionável, mas a
moderna astrofísica adianta, agora, alternativas
exóticas, com universos múltiplos e ciclos eternos
de expansão, contração e regresso ao início.

T
udo indica que, durante a sua pri- todos os problemas de uma assentada, continua
meira infância, o universo era extraor- a ser a tese apoiada por boa parte da comuni-
dinariamente denso e quente, e que dade científica. Atualmente, trabalha-se num
foi arrefecendo enquanto crescia. A modelo de inflação eterna, um campo do qual
radiação cósmica de fundo de micro-ondas, surgiriam infinitos universos com diferentes
uma espécie de foto do cosmos quando ele características e condições iniciais: planos,
tinha apenas 380 mil anos, revela duas carac- curvos, que se expandem para sempre ou se
terísticas: que é tridimensionalmente plano contraem de imediato. Tal como explicou o
(o que coincide com a geometria euclidiana), próprio Guth, “partindo deste pressuposto,
e que possui uma temperatura homogénea. tudo o que possa acontecer acontecerá: de
Este último dado é difícil de explicar, pois facto, fá-lo-á um número infinito de vezes”.
implica que zonas separadas por longas dis-
tâncias troquem informação entre si. A que TODOS OS NÚMEROS
se deve o equilíbrio térmico existente entre Por outro lado, isso poderia explicar por que
pontos tão distantes e teoricamente sem pos- motivo a carga do protão ou a massa do eletrão
sibilidade de terem tido contacto físico? possuem valores tão surpreendentemente
Para que tais atributos pudessem encaixar no apropriados para a química e a vida poderem
modelo do Big Bang, o físico norte-americano prosperar; o nosso mundo é improvável, pois
Alan Guth, do MIT, propôs, em 1980, a teoria saem todos os números do Euromilhões: há
da inflação. Guth defende que, durante uma sempre prémio.
brevíssima fração do primeiro segundo de Os partidários do cosmos inflacionário afir-
vida, o universo multiplicou 1026 vezes o seu mam que a expansão ultra-acelerada deve ter
tamanho. Ou seja, deu um imenso esticão mal deixado uma marca no espaço-tempo, uma onda
nasceu, e isso a uma velocidade muito superior gravitacional que teria polarizado a radiação
à da luz. Como o que se teria inflacionado era o de fundo de micro-ondas. O sinal, extraordi­
espaço-tempo (e não as partículas), não con- nariamente ténue, seria o primeiro dado real
tradiz a teoria da relatividade. O inflatão seria desse instante, 10–36 segundos após o Big Bang.
o campo hipotético com a energia necessária Contudo, cientistas como Paul Steinhardt
para produzir a repulsão gravitacional. duvidam de que ele possa alguma vez ser des-
O estranho cenário, que parecia resolver coberto. Steinhardt considera que o modelo

50 SUPER
ENIGMAS DA CIÊNCIA: UNIVERSO

YURI SMITYUK/ITAR-TASS PHOTO/CORBIS

Escutar o cosmos. O radiotelescópio


russo Galenki RT-70 faz parte do Centro
Leste de Comunicações do Espaço
Profundo. Este tipo de observatórios
tenta captar ondas de rádio emitidas
por objetos muito distantes, incluindo
a pista de moléculas orgânicas
de origem extraterrestre.

Interessante 51
Documento

ARCHIVE COLLECTION
Paul Steinhardt afirma que todos os
adeptos da teoria da inflação sabem
que ela não pode estar correta.

Uma alternativa à relatividade


O físico Paul Steinhardt, nascido em
1952, foi o primeiro a postular a exis-
tência de quasicristais, estruturas sólidas
mente, estuda-se um par de conjeturas. Se-
rá o Big Bang realmente o início do espaço
e do tempo? Trata-se de um ressalto que se
modelo concebido por Guth conhecem
estes problemas, mas não os expõem em
livros ou em artigos. A maioria prefere não
com um tipo especial de simetria. Entusiás- produz após um período de contração que exprimir as suas dúvidas em voz alta, pois
tico apoiante de Alan Guth nos primórdios se seguiu a uma expansão? Penso que am- acha que conseguirá, a qualquer momento,
da teoria inflacionária, acabaria depois por bas as possibilidades são admissíveis. resolver todas as incoerências e voltar a
se converter num dos seus principais críti- Quais os problemas criados pela teoria infla- colocar a ideia no local proeminente que
cos, como explica em seguida. cionária? Porque é tão crítico? ocupava quando foi apresentada pela pri-
O que significa a ideia da singularidade no O meu ponto de vista é que não apresen- meira vez.
início do cosmos? ta nenhuma previsão clara. A conjetura No caso de virem a encontrar-se ondas gravi-
A teoria da relatividade falha no que diz conduz a um beco sem saída; não a uma tacionais, isso significará que houve inflação?
respeito ao próprio momento inicial, isto é, singularidade, como a relatividade, mas ao Implicaria indiretamente que existem outros
o Big Bang. Se uma teoria inclui equações multiverso. A inflação foi introduzida para universos?
com singularidades e soluções que explo- explicar por que razão o cosmos é plano, Eu diria que não. Imaginemos que obser-
dem, isso significa que está incompleta. entre outras propriedades. Inicialmente, vamos ondas gravitacionais primordiais
Sabemos que algo está errado na ideia de pensávamos que a ideia funcionava, mas ao captar a polarização (denominada
Einstein, porque se chega a um ponto em depois descobrimos que, ao incluir os de modo-B) que essas perturbações do
que a densidade, a temperatura e a curva- efeitos quânticos, a expansão acelerada espaço-tempo produziriam no fundo de
tura do universo proporcionam valores não acabava. Assim, haveria zonas que se radiação de micro-ondas. Não significaria
infinitos. Assim, não se devia tentar esticar inflacionariam, chegada a sua vez, e de cujo que a inflação é verdadeira, ou que exista o
mais esse modelo, mas sim substituí-lo por interior nasceriam universos diferentes, multiverso ou o Big Bang. Creio que outras
outro melhor. Além disso, a relatividade cada qual com as suas propriedades. A hipóteses poderiam explicar muito melhor
não incorpora a física quântica, e seria mui- possibilidade de se produzir um universo esses fenómenos. Neste preciso momen-
to importante que o fizesse. Quando a tem- tão plano como o nosso é infinitamente to, estou a trabalhar num artigo em que
peratura e a densidade são muito elevadas, pequena, praticamente igual a zero. De proponho um universo que se expande, se
os efeitos quânticos são mais relevantes. facto, há maiores probabilidades de se criar contrai e ressalta. Esse modelo cosmoló-
Porém, ainda não sabemos como formular um cosmos sem inflação do que com ela. gico não produz múltiplos universos, mas
uma teoria quântica da gravitação. Atual- Todos os especialistas que trabalharam no cria os restantes efeitos pretendidos.

52 SUPER
SPL
ENIGMAS DA CIÊNCIA: UNIVERSO

Histórias
intermináveis
O s cenários de partos múltiplos
ilustrados à esquerda resultam
de levar as hipóteses cosmológicas mais
aceites às últimas consequências.
Multiverso – O modelo da eterna
inflação, em cima, postula que estão
constantemente a nascer universos, com
todas as características físicas possíveis,
em pequenas zonas ou bolsas cósmicas.
Grande ressalto – Segundo a teoria das
cordas, ilustrada em baixo, poderiam
existir estruturas com muitas dimen-
C
sões, as branas, que colidem (A), se
afastam umas das outras (B) e voltam a
aproximar-se(C), criando um ciclo infi-
nito de big bangs.

Um resultado semelhante foi obtido pelo


já referido Paul Steinhardt e pelo seu colabo-
rador Neil Turok, do Instituto Perimeter, de
B
Ontário (Canadá). Para criar o seu modelo
cósmico, partiram da teoria das cordas. Como
explica Turok, “todos os pormenores das leis
da física são determinados pela estrutura do
universo; em concreto, pela disposição das
dimensões suplementares do espaço, minús-
culas e aglomeradas”.
De acordo com esta tese, a realidade seria
composta por branas, objetos formados por
cordas com um grande número de dimensões.
Essas branas estariam em movimento, e seria
a sua colisão que deu origem ao universo:
“Teria sido um acontecimento muito violento,
que criou uma grande quantidade de calor e
radiação de partículas... precisamente como
um big bang.” A singularidade desaparece,
espaço e tempo expandem-se eternamente.
Se estiverem certos, então o cosmos também
inflacionário é belo, mas tão elástico que pode mostra as suas limitações”. Talvez um dia se seria cíclico: nasceria, expandir-se-ia e, por fim,
explicar qualquer fenómeno ou dado empí- consiga obter, com o desenvolvimento de uma voltaria a contrair-se até ressaltar de novo.
rico, de modo que se torna, na prática, incon- nova física que junte a relatividade e a física “Todo o universo poderia ter existido sempre,
trastável. Se forem captados sinais, o físico quântica, informação sobre o que ocorreu com séries de explosões a estender-se para
dá por assente que não serão ondas gravitacio- mesmo antes da grande explosão. trás, até ao infinito, e até ao infinito futuro.”
nais, como já aconteceu com o falso positivo Em vez de ser um acontecimento extraordi-
anunciado pela equipa do BICEP2, em 2014. REBOBINAR O COSMOS nário e inexplicável, o Big Bang produzir-se-ia
Há outras interrogações. Se aplicarmos A teoria gravitacional de anéis é uma das periodicamente, tal como acontece com o dia
a teoria da relatividade geral (a que é utili- candidatas a conseguir tal unificação. As suas e a noite. Tanto na proposta baseada na teoria
zada para estudar a evolução do cosmos) ao equações permitem que a singularidade inicial gravitacional de anéis como na que tem por
mesmo instante inicial, a densidade e a tem- desapareça e que o tempo se estenda até ao ins- fundamento a teoria das cordas, pretende-se
peratura tornam-se infinitas. Como assinala o tante que precedeu o Big Bang. Se pudéssemos evitar a portagem da inflação e das suas (oca-
físico alemão Martin Bojowald no livro Antes rebobinar o filme da existência do cosmos, che- sionalmente extravagantes) implicações. Os
do Big Bang, “um momento em que uma equa- garíamos a um ponto em que o ecrã não ficaria seus defensores procuram, agora, experiências
ção matemática dá como resultado ‘infinito’ negro, mas produzir-se-ia um grande ressalto ou observações que permitam ancorá-las em
não é o princípio (ou o fim) dos tempos: é, (big bounce). O universo estaria a palpitar, a terra firme.
simplesmente, um momento em que a teoria expandir-se e a contrair-se eternamente. R.C.

Interessante 53
INSTITUTO DE FÍSICA MAX PLANCK
Documento

Um puzzle
incompleto
Embora tenham reconstituído a história das
partículas que formam a realidade visível, os
físicos ainda têm trabalho por fazer. Sobretudo,
conseguir finalmente saber de que diabo é feita
(ou se existe) a esquiva matéria escura.

54 SUPER
ENIGMAS DA CIÊNCIA: MATÉRIA

Sensível. A experiência CRESST,


no Laboratório Nacional de Gran Sasso
(Itália), foi concebida para detetar
partículas de matéria escura mais leves
do que as que se procuravam até agora.

Interessante 55
Documento

Observações combinadas dos telescópios

ARCHIVE COLLECTION
Para Pavel Kroupa, o campo de Hubble e Spitzer permitiram identificar
investigação da cosmologia está Tanya, a galáxia mais antiga e distante
desvirtuado e é anticientífico. que conhecemos. Formou-se apenas
400 milhões de anos após o Big Bang.

Matéria escura? Não existe...


O astrofísico Pavel Kroupa, nascido
em 1963, de origem checa e nacio-
láxia como a Via Láctea, com um raio de
30 a 45 mil anos-luz de estrelas e gás. Se-

O
nalidade australiana, dirige o grupo de gundo o modelo aceite, estaria rodeada
investigação de Populações e Dinâmica por um enorme halo de matéria escura, s cientistas sabem o que aconteceu
Estelar da Universidade de Bona (Ale- de 450 mil anos-luz. Se uma galáxia anã, no universo desde que este tinha
manha). Quando começou a estudar o com o seu próprio halo, atravessar o cír- apenas 10–35 segundos de idade.
problema da matéria escura, há cinco culo da maior, as suas partículas de ma- Nessa altura, a temperatura atingia
anos, apercebeu-se de que ela talvez nem téria escura deslocar-se-iam, retirando- os 1028 graus: era como se alguém tivesse tido
sequer existisse. -lhe energia. Não é isso que observamos. a brilhante ideia de instalar uma sauna no
Que observações excluiriam a hipótese da Quando comecei a estudar o assunto, inferno. Nessas condições, os fotões (trans-
matéria escura? apercebi-me de que a MOND oferece missores da radiação eletromagnética) podiam
Entre 90 e 95 por cento das galáxias uma explicação satisfatória. A matéria transformar-se noutro tipo de partículas
têm forma de disco. Quando se calcula escura, simplesmente, não existe. muito massivas, numa correlação entre energia
a velocidade do gás e das estrelas que se Nesse caso, porque é que a grande maioria e massa que é descrita na célebre equação de
encontram longe dos centros galácticos, dos cientistas rejeita essa solução? Einstein: E=mc2. Porém, mal nasciam, colidiam
obtém-se sempre, basicamente, o mes- A priori, eu não estava a favor da matéria entre si e convertiam-se em fotões.
mo valor, algo inexplicável pela teoria escura ou da teoria MOND. Não estava Depois, a temperatura desceu a pique, o que
em voga. Em contrapartida, se aplicar- a favor nem contra. Em contrapartida, permitiu que os quarks entrassem em cena.
mos a hipótese da dinâmica newtoniana grande parte dos especialistas reagiu Caracterizados por se juntarem em trios,
modificada (MOND), uma lei alternati- contra a MOND de maneira totalmente trata-se das partículas que formam dois velhos
va de gravitação, a trajetória de rotação anticientífica: não só se negam a perce- conhecidos: os protões e os neutrões. A reali-
encaixa. Outro dos principais problemas bê-la como a rejeitam por completo. Isso dade edificou-se sobre ambos.
reside no alinhamento das galáxias- demonstra que o campo da investigação Transcorrera apenas um segundo na vida do
-satélite, ou anãs, em redor de grandes cosmológica está desvirtuado, com cien- universo. Nesse período de tempo, surgiram
estruturas galácticas. Segundo a tese do tistas que só trabalham para impor as e caíram impérios. Enormes quantidades de
halo de matéria escura, elas deviam estar suas opiniões, sem ligar aos factos. Por partículas pereceram mais depressa do que os
distribuídas esfericamente, em todas as exemplo, é habitual a afirmação de que o protagonistas de Guerra dos Tronos. Ninguém
direções. Porém, as observações da Via Cúmulo Bala ou 1E 0657-56 (formado podia imaginar que, precisamente nesse
Láctea e de Andrómeda não o corrobo- por dois cúmulos galácticos em colisão) momento, se produzisse uma encarniçada
ram. Contudo, talvez o argumento mais prova a existência da matéria escura, batalha: os eletrões, com carga negativa, coli-
importante seja o proporcionado pela quando se trata de uma dedução total- diam com os seus gémeos de carga positiva,
fricção dinâmica. Imaginemos uma ga- mente falsa. os positrões. Após o impacto, ambos desa-
pareciam, emitindo um fotão. Porém, como

56 SUPER
ENIGMAS DA CIÊNCIA: MATÉRIA

NASA / ESA
explica o divulgador britânico Marcus Chown, Durante os primeiros compassos do cosmos, dade visível e palpável que nos rodeia. Todavia,
“devido a um ligeiro e (até hoje) misterioso foram também criados, excecionalmente, áto- os cientistas estão praticamente convencidos
desequilíbrio nas leis da física, havia 10 000 mos de lítio e de berílio. de que constitui apenas uma pequena parte
milhões + 1 eletrões por cada 10 000 milhões Os eletrões possuíam tanta energia que da matéria universal. As galáxias e os cúmulos
de positrões; depois da orgia da aniquilação, o nenhum núcleo conseguia apanhá-los. Não galácticos, por exemplo, giram a tamanha velo-
universo ficou com um superavit de matéria”. havia átomos neutros, apenas iões, com carga cidade que se desmembrariam se fossem ape-
Esse desfasamento continua a ser um dos mis- elétrica. Os fotões eram absorvidos pelos ele- nas feitos da matéria luminosa captada pelos
térios da física atual. trões e, depois, novamente emitidos. O con- instrumentos de observação. Deve existir
junto formava um plasma impenetrável para algo indetetável, que não emite radiação.
PRIMEIROS NÚCLEOS ATÓMICOS a radiação: por isso, não nos chegou qualquer Há anos que centenas de grupos de investi-
O cosmos continuou a crescer. Com menos luz daquela época. gadores perseguem a partícula que possa expli-
energia, as partículas, que tinham ido cada Durante os primeiros 380 mil anos, a tempe- car aquilo a que chamaram “matéria escura”.
uma à sua vida, travaram o seu ritmo frenético. ratura caiu para os 3000 Kelvin. Quando os ele- Todavia, poderão apanhar uma desilusão
Quando protões e neutrões conseguiram apro- trões deixaram de ser ultraenergéticos, per- se o físico israelita Mordehai Milgrom tiver razão.
ximar-se, ficaram unidos pela força nuclear maneceram aprisionados pelos núcleos ató- Segundo este autor, a massa que falta não é essa,
forte, e surgiram os primeiros núcleos atómicos. micos, num momento conhecido por “recom- e tudo não passa de uma ilusão matemática.
Foi um acontecimento muito benéfico para os binação”. Nessa altura, surgiu a matéria Ao modificar as teorias dinâmicas de Newton e
neutrões: em liberdade, metade desintegra-se neutra e o universo tornou-se transparente. Einstein, Milgrom propôs, nos anos 80, a teoria
a cada quinze minutos, um suicídio em massa da dinâmica newtoniana modificada (MOND,
que cessa no momento em que passam a cons- SEMENTES DE ESTRELAS na sigla inglesa). Segundo esta hipótese, a
tituir o núcleo de um átomo. Isto explica o As pequenas diferenças térmicas que se força gravitacional seria mais intensa a gran-
facto de haver mais protões do que neutrões. registam na radiação de fundo de micro-ondas des distâncias do que preveem os modelos
Com um segundo de vida, o universo era um (o débil eco do Big Bang) constituíram as convencionais. Através dos seus cálculos, con-
magma com uma temperatura ainda elevada, sementes das primeiras estrelas. Quando esses segue explicar as elevadas velocidades rota-
na ordem dos dez mil milhões de graus, o que astros primordiais explodiram na forma de cionais de galáxias e cúmulos sem recorrer à
provocava colisões e combinações. Assim, supernovas, disseminaram pelo espaço todos matéria escura. Milgrom assegura que, apesar
quando um neutrão e um protão se uniam, os elementos da tabela periódica, surgidos da da rejeição e das críticas iniciais, as suas ideias
surgia o deutério, um isótopo do hidrogénio. fusão dos núcleos de hidrogénio e hélio, ainda continuam vivas e estão “lentamente a ganhar
Depois, quando se somava a esse núcleo outro esmagadoramente maioritários no cosmos. terreno”.
neutrão e outro protão, aparecia o hélio. É esta a história de tudo o que forma a reali- R.C.

