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Intertextualidade e
Conto Maravilhoso
1
Intertextualidade e conto maravilhoso
FFLCH/USP
CONSELHO EDITORIAL ASSESSOR DA HUMANITAS
Presidente: Prof. Dr. Milton Meira do Nascimento (Filosofia)
Membros: Profª. Drª. Lourdes Sola (Ciências Sociais)
Prof. Dr. Carlos Alberto Ribeiro de Moura (Filosofia)
Profª. Drª. Sueli Angelo Furlan (Geografia)
Prof. Dr. Elias Thomé Saliba (História)
Profª. Drª. Beth Brait (Letras)
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Imagem da capa: PISSARRO, C. Camponesa com Vara. Paris, Musée d’Orsay, 1881.
Norma Discini
Intertextualidade e
Conto Maravilhoso
FFLCH/USP
2002
294 p.
Originalmente apresentada como Dissertação (Mestrado) – Facul-
dade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São
Paulo, 1995.
ISBN 85-86087-97-1
HUMANITAS FFLCH/USP
e-mail: editflch@edu.usp.br
Telefax.: 3091-4593
Editor Responsável
Prof. Dr. Milton Meira do Nascimento
Coordenação Editorial
Mª. Helena G. Rodrigues – MTb n. 28.840
Capa
Diana Oliveira dos Santos
Revisão
4 Edison Luís dos Santos
Introdução
5
Introdução
Sumário
INTRODUÇÃO ....................................................................................... 09
7
Introdução
Introdução
A intuição do autor,
seu registro no papel;
a leitura, a intuição
do leitor. Não há mais
do que isso: nada mais.
(...)
Essa intuição... tem-se
ou não se tem...
(Dámaso Alonso)
Hoje, não mais vemos o texto como fruto casual de uma intui-
ção e deixamos que ele testemunhe por si mesmo essa voz do outro
que entra na constituição do discurso. Cabe ao analista identificar
essas duas vozes, ou esse bivocalismo, conceito tão caro a Bakhtin.
Continuamos a utilizar a intuição, sem dúvida, mas de manei-
ra orientada por um modelo, instrumento metodológico, com o qual
se pode penetrar além das aparências do texto e com o qual se refina
a própria intuição. É esse modelo que nos vem da semiótica francesa,
pelas mãos de Greimas. Trata-se de um simulacro do percurso gera-
dor do sentido.
Com esse modelo, desconstrói-se, para reconstruir, o percurso
gerativo do sentido, desde os níveis mais profundos, abstratos e sim-
ples, até os níveis mais superficiais, concretos e complexos. Ao des-
construir as relações, detecta-se a orientação de um sujeito social,
histórico, que imprime sua intencionalidade ao que é dito, ao como é
dito e ao porquê é dito. É o sujeito da enunciação.
O enunciado é o produto desse percurso. Visto na sua manifes-
tação exterior, esse enunciado é a expressão verbalizada, no caso do
nosso corpus, da construção de um significado intertextual. O dis-
curso intertextual é bivocal. O sujeito da enunciação não tem a sobe-
rania que parece ter, pois sofre as coerções das formações sociais nas
quais está inserido. Tais formações discursivas permitem-no dizer
isso e induzem-no a calar aquilo. Ele reage, e a dinâmica dessa inte-
ração do eu com o outro é que o constitui. 13
Intertextualidade e conto maravilhoso
1 Greimas (1989, p. 461) propõe que se pense em texto não (apenas) como o ponto de
chegada do percurso gerativo total, mas como uma possibilidade expressiva que pode
ocorrer em qualquer patamar desse percurso, desde que aí aconteça uma interrupção.
Sempre que o percurso gerativo é interrompido, ele dá lugar à textualização (linearização
e junção com o plano da expressão). O texto, quando chega ao plano da expressão, não
se prende, é bom que se acrescente, a um único tipo de manifestação sígnica. Greimas
exemplifica isso, na mesma citação, por meio das histórias em quadrinhos e do texto
14 teatral, que subsumem várias linguagens.
Introdução
Prossigamos.
A partir de Perrault, serão analisadas as variantes, que foram
por nós escolhidas: Chapeuzinho Vermelho e o Lobo Torturador, de
Alberto Berquó; Chapeuzinho Amarelo, de Chico Buarque; Chapeu-
zinho Vermelho, dos Irmãos Grimm e Fita Verde no Cabelo, de Gui-
marães Rosa.
Os objetivos que nortearam esse trabalho podem assim ser
elencados:
1. Analisar os níveis fundamental, narrativo e discursivo do
texto-base;
2. Examinar as semelhanças e diferenças nos níveis funda-
mental, narrativo e discursivo entre o texto-base e os tex-
tos que mantêm com ele um diálogo;
3. Repensar a existente tipologia das relações intertextuais
dentro do modelo greimasiano da construção do sentido.
Temos algumas hipóteses, que também podem ser elencadas:
1. A construção da significação intertextual não está nas
marcas da expressão, como parece, mas nas transforma-
ções ocorridas no conteúdo, que englobam as estruturas
sêmio-narrativas (nível fundamental e narrativo) e as
discursivas;
2. Uma variante intertextual capta ou subverte o texto-base;
3. O significado, na intertextualidade, constrói-se, em todos
os níveis do percurso gerativo do sentido, por meio de
semelhanças e diferenças, na sintaxe e na semântica, en-
tre a variante e o texto-base;
4. A invariabilidade intertextual converge, no nível discur-
sivo, para um núcleo figurativo, que contém figuras co-
muns ou invariantes, por meio das quais se concretizam
semelhantemente os antropônimos, os cronônimos e os
topônimos do texto-base e da variante;
5. Mantém-se, no nível discursivo, um tema comum para o
texto-base e as variantes; 15
Intertextualidade e conto maravilhoso
s1 s2
relação de contrariedade
relação de contraditoriedade
relação de complementaridade
21
Justificativas teóricas dos procedimentos de análise adotados...
CAPÍTULO I
23
Intertextualidade e conto maravilhoso
PROTO-HISTÓRIA s1 s2 CONTRA-HISTÓRIA
TEXTO-BASE PARÓDIA
TRANS-HISTÓRIA DESISTÓRIA
ESTILIZAÇÃO POLÊMICA
relação de contrariedade
relação de contraditoriedade
relação de complementaridade
FUNDAÇÃO SUBVERSÃO
s1 s2
Perrault1 Buarque
CAPTAÇÃO NEGAÇÃO
Rosa, Grimm Berquó
1 Para efeito de denominação, chamaremos cada texto pelo nome do autor. Não nos refe-
24 rimos, porém, ao enunciador real, mas ao enunciador inscrito no discurso.
Justificativas teóricas dos procedimentos de análise adotados...
Ela pode ser vista, como toda a figuratividade, também nas forma-
ções mais profundas do sentido, como nota Brait (1994, p. 2) que,
discorrendo sobre a imanência do sensível, coteja Silva com Greimas,
entre outros.
No nosso caso, as variantes apresentam, com o texto-base, a
configuração discursiva da antropofagia do lobo mau sobre a menina
ousada, como dissemos; Perrault, por sua vez, apresenta, em relação
ao mito bíblico da queda do homem, a configuração discursiva do
fruto proibido, em que o lobo retoma a serpente. Acompanhando es-
ses movimentos, está o tema obsedante da ousadia punida e punível.
Acreditamos estar subjacente a essas configurações o que Sil-
va (1992, p. 33-4) chama “componente passional de nossa relação
com o mundo. (...) Essa visão passional (que) leva a uma visão mítico-
mágica do mundo. Tendemos a extravasar, a saltar os limites para
cima (visão apolínea) ou para baixo (visão dionisíaca)”.
Acreditamos poder estar aí o fundamento desta figura, tam-
bém obsedante, do imaginário coletivo, o lobo, ora apresentado, atra-
vés dos tempos, como um animal sagrado (visão apolínea?), ora
iconicizado, nos contos folclóricos, como a figura do perigo e do
desconhecido a ser evitado, sedimentando o papel actancial de quem
tenta e, sendo usado para punir, mata (visão dionisíaca?).
Ai que saudades...
Vê se penteia o cabelo!
Menina se mostradeira!
Menina novidadeira!
Está se rindo demais!
– Que amor, que sonhos, que flores,
Naquelas tardes fagueiras,
À sombra das bananeiras,
Debaixo dos laranjais!
Casimiro de Abreu.
Poesia. 3a ed. Rio de Janeiro:
Livraria Agir Editora, 1967.
– Senta aqui mais perto, Chapeuzinho. Fica aqui mais pertinho da vovó,
fica.
– Mas vovó, que olho vermelho... E grandão... Que que houve?
– Ah, minha netinha, estes olhos estão assim de tanto olhar para você. Aliás,
está queimada, hein?
– Guarujá, vovó. Passei o fim de semana lá. A senhora não me leva a mal,
não, mas a senhora está com um nariz tão grande, mas tão grande! Tá tão esquisito,
vovó.
– Ora, Chapéu, é a poluição. Desde que começou a industrialização do bos-
que que é um Deus nos acuda. Fico o dia todo respirando este ar horrível. Chegue
mais perto, minha netinha, chegue.
– Mas em compensação, antes eu levava mais de duas horas para vir de casa
até aqui e agora, com a estrada asfaltada, em menos de quinze minutos chego aqui
com a minha moto.
– Pois é, minha filha. E o que tem aí nesta cesta enorme?
– Puxa, já ia me esquecendo: a mamãe mandou umas coisas para a senhora.
Olha aí: Margarina, Hellmann’s, Danone de frutas e até uns potinhos de Knorr, mas
é para a senhora comer um só por dia, viu? – Lembra da indigestão do carnaval?
– Se lembro, se lembro...
– Vovó, sem querer ser chata.
– Ora, diga.
– As orelhas. A orelha da senhora está tão grande. E ainda por cima, peluda.
Credo, vovó!
– Ah, mas a culpada é você. São estes discos malucos que você me deu.
Onde já se viu fazer música deste tipo? Um horror! Você me desculpe porque foi
você que me deu, mas estas guitarras, é guitarra que diz, não é? Pois é, estas guitar-
ras são muito barulhentas... Não há ouvido que agüente, minha filha. Música é a do
meu tempo. Aquilo sim, eu e seu finado avô, dançando valsas... Ah, esta juventude
está perdida mesmo.
– Por falar em juventude o cabelo da senhora está um barato, hein? Todo
40 desfiado, pra cima, encaracolado. Que que é isso?
Justificativas teóricas dos procedimentos de análise adotados...
