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Introdução

Intertextualidade e
Conto Maravilhoso

1
Intertextualidade e conto maravilhoso

USP – UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO


Reitor: Prof. Dr. Adolpho José Melfi
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FFLCH – FACULDADE DE FILOSOFIA,


LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS
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Imagem da capa: PISSARRO, C. Camponesa com Vara. Paris, Musée d’Orsay, 1881.

2 Humanitas – FFLCH/USP – março/2002


Introdução
ISBN 85-86087-97-1

Norma Discini

Intertextualidade e
Conto Maravilhoso

FFLCH/USP

2002

UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO • FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS 3


Copyright
Intertextualidade e conto 2002 da Humanitas FFLCH/USP
maravilhoso

É proibida a reprodução parcial ou integral,


sem autorização prévia dos detentores do copyright

Serviço de Biblioteca e Documentação da Faculdade de Filosofia,


Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo

D611 Discini, Norma


Intertextualidade e conto maravilhoso / Norma Discini – São Pau-
lo: Humanitas/FFLCH/USP, 2001.

294 p.
Originalmente apresentada como Dissertação (Mestrado) – Facul-
dade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São
Paulo, 1995.
ISBN 85-86087-97-1

1. Lingüística 2. Intertextualidade 3. Semiótica 4. Literatura infanto-


juvenil 5. Conto brasileiro I. Título
CDD 410
028.5

HUMANITAS FFLCH/USP
e-mail: editflch@edu.usp.br
Telefax.: 3091-4593

Editor Responsável
Prof. Dr. Milton Meira do Nascimento

Coordenação Editorial
Mª. Helena G. Rodrigues – MTb n. 28.840

Projeto Gráfico, Digitalização das Imagens e Diagramação


Marcos Eriverton Vieira

Capa
Diana Oliveira dos Santos

Revisão
4 Edison Luís dos Santos
Introdução

Para José Luiz Fiorin, meu mestre

5
Introdução

Sumário

INTRODUÇÃO ....................................................................................... 09

CAP. I – Justificativas teóricas dos procedimentos


de análise adotados para o discurso intertextual ...................... 23

CAP. II – Análise do texto-base Chapeuzinho Vermelho,


de Perrault ................................................................................ 79
1. Introdução .................................................................................... 79
2. Nível fundamental (no subsolo) ................................................... 83
3. Nível narrativo (ainda no subsolo) ............................................... 91
4. Nível discursivo ......................................................................... 118

CAP. III – Análise das variantes intertextuais ....................................... 159


1. Chapeuzinho Vermelho e o Lobo Torturador,
de Alberto Berquó: a desistória .................................................. 159
2. Chapeuzinho Amarelo, de Chico Buarque: a contra-história ..... 176
3. Chapeuzinho Vermelho, dos irmãos Grimm: a paráfrase ........... 204
4. Fita-Verde no Cabelo, de Guimarães Rosa: a estilização .......... 216

ANEXO DO CAP. III – Esquemas de análises ..................................... 243

CONCLUSÃO ....................................................................................... 255

BIBLIOGRAFIA ................................................................................... 259

TEXTOS ................................................................................................ 265

7
Introdução

Introdução

A intuição do autor,
seu registro no papel;
a leitura, a intuição
do leitor. Não há mais
do que isso: nada mais.
(...)
Essa intuição... tem-se
ou não se tem...

(Dámaso Alonso)

O mundo maravilhoso do conto infantil sempre me instigou.


Esse tempo perdido nos tempos, em que tal narrativa se ancora, esses
atores não-individualizados, cuja roupa é fácil de vestir, esse modo
de contar tão “ausente” e distante, que parece falar em nome de todos
os contadores de história!
Escolhi Perrault, o primeiro a tomar a voz da tradição oral e
imprimi-la no mundo oficial da literatura. Escolhi Chapeuzinho Ver-
melho, Le petit chaperon rouge, que, por alguma razão, foi retomado
tantas vezes, a serviço de outras enunciações. Assim encaminhei este
meu trabalho, minha dissertação de mestrado, que resultou neste li-
vro.
Colocava sob minha análise um texto que já nascera das vozes
do folclore, e propunha-me entender as relações deste texto com suas
variantes intertextuais. Sabia, então, que teria de transformar a antiga
prática de trabalhar com uma obra como um campo fechado em si
mesmo. A obra não poderia mais ser vista como um monólogo de um 9
Intertextualidade e conto maravilhoso

sujeito independente, que pressupõe, além de seus limites, apenas


um leitor receptivo, privilegiado por uma intuição especial.
Chapeuzinho Vermelho não era um todo autônomo, como não
o eram suas variantes intertextuais. Não poderia, portanto, por analo-
gia à língua-mãe, na história das línguas, ser considerado o primeiro,
o único, já que, ele próprio, era atravessado pelas vozes milenares da
tradição oral.
Não era mais possível uma análise que se exauria num contex-
to fechado, tentando aprisionar, numa unidade hipotética, o que era
constitutivamente diversificado. Desmoronava-se a idéia de centro,
enquanto uma descentralização da língua e do discurso ia-se mos-
trando como uma frente muito nebulosa, difícil de ser praticada. Foi
então que conheci o dialogismo bakhtiniano.

Apenas o Adão mítico, que chegou com a primeira palavra num


mundo virgem, ainda não desacreditado, somente este Adão podia
realmente evitar por completo esta mútua-orientação dialógica do
discurso alheio para o objeto. Para o discurso humano, concreto e
histórico, isso não é possível: só em certa medida e convencional-
mente é que pode dela se afastar (Bakhtin, 1988 b, p. 88).

Entendi que o que acontecia não era apenas a perda de um


centro único. Era o diálogo que perpassa todo discurso; era o pluri-
lingüismo social e histórico (Bakhtin, 1988 b, p. 82) que interage
com uma língua única na construção de cada enunciação. Teria de
parar de pensar numa língua única, num único sujeito de um discur-
so, e isso não somente em relação ao corpus proposto para a análise,
mas em relação a qualquer texto.
Teria de entender que há sempre a palavra de um outro, junto
daquela que eu julgo ser de um. Importava, e muito, o diálogo do eu
com o outro, ou seja, a verdade de que o outro permeia todo o fio do
meu discurso, permeia as variantes intertextuais, permeia o texto-
base.
Com esse outro inevitável, eu compactuo, eu entro em confli-
to, eu brinco; posso até transfigurá-lo esteticamente. Isso, quando
10 tenho consciência dele e represento-o no meu discurso, porque o tomo
Introdução

como sujeito-parceiro da construção da minha enunciação. Isso é in-


tertextualidade. Assim esse conceito será trabalhado daqui para frente.
Na intertextualidade, não uso aspas, ou itálico, ou quaisquer
expressões indicativas ou avaliativas da palavra do outro, como no
exemplo: “As ervilhas verdes, al dente, como dizem os italianos”
(Authier-Revuz, 1982, p. 94). Aí, o outro está circunscrito à minha
indicação, eu o aponto, ele representa meu objeto. O meu eu parece
distanciar-se, ainda que pontualmente, desse outro, que eu destaco.
Pareço, assim, um sujeito mais forte, com as rédeas do meu discurso
nas mãos. Pareço recuperar alguma unicidade, já que delimito o es-
paço do outro no meu discurso.
Não recupero. Na verdade, assumo o outro, ao apontar a dis-
tância que me separa dele.
Mas é com a intertextualidade que iremos trabalhar.
E na intertextualidade não há fronteiras, não há linha divisória
entre o eu e o outro, não há ruptura. Intertextualidade é a retomada
consciente, intencional da palavra do outro, mostrada, mas não
demarcada no discurso da variante.
A retomada da palavra do outro é constitutiva de qualquer dis-
curso. Lembremo-nos de Adão. É inerente, portanto, ao discurso, não
uma homogeneidade, mas uma heterogeneidade constitutiva. “O ou-
tro está presente sempre e em todo lugar. (...) um outro que não é o
duplo de um face a face, nem mesmo o ‘diferente’, mas um outro que
atravessa constitutivamente o um” (Authier-Revuz, 1982, p. 103).
Na intertextualidade, faz-se uma negociação de anuência, um
acordo, com essa heterogeneidade constitutiva do sujeito e de seu
discurso. Tal como na heterogeneidade naturalmente constitutiva, na
intertextualidade o outro não é um objeto, do qual eu falo no meu
discurso. O texto-base entra como condição de construção de sentido
do discurso da variante intertextual. A intertextualidade não se prote-
ge, portanto, da heterogeneidade constitutiva do discurso.
Authier (1984, p. 98), ao trabalhar com o conceito de hetero-
geneidade constitutiva, que é essa pluralidade inquestionável do su-
jeito e do seu discurso, e a possibilidade de que essa heterogeneidade 11
Intertextualidade e conto maravilhoso

constitutiva tem de se mostrar, ora de forma marcada, como foi exem-


plificado, ora de forma não-marcada, que corresponde à intertextua-
lidade, assim se expressa:

Eu distingo neste conjunto (de heterogeneidade mostrada) as for-


mas marcadas, que chamam a atenção sobre o lugar do outro por
uma marca unívoca (discurso direto, aspas, itálico, incisos explica-
tivos) e as formas não-marcadas do mostrado, em que o outro se
deixa reconhecer sem marcação unívoca (discurso indireto livre, iro-
nia, pastiche, imitação...).

A intertextualidade insere-se, portanto, nessa heterogeneidade


mostrada e não-marcada. Segundo Authier (1984), a heterogeneida-
de constitutiva, inerente a todo discurso, é natural; a mostrada, marcada
ou não-marcada, é provocada. A primeira (constitutiva) é real, a se-
gunda (mostrada), não menos real, representa os processos de consti-
tuição da primeira. Essa heterogeneidade mostrada e não-marcada,
que constitui a intertextualidade, constrói-se, tal como a marcada, de
maneira solidária com a heterogeneidade constitutiva.
Solidariedade entre intertextualidade e heterogeneidade cons-
titutiva, sim, pois, nas variantes, o sujeito do discurso não se repre-
senta como o centro de sua enunciação, pelo contrário, ele aponta
para o não-centro. Não se designa o outro como objeto, dilui-se a
distância entre o outro e o um. Não há divisão entre o outro e o um,
mas há, como condição sine qua non, uma fusão aparente, que se
realiza nas semelhanças entre o texto-base e a variante.
A intertextualidade reconhece a heterogeneidade constitutiva,
porque o outro não está circunscrito a uma designação pontual, ele
participa da construção do significado da variante, desde os patama-
res mais profundos até os mais superficiais do percurso gerador do
sentido. Aqui, resgatamos Greimas.
Perseguimos, então, a construção do significado intertextual,
tendo como apoio o contexto teórico indicado e, como mira, a verda-
de de que a competência para a leitura não só pode ser adquirida,
como é considerada um saber partilhável e, não, dom de poucos elei-
12 tos, ou uma intuição, que se tem ou não se tem.
Introdução

Vimos de uma tradição literária que supervaloriza essa intui-


ção na análise dos textos, como neste exemplo:

Não faltam testemunhos dos próprios escritores quanto à importân-


cia da fábula para a realização de suas obras. Assim, Balzac conta,
no prefácio da “Physiologie du Mariage”, que as emoções recebidas
com a palavra “Adultere” do Código Civil, só tinham podido trans-
formar-se em energia criadora quando se lhe impôs a fábula de um
casal cujos membros, após dez anos de vida conjugal, se sentem
pela primeira vez apaixonados um pelo outro. Aqui, a fábula surge
de uma intuição repentina e, muitas vezes, assim acontecerá (Kayser,
1963, p. 110-1).

Hoje, não mais vemos o texto como fruto casual de uma intui-
ção e deixamos que ele testemunhe por si mesmo essa voz do outro
que entra na constituição do discurso. Cabe ao analista identificar
essas duas vozes, ou esse bivocalismo, conceito tão caro a Bakhtin.
Continuamos a utilizar a intuição, sem dúvida, mas de manei-
ra orientada por um modelo, instrumento metodológico, com o qual
se pode penetrar além das aparências do texto e com o qual se refina
a própria intuição. É esse modelo que nos vem da semiótica francesa,
pelas mãos de Greimas. Trata-se de um simulacro do percurso gera-
dor do sentido.
Com esse modelo, desconstrói-se, para reconstruir, o percurso
gerativo do sentido, desde os níveis mais profundos, abstratos e sim-
ples, até os níveis mais superficiais, concretos e complexos. Ao des-
construir as relações, detecta-se a orientação de um sujeito social,
histórico, que imprime sua intencionalidade ao que é dito, ao como é
dito e ao porquê é dito. É o sujeito da enunciação.
O enunciado é o produto desse percurso. Visto na sua manifes-
tação exterior, esse enunciado é a expressão verbalizada, no caso do
nosso corpus, da construção de um significado intertextual. O dis-
curso intertextual é bivocal. O sujeito da enunciação não tem a sobe-
rania que parece ter, pois sofre as coerções das formações sociais nas
quais está inserido. Tais formações discursivas permitem-no dizer
isso e induzem-no a calar aquilo. Ele reage, e a dinâmica dessa inte-
ração do eu com o outro é que o constitui. 13
Intertextualidade e conto maravilhoso

O discurso intertextual avança, entretanto, nesse bivocalismo,


porque o concretiza, representando as vozes. Captando ou subver-
tendo outro texto, mostra-o, mas não o demarca; assimila-o, para
confirmá-lo, ou para opor-se a ele.
Antes de prosseguir, precisamos, agora, de uma pausa para a
observação de alguns conceitos já expressos e ainda não esclareci-
dos.
Segundo o modelo greimasiano, o percurso da construção do
sentido, que se triparte nos níveis fundamental, narrativo e discursivo
representa a construção de sentido do próprio discurso. O discurso
corresponde ao plano do conteúdo, portanto, ainda permanecendo no
subsolo do sentido. Somente quando se considera o conteúdo mani-
festado no plano da expressão é que desponta o texto, que pode ser
visto como a manifestação sígnica verbal e individual.1
O discurso é social, é “o lugar das coerções sociais, enquanto
o texto é o espaço da ‘liberdade’ individual” (Fiorin, 1988 b, p. 42),
sendo que o discurso é social em segredo, ou seja, é e não parece,
dissimulando-se na ilusão referencial da individualidade textual. O
texto é, portanto, uma singularidade que esconde uma pluralidade, o
discurso; um solo visivelmente único, que acoberta um subsolo hete-
rogêneo. É bom que se acrescente que Bakthin (1988 a, p. 59) reforça
as aspas da palavra “liberdade” ao afirmar que “todo o produto da
ideologia leva consigo o selo da individualidade do seu ou dos seus
criadores, mas este selo é tão social quanto todas as outras particulari-
dades e signos distintivos das manifestações ideológicas. Assim, todo
signo, inclusive o da individualidade, é social”.
Em se tratando das variantes intertextuais, cada uma delas
mostra, mas não marca, essa pluralidade.

1 Greimas (1989, p. 461) propõe que se pense em texto não (apenas) como o ponto de
chegada do percurso gerativo total, mas como uma possibilidade expressiva que pode
ocorrer em qualquer patamar desse percurso, desde que aí aconteça uma interrupção.
Sempre que o percurso gerativo é interrompido, ele dá lugar à textualização (linearização
e junção com o plano da expressão). O texto, quando chega ao plano da expressão, não
se prende, é bom que se acrescente, a um único tipo de manifestação sígnica. Greimas
exemplifica isso, na mesma citação, por meio das histórias em quadrinhos e do texto
14 teatral, que subsumem várias linguagens.
Introdução

Prossigamos.
A partir de Perrault, serão analisadas as variantes, que foram
por nós escolhidas: Chapeuzinho Vermelho e o Lobo Torturador, de
Alberto Berquó; Chapeuzinho Amarelo, de Chico Buarque; Chapeu-
zinho Vermelho, dos Irmãos Grimm e Fita Verde no Cabelo, de Gui-
marães Rosa.
Os objetivos que nortearam esse trabalho podem assim ser
elencados:
1. Analisar os níveis fundamental, narrativo e discursivo do
texto-base;
2. Examinar as semelhanças e diferenças nos níveis funda-
mental, narrativo e discursivo entre o texto-base e os tex-
tos que mantêm com ele um diálogo;
3. Repensar a existente tipologia das relações intertextuais
dentro do modelo greimasiano da construção do sentido.
Temos algumas hipóteses, que também podem ser elencadas:
1. A construção da significação intertextual não está nas
marcas da expressão, como parece, mas nas transforma-
ções ocorridas no conteúdo, que englobam as estruturas
sêmio-narrativas (nível fundamental e narrativo) e as
discursivas;
2. Uma variante intertextual capta ou subverte o texto-base;
3. O significado, na intertextualidade, constrói-se, em todos
os níveis do percurso gerativo do sentido, por meio de
semelhanças e diferenças, na sintaxe e na semântica, en-
tre a variante e o texto-base;
4. A invariabilidade intertextual converge, no nível discur-
sivo, para um núcleo figurativo, que contém figuras co-
muns ou invariantes, por meio das quais se concretizam
semelhantemente os antropônimos, os cronônimos e os
topônimos do texto-base e da variante;
5. Mantém-se, no nível discursivo, um tema comum para o
texto-base e as variantes; 15
Intertextualidade e conto maravilhoso

6. A tipologia das variantes intertextuais liga-se ao modo de


o enunciador reagir à palavra do outro, assumindo-lhe a
palavra e/ou o ponto de vista;
7. Podem-se homologar as relações entre os textos às rela-
ções entre os termos constituintes do quadrado semiótico.
Para poder desenvolver tal proposta, refletimos sobre a imita-
ção, prática que, observada pela tradição da análise literária, subsidia
a comunicação intertertextual. Não se trata de uma imitação simples.
“É impossível, porque fácil demais e, portanto, insignificante, imitar
diretamente um texto. Pode-se imitá-lo apenas indiretamente”
(Genette, 1982, p. 91). A imitação indireta é o pré-requisito para a
transformação do sentido intertextual e constituinte dele.
Todas as variantes intertextuais assimilam o texto-base, por
isso este pode ser reconhecido naquelas; elas fazem isso ao confir-
mar o texto-base ou ao confrontar-se com ele. Se o confirmam, apre-
sentam, com o texto-base, uma relação de implicação, de comple-
mentaridade. Se se confrontam com ele, apresentam uma relação de
oposição: de contrariedade ou de contraditoriedade.
Greimas (1989, p. 364-5), seguindo uma longa tradição, pro-
jeta o quadrado semiótico, que é “a representação visual da articula-
ção lógica de uma categoria semântica qualquer”. Nele, explicitam-
se as relações mínimas e fundamentais do significado; a relação s¹/s²,
que se baseia em termos que “manifestam de algum modo o mesmo
traço, duas vezes presente sob formas diferentes,” gera os termos
contrários; a relação s1/s1, e s2/s2 que se baseia na negação de um
termo por outro, gera os termos contraditórios.
Os termos s1 e s2, termos contraditórios, por sua vez, impli-
cam, respectivamente, s2 e s1, que, assim confirmados, justificam a
oposição inicial; s1 e s2 mantêm, portanto, com s2 e s1 uma relação de
implicação, por meio da operação de asserção.
Duas operações de negação resultam em duas operações de
asserção sobre s¹ e s², que, por sua vez, mantêm entre si a relação de
oposição básica da construção do significado. Representa-se esse
conjunto de relações, que se encaixam no nível fundamental do per-
16 curso da construção do sentido, pelo quadrado semiótico:
Introdução

s1 s2

relação de contrariedade
relação de contraditoriedade
relação de complementaridade

A nossa hipótese é que essas relações entre os termos constitu-


intes do quadrado semiótico podem-se homologar às relações entre
os textos.
Vê-se, portanto, o texto, como um objeto semiótico, que une
expressão e conteúdo, entendendo-se o conteúdo como o percurso do
significado que é subjacente à expressão, qualquer que seja o nível em
que ela se manifeste. Vê-se, ainda, o texto, como um produto polifônico,
em que se entrecruzam diferentes entonações de diferentes vozes.
Não interessa o que Balzac disse a respeito do seu texto, mas,
sim, persegue-se, ad infinitum, a instância a quo do percurso gerativo
do sentido, o que se postulou como meta: o que o texto diz e como
diz o que diz. Quer-se entender como e por que as vozes ora se
hostilizam, ora confluem, provocando ora subversões, ora captações.
Quer-se examinar as relações intertextuais entre os efeitos de sentido
e os mecanismos empregados para sua construção. Quer-se avaliar a
manutenção ou o desvio de posturas axiológicas fundamentais; a as-
similação ou a alteração das seqüências narrativas do enunciado e da
enunciação; a confluência ou a discrepância entre as modalizações
do fazer e do ser; as semelhanças ou as diferenças entre os recursos
de persuasão do enunciador para manipular o enunciatário; as seme-
lhanças ou diferenças de percursos figurativos ou temáticos. Procu- 17
Intertextualidade e conto maravilhoso

rando entender essa heterogeneidade mostrada e não-marcada, como


um procedimento de argumentação, sustentado tanto pela imanência
discursiva, como por valores ideológicos, manifestados na relação
intertextual, quer-se captar a enunciação, nos seus movimentos de
simulação e dissimulação, tentando-se reconstruí-la pelo exame des-
sa prática discursiva, que é a intertextualidade. Quer-se contribuir,
quem sabe, para o estudo da intertextualidade no quadro da Semiótica.
Texto-base é, portanto, a concretização do que Greimas chama
“instância da produção intertextual segundo o fazer emissivo”. As
variantes intertextuais são, por sua vez, os textos concretizadores do
que Greimas chama “estruturas interpretantes da intertextualidade,
segundo o fazer receptivo” (Greimas, 1986, p. 122).
Ao observar uma variante intertextual, o analista não se deve
prender, portanto, à expressão dessa heterogeneidade mostrada. O
texto deve ser desbastado de suas significações aparentes, e, então,
vai-se (re)construindo o percurso percorrido em termos de relações,
das mais simples e abstratas às mais complexas e concretas. Aí, sim,
examina-se a expressão, relacionada ao conteúdo.
As marcas intertextuais mostradas no plano da expressão con-
figuram-se, portanto, como absolutamente não-gratuitas, por ser ge-
radas na imanência discursiva, por refletir formações discursivas, por
revelar intenções do sujeito da enunciação.
“Fora do texto não há salvação”. Esse slogan greimasiano não
entra em choque com esse procedimento de análise que, desde a
imanência, considera o outro texto, o texto-base, na construção das
relações significativas, porque não estamos considerando não semio-
ticamente as condições de produção intertextual.
É bom esclarecer o que se entende por enunciação. São as con-
dições de produção do enunciado, que se enfeixam numa intenciona-
lidade de um sujeito que, à medida que orienta ideologicamente o
discurso, é também orientado pelas formações discursivas nas quais
se insere.
Aproveitando, ainda, as contribuições de Greimas, que nos
18 orienta a deduzir das relações narrativas a dinâmica do espetáculo do
Introdução

homem no mundo, observamos que as regras sintáticas, que orien-


tam essa dinâmica, apesar de mais autônomas que a semântica, não
são isentas de uma visão de mundo. Então, não podemos pensar que,
na intertextualidade, haja obrigatoriamente, similaridades sintáticas
e, facultativamente, dissimilaridades semânticas. Pensamos numa
sintaxe-semântica, ao tentar entender como e por que um texto capta;
como e por que subverte.

A atualização e/ou realização de qualquer virtualidade de ordem in-


tertextual acompanham-se de um processo modalizador (desta-
que nosso). Esse processo envolve os sujeitos do fazer emissivo e
do fazer receptivo, cuja interação produtiva do significado intertex-
tualizado será necessariamente função da co-presença de dois con-
textos de crenças e de consciências relativas (Greimas, 1986, p. 121).

Tal afirmação levou-nos a projetar uma seqüência narrativa


(SN) da enunciação como construção do enunciado intertextual, mas
isso não nos pareceu relevante. Vale é entendermos que há um sujei-
to que se deixa manipular pelo enunciado do texto-base, para querer
captar sintática e semanticamente esse enunciado. Vale é pensarmos
que esse sujeito pode ter outros quereres, como destruir esse enunci-
ado e/ou destruir até a enunciação pressuposta nesse enunciado. Vale
é descobrirmos que esse sujeito terá como performance a construção
de um objeto-valor contratual (paráfrase, estilização), ou um objeto-
valor polêmico (polêmica, paródia), caso entre em conjunção com os
valores propostos pelo enunciado do texto-base ou em conjunção com
seus próprios valores, discrepantes daqueles propostos. Vale é enxer-
garmos por trás de tais valores “os contextos de crenças e de cons-
ciência”, que se confirmam ou se hostilizam, ou que se confirmam,
mesmo quando se hostilizam.
Mas intertextualidade é, também, como dissemos, um proble-
ma de vozes. Aqui, resgatamos a semiótica russa, com Bakhtin, como
fizemos, e mantemos o apoio de Maingueneau. É necessário que acres-
centemos que os conceitos de polêmica, paródia e estilização, que
constituem parte da tipologia das variantes, vieram de Bakhtin, as-
sim como os conceitos de captação e subversão vieram de Maingue-
neau. 19
Intertextualidade e conto maravilhoso

Voltemos às vozes. Lembremos que todo discurso cita outro


discurso, logo, todo discurso é heterogêneo. O eu do discurso consti-
tui-se, obrigatoriamente, em função de um outro, o que define não só
a natureza social do discurso, como as coerções sociais que ele sofre.
Disso se deduz que, como em qualquer texto, na variante in-
tertextual, o plano da imanência é todo atravessado pelas forma-
ções ideológicas. Então, no nível fundamental, em que se espraiam
os termos contrários e contraditórios das relações categoriais bási-
cas, se definem dêixis que se axiologizam e se firmam timias, já se
subentende um ponto de vista do sujeito da enunciação. Quando o
sujeito cumpre ou não, no nível narrativo, um contrato fiduciário pro-
posto na manipulação, já se subentende um ponto de vista do sujeito
da enunciação. Cabe lembrar, porém, que, quando se espacializa,
actorializa e temporaliza tal ou qual percurso narrativo, quando ele é
inscrito no discurso temática ou figurativamente, revela-se em toda a
sua plenitude o ponto de vista do sujeito da enunciação.
Se o plano do conteúdo é todo atravessado pelas formações
ideológicas, será possível entender por que este discurso y, ou esta
variante intertextual y’ capta ou rejeita x ou x’.
Será, portanto, possível, entrever a ideologia da intertextuali-
dade, paradoxalmente, com a análise imanente, e, não, apesar dela.
Tentaremos essa conciliação a que Greimas nos instiga.
Fazendo uma retomada geral dos rumos teóricos deste nosso
trabalho, frisamos que, com Bakhtin, teremos fundamento para a aná-
lise das relações dialógicas, inerentes ao discurso e ocorrentes no
texto, entendendo que, no texto, elas significam, não se considerar-
mos apenas o plano de expressão, mas, este, ligado ao plano de con-
teúdo; significam, ainda, no enunciado do texto não pelos resgates
sintático-semânticos em si, mas pela relação desses resgates com as
duas enunciações pressupostas, a original e a outra, que a imita.
Com Bakhtin, teremos subsídios teóricos para explicar o ler
um texto, pensando em outro, ou seja, para a polifonia, para a
bivocalidade. Praticar-se-ão as duas vozes, os dois acentos, que con-
firmam e justificam a ambivalência discursiva e textual da intertex-
20 tualidade.
Introdução

O dialogismo bakhtiniano, que está, historicamente, na raiz do


conceito de intertextualidade, “elaborado no ambiente do estrutura-
lismo francês dos anos 60” (Greimas, 1986, p. 119), por J. Kristeva,
pode ser inserido no quadro teórico da Semiótica e é a esse rumo que
pretendemos nos atrelar.
Com Lotman e Eliade, buscaremos entender a identidade do
mito, pois, ao trabalhar com o conto maravilhoso, aproximamo-nos
do mito. Com Mieletínski, procuraremos entender as marcas do mito
no conto maravilhoso.
Com Greimas, novamente, procuraremos a micronarrativa
constante, tanto no texto-base, como nas variantes propostas e, até,
no mito bíblico da queda, com que Perrault dialoga; essa micronarra-
tiva, chamada configuração discursiva, recupera e re-significa o mo-
tivo, categoria de análise da teoria literária tradicional.
Esboçam-se, assim, os capítulos:
CAP. I – Justificativas teóricas dos procedimentos de análise
adotados para o discurso intertextual;
CAP. II – Análise do texto-base Chapeuzinho Vermelho, de
Perrault, nos níveis fundamental, narrativo e discursivo;
CAP. III – Cotejo das variantes intertextuais com o texto-base;
observação das transformações de sentido.
Esse é o caminho e o alvo deste trabalho. Se não atingirmos o
alvo, ou se o atingirmos com a obscuridade da imperfeição, teremos
a clareza do caminho palmilhado. É essa que nos interessa.

21
Justificativas teóricas dos procedimentos de análise adotados...

CAPÍTULO I

Justificativas teóricas dos procedimentos


de análise adotados para o discurso
intertextual

Serão comparadas variantes intertextuais de um texto-base:


Chapeuzinho Vermelho, de Grimm; Chapeuzinho Amarelo, de Chico
Buarque; Chapeuzinho Vermelho e o Lobo Torturador, de Alberto
Berquó e Fita Verde no Cabelo, de Guimarães Rosa, com Chapeuzi-
nho Vermelho, de Perrault.
As relações entre textos podem ser homologadas às relações
entre os termos constituintes do quadrado semiótico:

23
Intertextualidade e conto maravilhoso

PROTO-HISTÓRIA s1 s2 CONTRA-HISTÓRIA
TEXTO-BASE PARÓDIA

TRANS-HISTÓRIA DESISTÓRIA
ESTILIZAÇÃO POLÊMICA

relação de contrariedade
relação de contraditoriedade
relação de complementaridade

Considerando que as relações intertextuais podem ser mais


claramente entendidas por meio das oposições básicas de significa-
ção entre o texto de fundação vs. o texto de subversão, e seus respec-
tivos contraditórios, podemos traçar o seguinte quadro de relações,
já acoplado ao corpus proposto:

FUNDAÇÃO SUBVERSÃO
s1 s2
Perrault1 Buarque

CAPTAÇÃO NEGAÇÃO
Rosa, Grimm Berquó

1 Para efeito de denominação, chamaremos cada texto pelo nome do autor. Não nos refe-
24 rimos, porém, ao enunciador real, mas ao enunciador inscrito no discurso.
Justificativas teóricas dos procedimentos de análise adotados...

Consideramos Chapeuzinho Vermelho um discurso de funda-


ção, pois ele constitui o ponto de referência nessa rede intertextual e
representa, ao lado dos outros Contos da Mamãe Ganso, de Perrault,
o começo da literatura infantil; antes dele, havia a tradição oral, o
folclore, que ele incorpora, e a que ele dá novo rumo, re-significando
uma tradição; depois dele, funda-se outra tradição.
Chapeuzinho Vermelho, que está na raiz da cadeia intertextual
ora considerada, é um conto ímpar entre os contos maravilhosos e
apresenta o que Verón (1980, p. 116-9) chama “reconhecimento re-
troativo”, que se demonstra pela alta freqüência de suas retomadas
intertextuais, em linguagem de cinema, de música popular, de teatro,
além das amostras em linguagem verbal, que examinaremos.
Para a análise do discurso fundador, apoiamo-nos também em
Orlandi (1993, p. 13), que assim se expressa a respeito: “O que o
caracteriza como fundador (...) é que ele cria uma nova tradição, ele
re-significa o que veio antes e institui aí uma memória outra”.
Chapeuzinho Vermelho re-significa o que veio antes, em ter-
mos de tradição oral e de conto maravilhoso e institui uma memória,
o que é inerente ao texto-base da relação intertextual.
Falamos em subversão e em captação. Tomamos esses con-
ceitos de Maingueneau (1989, p. 102-4) que, ao considerar a imita-
ção uma das manifestações mais visíveis da heterogeneidade, biparte-
a em captação e subversão:

Realmente, quando um falante se apaga por trás do “locutor” de um


gênero determinado de discurso, e mostra que o faz, poderá preten-
der beneficiar-se da autoridade ligada a este tipo de enunciação ou
arruiná-la. No primeiro caso, quando há “captação”, a imitação incide
sobre a estrutura explorada e, no segundo caso, quando há “subver-
são”, a desqualificação desta estrutura ocorre no próprio movimen-
to de sua imitação.

Ao propor a captação como um dos dois tipos de imitação,


Maingueneau dá como exemplo quatro fascículos da Ação francesa
que captam as Provinciales, cartas escritas por Pascal, que atacavam
“os jesuítas e a moral excessivamente indulgente dos casuístas, ao 25
Intertextualidade e conto maravilhoso

mesmo tempo que assumiam a defesa dos jansenistas de Port-Royal”


(Ibidem, p. 77).
Maingueneau demonstra (Ibidem, p. 103) que tanto aquele
texto-base como suas variantes “recusam qualquer aliança entre (...)
Deus e o mundo, por um lado; a ordem (monárquica ou eclesiásti-
ca) e a democracia por outro”. Acrescenta: “Isso leva-as a rejeitar
violentamente as figuras que tentam unir os opostos: os casuístas e
os jesuítas para os jansenistas; os democratas cristãos, para a Ação
francesa”.
Ao propor a subversão como uma das duas espécies da imita-
ção, Maingueneau dá como exemplo de subversão de um gênero um
panfleto de Voltaire sobre a aparição de São Cucufin “aos capuchinhos
enfurecidos com um camponês que trabalha no domingo” (Ibidem,
p. 104). O panfleto “submete-se às coerções genéricas das narrativas
de milagres associados à vida de santos”, mas “ataca internamente o
discurso religioso”, pois destina-se “a lutar contra a proibição do tra-
balho dominical feita pela Igreja”.
Maingueneau, aí, explica o “mecanismo da subversão (...): as
condições genéricas são respeitadas, mas o texto as desqualifica em
sua própria enunciação (...). Por um lado, a imitação arruína o gênero
narrativa de milagres, e, com ele, o conjunto de suas condições de
possibilidade; por outro lado, legitima, através disso, sua própria
posição de enunciação” (Idem, ibidem, p. 104).
A subversão que propomos se relaciona não apenas à “subver-
são de um gênero”, mas à “subversão de um texto singular e de seu
gênero”, já que remete a um “texto autêntico, conhecido pelos desti-
natários” (Idem, ibidem, p. 102). Encaixam-se perfeitamente umas
às outras, como veremos, ao explorar a relação de contrariedade en-
tre s¹ e s² do quadrado semiótico.
Na verdade, a paródia contém uma diferença em relação ao
texto-base, na medida em que subverte seu enunciado e desqualifica
sua enunciação, propondo uma outra enunciação substituta, contrá-
ria, diferente. No entanto, essa diferença articula-se sobre uma seme-
26 lhança. Buarque constitui a subversão de Perrault.
Justificativas teóricas dos procedimentos de análise adotados...

A desistória, a polêmica, o pólo s¹ do quadrado, constitui, por


sua vez, outra história; nega a história do texto-base, porque a aban-
dona; nega a enunciação do texto-base, porque sua enunciação tem
seus próprios valores.
A contra-história, a paródia, constrói outro sentido, mas para a
mesma história do texto-base. A paródia constrói outro texto para e
pela mudança de sentido do texto-base. A polêmica constrói outro
texto pela ancoragem no texto-base e para a discursivização de seus
próprios valores (da polêmica). A paródia propõe valores opostos
aos do texto-base, tendo no texto-base sua mira enunciativa. A polê-
mica apresenta sua própria mira enunciativa, discursivizando seus
próprios valores.
A relação de contraditoriedade (s¹ vs. s² apresenta-se, portan-
to, como mais forte do que a relação de contrariedade (s¹ vs. s²). Nes-
ta, existe semelhança; naquela, a verdadeira negação.
A prática da intertextualidade, vista, portanto, como uma prá-
tica da ambivalência, ou da instabilidade do discurso, aponta-nos para
modalidades de variantes que respondem de maneira diversa a um
querer-fazer-crer do texto-base. A contra-história simula que o acei-
ta, para destruí-lo. A desistória não o aceita e assume isso, ao querer
abandoná-lo. A trans-história aceita-o, complementando-o.
Por trás desses movimentos, há, no discurso, um sujeito, cons-
truído e construtor, que reflete as formações discursivas, determinan-
tes de seus próprios quereres.
Nesse processo metalingüístico, que constitui a intertextuali-
dade, identificamos, portanto, marcas da enunciação nas marcas de
resgate do texto-base no enunciado-variante, ou seja, não são despi-
das de uma intencionalidade as semelhanças e as diferenças que se
tecem na construção do significado intertextual.
Entre as semelhanças, na sintaxe discursiva, estão o tempo, o
espaço e os atores, que se devem debrear semelhantemente, enunciva
ou enunciativamente; na sintaxe narrativa, está a manutenção de al-
guns elementos do algoritmo narrativo. No nosso caso, manteve-se
basicamente o encadeamento da seqüência canônica dos percursos 27
Intertextualidade e conto maravilhoso

narrativos, ou seja, um sujeito é manipulado para entrar em conjun-


ção com um objeto-valor, contramanipula-se para outros valores, tem
uma performance de ruptura e é, conseqüentemente, punido. Os ac-
tantes, portanto, também devem ser os mesmos.
Quanto às paixões, efeitos da modalização do ser, deve haver
um mínimo constante para as paixões simples, na relação texto-base/
variantes. Entre as nossas amostras, observam-se as mesmas paixões
de querer ser (desejo, curiosidade) vs. querer não ser (medo).
Quanto à organização temporal, nota-se, ainda, que, no corpus
inicialmente proposto, em todas as variantes, parte-se de uma conco-
mitância durativa ao marco referencial pretérito, em que se insere a
concomitância pontual, ou seja, parte-se da oposição era uma vez/
um dia.
Essa ancoragem num tempo de valor durativo e contínuo aju-
dou, aí, não só a construir o efeito de fato acontecido há muito, muito
tempo, como construiu, em uníssono para todos os textos, o efeito de
tempo maravilhoso.
As ações durativas subsumem, portanto, em todos esses tex-
tos, a ação pontual, construindo tal semelhança sintática uma das
marcas da relação intertextual do conto maravilhoso. Mantém-se a
ilusão de viver num tempo dos eventos, distanciado mais ainda do
aqui e do agora do ato de dizer, por meio dessa imprecisão sintática,
que se junta à imprecisão figurativa.
Ao explicar o processo segundo o qual o abstrato se concreti-
za, por meio das figuras, na construção do sentido, Greimas (1989, p.
187) chama genéricos os preenchimentos semânticos dessa impreci-
são figurativa:

Sendo a figurativização caracterizada pela especificação e a parti-


cularização do discurso abstrato, enquanto apreendido em suas es-
truturas profundas, a introdução de antropônimos, topônimos e de
cronônimos (que correspondem, respectivamente, no plano da sin-
taxe discursiva, aos três procedimentos constitutivos da discursivi-
zação: actorialização, espacialização e temporalização) que se podem
inventariar como indo dos genéricos (o “rei”, a “floresta”, o “inver-
28 no” – destaque nosso) aos específicos (nomes próprios, índices espa-
Justificativas teóricas dos procedimentos de análise adotados...

ço-temporais, datações etc.), tal introdução, repetimos, confere ao texto,


segundo se impõe, o grau desejável de reprodução do real.

O tempo, “fulcro da narratividade e da experiência vivida”


(Fiorin, 1994, p. 279), tinha, então, de ancorar tal narratividade numa
constante intertextual, como vimos. Ao lado do tempo, está a organi-
zação espacial. Essa organização, enunciva ou enunciativa, costuma
jogar a narrativa respectivamente para um alhures fora da situação
de enunciação, ou traz a narrativa para um aqui.
Tal organização sintático-espacial do discurso constitui uma
linha de semelhança necessária na intertextualidade. Texto-base e
variantes devem respeitar a mesma organização espacial, temporal
e actorial, isto é, ou a narrativa ancora-se num alhures, num então,
e num ele, ou num aqui, num agora e num eu. É necessária esta
analogia de simulacros, para que se reconheça o texto-base nas va-
riantes.
No nosso caso, todas as variantes apresentam um espaço tó-
pico, recortado por dêiticos espaciais que remetem a um alhures,
cujo preenchimento semântico faz configurar-se um alhures mara-
vilhoso. Somos sempre jogados para fora, muito fora da cena enun-
ciativa, por meio dessa indeterminação figurativa genérica desse
espaço enuncivo.
Esse movimento das variantes, no sentido de incorporar o tex-
to-base, deve apoiar-se numa superfície figurativa, ou, especifica-
mente, num núcleo comum ou invariante, em que estão os antropôni-
mos – lobo/menina, os cronônimos – uma vez, um dia, o topônimo –
bosque.
No nosso caso, o núcleo figurativo compõe a configuração dis-
cursiva da antropofagia do lobo mau sobre a menina ousada.
Subjacentes a essas estruturas figurativas constantes devem
estar as semelhanças temáticas e as semelhanças das relações pro-
fundas da construção do significado, não só as narrativas, como já foi
apontado, mas as consideradas primeiras, as fundamentais. A oposi-
ção mínima de significado será sempre a mesma para as variantes e
para o texto-base. 29
Intertextualidade e conto maravilhoso

No nosso caso, ainda, parte-se sempre de uma mesma oposi-


ção básica de significado, ou seja, alteridade vs. identidade, a que se
sobrepõem os universais vida vs. morte.
O nível fundamental, que reconstrói o momento primeiro, as
relações mais elementares da significação, aponta, na sintaxe, para
as relações mínimas de conteúdo; essas, ainda vistas estaticamente,
são as mesmas para o texto-base, T1, e para as variantes, T2.
Todas essas estruturas invariantes apontadas confirmam, en-
fim, a natureza modelizadora do texto-base, tomando o conceito de
Greimas (1986, p. 120). Elas também fazem a representação do ou-
tro no um, constituindo “as formas não-marcadas do mostrado, em
que o outro se deixa reconhecer sem marcação unívoca”, tomando os
conceitos já comentados de Authier (1984, p. 98). Esse outro não
está circunscrito a uma designação pontual; se o estivesse, testemu-
nharia uma descontinuidade dessa prática discursiva; assim, partici-
pando da construção do significado da variante, testemunha a conti-
nuidade, inerente à intertextualidade, ainda tomando conceitos de
Greimas.
Pela homogeneidade, a intertextualidade representa, portanto,
a heterogeneidade constitutiva. Essa homogeneidade pressupõe uma
permanência de direção na construção do significado do discurso.
As semelhanças constituem o pré-requisito indispensável para
a transformação do sentido. A transformação, por sua vez, desenca-
deia e define as variantes intertextuais, na medida em que lhes dá a
especificidade da paródia, da polêmica, da estilização, ou da paráfra-
se. Sobre a semelhança, constroem-se diferenças, construindo-se,
assim, o sentido na intertextualidade.
A configuração discursiva referida, que constitui, com a figu-
ra nuclear, ponto de convergência entre o texto-base e as variantes,
constitui também garantia para aquela permanência de direção entre
os discursos, constituindo, ainda, a nosso ver, uma isotopia figurati-
va intertextual.
Barros (1990, p. 87) assim se expressa sobre o conceito de
30 isotopia:
Justificativas teóricas dos procedimentos de análise adotados...

Isotopia: é a reiteração de quaisquer unidades semânticas (repetição


de temas ou recorrência de figuras) no discurso, o que assegura sua
linha sintagmática e sua coerência semântica.
Isotopia figurativa: caracteriza-se pela redundância de traços figu-
rativos, pela associação de figuras aparentadas e correlacionadas a
um tema, o que atribui ao discurso uma imagem organizada da rea-
lidade.

A isotopia determina a leitura, ou uma virtualidade finita de


leituras de um texto. A variante intertextual será, portanto, em princí-
pio, um texto bi-isotópico, pois admite a primeira leitura, que é a do
texto em si, e a segunda, que é a do texto relacionado ao texto-base,
ou vice-versa. Ao reconhecer o texto-base subjacente, o enunciatário
passa a interagir com a ambigüidade na construção do sentido ou
procede a uma desambigüização às avessas, como afirma Greimas
(1989, p. 247):

Do ponto de vista do enunciatário, a isotopia constitui um crivo de


leitura que torna homogênea a superfície do texto, uma vez que ela
permite elidir ambigüidades. Pode, entretanto, acontecer que a
desambigüização se faça, por assim dizer, às avessas, por exemplo,
no caso de uma leitura “intertextual” (M. Arrivé) em que um texto
se encontra encaixado em um discurso mais amplo.

Por trás de tudo, está a configuração discursiva, agente catali-


sador e confirmador da intertextualidade.
As variantes intertextuais devem apresentar, como uma cons-
tante, essas “micronarrativas (...) que podem ser inventariadas como
estereótipos” (Greimas, ibidem, p. 74) e cuja escolha pelo sujeito da
enunciação revela não só as formações ideológicas a que ele se sub-
mete, como também o “macro-universo do imaginário humano, onde
devem repousar os primitivos figurativos”, como sugere Silva (1992,
p. 10-1).
Essa figura invariante da configuração discursiva, um dos fa-
tores essenciais para a construção da variante intertextual, pode, en-
tretanto, não ser vista apenas como ponto de chegada do percurso
gerador do sentido, que vai do mais abstrato para o mais concreto. 31
Intertextualidade e conto maravilhoso

Ela pode ser vista, como toda a figuratividade, também nas forma-
ções mais profundas do sentido, como nota Brait (1994, p. 2) que,
discorrendo sobre a imanência do sensível, coteja Silva com Greimas,
entre outros.
No nosso caso, as variantes apresentam, com o texto-base, a
configuração discursiva da antropofagia do lobo mau sobre a menina
ousada, como dissemos; Perrault, por sua vez, apresenta, em relação
ao mito bíblico da queda do homem, a configuração discursiva do
fruto proibido, em que o lobo retoma a serpente. Acompanhando es-
ses movimentos, está o tema obsedante da ousadia punida e punível.
Acreditamos estar subjacente a essas configurações o que Sil-
va (1992, p. 33-4) chama “componente passional de nossa relação
com o mundo. (...) Essa visão passional (que) leva a uma visão mítico-
mágica do mundo. Tendemos a extravasar, a saltar os limites para
cima (visão apolínea) ou para baixo (visão dionisíaca)”.
Acreditamos poder estar aí o fundamento desta figura, tam-
bém obsedante, do imaginário coletivo, o lobo, ora apresentado, atra-
vés dos tempos, como um animal sagrado (visão apolínea?), ora
iconicizado, nos contos folclóricos, como a figura do perigo e do
desconhecido a ser evitado, sedimentando o papel actancial de quem
tenta e, sendo usado para punir, mata (visão dionisíaca?).

Na mitologia grega, o lobo aparece associado a dois dos maiores


deuses: Apolo e Zeus. Em Delphes, reverenciava-se uma imagem
de lobo em bronze. Como Rômulo e Remo, muitos dos filhos de
Apolo, nascidos de uma mortal, foram alimentados por lobas. Em
Roma, sabe-se do papel desse animal nas tradições relativas à ori-
gem da cidade. O lobo é também associado a Marte e seu nome é
resgatado pelos Lupercais (Lavedan, Paris, 1931, p. 59).

Importa que as variantes devem apresentar essa isotopia figu-


rativa intertextual, que, no nosso caso, representa-se pelas figuras do
lobo mau e da menina transgressora. Importa também lembrar que as
figuras, invariantes ou variantes, não são um revestimento superfici-
al do significado, construído desde a imanência discursiva, mas são
32 constituintes desse significado, desde a sua imanência.
Justificativas teóricas dos procedimentos de análise adotados...

Importa que não se deve “compreender a figuratividade por si


mesma, como uma dimensão autônoma do discurso, mas que é ne-
cessário, ao contrário, integrá-la a ele, como elemento constitutivo”
(Greimas, 1986, p. 91).
Insistimos nesse aspecto, porque ele subsidia a consideração
da construção do significado intertextual desde os níveis mais pro-
fundos do percurso gerador do sentido.
Deixemos as estruturas invariantes, não nos esquecendo de que
elas supõem, por si mesmas, uma transformação de sentido, intrínseca
ao ato de dizer intertextual. Vamos às estruturas-variantes propria-
mente ditas, que supõem as diferenças determinantes da especifici-
dade da polêmica, da paródia, da paráfrase e da estilização. Comece-
mos pela paródia e, para tanto, tomemos, inicialmente, Ruth Rocha,
que constitui uma variante intertextual de Casimiro de Abreu.

Ai que saudades...

Ai que saudades que eu tenho


Da aurora da minha vida,
Da minha infância querida
Que os anos não trazem mais...
Me sentia rejeitada
Tão feia, desajeitada,
Tão frágil, tola, impotente,
Apesar dos laranjais.

Ai que saudades que eu tenho


Da aurora da minha vida,
Não gostava da comida
Mas tinha que comer mais...
Espinafre, beterraba,
E era fígado e era fava, 33
Intertextualidade e conto maravilhoso

E tudo que eu não gostava


Em porções industriais.

Como são tristes os dias


Da criança escravizada,
Todos mandam na coitada,
Ela não manda em ninguém...
O pai manda, a mãe desmanda,
O irmão mais velho comanda,
Todos entram na ciranda,
E ela sempre diz amém...

Naqueles tempos ditosos


Não podia abrir a boca,
E a professora era louca,
Só queria era gritar.
Senta direito, menina!
Ou se não, tem sabatina!
Que letra mais horrorosa!
E pare de conversar!

Oh! dias da minha infância,


Quando eu ficava doente,
Ou sentia dor de dente,
E lá vinha tratamento!
Era um tal de vitamina...
Mingau, remédio, vacina,
Inalação e aspirina,
Injeção e linimento!
34 E sem falar na tortura:
Justificativas teóricas dos procedimentos de análise adotados...

Blusa de gola engomada,


Roupa de cava apertada,
Sapatinho de verniz...
E as ordens? Anda direito!
Diz bom dia pras visitas!
Que menina mais sem jeito!
Tira o dedo do nariz!

Que aurora! que sol! que vida!


Vai já guardar os brinquedos!
Menina, não chupe os dedos!
Não pode brincar na lama!
Vai já botar o agasalho!
Vai já fazer a lição!
Criança não tem razão!
É tarde, vai já pra cama!

Vê se penteia o cabelo!
Menina se mostradeira!
Menina novidadeira!
Está se rindo demais!
– Que amor, que sonhos, que flores,
Naquelas tardes fagueiras,
À sombra das bananeiras,
Debaixo dos laranjais!

Ruth Rocha. O mito da infância


feliz. 3a. ed. São Paulo: Summus
Editorial, 1983.
35
Intertextualidade e conto maravilhoso

Meus oito anos


Oh! souvenirs! printemps! aurores!
V. Hugo

Oh! que saudades que tenho


Da aurora da minha vida,
Da minha infância querida
Que os anos não trazem mais!
Que amor, que sonhos, que flores,
Naquelas tardes fagueiras
À sombra das bananeiras,
Debaixo dos laranjais!

Como são belos os dias


Do despontar da existência!
– Respira a alma inocência
Como perfumes a flor,
O mar é – lago sereno,
O céu – um manto azulado,
O mundo – um sonho dourado,
A vida – um hino d’ amor!

Que auroras, que sol, que vida,


Que noites de melodia
Naquela doce alegria,
Naquele ingênuo folgar!
O céu bordado d’ estrelas,
A terra de aromas cheia,
As ondas beijando a areia
36 E a lua beijando o mar!
Justificativas teóricas dos procedimentos de análise adotados...

Oh! dias da minha infância!


Oh! meu céu de primavera!
Que doce a vida não era
Nessa risonha manhã!
Em vez das mágoas de agora,
Eu tinha nessas delícias
De minha mãe as carícias
E beijos de minha irmã!

Livre filho das montanhas,


Eu ia bem satisfeito,
Da camisa aberto o peito,
– Pés descalços, braços nus –
Correndo pelas campinas
À roda das cachoeiras,
Atrás das asas ligeiras
Das borboletas azuis!

Naqueles tempos ditosos


Ia colher as pitangas,
Trepava a tirar as mangas,
Brincava à beira do mar;
Rezava às Ave-Marias,
Achava o céu sempre lindo,
Adormecia sorrindo
E despertava a cantar!
———————————————–
Oh! que saudades que tenho
Da aurora da minha vida,
Da minha infância querida
Que os anos não trazem mais! 37
Intertextualidade e conto maravilhoso

– Que amor, que sonhos, que flores,


Naquelas tardes fagueiras,
À sombra das bananeiras,
Debaixo dos laranjais!

Casimiro de Abreu.
Poesia. 3a ed. Rio de Janeiro:
Livraria Agir Editora, 1967.

Narrativamente, nota-se uma inversão da variante para o tex-


to-base, ou seja, em Casimiro e em Ruth, o programa narrativo bási-
co é de um sujeito que se automanipula para entrar em disjunção com
um objeto de valor. Em Casimiro, este objeto é a vida adulta, o que
supõe a volta à conjunção com a infância, tematizada como evasão;
em Ruth, este objeto é a infância, tematizada como prisão. A inver-
são narrativa faz-se pela contrariedade dos valores investidos nos
objetos.
A espacialização, a temporalização e a actorialização dos pro-
gramas narrativos faz-se, em Casimiro e em Ruth, por meio do mes-
mo sistema enunciativo, ou seja, um aqui espacial, um agora tempo-
ral e um eu actorial, relacionados a um lá, a um então e a um ele,
axiologizados como o universo da felicidade; verdadeiramente, em
Casimiro; na aparência, em Ruth.
Em Ruth, o cômico firma-se na ironia, que é fenômeno de sin-
taxe discursiva. Afirmam-se, no enunciado, as saudades, numa reto-
mada expressiva de Casimiro, mas negam-se essas saudades na enun-
ciação, em que se instaurou a crítica a uma infância ruim, a crítica à
não-crítica de Casimiro, que achava o céu sempre lindo,/ adormecia
sorrindo/ e despertava a cantar. Essa ironia produz uma dupla leitu-
ra que, nesse caso, é investida semanticamente pelo humor.
Essa contraposição entre enunciado e enunciação recobre, por-
tanto, uma diferença narrativa e uma diferença fundamental, visto
38 que o investimento tímico é alterado. Tomando como relação de opo-
Justificativas teóricas dos procedimentos de análise adotados...

sição categorial básica imaturidade vs. maturidade, temos o investi-


mento eufórico, em Casimiro, na imaturidade e, disfórico, na maturi-
dade. O inverso dá-se com Ruth.
Em Casimiro, afirma-se a imaturidade, enquanto o valor do
bem desejado; em Ruth, afirma-se a maturidade, enquanto crítica,
lucidez e competência, até, para rir da própria desgraça; aí está o bem
a ser desejado.
Em Casimiro, o enunciador dissimula-se na voz de um narrador
que se entrega, sem limites, à paixão que resulta de um querer ser,
crer não ser e saber não ser possível voltar à infância; num tom de
lamentação, são tecidas essas saudades.
Em Ruth, o enunciador simula, pela voz do narrador, que se
entrega a tudo isso, mas, na verdade, deixa-se ficar distante de tais
arroubos, mantendo também o enunciatário à distância necessária
para que ele possa, se não rir, sorrir. Menos chorar, como quer Ca-
simiro.
A paródia inverte, portanto, o texto-base, mas tem nele sua
mira enunciativa, o que significa que se mantém apegada a ele. São
os valores do texto-base que a orientam, por isso ela constrói o seu
discurso, para contrariar tais valores.
Na paródia, o texto-base, recontextualizado, provoca o con-
traste, que, por sua vez, provoca o efeito de sentido da comicidade.
Lê-se a infância, em Ruth, pensando-se na infância, em
Casimiro. “Vêem-se” as figuras “amargas” ou rebeldes, em Ruth,
pensando-se nas figuras doces e dóceis, em Casimiro.
Há, portanto, uma relação de pressuposição recíproca entre as
auroras da vida, isto é, a presença de uma aurora pressupõe a presen-
ça da outra.
Quando se lê, naqueles tempos ditosos/ não podia abrir a
boca... sabe-se que os tempos não eram ditosos. Contrapõem-se as
figuras, contrapõem-se as isotopias. Tudo isso fundamenta a recon-
textualização parodística.
Vejamos um outro bom exemplo desse contraste produzido
pela recontextualização: 39
Intertextualidade e conto maravilhoso

Chapeuzinho vermelho de raiva

– Senta aqui mais perto, Chapeuzinho. Fica aqui mais pertinho da vovó,
fica.
– Mas vovó, que olho vermelho... E grandão... Que que houve?
– Ah, minha netinha, estes olhos estão assim de tanto olhar para você. Aliás,
está queimada, hein?
– Guarujá, vovó. Passei o fim de semana lá. A senhora não me leva a mal,
não, mas a senhora está com um nariz tão grande, mas tão grande! Tá tão esquisito,
vovó.
– Ora, Chapéu, é a poluição. Desde que começou a industrialização do bos-
que que é um Deus nos acuda. Fico o dia todo respirando este ar horrível. Chegue
mais perto, minha netinha, chegue.
– Mas em compensação, antes eu levava mais de duas horas para vir de casa
até aqui e agora, com a estrada asfaltada, em menos de quinze minutos chego aqui
com a minha moto.
– Pois é, minha filha. E o que tem aí nesta cesta enorme?
– Puxa, já ia me esquecendo: a mamãe mandou umas coisas para a senhora.
Olha aí: Margarina, Hellmann’s, Danone de frutas e até uns potinhos de Knorr, mas
é para a senhora comer um só por dia, viu? – Lembra da indigestão do carnaval?
– Se lembro, se lembro...
– Vovó, sem querer ser chata.
– Ora, diga.
– As orelhas. A orelha da senhora está tão grande. E ainda por cima, peluda.
Credo, vovó!
– Ah, mas a culpada é você. São estes discos malucos que você me deu.
Onde já se viu fazer música deste tipo? Um horror! Você me desculpe porque foi
você que me deu, mas estas guitarras, é guitarra que diz, não é? Pois é, estas guitar-
ras são muito barulhentas... Não há ouvido que agüente, minha filha. Música é a do
meu tempo. Aquilo sim, eu e seu finado avô, dançando valsas... Ah, esta juventude
está perdida mesmo.
– Por falar em juventude o cabelo da senhora está um barato, hein? Todo
40 desfiado, pra cima, encaracolado. Que que é isso?
Justificativas teóricas dos procedimentos de análise adotados...

– Também tenho que entrar na moda, não é, minha filha? Ou você queria
que eu fosse domingo ao programa do Chacrinha de coque e com um vestido preto
com bolinhas brancas?
Chapeuzinho pula para trás.
– E esta boca imensa??? !!!
A avó pula da cama e coloca as mãos na cintura, brava:
– Escuta aqui, queridinha: você veio aqui hoje para me criticar, é?!

Mário Prata. In: Samir Meserani


Curi e outros. Redação escolar:
criatividade. 4a ed. São Paulo:
Discubra, 1973, 5a série.

Esse diálogo entre o lobo/avó e a menina constitui, em Perrault,


um dos momentos mais delicados da narrativa, quando a menina os-
cila na busca da própria identidade e sente, pela primeira vez, espan-
to e medo. Isso representa a volta do sujeito para a conjunção com a
submissão, ou seja, a vitória da alteridade sobre a identidade.
O parodiador reconstruiu esse momento num tom bufão. O
sujeito-menina, aqui, modaliza-se pela descontração, pela soltura, para
a conjunção com a liberdade. Do cotejo com o texto-base, essa va-
riante surge, então, como a construção de uma nova competência do
sujeito. Manipulada para querer brincar com o medo, que repousa na
memória intertextual, a menina constrói uma nova competência, com
a qual poderá quebrar estereótipos da repressão. O que acontece com
a menina, na seqüência narrativa do enunciado, acontece com o enun-
ciatário na seqüência narrativa da enunciação. É exatamente o opos-
to do sucedido em Perrault. Vejamos como isso se encaixa no nível
discursivo, em termos de isotopia.
Constrói-se a isotopia pela recorrência de temas e figuras, como
vimos. Ora, em Prata, contrapõem-se percursos de repressão, subja-
centes ao texto-base pressuposto, a percursos de liberação, subjacen-
tes à própria variante. 41
Intertextualidade e conto maravilhoso

Em se contrapondo percursos temático-figurativos, contra-


põem-se isotopias, o que produz o efeito de sentido de comicidade.
Comicidade e humor, fenômenos decorrentes da bi-isotopia,
podendo acontecer, portanto, dentro ou fora da paródia, constituem,
entretanto, marca discursiva desta última. Essa marca não aparece de
repente no discurso, mas é construída na variante, desde as relações
mais abstratas do nível fundamental. Trata-se de um percurso em que
o sentido é construído pela e para a inversão do texto-base.
Cumpre-se, pois, a paródia, discursivamente, pelo humor.2 Esse
humor, segundo Fiorin (1989, p. 83), “deriva da leitura (...) perten-
cente à segunda isotopia com base no plano de entendimento propos-
to pela primeira”.
Assim, também entendemos o humor na intertextualidade. A
leitura pertencente à segunda isotopia é aquela, em princípio, pro-
posta pela variante; a primeira leitura, que propõe um outro plano de
entendimento, é a do texto-base. Ambas as isotopias, não só super-
postas, mas contrapostas, justificam, especialmente por essa contra-
posição, a oposição inicial texto-base vs. contra-história.
É a oposição ethos vs. anti-ethos. Tal oposição, ao realizar-se
nessa contraposição de isotopias, força, na paródia, o tom de debo-
che, que se apresenta com traços de non-sense, de exagero, de incor-
poração do popular, tudo sob o crivo de uma ambigüidade relativiza-
dora.
Essa iconoclastia parodística dessacraliza o texto-base, brinca
com ele e, se o rebaixa, é para conduzi-lo ao baixo ambivalente
bakhtiniano, o baixo renovador. Confirma-se o canto paralelo, ver-
dadeira natureza da paródia que, por ser paralelo, ajuda na oposição
fundamental inicialmente proposta.

2 Segundo Gerard Genette, que trata a intertextualidade como um fenômeno de “hipertex-


tualidade”, em que “hipotextos” se unem a “hipertextos” não somente “por relações de
transformação e de imitação”, mas por “funções” denominadas “regimes”, a paródia se
insere na relação de transformação sempre, mas em dois regimes: o lúdico e o sério. No
lúdico, está a paródia propriamente dita; no sério, a “transposição”, ou a “paródia séria”.
42 Consideramos, no entanto, apenas a paródia humorística (1982, p. 33-7).
Justificativas teóricas dos procedimentos de análise adotados...

Reforçando, ainda, a referida oposição, podemos encontrar


subsídios em Bakhtin (1981, p. 168), que assim se expressa:

É diferente o que ocorre com a paródia (diferente da estilização).


Nesta, como na estilização, o autor fala a linguagem do outro, po-
rém, diferentemente da estilização, reveste essa linguagem de ori-
entação significativa diametralmente oposta à orientação do outro.
A segunda voz, uma vez instalada no discurso do outro, entra em
hostilidade com o seu agente primitivo e o obriga a servir a fins
diametralmente opostos.

Reforçando uma vez mais a referida oposição, podemos citar


ainda Sangsue (1994, p. 33-51) que, entre muitas, aponta estas afir-
mações de estudiosos da paródia:

A paródia é construída (...) por disjunção de procedimentos seme-


lhantes e conjunção de contrários (Tynianov, Rússia, 1921).
A paródia é vista como (...) uma repetição com uma distância críti-
ca, que marca mais a diferença que a semelhança (Linda Hutcheon,
New York, 1985).

A paródia firma-se nessa oposição, mas a ultrapassa com es-


tratégias próprias, que se firmam discursivamente como lúdicas, sa-
tíricas, humorísticas, burlescas, carnavalescas; escolhamos a qualifi-
cação que quisermos para a busca do riso.
Bakhtin (1987, p. 78) assim explica a força do riso sobre o
homem medieval:

O homem medieval sentia no riso, com uma acuidade particular, a


vitória sobre o medo, não somente como uma vitória sobre o terror
místico (“terror divino”) e o medo que inspiravam as forças da natu-
reza, mas antes de tudo como uma vitória sobre o medo moral que
acorrentava, oprimia e obscurecia a consciência do homem, o medo
de tudo que era sagrado e interdito (...), o medo do poder divino e
humano, dos mandamentos e proibições autoritárias, da morte e dos
castigos de além-túmulo, do inferno, de tudo que era mais temível
que a terra.

Parece-nos que a paródia, hoje, apesar das restrições feitas pelo


próprio Bakhtin à paródia moderna, representa o resgate mais palpá- 43
Intertextualidade e conto maravilhoso

vel daquele baixo ambivalente, daquela mutação grotesca, aponta-


dos por Bakhtin na Idade Média e no Renascimento; e as paródias de
Chapeuzinho Vermelho, de Perrault, especificamente, abrem essa
possibilidade da vitória sobre o medo. Veremos, oportunamente, por
quê. Consideremos a polêmica.

Paraíso

Se esta rua fosse minha


eu mandava ladrilhar,
não para automóvel matar gente,
mas para criança brincar.

Se esta mata fosse minha,


eu não deixava derrubar.
Se cortarem todas as árvores,
onde é que os pássaros vão morar?

Se este rio fosse meu,


eu não deixava poluir.
Joguem esgotos noutra parte
que os peixes moram aqui.