Interessante 57
SPL
Documento

Um deserto
A vida surgiu de uma só vez
ou houve passos em falso?
É um fenómeno autóctone

animado
da Terra ou pode
produzir-se em qualquer
outro lugar do cosmos?
58 SUPER
ENIGMAS DA CIÊNCIA: VIDA

Momento de paz. Este poderia


ser o cenário em que se começou
a cozinhar a vida terrestre, há uns
4000 milhões de anos. Nessa altura,
o bombardeamento de meteoritos
acalmou e as crateras dos vulcões
e dos impactos encheram-se de água.

O
s fósseis dos organismos vivos téticos que aproveitam a energia do Sol para dade de outro ser orgânico poder emergir de
mais antigos que se conhecem obter hidrogénio da água, libertando oxigénio um meio abiótico, inerte, ficou reduzida a zero.
foram encontrados no noroeste na atmosfera. Essa atividade metabólica teria Todos os seres vivos que existem utilizam
da Austrália e têm 3400 milhões de transformado o nosso planeta. o mesmo alfabeto genético, baseado em ape-
anos. Embora cientistas como o paleobiólogo Como explica o bioquímico Nick Lane, do nas quatro “letras”: adenina (A), timina (T),
Martin Brasier, recentemente falecido, tenham University College London, “o tipo de química guanina (G) e citosina (C). Esse livro de instru-
sugerido que tais estruturas poderiam ter sido que é necessária para dar origem à vida requer ções não só consegue codificar a informação
formadas por simples processos físicos, é a ausência de oxigénio”, algo que caracterizou e determinar o metabolismo da célula como,
convicção generalizada que são obra de cia- a atmosfera terrestre até ao aparecimento dos também, transmitir essa informação à des-
nobactérias, um tipo de micróbios fotossin- primeiros micróbios. Desde então, a possibili- cendência. Repete sempre o mesmo trajeto:

Interessante 59
Documento

SPL
Chandra Wickramasinghe acredita
que há cada vez mais provas
em favor da teoria da panspermia.

Biosfera cósmica
N os anos 70, o astrónomo Fred
Hoyle (1915–2001) e o matemá-
tico Chandra Wickramasinghe (nascido
um fenómeno cósmico: teria tido origem
uma única vez na história do universo,
e a panspermia ter-se-ia encarregado do
em 1939) lançaram a tese de que foram resto. Por outro lado, a Terra é um cam-
os cometas que distribuíram a vida pelo po aberto, e as células e o seu material
cosmos. Desde então, Wickramasinghe, genético podem mover-se com facilidade
natural do Sri Lanka e professor na Uni- uma vez estabelecidas, entrando e saindo
versidade de Buckingham (Inglaterra), do planeta. Por exemplo, se um cometa
tem insistido na controversa ideia, co- ou um asteroide atingir a Terra, uma pe-
nhecida por “panspermia”. quena fração dos materiais expulsos pode
Que provas existem para defender que a alcançar os sistemas planetários circun-
vida provém do espaço? dantes. Recentemente, estimou-se que
Em primeiro lugar, também não há provas o número de exoplanetas presentes na
de que tenha começado no nosso planeta. nossa galáxia pode ultrapassar os 140 mil
As primeiras bactérias teriam surgido milhões! Isso significa que a distância en-
a partir do momento em que podiam tre mundos extrassolares potencialmente
sobreviver, há cerca de 4000 milhões de habitáveis é de apenas alguns anos-luz. o ácido ribonucleico (ARN) extrai e transporta
anos. Aconteceu em finais do chamado Estamos a falar de uma magnitude muito as diretrizes contidas no ácido desoxirribonu-
éon Hadiano, quando a Terra sofreu um pequena do ponto de vista da astronomia, cleico (ADN) até aos ribossomas, organitos
episódio de terríveis impactos de come- e que pode ser facilmente ultrapassada que as processam para fabricar proteínas.
tas. É provável que esses corpos celestes por processos panspérmicos.
trouxessem água para a Terra, e também Crê que a sua tese possui agora mais funda- TETRAVÔ COMUM
transportassem vida. mento do que quando a propôs, há quarenta Esta coincidência indica que todas as células
Exclui, então, a ideia de que os primeiros or- anos? partilham um único tetravô, batizado com o
ganismos surgiram de um meio inerte? Sim. É apoiada pela descoberta de que nome de LUCA (sigla inglesa de “último ante-
O aparecimento de células autorreplican- uma importante fração do carbono exis- passado comum universal”), um organismo
tes simples a partir de uma sopa pré-bióti- tente no universo se encontra na forma hipotético do qual não existem restos fósseis.
ca (através do ARN ou de qualquer outra de moléculas biologicamente relevantes. Até agora, pensava-se que essa criatura pri-
rota proposta) implica tremendas impro- Além disso, estudos recentes indicam que mordial teria surgido há 3700 milhões de anos,
babilidades. Se nos afastarmos do peque- os cometas são compostos de um mate- mas uma nova descoberta poderá atrasar o
níssimo volume que os oceanos primor- rial semelhante. Por último, a deteção de seu nascimento. Trata-se de cristais de zircão,
diais da Terra ocupavam e considerarmos células bacterianas em amostras de poeira com uma antiguidade de 4100 milhões de anos,
um cenário muito mais vasto, colmatamos de cometas obtida na alta estratosfera de- dotados de certos vestígios orgânicos de pro-
a brecha do sumamente improvável. É es- veria convencer-nos de que fazemos parte vável origem origem biológica.
sa a razão para invocar que a vida constitui de uma única biosfera interligada. Seja qual for a data em que surgiu, LUCA
parece um ente demasiado complexo e per-

60 SUPER
ENIGMAS DA CIÊNCIA: VIDA

Nos limites da sobrevivência giam aminoácidos, os componentes básicos


O estudo dos extremófilos (micróbios da vida. A experiência fazia crer que estamos
que prosperam em condições hostis) perante um fenómeno suscetível de produzir-
pode ajudar-nos a compreender
como surgiram os primeiros organismos -se de forma relativamente simples: é apenas
vivos. Na foto, busca de bactérias preciso esperar que as peças encaixem.
numa fonte termal da Nova Zelândia. Contudo, Nick Lane considera que há três
pontos fracos na experiência de Miller: “Em
primeiro lugar, os geólogos não pensam que
a atmosfera da Terra pudesse conter os gases
(metano, hidrogénio e amoníaco) que ele utili-
zou. Além disso, o ponto de partida implica que
as primeiras células teriam de ser heterótrofas,
isto é, consumiam moléculas orgânicas da pró-
pria sopa pré-biológica. Porém, ao observar a
árvore da vida, deduz-se que os organismos
primordiais eram entes autótrofos: produziam
o seu próprio alimento. Por último, a hipótese
tem falta de uma força que transforme uma
massa desorganizada num ser vivo.”
Lane prefere situar a origem nas fumarolas
hidrotermais alcalinas, fontes que surgem
de fendas nos leitos oceânicos: “Ali, há uma
concentração relativamente elevada de hidro-
génio, catalisadores naturais que aumentam
a velocidade das reações químicas, um cons-
tante abastecimento de reagentes e uma força
motriz termodinâmica”, explica. O bioquímico
britânico acrescenta que todas as células “reti-
ram a sua energia do carbono de uma forma
muito específica, com cargas elétricas na
sua membrana, criando um campo elétrico
intenso à sua volta”. Ora, dá-se a circunstância
de também se produzir um gradiente elétrico nas
fumarolas, o que poderia ser funda­mental
para o aparecimento do primeiro ser vivo.

HIPÓTESE RADICAL
Existe outra possibilidade mais radical: se
não há indícios do processo que conduziu a
LUCA, isso talvez se deva ao facto de ele não
se ter produzido na Terra, mas em qualquer
outro lugar do universo.
feito para poder ser o primeiro ser vivo. Antes, capacidade para desempenhar, simultanea- A teoria da panspermia, defendida por
deve ter havido uma série de passos intermé- mente, papéis metabólicos e replicativos. Chandra Wickramasinghe (e por outros cientis-
dios para desenvolver os ciclos e processos Outro equívoco consiste em pensar que a tas antes dele), afirma que a vida se dispersou
metabólicos e replicativos necessários. simplicidade e a eficiência se registaram desde pela Terra a bordo de meteoritos ou cometas,
Nesse caso, qual o ponto de partida e o o início. O Chemoton concebido pelo bioquí- e que havia um tráfego constante de organis-
trajeto seguido pela bioquímica até chegar mico húngaro Tibor Ganti (modelo abstrato mos pela galáxia. A conjetura foi utilizada para
a LUCA? Segundo Daniel Dennett, professor de organismo que reúne os processos mais explicar, por exemplo, um fenómeno tão sin-
catedrático de filosofia da Universidade Tufts elementares para subsistir) teria de ser, forço- gular como o que ocorreu em 2001: durante
(Boston, Estados Unidos) é um erro frequente samente, o resultado final de um longo per- dois meses, uma chuva vermelha que parecia
pensar que “os passos que permitem saltar do curso. Portanto, nas suas origens, a vida talvez feita de gotas de sangue caiu sobre o estado
meio inorgânico para a célula descrevem uma tenha adotado formas monstruosamente indiano de Kerala. Segundo alguns cientistas,
linha reta”. Dennett considera que, nesse grandes e ineficazes. poderia conter micróbios extraterrestres que
lapso de tempo, podem ter-se produzido viajavam na cauda de algum cometa. Antes,
“gambitos, como no xadrez”, com erros apa- PONTOS FRACOS NA TEORIA em 1984, surgiu a sensacional notícia de que
rentes que proporcionariam, em última ins- Uma das ideias mais persistentes tem sido a tinham sido encontrados fósseis de micro-
tância, uma vantagem decisiva. Um exemplo de pensar que o primeiro ser surgiu numa espé- -organismos no meteorito ALH84001, que se
desse tipo de subterfúgio estaria relacionado cie de sopa de elementos químicos. O cien- separou de Marte há 4000 milhões de anos.
com a ideia de que os preâmbulos da vida se tista californiano Stanley Miller reproduziu, Contudo, nenhuma destas notícias convenceu
basearam no ARN, em vez do ADN, por o pri- em 1953, as condições da Terra primitiva num a maioria dos especialistas.
meiro ser uma molécula mais maleável e com tubo de ensaio e observou a forma como sur- R.C.

Interessante 61
Documento

Tudo é
subjetivo
Filósofos e neurocientistas abordam o problema
da consciência partindo de posições opostas:
enquanto uns consideram que se trata de
uma simples ilusão fabricada pelo cérebro,
outros defendem que existe mesmo, embora
não esteja localizada num lugar concreto.

62 SUPER
ENIGMAS DA CIÊNCIA: CONSCIÊNCIA

Os especialistas não conseguiram


localizar o centro de operações
do nosso mundo interior. Talvez

SHUTTERSTOCK
ele dependa de uma complexa
interligação neuronal que implique
boa parte do órgão pensante.

A
té há poucas décadas, falar de cons-
ciência era uma ocupação própria
de charlatães. A ciência é objetiva,
com um discurso na terceira pessoa,
enquanto a consciência se conjuga, por defini-
ção, na primeira pessoa: trata-se do conheci-
mento de nós próprios, de pura sujetividade.
Uma ciência da consciência parecia, pois, uma
contradição. Contudo, havia indícios que a vin-
culavam ao cérebro e convidavam a aprofundar
o mistério; era apenas necessário que alguém
suficientemente respeitado se atrevesse
a ultrapassar todos os preconceitos. Francis
Crick (1916–2004), biólogo e físico, com o Pré-
mio Nobel debaixo do braço pela descoberta
da dupla hélice do ADN, ousou dar esse passo
decisivo e acabar com o ostracismo científico
que rodeava a apaixonante questão.
Basicamente, o problema que Crick enfren-
tava era o seguinte: como poderá um sistema
físico criar estados conscientes? É aquilo que o
filósofo australiano David Chalmers classificou
como “o problema difícil”. O (aparentemente)
fácil residia em explicar como o cérebro
guarda e trata a informação. Crick expôs a base
em que assentava o seu plano de investigação
nos seguintes termos: “Os nossos prazeres e os
nossos desgostos, as nossas recordações e as
nossas ambições, o nosso sentido de iden-

Interessante 63
Documento

John Searle acha que


JOHN SEARLE

acabaremos por descobrir


o que gera a consciência.

Máquinas de pensar
Semelhante à digestão Alguns teóricos equiparam
o pensamento humano

J ohn Searle, nascido em Denver (Co- No entanto, é isso que acontece. ao processamento de
dados dos computadores.
lorado), em 1932, é uma lenda viva Conceções erróneas podem conduzir a in-
da filosofia e dá aulas na Universidade vestigações inúteis?
da Califórnia em Berkeley desde há 56 Com as atuais tecnologias, podemos
anos. assinalar o lugar no cérebro onde um tidade pessoal e de livre arbítrio, resultam
É escandaloso que, num tema como o da indivíduo deixou de ver um pato e vê apenas, na realidade, do comportamento de
consciência, não haja sequer acordo sobre a um coelho, mas eu defino a consciência vastos conjuntos de neurónios e das molécu-
sua existência... como uma característica global. Embo- las que lhes estão associadas.” Faltava apenas
Filósofos como Daniel Dennett estão ra alguns cientistas explorem essa via, estabelecer o processo que conduzia da massa
presos na ideia de que reconhecer a sua como Rodolfo Llinás e Wolf Singer, o cinzenta à mente consciente.
existência implicaria assumir alguma problema é que as técnicas de investi- Os estados subjetivos caracterizam-se por
forma de misticismo e a imortalidade da gação localizada são muito melhores. serem privados (só eu apreendo o que captam
alma. Eu digo que se trata de um fenó- Há dois processos comuns: o estudo de os meus sentidos) e incomunicáveis, pois não é
meno biológico, localizado no cérebro, um único neurónio para observar como possível ter acesso ao que os outros sentem. A
tal como a digestão é feita no estômago. é ativado sob determinadas condições, fim de ultrapassar esse obstáculo, Crick e o seu
Por sua vez, Dennett compara-o a um e a ressonância magnética funcional, colaborador, o neurocientista norte-americano
programa de computador. que mostra a atividade de uma zona do Christof Koch, procuraram localizar os neu-
Os astrónomos ultrapassam as suas dispu- cérebro quando se executa uma ação. rónios que se ativavam de cada vez que uma
tas com dados. Seria possível resolver assim Ambos focam pontos concretos, e não o pessoa experimentava uma sensação.
a questão? conjunto.
Seria preciso ultrapassar 2000 anos de O linguista Noam Chomsky afirmou que OSCILAÇÕES EM SINTONIA
convicções erróneas, algo que não se nunca conseguiremos entender o que é a Embora não tivessem encontrado uma região
consegue de um dia para o outro. A lou- consciência... encarregada de processar todos os dados de que
cura de uma posição como a de Dennet Sabemos que ela é criada pelo cérebro, temos consciência, constataram que os sinais
será rapidamente esquecida. Durante sé- através de processos neurobiológicos. elétricos emitidos por diferentes células ner-
culos, foi-nos dito que a consciência não Não há razão para não chegarmos a vosas pareciam oscilar em sintonia. Em 1990,
podia fazer parte no nosso mundo físico. compreender como surge. os dois cientistas sugeriram que tais sincroni-
zações davam origem à consciência. Contudo,

64 SUPER
ENIGMAS DA CIÊNCIA: CONSCIÊNCIA

SHUTTERSOCK
continuava a não haver uma explicação para o mistério por resolver. A consciência não seria Graziano, “não há impressões subjetivas, ape-
modo como produziam os nossos esquivos e mais do que uma ilusão da atividade bioquímica: nas informação num dispositivo que processa
imateriais estados de autoconhecimento. o problema difícil ficaria assim resolvido com a dados”.
Outra via de investigação começava a surgir dissolução dos estados mentais. Segundo Den- Nem todos estão de acordo. O filósofo John
à medida que aumentava a potência dos com- nett, não só os robôs podem ter consciência Searle, por exemplo, defende há décadas que
putadores. O filósofo norte-americano Daniel (embora uma máquina com tais características a consciência existe, efetivamente, e que se
Dennett é um dos principais defensores do que fosse demasiado dispendiosa), como nós pró- trata de um produto biológico nascido da ativi-
constitui mais do que uma mera metáfora entre prios somos robôs. dade neuronal, embora não se reduza a ela. A
cérebro e computação, tal como expõe no fim de denunciar os excessos e as pretensões
livro Doces Sonhos: “A simples existência dos PROPRIEDADES MÁGICAS da inteligência artificial, propôs a seguinte
computadores é uma prova cuja influência é Michael Graziano, neurocientista da Univer- experiência mental: um homem fechado num
inegável: existem mecanismos (mecanismos sidade de Princeton (Estados Unidos), tomou quarto recebe determinados símbolos em chi-
racionais e totalmente misteriosos que fun- a sério a proposta de Dennett e desenvolveu a nês e, depois de os analisar de acordo com uma
cionam de acordo com princípios físicos tão sua própria teoria. Segundo ele, o cérebro cria série de regras, produz em resposta outra série
conhecidos que fazem parte da nossa rotina) um modelo para controlar o processo de aten- de sinais. Apesar de não saber o que fez, poderão
responsáveis por muitas das competências que ção (ou seja, a seleção de estímulos em função fazer sentido. É essa a tarefa desempenhada por
se costumava atribuir exclusivamente à mente.” da sua importância) e atribui-lhe propriedades um computador, mas não equivale a entender
Se um conjunto de transístores consegue quase mágicas, aquilo que designamos por significados, argumenta Searle. A compreensão
emular o pensamento humano para realizar “estados mentais”. está apenas ao alcance de seres conscientes:
operações, executar processos ou armazenar Seria comparável à função de um ventrílo- os computadores limitam-se a emular e imitar.
dados, porque não considerar que são equiva- quo quando nos pretende fazer crer que um Contudo, a hipótese leva-nos de volta ao início:
lentes aos neurónios? boneco possui personalidade. Além disso, o de que forma é que um sistema físico pode criar
Esta hipótese implica, em última instância, modelo também permite prever o que acon- esses estados subjetivos?
considerar que não há, na realidade, qualquer tece no cérebro dos outros. Como explica R.C.