– Também tenho que entrar na moda, não é, minha filha? Ou você queria
que eu fosse domingo ao programa do Chacrinha de coque e com um vestido preto
com bolinhas brancas?
Chapeuzinho pula para trás.
– E esta boca imensa??? !!!
A avó pula da cama e coloca as mãos na cintura, brava:
– Escuta aqui, queridinha: você veio aqui hoje para me criticar, é?!
Paraíso
Sl – narrador | Sl – narrador |
S2 – namorada |>Texto-base S2 – criança |>Paes
Ov – beleza, luxo | Ov – paz, felicidade |
Ov – objeto-valor ∩ – conjunção
PN do narrador
Intertextualidade e conto maravilhoso
Boné vermelho
*****
*****
– O direto é mais vazio, não estou gostando nada deste ônibus; no outro
ninguém fica relando na gente – Boné resmunga, pensando que o velho, só porque
socorreu, não tem licença de encostar a perna na sua.
– Quantos anos tem a menina?
– Sou menor.
– O que que leva aí de gostoso? – os olhos amarelos, melosos.
– Bolinho para minha avó, quer um? – assim ficam quites.
Ele aceita, mastiga ruidosamente, o farelo cai no colo da menina, tão perto
estão. De boca cheia, bolo voando ao rosto dela:
– A menina é boazinha para a vovó, bolinho gostoso – ele engole o resto, o
gogó dançando vai-e-vem. – E para o vovô, – ri malicioso, a mão no joelho dela,
áspera, sebosa – vai ser boazinha também?
– O senhor não repare, vou indo – Boné tenta se erguer.
– Espera aí, menina, acaba caindo – ele força Boné contra o assento. – Quer
balinha? Compro para você.
– Não senhor, quero não, dá enjôo – responde sem olhá-lo, o rosto enrugado
quase tocando o seu, hálito bolorento.
– Eu seguro a cesta, a menina é tão pequena e a cestona grandona – ele dá
ênfase às duas últimas sílabas das palavras, a mão já apoiada sobre a dela, na alça.
– Pode deixar, eu levo – tenta se erguer, o velho quer lhe tomar os bolinhos.
– Fica aí menina, senão cai – as mãos agora nos ombros, descem pelos bra-
ços, grudentes, grossas.
Aquilo é apalpação de tarado, quem sabe o Lobão disfarçado. Resolve
escapulir na primeira parada, misturar-se ao povo e despistá-lo. Longe do seu bair-
ro, onde em cada canto domina o mistério, o segredo e a insegurança, Boné é nada,
descobre. Eta floresta de gente, prédio e carro, disfarce de armadilha, arapuca no
caminho!
– Toma aqui, moço, está trocado – passa rápido pela roleta.
– Ó diacho, a menina é arisca! – o velho nem tempo tem de reagir.
Boné some em meio à massa humana, um vai-e-vem de pessoas, onda viva
em esbarrões, arrebenta redemoinhos, empurra-empurra, paradas estáticas à ordem
52 do piscar verde ou vermelho.
Justificativas teóricas dos procedimentos de análise adotados...
*****
Pergunta daqui, pergunta dali, anda, cansa o calo no tênis novo, a multidão
alheia ao seu desamparo de criança travessa pega em flagrante. Enfim a notícia do
ponto do ônibus Floresta Azul.
(...)
A tarde avança, e ela se concede a lágrima solitária, lava a cara lambida de
vergonha.
– O que me avexa mais é eu carecer do jogo de cintura acostumado. Fiquei
babaca, foi só sair debaixo da saia de mamãe. Pareço caipira perdida na cidade,
capiau da roça.
Ampara Boné a referência ao ponto do ônibus, mas só agora alguém aponta
o rumo certo, salvação.
Na fila, a mulher de cabelo amarelo, boca roxa, saia apertada com fenda
enorme, encarada. Olho muito pintado passeia em Boné, de cima a baixo, de baixo
para cima.
Quer bolinho – pensa.
– Quero não, filhinha, quero conversar, só isso, vamos? – pega a menina
pelo braço, mas ela se retrai.
Pergunta de pai, mãe, moradia.
– Que que faz menina tão bonita, sozinha na cidade? Aposto que é muito
sabida, hein? – ela pisca um olho, cúmplice.
Não é órfã não, tem pai e mãe. Não emprega não, nem serviço leve, de
atender telefone ou menina de recado. Não senhora, estuda, não tem tempo, mora
longe. Mesmo assim, ambiente fino, moças bonitas, muita gorjeta, homens impor-
tantes, terno e gravata. Nem assim.
Não adianta ir lá ver, conhecer o lugar, sem compromisso. Não dá mesmo.
– Não posso ir com a senhora não, dona, obrigada, a pulseira é bonita, largue
meu braço, ô dona, não posso, de jeito nenhum, tchau, o meu ônibus...!
(...)
– Essa agora, a casa está fechada!
Sem vizinho para recado, notícia ou arrego, e escurece. Noite e medo co-
lam-se na pele de Boné, cismada com tudo, ângulos escuros, sombras, gato vadio,
ecos perdidos. 53
Intertextualidade e conto maravilhoso
Socorro nos fundos da casa, distância de olhos curiosos dos raros passantes,
de repente facínoras nas cismas da menina.
A avó naquela ponta de rua, tão só, pecado.
Fecha-se com o portão da frente, cuidando-se contra ruídos, um perigo aos
seus próprios sustos. Na ponta dos pés contorna a casa, o instinto fixo na varanda,
refúgio. E segura o grito batendo nos dentes: sob a janela do quarto ouve um zum-
zum. Ai, o coração revolteia na boca. Visita, ladrão, malfeitor? Penumbra lá dentro,
muito esquisito, assombrado.
Algo ordena cautela, sexto sentido. Um, dois, três, sete, nove, dez. Respira
fundo, apura o ouvido e a voz da avó responde. Mas fala esquisito, ansiado, como se
lhe faltasse o ar.
– Ai... por que... olhos grandes, arregalados?
Um grunhido responde, guincho, humano ou do outro mundo?
Boné, gelada de corpo inteiro, tapa com a mão o grito, pipoca arrebenta
vômitos na garganta.
– ... melhor te ver... – A fala rouca, chiada, cadeado nos pés da neta, pura
tremedeira.
– E... para que... narigão... tamanho?
– ... cheirar pimenta malagueta!
– Ai, machuca, não morde não! – a avó reclama num gemido.
Estão judiando da avó, é toda a compreensão de Boné. E se for o Lobão? De
repente menininhas só não chegam, avós morando longe, uma facilidade!
– Mas a minha vovozinha não. Nem Lobão e nem Lobinho, isso não!
Brotou do chão aquela raiva, energia pura, e subiu pelas pernas, arrebentan-
do cadeados, elétrica, encolhendo o medo, tímido, atrás de uma costela.
Ela entrou pela cozinha, derrubando a cadeira detrás da porta, aos gritos,
escandalosa, a arma possível.
Ainda viu o monstrengo, cabeludo, correr desajeitado para o banheiro. Aí o
azar dele: fechadura invertida, porque a avó se cansara de ver neto preso lá dentro,
agora cadeia.
– Ai Boné, é você, minha neta, que susto! – a avó fala, mão no peito,
54 descabelada, o olho saltado.
Justificativas teóricas dos procedimentos de análise adotados...
Olho brilhante e peito empinado, até bonita, a avó nem parecia a protagonis-
ta daquele episódio de horror. Admirada de tanta coragem, a neta resolveu atendê-la
e guarda o segredo até hoje.
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BONÉ VERMELHO - Seqüência Narrativa do Enunciado
PN da menina
PN do velho
D1 → D2 Pressuposta S1 → (S2 ∪ Ov) → (S2 ∩ Ov) PN da estranha
menina
menina
liberdade
liberdade
PN da avó
Manipulação Competência Performance Sanção
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Intertextualidade e conto maravilhoso
3 Todas as amostras textuais são designadas pelos seus autores; esta, parece-nos, entretan-
to, que pede seu próprio nome.
4 O discurso faz essa defesa velada do homossexualismo feminino por meio da figura
inicial de uma menina que “vive de calção, igual menino”, que, sem boné se sente “pe-
58 lada”; a mãe obriga-a a “usar vestido”; as pessoas gritam-lhe: “Mulher-macho!”
Justificativas teóricas dos procedimentos de análise adotados...
Chapeuzinho vermelho
Era uma vez uma menina chamada Chapeuzinho Vermelho que morava com
sua mãe ao lado de uma floresta. Um dia, a mãe de Chapeuzinho lhe pediu para
levar uma cesta de frutas frescas e água mineral à casa de sua vovozinha – não
porque isso fosse trabalho de mulher, vejam só, mas porque era um ato generoso e
que propiciava à filha uma visão comunitária sobre a vida. Tenho a acrescentar que
sua vovozinha não estava doente, mas em plena saúde física e mental, sendo total-
mente capaz de tomar conta de si mesma como adulta madura que era.
E assim Chapeuzinho Vermelho partiu de sua casa, com sua cesta, floresta
adentro. Muita gente acreditava que a floresta era um lugar cheio de presságios e
perigos, e nunca punha os pés lá. Chapeuzinho Vermelho, no entanto, em sua sexu-
alidade emergente, tinha confiança em si e nenhuma argumentação freudiana tão
óbvia a intimidava.
No caminho para a casa da vovozinha, Chapeuzinho foi abordada por um
lobo, que lhe perguntou o que havia na cesta. Ela respondeu: “Alimentação natural
e saudável para minha avó, que é uma adulta amadurecida e, obviamente, capacita-
da a cuidar de si mesma”.
O lobo respondeu: “Sabe, querida, não é seguro para uma menina andar pela
floresta sozinha”.
Chapeuzinho retrucou: “Considero sua observação sexista e extremamente
ofensiva, mas vou ignorá-la, por você desempenhar um papel tradicional de pária da
sociedade. Agora, se você me desculpa, preciso seguir caminho”. E Chapeuzinho
foi andando pela estrada afora.
Como todos os quadrúpedes que habitam as florestas, e que não conseguem
se organizar política e socialmente, os lobos são desprovidos do pensamento linear
ocidental e, por isso mesmo, têm uma visão imediatista sobre tudo que os cerca.
Sendo assim, o lobo não conseguia pensar em Chapeuzinho Vermelho sem dissociá-
la da imagem de algumas batatas e um bom molho ferrugem!
E foi pensando nisto que ele pegou um caminho mais curto para a casa da
vovó. Mal chegou, foi logo comendo a velhinha. Uma ação inteiramente válida para
o carnívoro que era. E, então, desvinculado de noções rígidas e tradicionalistas do
que é masculino e feminino, vestiu as roupas da vovó e se meteu na cama.
