RESENHA CRÍTICA- FILME: Bicho de Sete Cabeças em contexto com a entrevista sobre a reforma psiquiátrica no Brasil. ALUNA: Raquel Furlani Rocon Braga
Asfixiados: um retrato da estrutura manicomial
Bicho de sete cabeças é um filme dirigido por Laís Bodanzky sob a adaptação de Luiz Bolognesi da obra Canto dos Malditos. O objetivo de Bodanzky foi transpor as atrocidades vividas por Austregésilo Carrano Bueno, em meados de 1970, para os anos 90, mostrando que nada ainda havia mudado. Dentro das abordagens narrativas tanto do filme quanto da autobiografia de Bueno- em contexto com a entrevista da NBR de 2016, que aborda a reforma psiquiátrica no Brasil- é possível perceber, com enorme clareza, o vislumbre social acerca das doenças mentais e a maneira desumana que tramitou durante tantos anos no país. A narrativa retrata a experiencia de Neto, que após seus pais encontrarem em suas coisas um cigarro de maconha, decidem interná-lo numa clínica de “reabilitação”, local em que sofre diversas torturas físicas e mentais, além de estar exposto a um tratamento inadequado decorrente da ausência de uma análise de seu estado. A história retrata a falta de voz dos pacientes internados nesses manicômios, que eram submetidos a condições subumanas de higiene e alimentação, sendo também expostos a terapias de choques e celas solitárias, contexto de muitos hospitais no Brasil, conforme abordado na entrevista. No entanto, essa realidade era abafada por um pátio de visitas com um lindo jardim, que escondia porta adentro a precariedade vivenciada pelos internos. Por meio desse enredo, o filme é capaz de nos levar a reflexão sobre o conceito de loucura- na época tão deturpado- assim como do tratamento do louco- baseado em sedação e métodos torturantes. Essa visão de doença mental que levava a tantas atrocidades foi perfeitamente comparada pelo psiquiatra italiano Franco Basaglia aos campos de concentração nazistas. A configuração desse holocausto brasileiro levou a morte mais de 60 mil pessoas no hospital psiquiátrico de Barbacena em Minas Gerais. Toda essa marginalização do diferente e instituição de pessoas como seres descartáveis, que podem ser simplesmente excluídos da sociedade e enviados em Naus de Loucos - “Os loucos tinham então uma existência facilmente errante. As cidades escorraçam-nos de seus muros; (Foucault)” - trazia à tona uma sociedade cruel e ignorante, que não sabia lidar sequer com as pessoas que nela convivem. Estrutura essa, inicialmente quebrada com a revolução antimanicomial, que teve Carrano como um grande ativista e que resultou na lei 10.216 de 2001, garantindo o direito a pessoas com transtornos mentais à vida e tratamentos de qualidade, visando principalmente a inserção integral desses indivíduos na sociedade ao invés da completa exclusão dos mesmos. Portanto, a nova configuração sobre distúrbios mentais, que vem sendo construída após a reforma psiquiátrica, é a reafirmação do direito do cidadão e a afirmação dos doentes mentais como cidadãos, descontruindo a exclusão e reeducando a sociedade e os familiares desses pacientes sobre saúde e doença, sobre apoio e reabilitação, trazendo uma nova perspectiva de comunidade e deixando para trás o passado obscuro das prisões manicomiais. “Me amarram, me aplicam/ Me sufocam/ Num quarto trancado/ Socorro/ Sou um cara normal/ Asfixiado”- Sufoco da vida, Harmonia enlouquece. Nesse âmbito, o filme é essencial para conscientização histórica e contextualização sobre distúrbios, inclusão, drogas e saúde, podendo abranger um público jovem adulto e principalmente a geração dos anos 70, mostrando que a realidade nem sempre é vista pelo pátio de um manicômio.