Interessante 65
Psicologia
Mercado. A forma de escolher parceiro
Que procuramos num parceiro? não é alheia ao sistema económico em que
vivemos. Numa sociedade de consumo,
procuramos, comparamos e escolhemos.

Dez mitos
Se o produto não satisfizer, trocamo-lo...

CONJUGAIS
A escolha da pessoa com quem tencionamos
viver envolve uma série de fatores (genéticos,
psicológicos, culturais) que a tornam
uma das mais difíceis da nossa existência.
Em que nos baseamos para decidir?

A
té há algumas décadas, dava-se por que pareciam ser imaturas, promíscuas, bebe-
assente que o ideal das mulheres doras, temerárias, pouco inteligentes e jovens.
era um homem forte e másculo que Todos estes traços faziam-nas parecer mais
pudesse protegê-las dos perigos e acessíveis e sexualmente atraentes aos olhos
lhes proporcionasse filhos e segurança econó- masculinos.
mica. Por sua vez, eles procuravam uma mulher Algumas mulheres têm consciência desses
bonita e submissa, excelente dona de casa e preconceitos dos homens e aproveitam-se
a quem podiam confiar a prole. Com a eman- disso. Todos recordamos as personagens inter-
cipação da mulher, estas ideias foram pulve- pretadas por Marilyn Monroe, protótipos da
rizadas. loura tonta e sexualmente irresistível que se fazia
Agora, são muitos e mais complexos os fato- de parva e usava o seu engenho oculto para
res que intervêm na escolha do par ideal, uma conseguir o que queria. Tais cânones de atração
das decisões mais importantes que tomamos já não se usam, como demonstra um trabalho
na vida, mas que é feita muitas vezes de forma dirigido por Matthew Hornsey, professor de
superficial e com base em preconceitos que psicologia na Universidade de Queensland
acabam por dinamitar a relação (em Portugal, (Austrália). A investigação, baseada em testes e
mais de 70 por cento dos casamentos aca- dinâmicas de grupo, mostrou que, ao contrário
bam em divórcio, segundo números da base do que se pensava, os homens se sentem mais
de dados Pordata, quando no início deste atraídos pelas mulheres inconformistas. Elas
século a proporção era de apenas 30%). também partilham esse interesse por parceiros
Psicólogos evolutivos e outros especialistas com inquietações. Há uma nuance que merece
procuram averiguar os fatores que nos influen- destaque: elas tendem a sobrevalorizar o gosto
ciam na escolha da pessoa com quem deseja- deles pelas mulheres conformistas, pelo que,
mos passar os nossos dias, e têm surgido sur- por vezes, adotam esse papel para se tornarem
presas como as que lhe revelamos a seguir. mais desejáveis.
Outros estudos vieram confirmar o que todos
INTELIGÊNCIA FEMININA sabemos: para relações em que não se pretende
Em 2012, os psicólogos evolutivos Cari D. que haja empatia ou qualquer compromisso,
Goetz, Judith A. Easton e David M. Buss efe- é mais provável que os homens optem por
tuaram um estudo sobre as características que mulheres aparentemente pouco inteligentes.
os homens consideravam, em teoria, tornar Quando, pelo contrário, andam à procura de
SHUTTERSTOCK

as mulheres mais propensas a ceder aos seus uma relação séria, a maior parte dos homens
desejos sexuais. Descobriram que eles se sen- mostra-se disposta a subir a parada em termos
tiam mais atraídos pelas imagens de mulheres de exigências intelectuais.

66 SUPER
Interessante 67
A emancipação
feminina
alterou todos
os estereótipos
O MACHO ALFA
Alguns estudos indicam que as mulheres que
estão a ovular preferem companheiros corpu-
lentos com traços faciais muito acentuados.
De facto, muitos modelos publicitários corres-
pondem a essa imagem. Contudo, não se trata
do cânone mais desejado por elas em todas as
etapas da vida. Embora tais características
transmitam a sensação de que quem as possui
tem bons genes, estão também associadas
à infidelidade. Por isso, tanto adolescentes
como mulheres na menopausa gostam de
homens mais femininos. Segundo uma inves-
tigação publicada na revista Journal of Sexual
GETTY

Medicine, o mesmo se passa com as grávidas,


que desejariam um companheiro assim para
poder cuidar do bebé.
Por outro lado, um trabalho do Departa- Tamás Bereczkei, da Universidade de Pécs mulher tem maior presença, elas valorizam mais
mento de Psicologia da Universidade de Stirling (Hungria), analisou 312 adultos de cinquenta nos possíveis companheiros aspetos como o
(Reino Unido) analisou as preferências faciais familias e chegou à conclusão de que tanto seu poder de atração, o caráter e as qualidades
femininas em função dos efeitos hormonais. homens como mulheres tendem a procurar de pai responsável do que o tamanho da conta
Após o parto, as mulheres sofrem uma quebra parceiros com rostos semelhantes aos do pro- bancária.
significativa dos níveis de estrogénios e de tes- genitor do sexo oposto.
tosterona. Essas hormonas afetam de forma TAREFAS DOMÉSTICAS
importante os conceitos de atração sexual, ESTATUTO ECONÓMICO O sociólogo Sabino Kornrich, da Universidade
e explicam a preferência por características É muito comum pensar que a atração física de Washington, publicou, em 2013, um estudo
menos viris. é essencial para um homem se comprometer no qual sugere que os casais que dividem as
O lugar em que se vive e as condições de numa relação a longo prazo, e que as mulheres tarefas de modo mais tradicional têm relações
saúde são também fundamentais quando se dão mais valor a aspetos como a saúde e a ambi- sexuais com maior frequência do que aqueles
trata de escolher o parceiro. Lisa DeBruine, ção do parceiro. Contudo, uma experiência com uma distribuição igualitária dos trabalhos
do Instituto de Neurociência e Psicologia da dirigida por Paul W. Eastwick, da Universidade domésticos. Aparentemente, não seria bom
Universidade de Glasgow (Escócia), estudou do Texas em Austin, desmente essa ideia. East­ para a líbido ver o homem a lavar pratos, pôr
as preferências das mulheres de diferentes wick e os seus colaboradores criaram um teste a roupa na máquina, preparar refeições ou
regiões do planeta em termos de rostos mascu- de encontros rápidos com doze participantes, engomar.
linos. Ela e os seus colaboradores descobriram o qual demonstrou que ambos os sexos sobre- É preciso dizer que o estudo foi feito nos anos
que as mulheres mais sensíveis aos sinais de punham um aspeto desejável a qualquer outra 80 e 90 e que os padrões de comportamento se
pouca saúde tinham maior apreço por feições coisa, seguido pela personalidade e pelas pers- alteraram entretanto. Hoje, a partilha de res-
mais viris. O trabalho determinou que as mulhe- petivas económicas. ponsabilidades por ambos os membros do casal
res de zonas do mundo onde existe maior Segundo outro estudo, coordenado por tornou-se uma necessidade para a maioria.
risco de contrair doenças são as que sentem Steve Stewart-Williams, psicólogo na Univer- Uma investigação do sociólogo Daniel L. Carlson
maior atração por esse protótipo mais mascu- sidade de Swansea (Reino Unido), as prefe- analisou o assunto com base nessa nova reali-
lino. DeBruine considera que uma boa herança rências e prioridades de ambos os sexos são dade. Os resultados indicam que não existem
genética é importante para essas mulheres definidas pelo tipo de relação que procuram. diferenças significativas na frequência e na
porque elas procuram uma descendência sau- Quando a finalidade é um affaire de uma noite satisfação proporcionada pelas relações
dável e com um sistema imunológico forte. ou um romance passageiro, elas são mesmo sexuais entre casais igualitários e os que man-
mais exigentes do que eles no que diz respeito têm papéis convencionais.
MEMÓRIAS PATERNAS à atração sexual.
Diz-se que muitas mulheres preferem A realidade é que cada vez mais mulheres CORPO IDEAL
homens mais velhos do que elas, nomeada- possuem rendimentos semelhantes ou supe- Muitas curvas, ancas largas e peito proe-
mente se o pai era mais idoso quando eram riores aos dos homens, pelo que já não con- minente, cintura de vespa e grandes olhos. É
crianças. Segundo o psicólogo britânico sideram assim tão importante que o parceiro esse o ideal de beleza feminina que perdurou
Anthony Little, também procuram companhei- tenha dinheiro. Esse facto foi corroborado durante muitas décadas, apesar de o mundo
ros com semelhanças físicas com o pai, tanto por dois estudos, da Universidade Politécnica da moda ditar, atualmente, uma excessiva
na cor dos olhos e do cabelo como na forma do de Hong Kong e da Universidade de Dundee magreza. O cânone, que continua bem pre-
rosto, tendência que se acentua se a relação (Escócia). Os resultados de ambos os trabalhos sente, pode ser reduzido a uma fórmula numé-
paterno-filial foi boa. Um estudo dirigido por demonstram que, nas sociedades em que a rica: 90-60-90, medidas que a maior parte das

68 SUPER
Novos papéis. O cliché do homem poderoso
rodeado de beldades já não tem muito a ver
com a realidade das novas gerações.

de um semestre. Inicialmente, as opiniões dos


alunos coincidiam bastante sobre quais eram
mais atraentes e quais poderiam revelar-se
desejáveis como parceiros amorosos ou como
bons colegas. Contudo, no fim do semestre, as
primeiras impressões de muitos dos estudan-
tes tinham-se modificado. A razão foi que os
participantes se foram conhecendo melhor e,
à medida que o faziam, iam alterando as suas
ideias sobre o poder de atração dos colegas. O
trabalho demonstra que as perceções podem
mudar radicalmente quando iniciamos uma
relação e nos abrimos com outra pessoa.

MULHERES DIFÍCEIS
Entre as mulheres, é opinião generalizada de
que não se pode facilitar demasiado a vida aos
homens se se pretender que continuem interes-
sados. Tal técnica pode funcionar em histórias
que se sabe de antemão serem passageiras, mas
não parece a melhor opção quando se pretende
uma relação estável, pois pode criar descon-
fiança e até mal-estar mesmo antes de se iniciar
mortais só consegue alcançar em sonhos. Con- prio corpo. Essa reviravolta rumo à igualdade a relação.
tudo, as mulheres com uma cintura mais larga faz muitas mulheres entregarem-se sem pro- Segundo um trabalho com 129 casais desen-
poderão beneficiar de certas vantagens face blemas ao sexo ocasional ou fortuito. volvido por Mónica Guzmán e Paula Contreras,
às de proporções mais estilizadas. É o que se No entanto, há estudos a defender que da Escola de Psicologia da Universidade Cató-
deduz de um estudo realizado pela antropó- o homem é mais promíscuo por natureza. lica do Norte, no Chile, as pessoas estáveis nos
loga Elizabeth Cashdan, da Universidade do Segundo um trabalho desenvolvido pela seus afetos e comportamentos proporcionam
Utah. Segundo os resultados obtidos, essas investigadora Lisa DeBruine em 2014, a fami- aos seus parceiros níveis mais elevados de
mulheres robustas possuem níveis mais eleva- liaridade pode revelar-se atraente para as satisfação. Significativamente, esses indivíduos
dos de testosterona e cortisol, o que poderá mulheres, e os homens desejam mais parceiras eram os que tinham tido uma boa relação com
favorecê-las quando competem com as de cin- sexuais do que elas, o que é um indício do seu os pais durante a infância.
tura de vespa em situações de necessidade e gosto pela novidade. Na experiência, mos- Do mesmo modo, um estudo com 133 casais
poucos recursos. Curiosamente, uma análise trou-se aos participantes (83 mulheres e 63 heterossexuais dirigido por José L. Martínez-
às alterações sócio-económicas entre os anos homens), por duas vezes, os rostos das mesmas -Álvarez, da Faculdade de Psicologia da Univer-
1960 e 2000 indicava que as modelos escolhi- pessoas. Em ambas as ocasiões, pediam-lhes sidade de Salamanca (Espanha), mostra que
das pela revista Playboy tinham medidas mais para avaliarem o seu poder de atração. Na o vínculo afetivo e a qualidade da relação com os
volumosas durante os anos de recessão. segunda vez, as opiniões masculinas sobre a progenitores exerce um efeito decisivo sobre
Por outro lado, Urszula Marcinkowska, bió- atração das mulheres sofreram uma significa- a futura personalidade dos filhos.
loga evolucionista da Universidade Jaguelónica tiva descida, o que demonstra o seu interesse
de Cracóvia (Polónia), defende que as mulhe- pelo que é novo. Por sua vez, elas mostraram COMPROMISSO FIRME
res com características mais femininas são maior preferência pelas caras já conhecidas. Um estudo recente dos psicólogos Anthony
consideradas menos dominantes e, por con- Porém, tal tendência tem uma compensação: Little, Lisa DeBruine e Benedict Jones mostra
seguinte, menos capazes de competir numa alguns psicólogos afirmam que calculamos, que as mulheres tendem a procurar compa-
situação de escassos recursos vitais. É a con- durante a adolescência, o nosso valor como nheiros mais dispostos a ter filhos e a criar
clusão que se extrai do seu estudo, desenvol- possíveis parceiros, e é nessa altura que muitos laços familiares. Porém, isso é contestado por
vido em 28 países, sobre as preferências dos homens se apercebem de que a promiscuidade alguns especialistas. O desejo feminino de com-
homens por mulheres com aspeto mais ou não é uma opção tão desejável como se pode- promisso depende de muitos fatores, incluindo
menos feminino. Nas zonas menos desenvolvi- ria pensar. Isso, aliado ao facto de que as a religião e a situação económica do país
das, onde a prioridade é a simples sobrevivên- mulheres são cada vez mais seletivas nas suas em que se vive. O psicólogo Michael Price e a
cia, os homens tinham tendência para escolher escolhas, e que as incertas circunstâncias labo- sua equipa da Universidade Brunel (Londres)
companheiras com características físicas um rais levam a partilhar a vida com alguém, fez a descobriram uma relação, em ambos os sexos,
pouco mais másculas. promiscuidade deixar de ser tão interessante entre a independência económica e a aceitação
como era há algum tempo. da promiscuidade. Os investigadores afirmam
SEXO OCASIONAL que a redução das diferenças e a emancipação
O género com maior tendência para manter PRIMEIRAS IMPRESSÕES da mulher tornam mais igualitários os compor-
relações sexuais sem compromisso tem sido o Em 2014, Paul W. Eastwick e Lucy L. Hunt, da tamentos. Esse facto ajuda a explicar que as
masculino, em grande parte por razões sociais, Universidade do Texas em Austin, estudaram a atuais britânicas tenham, em média, oito par-
pois era muito mais arriscado para uma mulher forma como 129 estudantes daquela instituição ceiros sexuais ao longo da vida, quase o dobro
fazê-lo. Todavia, elas gozam cada vez mais de viam os seus colegas do sexo oposto. Para isso, do que acontecia há apenas uma geração.
independência económica e são donas do pró- ouviram as suas opiniões no início e no final R.G.

Interessante 69
História

O mais quente da guerra fria


Linha entre dois mundos
Uma mulher consegue, em 1955, passar
da parte oriental de Berlim para a ocidental,

Um mundo
enquanto os guardas dos dois lados
se enfrentam. A divisão da capital alemã
era marcada por um risco no chão.

DIVIDIDO
Finda a Segunda Guerra Mundial, teve início
um conflito que dividiria o mundo em dois blocos.
A importância do confronto aumenta à medida
que os seus segredos são revelados.

E
ntre ruínas e rostos famélicos, mas Malta, em dezembro de 1989, após a queda do
com toda a alegria possível, os euro- Muro de Berlim.
peus celebravam, em maio de 1945, Essas faíscas que iriam incendiar o conflito
o termo da Segunda Guerra Mundial, tinham passado quase despercebidas quando
embora o fim definitivo das hostilidades só as potências vencedoras da guerra mundial se
chegasse a 15 de agosto, data da rendição do reuniram para reorganizar o mundo, nas céle-
Japão. O conflito fora brutal e muita coisa fazia bres conferências de Yalta e Potsdam. Ainda
lembrar o Apocalipse: cidades e países devas- se estava em 1945 e, em seguida, Winston
tados, património com séculos de antiguidade Churchill, esse perito em charutos e frases
destruído e o apavorante número de setenta aparatosas, saiu-se com a ideia da “cortina de
milhões de mortos. Contudo, mesmo no des- ferro”. Era o começo de várias décadas de um
calabro, perduravam divergências cujas faíscas confronto mudo para dominar o mundo, cheio
não tinham cessado. Começava outra guerra de espiões e muitas vítimas propiciatórias.
silenciosa, que iria durar muitos mais anos e
que também causaria, dissimuladamente, GUERRA POR PROCURAÇÃO
milhões de vítimas. Norte-americanos e soviéticos não se
Mais cedo ou mais tarde, teria de se produ- enfrentam diretamente, mas fazem-no nos
zir esse confronto entre o capitalismo norte- bastidores, em guerras, guerrilhas e golpes de
-americano e o comunismo soviético. A liderar estado que beneficiam um ou outro, sejam quais
a causa, os Estados Unidos, transformados em forem as consequências. Em ideias e burocra-
absoluta superpotência, lançaram-se numa cias, confrontam-se sem dissimulação. São mais
espiral desenfreada de estratégias secretas, agressivos os gringos (que saíram praticamente
manipulações e guerras inventadas para extir- ilesos da guerra) do que os soviéticos, com
par esse mal demoníaco que se expandira na toda a sua imensa pátria devastada e o peso
Rússia e na China. O bloco comunista respondia atroz dos 27 milhões de vítimas do confronto
com táticas semelhantes, mas quase sempre bélico. Assim, os Estados Unidos aderem à
na defensiva. Doutrina Truman, na qual o referido presidente
Decorreram, assim, décadas, com focos de proclama a necessidade de combater o comu-
destruição em diferentes zonas do planeta, nismo. Antes, porém, é preciso compor a face
aparentemente sem ligação, mas sabemos do capitalismo europeu, tão macerada pela
agora que o pano de fundo era sempre o demolidora contenda, e arquiteta-se o Plano
mesmo. A verdade é que ainda resta muito por Marshall, que dá os seus primeiros passos rumo
saber de um conflito que, na realidade, ainda à reconstrução na Grécia e na Turquia, em 1947.
não terminou, apesar da proclamação oficial Um maná para tantos civis que tinham visto
do fim da guerra fria feita por Ronald Reagan as suas vidas destroçadas sem saber muito
e Mikhail Gorbachov na cimeira realizada em bem porquê, e deveras conveniente para as

70 SUPER
Interessante 71
Controlo apertado. Cargueiro russo
parte de Cuba sob vigilância norte-americana,
durante a crise dos mísseis (1962).