Se este mundo fosse meu,


eu fazia tantas mudanças
que ele seria um paraíso
de bichos, plantas e crianças.

José Paulo Paes. Poemas para


brincar. São Paulo: Editora Ática,
44 1990.
Justificativas teóricas dos procedimentos de análise adotados...

Trata-se de uma polêmica desta cantiga de roda:

Se esta rua, se esta rua fosse minha


Eu mandava, eu mandava ladrilhar.
Com pedrinhas, com pedrinhas de brilhante,
Só para, só para meu bem passar.

Por que polêmica? Numa primeira observação, notamos em


Paes uma disjunção que não existe no texto-base. Ou seja, Paes parte
de um programa narrativo de base semelhante ao texto-base:

Sl => (S2 ∩ Ov)

Sl – narrador | Sl – narrador |
S2 – namorada |>Texto-base S2 – criança |>Paes
Ov – beleza, luxo | Ov – paz, felicidade |
Ov – objeto-valor ∩ – conjunção

Entretanto, Paes distancia-se da seqüência narrativa do texto-


base, não por sua inversão, como na paródia, mas pelo desvio sintá-
tico-semântico, que cria outros percursos e que dá novo investimento
de valores aos objetos. Na cantiga de roda, busca-se a beleza e o
luxo; em Paes, a paz e a felicidade.
Partindo de uma oposição categorial básica sonho vs. realida-
de, vemos que o texto-base afirma o sonho e a variante nega-o, para
afirmar a realidade.
A dêixis positiva, sonho/ não-realidade, no texto-base, cor-
responde, na variante, à realidade/ não-sonho. Tais investimentos
tímicos contrários justificam a posição da desistória, no quadrado,
como negação da proto-história e asserção da contra-história.
Observemos a seqüência narrativa do enunciado da variante.
Notamos que, apesar de considerarmos S1 o próprio narrador, trata- 45
46
PAES

PN do narrador
Intertextualidade e conto maravilhoso

Manipulação Competência Performance Sanção

D1 → D2 Pressuposta Não se realiza


actante da narrativa” (Fiorin, 1994, p. 110).

Nar Nar ∩ querer que as


crianças
tenham paz e Manipulação Competência Performance Sanção
segurança
Nar → Nar ∩ querer Pressuposta Faz a denúncia Reconhe-
protestar da não-realização cimento
da
performance
se da seqüência narrativa do enunciado e, não, da enunciação, uma
vez que estamos diante de um narrador “em sincretismo (...) com o
Justificativas teóricas dos procedimentos de análise adotados...

Digamos que a variante e o texto-base apresentam duas se-


qüências narrativas do enunciado; uma, para o sonho, em que as
performances, semelhantemente, se realizam. Outra, para a realida-
de, em que apenas o texto-base apresenta uma performance que se
realiza, respondendo adequadamente à manipulação proposta. Expli-
ca-se, assim, a disjunção, inicialmente observada.
No texto-base, o narrador automanipula-se para, no sonho,
querer que a namorada entre em conjunção com o luxo e a beleza. No
sonho, o dizer é performativo; o dizer é o fazer. Quem nos dá a pista
de que tais percursos espacializam-se e temporalizam-se no sonho é
o próprio enunciado, ao propor a ação de ladrilhar a rua com pedri-
nhas de brilhante, figura que desencadeia a isotopia do impossível.
Nessa dimensão do impossível, tudo é possível. A performance rea-
liza-se pelo simples fato de ser enunciada e, além de realizar-se, é
bom que se acrescente, torna-se uma verdade que transcende o aqui e
o agora da enunciação, pelo simples fato de ter sido repetida anôni-
ma e infinitamente no repertório do nosso folclore.
Paes enuncia o sonho, mas quer a realidade; também as figu-
ras do discurso dão-nos a pista. Paes questiona implícita e ironica-
mente o texto-base, mas não lhe interessa destruir o onírico e o lírico
da cantiga de roda. Ele apenas ancora o enunciado no texto-base para,
determinando o lugar enunciativo, seu e do destinatário-criança, le-
gitimar, no universo infantil, o protesto.
Criam-se, dessa maneira, outros percursos temáticos, que cons-
troem o protesto e a crítica discursivos: o percurso temático da vio-
lência no trânsito, da destruição do ecossistema, da poluição, da limi-
tação lúdica da infância.
Assim sendo, o protesto justifica, no discurso, a disjunção nar-
rativa e é justificado por ela. Podemos deduzir que, quanto a marcas
discursivas, o riso está para a paródia, assim como o protesto está
para a polêmica.
O riso é iconoclasta e renovador; renova o mesmo enunciado,
“luta contra o estereótipo, contra a tendência dos discursos nobres de
se esclerosarem, de se tornarem restritos e insuficientes”, como afir-
ma Sangsue (1994, p. 43), ao comentar a obra de Bakhtin. 47
Intertextualidade e conto maravilhoso

O protesto, porém, dá as costas aos valores do texto-base, usan-


do-o para seus fins, para se legitimar. O enunciador, na polêmica,
pode, portanto, usar o texto-base para melhor fazer-se ouvir pelo enun-
ciatário pressuposto que, no caso de Paes, é a criança, ou para não se
fazer ouvir por um destinatário que poderia puni-lo. Nesse caso, cria-
se um mecanismo de ocultação discursiva por meio do texto-base; aí
se insere Berquó.
Maingueneau (1989, p. 103), como já foi dito, ao descrever o
mecanismo da captação intertextual, exemplificando com os fascícu-
los editados pela Ação francesa, que captam as Provinciales, cartas
de Pascal, com a mesma proposta ideológica de severidade mani-
queísta, afirma:

Em uma perspectiva de AD, não é suficiente dizer que a Ação fran-


cesa “utiliza”, por comodidade, um texto de prestígio para melhor
se fazer ouvir. Na realidade, esta captação é significativa: o desdo-
bramento da cena enunciativa explica-se pelo cuidado em se apoiar
sobre uma “cena fundadora”, compatível com a semântica desta for-
mação discursiva.

Para nós, Maingueneau estaria falando do pólo s2, a trans-his-


tória, constituída pela paráfrase e estilização. Essa utilização do tex-
to-base, entretanto, constituiria uma semelhança com o pólo s1, o que
subsidia a relação de oposição dos termos subcontrários, baseados
também numa semelhança.
Podemos concluir que, em princípio, a polêmica apresenta uma
semelhança com o texto-base; parece que parece o texto-base, por-
tanto não parece o texto-base. Não é, também, o texto-base, operando,
portanto, no eixo da falsidade. Essa semelhança projeta-se narrativa-
mente na semelhança sintática das seqüências narrativas, anteceden-
te ao tal desvio.
Na sintaxe discursiva, também há uma semelhança com o tex-
to-base; em Paes, espacializam-se, temporalizam-se e actorializam-
se os percursos narrativos no mesmo sistema enunciativo do texto-
base, em que um eu assume o ato de falar sobre a relação de seu
48 sonho com sua realidade.
Justificativas teóricas dos procedimentos de análise adotados...

As estratégias argumentativas apresentam, entretanto, proce-


dimentos contrários. A variante faz crer em si, para fazer não crer no
discurso criticado, no sentido de fazer duvidar da necessidade do
trânsito que mata, dos passarinhos sem árvore, dos esgotos nos rios.
– Por que tudo isso? – o discurso implicitamente pergunta e faz per-
guntar.
Assim a polêmica vai construindo o seu tema relevante, que é
o protesto. Paes nega a beleza e o luxo, valores eufóricos do texto-
base, ao propor uma paz e uma felicidade que apresentam, no discur-
so, figuras com os traços semânticos do mínimo necessário para a
sobrevivência. Um mínimo possível para a construção do paraíso de
bichos, plantas e crianças.
A figura comum ou invariante entre Paes e a cantiga de roda,
ou seja, a rua, expande-se, na polêmica, nas figuras da mata, do rio e
do mundo, que apresentam uma contraditoriedade em relação à figu-
ra da rua inicial, pois cumprem os fins da denúncia e do protesto,
contraditórios ao enlevo e ao sonho.
Tomemos outro exemplar de polêmica.

Boné vermelho

Não sou garoto, mas me chamam Boné Vermelho. Conforme a pressa ou a


preguiça, só Boné. É que não tiro meu boné da cabeça por nada desse mundo. Dur-
mo com ele, tomo banho. E vivo de calção, igual menino.
– Menina encapetada!
– Mulher-macho!
Anestesiado assim, meu escutador de lorotas nem liga.
Vou levar uns bolinhos para minha avó e mamãe obrigou o vestido. Fico
outra, nem me conheço.
– Que isso, Boné, feito moleque você não vai não. O que que a vovó vai pensar?
Boné escondido debaixo da saia, não pareço pelada.
– Não passe pelo centro da cidade, é perigoso, vou ficar preocupada – ma-
mãe me despachou com beijo na testa. 49
Intertextualidade e conto maravilhoso

Tem condução direta para Floresta Azul, o bairro da vovó. O perigo é o


Lobão, na hora da baldeação no centro. Ele anda solto na cidade, com aquela feiúra
de pêlo na cara, braço, peito. A televisão mostrou. Suspeitam culpa do bandido no
caso das menininhas seqüestradas. Sumiram. Mamãe cisma porque sou do mesmo
tamanho e a polícia soltou o bandido, sem prova contra. Não é só ela, toda mãe de
menininha vive com o coração apertado. Mas conheço a peça, nem chego perto.

*****

– Ei, Boné, gozado você de saia – um moleque do bairro.


– Coisa da mamãe, ela já entrou? Ficou me espiando, sabe como é.
– Não está no portão, não.
– Então segura aqui para eu pôr o boné.
– Ei, cheira gostoso, dá um? – levanta o guardanapo.
– Dou não, é para minha avó.
– Só um, Boné, deixa de ser ridica.
– Mas você some daqui – ela condiciona. – Senão vem mais gente e acaba
tudo.
– É só um – olho comprido na cesta.
– Só um, não dou mais não.
– Valeu, Boné – a boca cheia.
– Olha aí o meu ônibus.
– Chi, logo esse aí?
– Que que tem?
– Só dá periferia, olho de fome, seus bolinhos, ó ...– polegar para baixo –
adeus!
– Será...?
– Vai por mim, lá dentro tem até pivete.
– E o que que tem?
– O problema são os bolinhos, Boné, não sobra um, vai ver. Se fosse você,
50 eu ia no outro. E ainda passeia na cidade. Vai no outro, boba.
Justificativas teóricas dos procedimentos de análise adotados...

– Mamãe falou que não, o centro é perigoso.


– Que perigoso, a mesma coisa. Está tudo ruço, mas, se quer levar os boli-
nhos para a velha, tem de ser.
– Na cidade então não vão pedir? Besteira!
– A fome do centro não dói.
– Por quê?
– Ô Boné, nasceu hoje? Quem vai para a cidade é empregado, volta do
almoço, barriga cheia de angu ou farinha, mas cheia. O resto é periferia, passeia
pingente para tapear a fome. Vai, boba. Agora, neste aí que encostou.
– Também, o meu já foi, é o jeito.
– Então corre, Boné!
– Não conta para a mamãe, não, viu – ela se decide.
– Conto não, sou dedo-duro? Anda logo, o bicho é alto, cuidado aí, Boné,
corre, o homem não espera.
– Nossa, que ginástica subir neste estribo!

*****

Convencionou-se que o usuário é pernalonga. Gente do porte de Boné que


se vire, criança, deficiente. Motorista nenhum espera, como se o salário fosse por
quilômetro rodado.
– Mamãe bem que podia arrumar sacola, cesta é um desajeito, o vento quase
roubou o guardanapo. Ei, moço, espera aí, senão eu caio! – grita, a saia presa na
porta.
– Oi, minha menina, cuidado – o velho segura o braço de Boné. Ela dá um
tranco, apoiada no velhinho, e a saia escapole da porta, mas descostura na cintura. O
povo ri e ninguém ajuda, só o velho.
– Minha saia, a mamãe vai danar.
– Senta aqui, menina, sou magro, dá para apertar um pouco – ri, uma falha
de dentes, e arrasta, literalmente, Boné para o banco.
– Minha saia rasgou.
– A gente disfarça assim no cinto, ninguém vê – os dedos desajeitados do
velho roçam a carne de Boné. 51
Intertextualidade e conto maravilhoso

– O direto é mais vazio, não estou gostando nada deste ônibus; no outro
ninguém fica relando na gente – Boné resmunga, pensando que o velho, só porque
socorreu, não tem licença de encostar a perna na sua.
– Quantos anos tem a menina?
– Sou menor.
– O que que leva aí de gostoso? – os olhos amarelos, melosos.
– Bolinho para minha avó, quer um? – assim ficam quites.
Ele aceita, mastiga ruidosamente, o farelo cai no colo da menina, tão perto
estão. De boca cheia, bolo voando ao rosto dela:
– A menina é boazinha para a vovó, bolinho gostoso – ele engole o resto, o
gogó dançando vai-e-vem. – E para o vovô, – ri malicioso, a mão no joelho dela,
áspera, sebosa – vai ser boazinha também?
– O senhor não repare, vou indo – Boné tenta se erguer.
– Espera aí, menina, acaba caindo – ele força Boné contra o assento. – Quer
balinha? Compro para você.
– Não senhor, quero não, dá enjôo – responde sem olhá-lo, o rosto enrugado
quase tocando o seu, hálito bolorento.
– Eu seguro a cesta, a menina é tão pequena e a cestona grandona – ele dá
ênfase às duas últimas sílabas das palavras, a mão já apoiada sobre a dela, na alça.
– Pode deixar, eu levo – tenta se erguer, o velho quer lhe tomar os bolinhos.
– Fica aí menina, senão cai – as mãos agora nos ombros, descem pelos bra-
ços, grudentes, grossas.
Aquilo é apalpação de tarado, quem sabe o Lobão disfarçado. Resolve
escapulir na primeira parada, misturar-se ao povo e despistá-lo. Longe do seu bair-
ro, onde em cada canto domina o mistério, o segredo e a insegurança, Boné é nada,
descobre. Eta floresta de gente, prédio e carro, disfarce de armadilha, arapuca no
caminho!
– Toma aqui, moço, está trocado – passa rápido pela roleta.
– Ó diacho, a menina é arisca! – o velho nem tempo tem de reagir.
Boné some em meio à massa humana, um vai-e-vem de pessoas, onda viva
em esbarrões, arrebenta redemoinhos, empurra-empurra, paradas estáticas à ordem
52 do piscar verde ou vermelho.
Justificativas teóricas dos procedimentos de análise adotados...

*****

Pergunta daqui, pergunta dali, anda, cansa o calo no tênis novo, a multidão
alheia ao seu desamparo de criança travessa pega em flagrante. Enfim a notícia do
ponto do ônibus Floresta Azul.
(...)
A tarde avança, e ela se concede a lágrima solitária, lava a cara lambida de
vergonha.
– O que me avexa mais é eu carecer do jogo de cintura acostumado. Fiquei
babaca, foi só sair debaixo da saia de mamãe. Pareço caipira perdida na cidade,
capiau da roça.
Ampara Boné a referência ao ponto do ônibus, mas só agora alguém aponta
o rumo certo, salvação.
Na fila, a mulher de cabelo amarelo, boca roxa, saia apertada com fenda
enorme, encarada. Olho muito pintado passeia em Boné, de cima a baixo, de baixo
para cima.
Quer bolinho – pensa.
– Quero não, filhinha, quero conversar, só isso, vamos? – pega a menina
pelo braço, mas ela se retrai.
Pergunta de pai, mãe, moradia.
– Que que faz menina tão bonita, sozinha na cidade? Aposto que é muito
sabida, hein? – ela pisca um olho, cúmplice.
Não é órfã não, tem pai e mãe. Não emprega não, nem serviço leve, de
atender telefone ou menina de recado. Não senhora, estuda, não tem tempo, mora
longe. Mesmo assim, ambiente fino, moças bonitas, muita gorjeta, homens impor-
tantes, terno e gravata. Nem assim.
Não adianta ir lá ver, conhecer o lugar, sem compromisso. Não dá mesmo.
– Não posso ir com a senhora não, dona, obrigada, a pulseira é bonita, largue
meu braço, ô dona, não posso, de jeito nenhum, tchau, o meu ônibus...!
(...)
– Essa agora, a casa está fechada!
Sem vizinho para recado, notícia ou arrego, e escurece. Noite e medo co-
lam-se na pele de Boné, cismada com tudo, ângulos escuros, sombras, gato vadio,
ecos perdidos. 53
Intertextualidade e conto maravilhoso

Socorro nos fundos da casa, distância de olhos curiosos dos raros passantes,
de repente facínoras nas cismas da menina.
A avó naquela ponta de rua, tão só, pecado.
Fecha-se com o portão da frente, cuidando-se contra ruídos, um perigo aos
seus próprios sustos. Na ponta dos pés contorna a casa, o instinto fixo na varanda,
refúgio. E segura o grito batendo nos dentes: sob a janela do quarto ouve um zum-
zum. Ai, o coração revolteia na boca. Visita, ladrão, malfeitor? Penumbra lá dentro,
muito esquisito, assombrado.
Algo ordena cautela, sexto sentido. Um, dois, três, sete, nove, dez. Respira
fundo, apura o ouvido e a voz da avó responde. Mas fala esquisito, ansiado, como se
lhe faltasse o ar.
– Ai... por que... olhos grandes, arregalados?
Um grunhido responde, guincho, humano ou do outro mundo?
Boné, gelada de corpo inteiro, tapa com a mão o grito, pipoca arrebenta
vômitos na garganta.
– ... melhor te ver... – A fala rouca, chiada, cadeado nos pés da neta, pura
tremedeira.
– E... para que... narigão... tamanho?
– ... cheirar pimenta malagueta!
– Ai, machuca, não morde não! – a avó reclama num gemido.
Estão judiando da avó, é toda a compreensão de Boné. E se for o Lobão? De
repente menininhas só não chegam, avós morando longe, uma facilidade!
– Mas a minha vovozinha não. Nem Lobão e nem Lobinho, isso não!
Brotou do chão aquela raiva, energia pura, e subiu pelas pernas, arrebentan-
do cadeados, elétrica, encolhendo o medo, tímido, atrás de uma costela.
Ela entrou pela cozinha, derrubando a cadeira detrás da porta, aos gritos,
escandalosa, a arma possível.
Ainda viu o monstrengo, cabeludo, correr desajeitado para o banheiro. Aí o
azar dele: fechadura invertida, porque a avó se cansara de ver neto preso lá dentro,
agora cadeia.
– Ai Boné, é você, minha neta, que susto! – a avó fala, mão no peito,
54 descabelada, o olho saltado.
Justificativas teóricas dos procedimentos de análise adotados...

– Graças a Deus, vovó, graças a Deus! – Boné chora cachoeiras abraçada à


mulher.
– Ai minha neta, que coisa!
– Ele machucou a senhora, vovó? Está toda amassada, machucou?
– Não minha neta, já passou, foi só um susto, queria ouro.
– Que medo, vovó!
– Agora escute – a avó se recompondo. – Corra até o orelhão da esquina,
chame a polícia, aqui ficha e o número – escreveu num pedaço de papel higiênico.
– A senhora fica aqui sozinha? – Boné, apreensiva.
– Não tem perigo, o ladrão está preso.
Boné foi num pé e voltou no outro, um risco a avó na mesma casa com o
bandido.
– Vovó, lá não é a polícia, ninguém atende e polícia tem plantão direto, eu
sei – atropela as palavras, excitada.
– Mas foi? – a avó, já refeita. – Não faz mal, minha neta, não ia adiantar
mesmo, veja – aponta a porta aberta do banheiro – o danado fugiu.
– Fugiu?! Mas fugiu como, vovó? – perplexa.
– Eles são terríveis, profissionais em arrombamentos, veja só, quase nem
estragou a fechadura – a avó, tranqüila.
– E a senhora...?
– Depois daquele barulho todo, ele só queria distância daqui, passou feito
um raio por mim, soverteu.
Acalmada Boné com um daqueles chás que só avó da gente sabe a receita,
as duas até riram da coisa.
– Agora peço do orelhão um táxi para levá-la – a avó, decidida. – Você tão
pequena e longe de casa uma hora dessa. Ah, não vamos comentar com a mamãe,
preocupá-la à toa, não é? Eu também não conto que você passou pela cidade, digo
que demorou aqui, ficamos entretidas na conversa. Combinado, menina arteira?
– E se ele voltar, vovó, não tem medo? A senhora aqui, tão sozinha...!
– Que nada, estou acostumada. E os ladrões vão saber que a casa é pobre,
ouro só na minha boca, obturação. Aquele lá mesmo espalha a notícia – pisca
jovial. 55
Intertextualidade e conto maravilhoso

Olho brilhante e peito empinado, até bonita, a avó nem parecia a protagonis-
ta daquele episódio de horror. Admirada de tanta coragem, a neta resolveu atendê-la
e guarda o segredo até hoje.

Alciene Ribeiro Leite. Um


jeito vesgo de ser. São Paulo:
Editora do Brasil, 1988.

Vejamos como se constrói a seqüência narrativa do enunciado


desse conto para verificarmos se o desvio narrativo da polêmica se
comprova.

56
BONÉ VERMELHO - Seqüência Narrativa do Enunciado

PN da menina

Manipulação Competência Performance Sanção

D1 → D2 Pressuposta Não se realiza PN do velho


PN da estranha
Mãe Menina ∩ querer entrar em
conjunção com a
submissão

Manipulação Competência Performance Sanção

PN do velho
D1 → D2 Pressuposta S1 → (S2 ∪ Ov) → (S2 ∩ Ov) PN da estranha

Amigo Menina ∩ querer

menina
menina
liberdade
liberdade

PN da avó
Manipulação Competência Performance Sanção

Avó → Avó ∩ querer Pressuposta S1 → (S2 ∪ Ov) → (S2 ∩ Ov) Reconhecimento


liberdade
Justificativas teóricas dos procedimentos de análise adotados...

57
Intertextualidade e conto maravilhoso

Em Perrault, no PN da menina, há, na manipulação, um desti-


nador (mãe), que manipula um destinatário (Chapeuzinho), para que
ela deva manter a conjunção com a submissão; a competência é pres-
suposta; a performance não se realiza. O PN da menina desdobra-se
num outro PN, em que aparece uma contramanipulação, ou seja, o
lobo manipula Chapeuzinho para que ela queira buscar a conjunção
com a liberdade. A competência é pressuposta, a performance reali-
za-se. O PN do lobo corresponde à sanção do PN da menina. Há,
portanto, entre o texto-base e a variante um paralelismo narrativo
sintático inicial.
Em Boné,3 os PNs do velho e da estranha montam-se como
seduções mal sucedidas, diferentes daquela do lobo de Perrault. Por
isso, têm a pretensão de, por meio do resgate intertextual, recuperar a
figura-símbolo da sanção e da advertência, mas fracassam. Isso, por-
que, como dissemos, a sedução só é proposta, mas a menina não a
aceita. Paira, no entanto, o mal-estar causado a Boné pelo velho e
pela estranha, o que faz com que se mantenha a sanção negativa.
Se a menina tivesse competência para entender o que viu na
casa da avó e se isso lhe confirmasse o valor-liberdade, com o qual se
contramanipulara, poderíamos afirmar que ambos os PNs, da menina
e da avó confluiriam na sanção, constituindo o PN da avó uma san-
ção cognitiva positiva para o sujeito menina. Uma auto-avaliação
positiva, tomando a avó como parâmetro. Mas isso fica apenas na
enunciação, pois o leitor entende o “colóquio” da avó com o do “lobo”.
Inauguram-se, assim, novos percursos temáticos: a negação
da estereotipia do papel da mulher na sociedade; a crítica à mediocri-
dade; a defesa, ainda que velada, do homossexualismo feminino;4 o
protesto contra a discriminação sexual da mulher idosa; a denúncia da
violência nos transportes coletivos urbanos; a denúncia do desrespeito
com as crianças; a denúncia contra a facilidade da prostituição infantil.

3 Todas as amostras textuais são designadas pelos seus autores; esta, parece-nos, entretan-
to, que pede seu próprio nome.
4 O discurso faz essa defesa velada do homossexualismo feminino por meio da figura
inicial de uma menina que “vive de calção, igual menino”, que, sem boné se sente “pe-
58 lada”; a mãe obriga-a a “usar vestido”; as pessoas gritam-lhe: “Mulher-macho!”
Justificativas teóricas dos procedimentos de análise adotados...

Desvia-se, discursivamente, a desistória em relação ao texto-


base. Esse desvio produz novos valores e é por eles produzido. A
desistória dá as costas para a proto-história; toma emprestados, do
texto-base, os efeitos de realidade, procurando garantir a sua relação
com o mundo.
Constitui-se, assim, a negação. Em Boné, por exemplo, nega-
ção fundamental, pois nega-se a submissão; negação narrativa, pois
há uma apropriação e o respectivo desvio da seqüência narrativa do
enunciado do texto-base; negação discursiva, pela proposição de ou-
tros valores ideológicos.
A negação discursiva, na polêmica, pela proposição de outros
valores ideológicos, resulta numa contraditoriedade de papéis figu-
rativos. “A correlação das figuras com a articulação temático-narra-
tiva correspondente” que, segundo Greimas (1986, p. 90), representa
os papéis figurativos, define essa contraditoriedade de papéis figura-
tivos na polêmica.
Vejamos.
Em Perrault, o sujeito que manipula e sanciona na instância
narrativa, que é determinado como um ele enuncivo pela sintaxe dis-
cursiva, converte-se no ator lobo, que subsume o papel temático de
traiçoeiro, perigoso matador de meninas ingênuas.
Em Boné, o sujeito que manipula e sanciona na instância nar-
rativa, que é determinado como um ele enuncivo pela sintaxe discur-
siva, converte-se no ator Lobão, que exerce o papel temático de
estuprador, que o discurso amenizou na figura do seqüestrador.
Lobão, figura frágil, que não se completa no percurso, por-
que, na verdade, é negada pela própria “interação” com a avó, sua
cúmplice, desdobra-se no velho tarado e na mulher aliciadora. Tra-
ta-se do mesmo papel temático, mas estas figuras não coexistem
com aquele lobo intertextual; elas desencadeiam percursos figura-
tivos que se desviam do texto-base. Para que estas figuras se cum-
pram, elas precisam afastar o lobo do bosque, assim como Boné
afasta Chapeuzinho Vermelho; se não o fizessem, ficariam ridícu-
las e risíveis. 59
Intertextualidade e conto maravilhoso

Se houvesse pressuposição recíproca entre as figuras, isto é, se


se lesse a história dessa avó, pensando naquela de Perrault, se se lesse
a história de Boné, pensando em Chapeuzinho Vermelho, haveria um
contraste entre os fins e os meios. Desse contraste, nasceria o riso.
Os sujeitos menina e lobo, portanto, não se constroem mais
com o mesmo sentido do texto-base, constituindo, com tais figuras
do texto-base, falsas semelhanças. Trata-se de outros atores, inves-
tindo os mesmos actantes.
A espacialização, a temporalização e a actorialização apresen-
tam o mesmo sistema enuncivo que o texto-base, mas, também, figu-
rativizam-se diferentemente. A Floresta Azul desvia-se semicamente
do bosque, este tempo com marcas “urbanas e modernas” não recon-
textualiza aquele tempo impreciso. Boné Vermelho dá as costas para
Chapeuzinho Vermelho, para discutir e afirmar seus próprios valores.
Na verdade, a polêmica usa o texto-base para produzir seu pró-
prio significado. Ela o “respeita” para ancorar-se nele, mas essa an-
coragem tem finalidades próprias. Em Boné, a intenção foi produzir
literatura infantil com ataques a injustiças sociais dos nossos dias.
Com base em Bakhtin, cumpre-nos destacar que paródia e po-
lêmica constituem o chamado discurso de orientação vária; estilização
e paráfrase, o discurso de orientação única, o que ajuda a confirmar
o quadrado proposto.
Falamos de uma polêmica que, ao constituir um discurso
polifônico por excelência, apresenta uma dupla leitura inscrita na si-
tuação de enunciação construída pelo texto; produz a isotopia do pro-
testo, ao negar a do maravilhoso.
Apoiados nessa polifonia da polêmica, que, no nosso caso,
enuncia o maravilhoso, para negá-lo na enunciação, acreditamos po-
der afirmar que existe ironia na polêmica. Ironia que, por sua vez,
deixa de ser prerrogativa da paródia. Ironia sem humor, que ajuda a
construir o tema relevante da polêmica: o protesto.
Em se tratando de ironia e humor, queremos insistir em que o
humor, intertextualmente reconhecido como prerrogativa da paródia,
60 constitui um fenômeno de contrariedade de isotopias. Isso não aconte-
Justificativas teóricas dos procedimentos de análise adotados...

ce na polêmica em que há, digamos, uma contraditoriedade e, não,


uma contrariedade de isotopias.
A polêmica constrói-se sobre uma ironia, o que é causa e con-
seqüência de sua negação do texto-base. “Quando se afirma no enun-
ciado e se nega na enunciação, estabelece-se a figura que a retórica
denominou antífrase ou ironia” (Fiorin, 1989, p. 56).
Convergindo, portanto, para a mesma configuração discursi-
va, ou seja, a antropofagia do lobo mau, localizamos, na polêmica,
uma contrariedade tímica em relação ao texto-base, o que justifica
sua posição no quadrado. Axiologizam-se contrariamente valores, a
dêixis positiva é trocada; em Boné Vermelho, é investida de valor
positivo a dêixis identidade/não-alteridade.
O enunciador manipula o enunciatário, na polêmica, para que
este reflita sobre pontos do contexto sócio-histórico, que o circunda,
e os critique.
A mira enunciativa da polêmica não está no texto-base, mas
no contexto sócio-histórico que a envolve e a constitui. Por isso, as
figuras do texto-base resgatadas na polêmica transparecem mais uma
visão de mundo do enunciador e, menos, o texto-base.
A polêmica, com o comprometimento intenso de protesto e de
denúncia, fragiliza, como vimos, as próprias figuras.
As figuras da polêmica perdem a “eficácia (a credibilidade) das
representações ‘concretas’”. O discurso polêmico não consegue esta-
belecer a “densidade de conexões (...) entre as figuras”. Não é um dis-
curso que “produz um efeito de iconicidade”.5 São figuras falsas.
Na polêmica, o enunciador faz crer para fazer não crer. Eis
outra ironia.
Antes de encerrar nossas reflexões sobre a polêmica, observe-
mos esta afirmação de Bakhtin (1981, p. 171-2):

Quando a paródia sente uma resistência substancial, um certo vigor


e profundidade na palavra do outro que parodia, torna-se complexi-

5 Tomamos a caracterização de Greimas (1986, p. 90-1) para o discurso figurativo, a fim


de apontar essa fragilização figurativa da polêmica. 61
Intertextualidade e conto maravilhoso

ficada pelos tons da polêmica velada. Esta paródia já soa de modo


diferente. A palavra parodiada assume uma ressonância mais ativa,
resiste à intenção do autor. A palavra parodiada torna-se interna-
mente dialógica.6

Tomamos uma curiosa variante de Grimm publicada inicial-


mente na revista Veja (4/1/1995, p. 63). A revista comenta, na seção
chamada SOCIEDADE, “o best-seller do momento”, da autoria de
James Finn Garner que, em 1994, publicou nos Estados Unidos e na
Inglaterra, Politically correct bedtime stories, título traduzido pela
revista como Contos de fada politicamente corretos.
No referido artigo, é atribuída à obra de Garner uma “provocati-
va ironia que enquadra as histórias infantis na camisa-de-força dos ab-
surdos engendrados pelo patrulhamento politicamente correto” (p. 62).
Concordamos com o articulista, no que diz respeito a essa va-
riante de Grimm e a consideramos, outrossim, um exemplar do que
Bakhtin chamou paródia complexificada pelos tons da polêmica ve-
lada.
Vamos ao conto, já em edição brasileira.

Chapeuzinho vermelho

Era uma vez uma menina chamada Chapeuzinho Vermelho que morava com
sua mãe ao lado de uma floresta. Um dia, a mãe de Chapeuzinho lhe pediu para
levar uma cesta de frutas frescas e água mineral à casa de sua vovozinha – não
porque isso fosse trabalho de mulher, vejam só, mas porque era um ato generoso e
que propiciava à filha uma visão comunitária sobre a vida. Tenho a acrescentar que
sua vovozinha não estava doente, mas em plena saúde física e mental, sendo total-
mente capaz de tomar conta de si mesma como adulta madura que era.
E assim Chapeuzinho Vermelho partiu de sua casa, com sua cesta, floresta
adentro. Muita gente acreditava que a floresta era um lugar cheio de presságios e

6 A polêmica velada refere-se a que ocorre na intertextualidade, em que o outro é repre-


sentado, mas não citado. Na polêmica aberta, circunscreve-se o outro abertamente, ci-
62 tando-o.
Justificativas teóricas dos procedimentos de análise adotados...

perigos, e nunca punha os pés lá. Chapeuzinho Vermelho, no entanto, em sua sexu-
alidade emergente, tinha confiança em si e nenhuma argumentação freudiana tão
óbvia a intimidava.
No caminho para a casa da vovozinha, Chapeuzinho foi abordada por um
lobo, que lhe perguntou o que havia na cesta. Ela respondeu: “Alimentação natural
e saudável para minha avó, que é uma adulta amadurecida e, obviamente, capacita-
da a cuidar de si mesma”.
O lobo respondeu: “Sabe, querida, não é seguro para uma menina andar pela
floresta sozinha”.
Chapeuzinho retrucou: “Considero sua observação sexista e extremamente
ofensiva, mas vou ignorá-la, por você desempenhar um papel tradicional de pária da
sociedade. Agora, se você me desculpa, preciso seguir caminho”. E Chapeuzinho
foi andando pela estrada afora.
Como todos os quadrúpedes que habitam as florestas, e que não conseguem
se organizar política e socialmente, os lobos são desprovidos do pensamento linear
ocidental e, por isso mesmo, têm uma visão imediatista sobre tudo que os cerca.
Sendo assim, o lobo não conseguia pensar em Chapeuzinho Vermelho sem dissociá-
la da imagem de algumas batatas e um bom molho ferrugem!
E foi pensando nisto que ele pegou um caminho mais curto para a casa da
vovó. Mal chegou, foi logo comendo a velhinha. Uma ação inteiramente válida para
o carnívoro que era. E, então, desvinculado de noções rígidas e tradicionalistas do
que é masculino e feminino, vestiu as roupas da vovó e se meteu na cama.
Chapeuzinho Vermelho entrou na casinha e disse: “Vovó, trouxe alimentos
desnatados e sem sal para lhe homenagear como matriarca sábia e nutridora que é”.
Da cama, o lobo disse suavemente: “Chegue mais perto, filha, para que eu te
veja melhor”.
E Chapeuzinho respondeu: “Oh, ia me esquecendo que, como os morcegos,
a senhora é oticamente cega. Mas, vovó, que olhos grandes você tem!”
“Eles muito viram e muito perdoaram, minha querida”.
“Vovó, que nariz grande você tem – relativamente, é claro e, certamente,
bonito a seu modo”.
E o lobo respondeu com falsa modéstia: “Precisa ver o resto...”.
“Vovó, que dentes grandes você tem!” 63
Intertextualidade e conto maravilhoso

E o lobo disse: “Estou contente com quem eu sou, e com o que sou!” Dito
isso, saltou da cama e agarrou Chapeuzinho Vermelho, pronto para devorá-la. A
menina ficou assustada com o lobo vestido daquele jeito, mas evitou fazer qualquer
comentário ou dizer qualquer piada preconceituosa e de mau gosto sobre a opção
sexual do animal, mas pôs-se a gritar devido à deliberada invasão de seu espaço
pessoal.
Seus gritos foram ouvidos por um lenhador que passava (ou técnico flores-
tal, como ele mesmo preferia ser chamado). Quando entrou na cabana e viu a luta, o
lenhador tentou intervir. Mas, quando ergueu o machado, Chapeuzinho e o lobo
pararam.
“E o que você pensa que vai fazer?”, perguntou Chapeuzinho.
O lenhador piscou e tentou responder, mas as palavras não vieram.
“Invadindo nosso espaço como um homem de Neandertal! Confiando em
armas em lugar do seu próprio pensamento!”, exclamou. “Sexista! Especieísta!
Falocentrista! Açougueiro de árvores! Como ousa supor que mulheres e lobos não
podem resolver seus problemas sem a ajuda de um homem?!”
Ao ouvir o discurso passional de Chapeuzinho Vermelho, a vovó pulou de
dentro da boca do lobo, pegou o machado do lenhador e cortou-lhe a cabeça.
Superado esse contratempo, Chapeuzinho Vermelho, vovó e o lobo senti-
ram uma certa comunhão de propósitos. Decidiram então estabelecer uma comu-
nidade alternativa, baseada no respeito mútuo e na cooperação, e viveram juntos
na floresta, felizes para sempre.

James Finn Garner. Contos de fadas


politicamente corretos. Tradução e
Adaptação de Cláudio Paiva. Rio
de Janeiro: Ediouro, 1995.

A palavra do outro apresenta, aí, um certo vigor e profundida-


de? Sim, ela orienta toda a seqüência narrativa do enunciado-varian-
te, até ser subvertida na sanção final. Trata-se da mesma história sub-
vertida, então, por essa anulação de uma sanção do texto-base e
64 proposição de outra. Mas isso Grimm já tinha feito com Perrault.
Justificativas teóricas dos procedimentos de análise adotados...

Aqui, constitui-se paródia e, não, paráfrase, pela referida hos-


tilização de vozes, causa e efeito do confronto de enunciações; pela
contraposição de isotopias, que produz o humor, pela dessacralização
que, em princípio, se faz do texto-base, pelos investimentos tímicos
contrários, pela contrariedade dos valores escolhidos para entrar em
conjunção com o sujeito, pela contrariedade de papéis figurativos,
que subsumem os atores, como, por exemplo, o papel de vítima que,
em Garner, é trocado, pois o lenhador acaba sendo a vítima que sofre
a espoliação da própria vida.
Numa leitura mais atenta, desponta-se-nos, entretanto, a ver-
dadeira oposição básica de valores que fundamenta toda a enuncia-
ção, ou seja: politicamente correto vs. politicamente incorreto.
É sobre essa oposição mínima que se constrói, na verdade,
todo o significado do discurso em questão. Há uma intencionalidade
de protestar contra a camisa-de-força do politicamente correto. An-
cora-se esse protesto em Chapeuzinho Vermelho, de Grimm. Garner
usa Grimm para a discursivização de seus próprios valores.
Nesse sentido, Garner abandona, dá as costas a Grimm, depois
de tê-lo usado. Grimm tem mais vigor, na medida que abriga Garner,
mas, por isso mesmo, é negado em maior profundidade. Garner não
parece conto maravilhoso e não é. As figuras de Garner, emprestadas
por Grimm, constituem meros instrumentos para a enunciação afir-
mar seus valores, isto é, axiologizar positivamente o politicamente
incorreto, ironizando o politicamente correto.
Observemos, agora, o eixo dos subcontrários, em que se en-
contram s1, Negação, Polêmica, e s2, Captação. Observemos a capta-
ção, por meio da paráfrase e da estilização, Grimm e Rosa, respecti-
vamente.7
É bom lembrar que, tanto s², quanto s1 e s2 e, até, s¹, constituem
discursos bivocais, porque são considerados fora de um contexto
monológico, isto é, “em um só discurso ocorrem duas orientações
significativas, duas vozes” (Bakhtin, 1981, p. 164). Mas é bom lem-
brar ainda que, no caso das variantes, trata-se de uma bivocalidade
representada, ou seja, uma heterogeneidade discursiva mostrada, mas 65
Intertextualidade e conto maravilhoso

não-marcada. O pólo s2 nega s2. Uma negação, em princípio, discur-


siva. Bakhtin assim se expressa sobre a estilização:

O estilizador usa o discurso de um outro como o discurso de um


outro e assim lança uma leve sombra objetiva sobre esse discurso
(...) o importante para o estilizador é o conjunto de procedimentos
do discurso de uma outra pessoa precisamente como expressão de
um ponto de vista específico. Ele trabalha com um ponto de vista do
outro. Por isso certa sombra objetiva recai justamente sobre o ponto
de vista, donde resulta que ele se torna convencional. A personagem
sempre fala a sério.

Acreditamos que o fato discursivo da seriedade apontada por


Bakhtin na estilização, aproxima-a da polêmica numa relação de se-
melhança e afasta-a da paródia, como sua negação. Constitui-se, as-
sim, a trans-história, cujo exemplar, na estilização, é Guimarães Rosa.
Na estilização, como será demonstrado, há uma captação do
texto-base; captação fundamental, narrativa e discursiva. Acredita-
mos, então, que usar o discurso de um outro como o discurso de um
outro é captar-lhe as estruturas fundamentais, narrativas e discursi-
vas. Mas, e aquela leve sombra lançada, o que seria?
Quanto à estilização, essa leve sombra constitui, em princípio,
a transfiguração do texto-base, e aí está a sua diferença em relação à
paráfrase. Transfiguração enquanto transformação de figuras, que
preenchem os mesmos percursos temáticos do texto-base, acrescen-
tando-lhes outros. Mas transfiguração, essencialmente, como recria-
ção.
Como a figurativização é constituinte de todo o processo de
construção de sentido, as complexificações figurativas da estilização
têm suas raízes na sintaxe discursiva. Na sintaxe e na semântica dis-
cursivas há, como na sintaxe e na semântica narrativa e fundamental,
semelhanças e diferenças entre a variante e o texto-base. Essas comple-

7 Para o estudo da paráfrase e estilização, apresentaremos análises dos textos de Grimm e


66 Rosa no terceiro capítulo. Aqui, limitar-nos-emos à teorização.
Justificativas teóricas dos procedimentos de análise adotados...

xificações espelham as diferenças, ou seja, as transformações do sen-


tido desde os níveis mais profundos. Lembremos que, na variante
intertextual, quando falamos de transformação de sentido, envolve-
mos o texto-base como um dos pólos de quaisquer relações que se
estabelecem.
Não há, na estilização, confronto de enunciações como na pa-
ródia e na polêmica. Fundamentalmente, os valores relacionam-se na
mesma timia.
Na estilização, capta-se a seqüência narrativa do enunciado do
texto-base, mas com alterações; a sintaxe não fica isenta das altera-
ções semânticas.
Complexificam-se, assim, na variante, as entoações do texto-
base, cuja enunciação se mantém intacta, ao ser incluída no discurso
estilizador, para que se cumpram os fins da estilização.
Ao invés do choque de tons, o acréscimo. Relativizam-se e
transformam-se figuras, ao serem incluídos novos percursos temáticos.
Mantém-se a debreagem única, mas embreagens vão instabilizar esse
sistema. Acaba-se construindo um plano de expressão diferente da-
quele do texto-base, apesar de figuras e temas comuns, subjacentes
no discurso.
A estilização mantém, com o texto-base, portanto, mais uma
relação de conformidade que de confronto; confirma o texto-base,
liga-se a ele na mesma dêixis, legitima-se ao legitimá-lo.
Na sintaxe fundamental da variante, as operações de negação
e asserção de valores devem ser as mesmas do texto-base, isto é, os
mesmos valores devem ser negados e afirmados, podendo ocorrer,
na variante, uma complexificação, como, por exemplo, a geração de
um termo complexo, que é a soma de s¹ com s².
Na sintaxe narrativa, podem ocorrer, na variante, alterações
“supérfluas”, como variar, em relação ao texto-base, o tipo de mani-
pulação, o tipo de sanção, o modo de construir a competência do
sujeito.
As paixões simples devem ser as mesmas na variante e no tex-
to-base, isto é, o sujeito de estado deve manter os mesmos “laços 67
Intertextualidade e conto maravilhoso

afetivos ou passionais com o destinador, que o torna sujeito, e com o


objeto, a que está relacionado por conjunção ou por disjunção”.8
As paixões simples, aliás, constituem fator de reconhecimento
do texto-base em qualquer variante. Assim, se o sujeito está modal-
mente qualificado pelo medo, no texto-base, esse medo tem de ser
resgatado na variante, podendo sofrer variações tensivas, isto é, po-
dendo caminhar da tensão para o relaxamento.
O que não pode ocorrer, na cadeia intertextual, é, saltar, por
exemplo, da avareza, paixão definida pelo arranjo sintagmático /não
querer não ser/, no texto-base, para o medo, paixão definida pelo
arranjo sintagmático /não querer ser/, na variante. A cadeia do senti-
do intertextual não apresenta flexibilidade para saltar de uma paixão,
no texto-base, para outra, na variante. O efeito de sentido construído
pela paixão é fator de isomorfia entre a variante e o texto-base, con-
firmando o status modelizador deste último, como afirmou Greimas
(1986, p. 120).
Se o enunciador da variante axiologiza positivamente, ao in-
vés do medo, a coragem, construindo as relações de significação,
num eixo de pressuposição recíproca, mantém-se a isomorfia, reco-
nhece-se o texto-base na variante que o contraria. É o que acontecerá
com Buarque, como veremos. Até na polêmica as paixões simples
constituem fator de isomorfia entre a variante e o texto-base.
Não nos esqueçamos, entretanto, de que nada é gratuito; a va-
riante testemunha, também pela axiologização das paixões, as for-
mações ideológicas em que o discurso se insere.

O relativismo cultural incontestável confirma o que dissemos sobre


os efeitos de sentido: sobre o fundo geral de dispositivos modais
mais ou menos complexos – “atitudes” ou “estados” –, cada socie-
dade traça os conteúdos de sua configuração patêmica particular que,
interpretada como uma grelha de leitura social conotativa, tem, por
meta, entre outras, facilitar a comunicação intersubjetiva e social.
(Greimas, 1983, p. 16)

68 8 Tomamos os conceitos de Barros (1988, p. 62), que explicam as paixões.


Justificativas teóricas dos procedimentos de análise adotados...

Por tudo isso, vemos quanto é importante, para a estilização,


que opera na faixa da confluência de vozes com o texto-base, manter
com ele, na semântica fundamental, a mesma axiologização das dêixis
e, conseqüentemente, das paixões.
O procedimento relevante da estilização, que é a transfigura-
ção estética, não é um fenômeno de superfície, portanto, como nada
o é na intertextualidade.
Reflitamos mais um pouco sobre essa construção do sentido
intertextual, que tem sua realização no conteúdo e não na expres-
são.
A configuração discursiva, que constitui um ímã de conver-
gência semântica entre os textos, representado num núcleo constante
de figuras, em torno do qual gravitam variações temático-narrativas,
é muito bem esquematizada por Barros (1988, p. 121-2). Tomando
como referência o conto da Branca de Neve e o da Bela Adormecida,
Barros mostra a projeção de um núcleo figurativo, em que aparecem
a figura comum ou invariante e a respectiva variação figurativa; de-
pois, a variação temático-narrativa.
No caso de Perrault e de suas variantes intertextuais, isto é, no
caso da intertextualidade, aproveitamos o núcleo figurativo. A ele,
porém, temos de acrescentar um núcleo temático e um núcleo narra-
tivo, com suas respectivas variações.
Branca de Neve e Bela Adormecida, ambos contos maravilho-
sos, apresentam a configuração discursiva do dedo furado, essa mi-
cronarrativa que migra de um texto para outro.9 Somam-se a ela as
variações temático-narrativas. Elas não constituem, entretanto, a prá-
tica da intertextualidade como a compreendemos aqui. Não há um
texto-base, como não há uma variante intertextual. Trata-se de duas
histórias diferentes, ou de duas invariantes.
Tanto na paródia e na polêmica, como na paráfrase e na
estilização, há, portanto, repetimos, um núcleo figurativo, um nú-

9 Greimas (1983, p. 60) fala das migrações intertextuais dos motivos, ao falar em configu-
ração discursiva. 69
Intertextualidade e conto maravilhoso

cleo temático e um núcleo narrativo, aos quais se acrescem as va-


riantes. Isso é condição para a construção do sentido na intertextua-
lidade.
A esse núcleo comum, agregam-se as relações de contradito-
riedade, contrariedade ou conformidade de figuras, bem como de
valores, com os quais os sujeitos entram em junção (conjunção ou
disjunção). Dependendo da relação, especificam-se as variantes em
polêmica, paródia, paráfrase ou estilização, respectivamente.
As relações de conformidade com o texto-base embasam a
paráfrase e a estilização; as de contraditoriedade, a polêmica; as de
contrariedade, a paródia.
Das relações entre enunciação e enunciado podem-se também
visualizar caminhos para o estudo da intertextualidade.
Um desses caminhos está na distinção entre estilização, pará-
frase e pastiche.
Sant’Anna (1985, p. 41) afirma que “a paráfrase conforma e a
estilização reforma”, acrescentando que a paráfrase seria alguma coisa
“diferente de zero, ou seja, um valor quase imperceptível de diferen-
ça, enquanto a estilização corresponderia ao valor 1”. Afirma tam-
bém, na mesma fonte (p. 39), que “a estilização está para o jogo
assim como a paráfrase está para o ritual. No ritual, a participação
individual é mínima. Há uma hierarquia e uma linguagem estabeleci-
das. No jogo há uma flexibilidade, e o resultado é imprevisto, apesar
das regras que cercam os elementos”.
Dizemos que, na estilização, há maior requinte na enunciação
para captar o texto-base, para se revelar e/ou se ocultar no enunciado.
Na paráfrase, à medida que se apagam distâncias, fortalecem-se mi-
metismos no plano da expressão e, conseqüentemente, no conteúdo,
ou ocorre o inverso, que é mais verdadeiro.
Grimm constitui uma paráfrase com desvio, que se opõe à pa-
ráfrase “total” ou pastiche, em que a imitação se faz pela total assimi-
lação narrativa, discursiva e textual, deixando as variações apenas
70 para “ingênuas” trocas lexicais que, como sabemos, não são gratui-
Justificativas teóricas dos procedimentos de análise adotados...

tas. Bem diz Maingueneau (1981, p. 105) que “o pastiche ideal é


falso”.10
Maingueneau, ainda, na mesma citação, sugere que o produtor
de pastiches exerce dons miméticos particulares, lembrando, antes,
que há índices de distanciamento entre o pastiche e o texto-base,
para que aquele seja reconhecido como tal.
Falemos da seqüência estilização/paráfrase/pastiche. Observa-
mos que ela se constrói pela confirmação do ethos do texto-base e
pela cumplicidade com a mesma formação discursiva. Aplicando-
lhe, ainda, o conceito de trabalho da prática intertextual, observamos
que ela apresenta um decrescendum nesse sentido.11
Bakhtin (1981, p. 167-8) afirma: “A estilização estiliza o esti-
lo do outro no sentido das tarefas próprias do autor”, o que abrange-
ria o pólo s2, a trans-história, na sua totalidade. Aproveitamos essa
medida econômica, ao colocar no quadrado inicial apenas “estilização”
no pólo s2.
A paráfrase, uma transformação fraca do texto-base, não per-
manece, entretanto, nas semelhanças simplesmente. Há semelhanças
e diferenças em todos os níveis da construção do significado desse
discurso, ainda que as diferenças sejam no modo do parecer.
Na paráfrase, a variante capta o texto-base na sintaxe e na se-
mântica dos níveis fundamental, narrativo e discursivo do percurso
gerador do sentido, como será demonstrado no terceiro capítulo.
Haverá variações nos percursos figurativos e nos percursos
temáticos. Figura jamais é ornamento, bem sabemos, mas, no caso
de Grimm, por exemplo, que é paráfrase de Perrault, a diferença está

10 Holanda define pastiche como “obra literária ou artística imitada servilmente de outra”
(1986, p. 1279).
11 Compagnon assim se expressa sobre o “trabalho da citação”: “A noção de trabalho é
rica: é a potência em ato, o poder simbólico ou mágico da palavra, é o carmen ou a prece
(os monges das ordens contemplativas dizem que seu trabalho é a prece). (...) Eu traba-
lho a citação como uma matéria que me habita; e, tomando-me, ela me trabalha. (...) A
reescritura é uma realização, não apenas no sentido musical de uma tradução. O trabalho
da citação, apesar de sua ambivalência ou por causa dela, é uma produção de texto,
working paper. (...) A citação trabalha o texto, o texto trabalha a citação”. Citação, para
nós, refere-se à variante intertextual (1979, p. 36-7). 71
Intertextualidade e conto maravilhoso

justamente aí; a transformação de sentido faz-se pela “ornamenta-


ção” das figuras tomadas do texto-base; uma ornamentação não-gra-
tuita, que acaba “aliviando os percursos temáticos”, como veremos.
Importa que, na proto-história e na paráfrase, há uma única
isotopia figurativa e uma única isotopia temática, que subsumem,
por sua vez, as mesmas relações sintáticas e semânticas em todos os
níveis.
As alterações acabam restringindo-se ao modo do parecer do
enunciado, como no caso de Grimm, com o famoso caçador que mata
o lobo, libertando a avó e a menina de dentro da barriga do animal.
Pedimos permissão para desvendar isso no terceiro capítulo, quando
a paráfrase e a estilização, confirmadoras do texto-base, terão suas
amostras textuais exibidas e seu discurso analisado. Nossa intenção,
neste capítulo, foi “centrar fogo” nas diferenças.
Voltemos às relações da enunciação com o enunciado que, pa-
rece-nos, dão uma luz para essas relações entre variantes intertextuais
e texto-base.12
Podemos antever algumas dessas luzes.
A intertextualidade é um fenômeno de enunciação enunciada,
na medida em que o texto-base, que se recupera na produção da va-
riante, se enuncia no enunciado intertextual.
A paráfrase resulta de um acordo entre a enunciação enuncia-
da e o enunciado enunciado, na medida em que o texto-base, implíci-
to na enunciação, é assimilado pelo enunciado da variante intertex-
tual. Esse acordo resolve-se, portanto, na captação dos níveis
fundamental, narrativo e discursivo do texto-base.
A polêmica resulta de um conflito entre a enunciação enuncia-
da e o enunciado enunciado, na medida em que o texto-base, implíci-
to na enunciação, é rejeitado pelo enunciado da variante intertextual;
rejeitado no modo do ser e no modo do parecer da polêmica. Esse
conflito resolve-se na negação do texto-base em todos os níveis; ne-
gação que culmina, ou origina-se, no nível discursivo, em que se

72 12 Confronte-se, para o estudo da enunciação enunciada, Fiorin (1994, p. 38-42).


Justificativas teóricas dos procedimentos de análise adotados...

tematizam a crítica, a denúncia, o protesto, em que se fragilizam as


figuras intertextuais, em que acontece, enfim, uma contraditoriedade
de isotopias, que gera a ironia, sem humor.
A paródia resulta de um conflito entre enunciação enunciada
e enunciado enunciado, na medida em que o texto-base, implícito na
enunciação, é rejeitado pelo enunciado da variante intertextual; rejei-
tado, entretanto, no modo do ser e não no modo do parecer da paró-
dia. Esse conflito resolve-se na subversão do nível fundamental e
narrativo do texto-base; subversão no nível discursivo, que destrói a
enunciação do texto-base, organizando-se, no discurso, através da
contraposição de isotopias, que gera o humor.
A estilização resulta de um acordo entre enunciação enuncia-
da e enunciado enunciado, na medida em que o texto-base, implícito
na enunciação, é assimilado pelo enunciado da variante intertextual.
Esse acordo resolve-se na captação do níveis fundamental, narrativo
e discursivo do texto-base. Acrescenta-se, entretanto, à captação, a
recriação, de maneira que sucedem alterações expressivas, que cons-
tituem causa e efeito de alterações no conteúdo do discurso. O texto-
base recriado fica, também, ideologicamente confirmado, ainda que
uma leve sombra recaia sobre ele.
Tal tipologia das variantes intertextuais desencadeia, no enun-
ciatário, alterações da modalidade veridictória que, em nosso corpus,
numa relação com o conto maravilhoso, podem-se assim esquemati-
zar:
1. paráfrase-verdade: parece conto maravilho e é;
2. polêmica-falsidade: não parece conto maravilhoso, nem é;
3. paródia-mentira: parece conto maravilhoso, mas não é;
4. estilização-segredo: não parece conto maravilhoso, mas é.
Passemos a refletir um pouco mais sobre outro item da inter-
textualidade, ou seja, a modalização intertextual. Pode-se entender a
modalização intertextual proposta por Greimas (1986, p. 121), em
termos de que a proto-história, o texto-base, programa a variante,
dando um saber fazer ao sujeito dessa segunda enunciação. 73
Intertextualidade e conto maravilhoso

Essa estrutura de programação do texto-base apresenta à va-


riante os percursos sintáticos e semânticos a serem captados ou sub-
vertidos na construção de um novo objeto-valor.
O objeto construído, o enunciado da variante intertextual, é,
como vimos, bivocal por excelência, tendo sua existência determina-
da pela interação com a enunciação do texto-base, a qual pode fazer
parte de outro código de valores sócio-históricos e culturais, o que
resultaria na hostilização referida.
Queremos crer que, na intertextualidade, estamos, pois, diante
de uma estrutura actancial, que apresenta dois sujeitos: o destina-
dor (S1) e o destinatário (S2) situados todos os dois na dimensão
cognitiva, isto é, um destinador-programador e um destinatário-re-
alizador. O destinador, normalmente encarregado de modalizar o
destinatário, não se preocupa em lhe transmitir um querer fazer,
nem um dever fazer, contentando-se em investi-lo da modalidade
do saber fazer.
O destinatário, já, por si, modalizado pelo querer fazer, vem
buscar o “saber” no enunciado do texto-base, para construir seu obje-
to-valor, o enunciado da variante intertextual.
A aceitação do contrato do sujeito da primeira enunciação pelo
sujeito da segunda expressa-se na semelhança referida, que ajuda a
construir o conteúdo de todas as variantes. As diferenças entre as
variantes e o texto-base corresponderiam a diferentes performances
desse sujeito da enunciação.
Perrault, ou a proto-história, que não tem um fazer persuasivo
específico, que não tem imperativos, que não é prescritivo, como
uma receita culinária, desencadeia, na intertextualidade, um progra-
ma narrativo de construção de objeto-valor.
É para exemplificar essa modalização intertextual que anexa-
mos Bandeira.
A Senhorita Vermelho constituiria a sanção de Chapeuzinho
Vermelho, atores, que são, de um mesmo discurso, o discurso inter-
textual, ratificando, assim, a enunciação como espaço semiotizado,
74 em que se estabelece um percurso narrativo.
Justificativas teóricas dos procedimentos de análise adotados...

Chapeuzinho Vermelho era a mais solteira das amigas de Dona


Branca e uma das poucas que não era princesa. A mais solteira é um
eufemismo irônico, não existe grau de “solteirice”, o enunciador quis
dizer a única “encalhada”. Mas, quando se lê a história dessa “tal” de
Senhorita Vermelho (segunda isotopia) com base no plano de enten-
dimento proposto pelo texto-base (primeira isotopia) e se verificam
rupturas intertextuais (Então, essa Senhorita é aquela menininha?!),
desata-se o humor.
Confirmam tudo isso a própria sobrevivência de Chapeuzinho
à terminalidade absoluta proposta por Perrault; a compulsão autofá-
gica, figurativizada por comer as guloseimas da própria cestinha; os
suspiros nostálgicos pela lembrança do lobo, que brincam com a fi-
gura da vítima proposta por Perrault.

Senhorita Vermelho

Chapeuzinho Vermelho era a mais solteira das amigas de Dona Branca e


uma das poucas que não era princesa. A história dela tinha terminado dizendo que
ela ia viver feliz para sempre ao lado da Vovozinha, mas não falava em nenhum
príncipe encantado. Por isso, Chapeuzinho ficou solteirona e encalhada ao lado de
uma velha cada vez mais caduca.
Com a cestinha pendurada no braço e com o capuz vermelho na cabeça,
Dona Chapeuzinho entrou com o lacaio atrás. Dona Branca correu para abraçar a
amiga.
– Querida! Há quanto tempo! Como vai a Vovozinha?
– Branca!
As duas deram-se três beijinhos, um numa face e dois na outra, porque o
terceiro era para ver se a Chapeuzinho desencalhava.
– Minha amiga Branca! Por que você tem esses olhos tão grandes?
– Ora, deixa de besteira, Chapéu!
– Ahn... quer dizer... desculpe, Branca. É que eu sempre me distraio... – atra-
palhou-se toda a Chapeuzinho.– Sabe? É que eu estou sempre pensando na minha
história. Ela é tão linda, com o Lobo Mau, tão terrível, e o Caçador, tão valente... 75
Intertextualidade e conto maravilhoso

– Até que a sua história é passável, Chapéu – comentou Dona Branca, meio
despeitada. – Mas linda mesmo é a minha, que tem espelho mágico, maçã envene-
nada, bruxa malvada, anõezinhos e até caçador generoso.
– Questão de gosto, querida...
Dona Chapeuzinho sentou-se confortavelmente, colocou a cestinha ao lado
(ela não largava aquela bendita cestinha!), tirou um sanduíche de mortadela e pôs-se
a comer (aliás, Dona Chapeuzinho tinha engordado muito desde aquela aventura
com o Lobo Mau).
– Aceita um brioche? – ofereceu a comilona, de boca cheia.
– Não, obrigada.
– Quer uma maçã?
– Não! Eu detesto maçã!
(...)
Dona Branca jogou para trás os cabelos cor de ébano e tomou uma decisão:
– Vou convocar uma reunião de todas nós!
– Boa idéia! Chame os Príncipes também!
– Os Príncipes não adianta chamar. Estão todos gordos e passam a vida
caçando. Além disso, príncipe de história de fada não serve para nada. A gente tem
de se virar sozinha a história inteira, passar por mil perigos, enquanto eles só apare-
cem no final para o casamento.
Chapeuzinho concordou:
– É... Os únicos decididos são os caçadores. Eu devia ter casado com o
Caçador que matou o Lobo...
Dona Branca tocou a campainha de ouro. Imediatamente, Caio, o lacaio,
estava à sua frente.
– Às ordens, Princesa.
– Caio, monte o nosso melhor cavalo. Corra, voe e chame todas as minhas
cunhadas de todos os reinos encantados para uma reunião aqui no castelo. Depressa!

Pedro Bandeira. O fantástico mis-


tério de Feiurinha. São Paulo: Edi-
76 tora FTD, 1987.
Justificativas teóricas dos procedimentos de análise adotados...

Não podemos deixar de falar de outra constante entre todas as


variantes, ou seja, o prazer da cumplicidade com que elas seduzem o
enunciatário; a cumplicidade do saber partilhado que, uma vez reali-
zado, promove a sanção cognitiva positiva, que advém das descober-
tas das relações entre a proto-história e suas transformações de signi-
ficado.
Podemos, então, resgatar Sangsue e Bakhtin. De Sangsue (1994,
p. 35), podemos tomar a afirmação sobre a paródia e estendê-la à
intertextualidade:

O processo de desnudamento faz parte da “vida” dos procedimentos


que, como os humanos, “nascem, vivem, envelhecem e morrem”. A
paródia (a intertextualidade) é finalmente como uma etapa desta vida:
dando uma nova função, um sentido novo aos procedimentos ve-
lhos, ela luta contra a mecanização que os ameaça e lhes concede
uma possibilidade de não morrerem.

Com Bakhtin (1987, p. 28), podemos resgatar o conceito de


“grotesco” e aplicá-lo à prática intertextual, entendida como movi-
mento, metamorfose anticristalizadora do discurso. Sim, a prática in-
tertextual, como a entendemos, constitui um tênue fio remanescente da
grandiosa produção grotesca da Idade Média e do Renascimento.

O florescimento do realismo grotesco é o sistema de imagens da


cultura cômica popular da Idade Média e o seu apogeu é a literatura
do Renascimento.
Nessa época, precisamente, aparece o próprio termo “grotesco”, que
teve na sua origem uma acepção restrita. Em fins do século XV,
escavações feitas em Roma nos subterrâneos das Termas de Tito
trazem à luz um tipo de pintura ornamental até então desconhecida.
Foi chamada de grottesca, derivado do substantivo italiano grotta
(gruta). Um pouco mais tarde, decorações semelhantes foram des-
cobertas em outros lugares da Itália. Quais são as características desse
motivo ornamental?
Essa descoberta surpreendeu os contemporâneos pelo jogo insólito,
fantástico e livre das formas vegetais, animais e humanas que se
confundiam e transformavam entre si. Não se distinguiam as fron-
teiras claras e inertes que dividem esses “reinos naturais” no quadro 77
Intertextualidade e conto maravilhoso

habitual do mundo: no grotesco, essas fronteiras são audaciosamen-


te superadas. Tampouco se percebe a imobilidade habitual típica da
pintura da realidade: o movimento deixa de ser o de formas comple-
tamente acabadas – vegetais e animais – num universo também to-
talmente acabado e estável; metamorfoseia-se em movimento inter-
no da própria existência e exprime-se na transmutação de certas
formas em outras, no eterno inacabamento da existência.

Saltando os limites do texto-base, o enunciador da variante


consagra, portanto, o movimento sutil da incorporação do outro no
um, confirma o hibridismo do sujeito na construção do “seu” discur-
so e, mais que tudo, encoraja o enunciatário para não permanecer
estático num canto do quadrado que se lhe impõe.
Para significar, é preciso duelar com o eterno inacabamento.

