Você está na página 1de 10

O uso ritual de esteróides anabolizantes

em academias de musculação. Uma


abordagem antropológica.
CESAR SABINO1

Resumo: Este artigo tem por objetivo destacar os aspectos rituais do uso de esteróides anabolizantes em aca-
demias de musculação enfatizando o emprego destas substâncias na construção da pessoa do marombeiro
(praticante assíduo de musculação). Ressalta a construção da masculinidade nestas instituições e as práticas
relacionadas às representações de corpo e hierarquia estética do grupo.
Palavras chave: esteróides anabolizantes, drogas, práticas corporais, gênero, masculinidade, poder simbólico.

INTRODUÇÃO

Este artigo é parte resumida de um capítulo da tese de dou- por hormônios masculinos3 e, portanto, virilizantes, pro-
torado denominada: O Peso da Forma. Cotidiano e uso porcionando não apenas a aquisição de músculos acima da
de drogas entre fisiculturistas. Defendida no Programa de média, mas também o surgimento de pêlos por todo corpo,
Pós-Graduação em Sociologia e Antropologia (PPGSA) do além de engrossar a voz de todos seus usuários freqüentes4,
Instituto de Filosofia e Ciências Sociais (IFCS) da Univer- homens e mulheres.
sidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) em 2004. Em tal Foram pesquisadas 10 academias de musculação e 2 de fi-
trabalho tentei compreender a construção identitária e a siculturismo entre a Zona Norte e Sul do Rio de Janeiro (4
organização social de uma “tribo urbana”, composta por academias no bairro de Vila Isabel, 3 no bairro da Tijuca,
assíduos freqüentadores de academias de musculação na 2 em Copacabana, 2 no Grajaú, 1 no Andaraí) durante 54
cidade do Rio de Janeiro. Os indivíduos de tal grupo au- meses, tempo de duração da pesquisa de mestrado e douto-
todenominam-se marombeiros2 e utilizam com regulari- rado. Foram realizadas 310 entrevistas com homens e mul-
dade determinadas drogas (esteróides anabolizantes e sub- heres (200 homens e 110 mulheres) com idade entre 16 e 55
stâncias diversas) que poderiam ser chamadas de drogas anos. Os relatos foram colhidos de maneira informal através
masculinizantes, já que são drogas constituídas, em geral, da observação participante, sendo evitado o uso de ques-

1
Doutor em Antropologia Cultural pelo PPGSA/IFCS/UFRJ. Atualmente trabalha na pesquisa Racionalidades Médicas coordenada pela Profa. Dr.a Madel Luz
do IMS/UERJ.
2
Marombeiro tornou-se sinônimo do freqüentador assíduo das academias de musculação e ginástica e pronome de tratamento deste grupo social. Todos
aqueles que ostentam corpo musculoso (“sarado como dizem os informantes), em virtude desta freqüência constante, se autodenomina como tal. O termo
pode ser sinônimo também de fisiculturista ou bodybuilder A palavra marombeiro vem de maromba : vara que os funânmbulos utilizavam para se equilibrar
na maroma: corda na qual andam. Maromba pode signifcar também o(s) peso(s) com o qual o funâmbulo se mantém em equilíbrio. Como no fisiculturismo e
halterofilismo são utilizadas barras com pesos (halteres) removíveis nas extremidades não é difícil perceber a associação das imagens do homem que anda na
corda bamba, utilizando a maromba para se equilibrar, e daquele que utiliza tais pesos para otimizar sua forma e força
3
Estes hormônios em geral são medicamentos feitos para seres humanos, mas alguns marombeiros, consumidores de longo tempo, chegam a utilizar hormônios
fabricados para cavalos de corrida (Equiforte) que em geral conseguem com veterinários, lojas para animais ou no Jockey Club.
4
Algumas destas drogas, conforme observei e me foi relatado, também fazem o indivíduo perder gordura definindo a musculatura, como por exemplo, a droga
importada denominada Winstrol Depot.