Morris Childs passou 35 anos a sua existência abastada e não isenta de atra-
tivos: álcool, amantes, agentes duplos, luxos...

como espião no Kremlin Não foram apanhados, como também não o


seriam os muitos antigos nazis a soldo da CIA,
que chegaram mesmo a ser treinados no
grandes empresas, incluindo as muitas que não A guerra fria mostra a sua verdadeira tempe- Maryland para uma possível invasão da URSS.
tinham torcido o nariz ao nazismo. ratura na guerra da Coreia, e continuará a fazê- Nenhum alcançou a eficiência de CG 5824-S,
Os soviéticos reagem ao ímpeto invasivo com -lo a partir de então, apesar dos arrazoados sigla para designar Morris Childs, considerado
o Comecon, que zelará pela segurança e imper- antiarmamentistas de Dwight Eisenhower e o número 1 dos espiões norte-americanos, pois
meabilidade dos países na órbita do Kremlin. Nikita Kruschev, na repressão da revolta antis- enviou, durante 35 anos, informação das pro-
É nessa altura que ocorre ao financeiro norte- soviética na Hungria, na ostentação nuclear fundezas do Kremlin, onde era bem recebido
-americano Bernard Baruch o termo “guerra norte-americana na guerra do Sinai, ou no por ser considerado um verdadeiro comunista
fria”. Corria o ano de 1947 e a coisa era tão séria grande estrondo mediático que rodeou a crise e por ter nascido na Ucrânia.
que levou à criação, nesse mesmo ano, da CIA, dos mísseis em Cuba, com um John F. Kennedy Por sua vez, os soviéticos também tiveram
instituição que definiria um estilo próprio de a armar-se em salvador do mundo. a sua estrela: o cientista austríaco Engelbert
controlo obscuro e meios questionáveis. Broda, conhecido pelo nome de código Eric,
O caudal de episódios não cessa: ora é o blo- PARAÍSO PARA A ESPIONAGEM que trabalhou em Inglaterra e passou segredos
queio soviético a Berlim, ultrapassado por uma Tanto conflito de meias tintas constituía um nucleares a Moscovo. O trabalho do agente
ponte aérea que incluía o lançamento de cara- paraíso para a espionagem, cuja realidade não infiltrado tornou-se conhecido quando foram
melos para as crianças da cidade; ora a atitude se assemelhava muito à de James Bond, embora revelados documentos tanto do KGB como do
de Tito, à frente da desaparecida Jugoslávia, seja verdade que as peripécias de alguns serviço de inteligência britânico, o MI5.
que se demarca e inventa sabiamente a organi- agentes fossem deveras cinematográficas. Nos Estados Unidos, o período anticomu-
zação dos países não-alinhados; ora é a NATO Trata-se, sem dúvida, dos espiões mais conspí- nista de “caça às bruxas” organizado pelo
e a divisão da Alemanha em RFA e RDA, ora cuos da história, e sabemos agora que as suas senador McCarthy fazia vítimas: o caso mais
é o triunfo de Mao Zedong na China... Nessa aventuras já tinham tido início antes da Segunda célebre foi o do casal de judeus Julius e Ethel
altura, a Doutrina Truman já não é suficiente e é Guerra Mundial. Nos anos 30, já exerciam Rosenberg, acusado de fornecer informações à
preciso cercear qualquer surto que cheire a a profissão os chamados “cinco de Cambridge”, União Soviética sobre a bomba atómica. Foram
comunista. Onde? Por todo o planeta, agora que universitários britânicos de boas famílias que, julgados e condenados à morte: a sua execu-
já estamos nos anos 50 e o processo de desco- imbuídos do fervor socialista da época, passa- ção, em 1953, causou controvérsia em todo
lonização faz não haver tempo a perder. vam informação aos soviéticos sem abandonar o mundo, já que não havia provas suficientes do

72 SUPER
AQUILE
AGE

Um conflito global Guerrilhas Guerrilhas


anticomunistas comunistas
CRONOLOGIA NATO Outros aliados Pacto de Países Outros países Países
dos Estados Varsóvia socialistas socialistas não alinhados
Unidos alinhados ou aliados
1946
com a URSS da URSS
Churchill proclama
1991
a existência
Desmantelamento
da Cortina de Ferro
da URSS.
1947–1951 1986
Plano Marshall. Cimeira entre Reagan
Truman lança e Gorbachev na Islândia.
a ajuda económica
dos Estados Unidos 1981–1983
à reconstrução europeia.
Lei marcial na Polónia.
1950–1953 1979
Guerra da Coreia (Coreia A URSS invade
do Sul e Estados Unidos o Afeganistão.
contra Coreia do Norte,
URSS e China). 1977–78
Guerra de Ogaden
1950–1991 (Somália e Etiópia).
Corrida armamentista.
1973
Golpe de estado no Chile.
1957–1975 A CIA intervém para
Corrida espacial. Sputnik derrubar Allende e
contra o projeto Apollo. dar o poder a Pinochet.

1956 1972
Invasão 1959–1975 1961 1962 1967 1968 1972 Campeonato Mundial
da Hungria Guerra do Construção Crise dos Guerra dos Primavera Nixon de xadrez: Fischer
pela URSS. Vietname. do Muro mísseis Seis Dias de Praga. visita a contra Spassky,
de Berlim. em Cuba (Egito e Israel). China. na Islândia.
AGE

seu envolvimento, nomeadamente no caso de


Ethel. Na opinião pública mundial, o casal
converteu-se num símbolo: representou um
exemplo da injustiça e da perseguição capita-
lista, para a esquerda, e da ameaça comunista,
para a direita.
Por sua vez, na URSS, o piloto norte-ameri-
cano Francis Gary Powers, cujo avião foi abatido
quando sobrevoava território soviético, seria
condenado, em 1960, a dez anos de trabalhos
forçados. Prisão perpétua foi a sentença dada ao
“maior traidor dos Estados Unidos”, Aldrich
Ames, que declarou ter agido apenas por
dinheiro após décadas a passar informações
a Moscovo.

O IMPÉRIO DAS ARMAS


O trabalho destes estranhos heróis abrangia
qualquer assunto, mas predominavam as ques-
tões militares. Era o império das armas, que
proporcionavam domínio e lucros chorudos
quando eram vendidas a países arrastados para
a trama do confronto. Sabe-se, agora, que a
corrida aos armamentos ressoava apenas na
esfera ocidental, como bravata ou como pre-
texto, e que os russos, limitados pelo desca-
labro económico da guerra, seguiam na peu-
gada consoante as possibilidades. O que não
impediu que o investimento soviético na indús-
tria bélica fosse excessivo e, a posteriori, viesse Tensão. Avião norte-americano lança alimentos sobre Berlim, durante o bloqueio de 1948.

Interessante 73
AGE
Explosão nuclear no atol de Bikini, nas ilhas Marshall. Entre 1946 e 1958,
os norte-americanos testaram ali mais de 20 bombas atómicas e de hidrogénio.

As missões mais sujas


A nos depois do conflito que manteve o
mundo em constante tensão, os gover-
nos envolvidos revelaram finalmente alguns
gou-se do caso à custa de injetar dinheiro
nos partidos anticomunistas, no Vaticano
e mesmo na Máfia. A inflamada campanha
dos documentos classificados relativos a da direita conseguiu a vitória do Partido
operações secretas. Os pormenores são Democrata-Cristão.
arrepiantes. Pescadores ou espiões? A paranoia nacio-
Projeto Manhattan. Este plano secreto nal sobre uma possível invasão soviética do
juntou os Estados Unidos, o Reino Unido e Alasca levou John Edgar Hoover, fundador
o Canadá, durante a Segunda Guerra Mun- da CIA, a estabelecer uma rede de espiões
dial, para criar a bomba atómica. Dirigido entre os pescadores do território. Um total
por Robert Oppenheimer, desenvolveu-se de 89 pessoas foram treinadas para essa
sobretudo no Distrito de Engenharia de missão entre 1951 e 1959.
Manhattan, um centro de investigação no Operação MK-Ultra. Tornou-se conhecida
Novo México. por acaso em todo o seu horror, pois con-
Projeto Venona. Os serviços secretos dos sistia em experiências desenvolvidas pela a agravar uma situação económica que acaba-
Estados Unidos intercetaram e decifraram CIA em seres humanos, incluindo cidadãos ria por favorecer a derrocada da URSS.
pelo menos 3000 mensagens secretas norte-americanos, para testar drogas e mé- Assim, uns e outros dedicaram-se a melhorar
soviéticas entre 1943 e 1980. Algumas todos de tortura e interrogatório. Decorreu tanques, aviões, submarinos, mísseis... Um
descreviam armas sofisticadas que, reprodu- entre 1953 e 1974, frequentemente na Área segredo aberto da guerra fria foi a bomba de
zidas pelos ilustradores da CIA, pregaram 51, no deserto do Nevada, zona mantida hidrogénio, desenvolvida pelos Estados Unidos
valentes sustos. Claro que nenhuma das em grande segredo pela CIA para promover e testada nas ilhas Marshall em 1952. A tecno-
mais de mil armas desenhadas chegou a ser ainda não se sabe que projetos. logia seria aperfeiçoada durante a escalada
criada, e é muito possível que se tratasse, em KGB contra os rebeldes. O serviço secreto armamentista promovida por Reagan e That­
muitos casos, de um logro deliberado dos soviético interveio no esmagamento da cher nos anos 80, período em que foram desen-
soviéticos. rebelião húngara de 1956 e na primavera de volvidos o bombardeiro Rockwell B-1 Lancer,
Operação Paperclip. Era preciso apro- Praga de 1968. Era o verdadeiro poder por o míssil ironicamente denominado Peacemaker
veitar os cientistas da Alemanha nazi que detrás de outros partidos comunistas, e fez (“fazedor de paz”) e a Iniciativa de Defesa
tinham participado no projeto Armas Ma- o que pôde para deter o movimento polaco Estratégica (alcunhada de “Guerra das Estre-
ravilhosas do Terceiro Reich, que abrangia Solidariedade, nos anos 80. las”). Este projeto norte-americano pretendia
armas, foguetões e experiências médicas. Projeto Iceworm. Em 1959, os Estados estabelecer uma série de satélites em órbita
A fim de os levar para os Estados Unidos, Unidos construíram uma base subterrânea para intercetar, com as armas que incorpo-
inocentados de qualquer responsabilidade na Gronelândia, destinada ao armazena- ravam, qualquer míssil inimigo. Conhecemos
no horror nazi, foi montada a operação mento de mísseis nucleares. Só foi dada a agora esse plano, assim como os que a URSS
Paperclip, a partir de 1945. conhecer em 2012. engendrou em resposta: o foguete Energiya, o
CIA contra PCI. A agência norte-ameri- Caso da Indonésia. Mais de um milhão de vaivém Buran e a própria estação espacial Mir,
cana fez tudo para impedir o triunfo quase militantes comunistas e outros civis foram que nasceu como projeto científico-militar.
certo do Partido Comunista Italiano nas assassinados por ordem do general Suharto Agora, conhecemos também melhor o A-12,
eleições de 1948. O agente James encarre- entre 1965 e 1967, sob a égide da CIA. avião de espionagem encomendado pela CIA,
utilizado na Coreia e no Vietname e, ao que

74 SUPER
Afirmação nacional. Uma das tarefas
dos astronautas que visitaram a Lua foi deixar
no local uma bandeira dos Estados Unidos.

A corrida espacial foi o mundo soviético se desmorona como um


castelo de cartas, por obra de Gorbachov.

consequência da guerra fria Terminou tudo após a assinatura do acordo


de Malta, em 1989? Só aparentemente. A geo-
grafia deslocou-se muito com a confusão que
parece, recentemente ressuscitado na Síria. e transístor, em 1947; velcro, holografia e Pola- foi a dissolução da URSS,. Porém, desapare-
Foram também revelados pormenores sobre as roid, em 1948; cartão de crédito e fotocopia- cido o inimigo comunista, o sistema triunfante
armas biológicas e o seu incessante desenvol- dora, em 1950; submarinos nucleares, em 1953; precisava de outro adversário que mantivesse
vimento, apesar das aparentes boas intenções fibra ótica, em 1955; laser, em 1960... a proveitosa dinâmica de conflito.
manifestadas nos acordos entre ambos os blocos. Chegados aos anos 60, Nixon e Brejnev Reviravolta na história, e eis que surge o ter-
já falavam em apaziguamento e iniciaram a rorismo islâmico, já anteriormente despertado
CHEGA O APAZIGUAMENTO chamada Détente (“desanuviamento”); pelo pelos alemães para obter trunfos no colonia-
Em contrapartida, no âmbito do espaço menos, era o que diziam, mas não foi isso que lismo oitocentista e encorajado por Reagan,
sideral, ainda há muitas pessoas convencidas se viu, a partir de 1968, em Praga, em Paris, na década de 80, como antídoto, dizem alguns,
de que o passeio lunar de Armstrong e Aldrin nas universidades norte-americanas, na Amé- contra qualquer surto esquerdista. Contudo,
constituiu uma farsa, uma montagem. Os rica Latina e em tantas ex-colónias de todo o esse inimigo comum não parece ter aproxi-
soviéticos tinham-se adiantado com o Sput- planeta: nada de paz. Também não viria nos mado os antigos blocos, como demonstram os
nik, Laika e Gagarin, e a NASA e os seus Apolos anos 70, quando foram assinados os acordos acontecimentos na Ucrânia, onde Putin já dei-
tinham de recuperar o atraso. A corrida espa- de Salt, pois teria início, em 1978, a chamada xou claro que a Rússia capitalista, mais do que
cial e os seus excessos terminariam por falta de “segunda guerra fria”, quando os soviéticos um amigo, é um rival.
fundos e de resultados meritórios (e passíveis invadiram o Afeganistão. Perante isso, Reagan A verdade é que aguerra fria há muito deixara
de exploração). Ficaram os bem-sucedidos apa- e Thatcher invocaram a necessidade do rear- de ser ideológica e não passava, como todos
relhos que foram surgindo pelo meio de todos mamento “contra o império do mal”. O bloco os conflitos bélicos da história, de uma mera
esses projetos de investigação: micro-ondas capitalista, embebido de autoestima, parecia roda-viva de interesses económicos.
e cadeia de montagem, em 1946; computador estar pronto para tudo, quando, subitamente, M.M.

Interessante 75
Flash
Esta imagem aérea lembra-nos que agravamento da erosão costeira em Portugal.
uma parte substancial do litoral português, Uma das principais causas para o avanço
sobretudo nas zonas mais humanizadas, do mar parece ser o défice de sedimentos
se encontra artificializada por esporões, trazidos pelos rios. Por isso, a primeira coisa
obras aderentes, paredões e infraestruturas a fazer é, em alguns troços, providenciar
portuárias. Serão estas fortificações a alimentação artificial por areia da nossa
suficientes para deter o avanço do gigantesco costa. Todavia, a médio e longo prazo terá
Golias que invade as casas das pessoas de se considerar também a relocalização de
sem ser convidado? Há quem pense que sim, certas infraestruturas e habitações localizadas
mas o adágio popular “água mole em pedra em zonas de grande perigo, uma vez que
dura tanto bate até que fura” alerta-nos para será impossível deter o mar devorador,
uma catástrofe iminente. Essa é também a que continuará a pôr em causa a segurança
opinião dos especialistas que anteveem o de pessoas e bens. Foto: Jorge Nunes.

76 SUPER
Interessante 77
Desporto
Património espiritual. A máscara
Estreia lusa em Estocolmo 1912 permite esquecer os estatutos
e as hierarquias sociais. O carnaval
de Lazarim atrai milhares de visitantes.

Seis heróis
do OLIMPO
A primeira saga olímpica portuguesa começou com
António Stromp e terminou, em tragédia, com
Francisco Lázaro. No ano em que os Jogos chegam
à lusofonia, recordamos a aventura que colocou
a língua de Camões na maior competição mundial.