Chapeuzinho Vermelho entrou na casinha e disse: “Vovó, trouxe alimentos
desnatados e sem sal para lhe homenagear como matriarca sábia e nutridora que é”.
Da cama, o lobo disse suavemente: “Chegue mais perto, filha, para que eu te
veja melhor”.
E Chapeuzinho respondeu: “Oh, ia me esquecendo que, como os morcegos,
a senhora é oticamente cega. Mas, vovó, que olhos grandes você tem!”
“Eles muito viram e muito perdoaram, minha querida”.
“Vovó, que nariz grande você tem – relativamente, é claro e, certamente,
bonito a seu modo”.
E o lobo respondeu com falsa modéstia: “Precisa ver o resto...”.
“Vovó, que dentes grandes você tem!” 63
Intertextualidade e conto maravilhoso
E o lobo disse: “Estou contente com quem eu sou, e com o que sou!” Dito
isso, saltou da cama e agarrou Chapeuzinho Vermelho, pronto para devorá-la. A
menina ficou assustada com o lobo vestido daquele jeito, mas evitou fazer qualquer
comentário ou dizer qualquer piada preconceituosa e de mau gosto sobre a opção
sexual do animal, mas pôs-se a gritar devido à deliberada invasão de seu espaço
pessoal.
Seus gritos foram ouvidos por um lenhador que passava (ou técnico flores-
tal, como ele mesmo preferia ser chamado). Quando entrou na cabana e viu a luta, o
lenhador tentou intervir. Mas, quando ergueu o machado, Chapeuzinho e o lobo
pararam.
“E o que você pensa que vai fazer?”, perguntou Chapeuzinho.
O lenhador piscou e tentou responder, mas as palavras não vieram.
“Invadindo nosso espaço como um homem de Neandertal! Confiando em
armas em lugar do seu próprio pensamento!”, exclamou. “Sexista! Especieísta!
Falocentrista! Açougueiro de árvores! Como ousa supor que mulheres e lobos não
podem resolver seus problemas sem a ajuda de um homem?!”
Ao ouvir o discurso passional de Chapeuzinho Vermelho, a vovó pulou de
dentro da boca do lobo, pegou o machado do lenhador e cortou-lhe a cabeça.
Superado esse contratempo, Chapeuzinho Vermelho, vovó e o lobo senti-
ram uma certa comunhão de propósitos. Decidiram então estabelecer uma comu-
nidade alternativa, baseada no respeito mútuo e na cooperação, e viveram juntos
na floresta, felizes para sempre.
9 Greimas (1983, p. 60) fala das migrações intertextuais dos motivos, ao falar em configu-
ração discursiva. 69
Intertextualidade e conto maravilhoso
10 Holanda define pastiche como “obra literária ou artística imitada servilmente de outra”
(1986, p. 1279).
11 Compagnon assim se expressa sobre o “trabalho da citação”: “A noção de trabalho é
rica: é a potência em ato, o poder simbólico ou mágico da palavra, é o carmen ou a prece
(os monges das ordens contemplativas dizem que seu trabalho é a prece). (...) Eu traba-
lho a citação como uma matéria que me habita; e, tomando-me, ela me trabalha. (...) A
reescritura é uma realização, não apenas no sentido musical de uma tradução. O trabalho
da citação, apesar de sua ambivalência ou por causa dela, é uma produção de texto,
working paper. (...) A citação trabalha o texto, o texto trabalha a citação”. Citação, para
nós, refere-se à variante intertextual (1979, p. 36-7). 71
Intertextualidade e conto maravilhoso
Senhorita Vermelho
– Até que a sua história é passável, Chapéu – comentou Dona Branca, meio
despeitada. – Mas linda mesmo é a minha, que tem espelho mágico, maçã envene-
nada, bruxa malvada, anõezinhos e até caçador generoso.
– Questão de gosto, querida...
Dona Chapeuzinho sentou-se confortavelmente, colocou a cestinha ao lado
(ela não largava aquela bendita cestinha!), tirou um sanduíche de mortadela e pôs-se
a comer (aliás, Dona Chapeuzinho tinha engordado muito desde aquela aventura
com o Lobo Mau).
– Aceita um brioche? – ofereceu a comilona, de boca cheia.
– Não, obrigada.
– Quer uma maçã?
– Não! Eu detesto maçã!
(...)
Dona Branca jogou para trás os cabelos cor de ébano e tomou uma decisão:
– Vou convocar uma reunião de todas nós!
– Boa idéia! Chame os Príncipes também!
– Os Príncipes não adianta chamar. Estão todos gordos e passam a vida
caçando. Além disso, príncipe de história de fada não serve para nada. A gente tem
de se virar sozinha a história inteira, passar por mil perigos, enquanto eles só apare-
cem no final para o casamento.
Chapeuzinho concordou:
– É... Os únicos decididos são os caçadores. Eu devia ter casado com o
Caçador que matou o Lobo...
Dona Branca tocou a campainha de ouro. Imediatamente, Caio, o lacaio,
estava à sua frente.
– Às ordens, Princesa.
– Caio, monte o nosso melhor cavalo. Corra, voe e chame todas as minhas
cunhadas de todos os reinos encantados para uma reunião aqui no castelo. Depressa!
78
Análise do texto-base Chapeuzinho Vermelho, de Perrault
CAPÍTULO II
1 – Introdução
1 Como vemos, os contos maravilhosos, segundo Soriano, atribuem aos bons e aos esper-
tos o mesmo valor de bem, ou porque a esperteza é julgada, nesse universo, eticamente
um bem, ou porque os espertos são bons no modo do parecer. Ou, melhor ainda, porque,
para o conto maravilhoso, ser esperto é opor-se ao mal. 79
Intertextualidade e conto maravilhoso
2 “A Mãe Gansa era uma personagem de velhos contos populares, muito familiar aos
franceses (Mère l’Oye): sua função era contar estórias para os seus filhotes fascinados.
Mas certamente por analogia com o costume popular europeu, de as mulheres contarem
estórias, enquanto fiavam durante os longos serões ou dias de inverno, a vinheta que
ilustrava a capa do livro mostrava uma velha fiandeira em lugar de uma gansa. Compre-
ende-se, pois, que o nome Mère l’Oye tenha passado a designar não a gansa dos contos
populares, mas uma velha contadora de estórias que, ao emigrar para outros países, foi
ganhando diferentes nomes” (Coelho, 1987, p. 69). 81
Intertextualidade e conto maravilhoso
84
Análise do texto-base Chapeuzinho Vermelho, de Perrault
Pessoalização
Alteridade Identidade
s1 s2
Alienação Participação
s2 s1
Não-identidade Não-alteridade
Reificação
relação de contrariedade
relação de contraditoriedade
relação de complementaridade
85
Intertextualidade e conto maravilhoso
Reificação s1 s2 Pessoalização
1
Alteridade s s 2 Identidade
Dêixis Dêixis
Positiva Positiva
2
Não-identidade s s 1 Não-alteridade
Alienação s2 s1 Participação
relação de contrariedade
relação de contraditoriedade
relação de complementaridade
Vida Morte
Cultura Natureza
s1 s2
Reificação s1 s2 Pessoalização
Alteridade s1 s2 Identidade
DÊIXIS DÊIXIS
POSITIVA NEGATIVA
Não-identidade s2 s1 Não-alteridade
Alienação s2 s1 Participação
s2 s1
Não-morte Não-vida
Não-natureza Não-cultura
relação de contrariedade
relação de contradição
relação de complementaridade 87
Intertextualidade e conto maravilhoso
90
Análise do texto-base Chapeuzinho Vermelho, de Perrault
3 Esse título justifica-se pelo fato de os níveis narrativo e fundamental constituírem o nível
semiótico, profundo, e o nível discursivo ser mais superficial – distinções hipotéticas e
operatórias propostas por Greimas (1989, p. 306), que acrescenta: “...no nível semiótico,
distinguiremos o plano das estruturas semióticas profundas (sintaxe e semântica funda-
mentais) e o das estruturas semióticas de superfície (sintaxe e semântica narrativas)”.
Será, portanto, chamado de superficial o nível narrativo, quando cotejado com o plano
fundamental do nível semiótico. Solo será o discurso.
4 Segundo Koeheler, spectaculum vem de spectare, que tem as seguintes acepções: “ob-
servar, olhar, mirar; assistir a um teatro ou qualquer espetáculo; (...) estar voltado para
(...), examinar, provar, dirigir-se a alguma coisa (...), avaliar alguma coisa por outra,
comparando-a com outra” (1955, p. 805-6). Segundo Faria, o mesmo verbo tem as
acepções de “ter os olhos fixos em (...), ter relação com, referir-se a” (1962, p. 935). 91
Intertextualidade e conto maravilhoso
S1 S2 ∩ Ov
S1 – mãe ∩ – conjunção
94
SN1 - Do Enunciado F ⇒ [S1 → (S2 ∩ Ov submissão)]
S1 Mãe → S2 Menina
PN prévio
Manipulação Competência Performance Sanção
pressuposta pressuposta S1 → (S2 ∪ Ov) → (S2 ∩ Ov) cognitiva - reconhecimento
da conjunção pragmática -
chapeuzinho
chapeuzinho
submissão
chapeuzinho vermelho
chapeuzinho
dever manter a
conjunção com a
submissão
chapeuzinho
liberdade
lobo
chapeuzinho
conjunção com a
liberdade
95
96
SN1 - Do Enunciado (cont.) 1a SN
PN do Lobo Manipulação Competência Performance Sanção
D1 → D2 ∩ Om não poder Não realiza reconhecimento da
(presença dos não-realização →
lobo lobo querer ter prazer lenhadores)
gustativo 2a SN
→ Manipulação Competência Performance Sanção
D1 → D2 ∩ Om S1 → (S2 ∪ Ov) → (S2 ∩ Ov) Reconhecimento
PN de aquisição de
lobo lobo querer ter prazer competência lobo lobo prazer
gustativo gustativo
saber e poder
P1 - aquisição do saber
S1 - sociedade
valores ideológicos do contexto sócio-histórico (séc. XVII)
S2 - sujeito enunciador
S1 → S2 Sabe
S2 escrever S2 constrói Ov enunciado S2 é lido
pode
Sociedade Enunciador
97
98
SN3 - Da Enunciação enquanto construção de significado pelo Enunciatário
enunciatário
enunciatário
submissão
PN de doação de competência
As seqüências narrativas 8
S1 – enunciador
S2 – enunciatário
} ENUNCIAÇÃO
11 Considera-se o enunciado um destinador manipulador, porque ele não é visto como coi-
sa inanimada (Exemplo: “O remédio curou-me.”), em que a manipulação seria ausente
e, sim, como produto da enunciação, em que se esconde um fazer persuasivo de um
enunciador e em que se projeta um fazer interpretativo de um enunciatário. Campo de
confrontos e relações, esse enunciado não pode, portanto, ser visto como “coisa inani-
mada”. 105
Intertextualidade e conto maravilhoso
plo, o impulso sexual, enquanto necessidade, corresponde à natureza, mas uma vez que
se submete a proibições complementares (as proibições de parentesco, de lugar e de
tempo, segundo o princípio da presença-ausência de sanções eclesiásticas ou jurídicas
etc.) a função natural cede lugar à cultural” (Lotman et alii, 1981, p. 237).