78
Análise do texto-base Chapeuzinho Vermelho, de Perrault

CAPÍTULO II

Análise do texto-base Chapeuzinho


Vermelho, de Perrault

1 – Introdução

Chapezinho Vermelho, conto maravilhoso escrito por Charles


Perrault, na França de 1697, será objeto semiótico desta análise e,
como tal, far-se-á a abstração da sua manifestação, para que se atin-
jam, primeiro, as estruturas fundamentais e narrativas; depois, as dis-
cursivas – estruturas essas, todas, que, observadas enquanto relações
de sentido, mostrarão como se articula o tecido significativo do texto.
Trata-se de um conto maravilhoso singular: conto de adver-
tência (Soriano, 1968, p. 148), ou conto exemplar que, incorporando
a tradição oral anterior a ele, distingue-se dela, distinguindo-se tam-
bém dos outros contos maravilhosos pelo final irreversivelmente in-
feliz.
Soriano (1968, p. 151-3) assim se expressa a respeito: “Todos
os contos tradicionais terminam bem, na medida em que os maus são
punidos e os bons (ou os espertos) recompensados.1 Devemos admi-
tir a existência de um ciclo de contos que terminam mal e em que as
personagens simpáticas morrem de morte violenta?”

1 Como vemos, os contos maravilhosos, segundo Soriano, atribuem aos bons e aos esper-
tos o mesmo valor de bem, ou porque a esperteza é julgada, nesse universo, eticamente
um bem, ou porque os espertos são bons no modo do parecer. Ou, melhor ainda, porque,
para o conto maravilhoso, ser esperto é opor-se ao mal. 79
Intertextualidade e conto maravilhoso

“Sim” – ele mesmo responde, apoiado nas pesquisas do “gran-


de folclorista” Paul Delarue, que assim se expressa:

ciclo de discursos construídos (...) para fazer medo às crianças,


protegê-las contra certos perigos ou impedi-las de cometer certas
ações: não ir sozinhas à beira da água, ou ao bosque, (...) não abrir a
porta a desconhecidos etc. (...) O conto Chapeuzinho Vermelho teria
sido destinado, na origem, a prevenir as crianças contra o perigo de
circular sozinhas nos bosques que, durante milênios, foram freqüen-
tados por lobos, esses lobos com os quais as mães sempre amedron-
taram os filhos...

“Nesse ciclo de contos” – prossegue Soriano –, “o final infeliz


é uma necessidade: é preciso que a personagem simpática morra”. O
próprio Soriano demonstra que há versões da tradição oral, anterio-
res ao século XVII, que terminam bem, pois Chapeuzinho Vermelho
foge e escapa da morte. Ele pergunta: “O autor do nosso ‘Chapeuzi-
nho Vermelho’ teria conhecido a saída estratégica (do final) com a
prisão e a fuga (da menina)?” para, ele mesmo, responder:

No meu entender, ele a conheceu; esse final feliz é atestado nos


contos escritos antes do século XVII. No Oriente e Extremo Orien-
te, é verdade, mas Bernier (...) que, a partir de 1702, publicaria os
Contos das mil e uma noites conhecia esses contos e pôde transmiti-
los a Perrault, com quem mantinha contato-correspondência.

Mas, se ele a conheceu, ele a eliminou. Ele a teria julgado menos


autêntica? (...) Ou seria por motivos obscuros e pessoais, como, por
exemplo, uma certa atração pelo pesadelo, que explicaria a cruelda-
de que me parece evidente no discurso?

O importante (...) é que o conto, na época, existiu tal como nós o


conhecemos, com seu desenlace trágico, e não se trata de uma ver-
são truncada.

Larousse (1866-1890, p. 1071), por sua vez, afirma que “Cha-


peuzinho Vermelho”, assim como todos os contos de Perrault, foi
feito para amedrontar as crianças. Ao descrever a capa do livro em
80 que aparecem esses contos, ele assim se pronuncia:
Análise do texto-base Chapeuzinho Vermelho, de Perrault

É uma velha senhora cuja fisionomia expressa certo poder de persu-


asão aliado a uma fineza de modos. Ela conta, num quarto ilumina-
do por uma lâmpada, a três pequenas crianças, de tamanho e idades
diferentes, aquilo que ela crê que seja necessário que elas aprendam
para seu prazer e sua instrução. Atrás da velha senhora, estão traçadas,
num pequeno quadro em forma de rótulo, estas palavras: CONTOS
DE MAMÃE GANSO.2 A expressão das três crianças demonstra, de
acordo com a idade, a possibilidade de entender de cada uma delas,
o prazer que lhes causa um discurso que assombra. A menorzinha, a
mais assustada, parece mergulhada numa espécie de estupefação.

Larousse prossegue e, ao dizer que Perrault “é, talvez, ainda,


mais contado do que lido”, descreve uma cena de uma velha senhora,
avó ou babá, contando tais histórias, “e as pobres crianças, azuis de
pavor, escondem a cabeça na saia da avó...”.
O que dizer, então, do patético Chapeuzinho Vermelho que,
segundo o próprio Soriano (1968, p. 150) é o “único conto que termi-
na mal”?
Procurar-se-á responder a essas perguntas, sabendo-se que,
certamente, criar-se-ão outras.
É bom que se destaque, primeiramente, a afirmação que
norteará reflexões posteriores: a construção da pessoa humana, do
indivíduo, a que se pode dar o nome de “pessoalização”, ou
“individuação”, que implica o confronto dos valores alteridade e iden-
tidade é discursivizada no conto Chapeuzinho Vermelho, tendo na
alteridade o Bem a ser desejado e, na identidade, o Mal a ser recusa-
do.
A alteridade, nesse universo, supõe estaticidade: a menina não
deveria ter transformado um statu quo, dando ouvido ao desconheci-

2 “A Mãe Gansa era uma personagem de velhos contos populares, muito familiar aos
franceses (Mère l’Oye): sua função era contar estórias para os seus filhotes fascinados.
Mas certamente por analogia com o costume popular europeu, de as mulheres contarem
estórias, enquanto fiavam durante os longos serões ou dias de inverno, a vinheta que
ilustrava a capa do livro mostrava uma velha fiandeira em lugar de uma gansa. Compre-
ende-se, pois, que o nome Mère l’Oye tenha passado a designar não a gansa dos contos
populares, mas uma velha contadora de estórias que, ao emigrar para outros países, foi
ganhando diferentes nomes” (Coelho, 1987, p. 69). 81
Intertextualidade e conto maravilhoso

do, não por acaso, o lobo. Isso tudo representa um movimento de


separação do outro, em direção ao caos, ao próprio “eu”.
O encontro do homem consigo mesmo, sempre temido e não
compreendido, por isso transformado em mito, é particularmente
desinteressante para o contexto sócio-histórico do conto. Tratava-se
de um momento pós-renascentista, em que os valores ideológicos
medievais e teocêntricos voltavam à tona da mente humana, sob a
ação da Contra-Reforma católica, “numa tentativa de reencontrar o
fio perdido da tradição cristã” (Coutinho, 1964, p. 98).
Essa ideologia de resgate do “fio perdido” inflamava o autori-
tarismo, o medo ao castigo, o esvaziamento do homem, sob uma ban-
deira de suposta moralização.
Vejamos como o discurso constrói essa advertência e essa
moralização. Lembremos, para tanto, que o discurso, a partir das pro-
fundezas da geração do significado – nível fundamental – passando
pela representação espetacular da sua dinâmica subjacente – nível
narrativo – revelar-se-á, a si mesmo, até sua concretização e especifi-
cação definitivas, quando essas estruturas terão um desempenho pró-
prio e singular, assumidas por um sujeito da enunciação – nível dis-
cursivo propriamente dito. A partir daí, esse discurso passa a ser
trabalhado como enunciado de um sujeito que representa as suas con-
dições de produção, a enunciação.
Vê-se, então, que é pela interação dinâmica do enunciado com
a enunciação que se constitui o discurso. Texto, ou enunciado-produ-
to, corresponde, portanto, à unidade do nível superficial da manifes-
tação discursiva, resultado da união do plano do conteúdo com o
plano da expressão.
O texto é o que se vê, um campo gramado, um deserto. A aná-
lise semiótica contribui para que se veja, sob o solo do discurso, um
subsolo movediço de relações dinâmicas que, construindo as dife-
renças do próprio solo, dão-lhe significado. O deserto significa em
oposição a um campo gramado.
82
Análise do texto-base Chapeuzinho Vermelho, de Perrault

2 – Nível fundamental (no subsolo)

Observando o princípio de que o significado surge da diferen-


ça, encontra-se, em “Chapeuzinho Vermelho”, uma relação de oposi-
ção básica, única, elementar, que constitui uma abstração da trama
relacional discursiva: alteridade vs. identidade.
Esses dois termos opostos, chamados s¹ e s², formando um
eixo paradigmático, em que o mesmo traço aparece duas vezes “sob
formas diferentes”, podem gerar, por negação, mais dois outros ter-
mos, s¹ e s², que correspondem à “oposição resultante da presença e
da ausência de um traço definido” (Greimas, 1989, p. 364).
Criou-se a primeira geração intercategorial (s¹ vs. s²) que, per-
mitindo ver outros traços distintivos no interior do mesmo paradigma
(s¹ vs. s²), forma um conjunto de relações representáveis num qua-
drado semiótico, como já foi visto.
Lembremos que s¹ e s² constituem a dêixis positiva, assim como
1
s² e s , a dêixis negativa. Positivo e negativo não contêm, aqui, ne-
nhum juízo de valor.
Tais relações, não-estáticas, orientam-se para um determinado
fim, o que constitui o princípio da narratividade, segundo patamar do
discurso.
“Chapeuzinho Vermelho”, construindo suas leituras a partir
da oposição fundamental alteridade vs. identidade, começa pela afir-
mação da alteridade, que é manifestada na autoridade da mãe, da
avó, no espaço coercitivo do lar. A menina tenta ousar, transgredir,
negando a alteridade e afirmando a identidade. Não dá certo, e surge
a punição: o lobo devora a menina. O texto, então, passa a negar a
identidade, implicando uma afirmação da alteridade, o que subenten-
de uma circularidade das relações.
Alteridade vs. identidade, categoria semântica operacionalizada
no quadrado semiótico, constitui, portanto, o ponto de partida do per-
curso gerativo do sentido, o mínimo de significado sobre o qual se cons-
troem as gramáticas narrativas e discursivas, sendo que alteridade su-
põe o domínio das regras sociais e identidade, o das pulsões individuais. 83
Intertextualidade e conto maravilhoso

Aplicando ao quadrado a categoria tímica, para que seus ter-


mos se articulem axiologizados, tem-se a dêixis positiva conotada
como eufórica e a dêixis negativa como disfórica, na medida em que
a alteridade é o valor do Bem e a identidade, o valor do Mal. A aná-
lise narrativa e a discursiva deverão comprovar essas afirmações, que
se fazem ainda abstratamente, pois no nível fundamental trata-se de
grandezas gerais e amplas, que ainda não atingiram a especificidade
do hic et nunc.
A soma dos dois termos, alteridade e identidade, pode gerar
um termo complexo, a pessoalização, ou individuação, a construção
da pessoa, ou do indivíduo, que supõe a reunião paradoxal dessas
forças contrárias.
Os subcontrários, não-alteridade e não-identidade, combinam-
se e geram um termo neutro: a “reificação”, ou a “coisificação”, o
esvaziamento da pessoa. “Pessoalização” e “reificação” são metater-
mos contraditórios.
Da combinação dos termos complementares surge, como pro-
duto da dêixis positiva, “alteridade/não-identidade”, o termo “alie-
nação” e, produto da dêixis negativa, “identidade/não-alteridade”, o
termo “participação”. “Alienação” e “participação” são metatermos
contrários.

84
Análise do texto-base Chapeuzinho Vermelho, de Perrault

Pessoalização

Alteridade Identidade
s1 s2

Alienação Participação

s2 s1
Não-identidade Não-alteridade

Reificação

relação de contrariedade
relação de contraditoriedade
relação de complementaridade

O conto de Perrault abandona o termo complexo “pessoaliza-


ção” e propõe a “reificação”, esse metatermo neutro, para onde faz
deslizar a euforia da dêixis positiva.
“Dir-se-á (...) que duas relações de contrariedade contraem entre
si a relação de contradição, e que duas relações de complementarida-
de estabelecem entre si a relação de contrariedade” (Greimas, 1989,
p. 367).
Com essa afirmação de Greimas, pode-se fazer dos metater-
mos os termos de um quadrado sobreposto ao original, o que possibi-
lita a captação do jogo sutil do significado fundamental.

85
Intertextualidade e conto maravilhoso

Reificação s1 s2 Pessoalização

1
Alteridade s s 2 Identidade

Dêixis Dêixis
Positiva Positiva

2
Não-identidade s s 1 Não-alteridade

Alienação s2 s1 Participação

relação de contrariedade
relação de contraditoriedade
relação de complementaridade

Essa sobreposição de quadrados, cuja finalidade descritiva é


observar a expansão da relação binária fundamental do significado,
aponta, pela abrangência das dêixis, os valores maximamente dese-
jáveis no conto “Chapeuzinho Vermelho”.
Nota-se que a euforia da dêixis “alteridade/não-identidade” é
exacerbada pela instalação do termo “alienação”, como valor positi-
vo que compactua com “reificação”, concretizando-se, ambos, nos
valores de segurança e tranqüilidade desejáveis.
Repudia-se a dêixis “identidade/não-alteridade”, axiologizada
como negativa, em desconformidade com a harmonia humana, as-
sim como seu desdobramento, também negativo, “participação/pes-
soalização”. “Participação” implica o homem construindo-se como
sujeito da própria história, como indivíduo, como “pessoa”, o que
dilata a sobremodalização do Mal, segundo os interesses desse dis-
curso.
Deseja-se a construção do homem enquanto rebanho e não
ovelha, enquanto massa e não indivíduo, o homem amedrontado,
reificado, esvaziado de paradoxos – ou herói ou vilão. Eliminadas as
86 contradições, valoriza-se positivamente o sujeito que não quer, não
Análise do texto-base Chapeuzinho Vermelho, de Perrault

sabe, nem pode questionar ou duvidar, o sujeito manso e encabrestado,


bom. O contrário disso é a rebeldia, o perigo, a desgraça.
Às relações elementares propostas, contrariedade, contradição,
complementaridade e às operações, asserção e negação, todas consi-
deradas universais, porque efetuáveis “sobre um objeto qualquer”
(Hjelmslev, 1961, p. 138), pode sobrepor-se, atualizando a semanti-
cidade potencial, outros universais: as categorias vida vs. morte, cul-
tura vs. natureza:

Vida Morte
Cultura Natureza
s1 s2

Reificação s1 s2 Pessoalização

Alteridade s1 s2 Identidade

DÊIXIS DÊIXIS
POSITIVA NEGATIVA
Não-identidade s2 s1 Não-alteridade

Alienação s2 s1 Participação

s2 s1
Não-morte Não-vida
Não-natureza Não-cultura

relação de contrariedade
relação de contradição
relação de complementaridade 87
Intertextualidade e conto maravilhoso

Falamos em sobreposição de quadrados, pensando numa hie-


rarquia, já que “qualquer sistema semiótico é uma hierarquia”
(Greimas, 1989, p. 367); não se supõe, entretanto, qualquer relação
de causa-efeito, nem de anterioridade-posterioridade entre esses qua-
drados, visto que à “primeira lista dos universais semânticos”
correspondem apenas os indefiníveis “relação” e “operação”, proce-
dimentos do “quadro da estrutura elementar da significação”, como
postula Greimas (1989, p. 478). “Anteriores”, ou primeiros, portan-
to, apenas esses movimentos sintáticos embrionários de significa-
ção: “relação” e “operação”.
O preenchimento semântico desses movimentos apresenta
uma reversibilidade de relação: vida vs. morte, reificação vs. pes-
soalização, alteridade vs. identidade, ou vice-versa. O que interes-
sa é a expansão de todo significado fundamental e o rumo tímico
que ele toma.
As categorias vida/morte, natureza/cultura, por exemplo, “pri-
meiro investimento elementar do universo semântico” (Greimas, 1989,
p. 48) individual e social, respectivamente, articuladas ao quadrado
do significado fundamental, revelam, “no nível das estruturas semân-
ticas profundas, o universo socioletal” deste discurso, pois explicam
“a atitude que uma comunidade sócio-cultural adota a respeito das
interrogações fundamentais que lhe são feitas” (Greimas, 1989, p.
438-9).
“A natureza, nesse sentido, não é natureza em si, mas aquilo
que no interior de uma cultura é considerado como de âmbito de
natureza, por oposição ao que é percebido como cultura” (Greimas,
1989, p. 93). No universo semântico deste discurso, a cultura está
para a alteridade e a natureza, para a identidade; aquela, axiologizada
como positiva; esta, negativa, o mesmo ocorrendo com a dicotomia
vida/morte. A vida, o prêmio, implica a cultura e a alteridade; a mor-
te, o castigo, implica a natureza e a identidade.
É importante que se observem as dêixis positiva e negativa,
que axiologizam os termos e suas relações e se verifique que vida
(não-morte), cultura (não-natureza), reificação (alienação) e
88 alteridade (não-identidade) constroem a grande linha eufórica, o fio
Análise do texto-base Chapeuzinho Vermelho, de Perrault

condutor do valor do Bem, em harmonia com a postura ideológica


moralizante desse discurso.
Trata-se, ainda, de uma “massa tímica amorfa” (Greimas, 1983,
p. 95) que, envolvendo as relações fundamentais da significação, des-
vela-se na binaridade da euforia vs. disforia, do desejável vs. o
repudiável. No entanto, são esses valores virtuais que, assim despon-
tados abstratamente, se atualizarão narrativamente e se realizarão dis-
cursivamente.
O desejável significa em oposição ao repudiável. O conto de
Perrault repudia a “identidade”. Tem a intenção de deixar o enuncia-
tário com medo. Medo de ousar, de aventurar-se, de se construir como
pessoa, na interação mútua e conflitiva do “outro” com o “eu”. Só
devem restar as regras impostas, a “cultura”, o “outro”.
O movimento do homem em direção a si mesmo, assim como
a “participação” e a “pessoalização” ancoram-se na valoração nega-
tiva do Mal, porque supõem ruptura, mudança, e o que se quer é a
manutenção do status quo, a estaticidade.
Em contraposição, a “reificação” do homem, que implica “ali-
enação” e que tem, no chapeuzinho vermelho, o objeto, seu índice
representativo, não só incorpora a euforia da dêixis alteridade/não-
identidade, como constituirá o início e o fim do percurso da menina,
como o demonstrará a dinâmica da narratividade.
Revelar-se-á o salto da “cultura” e da “vida” para a “natureza”
e “morte”. Pelo medo imposto à negação da “cultura”, negar-se-á a
“natureza”, desejar-se-á um mero apêndice de “vida”, que nada mais
é do que a “não-morte”. O que deve importar é estar em conjunção
com a segurança, a estaticidade, a não-ruptura. É para lá que o dis-
curso nos levará.
A reflexão, a crítica e a busca da individualidade, revestidas
do traço de ousadia e (des)encaminhadas semanticamente para a
disforia da dêixis negativa, acenam com a morte como punição. É
de lá que o discurso quer-nos afastar, e o faz com uma cruel e
eficaz “advertência”, que permanece no segredo do próprio dis-
curso. 89
Intertextualidade e conto maravilhoso

A categoria tímica observada será retomada na análise narrati-


va e discursiva, em que continua a interferir sob novas roupagens:
aqui, ainda inconsciente; lá, subjetivizada.
“Substancialmente falando, estas são pregnâncias semânticas
(euforia/disforia), que são não apenas não-referenciais (não-extereo-
ceptivas) mas (...) não-subjetivizáveis (...). Sua subjetivização não
pode se realizar a não ser pela conversão da semântica fundamental
em uma sintaxe actancial e em uma simbolização figurativa” (Grei-
mas, 1986, p. 239).
Ao serem examinadas as relações do texto-base com as vari-
antes intertextuais, observar-se-á como se interdiscursivizam as rela-
ções apontadas, bem como o tipo de diálogo que as variantes estabe-
lecem com o texto de Perrault.
Permite-nos isso a Semiótica, que constitui uma análise ima-
nente, estrutural, discursiva e interdiscursiva.
Imanente, porque busca “as condições internas da significa-
ção (...). O significado será, então, considerado como um efeito, como
um resultado produzido por um jogo de relações entre os elementos
significantes” (Groupe d’Entrevernes, 1984, p. 8).
Estrutural, porque se baseia no princípio reconhecido por Saus-
sure e Hjelmslev de que não há significado a não ser pela diferença.
“Ela visa à descrição (...) não do significado, mas da construção do
significado” (Idem, ibidem).
Discursiva, porque busca não só a intenção e a competência de
um sujeito ao produzir seu discurso, como se propõe a (re)construir
tanto a dinâmica relacional interna, subjacente a esse discurso, quan-
to a dinâmica relacional externa, que o cerca, pressionando-o ideolo-
gicamente (e também internamente).
Interdiscursiva, porque assimila o diálogo, contratual ou polê-
mico, das vozes entre textos; diálogo que, construindo significados,
confirma sua não-neutralidade e sua não-gratuidade.

90
Análise do texto-base Chapeuzinho Vermelho, de Perrault

3 – Nível narrativo (ainda no subsolo)3

A narratividade é uma abstração daquilo que acontece mani-


festado textualmente; representa, por meio de modelos e variantes, o
fazer do homem sobre as coisas e sobre os outros homens, o espetá-
culo dado pelo homem no mundo. Permitindo ver além das aparên-
cias, ela elimina o psicologismo, o intuitivismo, a superficialidade da
análise de um texto, montando também, ela própria, seu espetáculo.
Pode-se fazer a última afirmação, pela recuperação da raiz
etimológica de “espetáculo”, spectaculum, i, do Latim, vocábulo que
deriva do verbo spectare.4 Por esse verbo, a narratividade confirma-
se como um espetáculo, na medida em que tem os olhos fixos no
encadear dos acontecimentos, das transformações da superfície, re-
fletindo-as abstrata e generalizadamente num plano mais profundo;
examinando-as e mirando-se nelas.
Foi dito espetáculo do homem, porque, nesse nível, detecta-se
um sujeito e um objeto que, longe de ser pessoa e coisa, respectiva-
mente, constituem papéis-produto da abstração e que, juntos, consti-
tuem enunciados e programas aplicáveis a qualquer texto.
No nível narrativo, tomam-se as oposições fundamentais, que
se transformam em valores narrativos (objeto), pela ação de um su-
jeito, com quem estão em junção (conjunção ou disjunção). Os com-
ponentes narrativos, por ser abstrações, não serão vistos na manifes-
tação textual, apesar de atuar como mediadores entre as estruturas
fundamentais e as discursivas.

3 Esse título justifica-se pelo fato de os níveis narrativo e fundamental constituírem o nível
semiótico, profundo, e o nível discursivo ser mais superficial – distinções hipotéticas e
operatórias propostas por Greimas (1989, p. 306), que acrescenta: “...no nível semiótico,
distinguiremos o plano das estruturas semióticas profundas (sintaxe e semântica funda-
mentais) e o das estruturas semióticas de superfície (sintaxe e semântica narrativas)”.
Será, portanto, chamado de superficial o nível narrativo, quando cotejado com o plano
fundamental do nível semiótico. Solo será o discurso.
4 Segundo Koeheler, spectaculum vem de spectare, que tem as seguintes acepções: “ob-
servar, olhar, mirar; assistir a um teatro ou qualquer espetáculo; (...) estar voltado para
(...), examinar, provar, dirigir-se a alguma coisa (...), avaliar alguma coisa por outra,
comparando-a com outra” (1955, p. 805-6). Segundo Faria, o mesmo verbo tem as
acepções de “ter os olhos fixos em (...), ter relação com, referir-se a” (1962, p. 935). 91
Intertextualidade e conto maravilhoso

Não se trata mais de afirmar ou de negar conteúdos, de asseve-


rar a “alteridade” e negar a “identidade”, mas de transformar, pela
ação do sujeito, estados de “alteridade” e de “identidade”.5 Transfor-
mam-se, portanto, pela ação de um sujeito, as categorias fundamen-
tais em estruturas narrativas.
Os conteúdos afirmados ou negados no nível fundamental que,
ao ser axiologizados pela categoria tímica, já apontavam para uma
relação de valor com o sujeito,6 constituíam, nesse nível, ainda valo-
res virtuais. Tais valores atualizam-se no nível narrativo, enquanto
estão em relação de disjunção com um sujeito; quando em relação de
conjunção, os mesmos valores são realizados.
Considerando a transformação básica do conto “Chapeuzinho
Vermelho”, como a ação de um sujeito sobre outro, para fazer com
que este permaneça em conjunção com o objeto-valor “submissão”,
tem-se representado o seguinte programa narrativo de base:

S1 S2 ∩ Ov

S1 – mãe ∩ – conjunção

S2 – menina Οv – objeto-valor “submissão”

Trata-se de um Programa Narrativo (PN), em que S1 é o sujei-


to de fazer que leva S2, sujeito de estado, a manter a conjunção com
um objeto que já recebeu investimento de valor semântico (Ov) num
PN prévio, que se subentende.7

5 Considerar-se-ão estados de “alteridade” e “identidade”, respectivamente, a “submis-


são” e a “liberdade”.
6 Greimas afirma: “... o investimento tímico só é concebível na medida em que este ou
aquele valor – articulado pelo quadrado – seja posto em relação com o sujeito” (1989, p.
483).
7 Nesse PN prévio, o sujeito-menina já teria sido cognitiva e pragmaticamente premiado
por uma performance de submissão; a narrativa se constrói como uma confirmação des-
se PN prévio e, principalmente, uma avaliação a respeito de o prêmio continuar sendo
merecido. Pode-se afirmar que, em princípio, já se subentende o imbricamento narrativo
92 à sanção de um PN prévio.
Análise do texto-base Chapeuzinho Vermelho, de Perrault

O PN de base referido pode também ser representado como no


enunciado seguinte, em que F significa a função de transformação
(assim como o sinal →), que abrange toda a relação:
F → [ S1 → (S2 ∩ Ov)]
S1 e S2 são actantes, não atores. Isso significa que dois ato-
res (figuras do nível discursivo), conforme se projetam e se posi-
cionam nas seqüências narrativas, podem figurativizar, por exem-
plo, o mesmo actante S1. É o caso da mãe e do lobo, que exercem o
papel actancial de S1. Por sua vez, o mesmo ator, a menina, por
exemplo, sujeito do enunciado de estado (S2 ∩ Ov), pode, ela pró-
pria, assumir também outro papel: o de sujeito do fazer, juntamente
com o de estado, quando se automanipula, autodestinando-se para
a ação.
O que foi dito tem como objetivo introduzir a análise do nível
narrativo, apontando para uma práxis que pretende perfurar o solo do
discurso, para (des)construir as relações subjacentes que arquitetam
o significado. Tudo será retomado.
Ainda a título de introdução, pode-se resumir o espetáculo da
sucessão de estados e transformações, que constitui a narrativa, da
seguinte forma:
“Chapeuzinho Vermelho” é a história de um sujeito (“meni-
na”), manipulado por um sujeito (“mãe”), para que saia de casa, vá
ver a avó, vá ao espaço externo.
O sujeito “menina” quer cumprir e realmente cumpre o acor-
do, para que se mantenham os valores que já possui: o clã, o abrigo,
o carinho – o “outro”. Era bela e muito querida, o que subentende
sem “defeitos” morais ou físicos. Reconhecida como “boa” (pressu-
posto) e “bela”, é recompensada com o “chapeuzinho vermelho”, que
a torna ainda mais bela, isto é, ainda mais em conjunção com o “ou-
tro” (a “cultura”).
Surge o lobo, com outros valores: os da “natureza”, que se
opõem à “cultura”, e que supõem a ruptura, a “liberdade” de ser ela
própria – sem mãe, nem avó, nem dever (ser ou fazer). Esses valores
tentam o sujeito “menina”, fazendo com que ela vá pelo caminho 93
Intertextualidade e conto maravilhoso

mais longo e permaneça no bosque, esquecida do primeiro compro-


misso.
A permanência no bosque representa o rompimento do pri-
meiro contrato. A menina transforma-se num sujeito verdadeiramen-
te rebelde: parece e é. Assume o valor da “liberdade”.
Quando chega à casa da avó, começa o percurso inverso: entra
em disjunção com a “liberdade”, negando-a, renunciando a ela, por
isso ouve a voz do lobo e sente medo, por isso vê o lobo/avó e sente
espanto. Arrepende-se, mas é tarde. O lobo a devora.
A menina é sancionada pela ruptura do contrato fiduciário com
a mãe, ruptura essa que confirma a mentira da conjunção com a “sub-
missão” no PN prévio.
A narrativa sofre, portanto, desdobramento polêmico. Opõem-
se valores, opõem-se sujeitos, e há atores sincretizando papéis de
sujeitos de fazeres contrários.
Submetendo isso a um exame mais calmo, observam-se três
seqüências narrativas: uma, no conto; as outras, nele e em torno dele.
Essas seqüências serão assim chamadas: a primeira, de Seqüência
Narrativa 1 – SN1 (a do conto-enunciado); as outras, de Seqüência
Narrativa 2 e 3 – SN2 e SN3 (as das condições de produção do enun-
ciado – as Seqüências Narrativas da enunciação).
Essas seqüências serão, primeiro, esquematizadas para, depois,
serem explicadas.

94
SN1 - Do Enunciado F ⇒ [S1 → (S2 ∩ Ov submissão)]
S1 Mãe → S2 Menina
PN prévio
Manipulação Competência Performance Sanção
pressuposta pressuposta S1 → (S2 ∪ Ov) → (S2 ∩ Ov) cognitiva - reconhecimento
da conjunção pragmática -

chapeuzinho

chapeuzinho

submissão
chapeuzinho vermelho

Análise do texto-base Chapeuzinho Vermelho, de Perrault


PN da menina
Manipulação Competência Performance Sanção
D1 → D2 ∩ Om Pressuposta Não se realiza PN do Lobo
mãe

chapeuzinho

dever manter a
conjunção com a
submissão

Manipulação Competência Performance Sanção


D1 → D2 ∩ Om Pressuposta S1 → (S2 ∪ Ov) → (S2 ∩ Ov) PN do Lobo
querer buscar a
chapeuzinho

chapeuzinho

liberdade
lobo

chapeuzinho

conjunção com a
liberdade
95
96
SN1 - Do Enunciado (cont.) 1a SN
PN do Lobo Manipulação Competência Performance Sanção
D1 → D2 ∩ Om não poder Não realiza reconhecimento da
(presença dos não-realização →
lobo lobo querer ter prazer lenhadores)
gustativo 2a SN
→ Manipulação Competência Performance Sanção
D1 → D2 ∩ Om S1 → (S2 ∪ Ov) → (S2 ∩ Ov) Reconhecimento
PN de aquisição de
lobo lobo querer ter prazer competência lobo lobo prazer
gustativo gustativo

Manipulação Competência Performance Sanção


D1 → D2 ∩ Ovm Saber e poder Reconhecimento de que o saber
dados (astúcia) e o poder foram adquiridos
lobo lobo querer adquirir
Intertextualidade e conto maravilhoso

saber e poder
P1 - aquisição do saber

Manipulação Competência Performance Sanção


D1 → D2 dada S1 → (S2 ∪ Om) → (S2 ∩ Om) Reconhecimento de
saber adquirido
lobo lobo ∩ querer atribuir menina lobo saber (informação)
o saber
(pergunta) P2 - aquisição do saber

Manipulação Competência Performance Sanção


D1 → D2 ∩ Om S1 → (S2 ∪ Om) → (S2 ∩ Om) Reconhecimento do
poder adquirido
lobo lobo querer adquirir lobo lobo poder
o poder (comer a avó)

Manipulação Competência Performance Sanção


D1 → D2 ∩ Ov pressuposta S1 → (S2 ∪ Om) → (S2 ∩ Om) Reconhecimento
lobo menina querer dar menina lobo poder adquirir
poder o poder
(demorar) (demora)
SN2 - Da enunciação como construção do enunciado

F ⇒ [S1 → (S2 ∩ Ov enunciado)]

S1 - sociedade
valores ideológicos do contexto sócio-histórico (séc. XVII)

S2 - sujeito enunciador

Manipulação Competência Performance Sanção

S1 → S2 Sabe
S2 escrever S2 constrói Ov enunciado S2 é lido
pode
Sociedade Enunciador

valores dever assimilar,


ideológicos comunicar,
reproduzir tais
valores
(escrever)
Análise do texto-base Chapeuzinho Vermelho, de Perrault

97
98
SN3 - Da Enunciação enquanto construção de significado pelo Enunciatário

aceitar, pelo medo, um


PN de base: S1 → PN de uso modo de vida cuja receita → (S2 ∩ Ov submissão)
( é dada
)
S1 - Enunciador
S2 - Enunciatário
Manipulação Competência Performance Sanção
S1 → S2 enunciatário ganha
Intertextualidade e conto maravilhoso

S1 → (S2 ∪ Ov submissão) (S2 ∩ Ovsubmissão)


o chapeuzinho
Enun- Enun- vermelho
ciador ciatário ∩ querer entrar em
conjunção com a

enunciatário
enunciatário
submissão

PN de doação de competência

Manipulação Competência Performance Sanção


Enunciado → Enunciatário ∩ querer e poder enunciatário → enunciatário ∩ reconhecimento
querer viver da pressupostos modo de vida
maneira prescrita enunciado → enunciatário ∩ saber
viver (receita)
Análise do texto-base Chapeuzinho Vermelho, de Perrault

As seqüências narrativas 8

“Os textos são narrativas complexas, em que uma série de enun-


ciados de fazer e de ser (de estado) estão organizados hierarquica-
mente. Uma narrativa complexa estrutura-se numa seqüência canô-
nica, que compreende quatro fases: a manipulação, a competência, a
performance e a sanção” (Fiorin, 1989, p. 22).
Se uma seqüência narrativa supõe percursos, se os percursos
supõem programas com actantes destinador e destinatário, dois su-
jeitos, entre os quais circulam valores que, por isso, são considerados
objeto-valor, a enunciação contém uma seqüência narrativa, na me-
dida em que comporta a instância do enunciador (Destinador, S1) e a
do enunciatário (Destinatário, S2), em junção (conjunção ou disjun-
ção) com valores ideológicos e sofrendo transformações.
O leitor foi considerado sujeito, na visão da leitura como ato,
como performance. Os dois sujeitos, enunciador e enunciatário, são
desdobramentos da entidade toda poderosa, que se dissimula no enun-
ciado e cuja intencionalidade rege todas as relações: o sujeito da enun-
ciação.
Entre enunciador e enunciatário, desenvolve-se, portanto, uma
narrativa, com a apresentação parcial ou total da seqüência canônica,
em cujas fases se observam a circulação dos valores ideológicos no
“jogo de (des)construção do significado” (Groupe d’Entrevernes,
1984, p. 7).
Esses valores ideológicos serão examinados ao ser trabalhado
o nível discursivo. Importa, no momento, a justificação da enuncia-
ção como narrativa, e que, a partir dela, entenda-se a narratividade
como a sucessão de estados e transformações, subjacentes a qualquer
tecido de relações, isto é, a qualquer texto.
O enunciador de “Chapeuzinho Vermelho” teve como finali-
dade construir um objeto, o conto (de advertência), através do qual o
destinatário devesse entrar em conjunção com a “submissão”, por

8 Fazem-se, aqui, pausas para esclarecimentos de conceitos semióticos que, já utilizados


no primeiro capítulo, encontram agora o momento para sua explicitação. 99
Intertextualidade e conto maravilhoso

meio da paixão do medo. Medo de ousar, de aventurar-se, de encon-


trar-se com o ignorado, o próprio “eu”.
Esse enunciado transcreve-se em:
S1 → (S2 ∩ Ov submissão)
A construção do conto pertence a um PN de uso, para que se
realize o PN de base, inserindo-se nesse PN de uso com a proposta de
fazer o enunciatário aceitar, pelo medo, um modo de vida cuja receita
é dada no próprio conto:
PN de base: S1 → PN de uso [ aceitar, pelo medo, um modo de vida
cuja receita é dada ]
→ (S2 ∩ Ov submissão)
Somente remontando à enunciação, consegue-se explicar a
natureza de “conto de advertência”, atribuída a “Chapeuzinho Ver-
melho” (Soriano,1968, p. 151-2).
Quando a mãe diz “Vá”, implica a própria ação. Essa frase é
ilocucional no enunciado, pois nela “se obtém um efeito direto dizen-
do” (Greimas, 1989, p. 226), mas é perlocucional na enunciação, pois
“produz um efeito pelo fato de dizer” (Idem, ibidem, 1989, p. 331) e
produzirá, na enunciação, o desejo do enunciatário de nunca ir, a convic-
ção de que é melhor alienar-se, reificar-se. Uma perlocução mentirosa,
como será visto, que parece ser para avançar, mas não é, é para ficar.
Quando se diz: “Vá”, na enunciação não eclode apenas uma
prescrição, regida por um dever fazer. Essa ordem também, sutil-
mente, se apresenta como uma proposição de contrato do tipo: “Se
você executar corretamente o conjunto de indicações dadas, então
você obterá a vida, a vitória, a harmonia”.9 Se não, será castigado, o
que supõe intimidação e, conseqüentemente, medo.
Que indicações são essas? Onde estão? No texto, na narrativa
“exemplar” do sujeito menina, ou, melhor dizendo, no exemplo de
narrativa de um anti-sujeito menina.
Que se examinem, finalmente, como as referidas “indicações”
se relacionam e se constroem enquanto significado no subsolo narra-
tivo deste enunciado, o conto “Chapeuzinho Vermelho”.
100 9 Confronte-se Greimas, na construção do objeto-valor “La soupe au pistou” (1983, p. 159).
Análise do texto-base Chapeuzinho Vermelho, de Perrault

SN1 – SEQÜÊNCIA NARRATIVA DO ENUNCIADO


SN2 e SN3 – SEQÜÊNCIAS NARRATIVAS DA ENUNCIAÇÃO

Tanto no enunciado, como na enunciação, há o mesmo PN de


base:
F→ [S1 → (S2 ∩ Ov submissão)]
S1 – mãe
S2 – menina
} ENUNCIADO

S1 – enunciador
S2 – enunciatário
} ENUNCIAÇÃO

Observemos SN1. Trata-se, em princípio, de um PN de manu-


tenção de estado, ou seja, S1 é o sujeito de fazer que leva S2, sujeito
de estado, a permanecer em conjunção com um objeto-valor.
Já teria a menina entrado em conjunção com os valores de
mansidão, submissão, ordem, clã – “alteridade” – e já teria tido uma
performance de acordo com esses valores, pois era bela, “a mais bo-
nita de quantas existiram”, o que pressupõe uma recompensa.10 Ou-
tra recompensa, a pragmática, é o “chapeuzinho vermelho”.
O percurso da menina duplica-se a partir de manipulações con-
traditórias a que ela é submetida: a manipulação da mãe e a manipu-
lação do lobo – concretizações da sobremodalização tímica – o Bem
e o Mal respectivamente. A primeira, no sentido de a menina dever
manter a conjunção com a submissão; a segunda, no sentido de a
menina querer buscar a conjunção com a liberdade.
No primeiro caso, o sujeito recusa o contrato proposto pela
mãe e a performance não se realiza: o sujeito é sancionado com a mor-
te. No segundo caso, o sujeito aceita a manipulação do lobo, a perfor-
mance realiza-se, e o sujeito também é sancionado com a morte.

10 “Bela” e “amada” supõem bondosa, num contexto de rigidez maniqueísta do século


XVII e do conto maravilhoso. “Bondosa”, nesse contexto, supõe valores coerentes à
“alteridade” eufórica: submissão, acomodação. “Bela” e “amada” supõem, portanto,
submissa e acomodada. 101
Intertextualidade e conto maravilhoso

São duas manipulações contraditórias com uma única sanção


negativa. Subentende-se que a mãe manipular a menina para que ela
entre em conjunção com a “submissão” constitua a base narrativa (o
PN de base); o lobo manipular a menina para ela entrar em conjunção
com a “liberdade” é secundário, no sentido de que não levará a uma
sanção positiva, é um PN de uso para que a articulação básica se
cumpra. Só assim se justifica a morte.
O discurso tem o compromisso de persuadir o enunciatário a
negar a “liberdade” e a desejar a “submissão” como meta de vida.
Usa, para isso, a figura do lobo e os motivos que a cercam: o embuste
e a antropofagia.
Tal procedimento discursivo, remontando a arquétipos, resga-
tando mitos, desemboca numa relação metafórica de semelhança
implícita: lobo/perigo, destruição; lobo/desconhecido, ruptura; lobo/
liberdade, morte.
Nessa punição exemplar, para a qual se encaminham todas as
transformações narrativas desse conto de advertência, nota-se que a
sanção do PN da menina equivale à realização do PN do lobo de
obtenção do prazer gustativo. Todo o PN do lobo, em toda sua com-
plexidade, compõe a fase de sanção do PN da menina.
Daí, pode-se concluir que o “discurso de advertência”, cons-
truído sob um esquema de programação de construção de um objeto-
valor (enunciado), com o fim específico de submeter o enunciatário a
seus valores (do discurso), amedrontando-o, privilegia a sanção.
A menina, ingênua, atendeu ao desconhecido; corajosa, per-
mitiu-se mudanças; solta, ousou aventurar-se. Tinha de ser punida. O
discurso escolheu o lobo para compor um programa de uso dentro do
programa básico de repressão.
A “advertência” é construída desde o rumo tímico dado aos
valores da profundidade como e, principalmente, pelo entroncamen-
to sintático de todos os PNs na sanção do PN da menina. Constrói-se
também essa “advertência” pela modalização da menina para um dever
não ser e um dever não fazer segundo a liberdade. Tudo subentendi-
102 do, dedutível. Não parece “advertência”, mas é, e, dessa manobra
Análise do texto-base Chapeuzinho Vermelho, de Perrault

enunciativa para manter o segredo no enunciado, cresce a eficácia da


própria “advertência”.
A citada manipulação contraditória supõe ainda a escolha da
menina, isto é, ou a submissão, o que supõe ir direto, não parar, não
olhar para os lados, ou a liberdade, o que supõe rebelar-se. Ela podia,
sabia e devia manter-se como a bondosa, amada e submissa Chapeu-
zinho Vermelho, mas não quis. Ela não devia romper com um status
quo, mas podia, sabia e, principalmente, passou a querer. Rompeu
com as amarras que a bloqueavam. De disjunção com a liberdade,
passou à conjunção.
O discurso, então, detalha o fazer ardiloso e perseverante do
lobo que, modalizado pelo simples “querer ter prazer gustativo”, é usa-
do como estratégia persuasiva para amedrontar o enunciatário. Quanto
mais ardis e perseverança da parte do lobo, mais forte seria o efeito de
sentido de susto e de medo. Enquanto no enunciado, o lobo, que estava
em disjunção com o prazer gustativo, entra em conjunção, come a
menina, na enunciação a sociedade devora o indivíduo, a realidade
devora o sonho, o cotidiano devora a aventura, a ordem devora o caos.
A menina é o sujeito submetido a uma prova decisiva: deixar-
se manipular pelo lobo ou fugir dele. Ela iria, assim, demonstrar se
era capaz de manter os valores da submissão e fazê-los realizados em
circunstâncias adversas e se merecia as sanções positivas, cujo índi-
ce mais forte era o “chapeuzinho vermelho”.
S1(mãe) e S2(menina), cedendo, então, lugar às instâncias
actanciais de Destinador e Destinatário, relacionam-se na medida em
que um destinador manipulador, impelindo um destinatário manipu-
lado a aceitar um conjunto de valores subsumidos pela “submissão”,
leva-o a não poder não fazer, ou seja, a aceitar o contrato proposto, a
dever fazer.
Virtualmente capaz, modalizada pelo querer e dever, a menina
atualiza-se, pois pode e sabe, e também realiza-se: vai. Aí a perfor-
mance tinha começado, de acordo com os valores propostos pela mãe,
mas sofre, a seguir, uma ruptura. Aceitar a manipulação do lobo re-
presenta uma ruptura do contrato feito entre a mãe e a menina. 103
Intertextualidade e conto maravilhoso

Essa performance de ruptura constitui a transformação princi-


pal, que se dá no espaço externo, em que a menina troca de valores: a
submissão pela liberdade. Para que acontecesse essa ruptura, pressu-
põe-se, paralelo ao programa narrativo de base, um PN adjunto, em
que o lobo se autodestina a “querer ter prazer gustativo”. Não é só
isso, porém. A ruptura está, essencialmente, no fato de a menina “ver”
e “ouvir” o desconhecido. Se se narrasse simplesmente a morte de
uma menina devorada por um lobo, não se construiria este exemplo,
não se faria esta advertência; poder-se-ia fixar o enunciado na di-
mensão pesada do verdadeiro e, não, na dimensão volátil do verossí-
mil. Assim como está, prescreve-se um exemplo pelo anti-exemplo,
constrói-se o maravilhoso para advertir.
Observando o PN do lobo, vê-se que não se realiza a primeira
performance a que ele se propôs. O reconhecimento da não-realiza-
ção, ou seja, a sanção cognitiva negativa, entretanto, longe de fazer o
lobo recuar, provoca-lhe outra manipulação, que inicia sua segunda
seqüência narrativa. Novamente o lobo se automanipula para a ob-
tenção do objeto de valor modal: “querer ter prazer gustativo”. É
como se “o conhecimento do obstáculo suscitasse o querer” (Greimas,
1993, p. 68); é o querer “resistente”, que produz a “coesão modal do
sujeito”.
Esse querer do obstinado, que se nutre de um não poder é o
que Greimas (1993, p. 71-5) chama de “excedente modal regente”,
que gera um “estilo semiótico cursivo” que, no caso, é recompensa-
do na sanção final: o lobo finalmente entra em conjunção com o “pra-
zer gustativo”. Esse “estilo semiótico cursivo”, determinado por um
querer “resistente” e um fazer indefectível, é que está na base da
complexificação do PN do lobo nessas duas seqüências narrativas,
contribuindo para dar ênfase aos perigos que o lobo (a “individuali-
dade”) representa. “O programa narrativo será, algumas vezes, tor-
nado mais complexo com fins de ênfase, isto é, para produzir o
efeito de sentido de dificuldade (...) da tarefa”. Um dos “procedi-
mentos de ênfase” é “a duplicação” (quando o PN é desdobrado,
sendo o fracasso do primeiro seguido do êxito do segundo) (Greimas,
104 1989, p. 353).
Análise do texto-base Chapeuzinho Vermelho, de Perrault

Ao reconhecer as maldosas, espertas e perseverantes artima-


nhas do lobo para adquirir saber e poder a fim de se satisfazer, o
enunciatário entra em conjunção com um “querer viver da maneira
prescrita”, em conjunção com a submissão (SN3), o que se consuma-
rá ao reconhecer a irreversível sanção pragmática negativa, a morte.
Isso, porque esse enunciatário é sensibilizado pelo medo e para o
medo.
Esse modus faciendi do lobo, mais o silencioso horror da mor-
te pela antropofagia ajudam a construir a manipulação do enuncia-
do11 sobre o enunciatário, que se subentende, como foi dito, numa
intimidação: “se não viver da maneira prescrita, terá o castigo”. A
maneira prescrita é o contrário do que a menina fez. Essa intimidação
sensibiliza o enunciatário para o medo (comportamento submisso) e
pelo medo (modalizador patêmico).
Tais artimanhas do lobo que, narrativamente, se representam
em dois PNs de aquisição de competência – aquisição do saber e do
poder (SN1 – PN do lobo) – contribuem, portanto, para a construção
enunciativa do conto exemplar, da advertência, que constituem a “re-
ceita”. “Receita”, que se foi tecendo desde o encaminhamento tímico
fundamental, mas que se firmou pelo nó narrativo da sanção em to-
dos os PNs.
Em que fase da Seqüência Narrativa do Enunciatário (SN3) se
inseriria essa “receita”? Na competência, que corresponde a “aquilo
que faz ser, vale dizer, todas as preliminares e os pressupostos que
tornam a ação possível” (Greimas, 1989, p. 62). É essa receita que
doa ao enunciatário um saber viver submisso, reificado, alienado,
numa vida encolhida, cego para o desconhecido, amordaçado num
cotidiano sombrio. Jamais a ousadia, o bosque, as florzinhas à-toa, o
correr atrás de borboletas inúteis.

11 Considera-se o enunciado um destinador manipulador, porque ele não é visto como coi-
sa inanimada (Exemplo: “O remédio curou-me.”), em que a manipulação seria ausente
e, sim, como produto da enunciação, em que se esconde um fazer persuasivo de um
enunciador e em que se projeta um fazer interpretativo de um enunciatário. Campo de
confrontos e relações, esse enunciado não pode, portanto, ser visto como “coisa inani-
mada”. 105
Intertextualidade e conto maravilhoso

Modalizou-se o enunciatário pelo medo, para que ele, assimi-


lando a “receita”, tivesse uma performance de submissão.
No entanto, para que esse contrato de fidúcia enunciador/enun-
ciatário se realizasse, o enunciatário, antes de sensibilizar-se, teria de
ter uma disposição para isso, e essa disposição pressupõe, por sua
vez, uma constituição – inata ou adquirida, não importa.
Subentender-se-ia à SN3, portanto, uma automanipulação pré-
via do enunciatário, para querer manter a segurança, a própria vida, a
estima do outro e “ganhar o chapeuzinho vermelho”, valores que
correspondem à constituição e à disposição para o medo, isto é, se
quer manter, tem medo de perder.
Isso é o que Greimas (1993, p. 147) chama “constituição”, o
fundamento da paixão, que se expande na “disposição” e que gera a
“sensibilização”:

A constituição apresenta-se, independentemente de seu caráter ad-


quirido ou inato, como predisposição geral do sujeito discursivo
aos percursos passionais que o esperam, definindo seu modo de aces-
so ao mundo dos valores e selecionando, previamente, certas pai-
xões mais que outras. Remontando o curso da sintaxe discursiva a
partir da manifestação passional, encontramos, pois, sucessivamen-
te: a sensibilização, que se aplica a uma disposição, que, por sua
vez, prolonga uma constituição.
(...)
CONSTITUIÇÃO → DISPOSIÇÃO → SENSIBILIZAÇÃO

Só assim se entende que o sujeito de SN3 se sensibilize para a


submissão e pelo medo.
É bom que se ressalte o que contraria as aparências: o lobo
mau, ponto de referência do conto, é um instrumento persuasivo da
enunciação, para “catequizar” o enunciatário para e pelo medo, para
ensiná-lo a viver segundo os padrões da “cultura”, que o lobo, como
antidestinador, ameaça.12

12 É oportuno que se resgate a definição de “cultura” de Lotman “como sistema de limita-


106 ções complementares impostas ao comportamento natural do homem. Assim, por exem-
Análise do texto-base Chapeuzinho Vermelho, de Perrault

A oposição entre a aparente docilidade da mãe e a labiríntica


maldade do lobo, respectivamente destinador e antidestinador, faz o
destinatário-leitor ficar “azul de medo”, como disse Larousse.
Falou-se sobre a manipulação da mãe (mais implícita que ex-
plícita) e sobre a do lobo. A narrativa do conto, entretanto, tem como
centro, não a manipulação, mas a performance de ruptura da menina.
Por ela ter-se desviado é que tudo aconteceu. A punição-morte fica
justificada como julgamento daquela ação rebelde. A menina é a úni-
ca culpada. É isso que se lê nos subentendidos do enunciado.
Assim se constrói o simulacro. A menina parece o sujeito-he-
rói, mas é a vilã. O lobo parece o grande vilão, mas é apenas o sujeito
de um PN adjunto para que o PN de base se cumpra: S1 → S2 ∩ Ov
submissão. O herói, então, na verdade, é a cultura, a mãe, o “outro”,
à proporção que o vilão é a natureza, a menina, o “eu”.
O contrato fiduciário enuncivo mãe/menina é projeção do con-
trato fiduciário enunciativo enunciador/enunciatário e o objeto-valor
“submissão”, proposto no enunciado, é ratificado na enunciação, de
onde, na verdade, se originou. Assim se monta basicamente o simu-
lacro.13
O objeto “liberdade” (individualidade) constitui-se, no enun-
ciado, como antiobjeto, na medida em que a menina, sem medo, dá
atenção ao lobo e deixa-se ficar no bosque a não fazer nada de útil.14
Ela vai pelo “caminho mais comprido”, com “avelãs” que colhia,
com “flores do campo”, das quais fazia “buquezinhos”. Tudo tão sem
objetivo, tudo tão oposto ao valor pré-estabelecido, que constrói um
novo valor. Assim vai-se erigindo o antiexemplo para o enunciatário.

plo, o impulso sexual, enquanto necessidade, corresponde à natureza, mas uma vez que
se submete a proibições complementares (as proibições de parentesco, de lugar e de
tempo, segundo o princípio da presença-ausência de sanções eclesiásticas ou jurídicas
etc.) a função natural cede lugar à cultural” (Lotman et alii, 1981, p. 237).
13 “Emprega-se o termo simulacro, em semiótica narrativa e discursiva, para designar o
tipo de figuras (...) com a ajuda das quais os actantes da enunciação se deixam mutua-
mente apreender, uma vez projetados no quadro do discurso enunciado”. (Greimas, 1986,
p. 206)
14 Ela fora enviada para ver a avó e levar-lhe quitutes, porque a avó deveria estar doente.
Trata-se de “valores econômicos burgueses, organizados essencialmente em torno da
utilidade” (Greimas,1993, p. 148). 107
Intertextualidade e conto maravilhoso

A mansidão inicial da menina era uma mentira; parecia, mas


não era, eis uma das pedras com que se constrói esse antiexemplo.
Parecia dócil, manipulável e, como foi dito, fora recompensada com
o “chapeuzinho vermelho”, prêmio pela submissão, numa prova
glorificante pressuposta. Ela já estava tão competente para reificar-
se, que já era “Chapeuzinho Vermelho”. Falhara, entretanto, o julga-
mento da mãe. Havia, na menina, um poder, um querer e um saber
que a modalizavam para a rebeldia. Foi a sua desgraça. Isso o discur-
so enfatiza, apoiado nas transformações narrativas, que se articulam
em torno da sanção. A menina fica sem saída, o enunciatário fica sem
saída. Fora da submissão, da obediência, não há solução.
O enunciatário inibir-se-á, não deverá, nem poderá, nem mais
vai querer ousar, mantendo, assim, a conjunção com a segurança, o
conhecido, a ingenuidade. Ele negará tudo o que o faça entrar em
conjunção com transformações, descobertas, lucidez. Submisso,
massificado, sim; soberano, individualizado, jamais.
Lembrando que a relação elementar da significação se realiza
por “contrariedade”, a cujos termos são aplicáveis a operação de ne-
gação, que gera os contraditórios, e a de afirmação, que gera os com-
plementares, podemos elucidar um pouco mais as transformações
narrativas. Assim, afirmamos que, ao manter a conjunção com a sub-
missão, o sujeito entrou em disjunção com a liberdade, e a recíproca
é verdadeira, pois os contrários se pressupõem numa relação “ou...ou”.
O percurso do sujeito-menina, inicialmente, é, então, da sub-
missão para a liberdade, o que se relaciona, no nível fundamental, à
negação da alteridade e afirmação da identidade.

SUBMISSÃO A B LIBERDADE

108 NÃO-LIBERDADE B’ A’ NÃO-SUBMISSÃO


Análise do texto-base Chapeuzinho Vermelho, de Perrault

Apoiando-nos na manifestação textual, podemos afirmar que,


quando ela sai de casa, está no pólo A; o diálogo com o lobo corres-
ponde ao pólo A’; no bosque, acontece o pólo B; quando ela chega à
casa da avó, sente um medo e um espanto inéditos diante do lobo,
explorando a figura dele com estranheza. Volta, então, ao pólo B’.
Supõe-se, aí, um certo arrependimento pela performance de ruptura,
o que justifica o medo e o espanto, que não ocorreram no primeiro
encontro.
A menina está nesse estado de hesitação, negando a liberdade,
o que pressupõe logicamente afirmar a submissão, quando o lobo a
devora, atingindo o “prazer gustativo” para o qual se modalizara des-
de o início do seu percurso. Comer a avó foi apenas um PN de uso
para que ele adquirisse o “poder” de comer a menina.
Ora, no enunciado, a menina não obedeceu à mãe e ponto
final. Foi devorada pelo lobo. Interrompeu-se a vida, interrompe-
ram-se as seqüências narrativas. Afirma-se a liberdade conotada
com a morte. Vence o lobo, e à sua vitória corresponde a morte da
menina.
Acontece que a menina, após ter interagido com o lobo, ter
cedido à sua manipulação, passa, ela própria, a representar a “nature-
za”, em oposição à “cultura”; a “liberdade”, em oposição à “submis-
são”. Matando-se a “liberdade”, deu-se vitória à “submissão”.
A “participação”, que supõe coragem de expor-se, de correr
riscos, que norteou a opção de performance da menina, foi severa-
mente punida, pois ela deixou de ser “pessoa”, transformando-se em
coisa, em comida simplesmente.
Tudo isso aponta para uma circularidade narrativa, ou seja,
volta-se ao pólo A, da “submissão”, que corresponde, no nível fun-
damental, a nova afirmação da alteridade. A punição da menina im-
plica sua sentença de submissão, a submissão do “eu” ao “outro”. Eis
outro simulacro da enunciação.
Derrotada e submetida a menina, moraliza-se a punição, e a
vitória do lobo, não correspondente à vitória da liberdade, constitui,
antes de mais nada, um recurso estratégico de que se serve a enuncia- 109
Intertextualidade e conto maravilhoso

ção para construir essa trama de enredamento no medo, que é o “con-


to de advertência”.
Tomando como correta a hipótese da volta subentendida ao
pólo A, admite-se a circularidade narrativa:

SUBMISSÃO A B LIBERDADE

NÃO-LIBERDADE B’ A’ NÃO-SUBMISSÃO

Pode-se segmentar o enunciado em quatro partes, numa tenta-


tiva de demonstração dessa evolução narrativa:
Pólo A: a saída da menina – de Era uma vez até aldeia §§ 1 a 4;
Pólo A’: o encontro com o lobo – de Passando por um bosque até
Vamos ver quem chega primeiro §§ 4 a 8;
Pólo B: no bosque – de O lobo pôs-se a correr até flores do campo
§ 9;
Pólo B’: na casa da avó – de Não tardou muito até a devorou §§ 10 a
37.
A volta ao pólo A, implícita, portanto, despontando como uma
estratégia narrativa de circularidade de transformações, fundamenta
a advertência discursiva: fora da submissão não há saída.
Nota-se também o recurso estratégico do discurso, que mini-
miza a terceira parte (pólo B) para a qual se enunciou apenas um
curto parágrafo figurativamente sucinto e temporalmente rápido, pois
deveriam passar quase despercebidas as delícias e belezas fruídas no
encontro com a liberdade.
Nota-se, ainda, que a quarta parte (pólo B’), negando a liber-
110 dade e recuperando, implicitamente, a submissão, é a mais longa do
Análise do texto-base Chapeuzinho Vermelho, de Perrault

enunciado. O significado do medo aí se constrói por oposição ao


não-medo inicial, em que o lobo parecia que era o engraçado “com-
padre lobo” da aventura à vista. O lobo e o medo revelam-se na sua
verdade. Recua a menina, no desejo de querer ser, já que, ao sentir
medo, entrega-se à patética combinação das paixões do não querer
ser.15
A menina, aí, recua, mas é tarde. A irreversibilidade da puni-
ção, a falta de perdão, a impossibilidade de salvação para quem peca
ajudam a privilegiar o medo como sensibilização ótima para um com-
portamento alienado. Aprofunda-se, dessa maneira, o efeito de senti-
do de crueldade, e a advertência se cumpre. A alteração, nesse per-
curso da existência modal do sujeito-menina em conjunção com o
valor liberdade, pode ser assim demonstrada:

querer não ser A B querer ser


SUBMISSÃO LIBERDADE

não querer ser B’ A’ não querer não ser


NÃO-LIBERDADE NÃO-SUBMISSÃO

poder não ser A B poder ser


SUBMISSÃO LIBERDADE

não poder ser B’ A’ não poder não ser


NÃO-LIBERDADE NÃO-SUBMISSÃO

15 Barros explica a paixão do medo como decorrência da modalização do não querer ser
(1989-1990, p. 61). 111
Intertextualidade e conto maravilhoso

poder não fazer A B poder fazer


SUBMISSÃO LIBERDADE

não poder fazer B’ A’ não poder não fazer


NÃO-LIBERDADE NÃO-SUBMISSÃO

SUBMISSÃO A B LIBERDADE

NÃO-LIBERDADE B’ A’ NÃO-SUBMISSÃO

primeiro movimento actancial


segundo movimento actancial
pressuposto

Fica demonstrada, portanto, a evolução modal do sujeito-me-


nina, em conjunção com o valor “liberdade” e as relações confluen-
tes/discrepantes com a submissão.
Confirma-se a “reificação” e, não, a “pessoalização” como o
ponto de partida e de chegada do percurso “exemplar” da menina. De
“Chapeuzinho Vermelho” (coisa eufórica), passa a ser simplesmente
comida (coisa disfórica), confirmando o absolutismo do “outro” so-
bre o “eu”. Esse “outro”, que se impõe cruel e coercitivamente ao
“eu”.
Lotman (1981, p. 237-9), ao descrever a origem dos mecanis-
112 mos semióticos da cultura, aponta para a dicotomia vergonha – medo
Análise do texto-base Chapeuzinho Vermelho, de Perrault

e seu desdobramento na antítese nós – eles. Ao nós, relaciona o códi-


go de honra, que se fundamenta na vergonha. Ao eles, o medo. “O
medo e a coerção definem a nossa relação com os outros”.
Prossegue, sugerindo uma relação de poder subjacente ao medo,
ao afirmar que, enquanto a vergonha “regulava o que era comum a
todos os homens (...), o medo definia a sua especificidade em relação
ao Estado, ou seja, precisamente àquilo que (...) resultava cultural-
mente hegemônico”.
Essa hegemonia do medo, que funda enunciativamente a ad-
vertência, apoiando-se no entroncamento narrativo da sanção, supõe,
portanto, uma relação de dominação que, embasando a evolução modal
descrita do sujeito, faz com que vença o estado modal da obediência
reificadora.
Permanecer nessa obediência é negar-se a si mesmo como in-
dividualidade, mas, ao fazê-lo, nega-se também “o outro” (o “eu”
precisa do “outro” e a recíproca é verdadeira), deslizando essa nega-
ção para o eixo neutralizante em que se fixa o tripé anteriormente
citado: não-vida, não-morte, reificação.
O que acontece, portanto, no conto, é confirmar-se implicita-
mente o estado inicial de reificação, uma reificação, no final, trans-
formada em punição. Se, antes, a menina era uma não-pessoa, uma
“coisa”, era uma “coisa” bela, amada e, pressupõe-se, feliz. Agora, é
coisa-nada. Essa oposição, ajudando a amedrontar, modaliza o enun-
ciatário a querer não buscar a liberdade, a não querer ser livre. O
conto, por sua vez, deixa de ser simples lugar de “transmissão de
mensagem”, para ser “campo de interação e manipulação intersubje-
tiva”.16 Cumpre-se, assim, a eficácia da comunicação.
Observando um pouco mais a narrativa da enunciação, nota-
mos o contrato enunciativo que se estabelece entre um Destinador e
um Destinatário, baseado num fazer crer sutil de um Destinador que,

16 “Em semiótica, e mais particularmente em sócio-semiótica, é a partir dos elementos de


sintaxe narrativa e modal que se visa a dar conta da eficácia da comunicação real, conce-
bida como campo de interação e de manipulação entre sujeitos (e não como simples
lugar de transmissão de mensagens)”. (Greimas, 1986, p. 73) 113
Intertextualidade e conto maravilhoso

no caso de SN3, trata de “fazer qualquer coisa de tal forma que o


sujeito modalizado se institua, após esse fazer, como um sujeito com-
petente” (Greimas, 1989, p. 177).
Eis aí a especificidade do conto de advertência. O enunciador
doa um “saber viver” ao enunciatário, instruindo-o por meio de uma
“receita”. Pode-se afirmar que, nesse conto-receita, o “fazer do sujei-
to modalizador é igualmente (...) um fazer ser, isto é, uma perfor-
mance – mas de natureza estritamente cognitiva” (Idem, ibidem).
“Chapeuzinho Vermelho”, o conto-advertência, insere-se, por-
tanto, na modalização factitiva, no fazer-fazer, no “fazer de forma
que o outro faça”, por meio da construção do objeto-valor. O
enunciador constrói o enunciado que, por sua vez, constrói a “re-
ceita” modalizadora para o enunciatário, que entrará em conjunção
com a submissão. Tudo obedecendo a um esquema de programa-
ção.
Toda a Seqüência Narrativa do Enunciado (SN1) corresponde,
portanto, à atualização da competência do enunciatário (SN3) antes
da sua realização. Isso acontece também com a receita culinária.
Cotejou-se tanto a construção do conto com uma receita culi-
nária, que é bom que se resgate a construção da Sopa ao pesto
(Greimas, 1983, p. 157-69). Trata-se de uma sopa de legumes, à qual
é acrescentado o pesto, uma pasta de ervas amassadas à parte, em
recipiente próprio.
Assim se expressa Greimas:

A receita de cozinha, apesar de formulada, na superfície, com a aju-


da de imperativos, não pode ser considerada como uma prescrição,
regida por um /dever-fazer/ subentendido ao conjunto do texto. Ela
se apresenta, antes de mais nada, como uma proposição de contrato
do tipo: “Se você executar corretamente o conjunto de indicações
dadas, você obterá a sopa ao pesto”. Trata-se então de uma estrutura
actancial que coloca dois sujeitos – o destinador e o destinatário –
situados na dimensão cognitiva: o destinador, normalmente encar-
regado de modalizar o destinatário, não se preocupa em lhe transmi-
tir um /querer-fazer/ nem um /dever-fazer/, contentando-se de o in-
114 vestir da modalidade do /saber-fazer/.
Análise do texto-base Chapeuzinho Vermelho, de Perrault

No conto, o tipo de proposição contratual é o mesmo que o da


receita, só que de maneira contrária. Lá, apesar de imperativos, não
há prescrição; aqui, apesar de não haver imperativos explícitos, há
prescrição. Há, subentendido, um dever fazer e um dever ser segun-
do o outro. Confluem, ambos, conto e receita, ainda, na doação do
saber fazer, como investimento modal prioritário.
Há, também, no conto, uma interdição, um dever não fazer,
dever não ser segundo a própria individualidade. Para a dêixis positi-
va da submissão, aplica-se a modalidade da prescrição; para a dêixis
negativa da liberdade, a interdição.17 Assim, o enunciatário firma-se
na competência modal de um sujeito amedrontado e alienado, que
será recompensado com o chapeuzinho vermelho. Existe a hipótese
de um enunciatário que promova a troca de objetos, isto é, a submis-
são pela liberdade. Nesse caso, recusa a manipulação que a sanção
do conto lhe impõe, porque tem competência para isso, ou seja, deve,
pode, sabe estar em conjunção com a submissão, mas não quer. Não
quer, sabe, e pode não querer, porque detém um outro saber.
O sujeito-enunciador (SN2), por sua vez, foi manipulado, como
vimos, pelos valores ideológicos que constroem S1, cristalizados no
actante sociedade para, acima de tudo, dever reproduzir tais valores.
A competência doada por S1 e a competência que lhe é inerente18
sofrem, portanto, a orientação de uma prescrição, que direciona a
performance, a construção do enunciado; esta, por sua vez, gera uma
sanção positiva: o enunciador é recompensado, porque é lido.
A performance de S2 nessa seqüência narrativa é vista, por-
tanto, como programada, para servir de exemplo, e programadora,
enquanto construção de um exemplo. Esse exemplo, o enunciado,
subsumindo, portanto, uma programação, constrói o saber fazer pelo
antiexemplo. Dá o exemplo pelo antiexemplo: a menina. Dá a receita

17 Isso corresponde à circulação desses valores na época da produção do conto, em que um


cristianismo duro, de resgate, suscitava a linha do auto-esvaziamento da pessoa para o
preenchimento com Deus.
18 Trata-se da competência discursiva e textual que Greimas afirma definir “a própria enun-
ciação, como instância de mediação que possibilita a performance, ou seja, a realização
do discurso-enunciado” (1989, p. 64). 115
Intertextualidade e conto maravilhoso

pela anti-receita: a performance da menina. Assim sendo, o enuncia-


do constitui, em SN3, o destinador que reforça e viabiliza o desejo de
repressão do enunciatário. Essa repressão supõe segurança, seguran-
ça supõe submissão.
Pode-se pressupor que o enunciatário já tenha, previamente,
um “querer viver bem” e esteja, portanto, naturalmente modalizado
para a submissão, como o leitor de uma receita culinária que, se su-
põe, tenha o seu querer para isso. O conto dá um saber fazer ao enun-
ciatário, reforça-lhe aquele querer pressuposto, manipula-o para uma
performance a contento, fazendo tudo isso, principalmente, pela ên-
fase na sanção, o ponto central da estrutura narrativa.
Como vemos, o conto avança, em complexidade, sobre a re-
ceita, devido aos simulacros da enunciação que, nele, são mais su-
tis e exigentes, mas, tal como a receita, apresenta-se como “um
percurso sabiamente programado de ações a realizar” (Greimas,
1983, p. 159-60). Ancora-se no maravilhoso, de forma que, como
na receita, “as modalidades aparentes, manifestadas na superfície
discursiva, não correspondam ao estatuto modal do texto revelado
pela análise”.
Moralizando-se implicitamente a sanção negativa, ao ser ava-
liada positivamente, enunciador e enunciatário são levados a conde-
nar a participação, a liberdade, o desejo de identidade. Assim se defi-
ne a moralização enquanto “regulação do devir social” e enquanto
“discurso que recai sobre (...) o respeito das regras e dos códigos
implícitos, em vigor numa dada cultura” (Greimas, 1993, p. 152-3).
Medo é paixão inserida numa ordem social e veiculada pelas
artimanhas da enunciação. Triunfando o medo, no balanço final, na
verdade, quem triunfa é a ordem social. É a cultura que se reafirma.
A vitória do lobo (figurativização da ordem natural) constitui apenas
um PN de uso para que o PN de base da SN3 se cumpra:
PN de base: S1 → PN de uso
→ (S2 ∩ Ov submissão)
[ aceitar, pelo medo, um modo de vida
cuja receita é dada ]
116 S1 – Enunciador S2 – Enunciatário
Análise do texto-base Chapeuzinho Vermelho, de Perrault

O observador social sofre os efeitos dessa moralização, de acor-


do com as variações das culturas e das épocas. Assim, o poder do
medo encontra um enunciatário maximamente sensibilizado no sé-
culo de Perrault, o que não acontece em nosso século, com uma
moralização às avessas, e com um discurso que faz, como será de-
monstrado, uma releitura lúdica, crítica e poética do medo.
Falou-se em simulacros, com o que se poderia supor que o
discurso do conto se afastaria daquele da receita culinária. Engano!
O próprio Greimas (1983), ao falar da Sopa ao pesto, fala, por exem-
plo, do “código cultural implícito” (p. 161); das “principais transfor-
mações de /cru/ em /cozido/”, que correspondem à passagem do “na-
tural” ao “cultural” (p. 163), do caldeirão, em que se cozinham os
legumes, em oposição ao pilão em que se amassa o pesto e do signi-
ficado dessa oposição (p. 162); da sopa de legumes que se direciona
por uma “solidificação” e do pesto, por uma “liquefação” (p. 165); e,
finalmente, da “fusão dos dois objetos (que) produz o objeto comple-
xo, líquido e sólido, que é a sopa ao pesto”.
Simulacros foram apontados no preparo da sopa e no “prepa-
ro” do conto. Aqui, como lá, imbricam-se os programas e percursos
narrativos em relação de implicatura hierárquica. Tomam-se, portan-
to, os mecanismos da construção da receita, adaptando-os a esse uni-
verso veridictório que, malgrado seu estatuto de conto maravilhoso,
parece modalizar o enunciatário para a fantasia, para o sonho, para o
vôo, mas modaliza-o para a submissão e pelo medo.
É nesse simulacro que “Chapeuzinho Vermelho” se cumpre,
como a construção de um “objeto de valor, quer dizer, um objeto no
qual seja investido um valor, cuja conjunção com S2 seja suscetível
de aumentar seu ser” (do objeto) (Greimas, 1983, p. 161). Cumpre-
se, portanto, mais como “conto de advertência” do que como conto
maravilhoso, na medida em que faz da submissão meta a ser perse-
guida e do medo, paixão nefasta, o caminho necessário para atingir
essa meta.