F
oi há 104 anos. Em Estocolmo, num Herédia e António Martins desconheciam que,
início de tarde abrasador, António de facto, estavam a inscrever-se para os Jogos
Stromp colocava Portugal na história Olímpicos de 1900, os segundos da era
dos Jogos Olímpicos da era moderna, moderna. Porém, era falso alarme. “Foi pena
sendo o primeiro atleta português a participar que nem um nem outro dos portugueses tivesse
na competição. Tinha 18 anos e era um dos seis comparecido”, escreveu-se nos jornais da época.
heróis que o país levou às olimpíadas de 1912. Algo começou a mudar quando, em 1905,
Em ano de Jogos Olímpicos no Brasil, os primei- Pierre de Coubertin contactou o rei D. Carlos,
ros num país de língua oficial portuguesa, vale pedindo-lhe que nomeasse alguém que repre-
a pena lembrar esses nossos primeiros seis sentasse os interesses de Portugal junto do
heróis: de António Stromp a Francisco Lázaro, Comité Olímpico Internacional. Foi nomeado
um grupo de homens que colocou Portugal D. António Lancastre, médico da Casa Real e e, segundo contava o jornalista Sequeira
entre os olímpicos. Sem medalhas, termi- secretário da Assistência Nacional dos Tuber- Andrade em 2004, o convite, “dirigido ao
nando em tragédia, como cúmulo de uma culosos. Mesmo assim, Portugal falhou os Ministério dos Negócios Estrangeiros, foi por
aventura que se tornou uma verdadeira lição, Jogos de 1908. Em fevereiro desse ano, acon- esta entidade endossado à Direção-Geral de
estes homens entraram, inevitavelmente, para tecera o regicídio, sendo D. Carlos e o príncipe Instrução Pública que, com igual atrapalha-
a história do desporto português. herdeiro assassinados no Terreiro do Paço. ção, por sua vez o despachou para o Governo
Até 1912, a língua portuguesa ainda não se Só no ano seguinte foi, finalmente, fundada Civil de Lisboa, que por sua vez atonitamente
falara nos Jogos Olímpicos (o Brasil só entraria a referida Sociedade Promotora da Educação notificou os diferentes clubes da capital por
em 1920). Percebe-se porquê: em finais do Física Nacional (SPEFN), assim como a Liga meio de estafetas policiais...”. Era necessária
século XIX, o desporto era, em Portugal, algo Sportiva para os Trabalhos Atléticos. Pouco a constituição de um Comité Olímpico, o que
muito insípido, e o início das Olimpíadas da era a pouco, cresce um movimento desportivo, viria a ser concretizado em abril de 1912.
moderna, em 1896, em Atenas, foi ignorado no notado pela realização dos Primeiros Jogos Foi longa a epopeia até os seis heróis nacio-
nosso país. Quando, em 1899, surge a ideia da Olympicos Nacionaes (1910), pela publicação nais chegarem a Estocolmo. Primeiro que tudo,
criação da Sociedade Promotora da Educação do n.º 1 da revista Os Sports Illustrados (11 de faltava dinheiro: o governo não quis subsidiar a
Physica Nacional (SPEPN), algo começa final- junho de 1910) ou pelo convite do governo deslocação, apesar da forte pressão dos jornais;
mente a brotar. para que a SPEFN elaborasse um projeto de realizou-se um sarau no Coliseu dos Recreios,
A esgrima e o tiro são então desportos prati- reforma do ensino ginástico. para angariação de verbas, mas a sala ficou pra-
cados por uma classe abastada, dir-se-ia nobre, ticamente deserta, porque nesse mesmo dia
e o rei D. Carlos afirmara-se como um atirador VIAGEM ÉPICA iniciou-se uma greve dos trabalhadores dos
de prestígio internacional. No seu livro Espadas Até que, em dezembro de 1911, surge o con- elétricos. Assim, devido às limitações finan-
e Floretes, José Vilarinho conta que dois esgri- vite da Suécia, para a participação de Portu- ceiras, do lote previamente escolhido foram
mistas inscreveram-se, em 1900, para o Torneio gal nos Jogos Olímpicos. Inicia-se então uma dispensados quatro atletas (César de Melo,
Internacional de Espada de Paris: Sebastião grande aventura: o país não estava preparado Matias de Carvalho, Correia Leal e Sebastião

78 SUPER
A caminho da morte
Dos seis atletas enviados por Portugal
a Estocolmo, apenas cinco regressaram
vivos. Portugal estreou-se em tragédia nos
Jogos Olímpicos. Nunca mais a maratona
se correu ao princípio da tarde.

Herédia) e escolhidos seis (António Stromp, letreiro. A música de da altura (diretor-geral dos Hospitais Civis e
Fernando Correia, António Pereira, Armando fundo ainda era o provedor da Santa Casa da Misericórdia de Lis-
Cortesão, Joaquim Vital e Francisco Lázaro). Hino da Carta, e não A boa). António era o quarto descendente, e com
A viagem foi rocambolesca e durou uma Portuguesa. os seus irmãos Francisco e José foi um dos 19
semana: embarcados no paquete Asturias, da Após hora e meia fundadores do Sporting Clube de Portugal, em
Mala Real Inglesa, a 26 de junho, os portugueses de cerimónia, ao 1906 (tinha então 12 anos...).
levaram três dias a chegar a Southampton; daí, sol, António Stromp António foi um atleta precoce: com apenas
seguiram de comboio para Londres, onde apa- tornou-se o primeiro 15 anos, jogou na primeira equipa de futebol
nharam novo comboio que os levou a Harwich. atleta português a do Sporting, como extremo-direito (fez parte da
Numa embarcação a vapor, atravessaram o mar entrar em competi- equipa leonina campeã de Lisboa em 1914/15,
do Norte, até Esbjerg, na Dinamarca. Com ção numa olimpíada: e ainda hoje é considerado um dos melhores
diversas mudanças de trans­portes pelo meio, às 13h30, correu a extremos direitos da história do futebol por-
atravessaram o país e chegaram a Cope­nhaga série 5 dos 100 metros. Foi terceiro, e não se tuguês), e foi escolhido para todas as seleções
a 1 de julho. Depois, atravessaram o estreito de qualificou para a eliminatória seguinte, mas a de Lisboa até 1916, fazendo parte de uma céle-
Øresund e chegaram finalmente de comboio a história estava feita: a partir de então, Portugal bre deslocação ao Brasil, em 1913 (brilhou de
Estocolmo, no dia 2! nunca mais falhou a participação nos Jogos, e tal forma que foi convidado a ficar lá, mas recu-
é atualmente o 18.º país com mais presenças. sou...). Era, sobretudo, de um ecletismo notá-
ANTÓNIO STROMP, O ECLÉTICO Quanto a Stromp, ainda voltou a competir, nos vel: campeão de Portugal nos 100 e nos 200
Poucos dias depois, entravam em competi- 200 metros, a 10 de julho, voltando a ser terceiro. metros e no salto com vara, e recordista nacio-
ção. A 6 de julho de 1912, na cerimónia de aber- Não se fica por aqui a história deste primeiro nal em três especialidades, foi o primeiro a
tura, Francisco Lázaro foi o porta-bandeira herói. Stromp era um fenómeno. Nascido a 13 vencer uma corrida no Stadium de Lisboa (que
(o vermelho e o verde já substituíam o azul da de junho de 1894, era um dos sete filhos de antecedeu o Estádio de Alvalade), em 1914, e
monarquia) e Joaquim Vital empunhava o Francisco dos Reis Stromp, prestigiado médico ainda se evidenciou no ténis e na esgrima.

Interessante 79
Um dos atletas Confusões revolucionárias
Na cerimónia de abertura, Francisco
Lázaro transportou a bandeira
confessou: da República, mas ainda se ouviu o hino
monárquico, em vez de A Portuguesa.

“Meti-me
com meninas”
Infelizmente, a sua carreira desportiva viu-se
abruptamente interrompida por uma doença
terrível na altura, a sifílis: António fez o seu
último jogo de futebol a 1 de abril de 1916, a que
se seguiram cinco anos de calvário, até à morte,
em 6 de julho de 1921, com 27 anos. Por coinci-
dência, no dia da sua morte assinalavam-se exa-
tamente nove anos desde a estreia nos Jogos
Olímpicos! O seu nome foi dado, em 1926,
à rua que hoje, no Lumiar, conduz ao estádio
do Sporting.

CORTESÃO,
O CARTÓGRAFO
Pouco mais de
uma hora depois
de António Stromp,
entrou em compe-
tição, no mesmo
dia 6 de julho de
1912, o segundo
atleta português,
Armando Cortesão.
Na série 2 dos 800
metros, Cortesão foi
segundo classificado e qualificou-se para as
meias-finais, que correria no dia seguinte. Não
conseguiu o apuramento para a final, devido
a uma distensão muscular que o obrigou a
desistir; a 12, ainda foi terceiro na série 1 dos
400 metros.
Com estes resultados, Cortesão talvez tenha domínios da agronomia, da ciência, da cultura, seis volumes de Portugaliae Monumenta Car-
sido o português que mais chamou a aten- das relações internacionais e dos assuntos tographica, em colaboração com Teixeira da
ção. Conta-se que impressionou os norte- coloniais. Quando participou nos Jogos Olím- Mota. Faleceu em Lisboa, em 1977.
-americanos, que recearam ter ali um picos, como atleta do CIF (Clube Internacio-
inesperado concorrente e estudaram a nal de Futebol), formava-se em Lisboa como JOAQUIM VITAL, O JORNALISTA
sua passada. Os seus resultados foram engenheiro agrónomo, no Instituto Superior Só dois dias depois de Stromp e Cortesão as
bons e poderiam ter sido melhores, expli- Técnico. cores portuguesas voltaram ao palco dos Jogos
cou mais tarde o próprio, ao jornalista Após o curso, integrou missões às Américas, de Estocolmo. O lutador Joaquim Vital entrou
Romeu Correia: “Meti-me com meninas, às Índias Ocidentais, à Guiné, ao Senegal e a em prova na categoria de –75 kg, a 8 de julho,
deitei-me tarde. Sei lá que disparates cometi!” São Tomé, onde integrou uma missão geodé- às 14 horas. Defrontou o italiano Zavirre Carce-
Natural de São João do Campo (Coimbra), sica liderada por Gago Coutinho. Ocupou vários reri e perdeu; depois, venceu o embate com o
onde nasceu a 31 de janeiro de 1891 (um dos cargos na administração colonial portuguesa francês Adrien Barrier. Voltaria a competir no
seus quatro irmãos foi o historiador Jaime Cor- e foi comissário-geral de Portugal na Expo- dia 10, para ser eliminado pelo finlandês Alppo
tesão), Armando Zuzarte Cortesão começou, sição Internacional de Antuérpia, em 1930. Asiakainen. Acabou como 20.º classificado,
no desporto, como praticante de remo na Foi diretor da Agência Geral das Colónias e mas nunca serão esquecidos os protestos dos
Associação Naval de Lisboa. Quando derrotou, agraciado com o grau de grande oficial da portugueses face aos critérios da arbitragem,
numa prova de mil metros, o famoso Matias de Ordem Militar de Cristo. Em 1932, exilou-se em sobretudo no embate com o finlandês.
Carvalho, percebeu-se que, afinal, a corrida Espanha, França e Inglaterra, onde trabalhou “Vital garantiu-me, e com ele alguns espe-
talvez fosse a sua modalidade natural. Assim na Unesco. Regressou a Portugal em 1952, para tadores, que não tinha sido derrotado regular-
foi, embora tivesse ainda praticado também a Universidade de Coimbra, onde foi distin- mente”, contou Fernando Correia, num texto
ténis, esgrima e boxe. guido com o título de doutor honoris causa. Em publicado em Os Sports Illustrados, de 20 de
Além de ter sido um dos nossos pioneiros 1961, Américo Tomás atribui-lhe a grã-cruz da julho de 1912.
olímpicos, notabilizou-se como grande historia- Ordem do Infante D. Henrique. Recebeu, em Na especialidade de meios-médios, Joaquim
dor da cartografia, com vasta obra publicada, 1972, o Prémio Nacional de Cultura. Da vasta Vital foi um atleta de destaque na luta greco-
não só no plano historiográfico mas também nos obra publicada, salienta-se a organização dos -romana em Portugal, chegando a campeão

80 SUPER
Lusofonia em 2004
E m competição olímpica, o português
só começou a ouvir-se, efetivamente,
em 1912, com a participação dos seis heróis
referidos neste trabalho. Embora a comuni-
dade dos países de língua oficial portuguesa
seja vasta, e populosa, por diversas razões
só muito tarde esses países chegaram às
olimpíadas, até porque a maior parte deles
apenas se tornou independente em 1975. O
Brasil, o maior país lusófono, participou pela
primeira vez oito anos depois de Portugal,
nos Jogos de Antuérpia, em 1920. A partir
daí, tornou-se uma das potências da com-
petição: participou sempre, à exceção de
1928, quando uma crise das bolsas impediu
o envio de atletas. Logo em 1920, conquis-
tou uma medalha (Guilherme Paraense,
ouro no tiro), totalizando atualmente 108
medalhas (23 de ouro, 30 de prata e 55 de
bronze), de um total de 2683 atletas en-
viados aos Jogos! O Brasil será também o
primeiro país de língua portuguesa a receber
a competição de verão (refira-se que o Brasil
regista também sete participações nos Jogos
de inverno...). Portugal e Brasil estiveram,
pois, juntos na competição a partir de 1920,
mas só receberiam a companhia de outros
países de língua oficial portuguesa... 60 anos
depois! Uma situação que tem, claro, a ver
com a tardia independência das colónias de
África, só consumada após o 25 de Abril de
1974. Assim, os Jogos de 1980, em Mosco-
vo, já registaram as participações de Angola
e Moçambique. Em 1996, em Atlanta,
juntaram-se ao grupo a Guiné-Bissau, Cabo
Verde e São Tomé e Príncipe. Finalmente,
Timor-Leste entrou em 2004, em Atenas,
Jogos que juntaram, pela primeira vez, todos
nacional. Nos Jogos de 1912, além de atleta, foi secção desportiva d’O Século e em Os Sports os países de língua oficial portuguesa. É uma
também treinador e massagista. Nesta última Illustrados, a mais destacada publicação da forte comunidade, já com muitas participa-
função, ficou para a história um episódio quase área, na altura. Aliás, Os Sports Illustrados ções e um bom lote de medalhas: 108 do
anedótico, que revela bem o amadorismo da beneficiaram da presença em Estocolmo de Brasil, 23 de Portugal (quatro de ouro, oito
representação nacional, assim descrito no livro Vital, que fez uma excelente cobertura da pre- de prata, onze de bronze) e duas de Mo-
Os 6 de Estocolmo, de Francisco Pinheiro e Rita sença nacional e foi o último dos portugueses çambique (uma de ouro e uma de bronze,
Nunes: “O massagista improvisado era Joaquim a falar com Francisco Lázaro, à passagem do ambas pela atleta Maria Mutola, na prova de
Vital, que ao ver os restantes atletas, das outras 25.º quilómetro da maratona. 800 metros).
equipas, a levarem massagens, decidiu tentar
comprar numa farmácia sueca as chamadas PEREIRA, O
‘emborcagens’ (mistura de vários líquidos, HOMEM FORTE
alguns de cariz alcoólico e anestesiante). O O quarto atleta Pereira chegou a Estocolmo com um curioso
farmacêutico sueco, por inépcia ou falta de português a entrar percurso: nascido em Pragança, no concelho
comunicação, já que Vital dominava mal o em competição foi do Cadaval, a 4 de abril de 1888, cresceu numa
francês e não falava inglês, vendeu-lhe um António Pereira, quinta em Lisboa. Uma vida, a do campo,
frasco com um líquido transparente e incolor. em luta greco- que ele sempre relacionou com a sua força
Depois de um treino, Armando Cortesão foi o -romana (–60 kg). A física. “Fui um pequeno Tarzan, de manhã à
primeiro a ser massajado por Vital com esse 9 de julho de 1912, noite: corria, trepava às árvores, comia fruta,
líquido, perante o olhar estupefacto de um às 9h30, defrontou matava a sede e banhava-me nas águas do tan-
grupo de suecos, que ao ver o frasco avisou o finlandês Lauri que. Creio que este viver selvagem e livre foi
os atletas portugueses que se tratava de um Haapanen e perdeu, benéfico para o futuro de atleta que eu viria
remédio para os dentes.” algo pouco habitual a ser”, contou numa entrevista, em 1972, ao
Profissionalmente, Vital era empregado para este “super-homem” português, cuja jornalista e escritor Romeu Correia, transcrita
comercial, e simultaneamente preenchia a sua especialidade, porém, não era a luta, mas o no livro Portugueses na V Olimpíada (Editorial
vocação de jornalista com colaborações na halterofilismo. Notícias, 1988).

Interessante 81
O primeiro
esgrimista A verdade é que desde cedo mostrou capa-
nacional cidades físicas para ser um atleta notável.
Começou por destacar-se no halterofilismo,
foi afastado no Ateneu Comercial de Lisboa, e bateu vários
records nacionais, vencendo diversos campeo-

de forma natos. Em 1910, apurou-se para o Europeu, em


Budapeste, onde só não disputou a final por
alegados erros dos juízes. Certo é que entre
pouco clara 1911 e 1914 ganhou todas as provas em que
participou.
A ida a Estocolmo constituiu uma espécie de
intervalo neste percurso pelo levantamento de
Médico no COI pesos: em 1912, especializou-se na luta greco-
-romana, cuja prática iniciara há quatro anos.