13 “Emprega-se o termo simulacro, em semiótica narrativa e discursiva, para designar o
tipo de figuras (...) com a ajuda das quais os actantes da enunciação se deixam mutua-
mente apreender, uma vez projetados no quadro do discurso enunciado”. (Greimas, 1986,
p. 206)
14 Ela fora enviada para ver a avó e levar-lhe quitutes, porque a avó deveria estar doente.
Trata-se de “valores econômicos burgueses, organizados essencialmente em torno da
utilidade” (Greimas,1993, p. 148). 107
Intertextualidade e conto maravilhoso
SUBMISSÃO A B LIBERDADE
SUBMISSÃO A B LIBERDADE
NÃO-LIBERDADE B’ A’ NÃO-SUBMISSÃO
15 Barros explica a paixão do medo como decorrência da modalização do não querer ser
(1989-1990, p. 61). 111
Intertextualidade e conto maravilhoso
SUBMISSÃO A B LIBERDADE
NÃO-LIBERDADE B’ A’ NÃO-SUBMISSÃO
117
Intertextualidade e conto maravilhoso
4 – Nível discursivo
21 A essa preocupação de orientar a formação moral das meninas, acrescenta-se que Coe-
lho ressalta, em Perrault, um certo apoio à causa feminista de então, liderada por uma
sobrinha. Vemos, entretanto, que esse apoio é só no modo do parecer, pelo que se deduz
do conto. Acrescenta-se também que, anexas aos contos, Perrault deixou as moralidades,
facultativas nas edições consultadas de “Chapeuzinho Vermelho”: Assim se vê que a
pequenada,/ Meninas, principalmente,/ Sendo gentis e engraçadas,/ Mal andam em dar
crédito a toda a gente./ Depois não é de admirar/ Se o lobo vier e as papar./ Eu digo o
lobo, pois os ditos/ Nem todos são iguaizinhos:/ Há uns que são mais mansinhos,/ Qui-
etos, ternos, sossegados,/ Os quais, brandos, recatados,/ Vão perseguindo as donzelas/
Até a casa, e às vezes até se deitam com elas./ Quem não vê, pois, que os lobos carinho-
120 sos/ De todos são decerto os mais perigosos? (Perrault, 1977, p. 99-100).
Análise do texto-base Chapeuzinho Vermelho, de Perrault
22 Essa citação, que consta da obra de Foucault, tem a seguinte indicação: Ch. Lucas, De la
réforme des prisons, vol. I, 1836, p. 69. 121
Intertextualidade e conto maravilhoso
122
Análise do texto-base Chapeuzinho Vermelho, de Perrault
“CHAPERON (de chape): enfeite da Idade Média, usado por ambos os sexos e que
era, na origem, um capuz que cobria a cabeça e o pescoço até os ombros, deixando
a face descoberta. O chaperon das mulheres tinha uma longa cauda pendente e era
por esse detalhe que se reconheciam as damas de classe, até os meados do século
XVII. É por isso que se chamava chaperon uma mulher respeitável, encarregada de
acompanhar uma jovem menina” (Larousse, s/d., p. 691).
“CHAPERON: lenço (écharpe) que elas (as mulheres) usavam sobre a touca; era
marca de classe média ou burguesia. (...) lenço de veludo, cetim, (...) que as moças e
as mulheres que não eram mais solteiras usavam sobre a cabeça há muito tempo”
(Dictionnaire de l’Academie, 1694). (...) Os chaperons eram outrora, como até hoje,
acessórios das velhas senhoras em certos países” (Richelet, 1680). (...) “Uma velha
(...) responsável pela conduta de uma adolescente” (chamava-se chaperon) (Jean
Elzevir, 1706). Apud Perrault, 1981, p. 323. 123
Intertextualidade e conto maravilhoso
27 “Ucronia – aquilo que não se situa nem se pode situar em nenhum tempo” (Holanda,
126 1986, p. 1732).
Análise do texto-base Chapeuzinho Vermelho, de Perrault
28 Essas observações foram baseadas num estudo sobre a temporalização feito por
Zielberberg em Greimas (1986, p. 234). 127
Intertextualidade e conto maravilhoso
luz. O Zeus-Licaeus era o deus da luz, que ora matava, ora sucum-
bia aos golpes de seu filho Nietimus, a escuridão, dando assim o
ciclo das noites e dos dias.
Rômulo e Remo tinham sido criados por Acca Laurentia, uma pros-
tituta, “loba”, como apelidavam as mulheres que rondavam as vie-
las e lugares escuros para o amor furtivo. A representação de Acca
Laurentia como o animal que dava nome à sua profissão, populari-
zou a espécie bestial.
29 No original, somente o primeiro turno da fala do lobo possui o tu: C’est pour mieux
t’embrasser. Depois, C’est pour mieux marcher, pour mieux écouter, pour mieux voir,
pour mieux te manger. Na tradução, o te é colocado desde “É para te ver melhor”, o que
136 diminui a surpresa.
Análise do texto-base Chapeuzinho Vermelho, de Perrault
30 Observa-se que foi suprimido, na tradução, o termo méchant, que se pode traduzir como
maligno, perverso, e é muito importante para a coesão lexical.
31 Observa-se, aí, a astúcia da enunciação que deu ao segmento textual que manifestava a
liberdade um tratamento exíguo, com a extensão linear de um parágrafo apenas, enquan-
to ao segmento “precioso”, porque “exemplar”, da negação da liberdade, proporcionou
uma privilegiada extensão na linearidade textual. 137
Intertextualidade e conto maravilhoso
34 A saga é uma narrativa trágica da vida de um herói. Eliade (1963, p. 171) assim se
expressa a respeito: “A saga ladeia o mito, o conto não (...). Ao passo que o herói das
sagas tem um fim trágico, o conto sempre tem um desfecho feliz (...). Na saga, o herói se
situa num mundo governado pelos Deuses e o destino. O personagem dos contos, ao
contrário, parece estar emancipado dos Deuses; seus protetores e companheiros bastam
140 para assegurar-lhe a vitória”.
Análise do texto-base Chapeuzinho Vermelho, de Perrault
36 “Mas a serpente (...) disse à mulher: É assim que Deus te disse: Não comereis de toda
árvore do Jardim? Respondeu-lhe a mulher: Do fruto das árvores do jardim podemos
comer, mas do fruto da árvore que está no meio do jardim, disse Deus: Dele não comereis,
nem tocareis nele para que não morrais. Então a serpente disse à mulher: É certo que não
morrereis. Porque Deus sabe que, no dia em que dele comerdes, se vos abrirão os olhos
142 e, como Deus, sereis conhecedores do bem e do mal” (Gênesis, 3: 1-5).
Análise do texto-base Chapeuzinho Vermelho, de Perrault
37 Greimas afirma: “... seu valor cognitivo (do mito), como assim também sua eficácia
prática, são a recompensa deste jogo do fazer-crer. Se o contrato se rompe, o discurso
mítico se torna mito na acepção moderna, ficcional do termo” (1986, p. 149). 143
Intertextualidade e conto maravilhoso
Il était une petite fille de village, la plus jolie qu’on eût su voir,
sa mère en état folle, et sa mère-grand plus folle encore. Cette bonne
femme lui fit faire un petit chaperon rouge qui lui seyait si bien, que
partout on l’appelait le petit Chaperon rouge. Un jour, sa mère ayant
fait des galettes, lui dit: “Va voir comment se porte ta mère-grand, car
on m’a dit qu’elle état malade; porte-lui une galette e cet petit pot de
beurre”. Le petit Chaperon rouge partit aussitôt pour aller chez sa
mère-grand, qui demeurait dans un autre village. En passant dans un
bois, elle rencontra compère le loup, qui eut bien envie de la manger,
146 mais il n’osa, à cause de quelques bûcherons qui étaient dans la forêt.
Análise do texto-base Chapeuzinho Vermelho, de Perrault
Il lui demanda où elle allait. La pauvre enfant, qui ne savait pas qu’il
était dangereux de s’arreter à écouter un loup, lui dit: “Je vais voir ma
mère-grand et lui porter une galette avec un pot de beurre que ma
mère lui envoie. – Demeure-t-elle bien loin? lui dit le loup. – Oh! oui,
lui dit le petit Chaperon rouge; c’est par delà le moulin que vou voyez
tout là-bas, là-bas, à la première maison du village. – Eh bien! dit le
loup, je veux l’aller voir aussi; je m’y en vais par ce chemin-ci, et toi
par ce chemin-là, et nous verrons à qui y sera plus tôt”. Le loup se mit
à courir de toute sa force par le chemin qui était le plus court, et la
petite fille s’en alla par le chemin le plus long, s’amusant à cueillir
des noisettes, à courir après des papillons et à faire des bouquets des
petites fleurs qu’elle rencontrait. Le loup ne fut pas longtemps à arriver
à la maison de la mère-grand; il heurte: “Toc, toc. – Qui est là?” –
”C’est votre fille, le petit Chaperon rouge”, dit le loup en contrefaisant
sa voix, “qui vous apporte une galette et un petit pot de beurre que
ma mère vous envoie”. La bonne mère-grand, qui était dans son lit, à
cause qu’elle se trouvait un peu mal, lui cria: “Tire la chevillette, la
bobinette cherra”. Le loup tira la chevillette et la porte s’ouvrit. Il se
jetat sur la bonne femme et la dévora en moins de rien, car il y avait
plus de trois jours qu’il n’avait mangé. Ensuite il ferma la porte et
s’alla coucher dans le lit de la mère-grand, en attendant le petit
Chaperon rouge, qui, quelque temps après, vint heurter à la porte.