117
Intertextualidade e conto maravilhoso

4 – Nível discursivo

“Chapeuzinho Vermelho”, de Perrault, publicado em 1697, na


corte de Luís XIV, é, como sabemos, um dos oito contos maravilho-
sos enfeixados na obra Contos de ma mère L’Oie.
Em Contos maravilhosos e contos de fadas, Coelho (1987, p.
13-4) faz uma distinção entre contos de fadas e contos maravilhosos.
Os primeiros, “com ou sem a presença de fadas”, têm “argumentos
que se desenvolvem dentro da magia feérica (reis, rainhas, príncipes
(...), gênios, bruxas, gigantes, anões) e têm como eixo gerador uma
problemática existencial (...) ligada à união homem-mulher. (...) São
de origem celta, integrados no ciclo novelesco arturiano”.
Como conto maravilhoso, Coelho aponta as “narrativas que,
sem a presença de fadas, via de regra se desenvolvem no cotidiano
mágico (animais falantes (...), gênios, duendes etc.) e têm como eixo
gerador uma problemática social”, tratando sempre “do desejo de
auto-realização do herói no âmbito socioeconômico. Originaram-se
das narrativas orientais e enfatizam a parte material/sensorial/ética
do ser humano”.
A nós, basta classificar “Chapeuzinho Vermelho” como um
discurso maravilhoso, que se opõe ao discurso do senso comum,
pela ancoragem figurativo-temática no mundo dos possíveis, em
que o “absurdo”, visto pela consciência lógica, é substituído pelo
“real”, visto pela consciência mitológica, que está na gênese do
maravilhoso.
Coelho (1987, p. 66) afirma, ainda, que Perrault resgata os
“relatos maravilhosos/ exemplares, guardados pela memória do povo
e dispõe-se a redescobri-los”, criando “o primeiro núcleo da literatu-
ra infantil ocidental”, num momento em que todo um “caudal de nar-
rativas maravilhosas já entrara em declínio”.
Ao dizer “caudal de narrativas maravilhosas”, Coelho refere-
se ao maravilhoso primitivo, oriental, céltico e medieval.

Ao final do século XVII, na França, parte delas (das narrativas ma-


118 ravilhosas) fora absorvida pelo povo e transformara-se em narrati-
Análise do texto-base Chapeuzinho Vermelho, de Perrault

vas populares folclóricas, esvaziadas de sua essencialidade primiti-


va;19 outra parte diluira-se nos romances preciosos, nos quais as
aventuras heróico-amorosas da novelística medieval tendem a ser
substituídas pelas aventuras sentimentais patéticas (...). A valentia
cavaleiresca cede lugar ao romanesco (1987, p. 65).

Perrault participou de uma polêmica com Boileau, seu compa-


nheiro de Academia. Essa polêmica celebrizou-se sob o nome de
“Querela dos Antigos e Modernos”. Aí, Perrault “sustentava a tese
de que as obras dos autores modernos se comparavam favoravel-
mente com as dos antigos. (...) Boileau era de opinião diametralmente
oposta e defendeu com unhas e dentes a idolatria imitativa pelos es-
critores da Antigüidade” (José Paulo Paes, in: Perrault, 1963, p. 8).
Coelho faz a seguinte ligação do nascimento da literatura in-
fantil, sob as mãos de Perrault, com a referida querela:

Uma coisa, porém, é indiscutível: tal redescoberta do popular, em


plena crise dos valores clássicos/aristocráticos, na França de Luís
XIV, está (...) ligada à Querela dos Antigos e Modernos (que dividiu
a Academia Francesa e marcou, historicamente, o crepúsculo do
Classicismo).
(...)
Parece evidente que, com a redescoberta dessa literatura popular,
autenticamente francesa e, portanto, moderna, Perrault pretendia
provar a identidade de valores entre a criação dos novos povos e a
produção dos antigos (gregos e romanos), tidos como modelos su-
periores pela cultura oficial (1987, p. 66-70).

É curioso observar que, segundo Coelho, “Perrault não iniciou


seu trabalho de redescoberta do maravilhoso popular preocupado com
as crianças”. Publicou Grisélidis, uma “recriação em versos (...) de
um fabliaux 20 do folclore francês”; depois, Os desejos ridículos, re-

19 Discordamos desse esvaziamento da essencialidade primitiva detectado por Coelho nas


“narrativas populares folclóricas”, visto as considerarmos transformações dos mitos,
carregando, ainda, muitas marcas deles, como será demonstrado.
20 Fabliaux – “poemas narrativos breves, muito famosos no folclore francês. Jocosos e
mordazes e, na maior parte, grosseiros na crítica de costumes, que representam” (Coe-
lho, 1987, p. 85). 119
Intertextualidade e conto maravilhoso

criação de um conto antigo; depois, A pele de asno, uma adaptação,


quando, então, “se manifesta sua intenção de produzir uma literatura
para crianças. Esses três primeiros livros foram publicados (...) em
1696”. Coelho ainda afirma:

A partir daí, Perrault volta-se inteiramente para essa redescoberta


da narrativa popular maravilhosa, com um duplo intuito: provocar a
equivalência de valores ou de “sabedoria” entre os Antigos greco-
latinos e os Antigos nacionais e, com esse material redescoberto,
divertir as crianças, principalmente as meninas, orientando sua for-
mação moral.21 (...) A época de Perrault correspondeu, pois, à deca-
dência do racionalismo clássico (“A razão é a medida de todas as
coisas”) e à conseqüente exaltação da fantasia, do imaginário, do
sonho, do inverossímil.

Ilustrações do século de Perrault

Prosseguindo nessas observações contextualizantes do conto


“Chapeuzinho Vermelho”, buscamos “ouvir alguma voz” pertencen-
te a esse século. Foi-nos interessante o contato com textos ilustrativos
que, de certa forma, demonstram materializações das formações ide-
ológicas desse momento histórico. Dessa pausa para “olhar ao re-
dor”, transcrevemos um excerto de Foucault (1983) que comenta a
rigidez disciplinar do século XVII, com o medo gerando o que ele
denomina corpos dóceis, e outros excertos, também citados por ele,
que dão exemplos desses procedimentos:

21 A essa preocupação de orientar a formação moral das meninas, acrescenta-se que Coe-
lho ressalta, em Perrault, um certo apoio à causa feminista de então, liderada por uma
sobrinha. Vemos, entretanto, que esse apoio é só no modo do parecer, pelo que se deduz
do conto. Acrescenta-se também que, anexas aos contos, Perrault deixou as moralidades,
facultativas nas edições consultadas de “Chapeuzinho Vermelho”: Assim se vê que a
pequenada,/ Meninas, principalmente,/ Sendo gentis e engraçadas,/ Mal andam em dar
crédito a toda a gente./ Depois não é de admirar/ Se o lobo vier e as papar./ Eu digo o
lobo, pois os ditos/ Nem todos são iguaizinhos:/ Há uns que são mais mansinhos,/ Qui-
etos, ternos, sossegados,/ Os quais, brandos, recatados,/ Vão perseguindo as donzelas/
Até a casa, e às vezes até se deitam com elas./ Quem não vê, pois, que os lobos carinho-
120 sos/ De todos são decerto os mais perigosos? (Perrault, 1977, p. 99-100).
Análise do texto-base Chapeuzinho Vermelho, de Perrault

l. Esses métodos que permitem o controle minucioso das operações


do corpo, que realizam a sujeição constante de suas forças e lhes
impõem uma relação de docilidade-utilidade, são o que podemos
chamar as “disciplinas”. Muitos processos disciplinares existiam há
muito tempo: nos conventos, nos exércitos, nas oficinas também.
Mas as disciplinas se tornaram no decorrer do século XVII e XVIII
fórmulas gerais de dominação. (...) A disciplina fabrica, assim, cor-
pos submissos e exercitados, corpos “dóceis”. A disciplina aumenta
as forças do corpo (em termos econômicos de utilidade) e diminui
essas mesmas forças (em termos políticos de obediência) (p. 126-7).
2. O treinamento dos escolares devia ser feito da mesma maneira
(que o dos soldados); poucas palavras, nenhuma explicação, no
máximo um silêncio total que só seria interrompido por sinais –
sinos, palmas, gestos, simples olhar do mestre:
“O primeiro e principal uso do sinal é atrair de uma só vez todos os
olhares dos escolares para o mestre e fazê-los ficar atentos ao que
ele lhes quer comunicar. Assim, toda vez que este quiser chamar a
atenção das crianças e fazer parar qualquer exercício, baterá uma
vez. Um bom escolar, toda vez que ouvir o ruído do sinal pensará
ouvir a voz do mestre ou antes a voz de Deus, mesmo que o chame
pelo nome. Entrará então nos sentimentos do jovem Samuel, dizen-
do com ele, no fundo de sua alma: Senhor, eis-me aqui” (p. 150).22

Referindo-se à disciplina escolar e ao mandamento de que “é


proibido perder um tempo que é contado por Deus e pago pelos ho-
mens” (p.140), Foucault relata, então, o “ritmo imposto por sinais,
apitos, comandos”, impondo a todos “normas temporais que deviam
ao mesmo tempo acelerar o processo de aprendizagem e ensinar a
rapidez como virtude”. Segue, extraída da mesma obra de Foucault
(1983), uma gravura da época comentada, mostrando uma “máquina
(...) para a rápida correção das meninas e dos meninos”:

22 Essa citação, que consta da obra de Foucault, tem a seguinte indicação: Ch. Lucas, De la
réforme des prisons, vol. I, 1836, p. 69. 121
Intertextualidade e conto maravilhoso

122
Análise do texto-base Chapeuzinho Vermelho, de Perrault

Todas essas observações contextuais dizem respeito à enun-


ciação pressuposta em “Chapeuzinho Vermelho”, essa instância fun-
dadora do discurso-enunciado, que deverá ser recuperada, entretan-
to, no e pelo enunciado. “Chega-se ao sujeito (da enunciação) pelo
caminho do discurso, reconstrói-se a enunciação por meio da análise
interna do texto” (Barros, 1990, p. 82).
A análise discursiva incumbe-se, portanto, de perseguir e des-
velar as marcas da enunciação no enunciado, por isso tais observa-
ções contextuais permanecem, em princípio, na dimensão da pausa
ilustrativa. Veremos como Perrault reage a esses princípios, a esses
dogmas do seu tempo. Afinal, “a palavra vai à palavra”, como afirma
Bakhtin (1988a, p. 147).

CHAPEUZINHO VERMELHO LE PETIT CHAPERON ROUGE

“CHAPERON (de chape): enfeite da Idade Média, usado por ambos os sexos e que
era, na origem, um capuz que cobria a cabeça e o pescoço até os ombros, deixando
a face descoberta. O chaperon das mulheres tinha uma longa cauda pendente e era
por esse detalhe que se reconheciam as damas de classe, até os meados do século
XVII. É por isso que se chamava chaperon uma mulher respeitável, encarregada de
acompanhar uma jovem menina” (Larousse, s/d., p. 691).
“CHAPERON: lenço (écharpe) que elas (as mulheres) usavam sobre a touca; era
marca de classe média ou burguesia. (...) lenço de veludo, cetim, (...) que as moças e
as mulheres que não eram mais solteiras usavam sobre a cabeça há muito tempo”
(Dictionnaire de l’Academie, 1694). (...) Os chaperons eram outrora, como até hoje,
acessórios das velhas senhoras em certos países” (Richelet, 1680). (...) “Uma velha
(...) responsável pela conduta de uma adolescente” (chamava-se chaperon) (Jean
Elzevir, 1706). Apud Perrault, 1981, p. 323. 123
Intertextualidade e conto maravilhoso

Observou-se, anteriormente, o conto, nas tessituras narrativas.


Para tanto, refizeram-se relações, (des)construíram-se nós, fio por
fio, nós desse tecido despojado e abstrato, que é a narrativa. Adentra-
se, então, o discurso, em que se fortalecem os fios e o tecido recebe
um investimento palpável, concreto e complexificado.
O enunciador, em “Chapeuzinho Vermelho”, esconde-se tanto
em percursos figurativos do maravilhoso, isto é, na antropomorfização
de animais, num tempo perdido nos tempos, num espaço fluido, em
atores não-individualizados, como se esconde, ele mesmo, num
narrador-observador bastante “ausente”. É como se o discurso se nar-
rasse sozinho. Assim se escondem a advertência e a catequese para a
submissão e para o medo.
Por meio do enunciado-enunciado, que, narrativamente se
triparte em três percursos, o prévio, o da menina e o do lobo (SN1, do
Enunciado), projeta-se a advertência contra a aventura da busca da
identidade, contra a coragem de ir além do Bojador, valorizando-se,
ao contrário do poeta, o medo da dor.23 Enquanto na narrativa,
entroncam-se os percursos na sanção da performance de ruptura da
menina, no discurso veicula-se, veladamente, a repressão. No “di-
zer” (no ser), uma intencionalidade que cria um antiexemplo para
viabilizar a alienação e neutralizar a participação; no “dito” (no pare-
cer), um conto maravilhoso em que um lobo mau devora uma pobre
menina indefesa.24 No enunciado-enunciado, uma aventura mal-su-
cedida, em que se fica com medo do lobo mau, ou se ratifica o medo

23 Enunciação é a instância lingüística, pressuposta pelo enunciado, que é o estado dela


resultante. A enunciação atualiza a subjetividade da linguagem, é a dimensão do ego, hic
et nunc. Ela é sempre pressuposta no enunciado, o seu pressuponente. Ela é o “lugar
privilegiado da fidúcia”, porque aí se estabelece o contrato da manipulação entre as
“instâncias actoriais enunciativas” (Greimas, 1986, p. 77). Quando a enunciação se enun-
cia, temos a enunciação enunciada, “o conjunto de marcas identificáveis no texto, que
remetem à instância de enunciação” (Fiorin, 1994, p. 39). Quando não há marcas que
remetem à enunciação, temos o enunciado-enunciado, o “texto enuncivo”. O enunciado-
enunciado só significa, portanto, em relação à enunciação, pressuposta ou enunciada. A
enunciação, por sua vez, só significa em relação ao enunciado-produto, e em relação às
formações ideológicas que a produzem.
24 O “dizer” e o “dito”, esse jogo do “ser” e do “parecer” na comunicação, constituem
conceitos de estratégias de argumentação introduzidos por Ducrot, que trabalhou com
124 esse par em outro quadro teórico.
Análise do texto-base Chapeuzinho Vermelho, de Perrault

do Mal. Na enunciação, o perigo do encontro com a própria identida-


de, o perigo da adesão à liberdade. A enunciação esconde-se, assim,
num discurso que não só tem o estatuto figurativo de irrealidade, como
de mágico e de maravilhoso. Tudo para dissimular a advertência que,
dessa maneira, mais fortemente persuade o enunciatário para seus fins.
O sujeito da enunciação constitui-se, portanto, pelo que ele
não é, ou seja, um “eu” lúdico, que relata fatos de um tempo e de um
espaço longínquos, um “então” e um “alhures”.
Esse discurso, comprometido, então, em persuadir o enunciatá-
rio a negar a liberdade e a aceitar, pelo medo, um modo de vida, exalta
a receita desse modo de vida. Isso, pelo exemplo da punição irreversível
sofrida pela menina, o que constitui uma ameaça ao enunciatário.
A figura dessa menina aldeã introduz a debreagem enunciva
desse discurso, remetendo a um bucolismo do mundo primitivo, an-
corado num tempo indeterminado que, por sua vez, inscreve-se no
maravilhoso com o protocolo Era uma vez.
Figurativizando pela generalidade, já que ela era a mais bonita
de quantas existiram, o discurso mantém o efeito de indeterminação,
de não-individuação, do não-familiar e começa, não só confirmando o
maravilhoso, como apelando para a memória interdiscursiva do enun-
ciatário, com o resgate do estoque de fatos e feitos míticos e arquetípicos.
A menina nasceu definitivamente a partir e por causa do mo-
mento em que foi denominada. Trata-se de um nascimento mitológi-
co, portanto, já que denominar, no mundo mitológico, é criar.25
O discurso resgata, portanto, o mito nos percursos figurativos
que seleciona e na condensação desses percursos em papéis temáticos
específicos.26

25 “A passagem do caos à ordem (=cosmos) faz-se por meio de um ato de linguagem. É


esta que dá sentido ao mundo. O poder criador da divindade é exercido pela linguagem,
que tem, no mito, um poder ilocucional, já que nela e por ela se ordena o mundo. (...) Ao
mesmo tempo em que faz as coisas, Deus denomina-as. No universo mítico, dar nome é
criar” (Fiorin, 1994, p. 7).
26 “Os percursos figurativos podem ser relacionados a uma personagem com a ajuda de um
papel temático, que constitui um condensado, um resumo de todos os percursos” (Groupe
d’ Entrevernes, 1984, p. 98). 125
Intertextualidade e conto maravilhoso

O efeito de indeterminação se fortalece em só lhe chamavam


Chapeuzinho Vermelho, on l’ appelait le Petit Chaperon Rouge, em
que a indeterminação sintática do sujeito reforça, no enunciado, a
voz indeterminada, ratificando as distâncias.
O sujeito impreciso uma menina aldeã parecia estar, no início
do conto, num espaço impreciso de harmonia, que, por sua vez, pare-
cia estar na confluência dos elementos homem e natureza. Não é as-
sim, entretanto. Esse espaço bucólico, que localiza toda a narrativa,
ora desdobrar-se-á na figurativização da “cultura”, ora, da “nature-
za”, de acordo com a evolução dos papéis temáticos assumidos pelos
atores. A “cultura”, enquanto intervenção do “outro”, mantém-se em
segredo, atrás das portas da casa da mãe e da avó. A “natureza”,
enquanto descoberta do “eu”, mostra-se perigosamente na floresta.
Acontece que essa liberdade desejada e mostrada na e da floresta
significa em oposição àquela submissão imposta e dissimulada na e
da casa. O espaço da harmonia era um espaço de conflito, apesar de
não parecer.
A programação espacial, que se desdobra na oposição espaço
interno vs. espaço externo, ajuda, portanto, a construir a oposição
submissão vs. liberdade e tem debreada, concomitante a ela, a pro-
gramação temporal. Esta, realiza-se num tempo mais que impreciso,
ou seja, numa analogia à ucronia do Paraíso, num tempo ucrônico.27
Ancoram-se, então, os programas narrados em atores que po-
dem ser qualquer um de nós, em espaços que podem ser qualquer
lugar, em tempos que podem ser o nosso, já. Tudo isso porque o
discurso desloca a narrativa para muito longe de um agora, assim
como a eleva, até, de um determinado então.
Com a fórmula enunciva mágica do Era uma vez, o discurso
constrói uma irrealidade, instalando, depois, uma realidade nova, por
meio de uma debreagem interna enunciativa de 2º grau, Vai ver como
está tua avó, em que a enunciação, criando um “eu” para melhor se
simular, inaugura o tempo histórico, repetindo o desafio que Deus

27 “Ucronia – aquilo que não se situa nem se pode situar em nenhum tempo” (Holanda,
126 1986, p. 1732).
Análise do texto-base Chapeuzinho Vermelho, de Perrault

fez a Adão ao enunciá-lo, Multiplicai-vos, enchei a Terra e sujeitai-


a (Gênesis, cap. I, v. 28).
O conto começa, então, com um tempo verbal durativo, não-
acabado: Era uma vez... sua mãe era... o chapeuzinho assentava... só
lhe chamavam... Esse intróito ao maravilhoso, relatando fatos conco-
mitantes ao então, colocado no passado, ajuda a construir o efeito de
irrealidade, já projetado no ele actorial e no alhures espacial, resga-
tando também um tempo anterior ao tempo histórico. A terra era sem
forma e vazia; havia trevas sobre a face do abismo (Gênesis, cap. I,
v. 2).
Recuperando percursos figurativos do mitológico, numa mes-
ma configuração discursiva, como será visto, o discurso firma o ma-
ravilhoso, que se escancara, logo no início, com o Era uma vez, o
elemento desencadeador dessa isotopia.
Com o tempo inacabado, reitera-se a perspectiva de que tudo
pode acontecer outra vez, o que conduz sutilmente à advertência, ou
ao exemplo, confirmando também a natureza do conto exemplar.
Recuperando, ainda, o quadrado semiótico das relações cate-
goriais fundamentais, vemos que o primeiro parágrafo do conto é
vinculado a um tempo em que a menina está em conjunção com a
estaticidade, a continuidade, a submissão, ou a própria conjunção.
Esse tempo, tecido de mágica incoatividade e duratividade,
encaixa-se na “temporalidade retensiva, remissiva (...): um tempo
‘imóvel’, ‘parado’, que satisfaz à adequação” e que se liga ao “espa-
ço fechado” opondo-se a uma “temporalidade emissiva: um tempo
que corre, que passa” e que se liga a um “espaço aberto”.28
“Um dia sua mãe... disse...”. A partir daí, até “Chapeuzinho
saiu no mesmo instante para ir à casa de sua avó” (§ 4 – início), o
sujeito evolui para a não-estaticidade, não-continuidade, não-submis-
são, não-conjunção, com essas formas verbais que indicam concomi-
tância pontual em relação ao momento de referência pretérito. Abre-

28 Essas observações foram baseadas num estudo sobre a temporalização feito por
Zielberberg em Greimas (1986, p. 234). 127
Intertextualidade e conto maravilhoso

se a cena da prova, rompe-se a duratividade temporal expressa no


primeiro parágrafo.
“Passando por um bosque, aí encontrou compadre Lobo” (§
4). Começa, aí, a ruptura, a disjunção, a dinamicidade, a liberdade
(pólo B do quadrado), que se estende até o momento em que Chapeu-
zinho Vermelho, “ouvindo a grossa voz do Lobo... teve medo” (§
19). Paremos nesse momento, precioso para a evolução da narrativa.
Voltaremos a ele adiante.
Transgressão e punição. Estamos diante de percursos temáticos
que, repousando em nosso inconsciente, remetem ao homem primiti-
vo e ao homem de todos os tempos. Estamos diante também dos
ingredientes com que Perrault constrói sua receita, sua advertência.
Abramos parênteses, então, para esse tom primitivo, que Perrault
soube respeitar, trazendo ao simulacro do seu discurso a economia e
a simplicidade das grandes verdades, ditas com bastante impacto e
com poucas palavras.
Observemos duas figuras, a do alimento e a do animal que,
confirmando esse tom primitivo, ajudam a enunciação a construir o
caráter de conto exemplar e, conseqüentemente, a advertência deste
discurso. Comecemos pelo alimento.
(...) sua mãe, tendo assado uma fornada de pãezinhos, disse à
menina:
– Vai ver como está tua avó, pois me disseram que anda
doente; leva-lhe uns pãezinhos e esta tigelinha de mantei-
ga. (§ 3)
– Vou à casa da vovó levar-lhe um pãozinho e uma tigeli-
nha de manteiga...(§ 5)
– É sua neta (...) que traz para a senhora um pãozinho e
uma tigelinha de manteiga... (§ 13, fala do lobo)
– É sua neta (...), que traz para a senhora um pãozinho e
uma tigelinha de manteiga que minha mãe lhe envia. (§
20, fala da menina)
– Põe o pãozinho e a tigelinha de manteiga no guarda-co-
128 midas e vem deitar-te na cama comigo. (§ 25)
Análise do texto-base Chapeuzinho Vermelho, de Perrault

O discurso ocupou cinco dos trinta e sete sucintos parágrafos


do texto para a expressão reiterada do percurso figurativo do alimen-
to, cuja citação parece constituir uma senha para o desencadear de
uma ação ritualizada, porque repetida. Isso, sem contar as citações da
vontade (do lobo) de comer a menina (§ 4), do momento em que o
lobo num instante a devorou (a avó), pois fazia mais de três dias que
estava em jejum (§ 16) e, nos dois parágrafos finais, do porquê dos
dentes tão grandes.
A saída da menina justifica-se pela propiciação do alimento a
outrem, a morte da menina e da avó justifica-se pela ingestão do
alimento por outrem.
Antonio Candido (1975, p. 55-6), analisando a correspondên-
cia entre a criação literária e “certas necessidades de representação
do mundo”, aponta para “o significado que a obra adquire como ela-
boração estética de um problema fundamental, e para nós bastante
prosaico: o do ajustamento ao meio físico para sobrevivência do gru-
po, fenômeno básico em toda sociedade humana e sobretudo absor-
vente nas primitivas e menos evoluídas” (grifo nosso). Assim pros-
segue o relato de suas pesquisas, destacando, como exemplo, “as
necessidades fundamentais do homem, sobretudo as da nutrição”.

O estudo de Audrey Richards, sobre a alimentação de uma tribo


banto e sua relação com a vida social, mostra que a comida e o
processo digestivo assumem, para o primitivo, uma importância e
um significado psicológico que não podemos supor a partir do nos-
so próprio comportamento; e que são capazes de suscitar manifesta-
ções artísticas incompreensíveis para o civilizado, acostumado a
elaborá-las e senti-las sobre outras bases psicossociais. (...) Comer
é, de certo modo, um ato mágico.

Perrault não apenas soube transferir esse apelo primitivo para


o seu discurso, como soube reproduzi-lo e recriá-lo para seus fins, ou
seja, simulando procedimentos primitivos e ritualísticos entre os ato-
res, forja um enunciado acima dos limites de tempo e espaço, em que
o enunciatário, sem saber como, crê, e ao qual o enunciatário, sem
saber por quê, obedece. 129
Intertextualidade e conto maravilhoso

A escolha não-aleatória da figura do lobo, por sua vez, tam-


bém funda essa advertência e, pela coerência na construção de todos
esses recursos, espraia-se o poder de persuasão do enunciador.
Vemos, nessa figura, um malabarismo da enunciação, pelo tipo
de ancoragem actorial, que apresenta um ator cujos papéis temáticos
são discrepantes com os papéis figurativos, ou seja, o sujeito ardiloso
e sedutor, que assume o papel temático de um obsessivo, está, figura-
tivamente, na pele de um animal. De um animal, ainda, não só com
fama de embusteiro e perigoso, mas também com status de sagrado.
Precisamos fazer uma pausa com algumas observações sobre
a figura do lobo.
Soriano (1968, p. 155) refere-se ao lobo de “Chapeuzinho Ver-
melho” como “um verdadeiro lobo, (...) representando um perigo
material bem real”:

Os lobos, na época, não eram um perigo imaginário. Um número


relativamente considerável de crianças e de adultos eram mortos
cada ano por essas feras, sobretudo em regiões situadas em desvios
das grandes vias de comunicação.

Citando, ainda, o Dicionário universal de agricultura e jar-


dinagem, caça e pesca, de Paris (David le Jeune, 1751, t. II, 107,
108, 122 e 123), Soriano refere-se à “proliferação do lobo”, devido
ao fato de a caça a esse animal ter-se tornado um “privilégio dos
nobres” no século de Perrault.
Câmara Cascudo (1976, p. 145-6), ao estudar o mito brasilei-
ro, Lobisomem, comenta a figura do Lobo, que aparece inicialmente
associada a Zeus:

Licaon, rei da Arcádia (Grécia), filho de Pélago, primeiro soberano


da região, tentou matar Zeus, seu hóspede de uma noite. O Deus
castigou-o, dando-lhe a forma vulpina (...). E, antes de tornar-se lobo,
já o soberano árcade tinha esse nome Licus, Luko, lobo.
Para alguns mestres da mitologia pré-helênica, houve um Zeus-
Licaeus. Outros ensinam que essa evocação é posterior ao castigo
de Licaon. (...) Dizem também que o primitivo Zeus-Licaeus era a
130 mais antiga crença local. A confusão viera entre luko-lobo e luke-
Análise do texto-base Chapeuzinho Vermelho, de Perrault

luz. O Zeus-Licaeus era o deus da luz, que ora matava, ora sucum-
bia aos golpes de seu filho Nietimus, a escuridão, dando assim o
ciclo das noites e dos dias.

As religiões pastoris, segundo o mesmo pesquisador, adora-


vam o Deus-Lobo e, em Roma, sempre houve o culto lupino.

Rômulo e Remo tinham sido criados por Acca Laurentia, uma pros-
tituta, “loba”, como apelidavam as mulheres que rondavam as vie-
las e lugares escuros para o amor furtivo. A representação de Acca
Laurentia como o animal que dava nome à sua profissão, populari-
zou a espécie bestial.

Segundo, ainda, o mesmo pesquisador, a loba sagrada de Roma,


a Luperca deificada, deu origem aos Lupercais, ritos de purificação,
sob a égide dos lobos, que passaram, no ano de 494 depois de Cristo,
a ter o nome de Festa da Purificação.
Chetwyind (1986, p. 62) faz estas afirmações sobre o ato “de
comer, de ser devorado”, tomando-o como símbolo do “processo di-
nâmico da vida e da natureza”:

Em termos de Espírito, o Eu consciente devora o Inconsciente, até


este devorar aquele. (...) Em termos da sociedade humana, o indiví-
duo é devorado pelo grupo social, e depois o devora. (...) Comer/ser
comido: Nós comemos, engolimos e somos tragados – é uma ques-
tão de devorar e ser devorado. Mas comer também transforma o
alimento (a matéria) em energia. Portanto, em sendo devorados, nós
voltamos à força universal. (...) Monstros e gigantes devoram pes-
soas. Eles são os vestígios dos poderes divino e inconsciente, as
mandíbulas da morte.

Os percursos da generalidade e da indeterminação, que se cons-


troem com palavras gramaticais, como uma vez, um chapeuzinho,
um dia, e se confirmam na ausência de demarcações espaço-tempo-
rais, bem como nos nomes próprios, Chapeuzinho Vermelho, e, mes-
mo, o Lobo, enfeixam-se na configuração discursiva do fruto proibi-
do, em que as figuras do alimento e do animal sedutor ajudam a
constituir o fundo figurativo comum entre duas invariantes, como
veremos mais adiante. 131
Intertextualidade e conto maravilhoso

É bom que se acrescente que as afirmações recém-observadas


sobre as figuras do alimento e do lobo não constituem o “empenho de
interpretar qualquer texto como alegórico ou simbólico”, que Lotman
(1979, p. 36-7) classifica como um procedimento do “tipo medieval”
da cultura, mas são válidas na medida em que servem para subsidiar
percursos figurativos de determinadas configurações discursivas.
Voltemos aos atores. Debréiam-se, então, enunciativamente, o
eu mãe, o eu menina, o eu lobo, o eu avó, que, por sua vez, consti-
tuem-se também como o tu, no simulacro do diálogo. Assim, estabe-
lecem-se interlocutores, é dada voz a atores já inscritos no discurso.
Por falar em voz, a menina é um ator com oito turnos de fala, num
texto com vinte e quatro parágrafos desenvolvidos em discurso dire-
to, que apresentam a fala da mãe em um turno, do lobo em onze, e da
avó em dois turnos; o mais, fica por conta da onomatopéia, que se
repete. A menina é, portanto, um sujeito que se mostra, que tenta,
também pelas debreagens enunciativas, firmar-se enquanto pessoa,
apesar da força da repressão que a joga para outro pólo, o da “coisa”,
ou seja, o da reificação.
Debréiam-se também um espaço e um tempo enunciativos, este
vs. aquele, agora vs. não-agora e, com a predominância da debreagem
interna de 2º grau, firmam-se efeitos de verdade, firma-se a ilusão de
estar ouvindo a voz do “outro”.
A verossimilhança do maravilhoso vai sendo construída gra-
dualmente. O apelativo compadre Lobo, no início, prenuncia a
antropomorfização do animal. No início, ele fala indiretamente, a
voz do narrador invade a sua. Perguntou-lhe o lobo aonde ia ela.
Trata-se de uma “variante analisadora de conteúdo do discurso indi-
reto” (Bakhtin, 1988a, p. 161), que cria um efeito de objetividade,
sem elos afetivos, sem nenhuma peculiaridade de expressão, com
vistas a ir viabilizando, em pequenas doses, uma performance huma-
na do animal. Vemos que a pergunta já é do lobo, a responsabilidade
é dele, mas a palavra lhe vai sendo dada devagar.
A menina responde ao lobo, instalando-se como interlocutora,
e o diálogo vai fazendo “reais” as palavras, “real” aquele mundo.
132
Quanto mais real, mais cruelmente amedrontador.
Análise do texto-base Chapeuzinho Vermelho, de Perrault

A oposição entre debreagem enunciva, isto é, pessoa, espaço e


tempo enuncivos, e debreagem enunciativa interna, isto é, pessoa,
espaço e tempo enunciativos, ou mundo “irreal” vs. mundo “real”,
constrói, estrategicamente, um reforço para a fundamentação do ma-
ravilhoso que, pela diferença, se impõe como significado verossímil
e faz crer.
Ainda observando a fala das personagens, há que se deter na
embreagem que acontece na fala do lobo, que se faz passar pela me-
nina: “É sua neta Chapeuzinho Vermelho – disse o Lobo, disfarçando
a voz – que traz para a senhora um pãozinho e uma tigelinha de man-
teiga que minha mãe lhe envia”. Suspendeu-se, aí, a oposição entre
eu e ele, empregando-se a 3ª pessoa, é, traz, em lugar da 1ª, sou,
trago. Esvaziou-se a pessoa e se colocou no lugar a máscara, a persona.
O discurso reitera esse procedimento, já que a mesma fala é
repetida no parágrafo 20, na voz da própria menina. Na repetição
sintático-semântica, preenchida pela figura do alimento, está a cons-
trução dos efeitos de distância e de primitivismo, coerentes com a
configuração discursiva do fruto proibido, ponto de confluência en-
tre o conto e o mito da queda.
“É sua neta... que traz... um pãozinho e uma tigelinha de man-
teiga que minha mãe lhe envia”. Criou-se uma ambigüidade na em-
breagem com o emprego do pronome possessivo minha. Essa
ambigüidade, 3ª/1ª pessoa, mostra a subjetividade que, ao ser elidida
com a imposição da 3ª pessoa, tenta manter-se novamente. É a pes-
soa vs. a persona também na sintaxe. A persona, o papel, na força da
elisão provocada pela embreagem; a pessoa, no traço infantil, lúdico,
de quem se identifica por trás de uma porta.
É sua neta... disse o Lobo, disfarçando a voz. Vemos que, nes-
sa fala, vai-se confirmando o tema do ardil do lobo, pelo segredo e
pela mentira. O lobo parece a menina e não é, constituindo a simula-
ção, a mentira; não parece o lobo e é, constituindo a dissimulação, o
segredo. A mentira, construída, assim, para que o segredo fosse man-
tido, possibilitou que o PN de uso, comer a avó, e o PN de base,
comer a menina, se realizassem. Além disso, esse ardil mentira/se-
133
gredo faz com que se confirme a advertência e, até, o maravilhoso.
Intertextualidade e conto maravilhoso

Confirma-se este, ao revelar um lobo não só “inteligente”, mas extre-


mamente “esperto”, malabarista, que sabe jogar com o parecer e o
ser discursivos.
Tudo isso, com a ilusão de que o enunciado se narra sozinho,
com um narrador “ausente”, com uma debreagem temporal enunciva
cravada num marco referencial pretérito, que subsume toda a narrati-
va. Só poderia ser assim, para dar as mãos a esse percurso figurativo
da imprecisão e da generalidade, que constroem o maravilhoso.
Esse papel projetado objetivamente pelo eu da enunciação,
sofre, entretanto, uma ruptura no trecho seguinte, quando emerge a
subjetividade enunciativa: “Perguntou-lhe o Lobo aonde ia ela. A
pobre criança, que não sabia como era perigoso dar ouvidos a um
lobo, respondeu: Vou...”.
A verdade da enunciação está no pressuposto de que é muito
perigoso dar ouvidos a um lobo. Essa verdade emerge do narrado, é
como se o narrador tomasse a palavra e dissesse-a. A enunciação
quase se revela, para, também num mecanismo de persuasão, mos-
trar que, no mais, está ausente, ou seja, para melhor se dissimular.
Com a anulação da distância entre enunciação e enunciado, consti-
tui-se a enunciação enunciada. Nela, o ator-narrador faz uma intrusão,
assumindo, por um frágil momento, o fio condutor do discurso.
No pressuposto, está o presente verbal, ou uma concomitância
entre o momento do acontecimento, com o marco referencial presen-
te e com o próprio momento da enunciação. No enunciado, mantém-
se, entretanto, o pretérito imperfeito, mantendo-se a continuidade
enunciva do discurso. Usou-se, então, o pretérito imperfeito pelo pre-
sente, para que não se enfraquecesse o efeito de distância.
“Chapeuzinho Vermelho tira a roupa e vai deitar-se, mas fica
muito espantada... Então diz... (§ 26). Aí está, num outro jogo da
enunciação, o presente usado pelo pretérito, o que constrói o efeito
de realidade. Essa presentificação do passado insere-se numa estraté-
gia de suspense: arquiteta o impacto introdutório para o diálogo fi-
nal, manipula o enunciatário para algo diferente que vai acontecer,
134 algo que não tinha acontecido antes.
Análise do texto-base Chapeuzinho Vermelho, de Perrault

Parece que diminuem, nesse presente histórico, as distâncias


entre o então do enunciado e o agora da enunciação; simula-se um
salto de uma não-concomitância para uma concomitância com esse
agora. Isso, num momento especial da narrativa, quando o lobo vai
deixar o jogo da mentira, lobo/menina, lobo/avó e vai entrar para o
eixo da verdade lobo/lobo. Tudo isso, a partir do § 26 até o final do
conto. Observemos com mais atenção esse segmento do texto, intro-
duzido pelo espanto da menina ao ver a figura da avó despida.
Medo e espanto. Do parágrafo 19 ao 35, incluindo o diálogo
final, temos um sujeito que tenta retroceder, entrando no eixo contra-
ditório à ruptura, isto é, a não-ruptura, a não-liberdade, a não-identi-
dade. Dissemos retroceder, porque, nessa hesitação da modalidade
epistêmica (crer ou não crer?), a menina demonstra que vai recupe-
rando o antigo poder ver, o antigo querer ser segundo a alteridade,
que supõe a submissão.
A estranheza da menina corresponde a um percurso de não-
aceitação do maravilhoso. “– Avó, como são grandes as suas ore-
lhas... como são grandes os seus olhos... como são grandes os seus
dentes!”
Pastour (1975, p. 26) analisa esse fenômeno pelo percurso/
maravilhoso/não-maravilhoso/estranho/, estando no estranho não
só a oposição ao maravilhoso, como a sua total não-aceitação pelo
enunciatário que, assim modalizado, tenta explicar tudo racional-
mente. No não-maravilhoso, está a hesitação, que cria o fantástico:
“Entre a aceitação do sobrenatural (o maravilhoso) e a explicação
(o estranho) há um terceiro percurso: a hesitação, criação do fantás-
tico”.
“Ouvindo a grossa voz do Lobo, teve medo” (§ 19)... “fica
muito espantada vendo a figura da avó despida. Então diz (§ 26): –
Avó, como são grandes os seus braços!” Segundo Pastour (1975, p.
26-7), o maravilhoso supõe uma aceitação de toda forma do sobrenatu-
ral: “quando Cinderela vê a fada transformar a abóbora em carruagem,
ela não manifesta nenhuma surpresa”. Chapeuzinho Vermelho hesitou
e, nos cinco turnos finais de sua fala, cresce o fantástico, decresce o
maravilhoso, e se consuma a negação da liberdade, do desconheci- 135
Intertextualidade e conto maravilhoso

do, da ruptura (pólo B’ do quadrado fundamental). “Esta posição


intermediária do fantástico, a fragilidade própria de sua essência (a
hesitação) fazem dele não um gênero estável, mas um gênero
evanescente...”. – confirma Pastour nas mesmas páginas.
O eu e o tu (menina e lobo) fortalecem-se polêmica e simetri-
camente (sujeito e anti-sujeito) nesse trecho “fantástico”, de tensão
crescente. Essa tensão, reforçada no diálogo pela ausência do ele-
mento enquadrante, que é o verbo dicendi, gera o suspense, cujo clí-
max está no último turno da fala do lobo, quando, surpreendente-
mente,29 aparece o dêitico te: “É para te comer!”
Nesse diálogo final entre a menina e o lobo (avó), o peso se-
mântico das palavras aumenta, a caracterização desaparece; o narrador
se ausenta “totalmente”. Tudo faz criar um segmento (do § 27 ao §
36) completamente atípico dentro da seqüência do texto. Veremos
oportunamente por quê.
Desde que a menina “ouviu a grossa voz do lobo e teve medo”
e ficou “muito espantada, vendo a figura da avó despida” (§§ 19 e
26), há um enfraquecimento do sincretismo actorial lobo/avó e, com
a iminente revelação do segredo, do qual enunciador e enunciatário
partilham (o lobo é lobo, apesar de não parecer), aprofunda-se o
suspense. Incoativamente, ela vai vendo o lobo/lobo e, não, o lobo/
avó. O enunciatário pergunta: e agora?
Com a desestabilização, surge a possibilidade de que a narrati-
va desencadeie novos programas, isto é, de que a menina passe a um
estado de disjunção com o crer e inaugure, como sujeito “ofendido”,
um PN de vingança. Isso tudo, antes do diálogo final.
No diálogo final, entretanto, morre essa possibilidade. Cresce
a malignidade do lobo, de todo revelada no § 36: É para te comer!”
e de todo consumada no § 37: ... se atirou sobre Chapeuzinho Verme-
lho e a devorou. Et, en disant ces mots, le mechant loup se jeta sur le

29 No original, somente o primeiro turno da fala do lobo possui o tu: C’est pour mieux
t’embrasser. Depois, C’est pour mieux marcher, pour mieux écouter, pour mieux voir,
pour mieux te manger. Na tradução, o te é colocado desde “É para te ver melhor”, o que
136 diminui a surpresa.
Análise do texto-base Chapeuzinho Vermelho, de Perrault

petit Chaperon Rouge et le mangea.30 A antropofagia, primeiro, enun-


ciou-se: E, com essas palavras... para, depois se realizar de maneira
pontual, terminativa, numa ação acabada: a devorou.
O sincretismo actorial lobo/avó se constrói, portanto, como
um segredo na enunciação, partilhado entre enunciador e enunciatá-
rio, isto é, o lobo é lobo e não parece, e como uma mentira no enun-
ciado, isto é, o lobo parece humano e não é.
Nesse segmento textual correspondente ao “fantástico”, ao
“estremecimento do maravilhoso” (do § 19, quando a menina teve
medo até o final), essas modalidades veridictórias evoluem para o
eixo da verdade, ou seja, é o lobo e parece o lobo. A verdadeira bes-
tialidade realiza-se e, para tanto, até o vocativo minha neta apaga-se
da última fala do lobo.
Verificamos, portanto, que o lobo, sujeito narrativo, cujo pro-
grama todo compunha a fase de sanção do PN da menina e cujo obje-
to de valor modal era querer ter prazer gustativo, revela-se, discursi-
vamente, em toda a sua “maldade”.
Voltando à menina, podemos esquematizar a projeção da opo-
sição de valores, básica no percurso gerativo do sentido, apoiando-
nos na manifestação textual e apontando o valor predominante de
cada segmento, valor este com o qual o sujeito está em conjunção:
Pólo A: §§ 1 a 4 – Submissão
Pólo A’: §§ 4 a 8 – Não-submissão
Pólo B: § 9 – Liberdade
Pólo B’: § 10 a 37 – Não-liberdade 31
Recuperando, assim, a narrativização de valores assumidos por
um sujeito, na seqüência sintagmática de programas, temos clarea-
dos os percursos figurativos, que concretizam o tema da repressão e,

30 Observa-se que foi suprimido, na tradução, o termo méchant, que se pode traduzir como
maligno, perverso, e é muito importante para a coesão lexical.
31 Observa-se, aí, a astúcia da enunciação que deu ao segmento textual que manifestava a
liberdade um tratamento exíguo, com a extensão linear de um parágrafo apenas, enquan-
to ao segmento “precioso”, porque “exemplar”, da negação da liberdade, proporcionou
uma privilegiada extensão na linearidade textual. 137
Intertextualidade e conto maravilhoso

conseqüentemente, da submissão, bem como o tema da rebeldia e,


conseqüentemente, da liberdade.
Fez-se uma decomposição com a finalidade de manejo do tex-
to, mas vê-se que tais unidades, apesar de superficiais, pertencendo
mais ao nível da manifestação do que do discurso, fundamentam-se
nas relações categoriais dos níveis mais profundos.
Revestindo o tema da repressão, está o percurso figurativo da
vida familiar, com o apoio das figuras da mãe, da avó, loucas de
amor pela menina. Ainda, com a mesma função, estão as figuras do
próprio chapeuzinho vermelho, da mãe assando pãezinhos, da mãe
mandando pãezinhos e manteiga para a avó. Pelo traço primitivo do
alimento, vai-se delineando o caráter de uma história de todos os
tempos, de todos os lugares e de todas as pessoas, isto é, uma história
que se pode repetir indefinidamente, ou seja, uma história exemplar.
O discurso usa esse caráter exemplar para reforçar sua advertência.
Revestindo o tema da rebeldia, está o percurso figurativo da
aventura, com o apoio das figuras do bosque, do compadre Lobo, de
dar ouvidos ao Lobo, do próprio diálogo inicial com ele e, finalmen-
te, da permanência no bosque (§ 9). Aí, a rebeldia consuma-se nas
figuras do “caminho mais comprido”, do divertir-se,32 do “colher
avelãs”, do “correr atrás de borboletas” e do “fazer buquezinhos com
flores do campo”.
A figura da outra aldeia, recuperando a figura da aldeã com o
anafórico outra, traz o traço da distância e do desafio que, neste con-
texto, ajudam a tecer o significado da prova exemplar.
Entrelaçam-se, portanto, no percurso figurativo da aventura, o
tema do sonho, da leveza, da fruição. Tudo traduz a performance de
ruptura, detectada narrativamente, ou seja, dar ouvido ao desconhe-
cido, ir pelo caminho mais comprido, divertir-se, correr atrás de bor-
boletas, fazer buquezinhos de flores do campo.33

32 Sente-se a intensidade da transgressão, que é a menina “divertir-se”, ao cumprir a tarefa,


quando se retoma a extrema obrigação de não perder tempo, fundamento da educação
infantil do século XVII, como exemplificou Foucault, em páginas anteriores.
33 Observe-se que esse sintagma “correr atrás de borboletas” possui, nos termos destaca-
138 dos, uma duplicação do traço semântico da dinamicidade.
Análise do texto-base Chapeuzinho Vermelho, de Perrault

Observamos, como já dissemos, que, na oposição espacial casa


vs. bosque (próprio vs. alheio), está a relação categorial submissão
vs. liberdade, ou alteridade vs. identidade. O espaço “casa” consti-
tui, então, um destinador dos valores do cotidiano, da ordem, do bem;
o bosque, um destinador da aventura, do caos, do mal.
Verificamos, assim, a força discursivizadora do espaço; não se
trata, pois, de meros quadros em que se inserem os encadeamentos
dos programas narrativos, mas constitui, ele próprio, um destinador
de tais programas. Essa é a sua natureza modalizadora de relações
valorativas aqui, neste conto maravilhoso. Assim também o é no mito.
É bom que se aprofundem as relações entre o conto e o mito,
levadas em consideração por esta análise. Para tanto, detenhamo-nos
neste “conjunto de significações virtuais, suscetíveis de serem reali-
zadas pelos discursos e pelos textos, através de percursos figurati-
vos” (Groupe d’Entrevernes, 1984, p. 95), que é a configuração dis-
cursiva.
Inicialmente, temos de ratificar o fato de que o conto “Cha-
peuzinho Vermelho”, diferentemente dos outros contos, na sintag-
mática narrativa, pela sanção negativa final e pelo entroncamento de
PNs nessa sanção, aproxima-se do mito.
Mieletínski, em artigo intitulado “Tipologia estrutural e fol-
clore” (1979, p. 54-5) afirma claramente que “o casamento do herói é
o momento-chave da semântica, na sintagmática e na axiologia do
conto maravilhoso”, ressaltando aí, uma diferença entre o conto ma-
ravilhoso e o mito:

Nos mitos-contos primitivos, o membro final da sintagmática do


enredo pode ser tanto positivo (aquisição) quanto negativo (perda),
o último sendo mais raro, enquanto nos contos maravilhosos clássi-
cos, ele é sempre positivo (final típico: casamento com a princesa).
(...)
A semântica característica do mito do “próprio” e do “alheio” com-
pleta-se no conto maravilhoso por meio da oposição muito impor-
tante “inferior-superior”, em relação à qual é justamente o casamento
que realiza a mediação. E no que se refere ao caráter da mediação em
si, o conto maravilhoso clássico é essencialmente distinto do mito. 139
Intertextualidade e conto maravilhoso

Ora, cabe, aqui, lembrar que, no início deste capítulo, enfati-


zamos a afirmação de Soriano de que “Chapeuzinho Vermelho” é o
único conto que termina mal, à qual ele acrescenta a pergunta: “seria
um gosto especial pelo pesadelo?” (1968, p. 152).
Chapeuzinho Vermelho, a menina, não só não tem uma fada
protetora, uma boa estrela, como não é salva por nenhum príncipe.
Mieletínski (1979, p. 55) acrescenta que:

No conto clássico de feitiçaria, as contradições fundamentais do tipo


“vida-morte” cedem freqüentemente lugar a intensos conflitos so-
ciais, habitualmente no nível familiar; e a mediação consiste no fato
de que o herói como que escapa do conflito graças à sua boa estrela,
mais ou menos prestativa, que o leva ao enlace com a princesa e à
mudança de status social.

Esse final típico de casamento com o príncipe (ou princesa),


obrigatório no conto maravilhoso clássico e ausente de “Chapeuzi-
nho Vermelho”, certamente o aproxima do mito. Não só na narrativa,
mas também e, principalmente, no discurso, há pontos de confluên-
cia do mito com o conto.
Não se confundem, entretanto, mito e conto. Mieletínski (1979,
p. 53), apesar de citá-los numa “única zona de difusão de cultura
arcaica”, aponta “diferenças notáveis” entre eles, por meio das opo-
sições: “sagrado/profano; autenticidade rigorosa/não-rigorosa; desti-
no cósmico, coletivo/familiar, individual; tempo pré-histórico/inde-
terminado”.
“Chapeuzinho Vermelho”, distanciando-se dos outros contos
e aproximando-se do mito, sem ser um conto-mito, permanece numa
margem fluida, que o aproxima também da saga.34 Tudo isso o man-
tém único e solitário no contexto maravilhoso. Conserva-se, neste
conto, por exemplo, a oposição mitológica próprio vs. alheio, que se

34 A saga é uma narrativa trágica da vida de um herói. Eliade (1963, p. 171) assim se
expressa a respeito: “A saga ladeia o mito, o conto não (...). Ao passo que o herói das
sagas tem um fim trágico, o conto sempre tem um desfecho feliz (...). Na saga, o herói se
situa num mundo governado pelos Deuses e o destino. O personagem dos contos, ao
contrário, parece estar emancipado dos Deuses; seus protetores e companheiros bastam
140 para assegurar-lhe a vitória”.
Análise do texto-base Chapeuzinho Vermelho, de Perrault

figurativiza na oposição espacial casa vs. bosque e actorial mãe/avó


vs. lobo, ou seja, clã vs. indivíduo, o outro vs. o eu.
O tema da transgressão também é mitológico: “O tema do mito
como texto baseia-se freqüentemente na transgressão por parte do
herói da fronteira do espaço ‘reduzido’ e fechado e a sua passagem a
um mundo sem limites” (Lotman, 1981, p. 138).
Pode-se afirmar que o conto maravilhoso, em geral, aproxi-
ma-se, discursivamente, do mito, pelo fato de ter como enunciatário
pressuposto um sujeito dotado de uma consciência mitológica, que
se aproxima da consciência da criança.35 O conto maravilhoso tam-
bém aproxima-se discursivamente do mito pela sua origem folclóri-
ca, que supõe uma tradição oral, que pressupõe, por sua vez, um
enunciador vinculado a um contexto primitivo. São os “grupos étni-
cos que se encontram nas fases primitivas do desenvolvimento cultu-
ral” e que, segundo Lotman, “se caracterizam por um pensamento
vivamente tingido de mitologismo”.
O fundamento da consciência mitológica é, para Lotman, a
incompatibilidade com a metáfora. Podemos entender, então, o fato
de que, para o enunciatário-criança, o lobo realmente fala, a menina e
o lobo verdadeiramente conversam; o lobo realmente se transforma
na avó, não havendo necessidade de explicações metalingüísticas ou
descritivas.
Esse enunciatário, ainda um tanto livre da censura lógica, in-
sere-se na história, quase como o homem primitivo. O enunciador
sabe disso, por isso direciona adequadamente suas estratégias argu-
mentativas. Conta o essencial, eis um dos procedimentos. “Chapeu-
zinho Vermelho”, então, para a criança, aproxima-se do mito, mas
para o adulto, é uma metáfora.
Desse cotejo, pode-se concluir que “Chapeuzinho Vermelho”
é um conto que apresenta traços míticos. Não poderia ser mito, por-
que mantém a especificidade do conto maravilhoso, que é, segundo

35 Lotman afirma que a “consciência da criança” é “tipicamente mitológica”, e isso signi-


fica “intraduzível”, tecendo relações de “identidade imediata”, de “isomorfismo entre o
mundo descrito e o sistema de descrição” (1981, p. 131). 141
Intertextualidade e conto maravilhoso

Mieletínski (1979, p. 54), a “invenção poética consciente”, a “trans-


formação da imaginação ‘etnográfico-concreta’ numa imaginação
poética generalizada (em certa medida até mesmo convencional)”.
“Poesia e mito encontram-se nos antípodas” (Lotman, 1981,
p. 147), mas podemos, mesmo assim, cotejar o conto com o mito.
Tomemos o mito bíblico da queda.36
Encontramos, subjacente a ambos, a configuração discursiva
do fruto proibido, definida como a rebeldia, a aventura da submissão
para a liberdade, que se realiza em percursos figurativos diversos,
isto é, ouvir o lobo e entrar no bosque, ouvir a serpente e comer a
maçã.
Essa configuração discursiva, unidade semiótica virtual, da qual
um percurso figurativo “não é senão apenas uma das realizações pos-
síveis” (Groupe d’Entrevernes, 1984, p. 95) constitui, portanto, pon-
to de junção entre “Chapeuzinho Vermelho” e um mito.
Considerando a configuração discursiva fruto proibido, uma
“espécie de micronarrativa que tem uma organização sintático-se-
mântica autônoma” (Greimas, 1989, p. 73), que lhe dá o status do
motivo e a mobilidade deste, observamos entre o mito e o conto os
seguintes “papéis configurativos”: um destinador que intimida – Deus,
mãe; um antidestinador que seduz – serpente, lobo; um sujeito que
tem uma performance de ruptura, ou de troca de valores – Eva, meni-
na – e que é punido.
É na axiologização da punição, entretanto, que o conto mais se
afasta do mito. Exatamente na punição, recém-apontada como ponto
de aproximação entre eles.
No mito da queda, a transgressão supõe, em última instância, a
gênese do homem, a morte supõe um começo. No conto, a transgres-
são supõe morte-fim.