N em só de atletas se faz a história


dos Jogos Olímpicos. Alguns anos
antes de 1912, um outro português leva-
Campeão nacional de levíssimos, ganhou o
passaporte para os Jogos, onde porém não foi
feliz. Ainda conseguiu uma vitória sobre o bri- quência não só de me terem anulado uma vitó-
va, pela primeira vez, a presença nacional tânico McEnzie, mas na terceira ronda voltou ria que tinha sobre um atirador que o júri des-
ao movimento liderado pelo barão de a perder, face ao sueco Andersson. Terminou classificara, como por outros atiradores terem
Coubertin. Falamos de D. António de no 19.º lugar. melhorado na sua posição de inferioridade
Lancastre, médico da Casa Real e, à Em 1914, interrompeu a atividade desportiva, em que estavam para comigo porque lhes
altura (junho de 1906), secretário da por motivos profissionais, mas retomou-a em anularam a derrota, que tinham sofrido do
Assistência Nacional dos Tuberculosos. 1924, apenas como halterofilista: apurou-se atirador desclassificado. Fui apurado para as
Descendente dos condes de Lancastre e para as Olimpíadas de 1924, mas uma distensão meias-finais, eram 11 horas da manhã. Às duas
dos condes de Caria, D. António (1857– muscular impediu-o de se classificar. Voltou horas da tarde, o júri da minha série, que já me
–1941) é muitas vezes apontado como aos Jogos em 1928, em Amesterdão, para ser tinha prejudicado colocando-me em barrage,
último médico da Casa Real. Clínico 11.º entre 21 concorrentes. Abandonou após tendo sido ouvido pelo júri internacional, a
assistente do rei D. Carlos, foi por este estes Jogos, com 40 anos, após muitos triun- propósito do protesto que o atirador des-
nomeado para representante de Portu- fos e sucessos, o maior dos quais terá sido classificado lhe apresentara, propôs a minha
gal no Comité Olímpico Internacional, o record do mundo de levíssimos, em 1925. exclusão. O júri internacional aceitou-a! Que
em 1906. O barão de Coubertin queria Também praticou futebol, remo e ciclismo. fazer perante isto? Só tenho pena de nesse júri
desenvolver o movimento, para o qual Foi ainda treinador no Lisboa Ginásio, na Gui- internacional o nosso país não ter voz.”
arrastava dezenas de personalidades: lherme Cossoul e na Sport Conimbricense. Foi O incidente é também relatado, com outros
príncipes, cientistas, generais, profes- condecorado com a medalha de Mérito Des- pormenores, no livro Espadas e Floretes, de
sores, autoridades políticas e sociais... portivo. José Vilarinho: “Quando lhe faltava assaltar
Assim, convidou o monarca português a Profissionalmente, foi topógrafo-desenha- apenas com Tvorsky, este abordou o português
fazer a nomeação, diz-se que numa das dor (trabalhou na elaboração das plantas de perguntando-lhe a sua classificação. Correia res-
frequentes presenças de D. Carlos em Lisboa e do concelho de Cascais), diretor da pondeu que dependia do resultado do assalto
Paris. A presença de D. António Lancas- Empresa Mineira de Porto de Mós e da Fábrica entre ambos. Durante o assalto, Tvorsky des-
tre no COI durou até 1911: em fevereiro de Cimentos da Maceira, chefe na Empresa cobriu-se de tal maneira que o português ficou
deste ano, exilado em Paris, pediu a Nacional de Máquinas e diretor de empreitadas indeciso em tocá-lo, só o fazendo por imposição
demissão, alegando a mudança política de equipamentos eletromecânicos. Faleceu do tempo e do júri. Este, no final, chamou os dois
em Portugal, que entretanto, após o regi- em 1978, com quase 90 anos. atiradores perguntando-lhes se tinha havido
cídio, declarara a República. Seria subs- alguma combinação.” O resto, sabe-se pelas
tituído, em 1912, por outro exilado na CORREIA, explicações de Correia: Tvorsky desqualificado,
capital francesa, também monárquico, O DIPLOMATA assaltos anulados, uma vitória a menos para
o conde de Penha Garcia. Este último, Fernando Correia, o português, que teve de ir a uma barrage;
mais ligado às coisas do desporto, seria esgrimista, chefe da venceu dois assaltos, apurou-se, mas um novo
ainda nomeado presidente de honra comitiva, cofunda- protesto de Tvorsky levou o caso para o júri
da Sociedade Promotora da Educação dor do COP, foi o internacional de apelo, que decidiu excluir
Física Nacional, e distinguido, em abril quinto atleta portu- também o representante português.
de 1912, como presidente de honra do guês a competir nuns Nascido em 1880, Correia era um dos despor-
primeiro Comité Olímpico Nacional. Jogos Olímpicos. Às tistas de referência da sua geração (campeão
Como João Sequeira Andrade escreveu nove da manhã de nacional de espada), mas nesta primeira par-
em 2010, num texto para o Fórum Olím- 11 de julho de 1912, ticipação olímpica ficou, assim, pela primeira
pico de Portugal, “não houve nem há defrontou, na cate- eliminatória; voltou a participar nos Jogos de
qualquer notícia da interferência direta goria de espada, um representante finlandês, 1920, em Antuérpia, onde foi semifinalista.
ou indireta das citadas personalidades na mas acabou por ser desqualificado. Uma situa- Conta-se, sobre ele, que era um homem capaz
atividade olímpica de Portugal”. Nem, ção polémica, que ele descreveu depois, em 27 de conciliar vontades e postura política, e por
adianta, quando se tornaram necessárias de julho desse ano, em Os Sports Illustrados: essa razão este empregado superior do Monte-
múltiplas diligências na sequência da “Sobre o torneio individual em que entrei, à pio Geral foi diretor em vários clubes lisboetas,
morte trágica de Francisco Lázaro. nota oficial do Comité devo acrescentar que membro do Comité Olímpico Português e
fui forçado a desfazer a barrage, como conse- nomeado chefe da comitiva que viajou para

82 SUPER
Erro trágico. Francisco Lázaro terá sido
vítima dos cuidados que tomara para se
proteger do calor intenso daquela tarde.

Estocolmo. No desempenho deste papel,


mereceu diversos elogios, nomeadamente do
natação em alto mar, mas não viria a ter o
mesmo efeito na maratona.
Índio injustiçado
embaixador português na Suécia, António Feijó.
Na capital sueca, Correia fez vários contactos
importantes, como por exemplo com o barão
Aos 30 quilómetros, o atleta português
sucumbiu e teve de ser levado para o hospital,
inconsciente, com convulsões em todo o corpo,
E m que cenário desportivo participou
Portugal pela primeira vez? Os Jogos
Olímpicos eram então uma prova da afirma-
Pierre de Coubertin, e foi ele quem tratou do estado de delírio e febre superior a 41 ºC. Ape- ção internacional de um país, e a Suécia fez
funeral de Francisco Lázaro e da viagem de sar de todos os esforços dos médicos suecos, questão de organizar a melhor competição
regresso a Portugal. acabaria por falecer às 6h20 do dia 15 de julho. até então disputada. Estiveram presentes 28
O campeão português entrou, assim, para países, dos quais cinco estreantes: Portugal,
FRANCISCO LÁZARO, O CARPINTEIRO a lenda. Foi o primeiro atleta a morrer nuns Egito, Islândia, Japão e Sérvia. Participaram
Estava-se mais ou menos a meio do pro- Jogos Olímpicos da era mosderna, e logo na 2407 atletas (2359 homens e 48 mulheres),
grama dos Jogos de 1912 quando se disputou primeira participação nacional. Devido a este em 14 modalidades e 102 eventos diferen-
a maratona. Até então, a participação portu- caso, os médicos recomendaram que a mara- tes. A Suécia foi o país com mais medalhas
guesa era relativamente dececionante, mas fal- tona passasse a ser disputada nas horas mais (65), mas foi um norte-americano a grande
tava entrar o atleta no qual mais esperanças se frescas do dia e não no pico do calor. A sua figura da competição: Jim Thorpe, atleta
depositavam: Francisco Lázaro. Em Portugal, morte foi alvo de grandes discussões: houve de origem indígena, ganhou as provas do
acreditava-se convictamente na capacidade do quem referisse o facto de não ter protegido pentatlo e do decatlo, de tal forma que o rei
seu melhor atleta. Nesse mesmo ano, Lázaro a cabeça, mas sabe-se que a meio da prova Gustavo V o considerou “o melhor atleta do
vencera a maratona de Lisboa com um tempo já levava um lenço branco na cabeça. Ataque mundo”. Porém, posteriormente detetou-se
muito promissor, que o colocava como favo- cardíaco, má preparação e abuso de estricnina que Thorpe tinha jogado basebol profis-
rito à conquista olímpica. foram outras causas equacionadas, mas a razão sional em 1910, pelo que as medalhas lhe
A sua história justifica a lenda: nascido num mais forte para o sucedido parece mesmo foram retiradas: não era um atleta amador.
bairro pobre de Benfica, a 22 de setembro de ter sido, segundo a maior parte dos estudos, A injustiça seria emendada demasiado tarde,
1889, começou por se sentir atraído pelo fute- a utilização do sebo no corpo, que causou um em 1983, já depois da morte de Thorpe
bol, no Grupo Sport de Benfica. Deu nas vistas aquecimento exagerado e impediu a normal (1953), quando o COI decidiu devolver-lhe
nas corridas a pé em 1908, e em 1911 passou a transpiração do atleta. as medalhas. Na verdade, o profissionalismo
representar o Sport Lisboa e Benfica; no ano A odisseia de Lázaro não terminou naquela não se confirmara: Thorpe apenas recebera
seguinte, transitou para o Lisboa Sporting Clube. manhã de 15 de julho. No dia 16, realizou-se um 15 euros por mês, aos 20 anos, durante
Lázaro aprendera o ofício de carpinteiro, funeral provisório, após o que o corpo ficou umas férias em que jogara basebol, e apenas
especializando-se em carroçarias de automó- depositado numa igreja católica sueca, até o a título de subsídio de alimentação...
veis. O seu treino habitual era muito simples: ao dia da trasladação para Portugal, dois meses
sair do Bairro Alto (onde trabalhava), corria depois!
até São Sebastião da Pedreira e depois até Na Suécia, ao saber-se que o atleta deixara
Benfica, perseguindo os elétricos. Casou mulher e uma filha pequena, surgiu a ideia de guerra sueco Vendysset transportou o corpo
pouco antes de embarcar para Estocolmo, uma subscrição para ajudar a família, ideia que de Lázaro para Lisboa. A 23 de setembro, fez-
deixando a mulher grávida de uma menina. o príncipe Gustavo Adolfo transformou num -se o desembarque da urna, e a viúva recebeu
Como já se percebeu, era o mais humilde dos festival desportivo no Estádio Olímpico, que do comandante do navio uma lata de terra,
seis. Muitas vezes, teve de ser ajudado em na altura gerou uma receita de cerca de 40 apanhada no local onde o atleta desfalecera, e
questões de etiqueta ou de trajes a envergar. mil coroas (aproximadamente 70 mil euros). uma fotografia da igreja onde o corpo estivera
No dia da corrida, 14 de julho, estava bem O dinheiro foi aplicado num fundo, recebendo depositado. No dia 24, realizou-se finalmente
disposto e até surpreendeu os colegas, atra- a família os dividendos anualmente; o a verba o funeral, para o cemitério de Benfica, perante
sando-se na apresentação na pista: foram dar foi entregue, na totalidade, em 1930, quando centenas de pessoas e vários discursos como-
com ele a ensebar o corpo. Pretendia, dessa a filha de Lázaro atingiu a maioridade. Sabe-se ventes. Terminara, enfim, a primeira odisseia
forma, evitar o forte calor que se fazia sentir que na década de 70 esta vivia em Moçambique olímpica do desporto português. Com tristeza,
(a prova iniciou-se às 13h48, com 32 graus à e ainda trocava correspondência com a família porém com muito heroísmo. Nada, jamais,
sombra!). A utilização de substâncias como o real sueca. seria igual.
sebo era, então, habitual em provas longas de Dois meses após o fatídico dia, o navio de J.S.

Interessante 83
Antropologia
Património espiritual. A máscara
Rituais ancestrais dos solstícios permite esquecer e subverter os estatutos
e as hierarquias sociais. O carnaval
de Lazarim atrai milhares de visitantes.

Por detrás da
MÁSCARA
Quando se fala em máscaras, pensa-se de imediato
no Carnaval. Porém, estas usam-se desde tempos
imemoriais com outros propósitos que não apenas
a folia carnavalesca. São ritos milenares, em que
as máscaras e os mascarados carregam valores
simbólicos e asseguram a identidade coletiva.

N
o Nordeste Transmontano, por Estas confraternizações comunitárias, com
alturas do Natal, do Ano Novo e dos tropelias, gritarias e chocalhadas, não se pas-
Reis, acontecem curiosos festejos, sam apenas em Salsas, mas acontecem em mui-
protagonizados por mascarados tas outras aldeias brigantinas, como Aveleda,
(conhecidos na região por “caretos”), com Baçal, Bemposta, Bruçó, Constantim, Grijó de
chocalhos presos nos trajes tradicionais feitos Parada, Ousilhão, Parada de Infanções, Rebor-
de mantas. Mesmo com frio e chuva, são, geral- dainhos, Rebordãos, Rio de Onor, Tó, Torre de
mente, festas com muita cor, barulho e euforia, D. Chama, Vale do Porco, Varge e Vila Chã da
fazendo lembrar um Entrudo antecipado. Braciosa. Segundo um estudo levado a cabo
Em Salsas, por exemplo, uma pequena por António Pinelo Tiza, em 2013, há 26 festas
aldeia localizada 27 quilómetros a sul de Bra- tradicionais com mascarados só no distrito de
gança, a ação dos mascarados é protagonizada Bragança, das quais vinte decorrem entre o
por rapazes. Todas as noites, entre o Ano Novo Natal e os Reis, quatro no Carnaval e duas no
e os Reis, saem à rua e invadem as casas à dia seguinte (quarta-feira de Cinzas).
procura de fumeiro e das raparigas, que pre- Há quem pense que estes festejos são ape-
tendem “castigar”. Gozando de uma liberdade nas folclore, modas recentes que servem para
quase sem limites, dão largas à sua imaginação atrair turistas e para dar algum ânimo à depau-
e executam o rito das chocalhadas: agitam as perada economia de lugarejos recônditos e
ancas, batendo violentamente com o molho de quase esquecidos do “Portugal profundo”.
chocalhos contra o corpo das suas vítimas. Será mesmo assim?
Na noite de Reis, os caretos vão de porta em
porta, acompanhados pelas crianças e pelos ORIGENS MILENARES
jovens da povoação, recolhendo esmolas: As máscaras e os mascarados percebem-se
dinheiro, chouriços, carne fumada e produtos no Entrudo, mas qual o seu significado numa
da terra. Terminado o peditório, o povo reúne- altura em que se comemora o nascimento de
-se para o grande momento de convívio: come- Jesus ou a visita dos Reis Magos? Por estranho
-se, bebe-se e dança-se animadamente. Afinal, que pareça, não são esses eventos cristãos que
é tempo de frio e é preciso aquecer os corpos justificam a sua existência, mas os rituais pagãos
FOTOS: JORGE NUNES

e alegrar os espíritos. A festa termina com o do solstício de inverno, muito anteriores ao cris-
ritual do fogo, em que se queima um careto tianismo. Estamos perante manifestações cul-
gigante, simbolizando o ano velho. turais antiquíssimas, cuja origem será, com cer-

84 SUPER
Interessante 85
Ritual original
H á um festejo com máscaras e mascara-
dos que quebra a tradição e acontece
no início do estio, sinalizando o solstício de
verão: quando o calendário marca o dia 24
de junho, as gentes de Sobrado (Valongo)
saem à rua para comemorar o S. João através
de um ritual único em Portugal, designado
pelos autóctones por “Bugiada” (a litera-
tura, em geral, também lhe chama “Mou-
riscada”). Trata-se de uma representação
cuja origem permanece desconhecida, mas
que nos remete para a época da reconquista
cristã e para os confrontos entre “mouros”,
denominados localmente por “mouris-
queiros”, e cristãos, a que o povo chama
“bugios”. Na Bugiada, participam, todos
os anos, centenas de figurantes, nascidos e
criados na terra (é uma festa profundamen-
te enraizada na consciência popular), que
revivem uma disputa antiga entre cristãos e
mouros pela posse de uma imagem de
S. João. Segundo reza a lenda, num determi-
nado dia, a filha do rei árabe caiu enferma,
e o pai, conhecendo os milagres de S. João,
pediu ao rei dos cristãos a imagem do santo
Expressão identitária. Mascarados típicos da festa de Vila Boa de Ousilhão (à esquerda), milagreiro. Este acedeu ao pedido e fez o
que passou de Santo Estêvão para o carnaval, e da Festa dos Rapazes de Varge (à direita). empréstimo. Porém, como a imagem não
foi restituída, originou-se uma violenta bata-
lha entre os dois exércitos, acabando com a
Muitas destas tradições vitória dos cristãos.
Embora seja uma lenda, é verdade que

têm raízes na herança celta houve árabes na região. Segundo A Villa de


Vallongo, de Joaquim Reis (1903), por volta
do ano 716, “o emir Abd-el-Azim, com um
teza, pré-romana: “Alguns destes elementos explicar-se com o facto de os romanos também grande exército de mouros, tinha tomado e
rituais poderão ter a sua génese na tradição festejarem estes momentos críticos do ciclo saqueado a cidade [Porto], matando todos
celta e zoela”, defende António Tiza. agrário com ritos em honra do Sol. “Anterior- os seus habitantes e ficando senhor dela du-
Os celtas povoaram o seu mundo de magia e mente ao cristianismo, celebrava-se exata- rante 104 anos, até 820, quando D. Afonso I
de deuses: viviam num universo mágico em que mente no dia 25 de dezembro o nascimento de Leão, o Católico, a resgatou, expulsando
toda a natureza era habitada por divindades, do Sol Invencível: o deus-Sol que revigora e se os terríveis e ferozes infiéis”.
desde as árvores (como os carvalhos) aos ani- levanta no solstício de Inverno”, recorda Moisés Em 824, Abd-el-Raman, califa de Córdo-
mais e aos cursos de água. Também atribuíam Espírito Santo, sociólogo das religiões. va, tentou reconquistá-la, mas o conde
grande simbolismo aos solstícios, tanto de As festas romanas das Calendas de Janeiro Hermenegildo, governador do Porto, saiu-
verão (este ano, acontecerá a 20 de junho, às eram celebrações agrárias, as Bacanais, em -lhe ao encontro e infligiu-lhe uma severa
22h34, sendo o dia mais longo do ano), como honra de Baco, deus do vinho que também pre- derrota. No ano seguinte, Almansor, que se
de inverno (ocorrerá a 21 de dezembro, às sidia à plantação e frutificação. Além disso, nas intitulava o “terror dos cristãos”, desforrou-
10h44, sendo o dia mais curto do ano), pois últimas semanas de dezembro, os romanos -se: reuniu um grande exército, tomou a
consideravam o Sol como sinal de vida e de festejavam ainda as Saturnais e a Juvenália. cidade e destruiu-a, tendo ficado totalmente
fecundidade. As Saturnais decorriam entre os dias 17 e 23 desabitada durante 157 anos.
“Eram panteístas e adoravam o Sol, que sem- e eram dedicadas a Saturno, o divino agricul- Finalmente, em 982, D. Raimundo III, com
pre foi considerado o símbolo mais perfeito do tor e deus da abundância. Durante esses dias, o auxílio de cruzados normandos e fran-
espírito para a generalidade dos povos antigos”, era comum a inversão dos papéis sociais, como, ceses, reconquistou a cidade, empurrando
explica o historiador e filósofo Paulo Alexandre por exemplo, entre ricos e pobres: era habitual os infiéis para as serras de Valongo e para
Loução. Assim, não é de estranhar que lhe que os senhores da casa servissem à mesa os os montes de Sobrado. “Retemperadas as
prestassem culto e celebrassem as colheitas, seus servos, que tinham licença para se embe- forças, os árabes fizeram frente aos cristãos,
fazendo festas em honra do deus Lug (o Deus bedar e injuriar os amos. Além disso, realizava- que se gladiaram ferozmente. Este combate
do Sol celta, cujo atributo é uma lança mágica, -se um banquete público, que dava azo à mais foi um dos mais terríveis que por estes
representada pelo fogo, também conhecido absoluta permissividade e libertinagem. Nin- lugares tiveram os mouros com os cristãos”,
como “Lugh”, que significa “cintilante”). guém estava a salvo das brincadeiras: cari- escreveu Joaquim Reis.
Sendo rituais solsticiais tão antigos, é incrí- caturavam-se as leis e os cargos públicos e Portanto, houve batalhas entre cristãos e
vel que tenham perdurado até aos nossos dias, ofereciam-se presentes mordazes. mouros na região de Sobrado. Porque terão
sobretudo, por causa da cristianização, que não As Juvenálias tinham lugar a 24 de dezembro permanecido, durante mais de mil anos,
os via com bons olhos. A sua longevidade poderá e eram festas licenciosas e transgressoras pro-