“Toc, toc. – Qui est là?” Le petit Chaperon rouge, qui entendit la
grosse voix du loup, eut peur d’abord; mais, croyant que sa mère-
grand était enrhumée, il répondit: “C’est votre fille, le petit Chaperon
rouge, qui vous apporte une galette et un petit pot de beurre que ma
mère vous envoie”. Le loup lui cria, en adoucissant un peu sa voix:
“Tire la chevillette, la bobinette cherra”. Le petit Chaperon rouge tira
la chevillette et la porte s’ouvrit. Le loup la voyant entrer, lui dit en se
cachant dans le lit sous la couverture: “Mets la galette et le petit pot
de beurre sur la huche et viens te coucher avec moi”. Le petit Chaperon
se déshabille et va se mettre dans le lit, où elle fut bien étonnée de
voir comment sa mère-grand était faite en son déshabillé. Elle lui dit:
“Ma mère-grand, que vous avez de grands bras! – C’est pour mieux
t’embrasser, mon enfant. – Ma mère-grand, que vous avez de gran- 147
Intertextualidade e conto maravilhoso
Futuro do verbo choir, saído de uso (...) desde o século XVII. Richelet
destaca, no entanto, que “o petit peuple de Paris fala je choirai, for-
148 ma vizinha de cherra”.
Análise do texto-base Chapeuzinho Vermelho, de Perrault
38 Soriano afirma que o conto “se dirige a um público infantil, sem dúvida, mas ao mesmo
tempo permite-se um lançar de olhos em direção aos adultos” (1968, p. 155). 149
Intertextualidade e conto maravilhoso
cas consagradas pelo uso e/ou por normas, e que se deve observar de
forma invariável em ocasiões determinadas”.
– Puxa a aldrava 39 e o trinco se abrirá. Tire la chevillete, la
bobinette cherra. Primeiro, a fala da avó; depois, a fala do lobo tra-
vestido de avó, uma fala citando a outra e, quando aparece na voz do
lobo, numa relação anafórica à primeira cena, a bivocalidade adquire
um traço parodístico intratextual, que ajuda a construir o percurso
lúdico. Esse percurso lúdico, que, no nível textual, se expande na
aliteração chevillette, bobinette, cherra, constitui também mola pro-
pulsora para o mágico. É interessante observar que nas falas sincreti-
zadas, lobo/menina e lobo/avó é que a aliteração ocorre, o que ajuda
no efeito de sentido mágico e ritualístico.
Essa resposta da avó, Puxa a aldrava, consuma aquele efeito
de senha para entrar na magia, que está não apenas na antropofagia,
como na repetição da própria fala, que constrói o ritual. A senha, pela
sua própria convencionalidade, ao indicar que se está ciente do se-
gredo de uma ação, cria a cumplicidade entre enunciador e enuncia-
tário; e, pelo seu significado de sinal trocado por quem chega com
quem está, constrói aquele efeito de “entrada”.
O Nouveau Larousse Ilustré, Tome Deuxième (s/d, p. 691),
afirma que La response de la mère-grand, pour indiquer la manière
d’ouvrir sa porte: Tire la chevillette, la bobinette cherra, a passé en
proverbe.
O fato de essa frase ter-se transformado em provérbio ratifica
aquela construção do significado por expressões semi-simbólicas, que
Mieletínski (1979, p. 48) reúne sob o rótulo de “pequenos gêneros
folclóricos (provérbios, ditos, adivinhas, encantamentos), nos quais
o peso específico dos elementos lingüísticos é excepcionalmente gran-
de”.
Esse fato também ratifica outra afirmação de Mieletínski, no
mesmo artigo, segundo a qual “o folclore é formado por múltiplas
39 “Aldrava: tranqueta de metal com que se fecha a porta, com dispositivo que permite
abrir e fechar por fora” (Holanda, 1986, p. 79). Trata-se de um elemento de coesão
152 lexical do universo semântico rural, campesino, “antigo”.
Análise do texto-base Chapeuzinho Vermelho, de Perrault
41 Nesse ponto, pode-se afirmar que as formações discursivas do século de Perrault apre-
sentam uma confluência de valores ideológicos com nosso século. Para tanto, obser-
vem-se estas afirmações: “Numa sociedade que tem horror ao diferente, que reprime a
diversidade do real à uniformidade da ordem racional-científica, que funciona pelo prin-
cípio da equivalência abstrata entre seres que não têm denominador comum, a loucura é
uma ameaça sempre presente. O que a história da loucura nos revela, pondo em questão
toda a cultura ocidental moderna, é que o louco é excluído porque insiste no direito à
singularidade e, portanto, à interioridade. E, com efeito, se a loucura é nesse mundo
patologia ou anormalidade, é porque a coexistência de seres diferenciados se tornou
156 uma impossibilidade” (grifo nosso) (Pereira-Frayze, 1985, p. 102).
Análise do texto-base Chapeuzinho Vermelho, de Perrault
157
Análise das variantes intertextuais
CAPÍTULO III
1 Esse texto apresenta uma dedicatória, sob forma de epígrafe, a Modesto da Silveira,
cidadão do Rio de Janeiro, advogado, ex-deputado estadual, que atuou na clandestinida-
de como dirigente do Partido Comunista Brasileiro, na década de 60 e de 70, sendo um
incansável defensor de presos políticos. (Depoimento dado pelo Sr. Jesuíno D’Ávila,
seu contemporâneo.) 159
Intertextualidade e conto maravilhoso
narrativa, isto é, sujeito/objeto, destinador, destinatário, que Greimas enfeixou nos ac-
tantes da narração. Tais actantes subsumem os papéis actanciais. Os papéis temáticos
constituem, no discurso, semantização, por temas e figuras, dos papéis actanciais. 161
Intertextualidade e conto maravilhoso
4 Esse prazer do torturador em torturar supõe, segundo Greimas (1983, p. 241), mais que
uma “simples liquidação de falta (...), um ‘affaire’ entre sujeitos, em que um deve ser
‘recuperado moralmente’ e o outro ‘punido’ ”. Trata-se de um “reequilíbrio de sofrimen-
164 tos entre sujeitos antagonistas”, em que “o sofrimento de S² provoca o prazer de S¹”.
Análise das variantes intertextuais
tinham sido como eles (...) e quando chegavam do trabalho não ti-
nham forças nem para ficar acordados. A única história que conhe-
ciam era de misérias, tristezas e coisas ruins da vida diária.5
Como ousariam não confessar!
Respondiam:
– Num sei.
6 Não acreditamos ter sido um erro intencional o emprego de via-se, no lugar de viam-se.
Parece-nos que, no contexto desse parágrafo, predomina a voz do actante do enunciado,
relatando os fatos, com uma certa “distância”. Não se justifica, portanto, pensar na cons-
trução de algum efeito de sentido por meio desse erro. Fica, entretanto, o espontaneísmo
da escrita no “calor da hora”. 171
Intertextualidade e conto maravilhoso
7 “Como há uma única enunciação (no discurso indireto), todos os traços enunciativos da
enunciação desse interlocutor, que foi subordinada à enunciação do narrador, e que,
assim, tornou-se um locutor são apagados. (...) as interrogações, as exclamações, as in-
terjeições e outros elementos expressivos da enunciação do interlocutor devem ser eli-
minados, porque, no texto, só existe a subjetividade do narrador” (Fiorin, 1994, p. 79). 175
Intertextualidade e conto maravilhoso
pensar, quando posso simplesmente pagar; outros se encarregarão em meu lugar dos
negócios desagradáveis. A imensa maioria da humanidade (inclusive todo o belo sexo)
considera a passagem à maioridade difícil e além do mais perigosa, porque aqueles tuto-
res de bom grado tomaram a seu cargo a supervisão dela. Depois de terem primeisramente
embrutecido seu gado doméstico e preservado cuidadosamente estas tranqüilas criaturas
a fim de não ousarem dar um passo fora do carrinho para aprender a andar, no qual as
encerraram, mostram-lhes em seguida o perigo que as ameaça se tentarem andar sozi-
nhas”.
178 9 Para essa observação das paixões, baseamo-nos em Barros (1988, p. 64).
BUARQUE - SN1 - Seqüência Narrativa do Conto Enunciado
PN do lobo
Manipulação Competência Performance Sanção
Destinador → Destinatário saber e poder dados não se realiza (PN da menina)
(astúcia)
lobo lobo
dever manter a
"advertência" sobre a
menina
PN da menina 1a SN
Manipulação Competência Performance Sanção
Lobo → Menina ∩ querer viver dada Chapeuzinho Amarelo
S1 → (S2 ∪ Ov) → (S2 ∩ Ov)
reprimida
repressão
2a SN
Manipulação Competência Performance Sanção
Menina → Menina ∩ querer viver construída S1 → (S2 ∪ Ov) → (S2 ∩ Ov) reconhecimento
em liberdade
menina
menina
liberdade
PNu1
Manipulação Competência Performance Sanção
Menina → Menina ∩ querer destruir o adquirida - poder e saber: ridiculariza o lobo reconhecimento
Análise das variantes intertextuais
179
Intertextualidade e conto maravilhoso
Tinha medo de trovão./ Minhoca, pra ela era cobra./ E nunca apa-
nhava sol/ porque tinha medo da sombra./ Não ia pra fora pra não
se sujar./ Não tomava sopa pra não se ensopar/ Não tomava banho
pra não descolar./ Não falava nada pra não engasgar./ Não ficava
em pé com medo de cair./ Então vivia parada,/deitada, mas sem
dormir,/com medo de pesadelo. ERA A CHAPEUZINHO AMA-
RELO.
10 Denise Jardon declara: “A ironia é zombadora, ela agride, ela visa a uma personagem-
vítima, ela é crítica. Ela é, então, tendenciosa” (1988, p. 73). 183
Intertextualidade e conto maravilhoso
11 Pierre Fontanier afirma: “A ironia consiste em dizer, por uma zombaria divertida ou
séria, o contrário daquilo que se pensa, ou daquilo que se quer fazer pensar” (apud Deni-
se Jardon, 1988, p. 73).
12 Denise Jardon (1988, p. 5), na introdução de seu trabalho, citando Charles Mauron,
184 pergunta: “Ele (o estudante) compreendeu, ao ler certas comédias, que muitas das perso-
Análise das variantes intertextuais
16 Jardon (1988, p. 26), resgatando Jean Fourastié, assim se pronuncia sobre a “desdrama-
tização” parodística: “O primeiro gesto de um escritor cômico é desdramatizar o trata-
mento do sujeito; trata-se de introduzir no discurso ‘a cada passo (...) uma incongruência
que é provocada pela destruição da continuidade harmoniosa’”. Acrescentaríamos que
se trata de uma ruptura semântica, na passagem do nível narrativo ao discursivo, caben-
do a um percurso temático e figurativo, às avessas, a responsabilidade por essa imprevi-
sível “desdramatização”; imprevisível, tanto na construção do sentido intratextual, como
186 intertextual.