36 “Mas a serpente (...) disse à mulher: É assim que Deus te disse: Não comereis de toda
árvore do Jardim? Respondeu-lhe a mulher: Do fruto das árvores do jardim podemos
comer, mas do fruto da árvore que está no meio do jardim, disse Deus: Dele não comereis,
nem tocareis nele para que não morrais. Então a serpente disse à mulher: É certo que não
morrereis. Porque Deus sabe que, no dia em que dele comerdes, se vos abrirão os olhos
142 e, como Deus, sereis conhecedores do bem e do mal” (Gênesis, 3: 1-5).
Análise do texto-base Chapeuzinho Vermelho, de Perrault

Ao conhecer a morte (Tu és pó e ao pó tornarás), o homem


conhece a vida. O mito, se se recuperar o quadrado do significado
fundamental, permanece no eixo do termo complexo da pessoaliza-
ção e o conto, no eixo neutro da reificação.
O mito, verdadeiramente, reúne os opostos. O conto transita
no eixo do neutro, veiculando uma grade cultural que privilegia a
submissão e a alienação. Lá, o sujeito se constrói como pessoa; aqui,
como coisa.
Refletindo uma realidade, o conto cria uma supra-realidade,
um universo veridictório abstrato, ficcional, que faz crer. Refletin-
do uma realidade, o mito cria outra realidade, um universo verda-
deiro, concreto, que faz crer-crer.37 Aí repousa outra relação de di-
ferença.
No mito, tem-se a passagem da natureza à cultura; no conto,
da cultura à natureza. Impossível, portanto, identificar ambos os dis-
cursos, ou querer propor que este capta aquele intertextualmente.
Trata-se de duas invariantes discursivas, mas que apresentam um fun-
do comum, em cujo interior evoluem.
Esse fundo comum constitui o núcleo figurativo, com a figura
comum ou invariante da transgressão, ou seja, o animal mitológico
que seduz a figura feminina para a liberdade, somando-se aí, tam-
bém, o alimento como figura da interação entre os sujeitos.
Cercando esse núcleo figurativo invariante, estão as variações
figurativas, isto é, no percurso figurativo do mito da queda, o jardim,
a serpente, Eva, Deus; no percurso figurativo de “Chapeuzinho Ver-
melho”, o bosque, o Lobo, a menina, a mãe; lá, o fruto proibido liga-
se metaforicamente à maçã; aqui, os pãezinhos constituem apenas
um dos meios figurativos da prova exemplar, que era escolher, ou
não, “o caminho mais comprido”, este, sim, o fruto proibido.
Na base, as variações temático-narrativas. No mito bíblico, a
desobediência que leva à morte, morte que inicia a vida; no “Cha-

37 Greimas afirma: “... seu valor cognitivo (do mito), como assim também sua eficácia
prática, são a recompensa deste jogo do fazer-crer. Se o contrato se rompe, o discurso
mítico se torna mito na acepção moderna, ficcional do termo” (1986, p. 149). 143
Intertextualidade e conto maravilhoso

peuzinho Vermelho”, a desobediência que leva à morte, morte


irreversível, fim.
No mito bíblico, a intencionalidade enunciativa de explicar o
confronto fundamental vida/morte, de entender a gênese do mundo e
de seus elementos; no “Chapeuzinho Vermelho”, a programação de
uma receita, isto é, de uma anti-receita, levando o enunciatário a acei-
tar, pelo medo, um modo de vida definido pela alienação.
O fruto proibido, figurativizado na maçã, ou no caminho mais
comprido, no divertir-se, nas borboletas e nos buquezinhos de flores
do campo, longe de ser aleatoriamente projetado pela enunciação,
constitui-se da força ideológica da imposição do medo, do esfacela-
mento do “eu” diante do outro, da confirmação do status quo, do
pavor à mudança. Nesse sentido, o conto resgata tematicamente o
mito.
As personagens são reais, porque são convincentes, em se tra-
tando do conto maravilhoso, e são reais, porque criam a realidade,
em se tratando do mito. O parecer verdadeiro é interpretado como
ser verdadeiro, em se tratando do conto; o ser verdadeiro é interpre-
tado como ser verdadeiro, em se tratando do mito. Em ambos os
casos, realiza-se uma comunicação eficaz, enquanto “concebida como
campo de interação e manipulação entre sujeitos (e não apenas lugar
de transmissão de mensagens)” (Greimas, 1986, p. 73).
Cumpre-se, então, em “Chapeuzinho Vermelho”, a eficácia
prática do jogo entre enunciador e enunciatário: o contrato de
veridicção faz crer e não é rompido em nenhum momento. Até a
hesitação da menina, na crença do maravilhoso, no trecho apontado,
cria, paradoxalmente, um fortalecimento da crença no enunciatário.
Observando um pouco mais a configuração discursiva do fru-
to proibido e a figura invariante do “animal sedutor” lobo/serpente,
temos de dizer que são semelhantes na astúcia e na malignidade. Aten-
te-se para esta semelhança de performance: “– Mas a serpente, mais
sagaz que todos os animais selváticos que o Senhor Deus tinha feito,
disse à mulher: É assim que Deus disse: Não comereis de toda árvo-
144 re do jardim? Respondeu-lhe a mulher: Do fruto das árvores do jar-
Análise do texto-base Chapeuzinho Vermelho, de Perrault

dim podemos comer, mas do fruto da árvore que está no meio do


jardim, disse Deus: Dele não comereis”. Assim perguntou a serpen-
te, conduzindo a resposta do seu interlocutor, num jogo de sagacida-
de, o popular jogar o verde. “– Ela mora muito longe? – perguntou o
Lobo. – Oh, sim! – respondeu Chapeuzinho Vermelho; além do mo-
inho que se vê lá embaixo: na primeira casa da aldeia”. Trata-se de
procedimento semelhante: o interlocutor manipula, perguntando,
numa performance mentirosa, de um parecer ingênuo, mas de um ser
sagaz. Pela pergunta, aparentemente desinteressada, ele obtém a in-
formação que lhe interessa: pergunta x, porque sabe que vai obter y.
A estratégia argumentativa do interlocutor-destinador está direcionada
para a manipulação da competência e da performance do interlocutá-
rio-destinatário. Por isso, são tão malignos quanto espertos esses “ani-
mais sedutores”.
Consideramos essas duas perguntas, a da serpente e a do lobo,
como atos perlocucionais, porque foram feitas para direcionar o
interlocutário, para ajudá-lo a responder e, ao mesmo tempo,
embaraçá-lo. “A perlocução (...) acontece (...) quando se faz uma
pergunta a alguém, seja para embaraçá-lo, seja, ao contrário, para
ajudá-lo” (Greimas, 1989, p. 331). Nesse caso, ajuda o destinatário a
“entregar o ouro”, mas embaraça-o com a ingenuidade aparente, de
maneira que ele não reflita sobre a (má) intenção pressuposta.
Esses mecanismos ajudam a cruzar-se, em “Chapeuzinho Ver-
melho”, as isotopias, como, por exemplo, no sintagma compadre Lobo,
que constitui tanto conector para a isotopia temática da antropomor-
fização maravilhosa, como conector para a isotopia temática da ad-
vertência.
No segundo caso, a isotopia é desencadeada por um efeito de
ironia. Partindo de um paradoxo, ou seja, o compadre Lobo teve grande
vontade de comê-la, o enunciado afirma, por meio do lexema com-
padre, uma familiaridade, mas a enunciação a nega e, na construção
dessa ironia, envolve-se o enunciatário no alerta, como aquele expli-
citado na “moral” de uma das edições de “Chapeuzinho Vermelho”.
O fato de admitirmos que a enunciação, em “Chapeuzinho
145
Vermelho”, usa o encanto para moralizar, faz-nos divergir de José
Intertextualidade e conto maravilhoso

Paulo Paes, que assim se expressa no Prefácio à edição do conto aqui


utilizada:

Perrault não incidiu no pecado capital em que, depois dele, tantos


autores menos bem dotados incidiram: o de se valer do conto de
fadas como pretexto para tiradas moralizantes ou didáticas. É bem
verdade que no prefácio à edição de 1695 dos seus contos em verso
(a que chamava modestamente “bagatelas”) Perrault afirmava en-
cerrarem eles uma “moral útil”, ensinando às crianças “a vantagem
que há em ser honesto, paciente, avisado, laborioso e obediente”.
Mas não se deve levar muito a sério suas pretensões de moralista.
No fundo, não passavam de frouxa justificativa de acadêmico que,
vexado de se comprazer em “bagatelas”, procurava inventar-lhes
uma utilidade, pospondo-lhes moralidades que, tranqüilizando os
Tartufos da época, não chegavam a desvirtuar o encanto das narrati-
vas (Perrault, 1963, p. 9).

Observemos um pouco esse discurso, já mais próximo da fase


final do percurso gerador de sentido, onde se juntam o plano do con-
teúdo e o plano da expressão, não perdendo de vista o sujeito da
enunciação e visando sempre à reconstrução dessa instância.
Cumpre reportarmo-nos, vez ou outra, nesse momento, ao ori-
ginal francês.

Le petit Chaperon rouge

Il était une petite fille de village, la plus jolie qu’on eût su voir,
sa mère en état folle, et sa mère-grand plus folle encore. Cette bonne
femme lui fit faire un petit chaperon rouge qui lui seyait si bien, que
partout on l’appelait le petit Chaperon rouge. Un jour, sa mère ayant
fait des galettes, lui dit: “Va voir comment se porte ta mère-grand, car
on m’a dit qu’elle état malade; porte-lui une galette e cet petit pot de
beurre”. Le petit Chaperon rouge partit aussitôt pour aller chez sa
mère-grand, qui demeurait dans un autre village. En passant dans un
bois, elle rencontra compère le loup, qui eut bien envie de la manger,
146 mais il n’osa, à cause de quelques bûcherons qui étaient dans la forêt.
Análise do texto-base Chapeuzinho Vermelho, de Perrault

Il lui demanda où elle allait. La pauvre enfant, qui ne savait pas qu’il
était dangereux de s’arreter à écouter un loup, lui dit: “Je vais voir ma
mère-grand et lui porter une galette avec un pot de beurre que ma
mère lui envoie. – Demeure-t-elle bien loin? lui dit le loup. – Oh! oui,
lui dit le petit Chaperon rouge; c’est par delà le moulin que vou voyez
tout là-bas, là-bas, à la première maison du village. – Eh bien! dit le
loup, je veux l’aller voir aussi; je m’y en vais par ce chemin-ci, et toi
par ce chemin-là, et nous verrons à qui y sera plus tôt”. Le loup se mit
à courir de toute sa force par le chemin qui était le plus court, et la
petite fille s’en alla par le chemin le plus long, s’amusant à cueillir
des noisettes, à courir après des papillons et à faire des bouquets des
petites fleurs qu’elle rencontrait. Le loup ne fut pas longtemps à arriver
à la maison de la mère-grand; il heurte: “Toc, toc. – Qui est là?” –
”C’est votre fille, le petit Chaperon rouge”, dit le loup en contrefaisant
sa voix, “qui vous apporte une galette et un petit pot de beurre que
ma mère vous envoie”. La bonne mère-grand, qui était dans son lit, à
cause qu’elle se trouvait un peu mal, lui cria: “Tire la chevillette, la
bobinette cherra”. Le loup tira la chevillette et la porte s’ouvrit. Il se
jetat sur la bonne femme et la dévora en moins de rien, car il y avait
plus de trois jours qu’il n’avait mangé. Ensuite il ferma la porte et
s’alla coucher dans le lit de la mère-grand, en attendant le petit
Chaperon rouge, qui, quelque temps après, vint heurter à la porte.
“Toc, toc. – Qui est là?” Le petit Chaperon rouge, qui entendit la
grosse voix du loup, eut peur d’abord; mais, croyant que sa mère-
grand était enrhumée, il répondit: “C’est votre fille, le petit Chaperon
rouge, qui vous apporte une galette et un petit pot de beurre que ma
mère vous envoie”. Le loup lui cria, en adoucissant un peu sa voix:
“Tire la chevillette, la bobinette cherra”. Le petit Chaperon rouge tira
la chevillette et la porte s’ouvrit. Le loup la voyant entrer, lui dit en se
cachant dans le lit sous la couverture: “Mets la galette et le petit pot
de beurre sur la huche et viens te coucher avec moi”. Le petit Chaperon
se déshabille et va se mettre dans le lit, où elle fut bien étonnée de
voir comment sa mère-grand était faite en son déshabillé. Elle lui dit:
“Ma mère-grand, que vous avez de grands bras! – C’est pour mieux
t’embrasser, mon enfant. – Ma mère-grand, que vous avez de gran- 147
Intertextualidade e conto maravilhoso

des jambes! – C’est pour mieux marcher, mon enfant. – Ma mère-


grand, que vous avez de grandes oreilles! – C’est pour mieux écouter,
mon enfant. – Ma mère-grand, que vous avez de grands yeux! – C’est
pour mieux voir, mon enfant. – Ma mère-grand, que vous avez de
grandes dents! – C’est pour te manger”. Et, en disant ces mots, le
méchant loup se jeta sur le petit Chaperon rouge et le mangea.

Charles Perrault. In: Grand dictionnaire universel du XIXe. Siècle. Larousse,


Pierre. Tome Troisième. Paris, 1866-1890, p. 962-3.

Sobre o diminutivo chaperon, do sintagma le petit chaperon


rouge, acrescenta-se esta definição de J. Thiers (apud Larousse, 1866
– 1890, 962):

chaperon (dim. de chape): traje antigo. Espécie de vestuário de mu-


lher, menor que a capa e munido de capuz: Os chaperons eram, an-
tigamente, como são até hoje, um tipo de adorno que serve às velhas
senhoras em certos países (grifo nosso).

Nota-se que, entre todas as acepções observadas do lexema


chaperon, nunca aparece o traço infantil.
Segundo Soriano (1968, p. 154-8), chaperon, que é um arcaís-
mo, é um traço acessório à versão de Perrault:

Este enfeite vermelho que dá seu título ao conto (...) constitui um


traço acessório, particular à versão de Perrault, que não se encontra
a não ser nas versões que ele influenciou diretamente.
(...)
O estudo atento do vocabulário mostra que muitas das (...) palavras
utilizadas pelo narrador são consideradas arcaicas já naquela época
(...) como, por exemplo, mère-grand, chaperon etc.

Na edição de 1981 (p. 325) do conto, aparece a seguinte nota


sobre a escolha lexical cherra:

Futuro do verbo choir, saído de uso (...) desde o século XVII. Richelet
destaca, no entanto, que “o petit peuple de Paris fala je choirai, for-
148 ma vizinha de cherra”.
Análise do texto-base Chapeuzinho Vermelho, de Perrault

Na mesma fonte, sobre chevillette e bobinette afirma-se: “pa-


rece não haver registro desses dois diminutivos (...) nenhuma vez
fora deste conto. Littré não cita nenhum exemplo desse uso”.
Conclui-se, disso, que, “Chapeuzinho Vermelho”, a menina
tão delicada e frágil o que é atestado pelo duplo diminutivo, também
é ancestral, o que subentende de todos os tempos. Com esses arcaís-
mos, o discurso fortalece o caráter de conto exemplar. Quando a
menina é designada por “le Petit Chaperon Rouge”, não é descrita,
não é conhecida por traços fisionômicos individualizantes. O petit
chaperon, o duplo diminutivo, é a sua identidade, e é arcaico, e é
“próprio para as mulheres velhas”, trazendo consigo a significação
de tempo muito antigo.
Aí está uma menina “exemplar”, que pode ser qualquer meni-
na, ou, até, qualquer adulto.38 Um ator, enfim, construído com traços
de generalidade, de imprecisão, para que, nele, o enunciatário mais
facilmente se reconheça, assim como, por meio dele, mais facilmen-
te aprenda a lição.
Essa passagem do nome comum, chapeuzinho vermelho, o
objeto, para o nome próprio, “Chapeuzinho Vermelho”, a pessoa,
funciona, como diz Lotman (1981, p. 135), “no modelo mitológico
do mundo”, por meio dessa “identificação precisa”, que se realiza na
“correlação com um objeto isomorfo”, e que “determina, por sua vez,
a idéia do caráter não-convencional dos nomes próprios”.
A menina foi enunciada pela mãe e pela avó. Pela mãe, já foi
observado que o ato ilocucional Vai... enunciou a menina como sujei-
to. Falemos da avó, que mandou fazer para ela um chapeuzinho ver-
melho que lhe assentava tão bem que, por toda parte, só lhe chama-
vam Chapeuzinho Vermelho.
A menina, como vimos, não se caracteriza por um traço par-
ticular, mas por meio da nominação, que supõe um conjunto. A
avó, na verdade, é a destinadora dessa nominação que instaura o
sujeito.

38 Soriano afirma que o conto “se dirige a um público infantil, sem dúvida, mas ao mesmo
tempo permite-se um lançar de olhos em direção aos adultos” (1968, p. 155). 149
Intertextualidade e conto maravilhoso

Antes de ser nominada, a menina era um sujeito indefinido,


apesar de já ter a marca sêmica da beleza maior. Ela só se torna única,
intraduzível, pelo nome próprio que lhe é dado. Desse nome, emerge
o “caráter denominativo do mundo mitológico” (Lotman, 1981, p.
135), que é transferido para o conto.
“Chapeuzinho Vermelho”, o nome, é, portanto, índice da con-
fluência discursiva conto-mito, não apenas pelo seu caráter não-con-
vencional, mas simplesmente porque é um nome: “o mito é pessoal
(nominativo), o nome é mitológico” (1981, p. 136).
Esse traço mitológico do conto, reincidente, por exemplo, na
onomatopéia Toc, Toc, que aponta para um estrato primário, pré-
semiótico da língua, aprofunda-se em vários procedimentos de dis-
cursivização do conto, como na construção do espaço.
Já sugerimos o fato de que o espaço, nesse conto, modaliza a
competência e a performance da menina. Acrescentamos a observa-
ção de que o locus (bosque, jardim, num confronto com o mito da
queda) modaliza o sujeito para um programa narrativo de privação
reflexiva da estaticidade (e apropriação da dinamicidade), enquanto
a casa, o lugar fechado, para um programa de apropriação da
estaticidade (e privação da dinamicidade). Aí está outro traço do mito
no conto, representando o percurso figurativo do bosque/jardim como
o mundo sem limites, que faz o herói transgredir.
Vemos, então, que o conto se encontra com o mito, não apenas
pelo núcleo figurativo comum, o fruto proibido, que desencadeia a
configuração discursiva analisada, mas também por formações dis-
cursivas que veiculam valores ideológicos afins. Tudo isso concreti-
zado também por procedimentos semelhantes de discursivização,
enquanto ancoragem figurativa da narrativa nesses atores, tempo e
espaço observados.
É bom que se observe que as afinidades referidas de ancora-
gem devem ser entendidas de maneira geral, do conto com o mito, o
que é justificável pelo caráter de evolução daquele em relação a este,
como afirma Mieletínski (1979, p. 49-53): “(...) o mito tem feito par-
150 te, sem dúvida, da série de fontes da arte vocabular”. Mieletínski faz
Análise do texto-base Chapeuzinho Vermelho, de Perrault

essa observação, acrescentamos, ao analisar a abordagem paradig-


mática de Claude Lévi-Strauss aplicada à literatura contemporânea,
afirmando também que “a evolução do conto clássico de feitiçaria a
partir dos mitológicos (...) é hipotética, mas plenamente verossímil e,
de qualquer modo, pode ser empregada com êxito como hipótese de
trabalho”.
Voltemos ao enunciado do conto, em que o sintagma “uma
menina aldeã” ajuda, pelo termo destacado, muito bem recuperado,
aliás, do original “une petite fille de village”, que mantém o arcaísmo
lexical, a construir o tempo longinquamente anterior ao tempo da
enunciação, tempo em que se assava uma fornada de pãezinhos para
mandar para a avó.
“Leva-lhe esta tigelinha de manteiga”, por sua vez, subenten-
de manteiga feita pela mãe, juntamente com o pão, sendo que, no
termo destacado, nota-se um traço a mais para o percurso semântico
do arcaico. É, entretanto, no correspondente francês, petit pot de
beurre, que nos devemos deter.
No nível textual, nota-se, em petit pot de beurre, a alta ocor-
rência de consoantes oclusivas, que traz o lúdico, o jogo, o brinque-
do, para criar o efeito de infância e ratificar a magia. Essa expressão,
que reincide quatro vezes no conto, corresponde às formulettes assim
observadas por Soriano (1968, p. 154): phrases à repeter avec
volubilité sans se tromper. Nesse jogo verbal, não interessa o primei-
ro conteúdo veiculado pelo enunciado, mas o segundo conteúdo, cons-
truído pela aliteração que, mais que o lúdico, é o mágico, é o
ritualístico, criado pela repetição, pela invariabilidade sonora.
No mesmo caso de expressões semi-simbólicas, encontram-se
a já apontada onomatopéia e sua iconicidade produzida pela ilusão
referencial: – Toc, toc... – Toc, toc. Essa onomatopéia repete-se nas
cenas simétricas de antropofagia, juntamente com as falas do lobo
travestido de menina e da própria menina: – É sua neta Chapeuzinho
Vermelho, que traz para a senhora um pãozinho e uma tigelinha de
manteiga... Essa invariabilidade ritualística constrói uma senha para
o próprio ritual e tem “marcas de prática consagrada pelo uso”, como
afirma Holanda (1986, p. 1513), ao definir ritual: “conjunto de práti- 151
Intertextualidade e conto maravilhoso

cas consagradas pelo uso e/ou por normas, e que se deve observar de
forma invariável em ocasiões determinadas”.
– Puxa a aldrava 39 e o trinco se abrirá. Tire la chevillete, la
bobinette cherra. Primeiro, a fala da avó; depois, a fala do lobo tra-
vestido de avó, uma fala citando a outra e, quando aparece na voz do
lobo, numa relação anafórica à primeira cena, a bivocalidade adquire
um traço parodístico intratextual, que ajuda a construir o percurso
lúdico. Esse percurso lúdico, que, no nível textual, se expande na
aliteração chevillette, bobinette, cherra, constitui também mola pro-
pulsora para o mágico. É interessante observar que nas falas sincreti-
zadas, lobo/menina e lobo/avó é que a aliteração ocorre, o que ajuda
no efeito de sentido mágico e ritualístico.
Essa resposta da avó, Puxa a aldrava, consuma aquele efeito
de senha para entrar na magia, que está não apenas na antropofagia,
como na repetição da própria fala, que constrói o ritual. A senha, pela
sua própria convencionalidade, ao indicar que se está ciente do se-
gredo de uma ação, cria a cumplicidade entre enunciador e enuncia-
tário; e, pelo seu significado de sinal trocado por quem chega com
quem está, constrói aquele efeito de “entrada”.
O Nouveau Larousse Ilustré, Tome Deuxième (s/d, p. 691),
afirma que La response de la mère-grand, pour indiquer la manière
d’ouvrir sa porte: Tire la chevillette, la bobinette cherra, a passé en
proverbe.
O fato de essa frase ter-se transformado em provérbio ratifica
aquela construção do significado por expressões semi-simbólicas, que
Mieletínski (1979, p. 48) reúne sob o rótulo de “pequenos gêneros
folclóricos (provérbios, ditos, adivinhas, encantamentos), nos quais
o peso específico dos elementos lingüísticos é excepcionalmente gran-
de”.
Esse fato também ratifica outra afirmação de Mieletínski, no
mesmo artigo, segundo a qual “o folclore é formado por múltiplas

39 “Aldrava: tranqueta de metal com que se fecha a porta, com dispositivo que permite
abrir e fechar por fora” (Holanda, 1986, p. 79). Trata-se de um elemento de coesão
152 lexical do universo semântico rural, campesino, “antigo”.
Análise do texto-base Chapeuzinho Vermelho, de Perrault

camadas”, no sentido de estratos estáveis, que se confirmam pela


presença de clichês, pela arcaicidade, pela “estruturalidade”.
Maingueneau (1989, p. 101) afirma:

O provérbio representa um enunciado-limite: o “locutor” autoriza-


do que o valida, em lugar de ser reconhecido apenas por uma deter-
minada coletividade, tende a coincidir com o conjunto de falantes
da língua, estando aí incluído o indivíduo que o profere. Este último
toma sua asserção como o eco, a retomada de um número ilimitado
de enunciações anteriores do mesmo provérbio.

O fato de Tire la chevillette, la bobinette cherra ter-se trans-


formado em provérbio, deve-se, portanto, ao eco fonético, como foi
visto, e ao “eco de enunciações anteriores” que o próprio provérbio
sugere, voltando àquele tempo diluído nos tempos, ou àquele ho-
mem de todos os tempos, que foi proposto como modo de ancoragem
discursiva.
Tudo isso tece o encanto, mas, principalmente, enreda o enun-
ciatário na dimensão de “verdades imemoriais” (Maingueneau, 1989,
p. 101), o que, aqui, se resume no perigo de ousar, ou de ouvir a voz
da própria identidade.
Frases como Tire la chevillette, la bobinette cherra, mais as
onomatopéias, mais as repetições de frases e cenas – todos esses jo-
gos de figuras, enfim, constroem uma coerência figurativa que con-
cretiza a coerência temática do lúdico, do infantil e do mágico, per-
cursos, esses, que, estrategicamente, encantam para advertir.
Nesse percurso do lúdico e do mágico, observemos mais aten-
tamente o diálogo final:

– Avó, como são grandes os seus braços!


– É para melhor te abraçar, minha neta.
– Avó, como são grandes as suas pernas!
– É para melhor correr, minha neta.
– Avó, como são grandes as suas orelhas!
– É para melhor escutar, minha neta. 153
Intertextualidade e conto maravilhoso

– Avó, como são grandes os seus olhos!


– É para te ver melhor, minha neta.
– Avó, como são grandes os seus dentes!
– É para te comer!

Entendendo que esse conto possui um ritmo binário, ou seja,


seqüência narrativa/seqüência dialogada, o trecho citado inserir-se-
ia na última delas e seria uma seqüência a mais. Não é, pois se verifi-
ca que, no nível da organização textual, trata-se de uma seqüência
absolutamente singular, com o paralelismo sintático-semântico das
falas do lobo e da menina.
Trata-se de uma prosa ritmada que, textualmente, mantém uma
cadência nas exclamações e afirmações e que, discursivamente, or-
ganiza-se nos turnos da fala da menina, por meio do paralelismo sin-
tático do sujeito posposto e por meio da repetição do vocativo Avó,
aumentando o espanto, o desespero, a súplica e, principalmente, a
fragilidade do “eu”. Nos turnos da fala do lobo, notam-se também
paralelismos sintáticos nos infinitivos que se repetem numa seqüên-
cia figurativa tão irônica quanto cruel, pois, no enunciado, afirmam-
se gestos de carinho, isto é, te abraçar, te ver, enquanto enunciador e
enunciatário partilham o conhecimento da verdadeira intenção do lobo,
que eclode na sua última e lacônica fala: É para te comer! 40
A variação de uma palavra no eixo paradigmático, na fala da
menina, recai sobre as partes do corpo; na fala do lobo, recai sobre as
ações referentes a essas partes do corpo. Entrelaçam-se perguntas e
respostas numa dimensão semântica que poderia beirar o óbvio ou a
redundância pleonástica, isto é, braços para abraçar, pernas para
correr, orelhas para escutar, olhos para te ver. Confirma-se, entre-
tanto, o jogo claro-escuro da enunciação, que nada diz e tudo diz,
criando, assim, o anteato da tragédia.

40 Numa das edições de “Chapeuzinho Vermelho” (Perrault, 1981, p. 325), há a seguinte


observação sobre essa última fala do lobo: “O manuscrito de 1695 apresenta, aqui, esta
nota à margem: ‘Devem-se pronunciar estas palavras com uma voz forte para fazer medo
154 à criança, como se o lobo a fosse comer’”.
Análise do texto-base Chapeuzinho Vermelho, de Perrault

Repetem-se, nesse diálogo, as mesmas construções sintáticas,


isto é, com a menina, vocativo; verbo de ligação antecedido pelo
advérbio como; predicativo do sujeito; sujeito; com o lobo, verbo
anafórico; preposição para; advérbio melhor; verbo de ação; vocativo.
Esse paralelismo constrói a simetria interna do trecho, assim como
testemunha a eqüidade da força do eu-menina e do eu-lobo que, aqui,
jogam o “braço de ferro”. O enunciatário assiste, em grande expecta-
tiva, pois ele sente que houve uma variação tensiva das paixões; da
parte da menina, ela evoluiu da confiança para a não-confiança, des-
de que teve medo e espanto, e agora está com desconfiança. A paixão
de malevolência do lobo, por sua vez, evoluiu para índices mais al-
tos, quanto mais ele insiste na ternura aparente do vocativo minha
neta, cuja repetição aumenta o repúdio do enunciatário pelo ator-
lobo, na proporção em que aumenta o efeito de embuste. Tudo, so-
mado, modaliza o enunciatário para não querer ser, que é a
sintagmatização patêmica do medo, como está demonstrado em Bar-
ros (1989-1990, p. 61).
A paixão do medo, aliada, então, a uma generalizada negação
da confiança e, conseqüentemente, a uma afirmação da desconfiança,
traça esse percurso patêmico da menina, que conflui com o pólo B’ do
quadrado do significado fundamental, o pólo do recuo da aventura, da
negação da identidade, que traz subentendida a afirmação da alteridade.
Quanto maior o efeito do medo vivido pela menina, mais o
enunciatário se sensibiliza para esse mesmo medo e, disso tudo, salta
a ambigüidade do ator-lobo. Narrativamente, ele é um antidestinador,
que destina um antiobjeto modal para a menina, querer buscar a con-
junção com a liberdade, fazendo com que a performance da menina
não se realize segundo a submissão e, ao mesmo tempo, é o sujeito
de um PN cuja performance constitui a sanção negativa da perfor-
mance não realizada da menina. Devora-a. Isso dá medo no enuncia-
tário. Discursivamente, figurativizando o pólo natureza, que se opõe
ao pólo cultura, desenvolve, entretanto, papéis que sensibilizam a
menina para a resistência à natureza e confirmação da cultura, pois,
como figura da natureza, é um aliado da morte. Isso dá medo ao
enunciatário. A enunciação vai-se cumprindo no seu alerta. 155
Intertextualidade e conto maravilhoso

Voltando ao nível textual e retomando o diálogo menina-lobo


do final do conto, vemos que a entoação desse trecho distribui-se,
como vimos, binariamente em enunciados exclamativos/afirmativos
(a exclamação do § 36 da tradução não consta do original), reforçan-
do a cena enunciativa. Esse prosodema, ou seja, essa unidade de en-
toação, exclamação vs. afirmação, aponta para o confronto do eu com
o tu. Mas tudo será tarde para a menina.
A enunciação aproveita-se desse suspense para, pressuposta-
mente, dar a anti-receita: “não adianta arrepender-se, será sempre
tarde, se ousar querer ser livre, ser original, ser diferenciado, ser você
mesmo”.41
O trecho adquire uma singularidade maior, quando verifica-
mos que a fala da menina pode ser lida como versos decassílabos e a
do lobo também. A fala da menina, com acento tônico na 2ª, 6ª e 10ª
sílabas; a fala do lobo, com acento tônico na 8ª e 10ª, salvo sutis
alterações.
A singularidade do trecho, que já vinha sendo demarcada
tematicamente, com o que chamamos hesitação, confirma-se por meio
desse ritmo próprio, poético, marcado. Esse ritmo decassilábico, por
sua vez, é interrompido, após nove ocorrências consecutivas, na dé-
cima, quando, no último turno da fala do lobo, ele se torna tão lacônico
quanto cruel: É para te comer. Nessa quebra abrupta do ritmo, a in-
terrupção da vida. O conto cumpre-se como conto de advertência.
Cumpre-se também como conto exemplar. As borboletas do
bosque e o horrível castigo que sucede a elas podem repetir-se em
qualquer tempo, em qualquer espaço e com qualquer um. Eliade (1963,

41 Nesse ponto, pode-se afirmar que as formações discursivas do século de Perrault apre-
sentam uma confluência de valores ideológicos com nosso século. Para tanto, obser-
vem-se estas afirmações: “Numa sociedade que tem horror ao diferente, que reprime a
diversidade do real à uniformidade da ordem racional-científica, que funciona pelo prin-
cípio da equivalência abstrata entre seres que não têm denominador comum, a loucura é
uma ameaça sempre presente. O que a história da loucura nos revela, pondo em questão
toda a cultura ocidental moderna, é que o louco é excluído porque insiste no direito à
singularidade e, portanto, à interioridade. E, com efeito, se a loucura é nesse mundo
patologia ou anormalidade, é porque a coexistência de seres diferenciados se tornou
156 uma impossibilidade” (grifo nosso) (Pereira-Frayze, 1985, p. 102).
Análise do texto-base Chapeuzinho Vermelho, de Perrault

p. 169) define comportamento exemplar como aquele “que pode ser


vivido em grande número de ciclos culturais e em muitos momentos
históricos”. Não nos esqueçamos de que, na seqüência narrativa “Da
Enunciação enquanto construção de significado pelo Enunciatário”
(SN3), o conto apresentou um PN de base, em que um enunciador
modalizava um enunciatário para a submissão, doando-lhe, para tan-
to, a competência necessária. No PN de uso, de doação de competên-
cia ao enunciatário, para que este viesse a “querer viver da maneira
prescrita”, o destinador foi considerado o próprio enunciado. O con-
to-enunciado doa ao enunciatário o saber viver, porque o querer e o
poder ele os tem pressupostos. Esse saber viver circunscreve-se à
“receita” dada. O enunciatário assume, nessa seqüência, um modo de
vida, que é definido pela conjunção com a submissão.
O enunciatário-criança entende, enfim, o que é “ter juízo”, ou
o que é preciso para ser aceito. É negar a natureza, enquanto sonho,
enquanto a voz do próprio eu. É submeter-se ao outro, é alienar-se ou
reificar-se, pouco importa. Importa silenciar, importa “ser dócil”,
importa não ser diferente. Importa ouvir sempre o sussurro do medo,
sedutor e amigo.

Que força é essa, amigo,


que te põe de bem
com os outros
e de mal contigo?
(Letra do cancioneiro português)

157
Análise das variantes intertextuais

CAPÍTULO III

Análise das variantes intertextuais

1 – Chapeuzinhp V ermelho e o Lobo torturador, de


Vermelho
Alberto Berquó:1 a desistória

É comum no Brasil a prática de tortura contra presos. A tortura é


imoral e constitui crime. Embora não exista ainda nas leis penais a
definição do “crime de tortura”, torturar um preso ou detido é abuso
de autoridade somado a agressão e lesões corporais, podendo quali-
ficar-se como homicídio, quando a vítima da tortura vem a morrer.
Como tem sido denunciado com grande freqüência, policiais incom-
petentes, incapazes de realizar uma investigação séria, usam a tortu-
ra para obrigar o preso a confessar um crime. Além de ser um proce-
dimento covarde, que ofende a dignidade humana, essa prática é
legalmente condenada. A confissão obtida mediante tortura não tem
valor legal e o torturador comete crime, ficando sujeito a severas
punições.
(Dalmo de Abreu Dallari, 1985, p. 44-6.)

Berquó quis fazer uma denúncia semelhante no contexto espe-


cífico do regime da ditadura militar brasileira na década de 70. Para
isso, Berquó imita Chapeuzinho Vermelho, de Perrault; seu texto quer

1 Esse texto apresenta uma dedicatória, sob forma de epígrafe, a Modesto da Silveira,
cidadão do Rio de Janeiro, advogado, ex-deputado estadual, que atuou na clandestinida-
de como dirigente do Partido Comunista Brasileiro, na década de 60 e de 70, sendo um
incansável defensor de presos políticos. (Depoimento dado pelo Sr. Jesuíno D’Ávila,
seu contemporâneo.) 159
Intertextualidade e conto maravilhoso

e deve parecer um conto maravilhoso. Perrault abriga Berquó; este


oculta-se naquele, mas nega-o, porque não é a história de Chapeuzi-
nho Vermelho que constitui sua mira enunciativa.
Podemos afirmar, então, que Perrault torna-se ausente do dis-
curso de Berquó, pela própria operação de negação, firmando assim
a relação de contraditoriedade entre o texto-base e a desistória.
Não poder não fazer aquilo que é desejo de outrem constitui a
equação modalizadora da obediência. Essa paixão, que modaliza o
sujeito para a alienação de si mesmo, euforicamente axiologizada
por Perrault, é, na enunciação de Berquó, colocada sob dúvida.
Na enunciação, Berquó nega a alteridade, enquanto repressão
e dominação, fazendo o enunciatário entrar em conjunção com a cons-
ciência das injustiças sociais, o que supõe uma identidade ideológi-
ca.
Em princípio, podemos afirmar que, em Berquó, tal como em
Perrault, deduz-se, do enunciado, um mesmo PN de base, ou seja, há
um destinador que manipula um destinatário para que este mantenha
a conjunção com a submissão.
O sujeito tem a competência para tanto; em Berquó, compe-
tência construída por uma seqüência de programas de espoliação e
de privação que constroem sua subvida.
O sujeito, no modo do parecer, não realiza a performance para
a qual fora manipulado, porque, também no modo do parecer, sofre
uma automanipulação contraditória. Pôr a touca vermelha seria, en-
tão, a figurativização da performance de disjunção com a submissão.
O sujeito apresentaria, nesse outro PN, uma performance a contento.
A sanção do PN de base constrói-se, pois, pelo PN do lobo, que é
quem faz a interpretação enganosa, ou seja, eles pareciam comunis-
tas. Por isso foram torturados e mortos.
Os actantes são basicamente os mesmos em Berquó e Perrault.2
Altera-se a relação do actante com o ator, já que, no texto polêmico,

2 Baseado em Greimas (1989, p. 13), consideramos os actantes como abstrações desse-


160 mantizadas, ou seja, os termos que apontam para funções sintáticas da seqüência
Análise das variantes intertextuais

surgem novos papéis temáticos para os mesmos actantes, como o


papel temático de torturador e assassino, variação sobre o velho e
traiçoeiro lobo matador. Figurativamente, o ditador e os hominhos
acabam, então, por afastar-se completamente do lobo e de Chapeuzi-
nho Vermelho. Tornam-se, portanto, muito frágeis essas figuras
intertextuais, pois concretizam os papéis temáticos e os temas que
não estavam na proto-história. Ou seja, o ditador não é o lobo mau,
os hominhos não são Chapeuzinho Vermelho, constituindo-se, as-
sim, a contraditoriedade de papéis figurativos. Assim, toma novo rumo
a narrativa da variante intertextual, como causa e como efeito de um
novo rumo discursivo. O papel narrativo do destinador-julgador, por
exemplo, aqui é do próprio lobo, delegado do ditador.
Os hominhos, por sua vez, constituem um papel narrativo co-
letivo, um todo homogêneo, em que, narrativamente, nega-se a iden-
tidade, para, depois, constituir-se o ator coletivo, em que não se aten-
ta para as diferenciações de cada constituinte. Isso também ajudará a
construir, no discurso-variante, o percurso temático da denúncia, como
veremos.
Desistória significa não-história. Na verdade, o conto de Berquó
não é uma história encantada, ou melhor, nem uma história, no senti-
do ficcional do termo, verdadeiramente é. Com figuras falsas, por-
que parecem que parecem aquelas do texto-base, isto é, não parecem
e também não são, “mostra” exatamente o que dissimula, ou seja, o
ponto de vista do enunciador, a sua visão de mundo, a sua denúncia;
tudo, menos a história encantada falsamente resgatada. Berquó
tematiza, então, a denúncia da tortura, como em Dallari; as figuras
são “capas” que a escondem. O revestimento figurativo, ou seja,
Perrault, serve apenas para o ocultamento do tema.
Berquó constitui um discurso acusatório, que exerce uma san-
ção cognitiva negativa sobre as ações da ditadura militar. Ele dissi-
mula-se no conto maravilhoso, para que seu enunciador não se “trans-
forme” em um dos “hominhos”.

narrativa, isto é, sujeito/objeto, destinador, destinatário, que Greimas enfeixou nos ac-
tantes da narração. Tais actantes subsumem os papéis actanciais. Os papéis temáticos
constituem, no discurso, semantização, por temas e figuras, dos papéis actanciais. 161
Intertextualidade e conto maravilhoso

Consegue, por mecanismos que analisaremos, seduzir para a


participação e repudiar a alienação, negando as arbitrariedades da
ditadura e a perpetuação do poder da classe dominante.
No enunciado, nada está fora da ordem intertextual, entretan-
to; temos uma ordem inicial, a que segue uma ruptura e, depois, um
restabelecimento de equilíbrio. Um discurso que imita o texto-base,
em que a menina que ousou foi punida. Um discurso conservador,
que defende a manutenção do status quo. À ordem, sobrepõe a vida;
ao caos, a morte.
Na verdade, esse enunciado é uma ilusão; mais que uma menti-
ra, é uma falsidade, da qual enunciador e enunciatário são cúmplices.
O componente básico parece ser a figura, mas são os temas,
enfeixados no protesto. Ao expor a covardia, o abuso, a injustiça,
Berquó utilizou-se de conteúdos que remetem ao texto-base. Lobo
Mau e Chapeuzinho Vermelho, as figuras invariantes, são dissimula-
ções das idéias de repressão, que, aqui, quer-se atacar.
A menina, em Perrault, é a “desertora” disfarçada. Os homi-
nhos, em Berquó, são os “heróis” disfarçados. O lobo, em Perrault,
só quer aplacar a fome, automanipulando-se para a conjunção com o
prazer gustativo. Em Berquó, ele realiza-se no querer, no poder e no
saber fazer mal, e sua voracidade é outra.
Nessa não-adequação entre actantes e atores, a polêmica vai
fundando o seu significado.
O destinatário intimidado cede e conta, como pode e sabe, a
história pedida; há aceitação do contrato fiduciário estabelecido. A
sanção negativa, gratuita, ajuda a construir, no discurso, o protesto
contra a violência nos regimes autoritários.
Na verdade, os hominhos não se contramanipularam para en-
trar em conjunção com a liberdade ideológica e nem possuíam a com-
petência necessária para um ato de rebeldia, porque não detinham
nenhum saber para uma consciência de si, de sua classe, de seu país.
Eles estavam reificados. Pobres e analfabetos.
Eles também não sabiam, nem podiam saber, a história que,
162 na aparência, é pedida. Conto maravilhoso e consciência de si têm
Análise das variantes intertextuais

um ponto em comum, isto é, constituem privilégio dos já privile-


giados.
Foram punidos, no enunciado, na sanção do tiro, mas sofriam
cotidianamente outra punição, que era a exclusão do direito à educa-
ção, a uma vida digna.
Se pudéssemos fazer uma leitura de seu ato como recusa, isto
é, os hominhos não delataram os companheiros porque haviam trans-
formado a si mesmos, assim como haviam transformado a sua rela-
ção com a História, o tiro constituiria mera sanção negativa aparente,
e uma euforia nos seria permitida. Mas, não, o sujeito verdadeira-
mente não tinha competência, não sabia a “história”, e é punido com
a gratuidade e a crueldade que caracterizam as performances ditato-
riais. O não-saber foi interpretado como o não-querer.
No num sei não se figurativizava uma incipiente consciência
de classe e uma recusa aos valores propostos, ou seja, delação, trai-
ção. Se isso acontecesse, haveria um fracasso aparente, mas uma vi-
tória imanente; vitória do indivíduo contra a coerção, segredo que
enunciador e enunciatário elaborariam com euforia.
Não. O discurso mostra a vida inteira que podia ter sido e que
não foi.3
Se vestir a touca vermelha figurativiza, apenas no modo do
parecer, a alteração da competência, que verdadeiramente não hou-
ve, a ruptura também foi apenas aparente. Confirma-se, duplamente,
pela sanção enganosa, a alteridade, assim como, duplamente, a iden-
tidade é negada. Duplamente, porque sancionar os hominhos pela
performance de desobediência ao sistema constitui uma afirmação
da alteridade e negação da identidade. Sancionar enganosamente,
como fruto de uma interpretação enganosa, isto é, julgar verdadeiro
o que parecia e não era, constitui nova afirmação da alteridade e ne-
gação da identidade; alteridade, agora, enquanto arbitrariedade do
outro sobre o eu; identidade, enquanto possibilidade de ser e de que-
rer-ser indivíduo.

3 Verso de Pneumotórax, de Manuel Bandeira. 163


Intertextualidade e conto maravilhoso

Na enunciação, por sua vez, o enunciatário é instigado a negar


essa alteridade e a buscar uma identidade, mais ideológica que exis-
tencial, ao ser modalizado para entrar em conjunção com a liberdade
e repudiar a submissão.
O valor participação passa a ser tão mais desejável ao enun-
ciatário, quanto mais o discurso mostra o confronto entre os sujeitos
operadores lobo/hominhos, em que estes, patemicamente modalizados
pela resignação, não passam à insatisfação, não reagem, não querem
ser livres. Basta-lhes a sobrevivência em seus ocos de paus podres.
O lobo (polícia, ditador) quer fazer mal e pode; auto-afirma-
se, portanto, ao torturar o “ofensor”. Modalizado pelo ódio e pela
cólera, que se traduzem em querer e poder fazer mal, passa à fúria,
que se traduz em querer fazer mal e não poder não fazer. Diante da
última fala de um dos hominhos, enfurecido, o lobo mata-o. Confir-
ma-se a figura inicial do falso mestre cuca... com o canto da boca
espumando de ódio e prazer.4
O lobo, o ditador e a polícia são figuras intimamente interliga-
das; o discurso permite-nos essa aproximação. Primeiro, porque des-
qualifica-se o lobo mau como ator não-humano; todo o seu percurso
de sujeito operador é de um sujeito humano; o discurso apenas toma-
lhe emprestada a figura da antropofagia irreversível. Segundo, por-
que se pressupõe um contrato entre ditador, lobo e polícia para arran-
car as confissões dos “subversivos ao sistema” e, assim, “poder
defender a pátria do caos”, o que consistiria no anti-ethos de Berquó.
Lobo e polícia constituem o sujeito delegado do ditador e a figurati-
vização do papel temático de torturador.
O texto de Berquó, como dissemos, não parece ser um conto
maravilhoso, nem é. Sob essa falsidade, instala um enunciatário, cujos
olhos ele quer abrir para as injustiças que estavam sendo cometidas
em nome desse aclamado amor à pátria. Trata-se de um camuflado
alerta contra a atitude de um regime que prendia e torturava inocen-

4 Esse prazer do torturador em torturar supõe, segundo Greimas (1983, p. 241), mais que
uma “simples liquidação de falta (...), um ‘affaire’ entre sujeitos, em que um deve ser
‘recuperado moralmente’ e o outro ‘punido’ ”. Trata-se de um “reequilíbrio de sofrimen-
164 tos entre sujeitos antagonistas”, em que “o sofrimento de S² provoca o prazer de S¹”.
Análise das variantes intertextuais

tes, como que para sancioná-los de uma suposta performance de trai-


ção à pátria, isto é, de adesão ao comunismo.
“Um perverso fazer a-ético, que visa apenas manter o poder,
assume um conteúdo ético”, diz Fiorin, ao analisar tais procedimen-
tos desse regime, para os quais tece os seguintes comentários:

O golpe de 1964 desencadeou intensa repressão em todos os setores


da sociedade. Ela desenvolveu-se em dois níveis complementares:
de um lado, procurou-se eliminar a contestação ao regime por meio
das prisões arbitrárias, das torturas, das cassações, das aposentado-
rias e demissões, das intervenções nos sindicatos, etc.; de outro, ten-
tou-se ocultar da sociedade, pela censura, tanto a face real do regi-
me como os sinais de oposição ao estado de coisas implantados no
país. Ao mesmo tempo, apresentou-se à sociedade um discurso ofi-
cial que pretendia ser a “verdadeira” leitura da realidade (1984, p.
75-9).

Para o enunciatário querer e poder enxergar o que Berquó lhe


mostra, ele precisa saber desse contexto sócio-histórico. Em Berquó,
portanto, o saber partilhado exigido entre enunciador e enunciatário
volta-se mais para o contexto sócio-histórico da enunciação do que
para o texto-base resgatado por essa mesma enunciação, o que, de
certa forma, ratifica a negação da desistória em relação à proto-histó-
ria.
Podemos dizer também que, sob a “inocente” história de um
Chapeuzinho Vermelho e de um Lobo Torturador, Berquó quis des-
fazer a “inocência” do enunciatário, indo de encontro a uma forma-
ção discursiva, que, segundo os comentários apresentados, propunha
a inauguração da inocência.
Berquó supõe, na verdade, dois enunciatários: o ditador, ou o
sujeito complacente com a ditadura, que é criticado e precisava ser
“enganado” pelo maravilhoso aparente, e o público, jovem ou adul-
to, a quem a perseguição e a tortura são denunciadas. Para o enuncia-
tário-criança, restaria a primeira isotopia proposta, que parece abar-
car o maravilhoso. Frágil isotopia maravilhosa! Não é, entretanto,
esse sujeito que se constrói no discurso. 165
Intertextualidade e conto maravilhoso

Assim, vai-se construindo, na sua especificidade significativa,


esse discurso, que não parece e não é, negando até o enunciatário-
criança, apesar de esconder-se nele. Isso também ratifica a negação
inerente à desistória.
Tentando fazer crer que os resgates intertextuais e aparentes
do imaginário constituem o imaginário total, o discurso visa à con-
junção do enunciatário com valores que não apenas hostilizam a di-
tadura, mas também, uma ideologia de uma classe dominante, que
faz supor, por exemplo, que o conto maravilhoso é um saber sociali-
zado, ou seja, é direito de todos, como o é a leitura ou a escrita.

A aquisição do saber é vista, em nossa sociedade, pelo senso co-


mum como um ato pessoal de vontade, fundado numa aptidão inata
(inteligência), cuja conjunção com o indivíduo é de ordem exclu-
sivamente biológica (Fiorin, 1988 a, p. 32).

Os hominhos estavam excluídos também do espaço do conto


de fadas. Havia uma porta, apenas entreaberta, quando, pela primei-
ra vez, o menino esfarrapado sorveu, comovido e com medo, um
conto maravilhoso contado para outra criança.
Podemos afirmar que, ao fazer ser cobrada, no enunciado, a
história do chapeuzinho vermelho, o discurso forjou uma metáfora.
Não era a história do chapeuzinho vermelho, que os torturadores que-
riam, era a história da aparente opção ideológica.
Entre o conto maravilhoso e a consciência ideológica, inaugu-
ra-se uma intersecção, ou seja, a intangibilidade de ambos para os
hominhos.
O primeiro, intangível pelo analfabetismo e pelo excessivo tra-
balho duro; o segundo, pela alienação daqueles que, sem saber, “dis-
põem exclusivamente de sua força de trabalho, que vendem como
mercadoria ao proprietário do capital”, como afirma Chaui (1984, p.
62). O discurso subentende que a primeira causa também está na
segunda.

Eles nunca tinham brincado quando meninos, nem tinham escutado


166 bonitos contos infantis na hora de dormir, porque seus pais também
Análise das variantes intertextuais

tinham sido como eles (...) e quando chegavam do trabalho não ti-
nham forças nem para ficar acordados. A única história que conhe-
ciam era de misérias, tristezas e coisas ruins da vida diária.5
Como ousariam não confessar!

Os hominhos “tinham de ser punidos”, pois o ditador “estava


sendo espoliado” do poder, à medida que os hominhos dele se “apro-
priavam”. Eles poderiam estar iniciando um novo sistema de valores
nos quais passariam a crer e a fazer os outros crerem. Eles poderiam
ter descoberto a coragem de dizer não.
O ofendido “tinha de” destruir o ofensor, e tamanha fúria, ta-
manha irritação, tamanha violência desestabiliza até o sistema sintá-
tico enuncivo no segmento destacado do texto. Na troca de ousavam
por ousariam, da concomitância pela não-concomitância dos aconte-
cimentos em relação ao momento referencial pretérito, que enfeixa
toda a organização temporal do discurso, a enunciação repentina-
mente se revela, alterando a ordem do narrado. O uso imprevisível e
emocional da exclamação, sem ser fala do interlocutor, por sua vez,
ratifica essa estratégia na construção do sentido.
Era tão inadmissível a “recusa”, que tinha de ser expressa por
uma relação de “posterioridade do momento do acontecimento em
relação a um momento de referência pretérito”, seguindo a concei-
tuação de Fiorin (1994, p. 171) sobre o sistema de verbos. Era possí-
vel expressar tamanha ousadia somente pelo futuro do pretérito, que,
segundo a mesma fonte, “tem, na maior parte das vezes, o caráter de
uma antecipação imaginária, (...) tem um valor hipotético”. O discur-
so tinha de saltar da continuidade descritiva do pretérito imperfeito,
que era esperada.
5 “Uma pergunta nos vem agora: por que os homens conservam essa realidade? Como se
explica que não percebam a reificação? Como entender que o trabalhador não se revolte
contra uma situação na qual não só lhe foi roubada a condição humana, mas ainda é
explorado naquilo que faz, pois seu trabalho não pago (a mais-valia) é o que mantém a
existência do capital e do capitalista? Como se explica que essa realidade nos apareça
como natural, normal, racional, aceitável? De onde vem o obscurecimento da existência
das contradições e dos antagonismos sociais? De onde vem a não percepção da existên-
cia das classes sociais, uma das quais vive da exploração e dominação das outras? A
resposta a essas questões nos conduz diretamente ao fenômeno da ideologia” (Chaui,
1984, p. 59). 167
Intertextualidade e conto maravilhoso

Desestabilizando o sistema sintático, o próprio discurso vai


alterando, semanticamente, a ordem que tinha de ser mantida a qual-
quer preço.
Quanto maior a indignação dos torturadores, melhor se instala
a crítica e a denúncia que o discurso, também ao esconder, revela.
Estas, escondem-se sintaticamente, muito fragilmente, aliás, num tem-
po, num espaço, e em actantes do enunciado, ou seja, num então,
num alhures, e num ele, que ajudam a construir esse triplo simulacro
da polêmica. Expliquemo-nos. Ao simulacro inerente a toda situação
de comunicação, que envolve um enunciador-manipulador e um enun-
ciatário-manipulado, soma-se o segundo simulacro da polêmica, que
é parecer um conto maravilhoso, mas não ser. Acontece que, pela
fragilidade e não eficácia das figuras intertextuais que, na verdade,
constroem outros atores com papéis contraditórios àqueles do texto-
base, a polêmica parece que parece o conto maravilhoso. Na verda-
de, não parece; está aí o terceiro simulacro.
As pequeninas figuras citam sintática, mas não semanticamen-
te, Chapeuzinho Vermelho; pequeninas, porque estavam lá embaixo,
numa sociedade vista como uma linha vertical, em que há superiores e
inferiores, não por semelhança figurativa com a menina aldeã; consti-
tuem, entretanto, com a menina, o mesmo ele, o actante do enunciado,
um dos pontos da semelhança do texto-base e da variante intertextual.
O efeito de sentido de objetividade, precioso para a ocultação
da denúncia, é também o mesmo no texto-base e na variante, mas nas
debreagens internas de segundo grau, vai-se confirmando, ao invés
da menina falante, aquele sujeito sem voz, que mais monologa do
que dialoga, pois não interage com os interlocutores. Sua voz fraca e
perdida ajuda a figurativizar um ator que não detém o saber da norma
culta, não podendo deter, como causa e conseqüência, nenhum po-
der. É assim que a ideologia dominante quer que se pense, alerta o
discurso no seu pressuposto. É isso que denuncia o modo de falar dos
hominhos no exemplo destacado a seguir.

Os pobres homens estavam abestalhados. Nenhum deles nunca ti-


nha sido preso antes. E eles só sabiam histórias de argamassa, tijo-
168 los, adobes e de acidentes...
Análise das variantes intertextuais

Respondiam:
– Num sei.

Acontece que, também de dentro da fala do narrador implíci-


to, irrompe a voz da enunciação, ao desestabilizar o registro formal,
o viés oficial da língua-padrão de um conto que quer parecer maravi-
lhoso, mas acaba sendo mais uma história de misérias, tristezas e
coisas ruins da vida diária, como as outras, únicas que os hominhos
conheciam.

Muitos deles, quando já ia ficando de tarde, ficavam com tontura,


meio zonzos, por causa daquela queimação na cabeça. E trabalha-
vam, trabalhavam duro (...) desde que eram muito pequenos.
Um dia, de tardezinha... No outro dia chegaram no trabalho....

Essas expressões por nós destacadas, menos marcas isoladas


da coloquialidade do uso da língua, e mais o recurso com o qual a
enunciação mostra a cumplicidade com aqueles hominhos desfavo-
recidos pelo capital, ou pela sorte, como querem alguns, mostram-se
tão fortes quanto mais diferentes do tom formal do narrado. Este
mostra-se desde o início, com figuras elaboradas, como sob as ar-
dências do sol abrasador... caminhos íngremes... zonas inóspitas, ou
com o uso incomum do pretérito-mais-que-perfeito simples, ou seja,
alguém que antigamente também morara no oco do pau.
Permeia tudo, indiscutivelmente, o efeito de sentido de irreali-
dade, que era indispensável para a própria autoproteção do discurso
naquele contexto de censura irrefreável e, nisso, contribui o arcabou-
ço sintático, em que o discurso direto quase inexiste. Quase não se
delega a voz a interlocutores, a não ser em quatro lacônicos turnos,
encaixados em sucintos parágrafos; ao empregar o discurso indireto,
o discurso expande-se figurativa e tematicamente, ocupando textual-
mente nove longos parágrafos.
Narrando uma história “acontecida” na ditadura militar, mini-
miza a debreagem interna, subordina o eu e o tu dos possíveis inter-
locutores à voz do narrador. Pode-se afirmar que a sintaxe ajuda a
construir o peso do silêncio deste discurso. 169
Intertextualidade e conto maravilhoso

Os hominhos, massificados, espoliados, não se podiam consa-


grar como sujeito, por isso a ancoragem ótima da narrativa era o
discurso indireto; firma-se a não-pessoa, concomitantemente, na sin-
taxe e na semântica, portanto.
Lembremos que, em Perrault, narram-se os acontecimentos por
meio de diálogos, predominantemente. É que os hominhos não ou-
sam como Chapeuzinho Vermelho, de quem tomam o papel temático
de vítima, acoplado à respectiva figura, ambos já incorporados ao
imaginário coletivo.
Às duas reduzidas falas dos hominhos, contrapõem-se os ou-
tros dois turnos do diálogo, tomados pela voz do Lobo que, reforça-
do pela embreagem actancial, que enfatiza o papel social e, na mani-
festação, pela letra maiúscula, tem consumado o papel do repressor:
“– Aqui está falando o Lobo. Pode mandar os homens que já
descobri os vermelhos!”
A embreagem referida, confirmando aquela cumplicidade
actorial lobo/ditador/polícia, ajuda a criar o subentendido da perse-
guição ideológica sofrida pelos “vermelhos”. A desumanidade da
perseguição e tortura caem, muito bem, portanto, na figura do lobo.

Sobre os torturadores: estes sim, estão mortos como seres humanos,


suicidaram sua condição humana e se transformaram no que há de
pior nos instintos. Não pense o leitor que o torturador, o inquisidor,
o ditador ou até o insensível tecnocrata que com uma assinatura faz
morrer de fome milhões de pessoas tenham perdido toda sua capaci-
dade de pensar. Neste sentido, continuam homens: mas esse pensar
está em parte suicidado, tornando-os incapazes de perceber o mal
que fazem a seus semelhantes, contaminados pelo ódio que dedi-
cam a si mesmos e deslocado para os outros.(...) Para “salvar” ideo-
logias, religiões ou bens materiais o ser humano mata sua porção
humana...
(Roosevelt M.S. Cassorla, 1986, p. 48)

Eram hominhos que moravam, com suas famílias, em ocos de paus


podres, nas zonas mais inóspitas, longe de onde trabalhavam, e mal
170 o dia ameaçava amanhecer, já estavam caminhando por caminhos
Análise das variantes intertextuais

íngremes, descalços, na direção das obras do grande bosque. A mai-


oria deles não sabia ler nem escrever.

Não se mantém aí, subjacente à relação dominantes/domina-


dos, a relação torturadores/torturados?
Ao pressupor a contradição entre a “idéia” de que a educação é
direito de todos e a “realidade” de espoliação narrada, o discurso
também faz a denúncia dessa tortura cotidiana a que se submetiam os
hominhos “que nunca tinham escutado bonitos contos infantis na hora
de dormir”.
Ordenando seu tempo como nos contos maravilhosos, que
deslancham sob o sintagma encantado Era uma vez, aproveitando-se
de seus motivos, Berquó acaba denunciando, entre outras, a elitização
do próprio conto de fadas. Até no enunciado, portanto, nesse caso, a
desistória nega a proto-história.
Dispondo os acontecimentos num “espaço tópico, determina-
do em relação a um ponto de referência inscrito no enunciado” (Fiorin,
1994, p. 284), que remete a um alhures indefinido, tal como em
Perrault, o discurso, entretanto, figurativiza com traços de miséria e
de privação esse mesmo espaço.

Era uma vez um imenso bosque branquicento. Do alto duma copa


de concreto armado via-se, lá embaixo, pequeninas figuras, que tra-
balhavam sob as ardências do sol abrasador.6

A figura branquicento, que anuncia o campo semântico da mão-


de-obra barata, ou seja, poeira, construção, cimento, e manifesta-se
pejorativamente pelo sufixo -ento, somada à metáfora da copa de
concreto armado, em que, do alto, os hominhos eram vistos, confir-
ma o percurso temático da denúncia das injustiças sociais e, até, do
desmatamento, de que os hominhos são as maiores vítimas.

6 Não acreditamos ter sido um erro intencional o emprego de via-se, no lugar de viam-se.
Parece-nos que, no contexto desse parágrafo, predomina a voz do actante do enunciado,
relatando os fatos, com uma certa “distância”. Não se justifica, portanto, pensar na cons-
trução de algum efeito de sentido por meio desse erro. Fica, entretanto, o espontaneísmo
da escrita no “calor da hora”. 171
Intertextualidade e conto maravilhoso

Vê-se que o espaço dos hominhos, os ocos de paus podres,


opõe-se ao espaço dos poderosos que os observam, a copa de concre-
to armado.
A referência espacial do alto, topicalizada, fica mais significa-
tiva ainda, quando relacionada à expressão adverbial que se lhe se-
gue, lá embaixo, em que se reforça o efeito de inferioridade pela
justaposição do lá ao embaixo.
Acentua-se ainda mais a desigualdade do sujeito que vê e da-
quele que é visto, quando se define lexicamente este objeto, pequeni-
nas figuras, em que a manifestação do sufixo -inas ratifica a idéia da
não-pessoa daqueles que, não sendo homens, nem mulheres, nem
crianças eram apenas figuras.
Ao percurso figurativo da miséria, ou seja, “calça esburacada,
cabeça afogueada, nem um mísero chapéu, mãos calosas, encontra-
ram meias velhas”, sobrepõe-se o percurso da violência, ou seja,
“olhos arregalados, (...) abismados e ofegantes, suplício, martírio
escabroso, gritos horrendos de dor. Asfixia, afogamento, estrangula-
mento. Socos, pontapés, chicotadas”.

Só havia uma salvação: que todos contassem a história pedida.


– Eu quero saber, agora, a história do chapeuzinho vermelho!

Pede-se, no enunciado, algo leve, para, na enunciação, pedir-


se a delação.
Pede-se, no enunciado, o sonho, cercando-se esse pedido com
a realidade da dor, eis o paradoxo da tortura.
Narram-se, no enunciado, acontecimentos veridictórios, para,
na enunciação, denunciarem-se fatos verdadeiros.
A boca feroz do lobo mau não é a boca feroz do lobo mau.
Eis aí a ironia. Jardon (1988, p. 31-108), estudando o trabalho
de Catherine Kerbrat-Orecchioni, fala da “ironia situacional, que é
uma contradição entre dois fatos contíguos”. Depois, diz que a refe-
rida autora “especifica que o contexto extra-lingüístico assume, ele
172 próprio, o papel de índice de ironia de um texto”. Cabe lembrar que o
Análise das variantes intertextuais

contexto extralingüístico é semiótico, bem como essa contradição


entre dois fatos contíguos está fundamentada, de certa forma, na pró-
pria relação de contraditoriedade da polêmica em relação à proto-
história.
Eis aí uma ironia que se cumpre, não pela zombaria, mas pela
crítica, pela agressão. Sob a “placidez” ambígua do mesmo signifi-
cante manifestado, confrontam-se fatos contraditórios, excludentes
entre si. “A ironia sempre apresenta uma vítima”, afirma Jardon (1988,
p. 31), “consciente ou ingênua. Na ironia (...) a agressão deve consti-
tuir um objetivo”. “A ironia julga”, afirma Hutcheon (1989, p. 73). O
discurso faz da vítima, o herói, e do algoz, a sua vítima, como vemos.
Simulacros.

A Lei de Segurança Bosquial seria aplicada com todo seu rigor! A


ordem seria mantida a qualquer preço!

Na ambigüidade fonológico-semântica dessa lei que, relacio-


nada ao contexto sócio-histórico, critica-o, também está a ironia.
No resgate do slogan da ditadura, a ordem tem de ser mantida
a qualquer preço, quando, na verdade, espalhava-se a desordem e a
injustiça, também está a ironia.
Em todo o enunciado, que pretende enunciar a história mara-
vilhosa, para negá-la, concretizando uma contraditoriedade de isoto-
pias entre o texto-base e a variante, também está a ironia.

No martírio escabroso sempre respondiam num sei entre gritos horren-


dos de dor. (...) Os interrogadores se gabavam de que todos que tinham
passado por suas mãos tinham contado tudo, tim-tim por tim-tim.

Juntando à crítica implícita da ironia, a descrição, de forte im-


pacto, das cenas da tortura, o discurso envolve o enunciatário para
que ele adquira repugnância à submissão.
As figuras por nós destacadas no trecho recém-citado revelam
sintática e semanticamente esse impacto. No primeiro caso, neutrali-
zando a oposição entre situação enunciva e enunciativa, pois fundem
discurso direto com indireto e demonstram a desestabilização sofrida 173
Intertextualidade e conto maravilhoso

pelo discurso diante da violência. Não chegando a constituir uma


embreagem, porque ambas as situações se mantêm, o discurso mos-
tra, pela espontaneidade do registro, a falta de censura, ou a impossi-
bilidade de uma censura lógica diante do quadro descrito. Não há,
nesse caso, nem a dependência sintática de um discurso indireto, ou
seja, respondiam que não sabiam, nem uma debreagem enunciativa
de segundo grau, ou seja, Respondiam: – Num sei.
O mesmo acontece com a coloquialidade do tim-tim por tim-
tim, em que se pessoaliza a voz do enunciado, ou em que se deixa
ouvir, na palavra do narrador, essa expressão própria da linguagem
oral. A mesma coisa acontece com a ausência da vírgula após a expres-
são adverbial deslocada e outras ausências de pontuação gramatical-
mente necessária no decorrer do texto. Dessa discordância de vozes,
em que se desqualifica a formalidade do narrado pelo próprio modo de
narrar, emerge mais uma vez a revolta contra o “mundo oficial”, com
seu “saber oficial”, que reforça o poder somente dos já poderosos.
As figuras reiteram, assim, o percurso da miséria e do analfa-
betismo, que se quer denunciar, como na frase, “o pau comia mais
violento”. Rompem-se, aí, quaisquer expectativas de uma narração
“encantada” com o uso dessas figuras agressivamente chulas, com
que se referencializa duramente, também pelo modo de narrar, o es-
paço em que os hominhos estavam encarcerados. Local macabro,
como será expresso no final do texto.
Quanto aos procedimentos de argumentação, o discurso é re-
dundantemente agressivo. Agressividade que, voltada a um alvo do
contexto sócio-histórico, tenta conter-se no maravilhoso, mas não
consegue, rebelando-se, como vimos, até contra esse maravilhoso.