Arquivos em Movimento, Rio de Janeiro, v.1, n.1, p.7-16, janeiro/junho 2005 7


tionários e gravadores que pudessem interferir nas respostas tocontrole, ocasionando irresponsabilidade e violação de im-
dos pesquisados. Logo após a saída do recinto, as principais perativos morais básicos (Becker, 1971) sendo responsáveis
questões surgidas durante as conversas eram anotadas em pela concepção, por parte da sociedade e das instituições
um caderno de campo. em geral, de que seus usuários são pessoas com conduta
Dentre os 200 homens entrevistados, 81% disseram já Ter sem freios beirando a loucura, enfim, conduta que poderia
utilizado esteróides anabolizantes. Dos que disseram uti- ser denominada dionisíaca, os anabolizantes (ou “bombas”
lizar esteróides (muitos dos quais o uso foi observado nas como os marombeiros chamam), ao contrário, operam pro-
academias), 70% possuíam idade entre 18 e 30 anos, 2% cesso inverso. Seus usuários constróem, associando tais dro-
idade entre 15 e 18 anos e 9% idade entre 30 e 56. 79% gas a pesados exercícios físicos, imagem de autodomínio,
disseram utilizar com freqüência aumentando as doses no disciplina e racionalidade. Imagem apolínea, não apenas
verão, época de maior exposição dos corpos. Dentre os na forma musculosa, considerada saudável, (já que as rep-
81% que disseram utilizar tais drogas, 58% disseram estar, resentações de saúde em nossa cultura estão relacionadas à
na época cursando ou ter cursado universidade. Das 110 ausência de adiposidade e à musculatura rígida e aparente),
mulheres entrevistadas, 69% disseram já ter utilizado pelo mas também na conduta.
menos uma vez esteróides. Dessas, 30,2% disseram utilizar O uso de drogas, na literatura científica, vem sendo asso-
com freqüência, 58% apenas no verão. A idade de 90% das ciado à transgressão das normas e busca de supressão de
usuárias situa-se entre 0s 16 e 24 anos. Sendo 10% entre 25 estados que oprimem indivíduos e grupos, à contracultura e
e 36 anos. Do total de usuárias, 61% disseram freqüentar ou
à busca de potencialização do prazer e reencantamento de
Ter freqüentado cursos universitários.
um mundo desencantado, além de estar ligado à expansão
Meu objetivo é tentar compreender como o uso dos es- triunfante da realidade psíquica. (VELHO, 1998; BIRMAN,
teróides anabolizantes está relacionado à própria visão de 1993; BECKER, 1971). Na Antropologia, mais especifica-
mundo deste grupo que tende a classificar os indivíduos em mente, o uso das drogas poderia estar associado à teoria
função da sua relação com tais drogas e exercícios físicos, dos ritos e rituais relacionando-se a experiências místicas
ou seja, em função da forma física adquirida por intermédio ou de desvio perpetradas por determinados grupos que, de
destes itens anteriores. Suponho que o uso de tais drogas uma forma ou outra, tendem a promover uma espécie de
relaciona-se diretamente relacionado à construção ritual da suspensão momentânea da estrutura social dominante seja
pessoa além de possivelmente indicar uma tendência à vir- para reafirmá-la ou para antever sua modificação, além de
ilização da ética e da estética feminina na sociedade atual. constituírem itens que possivelmente possam estar presen-
Suponho, ainda, o surgimento de um novo tipo de consumo tes em ritos de passagem nos quais um indivíduo transita
de “novas” drogas. Consumo relacionado a representações de um determinado status para outro (RADCLIFF-BROWN,
e práticas antagônicas àquelas comumente associadas aos 1973; TURNER, 1974; DA MATTA, 1983). Não pretendo
consumidores tradicionais de tóxicos5. Pretendo, portanto, analisar aqui as especificidades de tais abordagens, e nem
aprofundar a compreensão de como o uso destas drogas tenho subsídios para tal. Vale ressaltar que estas, quando
pode indicar não apenas uma tendência de adesão a um utilizadas na análise do uso de tóxicos, tendem a ressaltar
ethos individualista, competitivo e masculinizante, inscrito apenas o aspecto dionisíaco desse consumo. Há a tendên-
em uma estética corporal, mas, também, aprofundar a com- cia dos estudos se deterem sobre o aspecto eufórico deste
preensão da importância que estas drogas têm para a con-
consumo, referindo-se ao início dos anos sessenta como
strução da identidade deste grupo6.
período no qual houve significativa transição nos hábitos
de utilização de entorpecentes, na medida em que, por
intermédio do que se constituiu como o movimento da
NOS DOMÍNIOS DE DIONÍSOS
contracultura, um novo ethos surgiu, entre os jovens prin-
cipalmente, no qual as drogas passaram a ocupar, segun-
Diferente de drogas como maconha, cocaína, heroína, entre do esta visão, posição estratégica de subversão da cultura
outras, consideradas substâncias causadoras da perda de au- dominante. Elas representarão o acesso a um “outro mundo”