86 SUPER
A Bugiada envolve dezenas de bugios
(à esquerda) e centenas de mourisqueiros.

mão, e encontra-se rematada por uma chita


alva, que representa a barba branca do idoso
(curiosamente, desta máscara não sobressai
uma fisionomia vetusta, mas um rosto
jovem, que começa por ter feições alegres,
durante a manhã, e feições tristes, à medida
que o dia avança).
“A Bugiada é um verdadeiro fenómeno
cultural sincrético, que o povo de Sobrado
criou, adaptou e conservou”, afirma Maria
Cristina Araújo, enquanto nos guia pelas
ruas apinhadas de gente: como é natu-
ral, pela sua singularidade, esta festa não
envolve apenas os autóctones, mas atrai
forasteiros curiosos de todos os cantos
do país, tendo-se tornado uma autêntica
atração turística. Porém, onde a maioria dos
participantes e visitantes vê apenas diversão,
o olhar antropológico descortina uma
associação de diversos rituais que interessa
desvendar.
Existe o rito de expulsão dos males que
afligem a comunidade, exemplificado na
própria lenda da Bugiada (a doença da prin-
no imaginário popular? Estamos, sem dúvida, branca, recordando a vestimenta da nobreza do cesa árabe e toda a situação que se gerou em
perante uma contenda que opõe dois grupos século XVII. Amiúde, transportam castanholas torno desse acontecimento). Daí, lembra
portadores de valores culturais antagónicos. e objetos como cornos, cobras de pano ou a antropóloga, “o barulho produzido pelos
Segundo Maria Cristina Araújo, antropóloga borracha, ramos de flores e de trigo, bonecas ou bugios e pelos seus objetos (castanholas e
e autora da dissertação Bugios e Mourisqueiros peluches. guizos), que visa afastar o mal da comunida-
– O Outro Lado do Espelho, existe claramente Como se imagina pela indumentária e pela de, repondo a marcha normal da vida”.
uma leitura simbólica que tanto é espacial máscara (recorde-se que esta dilui os estatutos Verifica-se também o rito da fertilidade.
(Norte/Sul), como teológica (Deus/Alá), reli- e hierarquias sociais, permitindo, momenta- Este momento solsticial está imbuído de um
giosa (cristianismo/islamismo), moral (bem/ neamente, uma espécie de liberdade silenciosa, caráter mágico, visto ser a época ideal para
mal), histórica (vencedores/vencidos), cultural sendo um adereço indispensável ao exercício agradecer aos deuses e às forças da natureza
(ocidental/berbere) e identitária (eu/outro). de tropelias e de atos socialmente inaceitáveis), a existência humana, vegetal e animal. Além
Todavia, a lenda e o confronto histórico- os bugios são muito desordeiros, barulhentos disso, recorda Maria Cristina Araújo, “esta
-cultural parecem ser apenas o mote para a e, muitas vezes, de comportamento e lingua- data traduz-se numa atmosfera de folia,
festa, que inclui também um inusitado desfile gem “lasciva”, desatando numa correria louca, erotismo e liberdade licenciosa, que permite
carnavalesco (recorde-se que o carnaval, em saltando e serpenteando pela multidão, que a exteriorização dos desejos primários e de
todos os outros lugares do país, decorreu uns se afasta rapidamente. Esta conduta contrasta sensualidades”. Basta olhar para os bugios
três ou quatro meses antes), no qual não faltam com a dos mourisqueiros, que não usam másca- para ver que neles tudo evoca fertilidade: o
as representações satíricas e burlescas e as ra e se regem pela distinção, pela elegância das seu estilo irreverente, o serpenteado da sua
máscaras e os mascarados. suas danças e pelo silêncio austero. dança, os sons que produzem, o colorido
Logo bem cedo, assiste-se aos preparativos para Os mourisqueiros usam uma farda muito só- das suas vestimentas, o assédio que fazem às
ataviar e caracterizar os participantes (crianças, bria. Ostentam uma barretina cilíndrica da cor raparigas, os objetos que carregam (desde
jovens, adultos e idosos) na trupe dos bugios da farda, feita de cartão, com quatro espelhos cornos, passando por bonecas e raminhos
(outrora, mandava a tradição que fossem ape- retangulares em lados opostos e encimada por de trigo). Ou para os mourisqueiros, que
nas homens casados) e cerca de 30 a 40 rapazes duas plumas. O destaque vai para a espada de transportam as suas espadas em posição ere-
solteiros na trupe dos mourisqueiros. cavalaria que seguram verticalmente, na mão ta, conotando, simbolicamente, verdadeiros
Todos os bugios se apresentam mascarados direita, onde está amarrado um lenço branco. falos humanos, que traduzem o vigor sexual
(antigamente, usavam máscaras de cortiça) e Porém, os mais emblemáticos são, sem dúvida, atribuído aos jovens e marcam este grupo
vestidos a rigor, com trajes ricamente confe- os chefes dos respetivos grupos, como o como potencial promotor da fertilidade.
cionados em veludos e sedas em que abundam Velho, que lidera os bugios. Este usa um longo Também ocorre o ritual da iniciação e de
cores garridas, como o vermelho, o verde e o manto de veludo vermelho, atado à cinta com passagem, tanto do indivíduo (do estado ju-
amarelo. O chapéu é de aba larga, forrado a um cordão dourado, fazendo lembrar vestes venil ao adulto), como de toda a comunida-
vermelho, decorado com espelhos redondos litúrgicas. A barretina cilíndrica é idêntica à dos de (uma passagem física, social e cultural).
e encimado por uma explosão de plumas e mourisqueiros e apresenta “dragonas” doura- Muito mais haveria para dizer sobre a Bugia-
serpentinas coloridas. Os calções de gibão de das nos ombros, que lhe conferem um estatuto da, mas o melhor é o leitor ir a Sobrado no
veludo possuem dois grandes guizos (a que superior. O mais interessante é, no entanto, a próximo dia 24 de junho e descobrir com
se juntam mais quatro, na capa colorida de máscara, que difere de todas as outras: é con- os seus próprios olhos os segredos de uma
veludo) e são rematados por um folho de renda fecionada artesanalmente em cera e pintada à festa singular.

Interessante 87
Chocalheiros
Em Podence, os caretos
vestem fatos felpudos
e coloridos e escondem
a cara com máscaras
de latão pintadas.

As atuais festas de inverno montano: mesmo que seja de uma forma não
assumida, ainda se celebram o Natal pagão e

continuam a envolver inversões o deus-Sol, através das fogueiras e das mas-


caradas.

tagonizadas pelos jovens, que o filósofo Séneca tãs, com o enquadramento das primeiras em RITOS DE INVERNO
chegou a condenar duramente pelos seus benefício das segundas. Por exemplo, as refei- Os mascarados dos ritos de inverno trans-
excessos. Ainda hoje há hábitos excessivos ções comunitárias, celebradas no âmbito da montano, que decorrem, tradicionalmente,
em festas similares, como a tradição de pôr a festa de Santo Estêvão em várias localidades de entre o dia 31 de outubro (Festa da Cabra e do
fumar crianças de tenra idade. Acontece pelos Bragança, terão a sua origem na ação das con- Canhoto, em Cidões: atendendo à data, não se
Reis, em Vale Salgueiro (Mirandela): por mais frarias medievais, que já então as organizavam trata de uma festa solsticial, mas das colheitas)
bizarro e chocante que possa parecer, os idosos como uma oportunidade de suprir as carências e a quarta-feira de Cinzas (Dia da Morte e dos
da aldeia contam que sempre foi assim, e nin- alimentares dos mais pobres. Diabos, em Vinhais), são, sem dúvida, as per-
guém sabe dizer quando nem como começou Segundo os antropólogos, as festividades sonagens principais das festividades, em torno
esta estranha tradição. romanas ainda persistem entre nós e corres- das quais se desenrola toda a ação festiva. Eles
Os antiquíssimos mitos celtas e as tradições pondem às atuais festas dos Rapazes ou de prosseguem funções aparentemente antagó-
romanas sobreviveram porque conseguiram Santo Estêvão (protomártir do cristianismo e nicas, mas que, amiúde, se tocam, se misturam
adotar formas mais aceitáveis pelo cristianismo: patrono dos rapazes, por ele próprio ser um e se confundem: a ordem e o caos, a harmonia
mantiveram-se as datas e os locais de culto, mas santo jovem), que decorrem, durante o ciclo de e a entropia, o profano e o sagrado.
houve uma fusão das personagens mitológicas inverno, em muitas aldeias do distrito de Bra- Neste contexto, “as máscaras surgem como
com as dos santos e dos ritos pagãos com os gança. De certo modo, ainda constituem ritos adereços indispensáveis ao exercício de atos
cristãos (muitos transformaram-se em lendas de passagem da idade infantil à juvenil (daí par- mágicos, socialmente aceites como elementos
populares para escaparem à censura teoló- ticiparem exclusivamente jovens), com provas essenciais das vestes paramentais dos protago-
gica). Segundo o historiador António Rodri- de resistência física, disciplina rigorosa e paga- nistas”, lembra António Tiza. Recorde-se que
gues Mourinho, diretor do Museu da Terra de mento de multas por quaisquer atos lesivos do as antigas sociedades secretas masculinas
Miranda, estas festas pagãs foram cristianizadas bem-estar da comunidade. usavam-nas nos seus ritos de iniciação e os
desde muito cedo, porque no seu ritual havia As festas de inverno, na atualidade, continuam povos arcaicos nos seus rituais profiláticos e
desbragamentos e cheiro a dionisíacas, luper- a envolver inversões da ordem social e cósmica, propiciatórios, de passagem e de puberdade,
cais e bacanais. anomalias, críticas e representações das vivên- de ligação entre humanos e divindades e entre
O período medieval veio consagrar a convi- cias dos grupos. Portanto, podemos dizer que os vivos e os mortos.
vência mais pacífica entre as festas pagãs e cris- o inverno ainda é mágico no Nordeste Trans- A metamorfose a que os homens das másca-

88 SUPER
Património ibérico
A s tradições festivas cujos rituais envol-
vem o uso de máscaras ou disfarces
faciais não são um exclusivo nacional: tam-
bém existem em Espanha, nomeadamente
nas regiões limítrofes do Nordeste Trans-
montano. Partilhamos a mesma origem,
estamos unidos por milénios de história
comum e as populações raianas nunca dei-
xaram de comunicar entre si, mesmo que
isso fosse feito à margem das leis (um bom
exemplo é o contrabando, que sempre ca-
racterizou os povos raianos).
Um trabalho de doutoramento levado a
cabo por António Pinelo Tiza, em 2013,
contabilizou 26 festas com mascarados no
distrito de Bragança, das quais seis coinci-
dem com o período do Carnaval, e 19 na
província contígua de Zamora, quatro das
quais carnavalescas.
A visita aos lugarejos onde ainda se mantém
a tradição secular dos mascarados, tanto bri- O Museu Ibérico da Máscara e do Traje pretende promover a identidade e a cultura raianas,
gantinos como zamorenses, é uma experiên- nomeadamente no que se refere aos rituais ancestrais ligados ao solstício de inverno.
cia inolvidável. Se não tiver essa possibilidade
ou se quiser alargar os seus horizontes acerca mora: El Pajarico y el Caballico (Villarino Tras som da música, incitando à dança, enquanto
do tema, existe um local de visita obrigatória: la Sierra), La Filandorra (Ferreras de Arriba), uma bolsa de pano carregada a tiracolo se
o Museu Ibérico da Máscara e do Traje, El Tafarrón (Pozuelo de Tábara), El Carnaval vai enchendo de oferendas.
localizado nas imediações do castelo de e Los Demonios (Villanueva de Valrojo), La A ronda por todas as casas da aldeia e o
Bragança. Aquando da sua inauguração, em Obisparra (Pobladura de Aliste e Sarracín de peditório começam bem cedo e terminam
2007, António Jorge Nunes, presidente da Aliste), Los Carochos (Riofrio de Aliste), El com a missa solene, na qual participam to-
edilidade, lembrava: “As festas de inverno, Zangarrón (Montamarta e Sanzoles) e Los Cen- dos os atores e músicos. Finda a cerimónia
associadas às máscaras, incluem rituais mi- cerrones (Abejera). Finalmente, no último piso, litúrgica, os celebrantes do rito profano
lenares transmitidos de geração em geração, fica a conhecer as máscaras, os trajes e os aces- tomam parte num almoço coletivo, ofere-
assegurando o diálogo entre o presente e o sórios tradicionais dos carnavais autóctones, cido pelo mordomo. A ronda matinal foi
passado.” Assim, precisam de ser estudados, como o de Almeida de Sayago e de Vilanueva longa, extenuante e rentável, não apenas em
preservados e divulgados. de Valrojo, em Espanha, e de Lazarim, Podence termos materiais, mas simbólicos: levaram
O espaço museológico, que teve por base e Vinhais, em Portugal. a cada casa da povoação a celebração da
uma parceria de cooperação transfronteiriça De modo a espicaçar a curiosidade do leitor, divindade, pela qual se espera um grande
entre o município brigantino e a Diputa- mas sem nos alongarmos em pormenores, benefício para a comunidade.
ción de Zamora, nasceu exatamente com o levantamos um pouco o véu sobre duas das Em Villarino Tras la Sierra, a apenas quatro
propósito de ajudar a promover a identi- festividades que o museu imortaliza: a Festa quilómetros da localidade portuguesa de
dade e a cultura do povo da região raiana, do Menino, em Vila Chã da Braciosa (Miranda Vale de Frades, a festividade realiza-se
nomeadamente no que se refere aos rituais do Douro), e a de El Pajarico y el Caballico, em apenas no dia 26 de dezembro (dedicado ao
ancestrais do solstício de inverno. É consti- Villarino Tras la Sierra (Zamora). culto de Santo Estêvão). O ritual começa de
tuído por três andares: o primeiro dedicado Em Vila Chã da Braciosa, a ação dos mascara- manhã, ao findar da missa, e estende-se pela
às festas de inverno portuguesas, o segundo dos desenrola-se no primeiro dia do ano, sendo tarde e noite. Envolve várias personagens: o
às espanholas e o terceiro aos artesãos e ao por isso conhecida como “Festa de Ano Novo” Parajico (“passarinho”), que, segundo a tra-
Carnaval tradicional, que ainda acontece de ou “Festa do Menino”, uma vez que, segundo dição, será desempenhado pelo último jo-
ambos os lados da fronteira. a tradição cristã, corresponde à data em que vem a fazer a transição de criança a rapaz; os
Quer isto dizer que, num único local, e Jesus foi apresentado ao Templo (e sujeito ao Caballicos (cavalinhos), protagonistas que
em menos de uma hora, o visitante pode rito da circuncisão). Além disso, também é co- surgem sobre cavalos de madeira, pintados
vislumbrar o que acontece em inúmeras nhecida como “Festa da Velha”, pelos esconju- em vermelho e preto, com compridas cau-
festividades de Bragança: Festa dos Rapazes ros dos males do passado, de tudo o que é velho das de pano arrastadas pelo chão (estas ser-
(Varge e Aveleda), Festa dos Reis (Baçal, e que é necessário deitar fora, e pelas saudações vem para molhar, salpicar e sujar as pessoas
Rebordainhos, Rio de Onor e Salsas), aos moradores, com votos de prosperidade, ex- com quem se cruzam); e os Zamarrones,
Festas de Santo Estêvão (Grijó de Parada, pressos na música e nas danças, protagonizadas que se distinguem pelas suas vestimentas
Ousilhão, Parada de Infanções, Rebordãos, pelos “gaiteiros”, pela “velha”, pelo “bailador” tradicionais: roupas de bombazina castanha,
Torre de D. Chama), Festas do Menino e pela “bailadeira”. A personagem da “velha” polainas, botas de couro, chocalhos presos
(Tó e Vila Chã da Braciosa), Festas dos é representada por um jovem mascarado (a à cinta e máscaras de cortiça. Todo o povo
Belhos (Bruçó e Vale do Porco), Festas das “bailadeira” também corresponde a um rapaz participa na festa, que culmina, ao anoitecer,
Morcelas ou da Mocidade (Constantim) e travestido), que carrega um colar de bugalhos à volta de uma fogueira comunitária, na qual
do Chocalheiro (Bemposta). Além disso, de onde pende uma cruz visigótica de cortiça se assam carnes e se distribuem pelos vizi-
fica com uma ideia do que se passa em Za- queimada. Nas mãos, castanholas estalam ao nhos e forasteiros, sem qualquer distinção.