Entre socos, pontapés e chicotadas os policiais gritavam: – Eu quero


saber...!

Ao demonstrar o que os torturadores queriam, e a que os ho-


minhos não correspondiam, tinha de ser criado um efeito de sentido
de realidade; delegou-se, então, a voz a ele que, sujeito forte, tanto na
174 terminação verbal, como na explicitação do eu, já sanciona antes
Análise das variantes intertextuais

mesmo de ouvir a resposta. Já nem era, portanto, a resposta que im-


portava. Importava a fúria do poder sobre aqueles hominhos que só
sabiam e podiam permanecer abestalhados.
A performance de ruptura, sancionada negativamente, não é,
portanto, contar uma história às avessas, isto é, Era uma vez um lobo
mau... em vez de Era uma vez uma menininha... ou não delatar, como
queriam os perseguidores. A “ruptura” punida foi o fato de “chega-
rem no trabalho de touca. Umas vermelhas e outras brancas”.

Imediatamente a clareira foi cercada por tropas especiais e todos os


que tinham toucas vermelhas foram presos.

Num tom de reportagem jornalística sensacionalista, o discur-


so espalha a secura do protesto, naquele espaço utópico, no modo de
parecer surrealista, em que a única performance do sujeito punido
era, na verdade, construir “outra árvore concreta”. No pronome des-
tacado, está o efeito da continuidade infinita daquele trabalho, num
sintagma que, por sua vez, denuncia o desmatamento, fato pelo qual
sofre menos quem está “no alto da copa de concreto armado”.
A oposição alto/baixo, aliás, homologa-se não só à oposição su-
perior/ inferior, como também à de quem tudo vê/nada vê; pessoa/ coisa;
ira/resignação; e, paradoxalmente, ofendido/ofensor. Volta a ironia.

Os interrogadores sentiam-se cada vez mais ofendidos com as nega-


tivas dos presos – como ousariam não confessar!... A Lei... com
todo seu rigor! A ordem... a qualquer preço!

Exclamando repetidas vezes em pleno discurso indireto, nesse


trecho, em que se realiza o requinte da sanção gratuita, o discurso
também violenta as regras sintáticas.7 Ao enfatizar a obviedade da
fúria, rejeita-a. Rejeita-a de todas as formas possíveis, fazendo do
enunciatário seu cúmplice.

7 “Como há uma única enunciação (no discurso indireto), todos os traços enunciativos da
enunciação desse interlocutor, que foi subordinada à enunciação do narrador, e que,
assim, tornou-se um locutor são apagados. (...) as interrogações, as exclamações, as in-
terjeições e outros elementos expressivos da enunciação do interlocutor devem ser eli-
minados, porque, no texto, só existe a subjetividade do narrador” (Fiorin, 1994, p. 79). 175
Intertextualidade e conto maravilhoso

O sujeito da enunciação, enunciador/enunciatário, rebela-se,


portanto, contra o suplício expresso, enunciado, da perseguição e tor-
tura ideológicas, a que se soma o suplício cotidiano e pressuposto
dos “despossuídos”, que pensam que “cada um não pode escapar da
atividade que lhe é socialmente imposta” (Chaui, 1984, p. 88).
Enunciador e enunciatário reconhecem-se, entretanto, compe-
tentes e realizados por burlar a censura ideológica, por desobedecer,
assim, a ordem que tinha de ser mantida a qualquer preço, por en-
xergar, não apenas além da aparência do conto, mas além da aparên-
cia da realidade social, que não reflete, mas refrata a realidade de
contradições e injustiças.
Como saldo da denúncia desesperadora e desesperada do dis-
curso, paradoxalmente, resta, portanto, alguma euforia para o enun-
ciatário, euforia que supõe o poder de negar a alteridade, enquanto
dominação e enquanto agente da alienação e reificação.

E o operário ouviu a voz/ De todos os seus irmãos/


Os seus irmãos que morreram/ Por outros que vive-
rão./ Uma esperança sincera/ Cresceu no seu coração.
(Vinícius de Moraes)

2 – Chapeuzinho Amarelo, de Chico Buarque: a contra–


história

Era a Chapeuzinho Amarelo./ Amarelada de medo./ Tinha medo de


tudo, aquela Chapeuzinho./ Já não ria./ Em festa, não aparecia./ Não
subia escada/ nem descia./ Não estava resfriada/ mas tossia./ Ouvia conto
de fada/ e estremecia./ Não brincava mais de nada,/ nem de amarelinha.

Isso é o que sobrou de Chapeuzinho Vermelho. Na inércia do


não querer, do não poder, do não saber, cristalizou-se como “uma
coisa”. De tanto acovardar-se, amarelou, secou, murchou. Morreu a
pior morte, a morte que pode repetir-se todos os dias e muitas vezes
176 no mesmo dia; a morte do próprio eu.
Análise das variantes intertextuais

Isso é o que tinha sobrado de Chapeuzinho Vermelho, de Perrault


ou de Grimm, do conto maravilhoso, ou do conto de fada, enfim. Mas
Buarque vai subverter, pelo tom bufão, essa morte. Ao brincar, por
exemplo, com o ritmo, nos dois versos finais dessa primeira estrofe,
provoca uma ruptura na expectativa monocórdica criada pelos versos:
já não ria, nem descia, mas tossia, e estremecia, concretizando, na
brincadeira da expressão, a subversão da seriedade do papel de Cha-
peuzinho Vermelho; o papel da vítima, que se “vê”, e o papel do sujeito
que ousa e é punido, que se deduz. A enunciação, crítica e fanfarrona,
já se vai enunciando, assim, menos pelo dito e mais pelo subentendido.
Essa enunciação, entretanto, antes de atingir a superfície dis-
cursiva, em que brinca, trançou as linhas da significação desde níveis
mais profundos, ao querer valorizar positivamente a identidade, a
coragem de ser, repudiando a menoridade do ser humano.
Digamos que as relações fundamentais da significação, ainda
consideradas mínimas e estáticas, são as mesmas para a paródia e
para o texto-base. Mas elas orientam-se, e essa orientação, que subsi-
diará a narrativa, é que é contrária em Buarque em relação a Perrault.
Buarque repudia a alteridade, enquanto domínio das regras
sociais e faz desejável a identidade, enquanto domínio das pulsões
individuais. No pólo da alteridade, está a morte, no pólo da identida-
de, a vida, opondo-se, portanto, os universos socioletais do chapéu
vermelho e do amarelo.
Buarque constrói um objeto que, em conjunção com o enun-
ciatário, deve e pode encorajar esse enunciatário para a aventura.
Entende-se por aventura, nesse discurso, a difícil arte de desmontar o
medo do medo, sempre aprendido e jamais esquecido, ou a difícil
arte de caminhar com as próprias pernas, o que pode significar amar
o longe e a miragem, no dizer de José Régio.
Buarque propõe a maioridade ao enunciatário, exibindo-lhe o
alívio e a força gerados por ela.8 Essa maioridade, que supõe liberda-

8 Kant (1985, p. 100-2), no século XVIII, conceituou profeticamente essa “maioridade”


nestes termos: “Se tenho um livro que faz as vezes de meu entendimento, um diretor
espiritual que por mim tem consciência, um médico que por mim decide a respeito de
minha dieta etc., então não preciso de esforçar-me eu mesmo. Não tenho necessidade de 177
Intertextualidade e conto maravilhoso

de, que se deixa rodear pelas paixões de satisfação e de coragem,


incita o leitor para que se solte dos grilhões, que docemente o aper-
tam. Enquanto o sujeito, em Perrault, modaliza-se predominantemente
pelas paixões de disjunção e de tensão, como a insegurança e a afli-
ção, em Buarque, o sujeito modaliza-se pelas paixões de conjunção e
relaxamento, como a satisfação e a confiança.9
Vejamos como, narrativamente, Buarque vai construindo esse
significado, para dar ao enunciatário um saber e um poder novos, isto
é, renovados, porque voltados criticamente ao saber e ao poder doa-
dos pelo texto-base.
Vejamos como, narrativamente, se constrói a oposição proto-
história vs. contra-história, ou seja, texto-base vs. paródia, que se
poderia desdobrar, pelos respectivos valores propostos no discurso,
em menoridade vs. maioridade, ou advertência vs. encorajamento.
Vejamos como, narrativamente, resolve-se, enfim, a relação
de contrariedade entre Perrault e Buarque, em que, fundamentalmen-
te, os valores já evoluem em direção oposta, ou seja, em Buarque,
afirma-se uma identidade eufórica, após se negar uma alteridade
disfórica, correspondendo ao eixo identidade/não-alteridade a dêixis
positiva.
A primeira afirmação que se faz necessária é que, no nível
narrativo, enquanto na Seqüência Narrativa do Enunciado (SN1), em
Perrault, TODO O PN DO LOBO PERTENCE AO PN DA SAN-
ÇÃO DA MENINA, em Buarque, TODO O PN DA MENINA CONS-
TRÓI A SANÇÃO DO PN DO LOBO. Isso pode ser demonstrado
no esquema que segue:

pensar, quando posso simplesmente pagar; outros se encarregarão em meu lugar dos
negócios desagradáveis. A imensa maioria da humanidade (inclusive todo o belo sexo)
considera a passagem à maioridade difícil e além do mais perigosa, porque aqueles tuto-
res de bom grado tomaram a seu cargo a supervisão dela. Depois de terem primeisramente
embrutecido seu gado doméstico e preservado cuidadosamente estas tranqüilas criaturas
a fim de não ousarem dar um passo fora do carrinho para aprender a andar, no qual as
encerraram, mostram-lhes em seguida o perigo que as ameaça se tentarem andar sozi-
nhas”.
178 9 Para essa observação das paixões, baseamo-nos em Barros (1988, p. 64).
BUARQUE - SN1 - Seqüência Narrativa do Conto Enunciado
PN do lobo
Manipulação Competência Performance Sanção
Destinador → Destinatário saber e poder dados não se realiza (PN da menina)
(astúcia)
lobo lobo

dever manter a
"advertência" sobre a
menina
PN da menina 1a SN
Manipulação Competência Performance Sanção
Lobo → Menina ∩ querer viver dada Chapeuzinho Amarelo
S1 → (S2 ∪ Ov) → (S2 ∩ Ov)
reprimida
repressão
2a SN
Manipulação Competência Performance Sanção
Menina → Menina ∩ querer viver construída S1 → (S2 ∪ Ov) → (S2 ∩ Ov) reconhecimento
em liberdade

menina

menina
liberdade

PNu1
Manipulação Competência Performance Sanção
Menina → Menina ∩ querer destruir o adquirida - poder e saber: ridiculariza o lobo reconhecimento
Análise das variantes intertextuais

lobo (o medo) olhar de frente, rir dele etc. (o destrói)

179
Intertextualidade e conto maravilhoso

A seqüência narrativa do enunciado constrói-se inicialmente


com um programa narrativo implícito, o PN do lobo, em que esse
destinador do medo atávico automanipula-se para cumprir o seu pa-
pel intertextual de lobo mau, isto é, dever manter a advertência sobre
a menina.
Apesar do saber e do poder inerentes à astúcia, que lhe é pecu-
liar, o lobo não realiza mais a sua terrível performance, o que resulta
numa sanção negativa cognitiva, que, ao se figurativizar discursiva-
mente, tornar-se-á ainda mais punitiva, porque escrachada, debocha-
da e, portanto, incompatível com seu frame assustador. Nessa incom-
patibilidade, instaurar-se-á o riso iconoclasta, o lobo vai virar um
bolo, um bolo de lobo fofo.
Essa sanção, que irá coroar o percurso narrativo da menina,
justificando-o, orienta a transformação desse sujeito que, da conjun-
ção com a submissão, passa para a conjunção com a liberdade. As-
sim desenvolve-se a performance de ruptura da menina.
Enquanto em Perrault, tal ruptura acontece num instante den-
so e rápido, no espaço mágico do bosque, cujas figuras o discurso
economizou, a fim de não correr o risco de seduzir o enunciatário
para a aventura, restando à menina “poucos” poderes, como ficar
“divertindo-se a colher avelãs, a correr atrás das borboletas e a fazer
buquezinhos com flores do campo”, em Buarque, o discurso acentua
tal ruptura, subsidiado, que é, pela narrativa. Aí, a ruptura organiza-
se no antiprograma, em que, após a manipulação contraditória para a
liberdade, a menina, por meio de um PN de uso, constrói sua compe-
tência.
Esse programa narrativo de uso, isto é, aquele conjunto de trans-
formações, que vão construir a competência da menina para que ela
possa ser uma pessoa, ou seja, um sujeito em conjunção com a liber-
dade, constitui o fulcro de toda a subversão do sentido do texto e do
texto-base, ou deste por meio daquele, melhor dizendo.
É a automanipulação da menina para querer destruir o lobo, ou
o medo, é a menina saber e poder olhar de frente para ele, rir dele,
180 que permitem que esse lobo ou esse medo sejam ridicularizados e
Análise das variantes intertextuais

destruídos. Assim se inicia a performance de ruptura, ou a sanção do


lobo, que será mais contundente, se entendida no seu significado in-
tertextual.
É bom lembrar que, no texto-base, o centro da segunda se-
qüência narrativa do PN do lobo é também a construção de sua com-
petência. Digamos que, na retomada intertextual, há um paralelismo
sintático na narrativa, em se tratando da retomada dos mesmos actan-
tes. A inversão narrativa da paródia dá-se na “relação entre os actan-
tes narrativos (sujeito de estado e sujeito do fazer) e os atores que os
manifestam no discurso” (Barros, 1990, p. 22). Aí é que está a troca
lobo/menina, que nos permite falar em inversão da Sintaxe Narrativa.
Visualizando, em Buarque, essa seqüência narrativa do enun-
ciado, enxerga-se essa posição de suporte desse PN de uso, na cons-
trução de toda a seqüência narrativa, fato que vai constituir uma das
bases para que se firmem, no nível discursivo, a crítica à punição de
Perrault, a crítica à sua programação da advertência.
Esse discurso parodístico firma, assim, ideologicamente, suas
raízes, pela inversão do texto-base, pela diferença crítica em relação
ao texto-base, desde os níveis fundamental e narrativo do percurso
gerador do sentido.
Podemos, então, afirmar que, enquanto em Perrault, todo o PN
do lobo, em toda sua complexidade, compunha a fase de sanção do
PN da menina, para que se construísse a advertência, em Buarque,
todo o PN da menina, em toda sua complexidade, compõe a fase de
sanção do PN do lobo, para que, explodindo os limites, a menina
pudesse fruir a liberdade de ser ela mesma e perder aquele medo/do
medo que a aprisionava. Assim, desconstruindo o medo e o lobo, vai-
se construindo a transformação desse sujeito que, em conjunção com
a liberdade, cumpre a sanção às avessas, isto é, a sanção do velho
lobo pela própria menina.
A inversão narrativa fundamenta a inversão do papel da víti-
ma que, agora, passa a ser o lobo.
A inversão narrativa fundamenta a inversão parodística, que
se consumará no discurso. 181
Intertextualidade e conto maravilhoso

O percurso da menina, bipartido por performances opostas, de


submissão e de rebeldia, resgata, no primeiro caso, o que sobrou da
catequese para a repressão e cria, no segundo caso, a reação destrutiva
a essa repressão, centrando fogo no tema do esvaziamento da pessoa
pelo medo.
No percurso do sujeito submisso, em que se figurativiza a san-
ção positiva com o chapeuzinho amarelo, o discurso já introduz, en-
tretanto, a sua subversão, de maneira que a prisão e o medo narrados
já sejam criticados e fragilizados, e de maneira que se desmorone
qualquer condicionamento para a autodestruição.
Pelas estratégias argumentativas próprias da paródia, o discurso
minimiza o percurso da submissão narrada, de maneira que a rebel-
dia necessária, proposta ao enunciatário, sem se mostrar, inicial-
mente, no enunciado enunciado, permeia, entretanto, todo o signi-
ficado.
Narrativamente, essa rebeldia possível apóia-se na automani-
pulação contraditória da menina, na sua performance, que a deixa em
conjunção com a liberdade, mas, principalmente, no PN de uso, em
que se detalha a construção da competência do sujeito, para que ele
atinja seus fins, e que constitui, como dissemos, o suporte de toda a
seqüência narrativa.
Os fins que norteiam o programa narrativo de base e que se
enfeixam numa meta, viver em liberdade, tematizam-se, portanto, na
coragem de se opor a tabus e a estereótipos, na relatividade da fra-
queza, na não-reprodução dos limites.
Assim tecidas, essas relações de significado farão o enunciatá-
rio reproduzir, não o percurso da submissão, que ficou no repertório
intertextual, e que o enunciado resgata na primeira parte, e que a
enunciação minimiza, mas o percurso da libertação.
Para tanto, o enunciatário será instigado a repetir principal-
mente a construção da competência da menina, isto é, olhar de frente
para o seu medo, para poder, depois, rir dele. Aquele PN de uso, de
construção da competência do sujeito, estará subjacente, portanto, a
182 esta modalização factitiva, a qual faz o enunciatário fazer, o que aqui,
Análise das variantes intertextuais

em oposição a Perrault, significa fazer o enunciatário participar e


criticar livremente.
Voltemos, agora, à superfície discursiva. Para tanto, deixemos
clara, como instrumento de análise, a divisão do segmento textual
em duas partes, que constituem a conseqüência e, não a causa, do
processo de construção do significado deste discurso.
A primeira parte vai de Era a Chapeuzinho Amarelo até e um
chapéu de sobremesa, isto é, da narração do lastimável estado da
menina de petrificação pelo medo, até o seu encontro com o lobo, tão
terrível, “que era capaz/ de comer duas avós./ um caçador, rei, prin-
cesa,/ sete panelas de arroz/ e um chapéu de sobremesa”.
A segunda parte vai de Mas o engraçado é que, até o final,
que, curiosamente vem enunciado e anunciado com a palavra FIM,
não gratuitamente, como veremos. Nessa segunda parte, há a subver-
são parodística explícita, com o confronto da menina e o lobo, e o
desespero deste último, ao querer salvar sua identidade ameaçada.
Observemos a primeira parte.
Como todo o texto, nessa primeira parte, o discurso usa estra-
tegicamente a ironia para arquitetar seu significado, e a vítima dessa
ironia é a Chapeuzinho Vermelho, de Perrault.10

Tinha medo de trovão./ Minhoca, pra ela era cobra./ E nunca apa-
nhava sol/ porque tinha medo da sombra./ Não ia pra fora pra não
se sujar./ Não tomava sopa pra não se ensopar/ Não tomava banho
pra não descolar./ Não falava nada pra não engasgar./ Não ficava
em pé com medo de cair./ Então vivia parada,/deitada, mas sem
dormir,/com medo de pesadelo. ERA A CHAPEUZINHO AMA-
RELO.

Tomando essa estrofe como amostra do primeiro segmento,


vemos que, aí, o narrado resgata aquele sujeito intertextual em con-
junção com a submissão. Temos, então, a figura da menina em que se
consumou a receita de Perrault; uma menina mutilada pelo medo.

10 Denise Jardon declara: “A ironia é zombadora, ela agride, ela visa a uma personagem-
vítima, ela é crítica. Ela é, então, tendenciosa” (1988, p. 73). 183
Intertextualidade e conto maravilhoso

Podemos dizer que se nos apresenta o percurso temático-figurativo


da pessoa reificada.
Entretanto, pelo mecanismo sintático da ironia, o discurso
faz com que o enunciado afirme essa submissão, e a enunciação ne-
gue-a.11 Enquanto, no enunciado, narra-se a terrível destruição feita
pelo medo, a enunciação enuncia-se zombeteira em direção contrária.
Nota-se que o discurso não modaliza o enunciatário para o dó,
para a piedade daquela menina morta-viva. Antes, por meio de es-
tratégias argumentativas, entre as quais a ironia é preponderante, pro-
voca um distanciamento emocional do enunciatário, em relação à abu-
lia, à vida vegetativa da menina, que aparecem no enunciado enunciado.
Esse distanciamento emocional faz com que, já nessa primeira parte,
vá-se erigindo a paródia, pelos caminhos da ironia e da comicidade.
Essa primeira parte, que se norteia narrativamente pelo per-
curso do sujeito manipulado pela e para a repressão, e que apresenta,
após uma performance a contento, como sanção positiva, o decaden-
te chapeuzinho amarelo, é paradoxalmente envolvida, no discurso,
por um tom grotesco.
O efeito de sentido do grotesco está, por exemplo, no traço de
exagero ou de non-sense, que se manifesta reiterativamente em todas
as figuras, criando a isotopia do exagero ou da hipérbole, com a qual
o enunciado maximiza o que a enunciação minimiza. “Minhoca, pra
ela, era cobra./ E nunca apanhava sol/ porque tinha medo da sombra.
Não tomava sopa pra não se ensopar / Não tomava banho pra não
descolar./ Não falava nada pra não engasgar”. Ao revisitar, em
Buarque, o medo que rondava Chapeuzinho Vermelho, e que repre-
senta os medos arquetípicos confirmados, o enunciatário ganha um
poder e um saber para o triunfo sobre este medo, e, o que é curioso,
ainda nesta primeira parte.12 Isso, pela ironia e pelo efeito de sentido
de comicidade, marcas da paródia.

11 Pierre Fontanier afirma: “A ironia consiste em dizer, por uma zombaria divertida ou
séria, o contrário daquilo que se pensa, ou daquilo que se quer fazer pensar” (apud Deni-
se Jardon, 1988, p. 73).
12 Denise Jardon (1988, p. 5), na introdução de seu trabalho, citando Charles Mauron,
184 pergunta: “Ele (o estudante) compreendeu, ao ler certas comédias, que muitas das perso-
Análise das variantes intertextuais

Por volteios argumentativos, a enunciação faz com que o so-


frimento terrível da menina, totalmente esvaziada pelo medo do ou-
tro, manipule o enunciatário pela razão e, não, pela emoção, por isso
o riso é possível. Trata-se, segundo Bergson (apud Jardon, 1988, p.
12) da anestesia momentânea do coração, necessária ao cômico.13
“Não ficava em pé com medo de cair./ Então vivia parada,/
deitada, mas sem dormir,/ com medo de pesadelo./ ERA A CHA-
PEUZINHO AMARELO”. Uma euforia paradoxal predomina, en-
quanto se narra tão penosa submissão, e a disforia narrada não deixa
de ser apenas uma sombra para que a luz signifique. Eis a paródia.
O enunciatário, a quem é dada uma competência para o triunfo
sobre a submissão, como vimos, também é manipulado pela tentação
de um prazer de várias faces. Primeiro, o prazer da descoberta do
texto-base, inerente à leitura de toda variante intertextual; depois, o
prazer de derrubar, ainda que no tênue momento da interação da lei-
tura, os seus fantasmas, ou lobos; sempre, o prazer da cumplicidade
com o sujeito da enunciação, no jogo de esconde-esconde que permeia
todo o discurso, mas com especial sutileza, esse discurso parodístico.
Nessa primeira parte, por meio do efeito cômico, a má sorte da
menina é, portanto, criticada implicitamente, e já se subentende a
sedução para a rebeldia.14
Esse efeito cômico é obtido também pelo detalhismo que, produ-
zindo redundâncias, infla o discurso, inflando, textualmente, as estrofes;
acrescentam-se, com ele, pouquíssimas novas informações; repetem-se
desgraciosamente os fatos, para fazer graça. Acumulam-se detalhes inú-
teis para mostrar a inutilidade da “vida” de Chapeuzinho Amarelo.15

nagens como o glutão, o parasita humilhado, o valentão, representam de maneira espe-


cial nossas angústias primitivas e que, com a sua evocação grotesca ‘o inconsciente do
espectador pode ainda gozar de um triunfo secreto’”?
13 Bergson, na citação indicada, esclarece que “o cômico dirige-se à inteligência pura”, a
que Jardon acrescenta: “inteligência, opõe-se, aqui, definitivamente, à sensibilidade”.
14 Jardon (1988, p. 26): “O humorista mais afável contando-nos suas desventuras cotidia-
nas da maneira mais natural possível ‘é contra’ e critica implicitamente a má sorte”.
15 “O monólogo de Fígaro, de uma extensão perigosa, longa, adiciona, pela insignificância
(das informações) as peripécias da vida aventurosa de um pobre assalariado.” (Idem,
ibidem). 185
Intertextualidade e conto maravilhoso

“Mesmo assim a Chapeuzinho/ tinha cada vez mais medo/ do


medo do medo do medo/ de um dia encontrar um LOBO”. A repeti-
ção ad nauseam, no texto, revela o efeito de non-sense provocado
pelo discurso, efeito que se sobrepõe a essa paixão nefasta, superva-
lorizada por Perrault, minimizando-a. Não fôra essa redundância ab-
surda, consumar-se-ia um tom trágico; enfatizado, assim, o medo é
criticado e atenuado. Percebemos, portanto, em Buarque, aquele su-
jeito da enunciação que, dissimulando os significados, mais clara-
mente os revela, ou melhor, vela a crítica no riso, para melhor criti-
car. Ao repetir, Buarque exagera, ao exagerar, carnavaliza, ao
carnavalizar, dessacraliza, e todas essas performances apontam para
a disjunção do sujeito da enunciação com a submissão, porque esse
valor é criticado e rebaixado pelo riso. Tudo isso se enfeixa na des-
dramatização da figura “lobo”, que se constrói pela incongruência
intertextual dos papéis temáticos desse ator.16
O segundo segmento do texto corresponde, na seqüência nar-
rativa do enunciado, coincidentemente, ao antiprograma do sujeito
menina, isto é, à sua automanipulação contraditória para querer vi-
ver em liberdade. Aqui está a competência construída para destruir
o lobo e o medo, aqui está a sanção do lobo, para a qual se destinou
todo o percurso da menina. Aqui tematizam-se, definitivamente,
portanto, a rebeldia que constrói; a inutilidade da autoflagelação
pela culpa; a possibilidade sempre iminente de inaugurar uma nova
liberdade e o absurdo do medo da própria identidade, alimentado
pelos interesses mediocrizadores do sistema. Aqui, tematiza-se a
dúvida necessária.
Essa segunda parte fecha a construção do significado desse
discurso paradoxal, que utiliza as figuras do texto-base, os temas do

16 Jardon (1988, p. 26), resgatando Jean Fourastié, assim se pronuncia sobre a “desdrama-
tização” parodística: “O primeiro gesto de um escritor cômico é desdramatizar o trata-
mento do sujeito; trata-se de introduzir no discurso ‘a cada passo (...) uma incongruência
que é provocada pela destruição da continuidade harmoniosa’”. Acrescentaríamos que
se trata de uma ruptura semântica, na passagem do nível narrativo ao discursivo, caben-
do a um percurso temático e figurativo, às avessas, a responsabilidade por essa imprevi-
sível “desdramatização”; imprevisível, tanto na construção do sentido intratextual, como
186 intertextual.
Análise das variantes intertextuais

texto-base, as significações narrativas e fundamentais do texto-base,


para fazer o enunciatário não crer nesse texto-base.
Eis a paródia; resgata a autoridade das figuras e temas do tex-
to-base, para desautorizá-las em sua enunciação e em seu enunciado,
ou mais naquela do que neste, o que faz o movimento de destruição
ser mais contundente.
Nessa destruição do texto-base, está, ainda, outro paradoxo da
paródia. Ela contraria o texto-base, ela o critica, ela o destrói, para
reverenciá-lo. Ao escolhê-lo, ela lhe presta uma homenagem, ela o
renova, ela ratifica sua importância.
Voltemos à segunda parte.
Desestabiliza-se, aí, o núcleo figurativo, ao desestabilizarem-
se as figuras comuns ou invariantes da configuração discursiva da
antropofagia do lobo mau, ponto de conexão semântica entre o texto-
base e a paródia. Subverte-se a figura comum ou invariante da meni-
na boazinha e do lobo mau, apontando-se para a contrariedade dos
percursos figurativos de Perrault e de Buarque. Subjacente, temos a
oposição dos percursos temáticos e a subversão dos percursos narra-
tivos do texto-base e da contra-história.17
Expliquemo-nos.
Inicialmente observamos que, enquanto no texto-base – e na
primeira parte do texto – é terrível o medo que a menina sente do
lobo, nessa segunda parte, como numa repetição em espelho, é terrí-
vel o medo que o lobo sente da menina, confirmando-se, assim, o
efeito de sentido de comicidade.18
O lobo devorou a menina no texto-base; e, agora, vai ser devo-
rado pela menina, já que “virou” um bolo de lobo fofo. Essa expec-

17 Ao recuperarmos a configuração discursiva e sua importância na construção do signifi-


cado intertextual, baseamo-nos, é bom lembrar, em Barros (1988, p. 120-1), que aí es-
clarece esse procedimento.
18 Jardon assim comenta esse efeito: “Ainda uma vez, a comédia utiliza este tipo de (situa-
ção) risível, mas freqüentemente com bastante sutileza, como na repetição em espelho
freqüente no teatro dos séculos XVII e XVIII: normalmente as cenas de amor e as dispu-
tas amorosas dos jovens patrões são desdobradas, sob um outro registro, pela camareira
e pelo criado” (1988, p. 29). 187
Intertextualidade e conto maravilhoso

tativa, criada pela inversão da significação intertextual, reitera o efei-


to cômico da repetição em espelho e do déjà-vu. Tudo faz construir
um certo efeito de mecanicidade.
Essa repetição cômica de situações similares, com a crítica que
lhe é subjacente, faz o enunciatário não se envolver emocionalmente.
Ninguém sentirá pena do lobo, mas, pelo contrário, o prazer da vin-
gança.
Uma vingança bufona, que, fazendo rir do sério, repara a falta
instituída intertextual e interdiscursivamente, por Perrault, por Grimm,
por todos os contos de fada, que a menina ouvia e com que estreme-
cia.
Ao topar com o lobo, a menina vê que ele tinha “um bocão/
tão grande que era capaz/ de comer duas avós,/ um caçador, rei, prin-
cesa,/ sete panelas de arroz/ e um chapéu de sobremesa”. Nas figuras,
está o resgate demolidor do texto-base e de todo e qualquer conto
maravilhoso. Permeando tudo, está a antropofagia do lobo, direcio-
nada, então, para o conto de fadas e para si próprio, na iminência de
devorar o chapéu, figura-ícone da história que o justifica. Nessas fi-
guras, está também a assunção pelo discurso de sua própria mentira,
isto é, a paródia parece conto maravilhoso, mas não é.
Voltemos à vingança bufona.
Cria-se o que Greimas (1983, p. 241) chama reequilíbrio de
sofrimentos entre sujeitos antagonistas, próprio do programa narra-
tivo da vingança. A sanção do lobo, que vira bolo, não sem antes
uivar desesperadamente o próprio nome, como tentativa de salvação
de sua identidade moribunda, faz com que circulem, entre os sujei-
tos, paixões que constituem o sintagma da vingança: sofrer/ fazer
sofrer/ sentir prazer.
O triunfo não está, entretanto, somente na derrota do lobo, mas
na possibilidade do riso; o riso dialógico, opondo duas visões de mun-
do; aquela, da repressão, que conduz à alienação de si mesmo e, con-
seqüentemente, do outro, constituindo um problema; esta, da liberta-
ção, que conduz ao autoconhecimento e, conseqüentemente,
188 conhecimento do outro, constituindo uma solução. Bakhtin (1988 b,
Análise das variantes intertextuais

p. 127-8) assim se expressa a respeito desse riso dialógico: “O dis-


curso bivocal sempre é internamente dialogizado. Assim é o discurso
humorístico, irônico, paródico (...). Neles se encontra um diálogo
potencial, não desenvolvido, um diálogo concentrado de duas vozes,
duas visões de mundo, duas linguagens”.
No eixo problema/solução, inscreve-se, portanto, a construção
da competência da menina, a sua performance de ruptura, passos que
se mostram didaticamente como exemplo ao enunciatário, que tam-
bém fica modalizado para um novo poder fazer, para uma possibili-
dade nova de refletir sobre suas angústias, de triunfar sobre seus
medos. O enunciatário também se vinga.

Mas o engraçado é que,/ assim que encontrou o LOBO, a Chapeuzi-


nho Amarelo/ foi perdendo aquele medo,/ o medo do medo do medo/
de um dia encontrar um LOBO.

Pode-se pensar que acontece, aí, a aparição repentina de um


sujeito diferenciado de Chapeuzinho Vermelho, de Perrault, aquela,
que se submeteu ao medo e foi submetida por ele. Mas pode-se pen-
sar, também, que o que acontece, aí, é o resgate da Chapeuzinho Ver-
melho do bosque, a ousada, que se foi pelo caminho mais comprido,
a correr atrás das borboletas, aquela, para quem Perrault deu um
ser, um querer, um poder e um fazer efêmeros; e uma sanção irrever-
sivelmente triste. Aquela, que tinha de ser minimizada pelo discurso,
e cujos sonhos loucos tinham de ser abafados. E pode-se pensar, com
mais acerto, que esta e aquela juntam-se para repararem a falta.
Surge, então, essa “valente” Chapeuzinho Amarelo, essa “apa-
rição repentina”, com a vontade de se auto-afirmar, tão antiga quanto
o lobo. Essa vontade foi maximizada por Buarque, mais ambígua
que diretamente, como compete à paródia.
Nas referências a Chapeuzinho Amarelo, pode-se, aliás, colo-
car muitas palavras entre aspas, apontando para o distanciamento do
que se diz em relação ao que se pensa, ou seja, a menina ficou “va-
lente”, o lobo ficou “desesperado”. Isso se deve à ambigüidade refe-
rida desse discurso que, na verdade, ironiza o medo, a derrota inicial
da menina, até sua valentia, bem como o desespero do lobo. Só não 189
Intertextualidade e conto maravilhoso

se ironiza a vitória da liberdade sobre a submissão, da crítica esperta


sobre a alienação pachorrenta, porque esses são os valores ideológi-
cos propostos pela enunciação, e semeados desde os patamares mais
profundos do percurso gerador do sentido.
Pode-se afirmar que a paródia subverte o texto-base, no dis-
curso, pela estratégia da ironia, que faz com que se afirme esse texto-
base, mas ao contrário. A enunciação não esconde sua não-sinceri-
dade ao narrar as paixões que movem os sujeitos e as transformações
por que eles passam.19
Não constitui, a ironia, nesse contexto, um recurso argumenta-
tivo, que ajuda a construir esse efeito de crítica ideológica a toda a
alienação, ajudando o discurso a propor a liberdade e a reflexão como
valores altamente desejáveis, que nos impedem de ficar deitados,
mas sem dormir, com medo de pesadelo?
Parece que, desdramatizando, pela ironia, o lobo, a menina, e
suas performances respectivas, a enunciação veicula um certo cansa-
ço pelo motivo da repressão, e quer brincar de outra coisa; e o faz,
por meio do distanciamento a que é forçado o enunciatário. Esse dis-
tanciamento emocional do enunciatário constitui estratégia argumen-
tativa para se construir o efeito do cômico, pois, como diz Jardon
(1988, p. 12), “para que o riso irrompa, devemos manter uma boa
distância, ainda que por alguns segundos somente, a fim de sufocar
nossa sensibilidade”.
Acreditamos que esse distanciamento é subsumido sintatica-
mente pelo mecanismo da ironia e, não, por esta enunciação, que se
lança para longe, ao oferecer, aos percursos narrativos, um então, um
alhures, um ele; tudo muito distante de um eu-aqui-agora, por meio
do que assumiria a própria voz.
Entre as artimanhas da enunciação está, portanto, essa debrea-
gem enunciva, que é desestabilizada, quando a enunciação se enun-
cia em: “O lobo ficou chateado/ de ver aquela menina/ olhando pra
cara dele./ Ficou mesmo envergonhado,/ triste, murcho e branco aze-

190 19 Jardon cita a não-sinceridade irônica proposta por Kerbrat-Orecchioni. (1988, p. 81).
Análise das variantes intertextuais

do,/ porque um lobo, tirado o medo,/ é um arremedo de lobo./ É feito


um lobo sem pelo./ Lobo pelado”.
Ao assumir-se, a enunciação desvela a sua face carnavalizada,
que reitera, temática e figurativamente, a derrocada do medo, o que
se reproduz na brincadeira do trocadilho sem pelo/ pelado.
No geral, não há uma voz que se assume; a menina é um actante
do enunciado, o relato de seus sentimentos não é feito por ela pró-
pria, mas por uma outra instância enunciativa. O mesmo se dá com o
lobo. Quando se confrontam, na segunda parte, menina e lobo, o eu e
o tu emergem; a voz, entretanto, lhes é delegada pelo narrador.
Faz-se, em princípio, portanto, a colagem da sintaxe discursi-
va de Perrault, reforçada, semanticamente, pelas figuras invariantes,
para que se cumpra a subversão parodística.
Essa enunciação que não se assume faz, entretanto, volteios
argumentativos, para que o enunciatário não tome o discurso ao pé
da letra e descubra um segundo sentido nas palavras.20 É o princípio
da ironia e, ao cumpri-lo, essa enunciação enuncia-se, provocando
pontuais rasgos no discurso, em que se mostra. Expliquemo-nos.
Ao figurativizar o lobo, tão temido, com “carão de LOBO,/
jeitão de LOBO,/ e principalmente um bocão/ tão grande que era
capaz/ de comer duas avós,/ um caçador, rei, princesa,/ sete panelas
de arroz/ e um chapéu de sobremesa”, o enunciador, em princípio,
sugere a oposição entre o que o lobo parece e o que ele é. Tais expres-
sões mostram, no enunciado, esse lobo monstruosamente perigoso e
amedrontador, gigantescamente antropofágico. No entanto, a própria
insistência da hipérbole, que se espraia num detalhismo absurdo, que
eleva o percurso do exagero para o total non-sense, revela uma avali-
ação do enunciador a respeito do que o lobo é: um bobo.
Os termos enunciados querem dizer o contrário do que dizem,
ou seja, o lobo é uma mentira; assim, também, a Chapeuzinho Ama-
relo/ Amarelada de medo; assim, também, todo e qualquer conto de

20 Jardon, ao comentar esse distanciamento do enunciador, afirma: “O locutor irônico não


assume seu discurso porque ele quer que o ouvinte, por si mesmo, não o tome ao pé da
letra e descubra um segundo significado” (1988, p. 85). 191
Intertextualidade e conto maravilhoso

fada. A enunciação situa primeiro tudo no âmbito da mentira, para


depois, fazer o enunciado confirmá-la. Assim se constrói discursiva-
mente essa farsa em relação ao conto maravilhoso.
Minhoca, pra ela, era cobra. Com esse revestimento figurati-
vo, o discurso constrói o percurso do cotidiano, que dessacraliza o
maravilhoso; e, com tal confronto entre texto-base e contra-história,
ajuda a descomprometer emocionalmente o enunciatário, dando-lhe
uma competência para poder captar a intencionalidade da enuncia-
ção.21 Apesar de paradoxal, essa enunciação tem linhas poderosas de
coerência; enuncia-se, para modalizar o enunciatário para a reflexão
crítica, fazendo que ele acredite no que ela realmente acredita, ou
seja, na liberdade.
A paródia reflete a modalização factitiva, ao fazer o enuncia-
tário praticar a dúvida e a irreverência, que constituem os valores
intrínsecos desse discurso.
Com Perrault, vimos que o enunciatário se reconhece no sujei-
to sancionado e sofre, antecipadamente, o medo de alguma ousadia
futura, ou, o que é pior, sofre, irrecuperavelmente, a culpa por algu-
ma ousadia pretérita.
Em Buarque, todas essas paixões da tristeza são recuperadas,
mas num tom inapropriado, e são avaliadas pejorativamente. Por tudo,
permeia a ironia. Jardon (1988, p. 147), ao estudar a estrutura mate-
rial do humor, assim se expressa: “É não ter jamais o tom apropria-
do: é rir quando seria necessário chorar e é chorar quando seria ne-
cessário rir”. Hutcheon (1989, p. 73) afirma: “A função pragmática
da ironia é, pois, a de sinalizar uma avaliação, muito freqüentemente
de natureza pejorativa”.
Esse discurso ancora, assim, todas aquelas relações semio-nar-
rativas profundas numa superfície de ambigüidade, e seduz o enun-
ciatário para o prazer da descoberta do significado que se esconde
sob essa superfície.

21 Jardon, falando da ironia, declara: “De fato, ele (o receptor) deve estar suficientemente
distanciado emocionalmente do enunciado literal para captar o significado intencional”
192 (Idem, ibidem).
Análise das variantes intertextuais

Observemos um pouco mais de perto o lobo, essa figura de


quem o narrador fala tão espalhafatosamente mal, e que, assumindo
o próprio eu, numa debreagem enunciativa de segundo grau, ratifica
o traço jocoso, que lhe é dado por Buarque e retifica definitivamente
o traço assustador, perpetuado por Perrault.
Verdadeiramente, o tom grave e elevado de Perrault, enquanto
advertência para a ordem, para a segurança e a manutenção do status
quo, subverte-se irreversivelmente, quando o lobo assumiu a própria voz.
Apesar de degradado pela hipérbole, pleonasmos e seqüência
de non-sense, o lobo ainda mantinha algum elo com o seu papel in-
tertextual, auxiliado pela estaticidade da menina, cuja sintaxe, for-
jando uma duratividade descritiva, ajudava a construir, com os ver-
bos predominantemente no pretérito imperfeito.
Um dia topou com ele... Aí termina o percurso da submissão
da menina. A sintaxe reforça-nos essa segmentação, já que salta da
duratividade descritiva para a pontualidade narrativa, com o empre-
go do verbo no pretérito perfeito.
Essa pontualidade narrativa norteará, então, todos os fatos até
o final, numa reprodução da organização temporal enunciva de
Perrault. O Era uma vez, sintagma protocolar do conto maravilhoso,
é recuperado, aqui, na frase Era a Chapeuzinho Amarelo, e no advér-
bio enuncivo pontual um dia (Fiorin, 1994, p. 181). Buarque deixa,
entretanto, para o final, a profanação sintática do texto-base. Falare-
mos sobre isso.

Ficou mesmo envergonhado,/ triste, murcho e branco azedo,/ por-


que um lobo, tirado o medo,/ é um arremedo de lobo./ É feito um
lobo sem pelo,/ Lobo pelado.

O lobo causa-nos riso, mais pelo seu traço humano, do que


pelo seu traço animal, e aí está outra ambigüidade do discurso. Pode-
mos afirmar que o lobo é carnavalizado por um travestimento huma-
no que destrói expectativas intertextuais, porque, ao traço humano,
acrescentam-se outros, como fraco, suplicante, inseguro, trêmulo que
nem pudim, comparação figurativa de rebaixamento grotesco; afinal, 193
Intertextualidade e conto maravilhoso

isso é o que sobrou da figura-estereótipo do perigo, do desconhecido


a ser temido.
Buarque, com a sanção do lobo pela menina, reproduz às aves-
sas a ideologia de Perrault, com essa relatividade, essa ambigüidade
do cômico, e essa derrocada da formalidade, que constituem desdo-
bramentos, ainda que enfraquecidos, do realismo grotesco da Idade
Média e do Renascimento, de que fala Bakhtin (1987, p. 17-8):

O traço marcante do realismo grotesco é o rebaixamento, isto é, a


transferência ao plano material e corporal, o da terra e do corpo na
sua indissolúvel unidade, de tudo que é elevado, espiritual, ideal e
abstrato. É o caso, por exemplo, da Coena Cypriani (A Ceia de
Ciprião) (...), e de várias outras paródias latinas da Idade Média
cujos autores em grande parte extraíram da Bíblia, dos Evangelhos
e de outros textos sagrados todos os detalhes materiais e corporais
degradantes e terra-a-terra. Em certos diálogos cômicos muito po-
pulares na Idade Média como, por exemplo, os que mantêm Salomão
e Marcul, há um contraponto entre as máximas salomônicas, ex-
pressas em um tom grave e elevado, e as máximas jocosas e pedes-
tres do bufão Marcul que se referem todas premeditadamente ao
mundo material (bebida, comida, digestão, vida sexual).

A menina, ao desmontar o medo, desmonta, ou depela o lobo.


Na verdade, em Buarque, o lobo seria abstrato demais, mais temático
que figurativo, facilmente substituível pela paixão que representa, o
medo, não fôra esse travestimento rebaixado; ora com o traço huma-
no já referido, ora com o traço comestível, ou seja, “vira” pudim,
“vira” bolo. O que ele perde, ao perder a especificidade do papel de
“algoz”, ou da figura arquetípica do lobo, é a marca de perigo a ser
evitado. Seria uma perda lamentável, um empobrecimento do papel
actorial, mas ele regenera-se, concomitantemente, pelo riso; isso, o
discurso faz “sem medo”.
Voltemos ao lobo pelado:

O lobo ficou chateado/ de ver aquela menina/ olhando pra cara dele,/
só que sem o medo dele./ Ficou mesmo envergonhado.
194
Análise das variantes intertextuais

Confirma-se, no enunciado, a paixão da vergonha, o que, por


sua vez, confirma a humanização do lobo, já que, segundo Lotman
(1981, p. 237), essa paixão abriga-se na dimensão do “nós”: “O nós
cultural é uma coletividade dentro da qual reinam as normas da ver-
gonha e da honra”.
O percurso da sanção do lobo começa, então, com a sua auto-
sanção cognitiva. Ele reconhece-se incapaz de corresponder às ex-
pectativas do seu papel intertextual de devorador temido; dever-se-ia
impor pelo medo, entretanto, já não pode e nem sabe mais. Reprova-
se a si mesmo, agravando ainda mais a reprovação da menina, que
subsidia todos os passos dessa sanção.
Se o lobo se reprova, é porque aceitou o jogo, interagiu com a
menina, humilhando-se; foi-se dobrando à importância dela, foi-se
admitindo inferior, por isso, ficou envergonhado, pelado. Um lobo
“tristemente” humano.

A vergonha é, assim, um estado de alma da ordem do saber: o sujei-


to sabe que não possui a competência para um fazer exigido pelo
simulacro de membro de um dado grupo ou que fez algo em desa-
cordo com a deontologia grupal. Por outro lado, é preciso também
que o sujeito aceite esse simulacro como um ideal a ser seguido,
pois, se não dá nenhuma importância a ele, não será atingido pelo
sentimento de vergonha (Fiorin, 1992, p. 57).

Nesse trecho, em que se apresenta o lobo pelado, o discurso


confirma ideologicamente os valores da liberdade e da soberania eufó-
ricas, já que o lobo, ícone da submissão, decepciona; a vergonha, aqui,
liga-se à desonra. Essa figura branca azeda, arremedo de lobo, não
cumpre o simulacro estabelecido intertextual e interdiscursivamente.

Estabelece-se um simulacro (conjunto de modalidades e de papéis


actanciais e temáticos) do que deve ser um membro de um dado
grupo social e agir em relação de não conformidade com ele é moti-
vo de vergonha ou de medo (Idem, ibidem, 1992, p. 56).

No contexto da paródia, entretanto, essa vergonha e essa de-


sonra contribuem para o percurso da degradação, necessária e ambi-
valente, já que, afinal, ri-se do lobo. 195
Intertextualidade e conto maravilhoso

Esboça-se, com certeza, um sorriso, quando a manifestação,


enfatizando essa brincadeira parodística, repete, graficamente hiper-
bólica, o verso o lobo ficou chateado, elevando a uma potência
“altíssima” o estado patêmico do lobo e a “importância” que isso
tem, ou deve ter para a menina, ou para o enunciatário. Esse procedi-
mento reiterativo faz com que se crie, nessa paródia, um percurso
figurativo e temático da profanação.
Profana-se – pela ironia, pela hipérbole e pelo cômico – o lobo
e a menina intertextuais e, conseqüentemente, as paixões que os mo-
vem. Valores e papéis são entronizados para serem destronizados no
movimento de captação intertextual, aproveitando conceitos de Jardon
(1988, p. 188).

“E ele gritou: sou um LOBO!/ Mas a Chapeuzinho, nada. E ele gri-


tou: sou um LOBO!!!/ Chapeuzinho deu risada./ E ele berrou: EU
SOU UM LOBO!!!

Em se tratando do resgate daquele destinador/sancionador de


Chapeuzinho Vermelho – usado por Perrault, para construir e perpe-
tuar a advertência sobre o enunciatário, manipulando-o, definitiva-
mente, para viver de acordo com a maneira prescrita, isto é, desejoso
da submissão – observamos quanto a contra-história opõe-se, tam-
bém e, principalmente, no discurso, ao texto-base.
De sancionador a sancionado, de algoz a vítima, de astuto a
ingênuo, de dominador a dominado, o lobo afirma a linha da contra-
riedade de significação entre o texto-base e a contra-história, o mes-
mo acontecendo com a menina.
Ao debrear esse “eu” do lobo, num desdobramento quase que
ilocutório, sou um lobo, numa asserção exagerada por gritos e berros, a
enunciação denuncia, ainda que ridicularizando, que o feitiço virou
contra o próprio feiticeiro, ou seja, o lobo foi abatido pelo próprio medo.
Sob a ameaça de perder-se, de aniquilar-se como identidade,
na iminência da derrota – pois a menina ficou “olhando pra cara dele,/
só que sem o medo dele” – ficou indiferente e, até, “deu risada”; o
196 lobo sentiu medo. Isso é sugerido pela enunciação, enquanto, no enun-
Análise das variantes intertextuais

ciado, ele “gritou bem forte/ aquele seu nome de LOBO/ umas vinte
e cinco vezes,/ que era pro medo ir voltando/ e a menininha saber/
com quem não estava falando:
LO-BO-LO-BO-LO-BO-LO-BO
Confrontam-se dois fazeres obstinados: o da menina, antima-
nipulada e automanipulada pelo desejo de liberdade; o do lobo, dese-
joso de manter a submissão da menina, que lhe garante a sobrevivên-
cia do papel actorial, isto é, do lobo “mau”.
É sobre o lobo, porém, que, na contra-história, pesa o fardo do
medo.
Esse grito prolongadamente “desesperado” do lobo é de um
sujeito que, tal como explica Fiorin (1992, p. 57), “sabe poder estar
em conjunção com algo disfórico e não quer estar”, vê o estado como
disfórico e, por isso, sente medo. Mas trata-se de uma dor ambígua,
desajeitada pelo discurso.22
Trata-se, enfim, de um reflexo, ou, mais que reflexo, de uma
refração do confronto final de Chapeuzinho Vermelho com o lobo,
quando ela sente medo, recua, e, logo a seguir, “vira comida” do
lobo. O lobo, em seguida, também “vira bolo”. Aí está a inversão da
seqüência narrativa da contra-história, subsidiando a inversão dos
fatos discursivos.
Aproximando ideologias contrárias, o discurso firma o per-
curso temático da subversão do medo e permite-nos aquele triunfo
sobre nossas angústias e nossas culpas.23
Na verdade, Chapeuzinho Amarelo não é, portanto, nem no
primeiro momento, a decadência de Chapeuzinho Vermelho, ou a
sanção da sanção; na verdade, representa a redenção da menina, en-
quanto a possibilidade de superação de limites.

22 Hutcheon comenta que, numa paródia de um filme de Hitchcock, “um grito de mulher é
tão desajeitado que tem de ser gravado de novo; dentro do próprio filme, o grito final de
dor real é silencioso” (1989, p. 135).
23 Jardon, comentando o trabalho de crítica psicológica de Charles Mauron, sobre os con-
flitos edipianos criadores de situações cômicas, transcreve-lhe a seguinte afirmação: “A
verdadeira profundidade da arte cômica deve ser acima de tudo buscada na inconsciente
fantasia de triunfo, que recobre um mito angustiador” (1988, p. 32). 197
Intertextualidade e conto maravilhoso

O ideal a ser buscado, em Buarque, não é o homem medroso, mas


também não é o impávido, como também não é o intrépido. O desejável
para este discurso, cujo sentido só se constrói por meio do diálogo inter-
textual, é o homem corajoso. Para melhor explicar essas afirmações,
transcrevemos esta observação de Fiorin sobre tais estados patêmicos:

Quando o sujeito não se preocupa com o perigo, ou seja, quando


ocorre a ausência do elemento modal “não querer estar em conjun-
ção com o estado disfórico”, temos o comportamento impávido, que
é próprio de quem não tem ou não trai nenhum medo. O intrépido é o
que sabe do perigo, mas afronta-o sem medo; o corajoso é o que sabe
do perigo, tem medo, mas enfrenta-o mesmo assim. (1992, p. 58)

Mesmo fazendo rir, ou sorrir, o discurso traça, no simulacro


do ato da comunicação, essa expectativa de papéis patêmicos,
temáticos e actanciais em relação ao enunciatário, e, até aí, contraria
Perrault. O corajoso opõe-se ao medroso.
Cada discurso – Perrault ou Buarque – cumpre o Poema da
necessidade de uma dada cultura, isto é, diz o que manda a formação
discursiva na qual se insere.24
Em se tratando de simulacros, Buarque também contraria
Perrault quanto ao modo do ser e do parecer dos atores. Chapeuzinho
Vermelho, no texto-base, parece boa, mas não é, por isso, foi punida;
e o inverso aplica-se ao lobo, que parece mau, mas não é. Em Buarque,
no saldo final, a menina não parece boa, nem é, e o lobo não parece
mau e nem é.25 Eis uma reiteração da intencionalidade iconoclasta da
paródia em relação ao texto-base.

24 “É preciso casar João,/ é preciso suportar Antônio,/ é preciso odiar Melquíades,/ é preci-
so substituir nós todos./ É preciso salvar o país,/ é preciso crer em Deus,/ é preciso pagar
as dívidas,/ é preciso comprar um rádio,/ é preciso esquecer fulana./ É preciso estudar
volapuque,/ é preciso estar sempre bêbedo,/ é preciso ler Baudelaire,/ é preciso colher as
flores/ de que rezam velhos autores./ É preciso viver com os homens,/ é preciso não
assassiná-los,/ é preciso ter mãos pálidas/ e anunciar o FIM DO MUNDO”. Acreditamos
que, nesses versos, poetizou-se o conceito de formações discursivas existentes numa
dada formação social, por isso encorajamo-nos a citá-los.
25 Bom ou Mau, aqui, remetem ao estado do sujeito, em conjunção ou em disjunção com a
submissão, que é a linha de valores que subsidia o discurso de Perrault, e que permeia o
198 diálogo intertextual.
Análise das variantes intertextuais

O duelo das enunciações contrárias – Perrault e Buarque – tra-


duz-se, portanto, no duelo das duas instâncias enunciativas, eu e tu,
menina e lobo que, em Buarque, mais que falam, gritam.
Acrescente-se aos recursos comentados de ironia e de hipérbole
– ou desta ajudando a construir aquela – o emprego dos verbos dicendi:
gritou, berrou, gritou bem forte (...) umas vinte e cinco vezes, que, ao
se enunciarem, desqualificam o interlocutor, pois, segundo Fiorin
(1994, p. 83), constituem verbos avaliativos, que demonstram um
ponto de vista negativo do narrador em relação ao conteúdo da fala
do interlocutor. Isso reforça a própria ironia, ou seja, o enunciado
apavora, a enunciação brinca.
Por esse mesmo jogo entre enunciação e enunciado, a própria
estaticidade da menina é também desqualificada.
Expliquemo-nos.
O primeiro verso, “Era a Chapeuzinho Amarelo”, tem, implí-
cito, o momento de referência pretérito, uma vez. Os vinte verbos no
pretérito imperfeito, que se lhe seguem, em seqüência enumerativa,
até o verso definitório final, “ERA A CHAPEUZINHO AMARE-
LO”, indicam exaustivamente os estados concomitantes, sem nenhu-
ma transformação. Todas essas inações, baseadas no mesmo momento
de referência, enfatizam, por uma repetitiva simultaneidade, o senti-
do de estaticidade, que, assim, discursivizado, não pode ser levado a
sério.
Na verdade, quem não pode ser levada a sério, bem sabemos,
pela voz do texto-base, é a Chapeuzinho Vermelho, que se deixou
sucumbir, ou seja, são os nossos temores sedimentados, cristaliza-
dos, há tanto, tanto tempo, que já nem podemos mais identificá-los.
Por isso corremos o risco de nos perder de nós mesmos, de não saber
nunca quem realmente somos e de temer muito essa descoberta. Contra
isso, ressurge, com as armas do discurso, essa nossa paródia.
Vingamo-nos com esse sujeito, que se transforma a partir de
um dia. Brindamos, com alegria, a descontinuidade do medo. O que,
no bosque de Perrault, foi mais um erro do que um ensaio, aqui é um
definitivo acerto para nosso deleite. 199
Intertextualidade e conto maravilhoso

Opõe-se, aparentemente, também o espaço do texto-base, que


subjaz à enunciação, ao espaço enunciado da paródia. Lá, a organiza-
ção, a ordem dicotômica, ou seja, a articulação das categorias
interioridade vs. exterioridade, fechamento vs. abertura, fixidez vs.
mobilidade, homologadas à categoria alteridade vs. identidade. O
afastamento e a saída estão para o valor da identidade, tão temida e
tão temível, como vimos. A aproximação e a reunião estão para a
alteridade, tão desejada e desejável, tal como já descrevemos.
Aqui, não se enuncia nenhuma saída a um espaço exterior. A
grande aventura da menina fundamenta-se na construção da sua com-
petência para vencer o lobo e o medo, o que se expressa narrativa-
mente naquele PN de uso, suporte da narrativa, já comentado. Acon-
tece que essa aventura é a sua saída que, implicitamente, ancora-se
num espaço subjetivo, ou seja, no interior da própria menina, na sua
própria mente, no seu eu. Aí está o bosque da aventura, só que
axiologizado inversamente ao de Perrault, porque altamente neces-
sário e importante, como o discurso faz crer.
Sintaticamente, Buarque retoma, então, Perrault com a mesma
debreagem espacial e temporal – calcada num alhures e num então –
só que, em Perrault, o espaço é objetivo; em Buarque, subjetivo.
Ademais são as inversões temáticas e as variações figurativas em
torno de figuras comuns ou invariantes e, principalmente, a estraté-
gia argumentativa que, em Buarque, define-se pela intencionalidade
de ganhar a cumplicidade do enunciatário para o efeito do irônico
que, aqui, liga-se indissoluvelmente ao cômico.
Podemos ainda incluir, entre essas estratégias argumentativas,
a brincadeira com a figura do espaço indeterminado do texto-base,
por meio de figuras que rebaixam aquela indeterminação, própria do
maravilhoso, como, por exemplo, ao caracterizar o lobo:

que morava lá pra longe,/ do outro lado da montanha,/ num buraco


da Alemanha,/ cheio de teia de aranha,/ numa terra tão estranha,/
que vai ver que o tal do LOBO/ nem existia.

Ao risível da manifestação das rimas exageradamente repeti-


200 das, que jogam com a possibilidade do non-sense da figura da Ale-
Análise das variantes intertextuais

manha, ou com o resgate da terra dos Irmãos Grimm, isso importa


pouco, subentende-se o risível da enumeração detalhista, com um
final rápido e imprevisível, recurso reiteradamente usado pelo dis-
curso e com que se constrói o cômico.
Ainda falando da manifestação, observamos a brincadeira do
trocadilho LO-BO, BO-LO, em que a palavra (re)cria a realidade, ou
seja, consuma o rebaixamento da figura do lobo, expressando ainda,
na grafia das letras exageradamente grandes, o “desespero” ridículo
do interlocutor exagerado.
A manifestação, ao colocar sempre em maiúsculas as letras da
palavra LOBO, num crescendo contínuo, até ocupar uma página in-
teira, expressa textualmente a hipérbole, reforçando-a, e contribuin-
do, assim, para a construção da figura discursiva da ironia. Ou, se
quisermos, podemos dizer que, ao exagero do significante, corres-
ponde a minimização do significado.
A manifestação reforça o tema da crítica a qualquer opressão,
ao brincar com a norma culta da língua, com a polissemia das palavras,
multiplicando os trocadilhos, e, conseqüentemente, o efeito do riso.

Não tomava sopa pra não se ensopar/ Não tomava banho pra não
descolar.
Um lobo, tirado o medo,/ é um arremedo de lobo./ É feito um lobo
sem pelo./ Lobo pelado.

A prosopopéia do lobo reforça a ironia cômica, pois, como já


vimos, rimos do que há de humano na sua figura, como, no seu grito
derradeiro: “Ele então gritou bem forte/ aquele seu nome de LOBO/
(...): LO-BO-LO-BO-LO-BO-LO-BO”. Trata-se do verso mais lon-
go do poema, em que, repetida quinze vezes a vogal fechada, poste-
rior e escura, temos um eco que imita o próprio uivo do lobo, levan-
do-nos para regiões sombrias do medo, do susto, ou do autoritarismo,
que o lobo tenta recuperar inutilmente.
Essa inutilidade, a manifestação também ajuda a construir, ra-
tificando, por meio da expressão textual, o percurso temático do lúdico,
na estrofe seguinte ao prolongado uivo: 201
Intertextualidade e conto maravilhoso

Aí Chapeuzinho encheu e disse:/ – Pára, assim! Agora! Já! Do jeito


que você tá!

À escolha figurativa encheu, que acompanha o verbo dicendi e


marca a oralidade, o viés popular do uso da língua, segue-se: “– Pára
assim! Agora! Já!/ Do jeito que você tá!”. Na concordância gramati-
calmente “incorreta”, na aférese do tá, manifesta-se a transformação
daquela menina que, de tão medrosa, ficou “safada”.
E ficou autoritária também, o que o discurso prova com a
segmentação do sintagma adverbial, agora, já, do jeito que você tá,
numa exigência definida, crescente, reforçada pela recorrência da ex-
clamação que, manifestada três vezes, reduplica a irritação do próprio
locutor, a menina. Guimarães Rosa diz que “do medo vai-se à raiva”.
A materialidade significativa da língua está, ainda, no próprio
símile fonológico, que produz o símile semântico, recurso acentuado
em bolo de lobo fofo, o qual incorpora também o trocadilho, e este,
por sua vez recupera o lúdico.26
A irreverência parodística vai, então, perpassando a manifes-
tação, como, só para citar mais alguns exemplos, nos versos “tre-
mendo que nem pudim,/com medo da Chapeuzim./ Com medo de ser
comido/ com vela e tudo inteirim”, em que, ao lado do uso da forma
popular de introdução da comparação, que nem, encontramos as for-
mas apocopadas Chapeuzim e inteirim que, ao impor um aspecto
lúdico às rimas, podem também estar confirmando a própria retoma-
da do velho, do antigo, do texto-base, do interdiscurso.27
Voltando ao discurso e àquelas estratégias argumentativas, que
resultam na brincadeira da paródia em relação ao texto-base, obser-
vamos fatos dignos de nota nas duas estrofes finais:

Chapeuzinho não comeu/ aquele bolo de lobo,/ porque sempre pre-


feriu/ de chocolate.

26 Soriano fala dessas brincadeiras da expressão textual, ao referir-se àquilo que os italia-
nos designam de scioglilingua, ou seja, frases para serem repetidas com rapidez, sem
poder errar. (1968, p. 154)
27 Castro (1982), ao analisar a obra de Guimarães Rosa, aponta para a tendência arcaizante
202 do uso das terminações apocopadas, hipocorísticas ou diminutivas.
Análise das variantes intertextuais

O efeito de humor é obtido pelo recurso que Jardon (1988, p.


136) chama suspensão da evidência, que promove a redução do mun-
do ao absurdo, ou seja, não há bolo de lobo, não é possível comer
bolo de lobo. Esse efeito também é dado, é bom que se acrescente,
por meio de outro efeito – a surpresa, ou o anticlímax – não só pelo
pouco-caso que o sujeito faz do objeto de sua sanção, como pela
rapidez com que esse gesto é apresentado.
Com esses versos, entramos, aliás, num segmento muito sin-
gular do texto, que poderia ser considerado uma terceira parte, mas é
uma variação da segunda, visto tratar-se ainda do percurso da sanção
do lobo pela menina.

Aliás, ela agora come de tudo,/ menos sola de sapato./Não tem mais
medo de chuva/ nem foge de carrapato./ Cai, levanta, se machuca,/
vai à praia, entra no mato, trepa em árvore rouba fruta,/ depois joga
amarelinha/ com o primo da vizinha,/ com a filha do jornaleiro,/
com a sobrinha da madrinha/ e o neto do sapateiro.

Nessa passagem, a enunciação atua num contraponto do siste-


ma enuncivo, assumindo um presente verbal, um tempo enunciativo,
que supõe a equação MA=MR=ME, ou seja, a total concomitância
dos momentos: o momento do acontecimento, o da referência inscri-
to no enunciado e o da enunciação.
O discurso reserva, para a linearidade final do texto, essa sur-
presa, ou profanação sintática, em que um agora enunciativo opõe-
se a um então enuncivo, traço sintático do conto maravilhoso e dessa
própria paródia. Realmente, o discurso não quer ser um conto mara-
vilhoso, apesar de parecer.
Forja-se esse agora, que menos se confronta com o então e
serve mais para encerrá-lo, produzindo, também sintaticamente, o
efeito de desfecho do tempo perdido nos tempos. Encerra-se discur-
sivamente o maravilhoso, de maneira que o FIM, que se manifesta no
término do texto é mais uma redundância irônica.
Desestabilizam-se clichês, todo o discurso recontextualiza-se
para um hoje urbano e “desencantado”, com figuras como “come de
tudo,/ menos sola de sapato, joga amarelinha,/ com o primo da vizi- 203
Intertextualidade e conto maravilhoso

nha,/ com a filha do jornaleiro”, alterações essas que já despontavam


no início, quando se figurativizou uma menina que tossia, mesmo
sem estar resfriada, que não descia, nem subia escada.
Brincando com outras figurativizações do medo do medo, como
o diabo, a barata e o raio; reproduzindo cacófatos; desmantelando,
enfim, qualquer norma oficial, ou qualquer arbitrariedade do texto-
base, ou do próprio contexto, Buarque encerra o discurso com a sur-
presa do desmantelamento da arbitrariedade do próprio signo lin-
güístico.