Análise das variantes intertextuais
190 19 Jardon cita a não-sinceridade irônica proposta por Kerbrat-Orecchioni. (1988, p. 81).
Análise das variantes intertextuais
21 Jardon, falando da ironia, declara: “De fato, ele (o receptor) deve estar suficientemente
distanciado emocionalmente do enunciado literal para captar o significado intencional”
192 (Idem, ibidem).
Análise das variantes intertextuais
O lobo ficou chateado/ de ver aquela menina/ olhando pra cara dele,/
só que sem o medo dele./ Ficou mesmo envergonhado.
194
Análise das variantes intertextuais
ciado, ele “gritou bem forte/ aquele seu nome de LOBO/ umas vinte
e cinco vezes,/ que era pro medo ir voltando/ e a menininha saber/
com quem não estava falando:
LO-BO-LO-BO-LO-BO-LO-BO
Confrontam-se dois fazeres obstinados: o da menina, antima-
nipulada e automanipulada pelo desejo de liberdade; o do lobo, dese-
joso de manter a submissão da menina, que lhe garante a sobrevivên-
cia do papel actorial, isto é, do lobo “mau”.
É sobre o lobo, porém, que, na contra-história, pesa o fardo do
medo.
Esse grito prolongadamente “desesperado” do lobo é de um
sujeito que, tal como explica Fiorin (1992, p. 57), “sabe poder estar
em conjunção com algo disfórico e não quer estar”, vê o estado como
disfórico e, por isso, sente medo. Mas trata-se de uma dor ambígua,
desajeitada pelo discurso.22
Trata-se, enfim, de um reflexo, ou, mais que reflexo, de uma
refração do confronto final de Chapeuzinho Vermelho com o lobo,
quando ela sente medo, recua, e, logo a seguir, “vira comida” do
lobo. O lobo, em seguida, também “vira bolo”. Aí está a inversão da
seqüência narrativa da contra-história, subsidiando a inversão dos
fatos discursivos.
Aproximando ideologias contrárias, o discurso firma o per-
curso temático da subversão do medo e permite-nos aquele triunfo
sobre nossas angústias e nossas culpas.23
Na verdade, Chapeuzinho Amarelo não é, portanto, nem no
primeiro momento, a decadência de Chapeuzinho Vermelho, ou a
sanção da sanção; na verdade, representa a redenção da menina, en-
quanto a possibilidade de superação de limites.
22 Hutcheon comenta que, numa paródia de um filme de Hitchcock, “um grito de mulher é
tão desajeitado que tem de ser gravado de novo; dentro do próprio filme, o grito final de
dor real é silencioso” (1989, p. 135).
23 Jardon, comentando o trabalho de crítica psicológica de Charles Mauron, sobre os con-
flitos edipianos criadores de situações cômicas, transcreve-lhe a seguinte afirmação: “A
verdadeira profundidade da arte cômica deve ser acima de tudo buscada na inconsciente
fantasia de triunfo, que recobre um mito angustiador” (1988, p. 32). 197
Intertextualidade e conto maravilhoso
24 “É preciso casar João,/ é preciso suportar Antônio,/ é preciso odiar Melquíades,/ é preci-
so substituir nós todos./ É preciso salvar o país,/ é preciso crer em Deus,/ é preciso pagar
as dívidas,/ é preciso comprar um rádio,/ é preciso esquecer fulana./ É preciso estudar
volapuque,/ é preciso estar sempre bêbedo,/ é preciso ler Baudelaire,/ é preciso colher as
flores/ de que rezam velhos autores./ É preciso viver com os homens,/ é preciso não
assassiná-los,/ é preciso ter mãos pálidas/ e anunciar o FIM DO MUNDO”. Acreditamos
que, nesses versos, poetizou-se o conceito de formações discursivas existentes numa
dada formação social, por isso encorajamo-nos a citá-los.
25 Bom ou Mau, aqui, remetem ao estado do sujeito, em conjunção ou em disjunção com a
submissão, que é a linha de valores que subsidia o discurso de Perrault, e que permeia o
198 diálogo intertextual.
Análise das variantes intertextuais
Não tomava sopa pra não se ensopar/ Não tomava banho pra não
descolar.
Um lobo, tirado o medo,/ é um arremedo de lobo./ É feito um lobo
sem pelo./ Lobo pelado.
26 Soriano fala dessas brincadeiras da expressão textual, ao referir-se àquilo que os italia-
nos designam de scioglilingua, ou seja, frases para serem repetidas com rapidez, sem
poder errar. (1968, p. 154)
27 Castro (1982), ao analisar a obra de Guimarães Rosa, aponta para a tendência arcaizante
202 do uso das terminações apocopadas, hipocorísticas ou diminutivas.
Análise das variantes intertextuais
Aliás, ela agora come de tudo,/ menos sola de sapato./Não tem mais
medo de chuva/ nem foge de carrapato./ Cai, levanta, se machuca,/
vai à praia, entra no mato, trepa em árvore rouba fruta,/ depois joga
amarelinha/ com o primo da vizinha,/ com a filha do jornaleiro,/
com a sobrinha da madrinha/ e o neto do sapateiro.
29 Dispensamo-nos de uma análise mais detalhada de Grimm, devido a essa captação má-
xima do texto.
30 Fiorin afirma: “O simulacro (da enunciação) é (...) o papel que os parceiros se atribuem
no ato da comunicação, estabelecendo a competência de cada um deles para determina-
do ato” (1992, p. 55).
31 A paráfrase aproxima-se do pastiche, enquanto relação de semelhança com o texto-base.
Hutcheon (1989, p. 55), comparando a paródia com o pastiche, afirma que “a paródia
procura de fato a diferenciação no seu relacionamento com o seu modelo; o pastiche
opera mais por semelhança e correspondência”. Acrescenta, ainda: “A paródia está para
o pastiche talvez como a figura de retórica está para o clichê. No pastiche e no clichê,
pode dizer-se que a diferença se reduz à semelhança”. 205
Intertextualidade e conto maravilhoso
E nem bem o lobo disse isso, deu um pulo da cama e engoliu a pobre
Chapeuzinho Vermelho. (Grimm)
E com essas palavras, o lobo se atirou sobre Chapeuzinho Vermelho
e a devorou. (Perrault)
quer fazer crer. Dessa maneira, esse futuro acaba expressando, nesse
discurso, uma “modalidade factual” e “seu valor de verdade pode ser
determinado no momento da enunciação”.37
Confirma-se, portanto, a estereotipia temático-figurativa de
Perrault, pela reprodução do percurso temático da repressão. A san-
ção positiva, constituindo um mero apêndice, por meio de linha tor-
tuosa, acaba “enfeitando” a sanção negativa. Ou aliviando-a, aparen-
temente. Enfeites e levezas que, mantendo-se no discurso, constituem
uma aparência de negação da proto-história, mas acabam sendo ins-
trumentos de confirmação da advertência de Perrault, apesar de torná-
la mais “leve”.
A sanção negativa não é, portanto, aliviada verdadeiramente e
a repressão consuma-se, também pelo fato de Grimm enunciar uma
vitória e uma vingança apenas aparentes da menina sobre o lobo; na
verdade, inutiliza essa menina como pessoa, apresentando-a eufori-
camente reificada pelo medo. O lobo, ou o medo, permanece, portan-
to.
Importa que Grimm parece negação, mas é captação, ou seja, é
uma negação no enunciado, mas é uma captação na enunciação. Con-
flui com Perrault, acrescentando ao significado intertextual um ma-
vioso canto dos passarinhos e, mais submissa ao texto-base do que a
estilização, faz, entretanto, parceria com ela no pólo da trans-história
do quadrado semiótico.
Assim constrói-se a paráfrase, nesse jogo que oscila, no dis-
curso, entre a hipérbole e o eufemismo, entre a economia e o esban-
jamento. Atenuam-se temas, acrescentam-se ou diminuem-se percur-
sos, detalham-se figuras, enfatiza-se aqui, minimiza-se lá, tudo
direcionado, entretanto, para a confirmação dos valores da proto-his-
tória, que é, na verdade, apenas e tão somente ornamentada.
37 Deram subsídios para essa reflexão as observações de Fiorin sobre o futuro do presente:
“Esse valor temporal do futuro determina que, a menos que a proposição exprima uma
verdade atemporal, ele não pode expressar uma modalidade factual, pois seu valor de
verdade não pode ser determinado no momento da enunciação. Por conseguinte, a única
possibilidade de fazer asserções no futuro depende da avaliação que o enunciador faz da
necessidade, probabilidade, possibilidade ou impossibilidade da ocorrência de um dado
estado de coisas”. (1994, p. 164) 215
Intertextualidade e conto maravilhoso
43 Poderíamos dizer que o papel actancial de contramanipulador tem, nesse ponto, uma
ancoragem ambígua no discurso, ou seja, a menina é o próprio lobo. 221
Intertextualidade e conto maravilhoso
44 Essas rupturas sintáticas e essas delicadezas de metáforas constroem, por sua vez, a
especificidade desta estilização, enquanto discurso poético, cuja palavra, frágil, não se
reduz ao texto-base. Veja-se o que diz, sobre isso, Campos: “De um ponto de vista teóri-
co-informativo, o probabilismo levado à estrutura da obra não é senão o caso mais extre-
mo da fragilidade (...) da informação estética. Se esta é inseparável de sua realização –
se não se pode, por exemplo, compreender a informação estética de um poema senão
dentro do processo de signos em que ela está codificada e se não é possível alterar essa
codificação sem destruir aquela informação (...), então se estabelece uma relação arbi-
trada no momento pelo intérprete-operador, co-produtor da informação, e esta já não será
a mesma numa segunda ou numa terceira (e assim por diante) execuções” (1975, p. 23).
Torna-se fácil, para entender tais conceitos, imaginarmos a dificuldade de tradução do
conto de Rosa, cujo significante veicula continuamente um novo significado, bem como o
222 trabalho-extra da leitura desse conto, infiltrado também do prazer-extra das descobertas.
Análise das variantes intertextuais
45 Quando nos referimos ao contexto deste conto, guiamo-nos por Barros (1988, p. 144)
que explicita os conceitos de contexto interno e contexto externo. Atribuímos ao conto
em si o conceito de contexto interno. 223
Intertextualidade e conto maravilhoso
Voltemos ao texto.