5
Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS) tóxicos são substâncias que “acarretam dependência física e psicológica, tolerância e síndrome da abstinên-
cia.” Já droga é definida como “qualquer substância que, introduzida no organismo, é capaz de alterar seu metabolismo” (Barbosa, L. N. H.,1986:1244). Os
anabolizantes acarretam dependência psicológica e tolerância, além de, obviamente, alterar o metabolismo orgânico.
6
O grupo de usuário de esteróides, ao contrário do que supõe o senso comum, conhece os riscos do uso de tais drogas. Este conhecimento é um fator que
reitera o uso das substâncias androgênicas, posto que o risco surge, na concepção do grupo, como algo positivo que reforça a coragem individual e as estruturas
hierárquicas do próprio grupo, já que utilizar esteróides é parte do ritual contínuo de construção identitária na qual arriscar a vida é fator de valorização da
experiência e reconhecimento social.

8 Arquivos em Movimento, Rio de Janeiro, v.1, n.1, p.7-16, janeiro/junho 2005


devido às transformações perceptivas que provocam. Espé- os que “tomam bombas”, como eles mesmos dizem, têm,
cie de “fuga” do sistema, mesmo momentânea. em geral, o desejo de integração à cultura dominante. Seu
“desvio” se realiza por intermédio de um processo que se
Assim, diversos grupos sociais iniciam o consumo de tóxicos
constitui em tentativa de enquadramento no sistema social
regularmente, utilizando-os como parte de códigos éticos
dominante. Processo de construção do corpo onde a forma
e estéticos precisos, inscrevendo este uso em uma cultura
física apresenta-se como atitude não-desviante. A utiliza-
onde supõe-se que a crítica e a negação de determinados
ção destas drogas para a construção de um corpo muscu-
valores tradicionais se realizaria, ou, no mínimo, se inscre-
loso se faz não com o objetivo de subversão sistêmica, mas
veria em uma atitude hedonista contraposta a qualquer laivo
sim como tentativa de se harmonizar com os padrões esté-
de ascetismo (VELHO, 1998). As drogas tornam-se “signo
ticos vigentes na cultura dominante, sintonia que possibilite
emblemático de uma visão de mundo underground” (BIR-
aquisição de status, não apenas no interior do grupo, mas
MAN, 1993:5).
na sociedade geral. Com isso, os marombeiros fogem, ao
menos momentaneamente, do estigma, enquanto incapaci-
APOLO - REI dade de aceitação social plena (GOFFMAN, 1982). Estigma
que ameaça os usuários tradicionais de drogas dionisíacas.
Isso se realiza porque a estética que os usuários de drogas
É possível que um novo tipo de uso de drogas esteja surgin- apolíneas com elas constróem não está associada ao desvio
do, e, gradativamente, aumentando, desde a década de oi- e à marginalidade, embora seu produto de consumo para
tenta, perfazendo um processo de consumo radicado em um manutenção da forma física esteja. O marombeiro então é
universo simbólico inverso ao das drogas acima abordadas. um “desviante” peculiar, pois não é alguém “visivelmente
Este consumo aponta para um ethos ascético com profunda estigmatizado que prova uma situação de interação social
preocupação de integração aos valores constitutivos da cul- angustiada” (Idem:27). Ele desvia para se integrar. Não