Mesmo quando está sozinha,/ inventa uma brincadeira./ E transfor-


ma em companheiro/ cada medo que ela tinha:/ o raio virou orrái,/
barata é tabará,/ a bruxa virou xabru/ e o diabo é bodiá.

Algumas palavras duras,


Em voz mansa te golpearam.
Nunca, nunca cicatrizam.
Mas, e o humour?

(Carlos Drummond de Andrade)

3 – C HAPEUZINHO VERMELHO, DOS I RMÃOS GRIMM: 28 A PARÁFRASE

Chamamos Chapeuzinho Vermelho, de Grimm, uma paráfrase


de Perrault.

28 “Jacob e Whilhelm Grimm (filólogos e grandes folcloristas, estudiosos da mitologia


germânica), (...) na imensa massa de textos que lhes serve para os estudos lingüísticos,
redescobrem o mundo maravilhoso da fantasia e dos mitos que desde sempre seduziram
a imaginação humana. Selecionam uma centena deles e (...) começam a publicá-los com
o título de Contos de fadas para crianças e adultos (1812-22). (...) Com a perspectiva do
tempo, fácil é percebermos hoje que a atração pelo maravilhoso popular, no início do
século XIX, não se deveu exclusivamente às pesquisas lingüísticas que então se intensi-
ficaram, mas também a uma tendência generalizada na literatura de fins do século XVIII,
para descobrir possíveis ‘mistérios’ por trás das aparências do real comum ou para sati-
rizar o racionalismo, que procurava explicar todos os fenônemos, inclusive os do com-
204 portamento humano” (Coelho, 1987, p. 73-4).
Análise das variantes intertextuais

Grimm, apesar de não parecer, constrói um significado pela


captação máxima de Perrault, confirmando o texto-base desde as ins-
tâncias mais profundas e abstratas, ratificando-lhe os valores e atre-
lando-se ideologicamente às mesmas formações discursivas da proto-
história.29
Como vemos, a paráfrase, como qualquer situação de comuni-
cação, tece simulacros e, nesse caso, consegue sobrepô-los, um so-
bre o outro.
O primeiro simulacro é aquele próprio da situação de comuni-
cação, ou seja, há um enunciador que manipula um enunciatário, dan-
do-lhe um querer para desvendar um texto, que tem, na base de seu
significado, o texto-base imitado. Na atribuição mútua dos papéis
entre os sujeitos que interagem nesse ato de construção do sentido,
por meio das relações intertextuais, está o simulacro.30 Assim se en-
caminha a performance da leitura de qualquer variante intertextual.
O segundo simulacro está no fato de que essa paráfrase parece
que contraria o texto-base. Na verdade, entretanto, somente o repro-
duz em todos os níveis da produção do sentido, como compete à
paráfrase.31
Essa paráfrase, contudo, apesar de fazer confluir totalmente
sua voz com a voz do texto-base, não o faz por linha reta. Se o fizes-
se, apresentaria apenas “ingênuas” alterações do plano da expressão,
que, como bem sabemos, não seriam absolutamente ingênuas e refle-
tiriam alterações do plano do conteúdo.
Essa paráfrase confirma o texto-base por linha tortuosa.

29 Dispensamo-nos de uma análise mais detalhada de Grimm, devido a essa captação má-
xima do texto.
30 Fiorin afirma: “O simulacro (da enunciação) é (...) o papel que os parceiros se atribuem
no ato da comunicação, estabelecendo a competência de cada um deles para determina-
do ato” (1992, p. 55).
31 A paráfrase aproxima-se do pastiche, enquanto relação de semelhança com o texto-base.
Hutcheon (1989, p. 55), comparando a paródia com o pastiche, afirma que “a paródia
procura de fato a diferenciação no seu relacionamento com o seu modelo; o pastiche
opera mais por semelhança e correspondência”. Acrescenta, ainda: “A paródia está para
o pastiche talvez como a figura de retórica está para o clichê. No pastiche e no clichê,
pode dizer-se que a diferença se reduz à semelhança”. 205
Intertextualidade e conto maravilhoso

Em princípio, podemos afirmar que Grimm detalha Perrault


no enunciado.
Na manipulação da mãe, por exemplo, antes de Chapeuzinho
“pôr-se na estrada”, o alerta que faz a menina crer não ser competen-
te para cuidar de si mesma, envolvendo-a, já no início, com as pai-
xões de preocupação e insegurança, em Grimm está enunciado com
detalhes de figuras, com multiplicação de imperativos, enquanto, em
Perrault, tudo se pressupõe num enunciado seco, tecido com figuras
essenciais.

– Sai antes que comece a esquentar, e quando saíres, anda direiti-


nha e comportada e não saias do caminho, senão podes cair e que-
brar o vidro e a vovó ficará sem nada. E quando chegares lá, não
esqueças de dizer bom-dia, e não fiques espiando por todos os can-
tos. (Grimm)
– Vai ver como está tua avó, pois me disseram que anda doente;
leva-lhe uns pãezinhos e esta tigelinha de manteiga. (Perrault)

A advertência que não se enuncia parece ser a mais forte, en-


quanto que aquela que se enuncia por meio de um esbanjamento de
figuras parece ser atenuada. A menina, em Grimm, é salva, e o lobo
morre, não esqueçamos. Grimm, que enuncia hiperbolicamente a
advertência, que Perrault deixa pressuposta, parece atenuá-la, por-
tanto.
O contrato fiduciário, assumido pela menina, também parece
enfatizar, em Grimm, o que Perrault também deixa pressuposto.

– Vou fazer tudo como se deve – disse Chapeuzinho Vermelho à


mãe, dando-lhe a mão como promessa. (Grimm)
Chapeuzinho Vermelho saiu no mesmo instante para ir à casa de sua
avó... (Perrault)

Por apêndices figurativos e narrativos a Perrault, a paráfrase


parece promover, portanto, uma atenuação temática da proto-histó-
ria. Grimm parece atenuar na enunciação o que enuncia e reforça no
206 enunciado.
Análise das variantes intertextuais

Aparentemente, atenua-se, em Grimm, tanto a desobediência


da menina, quanto a punição final, que parece obviamente invertida;
no lugar da morte do sujeito, a sua salvação e o prazer da vingança.
Veremos que a desobediência é, verdadeiramente, atenuada, mas a
verdadeira sanção é negativa, confirmando-se, até por essa atenua-
ção da desobediência, a força da repressão ou o poder da punição.
Por torneios da imaginação, que enriquecem o percurso figu-
rativo, Grimm parece, portanto, atenuar o percurso temático da ad-
vertência, se bem que, pela exaltação do perigo, a supervalorização
da obediência, que é a modalização da menina para não poder não
fazer o que os outros querem e, até, a exaltação das belezas e dos
prazeres do bosque, poderiam reforçá-la.
Grimm poderia reforçar o percurso temático da advertência
pelo enriquecimento das figuras que, à medida que tornam mais ten-
tadora a aventura, também a punição se faria mais necessária, ou
seja, quanto maior o prazer da liberdade, maior a necessidade da re-
pressão, na axiologia dos valores deste discurso. Poderia, ainda, ate-
nuar esse percurso pelo enriquecimento das figuras, na medida em
que apresenta o sujeito ainda submisso, ainda ligado ao outro, mes-
mo diante das belezas do bosque, o que se ligaria coerentemente a
uma sanção negativa final aliviada. Mas Grimm, na verdade, não faz
nem uma coisa nem outra, permanecendo na prática da ornamenta-
ção do texto-base, que é o que constitui a performance do fazer inter-
textual, em se tratando de paráfrase.

– Chapeuzinho Vermelho, olha só para as lindas flores que crescem


aqui em volta! Por que não olhas para os lados? Acho que nem ou-
ves o mavioso canto dos passarinhos! Andas em frente como se fos-
ses para a escola, e no entanto é tão alegre lá no meio do mato.
(Grimm)
– Irei por este caminho, e irás por aquele. Vamos ver quem chega
primeiro. (Perrault)

O enriquecimento figurativo de Grimm acentua, no enuncia-


do, as belezas e as tentações do bosque. A própria contramanipulação
do lobo estende-se a sonhados lugares onde se ouve “o mavioso can- 207
Intertextualidade e conto maravilhoso

to dos passarinhos”. A desobediência da menina, isto é, a sua perfor-


mance de ruptura, a ousadia por deixar-se ficar no “bosque dos so-
nhos”, não é, entretanto, aprofundada, discursivamente, em Grimm,
à medida que esse detalhamento figurativo concretiza tantos encan-
tos do bosque, ou do mundo desconhecido.
Respondendo à provocação do lobo, que constitui um desafio
à sua identidade, a menina permite-se, verdadeiramente, só em
Perrault, esse completo afastamento do outro, sem pensar em nin-
guém mais, a não ser nela mesma, naqueles fugazes momentos.

Chapeuzinho Vermelho arregalou os olhos, e quando viu os raios de


sol dançando de lá para cá por entre as árvores, e como tudo estava
tão cheio de flores, pensou: “Se eu levar um raminho de flores fres-
cas para a vovó, ela ficará contente; ainda é tão cedo, que chegarei
lá no tempo certo.” (Grimm)

Ornamentando figurativamente o ato da desobediência, esse


discurso faz com que essa performance de ruptura seja, verdadeira-
mente, aliviada. A menina, aí, deixa-se ficar no bosque, pensando na
avó, colhendo flores para ela, com a preocupação de ainda chegar
“no tempo certo”. Ousa menos que a menina de Perrault, portanto;
esta, desligou-se verdadeiramente do outro, aproximando-se “dema-
siadamente” do eu: “a menina se foi pelo caminho mais comprido,
divertindo-se a colher avelãs, a correr atrás das borboletas e a fazer
buquezinhos com flores do campo”. (Perrault)
Como lemos a sanção final apenas aparentemente positiva,
concluímos que foi inútil à menina ter sido mais dócil, mais “boazi-
nha” que a Chapeuzinho Vermelho de Perrault, já que ela foi também
punida. O aliviar a desobediência, que é verdadeiro em Grimm, ser-
virá, então, aos propósitos de confirmação da submissão do discurso.
Subjacente, portanto, está a função de ornamento da paráfrase em
relação ao texto-base.
Ao simular, portanto, essa menina menos corajosa, ao aliviar
a ruptura, Grimm acaba revelando, no nível discursivo, o compro-
misso de confirmar a submissão como valor eufórico, e de negar a
208 liberdade como valor disfórico. Acaba acontecendo, portanto, a total
Análise das variantes intertextuais

confluência de vozes entre Perrault e Grimm, e o detalhamento figu-


rativo consuma-se como um ornamento, já que nem a sanção final,
como parece, contraria Perrault, como veremos.
Para esse discurso que, no nível fundamental, tal como na proto-
história, nega a identidade e afirma a alteridade e, no nível narrativo,
leva o sujeito a entrar em conjunção com a submissão, seria oportuna
e esperada esta equação: quanto maior o prazer da liberdade, maior a
necessidade da repressão, como dissemos. Entretanto, isso não acon-
tece, porque nem o prazer, nem a punição são maiores do que em
Perrault; o prazer, na verdade, é menor. Insinuar-se-ia, então, outra
equação: já que o prazer foi menor, a punição tem de ser aliviada.
Isso também não acontece, porque, no modo do ser, a punição é a
mesma e, só aparentemente, foi aliviada. As figuras confirmam-se,
nesse sentido, como ornamentos. Um ornamento, entretanto, não-
gratuito, já que alivia aparentemente a tensão do discurso, pela inau-
guração da dimensão do supérfluo, acabando por ajudar a atenuar, na
aparência, o tema da advertência de Perrault.
Grimm sempre desvela o que Perrault dissimula, como, por
exemplo, a necessidade que a menina tinha – e que, conseqüente-
mente o enunciatário deve ter –, da paixão do “não querer ser”, que
articula o sujeito com o medo.

Perguntou-lhe o Lobo aonde ia ela. A pobre criança, que não sabia


como era perigoso dar ouvidos a um lobo, respondeu: ... (Perrault)
Mas Chapeuzinho não sabia que fera malvada era aquela, e não teve
medo dele. (Grimm)

Novamente, o que se enuncia parece atenuado. Grimm enun-


cia o medo, que Perrault deixa pressuposto, mas Perrault é quem pa-
rece modalizar mais fortemente o sujeito menina e, conseqüentemente,
o enunciatário, pelo medo. Em Perrault, abruptamente, o lobo devora
a menina e o silêncio da morte impõe-se na narrativa.
Tanto em Perrault, quanto em Grimm, essa paixão do medo é,
sem dúvida, axiologizada positivamente e, por meio dos exemplos
citados, vemos outra confluência entre os dois discursos: o não saber
está homologado ao não medo. Poderia parecer uma apologia da ig- 209
Intertextualidade e conto maravilhoso

norância, não fora a referida axiologização, que converte o não medo


e, conseqüentemente, o não saber disfóricos. Saber é ser esperto, ser
esperto é ser submisso; logo, saber é ser submisso. Assim se constrói
o sofisma da formação discursiva subjacente a esses dois textos.
O que acontece, então, é a descriminação da menina, ou seja, a
minimização de sua culpa, isto é, não tinha medo, porque não podia,
não podia, porque não sabia “que fera malvada era aquela”. Essa
descriminação vai-se enfatizando aparentemente mais em Grimm,
entretanto; a culpa é, aí, aliviada mais significativamente, pois o su-
jeito sabe não se afastar totalmente do outro e não se afasta. Tudo
inútil, como veremos; o discurso faz da menina ré e culpada, tanto
quanto em Perrault, punindo-a. Dobra-se Chapeuzinho Vermelho,
como se dobra o enunciatário para a submissão e pelo medo, tal como
em Perrault. Tudo o mais não passa de ornamento.
Por linhas tortuosas, confirma-se, portanto, a alteridade do ní-
vel fundamental, tal como em Perrault; confirmam-se as formações
discursivas, que, por sua vez, realizam-se na referida confluência de
vozes. Isso é captar um texto.
Confluência, captação e conformidade de Grimm em relação a
Perrault parece, entretanto, que desaparecem na sanção final, com o
acréscimo, à narrativa de Perrault, do percurso do caçador, que mata
o lobo, e “então os três ficaram contentíssimos”.
Antes de refletirmos sobre isso, ponderemos, por meio da pa-
lavra destacada, sobre o tom argumentativo desse discurso. “Então”
é um advérbio que ajuda a enquadrar a organização temporal do dis-
curso num tempo enuncivo, distante do momento da enunciação, como
acontece com todo o procedimento sintático desse discurso, que an-
cora a narrativa em atores, espaço e tempo que simulam efeitos de
irrealidade. Acontece que o emprego desse advérbio é redundante
nesse último parágrafo do texto, como o é nos outros, isto é, parágra-
fos de número 15 (Então ele ficou andando...); 18 (Então ela saiu...);
26 (Então ela se aproximou...); 36 (Então ele entrou na casa...); 38
(Aí ele quis apontar a espingarda... – na palavra destacada, uma va-
riante expressiva de então); 40 (E aí também a velha...). É redundan-
210 te, em si, porque a concomitância com o marco referencial pretérito
Análise das variantes intertextuais

já está indicada no emprego do pretérito perfeito 2, e é também re-


dundante pela excessiva reiteração.32 Podemos afirmar que se trata
de um recurso de oralidade do conto, útil no reforço da seqüencializa-
ção. Que seja, embora Perrault não o tenha usado nem uma única vez.
O nosso objetivo, entretanto, é mostrar, por meio desse fato, a
redundância discursiva que Grimm constitui em relação a Perrault.
Aquele diz a mesma coisa que este, inchando mais o seu discurso, ou,
para sermos mais gentis, fazendo sonhar mais. O susto, ou o saldo do
medo, permanece e o que poderia reforçá-lo parece que o atenua. Na
verdade, nem uma coisa nem outra acontece. Grimm capta Perrault
totalmente e o esbanjamento figurativo consuma-se como ornamento.
Acreditamos poder dar continuidade à reflexão anteriormente
iniciada sobre a sanção final, que parece alterada em Grimm, mas
que, na verdade, não constitui nada mais do que essa redundância
discursiva.
Perrault e Grimm apresentam a mesma punição do sujeito que
ousou ser ele mesmo. Grimm, com o esbanjamento de figuras, que
refletem percursos narrativos com função de apêndice, e, com essa
sanção positiva aparente, cria, no discurso, um eufemismo também
aparente.
Por meio de acréscimo ou diminuição de percursos, acaba,
então, dizendo a mesma coisa da proto-história; assim se constrói a
paráfrase.
Observemos um pouco mais o acréscimo de percursos feito
pela paráfrase em relação à proto-história:

E nem bem o lobo disse isso, deu um pulo da cama e engoliu a pobre
Chapeuzinho Vermelho. (Grimm)
E com essas palavras, o lobo se atirou sobre Chapeuzinho Vermelho
e a devorou. (Perrault)

32 O pretérito perfeito 2 é o tempo do sistema enuncivo, diferente do pretérito perfeito 1,


tempo do sistema enunciativo. Aquele, liga-se ao marco referencial pretérito, numa rela-
ção de concomitância a ele. Este liga-se ao marco referencial presente, numa relação de
não concomitância e anterioridade a ele. Estas observações estão contidas em Fiorin.
(1994, p. 155, 158-65) 211
Intertextualidade e conto maravilhoso

Até o parágrafo citado de Grimm, consumar-se-ia a paráfrase


de maneira mais simples e retilínea. Entretanto, enquanto, textual-
mente, Perrault encerra a narrativa com o parágrafo citado, Grimm
avança narrativa e textualmente. Surge um caçador com competên-
cia e com vontade de matar o lobo. No ponto da realização da perfor-
mance para a qual se modalizara, o caçador inaugura, entretanto, um
outro percurso; modaliza-se para outra performance, ou seja, salvar a
avó e a menina, dando “tesouradas na barriga do lobo adormecido”.
Surge a menina, sujeito delegado,33 justamente quem acaba matando
de fato o lobo.
Assim se encaixa, na seqüência narrativa do enunciado, a san-
ção positiva da menina, que, juntamente com a avó, é salva. O lobo
morre, graças às pesadas pedras com que a própria Chapeuzinho en-
cheu-lhe a barriga. A avó “comeu o bolo e bebeu o vinho”, o “caça-
dor arrancou a pele do lobo e levou-a para casa”. A euforia parece
instalar-se definitivamente, no discurso, pelo prazer; o prazer do ofen-
dido de fazer sofrer o ofensor. Enquanto a menina espolia o lobo de
seus movimentos, impondo-lhe um peso que o mata, a avó brinda e o
caçador arranca a pele do lobo, que figurativiza o prêmio. A vingan-
ça – paixão realizada de liquidação de falta – parece definir uma
hostilização de Grimm em relação a Perrault, pois, ao liquidar o lobo,
o medo deixa de significar.

(...) mas Chapeuzinho Vermelho pensou: Nunca mais eu sairei do


caminho sozinha, para correr dentro da mata quando a mamãe me
proibir fazer isso.

No final do conto, entretanto, introduzida pela adversativa


“mas”, está a negação enunciativa da sanção positiva enunciada, ou
seja, a menina ressuscita no enunciado, mas “morre” na enunciação.
Apesar de não se tratar da mesma sanção pragmática enunciada em
Perrault, confirma-se a submissão ao outro, perece a identidade, ven-
ce o medo.

33 Sujeito delegado é o sujeito de um programa narrativo anexo, pressuposto a um progra-


ma narrativo de base. É um sujeito diferente do programa narrativo de base. Para estes
212 conceitos, ver Greimas (1989, p. 354).
Análise das variantes intertextuais

Não houve, portanto, com o percurso narrativo do caçador,


nenhuma alteração narrativa. Trata-se, como dissemos, de um apên-
dice figurativo, que concretiza um apêndice narrativo. Mantém-se a
sanção negativa, que, na verdade, não está atenuada e, sim, confir-
mada, em princípio, já pela própria atenuação da desobediência, que
acaba mostrando o poder irreversível de qualquer punição.
Não adiantou atenuar a rebeldia, isto é, ficar pensando na vovó
em pleno bosque; a menina não deveria, não poderia desviar-se do
caminho, por isso tinha de ser punida. Mas, principalmente, não po-
deria querer desviar-se, afastando-se do outro, ou seja, não poderia
ter seus próprios quereres. O discurso penaliza a menina, portanto,
não pela sua performance de ruptura, que é aliviada, mas pela sua
competência e pela automanipulação contraditória àquela da mãe, e
que constitui o impulso inicial de seu percurso, o seu querer. Mata,
assim, esse querer, essa modalidade virtualizante, própria do sujeito.
Mata, também assim, quaisquer outras iniciativas que possam desen-
cadear quaisquer outras performances da menina. Mata, então, dessa
forma, a própria menina.
Na enunciação, confirma-se, por conseguinte, a advertência
de Perrault. A menina e, conseqüentemente, o enunciatário vão ter
medo de ser eles próprios, de afastar-se do rebanho, aqui docemente
figurativizado pela mamãe.
Qualquer “lobo”, qualquer “bosque”, qualquer tentação, sedu-
ção ou provocação para ser diferente deverá desencadear no enuncia-
tário, factitivamente modalizado, o recuo e, principalmente, a aflição,
que significa “saber incerta, evitável, insegura, a conjunção desejada”
(Barros, 1989-1990, p. 63). É um outro tipo de morte, porque, nesse
caso, a conjunção evitável é aquela que se realiza com o próprio eu, é o
despontar da liberdade, é o conhecimento da própria individualidade,
que se faz enfrentando-se o medo, ou o pânico, seu recrudescimento.
O enunciatário criança não terá medo dessa morte, que lhe fica
parecendo necessária; uma sanção cognitiva, que ele assimila como
um bem desejável, porque lhe dá segurança. Passa, entretanto, a ter
outro medo, euforicamente aplaudido por este discurso, o medo de
contrariar o outro. 213
Intertextualidade e conto maravilhoso

Nunca mais eu sairei do caminho sozinha, para correr dentro do


mato, quando a mamãe me proibir fazer isso.

O espaço das “lindas flores” e do “mavioso canto dos passari-


nhos” transforma-se pejorativamente no espaço “do mato”, nesse mo-
mento em que a menina abdica definitivamente da própria liberdade,
negando, para sempre, a própria individualidade. O bosque vira mato
para o sujeito modalizado pela frustração, que, segundo Barros (Idem,
ibidem), supõe infelicidade e “decorre da combinação do /querer ser/
com o /saber não poder ser”. O discurso argumenta astuciosamente,
nesse sentido, pois mostra, como aponta Barros, ao definir a frustra-
ção, “que o sujeito continua a desejar os valores, mas sabe ser impossí-
vel a realização de seus anseios”, ou seja, o discurso acentua a impos-
sibilidade da realização dos sonhos. Expõe-se inutilmente a perigos,
afastando-se do outro. O sonho da liberdade e do respeito à individua-
lidade pode voltar a ser desejado, mas é bom saber que é impossível.
“Nunca mais” reforça os traços de /posterioridade/ e /não con-
comitância/ de “sairei”, em relação ao momento referencial presente,
acrescentando a esse futuro o aspecto do acabado.34 “Nunca mais eu
sairei do caminho sozinha”. A assunção da culpa por tudo o que acon-
teceu pressupõe-se tão definitiva quanto a negação de si mesma.
“Nunca mais serei livre” pressupõe “para sempre serei sub-
missa”. Vê-se, então, nessa relação de contrariedade, de pressuposi-
ção recíproca, o acabado ceder lugar ao contínuo. Nega-se definiti-
vamente um valor para, pressupostamente, afirmar-se contínua e
globalmente outro.35 O valor da submissão, nesse discurso, por meio
do emprego desse futuro, acoplado ao sintagma adverbial “nunca
mais” acaba por exprimir uma verdade atemporal, que tem de se rea-
lizar obrigatoriamente, não há outra saída.36 É isso que o enunciador

34 Fiorin atribui ao advérbio “já” o aspecto de /posterioridade/, /concomitância e acabado/.


Demonstra a relação de negação: já/não mais. Pudemos, assim, atribuir ao nunca mais,
variação de não mais, esse aspecto de acabado. (1994, p. 185)
35 “O advérbio sempre indica acontecimento contínuo ou iterativo”, segundo Fiorin. (1994,
p. 182)
36 Essa atemporalidade está, na verdade, implícita no próprio advérbio nunca, que “contra-
214 diz globalmente advérbios de tempo ou de aspecto”. (Fiorin, idem, ibidem)
Análise das variantes intertextuais

quer fazer crer. Dessa maneira, esse futuro acaba expressando, nesse
discurso, uma “modalidade factual” e “seu valor de verdade pode ser
determinado no momento da enunciação”.37
Confirma-se, portanto, a estereotipia temático-figurativa de
Perrault, pela reprodução do percurso temático da repressão. A san-
ção positiva, constituindo um mero apêndice, por meio de linha tor-
tuosa, acaba “enfeitando” a sanção negativa. Ou aliviando-a, aparen-
temente. Enfeites e levezas que, mantendo-se no discurso, constituem
uma aparência de negação da proto-história, mas acabam sendo ins-
trumentos de confirmação da advertência de Perrault, apesar de torná-
la mais “leve”.
A sanção negativa não é, portanto, aliviada verdadeiramente e
a repressão consuma-se, também pelo fato de Grimm enunciar uma
vitória e uma vingança apenas aparentes da menina sobre o lobo; na
verdade, inutiliza essa menina como pessoa, apresentando-a eufori-
camente reificada pelo medo. O lobo, ou o medo, permanece, portan-
to.
Importa que Grimm parece negação, mas é captação, ou seja, é
uma negação no enunciado, mas é uma captação na enunciação. Con-
flui com Perrault, acrescentando ao significado intertextual um ma-
vioso canto dos passarinhos e, mais submissa ao texto-base do que a
estilização, faz, entretanto, parceria com ela no pólo da trans-história
do quadrado semiótico.
Assim constrói-se a paráfrase, nesse jogo que oscila, no dis-
curso, entre a hipérbole e o eufemismo, entre a economia e o esban-
jamento. Atenuam-se temas, acrescentam-se ou diminuem-se percur-
sos, detalham-se figuras, enfatiza-se aqui, minimiza-se lá, tudo
direcionado, entretanto, para a confirmação dos valores da proto-his-
tória, que é, na verdade, apenas e tão somente ornamentada.

37 Deram subsídios para essa reflexão as observações de Fiorin sobre o futuro do presente:
“Esse valor temporal do futuro determina que, a menos que a proposição exprima uma
verdade atemporal, ele não pode expressar uma modalidade factual, pois seu valor de
verdade não pode ser determinado no momento da enunciação. Por conseguinte, a única
possibilidade de fazer asserções no futuro depende da avaliação que o enunciador faz da
necessidade, probabilidade, possibilidade ou impossibilidade da ocorrência de um dado
estado de coisas”. (1994, p. 164) 215
Intertextualidade e conto maravilhoso

4 – Fita-V erde no Cabelo, de Guimarães Rosa: a


Fita-Verde
estilização

O texto de Rosa é uma estilização do de Perrault.


Dissemos anteriormente que a estilização resulta de um acor-
do entre a enunciação enunciada e o enunciado enunciado, na medi-
da em que o texto-base, implícito na enunciação, é assimilado pelo
enunciado da variante intertextual. Dissemos, ainda, que tal acordo
resolve-se na captação dos níveis fundamental, narrativo e discursi-
vo do texto-base. Acrescentamos à captação referida, a recriação, de
maneira que se devem suceder a elas alterações expressivas, que cons-
tituem causa e efeito de alterações do conteúdo. O texto-base, segun-
do o que foi dito, fica, também, ideologicamente confirmado, ainda
que uma leve sombra recaia sobre ele. Dissemos, por fim, que a
estilização desencadeia, no enunciatário, alterações da modalidade
veridictória, que se traduzem num segredo: ela é conto maravilhoso,
mas não parece, construindo, assim, o jogo do segredo do seu ser
entre a manifestação e a imanência.38 Como se trata de uma variante
intertextual, essa aparência negada e essa imanência confirmada cons-
troem-se em relação ao texto-base, ou seja, Rosa não parece Perrault,
mas é. Sondemos, primeiro, como é construído, no discurso, esse
jogo de significados, para depois refletir sobre suas causas.
Eis aí a velha narrativa da menina que vai levar, numa cesta,
guloseimas para a avó e, no caminho, perde-se em si mesma. Por
isso, emerge o “velho” lobo sancionador, de mãos dadas com a mor-
te, no “velho” modus faciendi de Perrault.
Rosa chamou-a nova velha história; nós, estilização. Tentando
menos justificar os epítetos e mais entender a própria história, come-
cemos por observar Fita-Verde.
Fita-Verde, ou Chapeuzinho Vermelho, em princípio, o mes-
mo ator, o mesmo papel actancial da narrativa, a mesma menina amada

38 “A categoria da veridicção é constituída, percebe-se, pela colocação em relação de


dois esquemas: o esquema parecer/não-parecer é chamado de manifestação, o do ser/
216 não-ser, de imanência”. (Greimas, 1989, p. 488)
Análise das variantes intertextuais

e linda, premiada com um adereço que constitui sua identificação,


quis a aventura de encontrar-se consigo mesma, rompendo limites, à
revelia do “outro”. É o ator transumano,39 que se constrói como o
modelo da performance de ruptura, ou o antimodelo, de Perrault, sem-
pre visando à modalização do enunciatário-criança que, despojado
da censura lógica, não tem idade, bem sabemos. É o sujeito que,
manipulado para querer e dever ir pelo caminho reto e encurtoso, a
fim de chegar logo até a avó que a amava, escolhe o caminho louco e
longo.
Fita-Verde, mais em Rosa do que em Perrault, é o homem ar-
caico, presente e futuro que, descobrindo-se de asas ligeiras, desco-
bre-se capaz de ser ele mesmo. É o sujeito humano na busca da pró-
pria identidade, busca narrada na velha história, desvestida, agora, da
capa da advertência e recoberta com o mito. Eleva-se, discursiva-
mente, a narrativa, para dimensões universais, em que planam figu-
ras arquetípicas da vida e da morte, em que se cravam um “então”,
um “alhures”, e um “ele/ela” especiais, pois se referem a qualquer
tempo, a qualquer lugar, a qualquer pessoa. Fita-Verde, o conto, reto-
ma, na dimensão do imaginário, o mito ancestral da iniciação.

A avó estava na cama, rebuçada e só. Devia, para falar agagado e


fraco e rouco, assim, de ter apanhado um ruim defluxo.

A menina demorara para chegar à casa da avó e, quando che-


ga, já sem a fita verde, já suada e com enorme fome de almoço, espo-
liada, portanto, dos superpoderes da aventura e do sonho fruídos, já
havia sido sancionada negativamente. Mais que o narrador, é ela,
agora, quem vê a avó tão só. Pesa-lhe a culpa de ter deixado a avó
sozinha, enquanto se divertia com (...) ver as avelãs do chão não
voarem. Por isso, o narrador, que desenrolava a narrativa pelo fio da
debreagem enunciva de 1º grau, construindo pessoas, tempo e espa-
ço enuncivos, correspondentes a um não-eu, não-agora e não-aqui,
desencontrados com o momento da enunciação implícito, enuncia,

39 Tomamos o termo de Eliade, para a referência a um ator de qualquer tempo e de qual-


quer espaço, que pode ser, portanto, qualquer um. (1963, p. 147) 217
Intertextualidade e conto maravilhoso

no entanto, esse advérbio enunciativo assim, indicando concomitân-


cia ao presente da enunciação, depois de um verbo do sistema enun-
civo, devia.
A convergência repentina entre o narrado (o enunciado) e a
narração (a enunciação) traz os acontecimentos longínquos, crava-
dos num sistema temporal enuncivo, para bem perto. Indeterminam-
se limites, deflagra-se com mais força toda aquela emoção da meni-
na. É a neutralização adverbial assim/ daquele modo, em benefício
do primeiro termo, que ajuda a construir esse efeito de sentido. Trata-
se de uma embreagem enunciativa espacial. “A embreagem é enun-
ciativa, porque é um elemento do sistema enunciativo que resta no
enunciado”. (Fiorin, 1994, p. 57)
Nessa volta à instância da narração, o eu da menina é o ímã
que atrai a narrativa e é pelos olhos desse observador-menina que se
vê a avó só, falando agagado e fraco e rouco, “assim”. É com o pen-
samento da menina que pensamos: “Devia (...) de ter apanhado um
ruim defluxo”, com essa escolha do termo popular defluxo, com a
anteposição inusitada do adjetivo ruim, não só atendendo à exacer-
bação da emoção do observador suado e culpado, como sobrepondo,
à certeza (apanhou), a hipótese (devia). Da menina.
Sofremos, então, o desespero da menina, quando, ao ver a avó,
ouve-a dizer: “Depõe o pote e o cesto na arca, e vem para perto de
mim, enquanto é tempo”. Arrependemo-nos com a menina por ter
tentado inalcançar essas borboletas nunca em buquê.
O dêitico essas, puxando o enunciatário outra vez para dentro
da cena enunciativa, por meio de outra embreagem, apaga, por ins-
tantes, o longe, muito longe que se instalara no discurso desde o iní-
cio.
A menina faz-se presente, irrompendo do relato do narrador,
fortalece-se como sujeito. O texto ganha pontuais efeitos de subjeti-
vidade, apesar da objetividade contínua em que se ancora a narrativa
desde o início.40 O espaço enuncivo desencadeado pelo marco refe-

40 “Esse jogo de absenteizações e presentificações vincula-se a um vaivém entre objetivi-


218 dade e subjetividade”. (Fiorin, 1994, p. 326)
Análise das variantes intertextuais

rencial inscrito no enunciado, uma aldeia, em função do qual estão


os caminhos, a casa da avó, o bosque, converte-se, assim, em espaço
enunciativo. Essa embreagem enunciativa faz com que a aventura
narrada pareça estar ocorrendo no momento da narração, no espaço
da narração e com o enunciador e enunciatário, os actantes da enun-
ciação.
Simulando, portanto, uma simultaneidade entre narração e nar-
rado, Rosa estiliza Perrault.

E ela mesma resolveu escolher tomar este caminho de cá, louco e


longo, e não o outro, encurtoso.

Numa programação temporal da ordem do narrado, encontra-


mos resolveu, que indica concomitância em relação ao marco tempo-
ral pretérito um dia, ao qual seriam ligados coerentemente os dêiticos
aquele e lá. Este e de cá, rompendo com o sistema, assinalam outra
vez um lugar da enunciação. Estamos diante de uma alta freqüência
de neutralizações pontuais, ou de “micro-embreagens”. Micro-em-
breagens enunciativas, é bom que se repita. A expressão, por sua vez,
recria essa mobilidade com o ineditismo da parassíntese em encurtoso,
cujo prefixo en, por si, já sugere movimento.
Observando causas e efeitos que estão por trás desses meca-
nismos da sintaxe discursiva, vemos que, nesse movimento sintático
contínuo para fisgar a subjetividade, fisga-se o eu da menina, dá-se
voz ao seu pensamento e à sua identidade.
Chapeuzinho Vermelho é, pois, um sujeito mais silenciado que
Fita-Verde. Cerca-o uma opressão compacta para a submissão, que
representa a alteridade. Fita-Verde é uma pessoa discursiva mais for-
te. Com Chapeuzinho, o enunciatário sente medo, aprende que deve
ser dócil, sempre, em harmonia com o outro, e surdo para os apelos
do próprio eu. Com Fita-Verde, o enunciatário encontra-se consigo
mesmo, enquanto se lhe descortinam os mistérios e o limite que os
próprios mistérios impõem. O enunciatário submete-se novamente,
mas sua submissão é diferente daquela de Perrault. É como se ele se
flexionasse diante do infinito incontestável, diante do inexorável: mar
aberto, céu limpo. Destino. 219
Intertextualidade e conto maravilhoso

Entendemos, então, que Rosa puxa, do nível fundamental do


percurso gerador do sentido, o termo complexo correspondente à
pessoalização. Como convém ao mito.41 Pessoalização, que supõe a
soma da identidade e da alteridade e que se concretiza discursiva-
mente pela concomitância da presentificação e da absenteização, efei-
tos de sentido provocados pelas embreagens estudadas.
No balanço final, firmando-se, entretanto, a submissão referi-
da, pressupõe-se a confirmação da alteridade. Fita-Verde flexiona-se
diante do inexorável, religiosamente, abençoada, que foi, pela avó,
para adentrar os mistérios: “Puxa o ferrolho de pau da porta, entra e
abre. Deus te abençoe”. Na expressão por nós destacada, está a mar-
ca manifesta desse percurso temático do sagrado, que marca uma das
variações discursivas de Rosa em relação a Perrault. Trata-se, por-
tanto, da submissão à irreversibilidade do destino humano. Por isso,
o trajeto do sujeito constitui, no discurso, a retomada estética de uma
narrativa exemplar, por isso o conto resgata esteticamente o mito.
Fiorin (1994, p. 58) afirma que, enquanto “a debreagem refe-
rencializa o texto, a embreagem desreferencializa-o”. Essa desrefe-
rencialização, aqui, contribui para que o narrado passe a ser de qual-
quer pessoa, de qualquer espaço e de qualquer tempo, o que supõe de
toda a raça humana, sempre. Isso ajuda a construir esteticamente a
natureza exemplar do conto.
Rosa capta Perrault nessa natureza de conto exemplar, apro-
fundando-se nela, à medida que resgata o tema mitológico da inicia-
ção. Fita-verde desponta como a história da passagem da infância à
maturidade pelo conhecimento e entendimento da morte.
Apoiados em Eliade, dizemos que Rosa, no imaginário do conto
maravilhoso, recupera o ator transumano e o grande tempo, próprios
do comportamento mítico,42 que Perrault desvirtua, ou melhor, cir-

41 Para a explicação do termo complexo do quadrado semiótico, ver Greimas (1989, p.


368).
42 “A imitação de um modelo transumano, a repetição de um enredo exemplar e a ruptura
do tempo profano mediante uma abertura que desemboca no Grande Tempo, constituem
as notas essenciais do comportamento mítico, isto é, do homem das sociedades arcaicas,
220 que encontra no mito a própria fonte de sua existência”. (Eliade, 1972, p. 147)
Análise das variantes intertextuais

cunstancializa, para construir a sua advertência. Apontamos, assim,


nos procedimentos da construção do significado, variações discursi-
vas desta estilização.
Observemos um pouco mais o actante do enunciado, Fita-Ver-
de, que, com Chapeuzinho Vermelho, constituem um único sujeito
com o mesmo percurso narrativo, como foi dito. Aliás, é bom que se
acrescente que, na sintaxe narrativa, o texto-base é citado com fideli-
dade. Poder-se-ia argumentar que, no lugar da manipulação contra-
ditória do lobo, que é deduzível do texto-base, aqui há a automanipu-
lação contraditória da própria menina, estando, aí, uma diferença entre
a variante e o texto-base. “Viu só os lenhadores (...) mas o lobo ne-
nhum, desconhecido nem peludo. (...) Então, ela mesma, era quem se
dizia: – Vou à vovó...”. Acontece que, por meio do jogo dos pressu-
postos, o lobo intertextual está citado; faz-se presente pela “ausên-
cia”, diluindo-se, dessa maneira singular, a possível diferença narra-
tiva.43 A seqüência narrativa cola-se à de Perrault; a sanção do sujeito,
por causa da performance de ruptura, já enunciada na perda da fita,
aprofunda-se, primeiro, no desespero do diálogo com a avó; depois,
no desejo de retroceder em tudo, “como se fosse ter juízo pela primeira
vez” e, finalmente, no selo silencioso da morte, que cala a narrativa.
Essa sanção que, ao se consumar cognitivamente, firma a fi-
gura arquetípica do lobo, ampla, universal e generalizada, é sintati-
camente equacionada, entretanto, da mesma forma que em Perrault,
ou seja, o PN do lobo constitui a sanção do PN da menina, o que
também dilui outra possível diferença narrativa.
O PN de base é o mesmo que o de Perrault, ou seja, um desti-
nador leva um destinatário a entrar em conjunção com a submissão.
O destinatário que, no enunciado, é a menina, homologa-se ao leitor
na seqüência narrativa da enunciação. Ambos, aqui, submetem-se ao
destino cósmico, do qual ninguém escapa.
Dissemos que as embreagens enunciativas pontuais fazem
emergir a subjetividade no texto. Acrescentamos que a fragmentação
da sintaxe no interior do sintagma o lobo nenhum, por exemplo, tam-

43 Poderíamos dizer que o papel actancial de contramanipulador tem, nesse ponto, uma
ancoragem ambígua no discurso, ou seja, a menina é o próprio lobo. 221
Intertextualidade e conto maravilhoso

bém contribui para a construção dessa subjetividade, enquanto cons-


trução do sujeito-menina, pois apresenta o desencadear de um racio-
cínio sem a censura da lógica. A narrativa se faz, portanto, mais do
ponto de vista de um observador interno, criança, que de um obser-
vador externo, adulto.
“Divertia-se (...) com ignorar se cada uma em seu lugar as
plebeiínhas flores, princesinhas e incomuns, quando a gente tanto
por elas passa”. O emprego dos diminutivos, que confirma a coesão
do sujeito-menina, subsidiado pelas rupturas sintáticas e pela delica-
deza da metáfora princesinhas, ajuda a construir a menina sem juízo.
Fortalece-se, assim, o percurso temático da ousadia. “Todos com juízo,
suficientemente, menos uma meninazinha, a que por enquanto”.44
O ponto de vista de Fita-Verde contamina de tal forma o narra-
do que, em alguns momentos, torna-se difícil distinguir um e outro, e
este acaba traduzindo a visão de mundo daquela menina.
Fita-Verde, a pessoa instalada no discurso, matiza Chapeuzi-
nho Vermelho com uma presença mais forte, sendo, portanto, mais
“sujeito”. Isso se enuncia na variação do próprio nome enunciado, o
mais estilizado em todas as variantes estudadas de Chapeuzinho Ver-
melho.
Essa troca de nome, longe de ser gratuita, faz com que o ator
ganhe um outro ser. Cassirer assim se expressa sobre exemplos ilus-
trativos de troca de nomes, exemplos que se encontram “especial-
mente nos ritos de iniciação das tribos australianas”:

44 Essas rupturas sintáticas e essas delicadezas de metáforas constroem, por sua vez, a
especificidade desta estilização, enquanto discurso poético, cuja palavra, frágil, não se
reduz ao texto-base. Veja-se o que diz, sobre isso, Campos: “De um ponto de vista teóri-
co-informativo, o probabilismo levado à estrutura da obra não é senão o caso mais extre-
mo da fragilidade (...) da informação estética. Se esta é inseparável de sua realização –
se não se pode, por exemplo, compreender a informação estética de um poema senão
dentro do processo de signos em que ela está codificada e se não é possível alterar essa
codificação sem destruir aquela informação (...), então se estabelece uma relação arbi-
trada no momento pelo intérprete-operador, co-produtor da informação, e esta já não será
a mesma numa segunda ou numa terceira (e assim por diante) execuções” (1975, p. 23).
Torna-se fácil, para entender tais conceitos, imaginarmos a dificuldade de tradução do
conto de Rosa, cujo significante veicula continuamente um novo significado, bem como o
222 trabalho-extra da leitura desse conto, infiltrado também do prazer-extra das descobertas.
Análise das variantes intertextuais

Ora, dado que, para a concepção mítica fundamental, a individuali-


dade humana não é algo simplesmente fixo e imutável, mas algo
que, a cada passo, em uma nova fase decisiva da vida ganha um
outro ser, um outro eu, esta transformação também se exprime, an-
tes de tudo, na troca do nome. Na sagração da puberdade, o rapaz
recebe outro nome, visto que, através dos ritos mágicos que acom-
panham a iniciação, deixou de existir como menino, renascendo como
um outro, um homem. (1992, p. 69)

Comparada a Chapeuzinho Vermelho, Fita-Verde transforma-


se, pelo modo como se ancora no discurso, pelo modo como é cons-
truída, portanto.
No contexto deste conto, o que serve para fortalecer a subjeti-
vidade do sujeito conduz também ao universo livre da censura lógi-
ca, que, por sua vez, remete ao mito.45 A ousadia de Fita-Verde, traçada
não só no narrado, mas principalmente na narração, vincula-se à in-
genuidade de todos nós, antes de apreendermos os limites. A busca
das plebeiínhas flores, princesinhas e incomuns é a busca que todo
homem teve, perdeu e renova a cada instante de sua vida.
Fita-Verde, o conto, sem parecer, também brinca na expres-
são, porque Fita-Verde, o ator, ousa e brinca mais. “Lenhadores, que
por lá lenhavam; velhos e velhas que velhavam (...) vou à vovó (...)
borboletas nunca em buquê nem em botão”. A criação de cognatos e
de aliterações, aliada aos recursos sintáticos observados anteriormente,
alcança um poderoso efeito lúdico, que se nutre do surrealismo des-
sas metáforas. Isso tudo se tece em harmonia com a voz da menina
emergindo discursivamente da voz do narrador, com o espaço, o tempo
e a pessoa do discurso ampliados. Esse lúdico, que tanto se reitera e
que reflete o percurso temático da imprevisibilidade, valorizando
euforicamente a aventura, reaparece, por exemplo, na revitalização
da onomatopéia, que quebra o fio sintático da oração adverbial tem-
poral: ... “quando ela, toque, toque, bateu”. Esse lúdico também se
prende, em Rosa, a um longe arcaico e poético.

45 Quando nos referimos ao contexto deste conto, guiamo-nos por Barros (1988, p. 144)
que explicita os conceitos de contexto interno e contexto externo. Atribuímos ao conto
em si o conceito de contexto interno. 223
Intertextualidade e conto maravilhoso

Havia uma aldeia em algum lugar, nem maior nem menor...

O alhures firma-se num longe antigo, expresso na escolha fi-


gurativa aldeia, que remete à povoação rústica; expresso no ferrolho,
com que se abrirá a porta, ou na arca, em que se deporá o cesto e o
pote, figuras marcadas semicamente, se não pela antigüidade, pela
distância do cotidiano urbano, imediato e, de certa forma, prosaico.
Constatamos um longe que se construiu em função de um es-
paço fora da cena enunciativa e inscreveu-se, no enunciado, na figura
da aldeia. O discurso leva-nos, assim, até esse “lá” que, nesse caso,
figurativiza-se como mágico, recortando, em função dele, todas as
indicações espaciais. Como em Perrault. Em Rosa, porém, expande-
se esse espaço, difunde-se pela própria instabilidade dos mecanis-
mos sintáticos, isto é, sob esse “longe” encantado, repentinamente
rompe um “aqui”, neutralizando a debreagem e os limites. Por isso,
em Rosa, a imposição dos limites, no final do conto, dói tanto. Em
Rosa, a menina e o enunciatário puderam correr num espaço disper-
so, com a sombra correndo em pós.
“Havia uma aldeia em algum lugar, nem maior nem menor...”.
Trata-se de um alhures impreciso, que se apóia no verbo debreado
num tempo do sistema enuncivo, concomitante, não com o presente
implícito da enunciação, mas com o marco referencial pretérito um
dia. Trata-se de um alhures impreciso, que se concretiza no emprego
da expressão dêitica em algum lugar; na indefinição do próprio mar-
co referencial um dia; na comparação intertextual, implícita na ex-
pressão comparativa nem maior nem menor. Nessa comparação, é
bom que se diga, pressupõe-se que aquela aldeia era do mesmo tama-
nho que a outra, de Chapeuzinho Vermelho, ou, também, podia ser
de qualquer tamanho. Para que limites? É como se se desreferencia-
lizasse o espaço tópico, recuperando alguma anterior continuidade.46
Trata-se, enfim, de um alhures móvel que, não se podendo prender a
regras gramaticais da expressão, até suprime a vírgula entre os ter-
mos nem maior nem menor.

46 “O espaço tópico conceptualizado nas línguas marca a emergência da descontinuidade


224 na continuidade”. (Fiorin, 1994, p. 284)
Análise das variantes intertextuais

Digamos que, em Rosa, pelos procedimentos sintático-discur-


sivos, o espaço é mais expansivo, produzindo aquele afastamento
referido anteriormente, da mesma forma que é por ele produzido.
Fiorin (1994, p. 286) aponta para “duas operações de movimento,
expansão e condensação, que permitem descrever as mudanças de
posição”. Acrescenta que, “numa relação direcional, a expansão pro-
duzirá um afastamento e a condensação uma aproximação”.

Sua mãe mandara-a (...) a uma outra e quase igualzinha aldeia.

Mantém-se a expansão, o não-limite, enquanto se mostra o


espaço pela observação afetiva e infantil, expressa não só no uso do
diminutivo, mas na recorrente fragmentação sintática da frase. Vê-
se, por essa caracterização subjetiva, pontualmente recuperado o es-
paço do hic, o espaço lingüístico (1994, p. 284), a continuidade, como
foi dito. Por isso vai doer tanto a descontinuidade imposta no final.
Então, ao lado do emprego de um pronome e de um advérbio
do sistema enunciativo, como este e de cá, neutralizando momenta-
neamente a determinação enunciva em “resolveu tomar este cami-
nho de cá”, temos o emprego do advérbio enunciativo aí, em que
lábios, aí, tão arroxeados!, que reforça esse efeito.
A concomitância referida da presentificação e da absenteização
tem, subjacente a ela, a concomitância dos termos da relação categorial
proximidade vs. distanciamento (Fiorin, 1994, p. 318). Cremos que
isso ajuda a construir o espaço de qualquer um, o tempo de qualquer
época, a pessoa, que é qualquer um de nós, o que contribui para fir-
mar o tema da iniciação, a natureza do conto exemplar, resgatados de
Perrault, porque salvos da programação da advertência. Perrault que,
por não apresentar um happy end, distancia-se do conto maravilhoso
e aproxima-se da saga e do mito, tem a sua singularidade ressignificada
em Rosa. Nada aleatoriamente, bem sabemos.
Tomemos algumas observações de Eliade (1972, p. 173-4),
que subsidiam essa análise.

1. Não há solução de continuidade entre os enredos dos mitos, das


sagas e dos contos maravilhosos. 225
Intertextualidade e conto maravilhoso

2. Hoje (...) reencontramos o comportamento religioso e as estrutu-


ras do sagrado – figuras divinas, gestos exemplares etc. – nos níveis
profundos da psique, no “inconsciente”, nos planos do onírico e do
imaginário.
3. Embora, no Ocidente, o conto maravilhoso se tenha convertido
há muito tempo em literatura de diversão (para as crianças e os cam-
poneses) ou de evasão (para os habitantes das cidades), ele ainda
apresenta a estrutura de uma aventura infinitamente séria e respon-
sável, pois se reduz, em suma, a um enredo iniciatório.
4. O conto reata e prolonga a iniciação no nível do imaginário.
5. Sem se dar conta e acreditando estar se divertindo ou se evadindo,
o homem das sociedades modernas ainda se beneficia dessa inicia-
ção imaginária proporcionada pelos contos.
6. Começamos hoje a compreender que o que se denomina “inicia-
ção” coexiste com a condição humana.

Voltemos ao texto.

Daí, que, indo, no atravessar o bosque... (...) Então, ela mesma, era
quem se dizia...

A oralidade recuperada pelos advérbios de seqüencialização


(Fiorin, 1994, p. 183) que indicam a sucessividade de estados e trans-
formações possibilita, em Rosa, também o mergulho num tempo fa-
buloso, trans-histórico, como quer Eliade (1972, p. 164). Daí e en-
tão, nesse discurso, remetem aos impulsos orais dados pelo contador
de histórias de todos os tempos.
Reinstala-se, no maravilhoso, aquela responsabilidade inicia-
tória, ligada ao ato de contar e, em Rosa, mais do que em Perrault, o
ato de contar no maior segredo (Eliade, Idem, p. 174).
Essa oralidade do contador de histórias nutre-se também da
indeterminação aspectual do marco referencial pretérito um dia ou
uma vez. “Um dia e uma vez estabelecem um tempo enuncivo inde-
terminado. Por isso, o conto maravilhoso começa com o protocolo
Era uma vez” (Fiorin, Idem, p. 180). Acontece que Rosa, estilizan-
do, confirma a expansão desse protocolo para um tempo novo-velho,
226 puro, intocado. É o tudo era uma vez na nova velha história.
Análise das variantes intertextuais

Essa mesma oralidade cumpre-se na reiteração do polissíndeto:


e meninos e meninas que nasciam e cresciam; – Vou à vovó, com
cesto e pote, e a fita-verde; Fita-Verde assim fez, e entrou e olhou;
Devia, para falar agagado e fraco e rouco, assim... Nesse fio de
ansiedade e de expectativa crescentes com que se amarra o enuncia-
tário, prende-se o narrado que, de verossímil, transforma-se por ins-
tantes, até em verdadeiro. Reatualizam-se, com esse narrado, as pro-
vas iniciatórias, na dimensão do imaginário. Entende-se a conclusão
a que chegou Eliade (1972, p. 175): “Toda existência é composta de
uma série ininterrupta de ‘provas’, ‘mortes’ e ‘ressurreições’, sejam
quais forem os termos de que se serve a linguagem moderna para
traduzir essas experiências (originalmente religiosas)”.

Fita-Verde partiu, sobre logo, ela a linda, tudo era uma vez.

Reforçando a pontualidade temporal incoativa, por meio de


sobre, uma preposição que indica espaço, o sintagma sobre logo tam-
bém reforça o efeito de imprevisibilidade, reconstruindo, juntamente
com outros neologismos, na expressão, a magia da palavra; no dis-
curso, o indizível do mistério.47
Firma-se o percurso figurativo da imprecisão, lançado defini-
tivamente na dimensão do onírico pela imprevisibilidade do tudo era
uma vez. Ao desarticular-se o protocolo, pela anteposição inesperada
do pronome indefinido tudo, reitera-se aquela neutralização das
debreagens temporais, espaciais e actanciais feitas pelas embreagens
observadas. Assim, Rosa vai captando Perrault sobejadamente. Isso
é, no nosso entender, estilizar.
Faz sentido, então, o discurso parecer livre da tutela do pró-
prio sistema. Rosa resgata o transcendente por meio de percursos
temáticos, que se concretizam em figuras e, conseqüentemente, por
meio da expressão assim libertada. Prossigamos.

47 Em Rosa, “a organização secundária da expressão”, como afirma Barros, “não se res-


tringe (...) a expressar conteúdos, primeiro encargo do plano dos significantes, não se
limita tampouco a criar efeitos de realidade, como os procedimentos de figurativização,
mas cumpre, antes de tudo, o papel essencial de fabricar o mundo, lido e sabido, a partir
de novas perspectivas, e de mostrar uma outra verdade das coisas”. (1988, p. 154) 227
Intertextualidade e conto maravilhoso

– Vou a vovó...

Essa debreagem enunciativa de segundo grau, isto é, provinda


diretamente da boca do interlocutor, tem, na não-manifestação do
termo “casa”, o reforço da própria enunciação, por meio da caracteri-
zação aprofundada do locutor sem autocensura, uma menina.
A mesma força de construção desse sujeito salta para o enun-
ciado, alterando-lhe o tom, à medida que a debreagem enunciva de
primeiro grau é neutralizada, como no exemplo que segue:

A aldeia e a casa esperando-a acolá, depois daquele moinho, que a


gente pensa que vê, e das horas, que a gente não vê que não são.

Relatavam-se os fatos de uma perspectiva de observação ex-


terna, quando a reiteração pronominal a gente e o emprego do advér-
bio enunciativo acolá demonstram a irrupção do ponto de vista da
menina. Numa coerência com o sistema enuncivo desencadeado, cria-
va-se a expectativa de uma frase, como: “A aldeia e a casa espera-
vam-na lá, depois daquele moinho, que as pessoas pensavam que
viam, e das horas que ninguém via que não eram”. Por meio dessas
embreagens actanciais enunciativas, emerge, entretanto, pontualmen-
te, o observador com focalização parcial interna.48 Essa concomi-
tância de focalização externa e interna ajuda, nesse conto, a construir
a ambigüidade, que, estilizando Perrault, recupera o sentido do ina-
cabado.
Às demarcações alteradas das posições actanciais, somam-se
as alterações da organização temporal que, definida pelo sistema
enuncivo, criara as expectativas dos acontecimentos num tempo pre-
térito imperfeito.
“Aquele moinho, que a gente pensa que vê... Aquelas horas,
que a gente não vê que não são”. À neutralização do pretérito imper-
feito pelo presente, que recupera uma concomitância a um marco
referencial presente, somam-se novos aspectos verbais.

48 “Chama-se interna (essa focalização), porque é a partir do interior de um actante que os


228 fatos são vistos”. (Fiorin, 1994, p. 116)
Análise das variantes intertextuais

A gente sempre pensa que vê o moinho... A gente nunca vê que


aquelas horas não são... O momento de referência é ilimitado, é o
sempre ou o nunca. Caem, assim, os limites do momento do aconte-
cimento. Envolve-se o discurso num tom de religiosidade ou de sa-
bedoria popular. Temos diante de nós o que Fiorin (1994, p. 161)
conceituou como “presente omnitemporal ou gnômico”, que aconte-
ce “quando o momento de referência é ilimitado e, portanto, também
o é o momento do acontecimento. É o presente utilizado para enun-
ciar verdades eternas ou que se pretendem como tais. Por isso, é a
forma verbal mais utilizada pela ciência, pela religião, pela sabedoria
popular. O momento de referência é um sempre implícito”. Resgata-
se sintaticamente o significado do destino e, com ele, recupera-se, no
maravilhoso, o mito.

Divertia-se com ver as avelãs do chão não voarem, com inalcançar


essas borboletas nunca em buquê nem botão, e com ignorar se cada
uma em seu lugar as plebeiínhas flores, princesinhas e incomuns,
quando a gente tanto por elas passa.

A performance de ruptura do sujeito, que o faz, no nível narra-


tivo, entrar em conjunção com a liberdade, não poderia estar discur-
sivizada de forma mais perfeita. Fundem-se enunciado e enunciação.
Volta-se a atenção mais para o ato de dizer do que para o dito. Trans-
fere-se o ponto de vista da menina sem juízo para dentro da situação,
que se apresenta, assim, mais enunciativa que enuncivamente.

Divertia-se com ver as avelãs do chão não voarem.

Divertem-se o sujeito da enunciação, enunciador e enuncia-


tário, o sujeito-menina, o mundo; os homens divertem-se, menos
pela concretização figurativa da ação de divertir-se e, mais pela
inesperada qualificação figurativa dada às avelãs de não voarem. A
formulação de um pensamento logicamente completo far-se-ia com
a qualificação “caídas” no chão, dada às avelãs. Divertem-se todos
com essa concomitância pressuposta de termos contrários, ou seja,
peso vs. leveza e as respectivas figuras, ou seja, avelãs do chão e
não voarem. 229
Intertextualidade e conto maravilhoso

Diverte-se, outrossim, a própria expressão, com a aliteração


que, nesse contexto, parece brincar com o fonema /v/.
Confirma-se a perspectiva da qual se relatam os fatos, a pers-
pectiva dessa menina “louca”. Ficam sem limites o chão, a aldeia, o
bosque, a própria menina, o tempo. Cremos estar testemunhando o
processo da transfiguração discursiva, marca da estilização.

Divertia-se (...) com inalcançar essas borboletas nunca em buquê


nem em botão.

Cria-se, inicialmente, um efeito de sentido de cerimônia, de


descaracterização do tom coloquial e infantil e, conseqüentemente,
produz-se um efeito de afastamento do narratário, com o uso de uma
regência rara, ou seja, o verbo divertir-se, mais a preposição com,
seguida de verbo no infinitivo; fortalece esse efeito o emprego de
inalcançar, próprio do registro formal da língua. Dever-se-ia, po-
rém, usar o dêitico “aquelas”, confirmando o afastamento da enun-
ciação já proposto pelo emprego do verbo no pretérito imperfeito.
Apontam-se, entretanto, as borboletas, com o dêitico essas.
Neutraliza-se a oposição espacial essas/aquelas, em benefício do pri-
meiro termo, o qual dá prioridade ao espaço da enunciação, ou, mais
especificamente, ao espaço do enunciatário. É o ponto de vista da
menina, que volta a inovar o discurso. Nesse contexto, a aliteração
reforça o tema do jogo, da brincadeira, enquanto a metáfora das bor-
boletas nunca em buquê nem em botão recupera esteticamente um
primitivismo animizador da natureza;49 ou confirma o resgate do
universo sem censura da criança, o que, na verdade, é a mesma coisa.
Importa que tudo isso se reforça pelas plebeiínhas flores, princesinhas
e incomuns.

Divertia-se (...) com ignorar se cada uma em seu lugar as plebeiínhas


flores, princesinhas e incomuns, quando a gente tanto por elas passa.

49 Cassirer, citando Herder, explica que este sublinhou “o caráter mítico de todos os con-
ceitos verbais e lingüísticos. ‘Visto que toda a Natureza ressoa, nada mais natural, para o
homem sensível, que ela viva, fale, atue. Certo silvícola vê uma árvore grandiosa, de
copa magnífica, e admira-se; a copa rumoreja!, é a divindade que se irrita! O selvagem
230 cai de joelhos e a adora!’”. (1992, p. 102)
Análise das variantes intertextuais

Ainda uma vez, confirma-se o percurso temático da ruptura. A


sintaxe, inesperadamente fragmentada, confirma o inesperado daque-
las paixões do querer-ser, as paixões da aventura. Trata-se de todas
as flores de todos os cantos do mundo, já que as mesmas plebeiínhas
são princesinhas e incomuns. A pessoa enunciativa a gente represen-
ta uma neutralização actancial, pois, no sistema enuncivo, aguarda-
va-se uma observação externa, como se fosse: “quando as pessoas
pelas flores passam”. Rompem-se os limites, voam sem diretriz as
emoções e o discurso acompanha esse movimento. O não-fechamen-
to sintático da frase ajuda, na semântica, a reiterar o tema do intradu-
zível, do intocável. Constrói-se, assim, um código para iniciados, ou
um discurso feito de borboletas em botão.

Mas agora Fita-Verde se espantava, além de entristecer-se de ver


que perdera em caminho sua grande fita verde no cabelo atada; e
estava suada, com enorme fome de almoço.

Esse é o décimo-primeiro parágrafo do texto. Quanto às mo-


dalidades do ser e do parecer, o ator-menina apresenta-se sofrendo
uma evolução, que vai da mentira ao segredo, e isso foi linearizado
textualmente em dois blocos; o primeiro, do parágrafo 1 ao 7; o se-
gundo, do parágrafo 8 ao 20, no final do texto. O parágrafo recém-
destacado constitui o ponto máximo da transição de uma modalidade
veridictória para outra. Expliquemo-nos.

Ela a linda, tudo era uma vez.


Sou sua linda netinha, com cesto e pote, com a fita-verde no cabelo,
que a mamãe me mandou.

Fita-Verde, a figura da harmonia, ela a linda, harmonia abso-


luta e inquestionável, ratificada pela ausência da vírgula antes do
aposto, subsidia-se, em níveis mais profundos da produção do senti-
do, pelo programa narrativo prévio de conjunção com a submissão.
Submissão, a que segue a sanção positiva dessa lindeza, sendo que
tudo pressupõe a confirmação da alteridade e da ordem.
Fita-Verde ousou, libertou-se, descobriu-se com asas ligeiras
e saiu correndo. As asas eram ligeiras e eram suas, e a sombra, que 231
Intertextualidade e conto maravilhoso

também era sua, vinha-lhe correndo em pós. Digamos que a afirma-


ção da identidade, do nível fundamental, consegue perfurar a super-
fície discursiva.
Fita-Verde, entretanto, parecia forte, completa, poderosa, mas
não era. Eis a mentira.
Quando a menina diz: “Sou sua linda netinha, com cesto e
pote, com a fita-verde no cabelo, que a mamãe me mandou” foi uma
mentira, mas da qual nem ela mesma tinha consciência. É no déci-
mo-primeiro parágrafo que surge essa consciência. É aí que ela vê
que “perdera em caminho sua grande fita verde no cabelo atada; e
estava suada, com enorme fome de almoço”. Suada supõe cansada,
não-linda, sofrida.
A consciência surge com a dor. Transfigura-se esteticamente o
mito da iniciação, que supõe o conhecimento da dor.50
Essa retomada estética da prova iniciatória inicia-se com a fala
da avó: “Puxa o ferrolho de pau da porta, entra e abre. Deus te aben-
çoe”. Abrir-se-iam, para a menina, as portas da dor, quando a avó, de
modo agagado e fraco e rouco pediu-lhe que fosse para perto dela,
enquanto era tempo.
Ao conhecer “a devoradora”, a menina enxerga-se frágil, sen-
te enorme fome de almoço. Revela-se-lhe a vulnerabilidade humana.
A ela e a nós.
Fita-Verde, não mais a linda, correndo atrás de suas asas li-
geiras, não parece mais aquela menina cheia de poderes e de saberes.
Mas é. Aí está o segredo.
50 Campbell assim descreve provas iniciatórias em tribos indígenas: “Então os meninos
são levados para fora, para o chão sagrado dos homens, e submetidos a duras experiên-
cias – circuncisão, subincisão, beber sangue humano, e assim por diante. Assim como
tinham bebido o leite materno, quando crianças, agora bebem o sangue dos homens. Vão
ser transformados em homens. Enquanto isso se dá, encenam-se episódios mitológicos,
dos grandes mitos. Eles são instruídos na mitologia da tribo. Então, no final, são levados
de volta à aldeia, e a menina com a qual cada um se casará já foi escolhida. O menino
retorna, agora, como homem. (...) Ele foi arrancado da infância, seu corpo foi marcado
de cicatrizes. (...) Não há como voltar à infância depois de um espetáculo desses. (A
iniciação da menina é ) sentar-se no recesso de uma cabana, por alguns dias, e tomar
consciência de quem é ela” (1990, p. 85-7). Campbell não está falando da mesma tribo,
232 é bom que se diga.
Análise das variantes intertextuais

Mas agora Fita-Verde se espantava, além de entristecer-se... .