Daí, que, indo, no atravessar o bosque... (...) Então, ela mesma, era
quem se dizia...
Fita-Verde partiu, sobre logo, ela a linda, tudo era uma vez.
– Vou a vovó...
49 Cassirer, citando Herder, explica que este sublinhou “o caráter mítico de todos os con-
ceitos verbais e lingüísticos. ‘Visto que toda a Natureza ressoa, nada mais natural, para o
homem sensível, que ela viva, fale, atue. Certo silvícola vê uma árvore grandiosa, de
copa magnífica, e admira-se; a copa rumoreja!, é a divindade que se irrita! O selvagem
230 cai de joelhos e a adora!’”. (1992, p. 102)
Análise das variantes intertextuais
Ela perguntou:
51 Holanda assim se refere ao verbo rebuçar: 1. encobrir com rebuço; embuçar. 2. Escon-
der, ocultar, velar. 3. Disfarçar, dissimular. 4. Velar ou cobrir parte da face. 5. Disfar-
çar-se, dissimular-se. 6. Esconder-se, ocultar-se. Ficamos com as acepções de nos 3 e 5
para o entendimento do efeito de sentido proposto. (1986, p. 1459) 233
Intertextualidade e conto maravilhoso
Ela perguntou:
– Vovozinha, que braços tão magros, os seus, e que mãos tão
trementes!
Mas a avó não estava mais lá, sendo que demasiado ausente, a não
ser pelo frio, triste e tão repentino corpo.
52 Fazemos essa afirmação sobre o advérbio “mais” por analogia com “progressivamente”
e “ininterruptamente”, apresentados por Fiorin. (1994, p. 181)
53 Segundo Barros, a tristeza está enfeixada nas paixões da infelicidade, que se definem
como saber impossível a conjunção desejada, e cremos que está mais próxima do alívio
do que a aflição, que é a paixão que envolve a menina nesse diálogo final, antes da
última linha do texto. Dizemos isso para apontar uma alteração da proto-história na
trans-história; esta, pressupostamente, evolui para uma distensão. (1992, p. 63) 237
Intertextualidade e conto maravilhoso
55 Castagnino comenta esta afirmação de Valéry: “Um poema deve ser uma festa do inte-
lecto. Não pode ser outra coisa. Festa: é um jogo, mas solene, regrado, significativo;
imagem daquilo que não é comum, do estado no qual os esforços são ritmos resgatados.
Celebra-se algo (...) representando-o em seu mais belo e puro estado”. Rosa é prosa
240 poética. (1966, p. 51)
Análise das variantes intertextuais
Polêmica/Paródia/Paráfrase/Estilização e TTexto-base:
exto-base:
Semelhanças e Diferenças
SINTAXE FUNDAMENTAL
1. Semelhança entre T1 e T2:
– na estrutura elementar, as relações mínimas de conteúdo são as
mesmas em T1 e T2.
2. Diferença entre T1 e T2:
– as operações de negação e asserção são contrárias em T2 em rela-
ção a T1 – afirma-se a não-alteridade, confirmando-se, implicita-
mente, a identidade.
SINTAXE NARRATIVA
1. Semelhança entre T1 e T2:
– os actantes são os mesmos em T1 e T2;
– o algoritmo narrativo é o mesmo em T1 e T2.
2. Diferença entre T1 e T2:
– a relação do actante com o ator é contraditória em T2 em relação
a T1. O lobo2 não é o lobo1, os hominhos não são a menina; 243
Intertextualidade e conto maravilhoso
SINTAXE DISCURSIVA
1. Semelhança entre T1 e T2:
– a espacialização, a temporalização e a actorialização realizam-se
por meio do mesmo sistema enuncivo em T1 e T2.
2. Diferença entre T1 e T2:
– na estratégia argumentativa, notam-se procedimentos contraditó-
rios em T2 em relação a T1 – quanto à modalidade epistêmica, T2
faz crer (em si) para fazer não crer no contexto criticado;
– contraditoriedade de isotopias, que produz a ironia.
SEMÂNTICA FUNDAMENTAL
1. Semelhança entre T1 e T2:
– a oposição semântica básica é a mesma em T1 e T2: alteridade
vs. identidade.
2. Diferença entre T1 e T2:
– os investimentos tímicos são contrários em T2 em relação a T1 –
dêixis positiva, em T2, é identidade/não-alteridade.
SEMÂNTICA NARRATIVA
1. Semelhança entre T1 e T2:
– quanto à modalização do ser, notam-se, em princípio, as mesmas
paixões simples em T1 e T2 – querer ser (desejo, curiosidade) vs.
querer não ser (medo).
244 2. Diferença entre T1 e T2:
Anexo do Capítulo III – esquemas de análises
SEMÂNTICA DISCURSIVA
1. Semelhança entre T1 e T2:
– a figura comum ou invariante da configuração discursiva – a an-
tropofagia do lobo mau;
– o tema da repressão, que se realiza nos papel temático do trans-
gressor mal sucedido;
– as figuras comuns dos antropônimos – lobo/menina (hominhos),
dos cronônimos – uma vez/um dia, dos topônimos – bosque.
2. Diferença entre T1 e T2:
– criação de outros percursos figurativos, que não estavam na proto-
história;
– criação de outros percursos temáticos, que não estavam na proto-
história;
– criação de outros papéis figurativos, que não estavam na proto-
história;
– criação de outros papéis temáticos, que não estavam na proto-
história;
– fragilização das figuras, fortalecimento dos temas;
– as figuras são colocadas em outro universo temático;
– figuras falsas em relação a T1; 245
Intertextualidade e conto maravilhoso
SINTAXE FUNDAMENTAL
1. Semelhança entre T1e T2:
– na estrutura elementar, as relações mínimas de conteúdo são as
mesmas em T1 e T2.
2. Diferença entre T1e T2:
– as operações de negação e asserção são contrárias em T2 em rela-
ção a T1; em T2, afirma-se a identidade.
SINTAXE NARRATIVA
1. Semelhança entre T1 e T2:
– os actantes são os mesmos em T1 e T2;
– o algoritmo narrativo é o mesmo em T1 e T2.
2. Diferença entre T1 e T2:
– a relação do actante com o ator é contrária em T2 em relação a T1;
a menina e o lobo têm papéis actanciais trocados;
– os percursos são invertidos na seqüência narrativa do enunciado;
– na seqüência narrativa da enunciação, o enunciador manipula o
enunciatário para que este entre em conjunção com o valor con-
246 trário ao proposto por T1, ou seja, a liberdade.
Anexo do Capítulo III – esquemas de análises
SINTAXE DISCURSIVA
1. Semelhança entre T1 e T2:
– a espacialização, a temporalização e a actorialização realizam-se
por meio do mesmo sistema enuncivo em T1 e T2.
2. Diferença entre T1 e T2:
– procedimentos contrários de estratégia argumentativa; procedi-
mento relevante: a ironia;
– quanto ao estatuto veridictório do discurso, há também contrarie-
dade: T2 faz crer em si para fazer não crer no texto-base;
– contrariedade de isotopias, que produz a ironia (com humor).
SEMÂNTICA FUNDAMENTAL
1. Semelhança entre T1 e T2:
– a oposição semântica básica é a mesma em T1 e T2: alteridade
vs. identidade.
2. Diferença entre T1 e T2:
– os investimentos tímicos são contrários em T2 em relação a T1 –
a dêixis positiva, em T2, é identidade/não-alteridade.
SEMÂNTICA NARRATIVA
1. Semelhança entre T1 e T2:
– quanto à modalização do ser, notam-se as mesma paixões simples
em T2 e T1: querer ser (desejo, curiosidade) vs. querer não ser
(medo); a paixão complexa da frustração é a mesma em T1 e T2
(em T2, está minimizada no discurso).
2. Diferença entre T1 e T2:
– a paixão de liquidação de falta (malevolência), que modaliza a
menina em T2;
– a axiologização positiva do desejo, da coragem, da curiosidade,
contrariamente a T1;
– valores escolhidos para entrar em conjunção com o sujeito: con-
trários. 247
Intertextualidade e conto maravilhoso
SEMÂNTICA DISCURSIVA
1. Semelhança entre T1e T2:
– a figura comum ou invariante da configuração discursiva: antro-
pofagia do lobo mau;
– o tema da repressão, que se biparte nos papéis temáticos do repri-
mido e do repressor;
– as figuras comuns dos antropônimos – lobo/menina, dos cronôni-
mos – uma vez, um dia, dos topônimos – bosque.
2. Diferença entre T1 e T2:
– as figuras de T2 passam para o universo temático oposto a T1 –
parecem aquelas de T1, mas não são;
– T2 tem figuras “de mentira”;
– percursos figurativos contrários;
– percursos temáticos contrários;
– contrariedade de papéis figurativos;
– acréscimo de novas figuras;
– maximização de traços dos atores do texto-base – efeito do gro-
tesco;
– efeito de sentido de comicidade e humor.
248
Anexo do Capítulo III – esquemas de análises
PERRAULT/GRIMM TEXTO-BASE/PARÁFRASE
PROTO-HISTÓRIA/TRANS-HISTÓRIA
T1/T2
SINTAXE FUNDAMENTAL
1. Semelhança entre T1 e T2:
– na estrutura elementar, as relações mínimas de conteúdo são as
mesmas em T1 e T2;
– as operações (negação e asserção) são as mesmas em T1 e T2;
afirma-se a alteridade e nega-se a identidade.
2. Diferença entre T1 e T2:
nega-se a alteridade e afirma-se a identidade no modo do parecer.
SINTAXE NARRATIVA
1. Semelhança entre T1 e T2:
– algoritmo narrativo – o mesmo em T1 e T2;
– actantes – os mesmos em T1 e T2;
– relação do actante com o ator – a mesma em T1 e T2 – lobo 2 cita
lobo1; menina 2 cita menina 1;
– seqüência narrativa do enunciado e seqüência narrativa da enun-
ciação – semelhantes em T1 e T2.
2. Diferença entre T1 e T2:
– acréscimo do PN do caçador dentro da sanção da menina; PN,
que é mero apêndice, entretanto.
SINTAXE DISCURSIVA
1. Semelhança entre T1 e T2:
– espacialização, temporalização, actorialização – mesmo sistema
enuncivo em T1 e T2;
– faz crer (em si) para não fazer não crer no texto-base. 249
Intertextualidade e conto maravilhoso
SEMÂNTICA FUNDAMENTAL
1. Semelhança entre T1 e T2:
– oposição semântica básica: alteridade vs. identidade;
– investimentos tímicos semelhantes; dêixis positiva – alteridade/
não identidade.