Interessante 89
De localidade
para localidade,
mudam os trajes
e as máscaras
ras se submetem tem como finalidade torná-
-los seres superiores, transcendentes, miste-
riosos e proféticos. Como sacerdotes, lem-
bram os mortos, impõem aos outros o respeito
pela ordem e protagonizam os rituais dos pedi-
tórios em benefício dos santos e das almas dos
defuntos. Como diabos, instituem a desordem
e o caos na comunidade, criticam o povo, atuam
à margem das normas sociais e morais e tomam
para si as liberdades próprias de quem está
acima de tudo e de todos.
Olhemos, por exemplo, para a Festa dos
Rapazes de Varge, que decorre nos dias de Natal
e de Santo Estêvão. Os caretos (jovens solteiros),
devidamente paramentados, encarnam o papel
de profetas e denunciam os atos reprováveis de
alguns membros, famílias ou grupos sociais das
suas comunidades. Esses rituais de crítica social,
conhecidos por “loas”, são momentos solenes,
quase litúrgicos, mas de cariz pagão, que se
seguem à liturgia da missa solene de Natal.
As loas consistem na declamação de quadras
satíricas que visam denunciar vizinhos e autori-
dades da terra. No final de cada quadra mordaz,
os caretos aplaudem com gritos, saltos e cho-
calhos ensurdecedores. Diz quem sabe que se
trata de um ritual com função expurgatória, que
visa a expulsão dos males da comunidade. pubertário de passagem da adolescência para samba e em espampanantes corsos carnava-
a idade adulta: neste contexto, os jovens como lescos, que podem ser muito atrativos para os
FUNÇÕES PROFILÁTICAS que deixam de pertencer ao seu grupo familiar olhos e para os ouvidos e excelentes chamari-
As funções purificadoras e profiláticas não se para passarem a integrar o grupo festeiro, por zes turísticos, mas nada têm a ver com a nossa
ficam por aqui: manifestam-se, igualmente, dois dias e a tempo inteiro. identidade cultural. Segundo os especialistas,
em muitas outras atitudes libertárias dos care- Embora cada localidade tenha as suas especi- se quisermos ver festividades carnavalescas
tos, que assumem o papel de diabos e insti- ficidades, tanto ao nível das máscaras (de latão, autênticas, teremos de ir ao Nordeste Trans-
tuem o caos no grupo e na multidão que se madeira ou cortiça), como dos trajes, rituais e montano ou à Beira Alta: por exemplo, a Freixo
reúne para assistir: soltam os característicos acessórios (varas, bastões, tridentes, choca- de Espada à Cinta, Podence, Santulhão e Vila Boa
gritos “hi! hu! hu!”, saltam, dão cambalhotas, lhos, etc.), todas as festas de inverno se enqua- de Ousilhão (Bragança) ou Lazarim (Lamego).
rebolam pelo chão e, com os seus grossos e dram no mesmo objetivo comum: a destruição Convém não esquecer que a origem do Car-
compridos varapaus, lançam palha às pessoas. do velho para que se crie de novo, ou seja, o caos naval remonta às antigas festas da natureza
Segundo o antropólogo Aurélio Lopes, é o que dá origem à ordem, necessária ao bom pré-romanas e às Saturnais e Lupercais, cele-
momento da “subversão solsticial”, a ocasião andamento da vida comunitária. bradas pelos romanos em honra de Pã, o deus
“do caos por excelência, em que proliferam Para os jovens, é ainda a oportunidade de dos rebanhos. Estas últimas eram festividades
desordens e irreverências, transgressões e viverem alguns dias bem diferentes do quoti- agro-pastoris que aconteciam a 15 de fevereiro,
transversões, bem como o desencadear de diano, tornando-se personagens principais de quando os sacerdotes, despidos, tapando
excessos”. Estas atitudes e comportamentos uma ação que vai dar continuidade à tradição e apenas as partes genitais, percorriam as ruas,
manter-se-ão ao longo dos dois dias de festa, perpetuar a memória coletiva das povoações. batendo com um chicote em quantos encon-
em orgias, excessos na comida e na bebida, ati- Afinal, o que haverá de mais fascinante para um travam, principalmente nas mulheres, que jul-
tudes grotescas e invasão de espaços privados adolescente que se queira afirmar no seio da sua gavam fecundar com estas pancadas.
com o intuito de recolher peças de fumeiro. comunidade do que o estatuto de superioridade António Tiza advoga que “os mascarados
Embora a Festa dos Rapazes de Varge, bem que lhe permite controlar toda a vida local e que saem à rua no período do Carnaval assumem,
como de outras aldeias brigantinas, seja um desempenhar ritos sagrados, mesmo que seja ainda que simbolicamente, estas mesmas fun-
momento de expiação comunitária, boa-dispo- por artes diabólicas? ções, embora, aos olhos do povo, representem
sição e folia, convém não esquecer que também o diabo e eles próprios se assumam como tal nos
serve para demonstrar a capacidade organiza- CARNAVAIS AUTÓCTONES gestos e atitudes que tomam”. Assim, defende
tiva e maturidade dos jovens solteiros, consti- Quando se fala em Carnaval, a maioria das o investigador, “a licenciosidade consentida aos
tuindo, em pleno século XXI, um singular rito pessoas pensa de imediato em escolas de caretos e os ritos expurgatórios constituem hoje

90 SUPER
Caráter anual. Os mascarados de Lazarim
exibem fantásticas máscaras carnavalescas
de madeira de amieiro, esculpidas por artesãos
da própria aldeia, que as renovam todos
os anos, pondo à prova a sua criatividade.

Também neste caso, o ato de bater (e choca-


lhar) simboliza o sacrifício necessário à purifi-
cação da comunidade e à expulsão dos seus
males.
Embora a simbologia dos rituais seja sempre a
mesma, os mascarados de Lazarim, nas ime-
diações de Lamego, aparecem com outra rou-
pagem e, sobretudo, com outra cara: exibem
fantásticas máscaras carnavalescas de madeira
de amieiro, esculpidas por artesãos da própria
aldeia, que se encarregam de as renovar todos
os anos, pondo à prova a sua mestria e criati-
vidade. Assim, não admira que, além de serem
usadas nas festividades carnavalescas, tam-
bém surjam em exposições, coleções privadas,
espetáculos e documentários.
Numa altura em que o calendário agrícola
assinala o tempo de fecundação da terra, com
início da primavera, e o cristão permite os últi-
mos excessos antes da abstinência própria da
Quaresma, em Lazarim (tal como por todo o
país) vive-se um ambiente de transgressão e
exageros, que não inclui apenas máscaras car-
rancudas de madeira, mas envolve provocações
entre comadres e compadres, acentuando a
rivalidade milenar entre mulheres e homens.
O ponto alto dos festejos ocorre quando o
povo se reúne para a leitura pública dos testa-
mentos: a moça inicia a leitura do Testamento
do Compadre e de imediato surgem as críticas
aos rapazes da vila, com a sagacidade de quem
a principal marca do Carnaval no Nordeste bater o molho de chocalhos contra o corpo das aguardou o ano inteiro para dizer umas verda-
Transmontano”. suas vítimas). Porém, as violentas chocalhadas des. Depois, invertem-se os papéis e é o moço
Olhemos, por exemplo para o ritual do não se destinam apenas às jovens: dirigem-se que toma a palavra. Como seria de esperar,
“julgamento do Entrudo”, que acontece em igualmente a outros membros da comunidade o Testamento da Comadre afina pela mesma
Santulhão (Vimioso) e implica um cortejo de que mereçam ser castigados, constituindo, bitola: é uma mordaz crítica social pautada
figurantes e de foliões acompanhantes, trans- nesse caso, uma função expurgatória. pelos excessos da linguagem. Finda a leitura
portados em máquinas agrícolas devidamente dos testamentos, segue-se o cortejo dos mas-
ornamentadas. O ponto alto da festa é o Auto ENTRUDO EM DEZEMBRO carados pelas ruas da aldeia e a queima dos
Popular, em que o Entrudo e a sua família são Constata-se que, afinal, o verdadeiro Carna- compadres (bonecos representativos de per-
acusados de malfeitorias e de serem responsá- val não é muito diferente do que se passa nas sonagens de ambos os sexos). Expurgados dos
veis por todos os males que afetaram a comu- festas solsticiais e dos Rapazes (entre o Natal males pretéritos e resolvidos os conflitos com
nidade durante o inverno. Assim, são conde- e os Reis), uma vez que, na verdade, o Entrudo vista ao fortalecimento de laços e à coesão da
nados e queimados, purificando a povoação e encerra o ciclo festivo do inverno. comunidade, segue-se o convívio, com comida
dando origem a um novo ciclo produtivo. Por exemplo, em Vila Boa de Ousilhão (feijoada e caldo da farinha) e bebida em abun-
Em Podence, uma aldeia do concelho de (Vinhais), a festa de Santo Estêvão perdeu-se dância, distribuída gratuitamente, como con-
Macedo de Cavaleiros, os caretos vestem fatos em meados do século passado e os “máscaros”, vém num dia festivo.
felpudos e coloridos, feitos de lã, que lhes como lhe chamam na região, passaram a sair Pela sua especificidade, o carnaval de Lazarim,
cobrem o corpo todo, incluindo a cabeça. Escon- à rua no dia de Carnaval, concretizando uma tal como os do Nordeste Transmontano, cos-
dem a cara com máscaras de latão, pintadas transferência temporal dos seus rituais do tuma atrair muitos visitantes, bem como uma
de várias cores, sobretudo de vermelho. No solstício de inverno para o início da primavera. romaria de órgãos de comunicação social
peito, carregam duas grossas correias de couro, Nesta aldeia, os mascarados vestem uma estrangeiros, de estudiosos dos costumes
de onde pende um volumoso molho de cho- indumentária constituída por um fato (calças, “autênticos”, de curiosos do grotesco e do
calhos. Paramentados desta forma, nada, ou casaco e gorro) com franjas, polainas, choca- exótico, de intelectuais e artistas. Isto acontece
quase nada, os detém nas suas correrias desen- lhos e campainhas suspensos de correias de porque as máscaras e os mascarados, ligados a
freadas pelas ruas da povoação, perseguindo couro a tiracolo e cruzadas no peito e nas costas, rituais seculares, significam muito mais do que
as moçoilas para as chocalhar, num apelo à fer- e exibem máscaras de madeira. Quer chova, aquilo que parece à primeira vista. Assim, não
tilidade da natureza: encostam-se às mulheres quer faça sol, percorrem a povoação ator- basta assistir aos festejos, é essencial perceber
consideradas fecundantes e executam uma mentando os transeuntes, castigando-os com o que se esconde por detrás das máscaras.
dança quase erótica (agitam as ancas, fazendo bastonadas e chocalhadas e fazendo tropelias. J.N.

Interessante 91
Fotografia

Visto para imagens arrebatadoras


JUAN MANUEL CASTRO PRIETO

Rabanadas de
REALIDADE
Todos os anos, o festival Visa pour l’Image
converte a cidade francesa de Perpignan na capital
do fotojornalismo mundial. A última edição (27.ª)
tornou a reunir as imagens mais poderosas
dos melhores profissionais de todo o planeta.

Andes mágicos. O fotógrafo espanhol


Juan Manuel Castro Prieto foi pela primeira
vez ao Peru em 1990 e ficou viciado naquela
terra rica em lugares únicos, como o caminho
para Maras, uma pequena aldeia situada
no sul do país, a 3300 metros de altitude.

92 SUPER
NANCY BOROWICK
Adeus à vida. Laurel não sabia que aquela refeição cozinhada pelo seu filho Matthew
seria a última. A sua filha, Nancy Borowick, documentou a doença (cancro da mama)
desde o diagnóstico até ao fim. Mais tarde, faria o mesmo com a neoplasia do pai.

Interessante 93
ROMAIN LAURENDEAU / HANS LUCAS
Teimoso. Em Argel, a capital da Argélia,
criam-se carneiros de combate que podem
dar muito dinheiro a ganhar aos seus donos.
Esta foto ganhou o Prémio Camille Lepage.

O certame inclui exposições e


atribui prémios em 11 categorias

ANASTASIA RUDENKO

Fiéis. Manifestantes protestam contra os


partidos da oposição junto ao parlamento
ALEJANDRO CEGARRA

da Venezuela, em Caracas. A foto integra


a série O Peso da Herança de Hugo
Chávez, com a qual Alejando Cegarra
ilustra a difícil situação do seu país.

Cidades invisíveis. À entrada da Zona


de Exclusão de Chernobyl, um parque
homenageia as localidades evacuadas
Jogos florais. Uma menina internada num hospital neuropsiquiátrico da cidade na sequência do acidente na central
de Elatma, 300 quilómetros a leste de Moscovo, adorna-se com uma flor colhida nuclear soviética, em 1986. Cada letreiro
no jardim. A imagem foi galardoada com o Prémio Canon para Mulher Fotojornalista. exibe o nome de uma dessas localidades.

94 SUPER
GERD LUDWIG

GIULIO PISCITELLI

Para Itália? Canal da Sicília,


no Mediterrâneo. Um ocupante
de uma embarcação com
uma centena de emigrantes
provenientes de Tunes faz
sinais a um pesqueiro egípcio,
para que lhe indique a direção
da costa italiana.

Interessante 95
Nova peste
6 de outubro de
2014. Começam
as tarefas quotidianas
na zona de alto
risco da Unidade
de Tratamento do
Ébola em Sergeant
Kollie Town,
no oeste da Libéria.

As fotos expostas abarcam todos os tipos de temas


ANDRÉS KUDACKI

Na rua. Carmen Martínez


Ayuso, de 85 anos, chora
no dia em que a despejam
da sua casa de Madrid,
devido às dívidas do
filho. O autor destas duas
imagens, Andrés Kudacki,
recebeu o Prémio ANI.

96 SUPER
Vítima do terror
Uma psicóloga tenta
libertar do medo uma
DANIEL BEREHULAK

mulher violada na República


Democrática do Congo,
DIANA ZEYNEB ALHINDAWI

no primeiro dia do julgamento


dos seus atacantes.
A foto ganhou o Prémio Visa
d’Or, do Comité Internacional
da Cruz Vermelha.
ANDRÉS KUDACKI

Deusa viva. Os habitantes de Katmandu


(Nepal) veneram meninas como kumaris,
capazes de ler o futuro, curar enfermos
e conceder desejos. Unika Vajracharya,
de seis anos, é uma delas.
STEPHANIE SINCLAIR

Interessante 97
Marcas & Produtos

Agarrar o
momento
A
Canon lançou em fevereiro a muito aguardada EOS-1D X
Mark II, a nova DSLR bandeira da empresa, projetada para
colocar a derradeira combinação de qualidade de imagem,
resolução e velocidade na palma da sua mão. Criada para
oferecer aos fotógrafos uma vantagem competitiva a partir do mo-
mento em que começam a fotografar, a EOS-1D X Mark II estabelece
um novo marco na velocidade, fotografando 14 frames por segundo
(fps) com total controlo AF/AE e 16 fps em modo Live View, ideal para
capturar alvos em rápida movimentação, quer em vida selvagem como
em eventos desportivos. A herança da Canon em filmes 4K culmina na
EOS-1D X Mark II, que oferece aos realizadores de filmes a possibilidade
de gravar em 4K (4096x2160p) em diferentes taxas de frames até 60
fps e diretamente para o cartão CFast 2.0. Permite também gravar em
Full HD (1920x1080p) nuns incríveis 120 fps, ideal para cenas em ‘câ-
mara lenta’. Momentos específicos podem ser extraídos de uma cena
4K de 60 fps como imagens de alta resolução de 8,8 Mp, oferecendo
ainda mais controlo sobre o exato momento que se quer capturar.

Regresso Surpreenda o seu pai!


à essência Q uando não é
uma gravata, é

S implicidade é sinónimo de
elegância e uma virtude ao
alcance de poucos. Ao encon-
um perfume, ou talvez
uma caixa de chocola-
tes... Já não sabe o que
trar a essência das formas reti- dar ao seu pai no dia
rando todo o ruído e excesso, 19 de março? Porque
a Ego criou um relógio não uma joia italiana?
distinto, no qual sobressai o É o que propõe a
branco minimalista do fundo Nomination Italy,
do mostrador com índices com pulseiras que se
lineares. Disponível com caixa tornarão acessórios de
em aço Rose Gold (PVP: €90) moda indispensáveis e
ou inoxidável (€80) e com vão dar um toque pes-
braceletes em malha milanesa, soal a todos os olha-
é o relógio para quem gosta de res. Consegue pensar
inovar. em algo melhor?

Edições, Conselho de Gerência Marta Ariño, Rua Policarpo Anjos, 4 Redação: tel.: 21 415 97 12, fax: 21 415 45 01
Publicidade Rolf Heinz, Carlos Franco Perez, João Ferreira 1495-742 Cruz Quebrada-Dafundo Comercial: tel.: 21 130 90 67, fax: 21 415 45 01
e Distribuição, Lda. Editor Executivo João Ferreira

Coordenadora de Publicidade Marisa Folgado (mfolgado@gjportugal.pt) Impressão Sogapal – Rua Mário Castelhano
Assistente Comercial Elisabete Anacleto (eanacleto@gjportugal.pt) Queluz de Baixo – 2730-120 Barcarena
Distribuição Urbanos Press – Rua 1.º de Maio
Edição, Redação e Administração Centro Empresarial da Granja – 2525-572 Vialonga
G+J Portugal – Edições, Publicidade e Distribuição, Lda.
Rua Policarpo Anjos, 4 – 1495-742 Cruz Quebrada-Dafundo Todos os direitos reservados Em virtude do disposto no artigo 68º n.º 2, i) e
Diretor Carlos Madeira (cmadeira@motorpress.pt) j), artigo 75.º n.º 2, m) do Código do Direito de Autor e dos Direitos Conexos
Coordenador Filipe Moreira (fmoreira@motorpress.pt) Capital social: 133 318,02 euros. Contribuinte n.º 506 480 909 artigos 10.º e 10.º Bis da Convenção de Berna, são expressamente proibidas
Colaboraram nesta edição Francisco Mota, José Moreno, Registada no Registo Comercial de Lisboa com o n.º 11 754 a reprodução, a distribuição, a comunicação pública ou colocação à dis-
Máximo Ferreira e Paulo A ­ fonso (colunistas), Alfredo Redinha, Publicação registada na Entidade Reguladora posição, da totalidade ou de parte dos conteúdos desta publicação, com
Ángel Jiménez de Luis, Daniel Losa, Ernesto Cármena, para a Comunicação Social com o n.º 118 348 fins comerciais diretos ou indiretos, em qualquer suporte e por quaisquer
Isabel Joyce, Joaquim Semiano, Jorge Nunes, Miguel Ángel Sabadell, Depósito legal n.º 122 152/98 meios técnicos, sem a autorização da G+J Portugal - Edições, Publicidade e
Miguel Mañueco, Pablo Herreros, Raquel Graña e Roger Corcho. Distribuição, Lda., da Gruner+Jahr Ag & Co., da GyJ España Ediciones, S.L.S
Assinaturas e edições atrasadas http://www.assinerevistas.com Propriedade do título e licença de publicação en C. ou da VISAPRESS, Gestão de Conteúdos dos Média, CRL.
Sara Tomás (assinaturas@motorpress.pt) Gruner + Jahr Ag & Co./GyJ España Ediciones, SL
Tel.: 21 415 45 50 – Fax: 21 415 45 01 Calle Albasanz, 15 – 28037 Madrid – NIPC D-28481877 Edição escrita ao abrigo do novo acordo ortográfico

98 SUPER
A TERRA EXPLORADA AO LIMITE
JÁ À VENDA

Você também pode gostar