tura dominante combatidos anteriormente pelos grupos da deseja “fugir do sistema”, “viajar” para outra dimensão
contracultura. Neste processo, parece ocorrer, também, tan- ou “encontrar uma verdade dentro de si” como fazem os
to por parte de homens quanto de mulheres, a busca refor- usuários de drogas dionisíacas. Sua “viagem” - se é que
çada de uma ética masculinizante que se rebate, não apenas assim pode ser chamada - é a do esforço para reforçar as
nas atitudes, nas práticas, mas, também, no plano simbólico, normas e os valores da cultura dominante. Ele, para ser
inscrevendo-se em uma estética corporal que valoriza do o que é, tem que estar em conformidade com os padrões
cultivo muscular e hierarquiza a realidade a partir de valores estéticos dominantes e buscar otimizá-los, maximizá-los,
relacionados a este cultivo. Estes valores, radicados na afir- preservando-os ou aprimorando-os sistematicamente. Suas
mação daquilo que Connel (1991) e Vale de Almeida (1995) novas representações e práticas só são novas se comparadas
denominam masculinidade hegemônica (masculinidade que ao ethos hedonista e desviante peculiar aos usuários das dro-
subordina outros tipos de masculinidade, além de perpetu- gas dionisíacas (VELHO, 1998).
ar a tradicional dominação masculina sobre as mulheres),
Até o ano de 1998 as drogas apolíneas podiam ser com-
relacionam-se freqüentemente ao consumo de drogas espe-
pradas normalmente em farmácias por qualquer um. Com o
cíficas associado à prática de exercícios físicos e ao culto
gradativo aumento de casos de morte de usuários, além de
do corpo, apontando, possivelmente, para o surgimento de
câncer, falência hepática, entre outros, noticiados por toda a
“novas” representações sociais relacionadas às concepções
imprensa7, o governo federal proibiu a venda dessas drogas
de saúde, beleza, sucesso e aceitação social.
para pessoas sem autorização médica, e impôs, mesmo aos
O uso de tais substâncias, de certa forma, proibidas no Bra- médicos, um limite de prescrição aos pacientes, passando
sil, chamadas pelos marombeiros de “bombas”, e as quais também a combater a entrada no país de anabolizantes im-
denomino drogas apolíneas, coloca, a princípio, seus usuári- portados (art.28 port. 344/98) por reembolso postal e tráfego
os na categoria de desviantes (BECKER, 1971). Apesar disto, aéreo, meios utilizados pelo narcotráfico para burlar a legis-
o processo de utilização de tais drogas se realiza em con- lação. Já que o consumo encontra-se cada vez mais limitado
textos e visões de mundo diferentes daquelas comumente por leis que fazem a posse e o uso ou venda dessas drogas
associadas aos usuários tradicionais de tóxicos. Os indivídu- um delito sancionável penalmente, a utilização freqüente de

7
Em 1995, por exemplo, foi veiculada a notícia da morte do alemão Andreas Münzer, 30 anos, campeão mundial de fisiculturismo, devido a falência hepática
pelo uso de anabolizantes. Em 1998, o fisiculturista brasileiro Enzo Perondini, 35 anos, foi à imprensa denunciar o tráfico de drogas nas academias dizendo
que estava com câncer de fígado devido ao uso contínuo de tais substâncias. Em 1999, a imprensa anunciou a morte da tri-campeã brasileira de fisiculturismo
Lúcia Helena Gomes, 33 anos, também por falência hepática devido ao uso de anabolizantes.