2. Diferença entre T1 e T2:
– a dêixis positiva, no modo do parecer, é identidade/não- alteridade
SEMÂNTICA NARRATIVA
1. Semelhança entre T1 e T2:
– valores escolhidos para entrar em conjunção com o sujeito – os
mesmos em T1 e T2;
– modalização do ser – paixões simples – as mesmas em T1 e T2 –
querer ser (desejo, curiosidade) vs. querer;
– não ser (medo); paixão complexa – a mesma em T1 e T2 – frus-
tração (maximizada no discurso, como em T1; no discurso,
axiologização positiva do medo, como em T1.
2. Diferença entre T1 e T2:
– valores escolhidos para entrar em conjunção com o sujeito – con-
trários em relação a T1, no modo do parecer.
SEMÂNTICA DISCURSIVA
250 1. Semelhança entre T1 e T2:
Anexo do Capítulo III – esquemas de análises
– tema da repressão;
– percurso temático relevante de T1(a advertência) – confirmado;
– figura comum ou invariante da configuração discursiva; antropo-
fagia do lobo mau (a mesma em T1 e T2);
– figuras comuns dos antropônimos – lobo/menina, dos cronôni-
mos – uma vez/um dia, dos topônimos – bosque, casa da avó;
– conformidade de papéis temáticos e figurativos dos atores de T2
com os atores de T1.
2. Diferença entre T1 e T2:
– detalhamento figurativo; acréscimo de percursos figurativos, que
constituem meros apêndices;
– aparente atenuação temática;
– percursos figurativos ornamentados;
– construção do sentido por meio de um jogo, que oscila entre hi-
pérboles e eufemismos aparentes.
PERRAULT/ROSA TEXTO-BASE/ESTILIZAÇÃO
PROTO-HISTÓRIA/TRANS-HISTÓRIA
T1/T2
SINTAXE FUNDAMENTAL
1. Semelhança entre T1 e T2:
– na estrutura elementar, as relações mínimas de conteúdo são as
mesmas em T1 e T2;
– as operações (negação e asserção) são as mesmas em T1 e T2;
afirma-se a alteridade e nega-se a identidade.
2. Diferença entre T1 e T2:
– na enunciação enunciada, constrói-se o termo complexo pessoa- 251
Intertextualidade e conto maravilhoso
SINTAXE NARRATIVA
1. Semelhança entre T1 e T2:
– algoritmo narrativo – o mesmo em T1 e T2;
– actantes – os mesmos em T1 e T2;
– relação do actante com o ator – a mesma em T1 e T2 – lobo 2 cita
lobo1; a menina2 cita a menina1;
2. Diferença entre T1 e T2:
– ambigüidade do papel do lobo;
– na seqüência narrativa do enunciado, a sanção da menina é cognitiva.
SINTAXE DISCURSIVA
1. Semelhança entre T1 e T2:
– espacialização, temporalização, actorialização – mesmo sistema
enuncivo em T1 e T2;
– faz crer em si para não fazer não crer no texto-base.
2. Diferença entre T1 e T2:
– complexificação sintática por meio de embreagens;
– alterações na actorialização, espacialização e temporalização: tra-
ta-se, em T2, de qualquer pessoa, de qualquer espaço, de qualquer
tempo;
– estratégia argumentativa – procedimentos alterados pela função
estética, pelo tom lírico, que fazem o conto voltar-se mais para
sua própria mira enunciativa, do que para o texto-base, o que cons-
titui um ponto de semelhança com a desistória.
SEMÂNTICA FUNDAMENTAL
1. Semelhança entre T1 e T2:
252 – oposição semântica básica: alteridade vs. identidade;
Anexo do Capítulo III – esquemas de análises
SEMÂNTICA NARRATIVA
1. Semelhança entre T1 e T2:
– modalização do ser – paixões simples – as mesmas em T1 e T2 –
querer ser (desejo, curiosidade) vs. querer não ser (medo); paixão
complexa – a mesma em T1 e T2 – frustração (minimizada no
discurso);
– valor escolhido para entrar em conjunção com o sujeito: o mesmo
– submissão.
2. Diferença entre T1 e T2:
acréscimo da paixão da tristeza;
– percursos patêmicos resultam na concomitância do medo e do de-
sejo, ou curiosidade;
– valor escolhido para entrar em conjunção com o sujeito: uma sub-
missão complexificada.
SEMÂNTICA DISCURSIVA
1. Semelhança entre T1 e T2:
– figura comum ou invariante da configuração discursiva – antro-
pofagia do lobo mau;
– conformidade de papéis figurativos e temáticos dos atores de T2
com os atores de T1;
– as figuras comuns dos antropônimos – lobo/menina, dos cronôni-
mos – uma vez/um dia, dos topônimos – bosque/casa da avó;
– o tema da repressão, que se atenua na iniciação.
2. Diferença entre T1 e T2: 253
Intertextualidade e conto maravilhoso
254
Conclusão
Conclusão
(Vinicius de Moraes)
257
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263
Textos
TEXTOS
Chapeuzinho Vermelho
Era uma vez uma menina aldeã, a mais bonita de quantas exis-
tiram. Sua mãe era louca por ela, sua avó ainda mais louca. Esta boa
mulher mandou fazer para ela um chapeuzinho vermelho que se as-
sentava tão bem que, por toda parte, só lhe chamavam Chapeuzinho
Vermelho.
Um dia sua mãe, tendo assado uma fornada de pãezinhos, dis-
se à menina:
– Vai ver como está tua avó, pois me disseram que anda doen-
te; leva-lhe uns pãezinhos e esta tigelinha de manteiga.
Chapeuzinho Vermelho saiu no mesmo instante para ir à casa
de sua avó, que morava em outra aldeia. Passando por um bosque, aí
encontrou compadre Lobo, que teve grande vontade de comê-la; con-
tudo não se atreveu, por causa de alguns lenhadores que estavam por
perto. Perguntou-lhe o Lobo aonde ia ela. A pobre criança, que não
sabia como era perigoso dar ouvidos a um lobo, respondeu:
– Vou à casa da vovó levar-lhe um pãozinho e uma tigelinha
de manteiga que minha mãe lhe envia.
– Ela mora muito longe? – perguntou o Lobo.
– Oh, sim! – respondeu Chapeuzinho Vermelho; – além do
moinho que se vê lá embaixo; na primeira casa da aldeia.
– Pois bem – disse o Lobo – também quero visitá-la. Irei por
este caminho, e irás por aquele. Vamos ver quem chega
primeiro. 265
Intertextualidade e conto maravilhoso
267
Textos
car a roupa. Enquanto ela foi pegar o dinheiro para pagar, deixou a
porta entreaberta e ele ficou comovido e com medo ouvindo a dona
da casa contar, para o filhinho que tinha no colo, uma bela história de
perigos e de bem-aventurança.
De repente um tiro rompeu o curto silêncio que se tinha feito
no local macabro, logo depois que um dos presos, na sua humilde
ingenuidade, tinha começado a contar:
Era uma vez um lobo mau...
271
Textos
Chapeuzinho Amarelo
274
Textos
275
Intertextualidade e conto maravilhoso
E Chapeuzinho Amarelo,
de tanto pensar no LOBO,
de tanto sonhar com LOBO,
de tanto esperar o LOBO,
um dia topou com ele
que era assim:
carão de LOBO,
olhão de LOBO,
jeitão de LOBO
e principalmente um bocão
tão grande que era capaz
276 de comer duas avós,
Textos
277
Intertextualidade e conto maravilhoso
O lobo ficou
278
Textos
chateado.
279
Intertextualidade e conto maravilhoso
280
Textos
LO-BO-LO-BO-LO-BO-LO-BO
LO-BO-LO-BO-LO-BO-LO-BO
BO-LO-BO-LO-BO-LO-BO-LO
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Intertextualidade e conto maravilhoso
LO-BO-LO-BO-LO-BO-LO-BO
LO-BO-LO-BO-LO-BO-LO-BO
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282
Textos
283
Intertextualidade e conto maravilhoso
284
Textos
FIM
Chapeuzinho Vermelho
E aí também a velha avó saiu para fora ainda viva, mal conse-
guindo respirar. Mas Chapeuzinho Vermelho trouxe depressa umas
grandes pedras, com as quais encheu a barriga do lobo. Quando ele
acordou, quis fugir correndo, mas as pedras eram tão pesadas, que
ele não pôde se levantar e caiu morto.
Então os três ficaram contentíssimos. O caçador arrancou a
pele do lobo e levou-a para casa, a vovó comeu o bolo e bebeu o
vinho que Chapeuzinho Vermelho trouxera, e logo melhorou, mas
Chapeuzinho Vermelho pensou: “Nunca mais eu sairei do caminho
sozinha, para correr dentro do mato, quando a mamãe me proibir
fazer isso”.
290
Textos
Fita-Verde no Cabelo
(Nova velha estória)
– “Quem é?”
– “Sou eu...” – e Fita-verde descansou a voz – “Sou sua linda
netinha, com cesto e pote, com a fita-verde no cabelo, que a mamãe
me mandou”.
– Vai, a avó, difícil disse: – “Puxa o ferrolho de pau da porta,
entra e abre. Deus te abençoe”.
Fita-verde assim fez, e entrou e olhou.
A avó estava na cama, rebuçada e só. Devia, para falar agagado
e fraco e rouco, assim, de ter apanhado um ruim defluxo. Dizendo: –
“Depõe o pote e o cesto na arca, e vem para perto de mim, enquanto
é tempo”.
Mas agora Fita-verde se espantava, além de entristecer-se de
ver que perdera em caminho sua grande fita-verde no cabelo atada; e
estava suada, com enorme fome de almoço. Ela perguntou:
– “Vovozinha, que braços tão magros, os seus, e que mãos tão
trementes!”
– “É porque não vou poder nunca mais te abraçar, minha neta...”
– a avó murmurou.
– “Vovozinha, mas que lábios, aí, tão arroxeados!”
– “É porque não vou nunca mais poder te beijar, minha neta...”
– a avó suspirou.
– “Vovozinha, e que olhos tão fundos e parados, nesse rosto
encovado, pálido?”
– “É porque já não te estou vendo, nunca mais, minha neti-
nha...” – avó ainda gemeu.
Fita-verde mais se assustou, como se fosse ter juízo pela pri-
meira vez.
Gritou: – “Vovozinha, eu tenho medo do Lobo!”
Mas a avó não estava mais lá, sendo que demasiado ausente, a
não ser pelo frio, triste e tão repentino corpo.
Ficha Técnica