Oscila o maravilhoso, tal como oscilou em Perrault. Por isso,


acometem o sujeito-menina as paixões do espanto e da tristeza, que,
nesse caso, são acompanhadas de um saber ser limitado e de um sa-
ber não poder viver sempre sobejadamente. Aí já está uma perda. A
outra, que continua a primeira, vem em pós, com a dor prenunciada.
Essa dor, no inusitado desse discurso, constrói-se também por
meio da embreagem temporal, desencadeada pela neutralização ago-
ra/então. Esse advérbio enunciativo agora, abruptamente, presentifica
o espanto e a tristeza, relacionando-os a uma concomitância ao ato de
serem narrados, mais por aquele observador interno do que pelo ob-
servador externo, mostrando, outrossim, a força dessas paixões, que
chegam a desestabilizar o tempo enuncivo. Desestabiliza-se o tempo
do “então”, cultivado com a serenidade das distâncias, desde Perrault.

Ela perguntou:

– Vovozinha, que braços tão magros, os seus, e que mãos tão


trementes!
– Vovozinha, mas que lábios, aí, tão arroxeados!
– Vovozinha, e que olhos tão fundos e parados, nesse rosto encovado,
pálido?

Estamos diante de uma retomada fiel do texto-base, de Perrault.


Lá, figurativiza-se o lobo na figura da avó, à medida que se mostra-
vam as sensações da menina, isto é, o seu olhar, que o descobria.
Aqui, constrói-se, pelo olhar da menina, a morte, na figura da avó:
braços magros, mãos trementes, lábios arroxeados, olhos fundos e
parados, rosto encovado, pálido. Mas é sempre o mesmo lobo pres-
suposto, no início da narrativa, na automanipulação contraditória;
depois, na caracterização da avó, como rebuçada;51 agora, posto no
diálogo final, com sua inevitável presença.

51 Holanda assim se refere ao verbo rebuçar: 1. encobrir com rebuço; embuçar. 2. Escon-
der, ocultar, velar. 3. Disfarçar, dissimular. 4. Velar ou cobrir parte da face. 5. Disfar-
çar-se, dissimular-se. 6. Esconder-se, ocultar-se. Ficamos com as acepções de nos 3 e 5
para o entendimento do efeito de sentido proposto. (1986, p. 1459) 233
Intertextualidade e conto maravilhoso

Ela perguntou:
– Vovozinha, que braços tão magros, os seus, e que mãos tão
trementes!

A neutralização da pontuação exclamação vs. interrogação


ajuda a confirmarem-se, na expressão, as paixões do espanto, do de-
samparo, do susto e do inesperado da dor, tematizadas no diálogo
final, em que a avó responde à neta, apontando-lhe a posterioridade
irreversível do limite. É a morte, ou o lobo, tanto faz, quem impõe o
limite. Um limite enfatizado três vezes pela repetição do advérbio
nunca nos três turnos da fala da avó.
Observemos ainda, nesse último diálogo, o interlocutor-meni-
na, conduzido por um olhar de estranhamento crescente, tão bem
expresso pela seqüência de advérbios de intensidade somados entre
si pela conjunção coordenativa aditiva, ou adversativa com emprego
aditivo: que... mas que... e que. Podemos afirmar que se consuma a
iniciação ao mundo dos adultos.
Tal como em Perrault, estamos diante do retorno da menina ao
pólo da não-liberdade, para que se confirme a submissão. Aqui, a
submissão ao conhecimento da morte e, conseqüentemente, da vida.
Na consciência, no conhecimento, o poder, eis o segredo, eis a inici-
ação.
Repete-se ritualisticamente o diálogo final de Perrault. Aqui, a
cerimônia mais se fortalece em beleza e dor. Encontramos adjetivos
“cerimoniosos”, como trementes e arroxeados, que remetem a uma
escolha figurativa adulta e acabam por expressar uma desreferencia-
lização da fala da menina, em benefício do ritual.
Encontramos, ainda, na fala da menina, a expressão do impac-
to, no ritmo sincopado, marcado pelas vírgulas insistentes, bem como
no uso da interrogação, onde a exclamação era esperada: Vovozinha,
e que olhos tão fundos e parados, nesse rosto encovado, pálido? O
sujeito-menina, que tanto ousara, mostra-se, aqui, vergado. A dor fá-
la vergar.
As frases angustiantemente curtas são as mesmas de Perrault,
234 mas aqui se busca alguma palavra essencial, desautomatiza-se a ex-
Análise das variantes intertextuais

pressão, para que se manifestem as alterações do conteúdo. Cremos


estar, nessa busca da palavra essencial, a exacerbação da função esté-
tica, ou a definição da palavra poética.
Estilizar, em Rosa, é, então, libertar-se da própria palavra.
Notamos, por exemplo, que, da debreagem enunciva de primeiro grau,
irrompe o ponto de vista de uma observação-interna da menina, neu-
tralizando um “ele”, que narra por um “eu”, que observa, e, depois,
da debreagem enunciativa de segundo grau, irrompe da voz da meni-
na expressões “solenes”, mais coerentes com a voz de um velho con-
tador de histórias. Desestabilizam-se quaisquer verdades acabadas e,
para começar, desestabilizam-se os dogmas do discurso.
A desestabilização referida lança-nos para o transcendente,
estando aí uma relevante alteração discursiva de Rosa em relação a
Perrault, e também o encurtamento do caminho conto-mito feito por
Rosa. “O mito é aquele campo de referência àquilo que é absoluta-
mente transcendente”, disse Campbell (1990, p. 51).
O pensamento soluçante está na voz da avó, expresso pelos
verba dicendi, que se aprofundam na dor: murmurou... suspirou...
ainda gemeu, mas manifesta-se ainda mais nas falas entrecortadas da
menina, em que nem há fôlego para expressar-se algum verbum
dicendi no discurso citante.
O enorme desespero da menina liga-se a um querer ser ilimita-
da, mas sabendo não poder ser; a um querer ser amparada, mas sa-
bendo não poder ser. Nunca mais.
Em Perrault, desencadeiam-se, de maneira semelhante, tais
modalizações nessa fase de sanção do percurso da menina. Acontece
que, lá, é o desespero pela punição iminente, o castigo pela ousadia.
Aqui, é a submissão ao entendimento da morte e da vida.
Ao enunciatário, tal como em Perrault, é doada uma compe-
tência. Lá, entretanto, o enunciado manipula o enunciatário para que
este queira viver da maneira prescrita, isto é, submisso. O enunciado
dá a “receita”, pela anti-receita. Aqui, transcende-se a receita.
Ao analisar narrativamente a enunciação, enquanto constru-
ção de significado pelo enunciatário, nota-se, portanto, em Rosa, o 235
Intertextualidade e conto maravilhoso

mesmo programa narrativo de base, ou seja, um enunciador que leva


um enunciatário a entrar em conjunção com a submissão, como já se
observou anteriormente. Altera-se, entretanto, em Rosa, o programa
narrativo de doação de competência a esse enunciatário; aqui, nesse
programa, o enunciador manipula o enunciatário para que este se
submeta aos mistérios; dá-lhe o saber; o enunciatário entra em con-
junção com os mistérios, o que resulta, no percurso de sujeito, uma
performance a contento, isto é, ele submete-se.
Em Perrault, a sanção era “ganhar o chapeuzinho vermelho”,
índice da docilidade. Aqui, a sanção positiva é ser inteiro, entenden-
do por ser inteiro, conhecer os próprios limites e os mistérios, que
carregam consigo outros limites. Esse saber é um poder, o que tam-
bém fundamenta aquele segredo observado anteriormente, isto é, a
menina, nessa hora da dor, não parece forte, mas é.
O conto de Rosa é o percurso de um sujeito que estava em
disjunção com o juízo – “Todos com juízo, suficientemente, menos
uma meninazinha, a que, por enquanto” – e passa à conjunção com
esse juízo – “Fita-Verde mais se assustou, como se fosse ter juízo
pela primeira vez”. Seria uma síntese do percurso temático-figurati-
vo da iniciação.
Agora, iria a menina esperar como os homens e mulheres e
velhar como os velhos? Deixemos para tentar uma resposta mais
adiante. Observemos, ainda, um pouco mais o diálogo final e, mais
especificamente, a interlocução final da avó.

– É porque já não te estou vendo, nunca mais, minha netinha... a avó


ainda gemeu.

Nota-se, nesse diálogo final, uma oposição concomitância vs.


não-concomitância nas enunciações das duas interlocutoras. A que
pergunta, querendo entender, coloca os fatos numa concomitância à
sua enunciação. A que responde, o faz, jogando os fatos para uma
não-concomitância que se define numa posterioridade irreversível.
Essa posterioridade irreversível, feita de ausências, firma-se,
236 em princípio, pela repetição do advérbio nunca, nas três enunciações
Análise das variantes intertextuais

da avó. Soma-se o advérbio mais, que indica um aspecto durativo


contínuo.52 Cumpre-se a negação ad eternum.
A avó revela à menina o fim dos laços e dos abraços e, à medi-
da que se mostra impotente diante “da grande devoradora”, provoca,
na menina, a consciência da própria impotência. Essa consciência é,
paradoxalmente, o poder doado pela iniciação. Ancora-se definitiva-
mente a submissão no tempo e no espaço. É aí que a menina grita seu
medo: “– Vovozinha, eu tenho medo do Lobo!”
Parece que já teríamos respondida a questão que deixamos
suspensa há pouco.
Cremos, entretanto, que ainda é cedo. Prossigamos.

Mas a avó não estava mais lá, sendo que demasiado ausente, a não
ser pelo frio, triste e tão repentino corpo.

A conjunção adversativa mas, após o grito de medo da meni-


na, aponta para a irreversibilidade do fato, isto é, não adiantava mais
gritar, não adiantava mais ter medo. Confirma-se, aí, outra alteração
do texto-base. Com dois versos nonassílabos, mas/aa/vó/ não/es/ta/
va/mais/lá, sen/do/que/de/ma/si/a/doau/sen, o discurso retoma a
transcendência do sagrado, num ritmo monocórdico e fúnebre, mas
apaziguador que, recuperando o intocado do mistério, silencia a afli-
ção da menina. Fica a tristeza.53
Parece, nesse trecho, que retorna o relato, ficando somente a
voz do narrador com uma observação externa e saindo a menina e a
avó da cena. Mas não é assim. Pelos adjetivos e advérbios apreciati-
vos e pela fragmentação sintática da frase, volta-se a um tom infantil,
volta-se à enunciação, volta-se à menina.

52 Fazemos essa afirmação sobre o advérbio “mais” por analogia com “progressivamente”
e “ininterruptamente”, apresentados por Fiorin. (1994, p. 181)
53 Segundo Barros, a tristeza está enfeixada nas paixões da infelicidade, que se definem
como saber impossível a conjunção desejada, e cremos que está mais próxima do alívio
do que a aflição, que é a paixão que envolve a menina nesse diálogo final, antes da
última linha do texto. Dizemos isso para apontar uma alteração da proto-história na
trans-história; esta, pressupostamente, evolui para uma distensão. (1992, p. 63) 237
Intertextualidade e conto maravilhoso

Temos os efeitos de sentido produzidos pelas embreagens, até


na última enunciação da avó, que junta dois advérbios de tempo, já e
nunca mais.54 A neutralização, aí, dá-se pela concomitância do já e
pela não-concomitância do nunca mais, ambos relacionados a um
marco referencial presente. Neutralização singular, em que os termos
contraditórios se enunciam juntamente, sem que haja benefício de
um sobre o outro, o que pode pressupor a neutralização de ambos.
Desestrutura-se a previsibilidade do discurso. Firma-se, em Fita-
Verde, ao lado da isotopia da iniciação, a isotopia da imprevisibilidade.
Cremos que agora começamos a responder à questão anterior-
mente formulada.
Fita-Verde, a menina, descobriu, nos seus pulos, o limite, nos
seus lábios, a estampilha; dentro e fora, o Lobo.
Mas o discurso dá-nos, como vimos, a perspectiva do inacaba-
do, pela sintaxe, que ajuda a construir o eu da menina, mais forte que
Chapeuzinho Vermelho; pelo tema da iniciação, que se pode repetir
muitas vezes; pela recriação figurativa; pela ambigüidade poética,
que salta limites; pela superação do sentido do particular. Enquanto o
enunciado enunciado mostra a irreversibilidade dos fatos por meio
da morte da avó, a enunciação enunciada desmente as demarcações
pré-estabelecidas e, em segredo, assim como nos revela o ritual da
iniciação, mostra-nos que toda reversibilidade é possível. O discurso
dá-nos, então, também a perspectiva de que tudo poderia e poderá
começar muitas vezes.
Fita-Verde, diferente de Chapeuzinho Vermelho, poderá não
ficar esperando como os homens e mulheres, ou velhando, como os
velhos. Será, se quiser e souber, sempre a que por enquanto.
Esse novo velho significado consuma-se, então, principalmente
por meio de mecanismos da sintaxe discursiva, que acabam por equi-
parar o eu ao outro na construção do sujeito; o outro, que se fortalece
no enunciado-enunciado, confirmando Perrault; o eu, que se fortale-
ce na enunciação enunciada, complexificando Perrault.

54 Fiorin demonstra a relação de contraditoriedade entre os advérbios “já” e “não mais”


238 (1994, p. 185).
Análise das variantes intertextuais

Por isso, essa estilização é o texto-base revestido de uma leve


sombra. Ou de uma leve luz. Essa leve sombra, ou leve luz, que reco-
bre a trans-história, fá-la não parecer a proto-história. Reflitamos um
pouco sobre as causas desse segredo da estilização, que é o seu modo
de ser.
Rosa não quer, não deve parecer e não parece Perrault. Por
quê?
Fita-Verde, de todas as amostras do nosso corpus, é aquela em
que a função estética atinge sua máxima e plena realização, beirando
à poesia. As figuras são as do texto-base; os temas são os do texto-
base; o sistema sintático enuncivo é o do texto-base; as seqüências
narrativas são as do texto-base; as relações sintático-semânticas bá-
sicas são as do texto-base. Acontece que tudo se resolve numa ambi-
güidade discursiva, que é conseqüência de ambigüidades que se vão
tecendo desde as profundezas, como, por exemplo, a afirmação, no
nível fundamental, do termo complexo da pessoalização, que é a soma
da alteridade e da identidade.
Acreditamos que Rosa dá o melhor testemunho daquilo que
Paz (1976, p. 68) chama “recriar um mundo”, e à Rosa poder-se-ia
atribuir, sem dúvida, o que Paz diz de Cervantes (Idem, p. 72): “Seu
mundo é indeciso como o da aurora e daí o caráter alucinante da
realidade que nos oferece. Sua prosa limita-se às vezes com o verso
(...) pelo emprego deliberado de uma linguagem poética”.
Fita-Verde esconde, sob uma linguagem trabalhada, Chapeu-
zinho Vermelho, a qual lhe dá a matéria-prima, fazendo com que o
significante veicule um novo significado, de tal maneira que se tor-
na impossível desvincular o conto de Rosa do modo como ele é
contado. Enunciador e enunciatário partilham, então, o “êxtase es-
tético”, como diz Valéry, além do prazer da (re)construção do si-
gnificado pela prática da leitura e, no nosso caso, da leitura inter-
textual.
Rosa não mostra o texto-base, com o qual ele conflui e que
está na base da construção do significado de seu conto. Rosa vai,
com asas ligeiras, ao encontro do inusitado do discurso poético, com 239
Intertextualidade e conto maravilhoso

as figuras intocadas, com a densidade metafórica sempre envolven-


do a superfície figurativa desse discurso. Não parece Perrault, por-
tanto, porque o transcende poeticamente. Se resumirmos Rosa, per-
demos o essencial, porque, nele, o plano do significante recria o plano
do significado.
Rosa é o mais lírico de todos os textos deste corpus, portan-
to, o mais lúdico, pelo próprio percurso temático da imprevisibili-
dade, que se realiza num jogo de figuras inéditas, pela musicalidade,
pelas aliterações, pela ambigüidade, pelo sentido do inacabado, pelo
indizível, pelo poético, enfim. Justamente ele, que não parece ser
conto infantil, é o que mais deixa livre um observador-interno-me-
nina para que este possa emergir do tom do narrado; logo, Rosa é o
que mais se aproxima, apesar de não parecer, desse universo infan-
til. Segundo Castagnino (1966, p. 46-7), citando Huizinga, “o me-
lhor meio para compreender os recursos e elementos da poesia con-
siste em interpretá-los como funções lúdicas”, a que o próprio
Castagnino acrescenta: “A literatura é um jogo espiritual; nela, as
coisas têm outro aspecto que na ‘vida habitual’ e, quando está car-
regada de lirismo, até pode mover-se em meios alógicos. (...) O
poeta joga da mesma forma que a criança. Por isso se disse, com
grande verdade, que para captar as essências poéticas é preciso ser
capaz de revestir o espírito com essa magia infantil, é preciso virar
criança e recuperar a disposição para penetrar no mundo do mara-
vilhoso”. (Op. cit., p. 48-9)
Em Rosa, diferentemente dos outros textos, o lobo não fala, o
que pode parecer afastar o maravilhoso e o enunciatário-criança da
construção do significado desse discurso. Não, pelo contrário, esse
maravilhoso e essa criança entram na construção desta “festa do inte-
lecto”, típica desse conto de Rosa.55

55 Castagnino comenta esta afirmação de Valéry: “Um poema deve ser uma festa do inte-
lecto. Não pode ser outra coisa. Festa: é um jogo, mas solene, regrado, significativo;
imagem daquilo que não é comum, do estado no qual os esforços são ritmos resgatados.
Celebra-se algo (...) representando-o em seu mais belo e puro estado”. Rosa é prosa
240 poética. (1966, p. 51)
Análise das variantes intertextuais

Todos os textos analisados são literatura, na medida em que


reorganizam o mundo em termos de arte, representando-o ficcional-
mente.56 Rosa, porém, avança na função estética, por abarcar a poe-
sia, e o faz, entre tantas maneiras, pela ambigüidade que perpassa
todo o seu discurso. Lembremos que a menina divertia-se, com ver
as avelãs do chão não voarem. Lembremos também que Rosa retira
do discurso a estampilha da advertência e, dos lábios da menina, a
estampilha do medo. Resta, porém, o lobo. Não importa, porque tam-
bém restam as borboletas nunca em buquê.

É sempre nos meus pulos o limite.


É sempre nos meus lábios a estampilha.
(...)
Sempre no meu amor a noite rompe.
Sempre dentro de mim meu inimigo,
E sempre no meu sempre a mesma ausência.

(Carlos Drummond de Andrade)

56 Candido assim se expressa a respeito: “A literatura é essencialmente uma reorganização


do mundo em termos de arte; a tarefa do escritor de ficção é construir um sistema arbitrá-
rio de objetos, atos, ocorrências, sentimentos, representados ficcionalmente conforme
um princípio de organização adequado à situação literária dada, que mantém a estrutura
da obra”. (1975, p. 179) 241
Anexo do Capítulo III – esquemas de análises

Anexo do Capítulo III – esquemas de


análises

Polêmica/Paródia/Paráfrase/Estilização e TTexto-base:
exto-base:
Semelhanças e Diferenças

PERRAULT/ BERQUÓ TEXTO-BASE/POLÊMICA


PROTO-HISTÓRIA/DESISTÓRIA
T1/T2

SINTAXE FUNDAMENTAL
1. Semelhança entre T1 e T2:
– na estrutura elementar, as relações mínimas de conteúdo são as
mesmas em T1 e T2.
2. Diferença entre T1 e T2:
– as operações de negação e asserção são contrárias em T2 em rela-
ção a T1 – afirma-se a não-alteridade, confirmando-se, implicita-
mente, a identidade.

SINTAXE NARRATIVA
1. Semelhança entre T1 e T2:
– os actantes são os mesmos em T1 e T2;
– o algoritmo narrativo é o mesmo em T1 e T2.
2. Diferença entre T1 e T2:
– a relação do actante com o ator é contraditória em T2 em relação
a T1. O lobo2 não é o lobo1, os hominhos não são a menina; 243
Intertextualidade e conto maravilhoso

– há alterações na seqüência narrativa do enunciado – há ruptura,


bem como contramanipulação e construção da competência só no
modo do parecer; o próprio lobo é o destinador e o julgador do PN
dos hominhos;
– há alterações na seqüência narrativa da enunciação – o enunciador
manipula o enunciatário para que este negue a submissão e queira
a liberdade.

SINTAXE DISCURSIVA
1. Semelhança entre T1 e T2:
– a espacialização, a temporalização e a actorialização realizam-se
por meio do mesmo sistema enuncivo em T1 e T2.
2. Diferença entre T1 e T2:
– na estratégia argumentativa, notam-se procedimentos contraditó-
rios em T2 em relação a T1 – quanto à modalidade epistêmica, T2
faz crer (em si) para fazer não crer no contexto criticado;
– contraditoriedade de isotopias, que produz a ironia.

SEMÂNTICA FUNDAMENTAL
1. Semelhança entre T1 e T2:
– a oposição semântica básica é a mesma em T1 e T2: alteridade
vs. identidade.
2. Diferença entre T1 e T2:
– os investimentos tímicos são contrários em T2 em relação a T1 –
dêixis positiva, em T2, é identidade/não-alteridade.

SEMÂNTICA NARRATIVA
1. Semelhança entre T1 e T2:
– quanto à modalização do ser, notam-se, em princípio, as mesmas
paixões simples em T1 e T2 – querer ser (desejo, curiosidade) vs.
querer não ser (medo).
244 2. Diferença entre T1 e T2:
Anexo do Capítulo III – esquemas de análises

– a paixão complexa da frustração é maximizada no enunciado, tal


como em T1, mas é minimizada na enunciação, diferentemente
de T1;
– há variação em relação a T1, quanto à paixão de liquidação de
falta, a malevolência, que, em T2, encaixa-se num PN de vingan-
ça;
– no discurso, em T2, há axiologização positiva do desejo, da cora-
gem, da curiosidade;
– os valores escolhidos para entrar em conjunção com o sujeito são
contraditórios – a preocupação do discurso é negar a submissão; o
valor afirmado é, portanto, a não-submissão.

SEMÂNTICA DISCURSIVA
1. Semelhança entre T1 e T2:
– a figura comum ou invariante da configuração discursiva – a an-
tropofagia do lobo mau;
– o tema da repressão, que se realiza nos papel temático do trans-
gressor mal sucedido;
– as figuras comuns dos antropônimos – lobo/menina (hominhos),
dos cronônimos – uma vez/um dia, dos topônimos – bosque.
2. Diferença entre T1 e T2:
– criação de outros percursos figurativos, que não estavam na proto-
história;
– criação de outros percursos temáticos, que não estavam na proto-
história;
– criação de outros papéis figurativos, que não estavam na proto-
história;
– criação de outros papéis temáticos, que não estavam na proto-
história;
– fragilização das figuras, fortalecimento dos temas;
– as figuras são colocadas em outro universo temático;
– figuras falsas em relação a T1; 245
Intertextualidade e conto maravilhoso

– contraditoriedade de papéis figurativos;


– tema relevante – protesto.

SINTAXE: TRÊS NÍVEIS – T2 NEGA(CONTRADIZ) T1 E SE


DESVIA PARA OUTRA MIRA ENUNCIATIVA.
SEMÂNTICA: TRÊS NÍVEIS – T2 NEGA(CONTRADIZ) T1 E
SE DESVIA PARA OUTRA MIRA ENUNCIATIVA.
PERRAULT/ BUARQUE TEXTO-BASE/ PARÓDIA
PROTO-HISTÓRIA/ CONTRA-HISTÓRIA
T1/T2

SINTAXE FUNDAMENTAL
1. Semelhança entre T1e T2:
– na estrutura elementar, as relações mínimas de conteúdo são as
mesmas em T1 e T2.
2. Diferença entre T1e T2:
– as operações de negação e asserção são contrárias em T2 em rela-
ção a T1; em T2, afirma-se a identidade.

SINTAXE NARRATIVA
1. Semelhança entre T1 e T2:
– os actantes são os mesmos em T1 e T2;
– o algoritmo narrativo é o mesmo em T1 e T2.
2. Diferença entre T1 e T2:
– a relação do actante com o ator é contrária em T2 em relação a T1;
a menina e o lobo têm papéis actanciais trocados;
– os percursos são invertidos na seqüência narrativa do enunciado;
– na seqüência narrativa da enunciação, o enunciador manipula o
enunciatário para que este entre em conjunção com o valor con-
246 trário ao proposto por T1, ou seja, a liberdade.
Anexo do Capítulo III – esquemas de análises

SINTAXE DISCURSIVA
1. Semelhança entre T1 e T2:
– a espacialização, a temporalização e a actorialização realizam-se
por meio do mesmo sistema enuncivo em T1 e T2.
2. Diferença entre T1 e T2:
– procedimentos contrários de estratégia argumentativa; procedi-
mento relevante: a ironia;
– quanto ao estatuto veridictório do discurso, há também contrarie-
dade: T2 faz crer em si para fazer não crer no texto-base;
– contrariedade de isotopias, que produz a ironia (com humor).

SEMÂNTICA FUNDAMENTAL
1. Semelhança entre T1 e T2:
– a oposição semântica básica é a mesma em T1 e T2: alteridade
vs. identidade.
2. Diferença entre T1 e T2:
– os investimentos tímicos são contrários em T2 em relação a T1 –
a dêixis positiva, em T2, é identidade/não-alteridade.

SEMÂNTICA NARRATIVA
1. Semelhança entre T1 e T2:
– quanto à modalização do ser, notam-se as mesma paixões simples
em T2 e T1: querer ser (desejo, curiosidade) vs. querer não ser
(medo); a paixão complexa da frustração é a mesma em T1 e T2
(em T2, está minimizada no discurso).
2. Diferença entre T1 e T2:
– a paixão de liquidação de falta (malevolência), que modaliza a
menina em T2;
– a axiologização positiva do desejo, da coragem, da curiosidade,
contrariamente a T1;
– valores escolhidos para entrar em conjunção com o sujeito: con-
trários. 247
Intertextualidade e conto maravilhoso

SEMÂNTICA DISCURSIVA
1. Semelhança entre T1e T2:
– a figura comum ou invariante da configuração discursiva: antro-
pofagia do lobo mau;
– o tema da repressão, que se biparte nos papéis temáticos do repri-
mido e do repressor;
– as figuras comuns dos antropônimos – lobo/menina, dos cronôni-
mos – uma vez, um dia, dos topônimos – bosque.
2. Diferença entre T1 e T2:
– as figuras de T2 passam para o universo temático oposto a T1 –
parecem aquelas de T1, mas não são;
– T2 tem figuras “de mentira”;
– percursos figurativos contrários;
– percursos temáticos contrários;
– contrariedade de papéis figurativos;
– acréscimo de novas figuras;
– maximização de traços dos atores do texto-base – efeito do gro-
tesco;
– efeito de sentido de comicidade e humor.

SINTAXE: TRÊS NÍVEIS – T2 SUBVERTE T1.


SEMÂNTICA: TRÊS NÍVEIS – T2 SUBVERTE T1.

248
Anexo do Capítulo III – esquemas de análises

PERRAULT/GRIMM TEXTO-BASE/PARÁFRASE
PROTO-HISTÓRIA/TRANS-HISTÓRIA
T1/T2

SINTAXE FUNDAMENTAL
1. Semelhança entre T1 e T2:
– na estrutura elementar, as relações mínimas de conteúdo são as
mesmas em T1 e T2;
– as operações (negação e asserção) são as mesmas em T1 e T2;
afirma-se a alteridade e nega-se a identidade.
2. Diferença entre T1 e T2:
nega-se a alteridade e afirma-se a identidade no modo do parecer.

SINTAXE NARRATIVA
1. Semelhança entre T1 e T2:
– algoritmo narrativo – o mesmo em T1 e T2;
– actantes – os mesmos em T1 e T2;
– relação do actante com o ator – a mesma em T1 e T2 – lobo 2 cita
lobo1; menina 2 cita menina 1;
– seqüência narrativa do enunciado e seqüência narrativa da enun-
ciação – semelhantes em T1 e T2.
2. Diferença entre T1 e T2:
– acréscimo do PN do caçador dentro da sanção da menina; PN,
que é mero apêndice, entretanto.

SINTAXE DISCURSIVA
1. Semelhança entre T1 e T2:
– espacialização, temporalização, actorialização – mesmo sistema
enuncivo em T1 e T2;
– faz crer (em si) para não fazer não crer no texto-base. 249
Intertextualidade e conto maravilhoso

2. Diferença entre T1 e T2:


– estratégia argumentativa: ressalta particularidades de expressão;
uso reiterativo de advérbios de seqüencialização;
– multiplicação das falas e dos pensamentos dos interlocutores;
– emprego reiterativo da hipotaxe;
– ampliação do discurso citante.

SEMÂNTICA FUNDAMENTAL
1. Semelhança entre T1 e T2:
– oposição semântica básica: alteridade vs. identidade;
– investimentos tímicos semelhantes; dêixis positiva – alteridade/
não identidade.
2. Diferença entre T1 e T2:
– a dêixis positiva, no modo do parecer, é identidade/não- alteridade

SEMÂNTICA NARRATIVA
1. Semelhança entre T1 e T2:
– valores escolhidos para entrar em conjunção com o sujeito – os
mesmos em T1 e T2;
– modalização do ser – paixões simples – as mesmas em T1 e T2 –
querer ser (desejo, curiosidade) vs. querer;
– não ser (medo); paixão complexa – a mesma em T1 e T2 – frus-
tração (maximizada no discurso, como em T1; no discurso,
axiologização positiva do medo, como em T1.
2. Diferença entre T1 e T2:
– valores escolhidos para entrar em conjunção com o sujeito – con-
trários em relação a T1, no modo do parecer.

SEMÂNTICA DISCURSIVA
250 1. Semelhança entre T1 e T2:
Anexo do Capítulo III – esquemas de análises

– tema da repressão;
– percurso temático relevante de T1(a advertência) – confirmado;
– figura comum ou invariante da configuração discursiva; antropo-
fagia do lobo mau (a mesma em T1 e T2);
– figuras comuns dos antropônimos – lobo/menina, dos cronôni-
mos – uma vez/um dia, dos topônimos – bosque, casa da avó;
– conformidade de papéis temáticos e figurativos dos atores de T2
com os atores de T1.
2. Diferença entre T1 e T2:
– detalhamento figurativo; acréscimo de percursos figurativos, que
constituem meros apêndices;
– aparente atenuação temática;
– percursos figurativos ornamentados;
– construção do sentido por meio de um jogo, que oscila entre hi-
pérboles e eufemismos aparentes.

SINTAXE: TRÊS NÍVEIS – T2 CAPTA T1.


SEMÂNTICA: TRÊS NÍVEIS – T2 CAPTA T1.

PERRAULT/ROSA TEXTO-BASE/ESTILIZAÇÃO
PROTO-HISTÓRIA/TRANS-HISTÓRIA
T1/T2

SINTAXE FUNDAMENTAL
1. Semelhança entre T1 e T2:
– na estrutura elementar, as relações mínimas de conteúdo são as
mesmas em T1 e T2;
– as operações (negação e asserção) são as mesmas em T1 e T2;
afirma-se a alteridade e nega-se a identidade.
2. Diferença entre T1 e T2:
– na enunciação enunciada, constrói-se o termo complexo pessoa- 251
Intertextualidade e conto maravilhoso

lização, enquanto soma de S¹ e de S², ou seja, alteridade mais


identidade.

SINTAXE NARRATIVA
1. Semelhança entre T1 e T2:
– algoritmo narrativo – o mesmo em T1 e T2;
– actantes – os mesmos em T1 e T2;
– relação do actante com o ator – a mesma em T1 e T2 – lobo 2 cita
lobo1; a menina2 cita a menina1;
2. Diferença entre T1 e T2:
– ambigüidade do papel do lobo;
– na seqüência narrativa do enunciado, a sanção da menina é cognitiva.

SINTAXE DISCURSIVA
1. Semelhança entre T1 e T2:
– espacialização, temporalização, actorialização – mesmo sistema
enuncivo em T1 e T2;
– faz crer em si para não fazer não crer no texto-base.
2. Diferença entre T1 e T2:
– complexificação sintática por meio de embreagens;
– alterações na actorialização, espacialização e temporalização: tra-
ta-se, em T2, de qualquer pessoa, de qualquer espaço, de qualquer
tempo;
– estratégia argumentativa – procedimentos alterados pela função
estética, pelo tom lírico, que fazem o conto voltar-se mais para
sua própria mira enunciativa, do que para o texto-base, o que cons-
titui um ponto de semelhança com a desistória.

SEMÂNTICA FUNDAMENTAL
1. Semelhança entre T1 e T2:
252 – oposição semântica básica: alteridade vs. identidade;
Anexo do Capítulo III – esquemas de análises

– investimentos tímicos semelhantes; dêixis positiva – alteridade/


não identidade.
2. Diferença entre T1 e T2:
– o termo pessoalização desliza para a dêixis positiva da alteridade/
não identidade.

SEMÂNTICA NARRATIVA
1. Semelhança entre T1 e T2:
– modalização do ser – paixões simples – as mesmas em T1 e T2 –
querer ser (desejo, curiosidade) vs. querer não ser (medo); paixão
complexa – a mesma em T1 e T2 – frustração (minimizada no
discurso);
– valor escolhido para entrar em conjunção com o sujeito: o mesmo
– submissão.
2. Diferença entre T1 e T2:
acréscimo da paixão da tristeza;
– percursos patêmicos resultam na concomitância do medo e do de-
sejo, ou curiosidade;
– valor escolhido para entrar em conjunção com o sujeito: uma sub-
missão complexificada.

SEMÂNTICA DISCURSIVA
1. Semelhança entre T1 e T2:
– figura comum ou invariante da configuração discursiva – antro-
pofagia do lobo mau;
– conformidade de papéis figurativos e temáticos dos atores de T2
com os atores de T1;
– as figuras comuns dos antropônimos – lobo/menina, dos cronôni-
mos – uma vez/um dia, dos topônimos – bosque/casa da avó;
– o tema da repressão, que se atenua na iniciação.
2. Diferença entre T1 e T2: 253
Intertextualidade e conto maravilhoso

– percursos figurativos complexificados;


– percursos temáticos complexificados;
– transfiguração poética do conto exemplar;
– discurso salvo da programação de advertência, substituída pela
iniciação;
– perda do sentido particular; universalização dos temas e figuras;
ampliação do alcance da narrativa;
– ancoragem de todas as relações semio-narrativas na grande di-
mensão discursiva do destino humano.

SINTAXE: TRÊS NÍVEIS – T2 CAPTA E COMPLEXIFICA T1


SEMÂNTICA: TRÊS NÍVEIS – T2 CAPTA E COMPLEXIFICA
T1.

254
Conclusão

Conclusão

O operário faz a coisa


e a coisa faz o operário.

(Vinicius de Moraes)

“Um discurso narrativo, qualquer que seja sua complexidade,


é, do ponto de vista do enunciador, um objeto construído e, do ponto
de vista do enunciatário, um objeto suscetível de receber uma análise
gerativa” (Greimas, 1983, p. 169). Greimas disse isso após ter afir-
mado que a narratividade não se funda numa sucessão temporal, ou
seja, qualquer discurso pressupõe uma narratividade, logo, qualquer
discurso é narrativo.
Essa construção do objeto desvela-se e confirma-se no discur-
so intertextual, mais do que nos outros, pois chama a atenção para a
prática da enunciação, para o ato de dizer, ao mostrar, sem demarca-
ções explícitas, a voz do outro nesse objeto construído. Ao fazer isso,
a enunciação do discurso intertextual instiga o enunciatário para o
prazer de partilhar a descoberta e o reconhecimento desse outro, bem
como o reconhecimento dos meandros da captação ou da subversão
desse outro por esse eu. Aí está o prazer de desconstruir e reconstruir
esse objeto.
O sujeito da enunciação busca o texto-base para construir o
objeto-enunciado, transformando o objeto construído no lugar de in-
vestimento de valores. Nessa apropriação de um enunciado para a
construção de outro, captando-o ou subvertendo-o, o sujeito também
se constrói como agente da História e ao mesmo tempo confirma-se
como produto dela. 255
Intertextualidade e conto maravilhoso

A busca dos valores do texto-base e a respectiva apropriação –


gestos direcionados ideologicamente – subsidiam, portanto, o por-
quê das relações de contrariedade, contraditoriedade ou complemen-
taridade da variante com o texto-base.
O objeto construído, a variante intertextual, mostra, na sua
manifestação, o texto-base, mas essas amostras fluidas e não-marcadas
não se restringem absolutamente a essa expressão. O texto-base
interage no percurso gerativo da construção do sentido da variante,
desde os níveis mais profundos.
Há, na semântica discursiva, um ponto de convergência de to-
das as variantes de um mesmo texto, a configuração discursiva, como
vimos. Precisamos, entretanto, ressaltar aqui que, em se tratando de
intertextualidade, essa configuração, diferentemente das configura-
ções entre discursos invariantes, apresenta um núcleo comum e está-
vel tanto na figurativização, como na tematização, reproduzindo se-
melhanças narrativas e fundamentais. Em todos os patamares da
construção do sentido, sobre semelhanças constroem-se as diferen-
ças no significado intertextual. Entenderemos melhor a variante in-
tertextual, se, em princípio, reconhecermos essas semelhanças, mes-
mo porque elas é que vão tornar possíveis as diferenças.
Das diferenças nutrem-se as relevâncias da paródia, da polê-
mica, da estilização e da paráfrase.
A polêmica, direcionando a performance da construção do seu
protesto, para outra mira, que não é o texto-base, nega-o, de maneira
que se lê o enunciado polêmico sem se pensar no texto-base. É a
contraditoriedade de isotopias. Recobre esse discurso o tom da serie-
dade.
A paródia, direcionando a performance da construção do seu
deboche, para o texto-base, brinca com ele, subverte-o, destrói o seu
enunciado e a sua enunciação, mas renova-o, vivificando-o espalha-
fatosa e grotescamente. Quando se vêem as figuras da variante e se
pensa naquelas do texto-base, postas agora de “pernas para o ar”, ri-
se. É a contrariedade de isotopias. Esse discurso é alimentado pelo
256 humor.
Conclusão

A paráfrase, direcionando a performance da construção do seu


ornamento, para o texto-base, faz a reprodução dele. Debruça-se so-
bre a tela original para confirmá-la, aprofundando um detalhe aqui,
atenuando uma cor lá, parecendo modificar um contorno acolá. O
quadro original sobrepõe-se ao novo, entretanto. Lê-se esse discurso
pensando mais no texto-base do que na variante. É a complementari-
dade de isotopias. Infla esse discurso um jogo que oscila entre a hi-
pérbole e o eufemismo do texto-base. Envolve esse discurso um
tom de concessão ao texto-base.
A estilização, direcionando a performance da construção de
sua transfiguração estética para o texto-base, assimila-o oniricamente,
porque busca nele a emoção lírica, com a qual procura investir o
objeto criado. Redimensiona o texto-base, ampliando o alcance da
narrativa e universalizando os temas e as figuras. Lê-se esse discurso
sobrepondo ao prazer do reconhecimento do texto-base o prazer do
desvendamento da metáfora e do símbolo, bem como o artesanal pra-
zer do entendimento da recriação do conteúdo pela expressão. So-
brepõe-se, portanto, ao texto-base. É a complementaridade de isoto-
pias. Libera esse discurso a magia poética.
Cotejar o texto-base com as variantes no universo do conto
maravilhoso tanto nos fez aproximar do homem de todos os tempos,
em que coabitam o lógico e o mágico, como nos fez ver o quanto esse
homem tem o pensamento datado.
Cotejar o texto-base com as variantes no universo do conto
maravilhoso mostrou-nos que o objeto construído também constrói o
sujeito construtor.
Cotejar o texto-base com as variantes no universo do conto
maravilhoso possibilitou-nos também a nós a construção do sujeito
pelo objeto construído, esta empreitada, que ora se finda.

257
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263
Textos

TEXTOS

Chapeuzinho Vermelho

Era uma vez uma menina aldeã, a mais bonita de quantas exis-
tiram. Sua mãe era louca por ela, sua avó ainda mais louca. Esta boa
mulher mandou fazer para ela um chapeuzinho vermelho que se as-
sentava tão bem que, por toda parte, só lhe chamavam Chapeuzinho
Vermelho.
Um dia sua mãe, tendo assado uma fornada de pãezinhos, dis-
se à menina:
– Vai ver como está tua avó, pois me disseram que anda doen-
te; leva-lhe uns pãezinhos e esta tigelinha de manteiga.
Chapeuzinho Vermelho saiu no mesmo instante para ir à casa
de sua avó, que morava em outra aldeia. Passando por um bosque, aí
encontrou compadre Lobo, que teve grande vontade de comê-la; con-
tudo não se atreveu, por causa de alguns lenhadores que estavam por
perto. Perguntou-lhe o Lobo aonde ia ela. A pobre criança, que não
sabia como era perigoso dar ouvidos a um lobo, respondeu:
– Vou à casa da vovó levar-lhe um pãozinho e uma tigelinha
de manteiga que minha mãe lhe envia.
– Ela mora muito longe? – perguntou o Lobo.
– Oh, sim! – respondeu Chapeuzinho Vermelho; – além do
moinho que se vê lá embaixo; na primeira casa da aldeia.
– Pois bem – disse o Lobo – também quero visitá-la. Irei por
este caminho, e irás por aquele. Vamos ver quem chega
primeiro. 265
Intertextualidade e conto maravilhoso

O Lobo pôs-se a correr com quanta força tinha pelo caminho


mais curto, e a menina se foi pelo caminho mais comprido, divertin-
do-se a colher avelãs, a correr atrás das borboletas e a fazer
buquezinhos com flores do campo.
Não tardou muito, o Lobo chegou à casa da avó e bateu à por-
ta:
– Toc, toc.
– Quem é?
– É sua neta Chapeuzinho Vermelho – disse o Lobo, disfar-
çando a voz – que traz para a senhora um pãozinho e uma
tigelinha de manteiga que minha mãe lhe envia.
A boa avó, que estava deitada porque se sentia um pouco do-
ente, gritou-lhe:
– Puxa a aldrava e o trinco se abrirá.
O Lobo puxou a aldrava e a porta abriu-se: em seguida, atiran-
do-se em cima da boa mulher, num instante a devorou, pois fazia
mais de três dias que estava em jejum. Depois fechou a porta e foi
deitar-se no leito da avó, à espera de Chapeuzinho Vermelho, que
não tardou a bater:
– Toc, toc.
– Quem é?
Ouvindo a grossa voz do Lobo, primeiro Chapeuzinho Verme-
lho teve medo; mas pensando que sua avó estivesse com bronquite,
respondeu:
– É sua neta Chapeuzinho Vermelho, que traz para a senhora
um pãozinho e uma tigelinha de manteiga que minha mãe
lhe envia.
Gritou-lhe o Lobo, adoçando um pouco a voz:
– Puxa a aldrava e o trinco se abrirá.
Chapeuzinho Vermelho puxou a aldrava e a porta abriu-se.
Vendo-a entrar, disse o Lobo, enfiando-se debaixo das cober-
266 tas:
Textos

– Põe o pãozinho e a tigelinha de manteiga no guarda-comi-


das e vem deitar-te na cama comigo.
Chapeuzinho Vermelho tira a roupa e vai deitar-se, mas fica
muito espantada vendo a figura da avó despida. Então diz:
– Avó, como são grandes os seus braços!
– É para melhor te abraçar, minha neta.
– Avó, como são grandes as suas pernas!
– É para correr melhor, minha neta.
– Avó, como são grandes as suas orelhas!
– É para melhor escutar, minha neta.
– Avó, como são grandes os seus olhos!
– É para te ver melhor, minha neta.
– Avó, como são grandes os seus dentes!
– É para te comer!
E com essas palavras, o lobo se atirou sobre Chapeuzinho Ver-
melho e a devorou.

Perrault, Charles. Contos de Perrault. Trad. Olívia


Krähenbühl. São Paulo: Editora Cultrix, 1963.

267
Textos

Chapeuzinho Vermelho e o Lobo Torturador

Era uma vez um imenso bosque branquicento. Do alto duma


copa de concreto armado via-se, lá embaixo, pequeninas figuras, que
trabalhavam sob as ardências do sol abrasador. Construíam outra ár-
vore concreta numa pequena clareira. Eram hominhos que moravam,
com suas famílias, em ocos de paus podres, nas zonas mais inóspitas,
longe de onde trabalhavam, e mal o dia ameaçava amanhecer, já esta-
vam caminhando por caminhos íngremes, descalços, na direção das
obras do grande bosque. A maioria deles não sabia ler nem escrever.
Eles nunca tinham brincado quando meninos, nem tinham escutado
bonitos contos infantis na hora de dormir, porque seus pais também
tinham sido como eles: pobres e analfabetos e quando chegavam do
trabalho não tinham força nem para ficar acordados. A única história
que conheciam era de misérias, tristezas e coisas ruins da vida diária.
Trabalhavam debaixo de um sol danado, vestidos somente com
uma calça esburacada e sempre estavam com a cabeça afogueada,
porque não tinham nem um mísero chapéu. Muitos deles, quando já
ia ficando de tarde, ficavam com tontura, meio zonzos, por causa
daquela queimação na cabeça. E trabalhavam, trabalhavam duro, ti-
nham as mãos calosas e o corpo musculoso de tanto labutarem desde
que eram meninos pequenos.
Um dia, de tardezinha, quando um grupo deles voltava para
seus ocos de paus, acharam, perto de um estádio de futebol, um mon-
tão de meias velhas. Umas brancas e outras vermelhas. No outro dia
chegaram no trabalho de touca. Umas vermelhas e outras brancas.
Do alto de uma copa de concreto armado alguém – que antiga-
mente também morava no oco de pau – disfarçado de cozinheiro riu
com sua boca feroz de lobo mau: lá estavam, ele tinha descoberto, 269
Intertextualidade e conto maravilhoso

finalmente, quais eram os homens de chapeuzinho vermelho! O falso


mestre cuca enterrou o enorme chapéu branco até os olhos e saiu
caminhando emborcado e com o canto da boca espumando de ódio e
de prazer, e telefonou para seu chefe:
– Aqui está falando o Lobo. Pode mandar os homens que já
descobri os vermelhos!
Imediatamente a clareira foi cercada por tropas especiais e to-
dos os que tinham toucas vermelhas foram presos. Logo que foram
encarcerados, receberam uma surra espantosa. Entre socos, pontapés
e chicotadas os policiais gritavam:
– Eu quero saber, agora, a história do chapeuzinho verme-
lho!
Os pobres homens estavam abestalhados. Nenhum deles nun-
ca tinha sido preso antes. E eles só sabiam histórias de argamassa,
tijolos, adobes e de acidentes...
Respondiam:
– Num sei.
Os interrogadores sentiam-se cada vez mais ofendidos com as
negativas dos presos – como ousariam não confessar! e o pau comia
mais violento. A Lei de Segurança Bosquial seria aplicada com todo
seu rigor! A ordem seria mantida a qualquer preço! Os trabalhadores
tinham os olhos arregalados, não compreendiam nada. Olhavam uns
para os outros abismados e ofegantes. Mas a história do chapeuzinho
vermelho tinha de ser contada de qualquer jeito. Logo foram levados
para o suplício e, no martírio escabroso, sempre respondiam num sei
entre gritos horrendos de dor. A morte que se ia avizinhando era a
mais sofrível de todas: asfixia, afogamento, estrangulamento. Só ha-
via uma salvação: que todos contassem a história pedida. Os interro-
gadores se gabavam de que todos que tinham passado por suas mãos
tinham contado tudo, tim-tim por tim-tim. Foi então que um dos pre-
sos se lembrou de quando era menininho andando com sua mãe por
uma das alamedas do bosque branquicento – ela com uma imensa
trouxa na cabeça, e ele esfarrapado na noite fria – foi mandado entre-
270 gar umas roupas limpas. Bateu na porta e uma empregada veio bus-
Textos

car a roupa. Enquanto ela foi pegar o dinheiro para pagar, deixou a
porta entreaberta e ele ficou comovido e com medo ouvindo a dona
da casa contar, para o filhinho que tinha no colo, uma bela história de
perigos e de bem-aventurança.
De repente um tiro rompeu o curto silêncio que se tinha feito
no local macabro, logo depois que um dos presos, na sua humilde
ingenuidade, tinha começado a contar:
Era uma vez um lobo mau...

Berquó, Alberto. Chapeuzinho Vermelho e o Lobo Tortura-


dor. Brasília: Literatura Livraria e Editora Ltda,
Edições do Autor Desconhecido, 1979.

271
Textos

Chapeuzinho Amarelo

Era a Chapeuzinho Amarelo.


Amarelada de medo.
Tinha medo de tudo, aquela Chapeuzinho.
Já não ria.
Em festa, não aparecia.
Não subia escada
nem descia.
Não estava resfriada
mas tossia.
Ouvia conto de fada
e estremecia.
Não brincava mais de nada,
nem de amarelinha.

Tinha medo de trovão.


Minhoca, pra ela, era cobra.
E nunca apanhava sol
porque tinha medo da sombra.
Não ia pra fora pra não se sujar.
Não tomava sopa pra não se ensopar
Não tomava banho pra não descolar.
Não falava nada pra não engasgar.
Não ficava em pé com medo de cair.
Então vivia parada, 273
Intertextualidade e conto maravilhoso

deitada, mas sem dormir,


com medo de pesadelo.

274
Textos

Era a Chapeuzinho Amarelo

275
Intertextualidade e conto maravilhoso

E de todos os medos que tinha,


o medo mais que medonho
era o medo do tal do LOBO.
Um LOBO que nunca se via,
que morava lá pra longe,
do outro lado da montanha,
num buraco da Alemanha,
cheio de teia de aranha,
numa terra tão estranha,
que vai ver que o tal do LOBO
nem existia.

Mesmo assim a Chapeuzinho


tinha cada vez mais medo
do medo do medo do medo
de um dia encontrar um LOBO.
Um LOBO que não existia.

E Chapeuzinho Amarelo,
de tanto pensar no LOBO,
de tanto sonhar com LOBO,
de tanto esperar o LOBO,
um dia topou com ele
que era assim:
carão de LOBO,
olhão de LOBO,
jeitão de LOBO
e principalmente um bocão
tão grande que era capaz
276 de comer duas avós,
Textos

um caçador, rei, princesa,


sete panelas de arroz
e um chapéu de sobremesa.

Mas o engraçado é que,


assim que encontrou o LOBO,
a Chapeuzinho Amarelo
foi perdendo aquele medo,
o medo do medo do medo
de um dia encontrar um LOBO.
Foi passando aquele medo
do medo que tinha do LOBO.
Foi ficando só com um pouco
de medo daquele lobo.
Depois acabou o medo
e ela ficou só com o lobo.

O lobo ficou chateado


de ver aquela menina
olhando pra cara dele.
Ficou mesmo envergonhado,
triste, murcho e branco azedo,
porque um lobo, tirado o medo,
é um arremedo de lobo.
É feito um lobo sem pelo.
Lobo pelado.

277
Intertextualidade e conto maravilhoso

O lobo ficou

278
Textos

chateado.

279
Intertextualidade e conto maravilhoso

E ele gritou: Sou um LOBO!


Mas a Chapeuzinho, nada.
E ele gritou: sou um LOBO!
Chapeuzinho deu risada.
E ele berrou: EU SOU UM LOBO !!!
Chapeuzinho, já meio enjoada,
com vontade de brincar de outra coisa.
Ele então gritou bem forte
aquele seu nome de LOBO
umas vinte e cinco vezes,
que era pro medo ir voltando
e a menininha saber
com quem não estava falando:

280
Textos

LO-BO-LO-BO-LO-BO-LO-BO

LO-BO-LO-BO-LO-BO-LO-BO

BO-LO-BO-LO-BO-LO-BO-LO

281
Intertextualidade e conto maravilhoso

LO-BO-LO-BO-LO-BO-LO-BO

LO-BO-LO-BO-LO-BO-LO-BO

BO-LO-BO-LO-BO-LO-BO-LO

282
Textos

Aí Chapeuzinho encheu e disse:


– Pára assim! Agora! Já!
Do jeito que você tá!
E o lobo parado assim
do jeito que o lobo estava
já não era mais um LO-BO
Era um BO-LO.
Um bolo de lobo fofo,
tremendo que nem pudim,
com medo da Chapeuzim.
Com medo de ser comido
com vela e tudo, inteirim.

283
Intertextualidade e conto maravilhoso

LO- BO-LO -BO

284
Textos

Chapeuzinho não comeu


aquele bolo de lobo,
porque sempre preferiu
de chocolate.
Aliás, ela agora come de tudo,
menos sola de sapato.
Não tem mais medo de chuva
nem foge de carrapato.
Cai, levanta, se machuca,
vai à praia, entra no mato,
trepa em árvore rouba a fruta,
depois joga amarelinha
com o primo da vizinha,
com a filha do jornaleiro,
com a sobrinha da madrinha
e o neto do sapateiro.

Mesmo quando está sozinha,


inventa uma brincadeira.
E transforma em companheiro
cada medo que ela tinha:
o raio virou orrái,
barata é tabará,
a bruxa virou xabru
e o diabo é bodiá.

FIM

Buarque, Chico. Chapeuzinho Amarelo.


5a ed. Rio de Janeiro: Berlendis &
Vertecchia Editores Ltda., 1984. 285
Textos

Chapeuzinho Vermelho

Era uma vez uma meninazinha mimosa, que todo o mundo


amava assim que a via, mas mais que todos a amava a sua avó. Ela
não sabia mais o que dar a essa criança. Certa vez, ela deu-lhe de
presente um capuzinho de veludo vermelho, e porque este lhe ficava
tão bem, e a menina não queria mais usar outra coisa, ficou se cha-
mando Chapeuzinho Vermelho.
Certo dia, sua mãe lhe disse:
– Vem cá, Chapeuzinho Vermelho; aqui tens um pedaço de
bolo e uma garrafa de vinho, leva isto para a vovó; ela está doente e
fraca e se fortificará com isto. Sai antes que comece a esquentar, e
quando saíres, anda direitinha e comportada e não saias do caminho,
senão podes cair e quebrar o vidro e a vovó ficará sem nada. E quan-
do chegares lá, não esqueças de dizer bom-dia, e não fiques espiando
por todos os cantos.
– Vou fazer tudo como se deve, – disse Chapeuzinho Verme-
lho à mãe, dando-lhe a mão como promessa.
A avó, porém, morava lá fora na floresta, a meia hora da al-
deia. E quando Chapeuzinho Vermelho entrou na floresta, encon-
trou-se com o lobo. Mas Chapeuzinho Vermelho não sabia que fera
malvada era aquela, e não teve medo dele.
– Bom dia, Chapeuzinho Vermelho, – disse ele.
– Muito obrigada, lobo.
– Para onde vai tão cedo, Chapeuzinho Vermelho?
– Para a casa da vovó.
– E o que trazes aí debaixo do avental?
– Bolo e vinho. Foi assado ontem, e a vovó fraca e doente vai
saboreá-lo e se fortificar com o vinho. 287
Intertextualidade e conto maravilhoso

– Chapeuzinho Vermelho, onde mora a tua avó?


– Mais um bom quarto de hora adiante no mato, debaixo dos
três grandes carvalhos, lá fica a sua casa; embaixo ficam as moitas de
avelã, decerto já sabes isso, – disse Chapeuzinho Vermelho.
O lobo pensou consigo mesmo: “Esta coisinha nova e tenra,
ela é um bom bocado que será ainda mais saboroso do que a velha.
Tenho de ser muito esperto, para apanhar as duas”.
Então ele ficou andando ao lado de Chapeuzinho Vermelho e
logo falou:
– Chapeuzinho Vermelho, olha só para as lindas flores que
crescem aqui em volta! Por que não olhas para os lados? Acho que
nem ouves o mavioso canto dos passarinhos! Andas em frente como
se fosses para a escola, e no entanto é tão alegre lá no meio do mato.
Chapeuzinho Vermelho arregalou os olhos e, quando viu os
raios de sol dançando de lá para cá por entre as árvores, e como tudo
estava tão cheio de flores, pensou: “Se eu levar um raminho de flores
frescas para a vovó, ela ficará contente; ainda é tão cedo, que chega-
rei lá no tempo certo”.
Então ela saiu do caminho e correu para o mato, à procura de
flores. E quando apanhava uma, parecia-lhe que mais adiante havia
outra mais bonita, e ela corria para colhê-la e se embrenhava cada
vez mais pela floresta adentro.
O lobo, porém, foi direto para a casa da avó e bateu na porta.
– Quem está aí fora?
– É Chapeuzinho Vermelho, que te traz bolo e vinho, abre!
– Aperta a maçaneta, – disse a vovó – eu estou muito fraca e
não posso me levantar.
O lobo apertou a maçaneta, a porta se abriu, e ele foi, sem
dizer uma palavra, direto para a cama da vovó e engoliu-a. Depois,
ele se vestiu com a roupa dela, pôs a sua touca na cabeça, deitou-se
na cama e puxou o cortinado.
Chapeuzinho Vermelho, porém, correu atrás das flores, e quan-
288 do juntou tantas que não podia corregar mais, lembrou-se da vovó e
Textos

se pôs a caminho da sua casa. Admirou-se ao encontrar a porta aber-


ta, e quando entrou, percebeu alguma coisa tão estranha lá dentro,
que pensou: “Ai, meu Deus, sinto-me tão assustada, eu que sempre
gosto tanto de visitar a vovó!” E ela gritou:
– Bom-dia!
Mas não recebeu resposta. Então ela se aproximou da cama e
abriu as cortinas. Lá estava a vovó deitada, com a touca bem afunda-
da na cabeça e um aspecto muito esquisito.
– Ai, vovó, que orelhas grandes que você tem!
– É para te ouvir melhor!
– Ai, vovó, que olhos grandes que você tem!
– É para te enxergar melhor.
– Ai, vovó, que mãos grandes que você tem!
– É para te agarrar melhor.
– Ai, vovó, que bocarra enorme que você tem!
– É para te devorar melhor.
E nem bem o lobo disse isso, deu um pulo da cama e engoliu a
pobre Chapeuzinho Vermelho.
Quando o lobo satisfez a sua vontade, deitou-se de novo na
cama, adormeceu e começou a roncar muito alto. O caçador passou
perto da casa e pensou: “Como a velha está roncando hoje! Preciso
ver se não lhe falta alguma coisa”. Então ele entrou na casa, e quando
olhou para a cama, viu que o lobo dormia nela.
– É aqui que eu te encontro, velho malfeitor, – disse ele – há
muito tempo que estou à tua procura.
Aí ele quis apontar a espingarda, mas lembrou-se de que o
lobo podia ter devorado a vovó, e que ela ainda poderia ser salva. Por
isso, ele não atirou, mas pegou uma tesoura e começou a abrir a bar-
riga do lobo adormecido. E quando deu algumas tesouradas, viu logo
o vermelho do chapeuzinho, e mais um par de tesouradas, e a menina
saltou para fora e gritou:
– Ai, como eu fiquei assustada, como estava escuro lá dentro
da barriga do lobo! 289
Intertextualidade e conto maravilhoso

E aí também a velha avó saiu para fora ainda viva, mal conse-
guindo respirar. Mas Chapeuzinho Vermelho trouxe depressa umas
grandes pedras, com as quais encheu a barriga do lobo. Quando ele
acordou, quis fugir correndo, mas as pedras eram tão pesadas, que
ele não pôde se levantar e caiu morto.
Então os três ficaram contentíssimos. O caçador arrancou a
pele do lobo e levou-a para casa, a vovó comeu o bolo e bebeu o
vinho que Chapeuzinho Vermelho trouxera, e logo melhorou, mas
Chapeuzinho Vermelho pensou: “Nunca mais eu sairei do caminho
sozinha, para correr dentro do mato, quando a mamãe me proibir
fazer isso”.

Grimm, Irmãos. Contos de Grimm. Trad. Tatiana Belinky. São


Paulo: Edições Paulinas, 1989.

290
Textos

Fita-Verde no Cabelo
(Nova velha estória)

HAVIA UMA ALDEIA em algum lugar, nem maior nem me-


nor, com velhos e velhas que velhavam, homens e mulheres que es-
peravam, e meninos e meninas que nasciam e cresciam. Todos com
juízo, suficientemente, menos uma meninazinha, a que por enquan-
to. Aquela, um dia, saiu de lá, com uma fita-verde inventada no cabe-
lo.
Sua mãe mandara-a, com um cesto e um pote, à avó, que a
amava, a uma outra e quase igualzinha aldeia. Fita-verde partiu, so-
bre logo, ela a linda, tudo era uma vez. O pote continha um doce em
calda, e o cesto estava vazio, que para buscar framboesas.
Daí, que, indo, no atravessar o bosque, viu só os lenhadores,
que por lá lenhavam; mas o lobo nenhum, desconhecido nem peludo.
Pois os lenhadores tinham exterminado o lobo. Então, ela, mesma,
era quem se dizia: – “Vou à vovó, com cesto e pote, e a fita-verde no
cabelo, o tanto que a mamãe me mandou”. A aldeia e a casa esperan-
do-a acolá, depois daquele moinho, que a gente pensa que vê, e das
horas, que a gente não vê que não são.
E ela mesma resolveu escolher tomar este caminho de cá, lou-
co e longo, e não o outro, encurtoso. Saiu, atrás de suas asas ligeiras,
sua sombra também vindo-lhe correndo, em pós. Divertia-se com
ver as avelãs do chão não voarem, com inalcançar essas borboletas
nunca em buquê nem em botão, e com ignorar se cada uma em seu
lugar as plebeiínhas flores, princesinhas e incomuns, quando a gente
tanto por elas passa. Vinha sobejadamente.
Demorou, para dar com a avó em casa, que assim lhe respon-
deu, quando ela, toque, toque, bateu: 291
Intertextualidade e conto maravilhoso

– “Quem é?”
– “Sou eu...” – e Fita-verde descansou a voz – “Sou sua linda
netinha, com cesto e pote, com a fita-verde no cabelo, que a mamãe
me mandou”.
– Vai, a avó, difícil disse: – “Puxa o ferrolho de pau da porta,
entra e abre. Deus te abençoe”.
Fita-verde assim fez, e entrou e olhou.
A avó estava na cama, rebuçada e só. Devia, para falar agagado
e fraco e rouco, assim, de ter apanhado um ruim defluxo. Dizendo: –
“Depõe o pote e o cesto na arca, e vem para perto de mim, enquanto
é tempo”.
Mas agora Fita-verde se espantava, além de entristecer-se de
ver que perdera em caminho sua grande fita-verde no cabelo atada; e
estava suada, com enorme fome de almoço. Ela perguntou:
– “Vovozinha, que braços tão magros, os seus, e que mãos tão
trementes!”
– “É porque não vou poder nunca mais te abraçar, minha neta...”
– a avó murmurou.
– “Vovozinha, mas que lábios, aí, tão arroxeados!”
– “É porque não vou nunca mais poder te beijar, minha neta...”
– a avó suspirou.
– “Vovozinha, e que olhos tão fundos e parados, nesse rosto
encovado, pálido?”
– “É porque já não te estou vendo, nunca mais, minha neti-
nha...” – avó ainda gemeu.
Fita-verde mais se assustou, como se fosse ter juízo pela pri-
meira vez.
Gritou: – “Vovozinha, eu tenho medo do Lobo!”
Mas a avó não estava mais lá, sendo que demasiado ausente, a
não ser pelo frio, triste e tão repentino corpo.

Rosa, João Guimarães. Ave, palavra. 3a ed. Rio


292 de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 1985.
Textos

Ficha Técnica

Divulgação Livraria Humanitas-Discurso


Mancha 10,5 x 18,5 cm
Formato 14 x 21 cm
Tipologia Times New Roman
Papel miolo: off set 75 g/m2
capa: cartão branco 180 g/m2
Impressão e acabamento Gráfica da FFLCH/USP
Número de páginas 294
Tiragem 500 293

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