Arquivos em Movimento, Rio de Janeiro, v.1, n.1, p.7-16, janeiro/junho 2005 9


tais substâncias têm ficado cada vez mais restrita, limitando ou “geração fim do milênio”, mas compartilham os mesmos
a distribuição a fontes ilícitas dificilmente acessíveis às pes- valores radicados na construção de uma aparência saudável
soas comuns, além de promover o fortalecimento de um com todas as suas conseqüências. Estes indivíduos susten-
mercado negro que envolve desde o tráfico internacional tam um ethos onde há ausência de utopias sociais, aceitam
até donos de farmácias que vendem ilegalmente tais sub- a sociedade “tal como ela é”, não objetivando construir
stâncias. Desta forma, para que alguém possa começar a uti- nada de diferente do que já existe. Não são politicamente
lizar “bombas” deve também iniciar sua participação em um “de esquerda” como o grupo dos fumantes de maconha
grupo que “se encontra organizado ao redor de uma série de e consumidores de cocaína, “vanguardistas-aristocrati-
valores e atividades” (BECKER, 1971:65), compartilhando o zantes”, estudados por Velho (1998:186), nem muito me-
ethos deste grupo. nos hedonistas como o grupo de surfistas consumidores de
marijuana, também por ele estudados. São indivíduos que
Portanto, a ética ascética dos marombeiros se configura
apenas “querem subir na vida” e olham com total descon-
como atitude peculiar da “geração saúde” onde a instrumen-
fiança atitudes que não sejam compatíveis com sua ética
talização de substâncias tóxicas não passa pela busca efetiva
da disciplina. São pessoas pragmáticas que não dão muito
do entorpecimento. Alguns até utilizam entorpecentes, mas
valor à erudição e sim ao conhecimento prático que possa
redimensionam esta prática, direcionando-a para objetivos
trazer retorno financeiro rápido. Em geral, são profissionais
específicos, e mesmo novos, se relacionados às práticas dos
liberais (advogados, administradores, economistas, engen-
consumidores tradicionais. Por exemplo, a cocaína pode ser
heiros, entre outros), estudantes universitários e secundar-
utilizada - isto raramente acontece entre os marombeiros. istas. Enfim, tais pessoas são representantes de uma classe
Ouvi apenas um relato de um fisiculturista que utilizou - média carioca que tem como utopia única utopia urbana
com o objetivo de “secar” (emagrecer) o indivíduo, “definin- - segundo Velho (1971) - “morar na Barra da Tijuca”8, os-
do” (deixando os músculos mais aparentes devido a baixa tentando o status de “emergente”. Talvez seja possível
porcentagem de adiposidade), pois “ela tira a fome”. Já a afirmar que transitamos da “geração cabeça” da década
maconha pode ser utilizada para “aliviar o stress”, após um de sessenta para a “geração saúde” do final do milênio.
treinamento “pesado”, contudo esta última não é utilizada Geração que busca na ostentação da forma a demarcação
em períodos de emagrecimento, como o verão, por exem- das diferenças sociais, inscrevendo em seu corpo as visões
plo, estação onde todos desejam mostrar sua forma física e divisões de mundo que remetem às relações de poder e
nas praias, pois, segundo os usuários ela “dá muita fome e dominação constitutivas da nossa sociedade.
pode fazer engordar”. Há, nestes casos, sempre raros, a aus-
ência do aspecto de sociabilidade que os estudos de Velho
(1998) destacaram sobre o consumo de tóxicos por camadas DROGAS MASCULINIZANTES E INDIVIDUALISMO
médias urbanas da zona sul carioca. O que ocorre é um
individualismo que instrumentaliza as drogas como meio de No processo de cultivo à forma é o indivíduo, e tão-somente
otimizar a forma física, por sua vez, instrumentalizando esta ele, quem vai prestar contas ao olhar crítico e hierarquizante
última como veículo de afirmação de status, conquista de dos seus pares, além de se submeter ao escrutínio constante
parceiros sexuais em mesmo nível estético e inserção social. da fita métrica e do espelho em um processo que dele exige
Como disse, tais práticas podem insinuar o surgimento de uma conduta ascética, racional e individualista. Um caráter
uma nova dimensão comportamental relacionada à “geração sistemático e metódico, similar àquele analisado por Weber
saúde” do final dos anos noventa e início de milênio dire- (1981) em A Ética Protestante.
tamente associada à classe média em ascensão e precedida
É possível perceber, nas academias de musculação, de que
pela “geração dos yuppies” (young urban professionals) dos
maneira o indivíduo é considerado responsável pelo controle
anos oitenta os quais, assim como esta geração, desejavam
de seu corpo. Controle que é desenvolvido gradativamente
a integração plena ao sistema social como bem sucedidos e
em um crescendo que acaba por se tornar uma espécie de
abastados profissionais liberais.
conversão por ele reconhecida através da análise compara-
Nem todos os marombeiros podem ser considerados, devi- tiva que realiza da sua vida antes de se tornar marombeiro
do a sua idade, membros exemplares da “geração yuppie” e depois:

8
De acordo com Velho (1978), Copacabana foi o bairro escolhido pela classe média em ascensão na década de setenta como símbolo de distinção social. Atu-
almente o bairro da Barra da Tijuca exerce este papel na geografia carioca. Não é por acaso que neste bairro existe atualmente o maior número de academias
de musculação na cidade. (cf. JB.16/05/99.p.3)

10 Arquivos em Movimento, Rio de Janeiro, v.1, n.1, p.7-16, janeiro/junho 2005


Antes de começar a malhar eu era magrelo e envergonhado. ouviu aquela frase dos americanos: ‘no pain, no gain’; ‘sem
Não tinha coragem de chegar numa mulher. Ficava só na dor não há ganho’. É isso aí.” (Carlos, 26 anos, pequeno
minha, desanimado... Aí, entrei p’ra academia, porque empresário).
tinha um cara na minha rua que tinha entrado e tava
ficando grande e todo mundo, as garotas, falavam: ’ fulano
tá ficando bonito, tá ficando com o corpo legal...’ Eu fui Também é comum a representação do corpo como máquina:
e entrei, comecei a malhar em um ano já tava pegando
pesado e tinha aumentado dez quilos de massa magra(...)
minha vida mudou completamente. Passei a me respeitar,
...sem óleo do bom nenhuma máquina funciona legal, não
a ter coragem de olhar no espelho e de olhar o mundo nos
é? Pois é, com o corpo é a mesma coisa. Se o cara não
olhos e a conseguir o que eu queria na vida. Hoje eu sei
aplicar um óleo, uma ‘bomba’ de vez em quando ele não
que posso, eu mesmo, traçar meu próprio destino (Pedro,
fica legal, não consegue malhar bem, não. Tem que aplicar
23 anos, estudante).
pelo menos uma Deca de vez em quando p’ra dar força no
motor.” ( Afonso, 47 anos, fiscal de um orgão público).

Esta concepção individualista que confere à pessoa a capa-


cidade de fabricar seu próprio destino, chega a lembrar a
Todas estas concepções estão relacionadas à construção da
filosofia sartreana e perpassa o discurso tanto de homens
Pessoa peculiar às culturas ocidentais como indica a obra
quanto de mulheres. A ela se soma o dualismo cartesiano
de Dumont (1993). O autor escreve que “o indivíduo faz
entre corpo e mente, matéria e espírito. O corpo aparece
parte de uma configuração de valores sui generis”, ou me-
como objeto sobre o qual atua o poder da mente. Mero
lhor, “o indivíduo é um valor” (Idem:57) peculiar do mundo
instrumento que deve ser aprimorado para que o espírito
ocidental que o considera como “ser moral independente,
atinja seus objetivos. Este aprimoramento deve contar com
autônomo, e, por conseguinte, essencialmente não-social”
o imprescindível auxílio da ciência, e é neste ponto que as
(Ibidem,1985:37). Mauss, antes dos estudos de Dumont,
drogas apolíneas entram em cena:
já havia tratado desta questão, indicando que pode haver
diferentes sentidos para a vida dos homens em sociedade,
...quando alguém faz exercícios deve concentrar a força da
em conformidade com seus sistemas religiosos, seus direitos,
mente sobre o corpo. Sobre aquele músculo que ela quer costumes, estruturas sociais e mentais, ressaltando, ainda, a
desenvolver. O corpo obedece ... faz aquilo que a mente construção histórica desta categoria e demonstrando o quanto
manda (...) você pode construir o corpo que você quer, que é recente a noção de “pessoa e do eu”, identificada entre nós
você deseja; cada vez mais a ciência vai desenvolvendo “com o conhecimento de si, com a consciência psicológica”
instrumentos que fazem as pessoas superarem os limites (1971:239). A concepção do sujeito, igualitário e desatrelado
genéticos. Os anabolizantes servem p’ra isso, né?! Agora
de transcendência, livre para escolher seu projeto de vida,
tem o GH [sigla em inglês para hormônio do crescimento]9
que faz o cara crescer absurdamente e pelo que parece não mônada, que associada às outras produziria o conjunto so-
tem efeito colateral (...) Só não fica bonito e forte quem não cial, enfim, indivíduo enquanto valor, é produto de um de-
quer ou quem não tem dinheiro” (João, 29 anos, professor terminado tipo de cultura situada no tempo e no espaço e
de Educação Física). não uma verdade biológica e universal, como atestam, tam-
bém, estudos sobre o surgimento das concepções cartesianas
e mecanicistas sobre o corpo (FOUCAULT, 1980;1988;1993;
Ainda: LUZ, 1988;1993; 2003; BOLTANSKI, 1979).

o corpo pode ser fabricado se o cara tem disciplina, força de


HIERARQUIA MASCULINA E FEMININA
vontade. É claro, tem um preço... sem ‘bomba’ não cresce,
tem que tomar ‘bomba’. Cê vê, todo mundo tá tomando
anabolizante agora, essas atrizes... os atletas então... nem A construção da identidade de marombeiro se realiza por in-
se fala. Então tem que tomar, sem bomba não cresce. Já termédio de um processo de aprendizagem de socialização

9
Human Grouth Hormone é um hormônio importado, utilizado para distúrbios do crescimento e nanismo. A principal função deste hormônio é a de estimular
a divisão das células, permitindo o aumento dos tecidos e da síntese protéica. As principais marcas são Genotropin (Pharmacia Upjohn), Humantrope (Elli Lilly),
Norditropin (Novo Nordisk) e Saizen (Serono). Atualmente esta é a droga mais ambicionada pelos marombeiros, pois dizem que ela tem o poder de enrijecer
músculos, rejuvenescer a pele, ativar a libido, revitalizar o cabelo, melhorar o humor e fortalecer os ossos. Não se sabe ainda quais são seus efeitos colaterais.
É uma espécie de elixir da juventude e da força consumido em menor escala que os anabolizantes devido ao seu custo: Uma ampola custa hoje em torno de
U$ 45, 00. São usadas, no mínimo, cinco ampolas por semana. A tendência, porém, é a droga tornar-se mais barata e o consumo aumentar, pois, passará a ser
produzida em breve no Brasil pela Hormogen Biotecnologia (cf. Bartolini, 1999:20).

Arquivos em Movimento, Rio de Janeiro, v.1, n.1, p.7-16, janeiro/junho 2005 11


no que denomino campo da musculação. Utilizo a categoria magros, muito magros, os esbeltos, os gordos, gordinhos,
campo em conformidade com a teoria de Bourdieu. Para o muito gordos, e assim por diante. São a maioria no campo
autor campo se refere aos espaços em que se manifestam as e não desfrutam de capital de competência e nem capital
relações de poder simbólico. O campo se organiza, a partir corporal. Em geral são novatos que entram nas academias
da distribuição desigual de capitais, sendo que a quantidade quando o verão se aproxima ou têm pouco tempo de prática
de capitais (econômico, social, corporal, cultural ou de com- de musculação.
petência) que um indivíduo detém, determina sua posição
Em relação aos papéis femininos a hierarquia é similar
na hierarquia do campo (BOURDIEU,1986). O campo da
àquela dos homens. Os papéis são os seguintes: 1) As fi-
musculação se insere nos espaços das academias e é hierar-
siculturistas: Seguem o mesmo processo que os homens na
quizado tendo como base determinados papéis. Estes papéis
construção de um corpo hiper-musculoso. Chamam muita
podem ser resumidos em três, no que se refere aos homens
atenção, mesmo nas academias, pelo seu tipo físico que se
e mulheres. Classifiquei, como destacado anteriormente no
assemelha ao de um homem musculoso. Para conseguirem
capítulo dois, da seguinte maneira os papéis constitutivos do
tal quantidade de músculos consomem muitas drogas mas-
campo, seguindo a ordem hierárquica dos mesmos. 1) Os
culinizantes, em maior quantidade até que os homens, além
fisiculturistas: Senhores do campo, são atletas semi-profis-
de terem muitos anos a mais de musculação que estes. Es-
sionais ou profissionais que exibem musculatura exercitada,
cutei relatos nos quais diziam que freqüentemente eram
durante anos, até a distorção. Possuem um conhecimento
confundidas com travestis masculinos, pois, devido a tes-
efetivo (capital de competência) de como produzir um cor-
po musculoso e, em geral, são os que vendem anabolizantes tosterona destas drogas, têm pêlos no rosto e voz grossa,
nas academias. Quando não o fazem, sabem onde conseguir além de corpo masculinizado, com costas largas e ombros
as drogas. Disputam a legitimidade de seu discurso com os amplos. Necessário se faz ressaltar que apesar desta aparên-
professores de Educação Física que são formados em univer- cia masculina não presenciei, nem ouvi falar, de qualquer
sidades e não reconhecem sua autoridade. Os fisiculturistas, fisiculturista feminina que fosse homossexual, pelo menos
por sua vez, também, não costumam reconhecer a autori- declarada. Todas que conheci eram casadas com fisiculturis-
dade dos professores dizendo que “o conhecimento deles se tas homens ou eram namoradas destes. Estas mulheres, que
resume a teoria”. Representam, em sua forma física, o mode- se assemelham aos homens fisiculturistas, não desempen-
lo de masculinidade hegemônica ampliada, isto é, são os ham, como eles, um papel ativo no domínio do campo. Em
maiores em dimensão corporal nas academias. Verdadeiros número muito inferior que os fisiculturistas masculinos, já
ícones da forma. No aspecto ético são os que mais se aproxi- raros, elas limitam-se a acompanhá-los ou ajudar outras mul-
mam do modelo de ascetismo estudado por Weber. Exerci- heres desempenhando a função de treinadoras particulares
tam-se pelo prazer de se exercitar. Seu objetivo é o cultivo eventuais. Os homens pesquisados disseram não gostar do
de músculos cada vez maiores. São os que mais consomem padrão estético destas mulheres, da mesma forma que as
as drogas masculinizantes e constituem o menor grupo de mulheres, em sua maioria, disseram não gostar do excesso
status (WEBER,1997) nas academias; 2) Os veteranos: São de músculos dos fisiculturistas; 2) As veteranas: São as “gos-
indivíduos com massa muscular considerável, porém, dis- tosas” das academias, segundo os pesquisados. São aquelas
tante daquela exibida pelos anteriores. Ë o grupo mediano, que têm “o corpo sarado”, como dizem. Há que ser ressal-
constituído por indivíduos que já têm alguns anos de prática tado que estas mulheres são as que “mandam” no campo
de musculação. Consomem anabolizantes esporadicamente feminino da musculação. Exercem o poder de dominação na
e seu objetivo é “manter o corpo bonito”, o que indica uma economia das trocas imagéticas, já que ostentam o padrão
espécie de instrumentalização corpórea diferente daquele estético tido como exemplar pela cultura dominante e veicu-
comum entre os fisiculturistas que desejam, como foi dito, lado por toda a indústria cultural. São mestres da sedução no
acima de tudo, crescer cada vez mais. Os veteranos seriam campo. Seu poder, contudo, diferente do masculino, reside
o exemplo mais claro da masculinidade hegemônica, pois totalmente em sua estética, em sua forma corporal. São in-
não são homens comuns, como a maioria, nem ostentam vejadas e tidas como modelo por aquelas que desejam con-
musculatura ampliada ao máximo possível como os fisicul- struir forma física ao menos parecida à delas, e desejadas pe-
turistas. Segundo as freqüentadoras são os que possuem o los homens em geral, que não perdem oportunidade de lhes
corpo mais bonito, o que lhes confere, ao menos no merca- dedicar toda atenção. O tipo veterana pode ser dividido em
do sexual, um considerável capital corporal; 3) Os comuns: dois subtipos: a) a magra, que cultiva músculos com menor
Este é o grupo maior. Constituído por todas aquelas pessoas intensidade; b) a forte, mais musculosa. Todas buscam tô-
sem físico atlético. Neste grupo podem ser enquadrados os nus e definição muscular com duas peculiaridades: Todas,

12 Arquivos em Movimento, Rio de Janeiro, v.1, n.1, p.7-16, janeiro/junho 2005


também, buscam desenvolver e tornear os glúteos e fugir do um anos somente, quando o sétimo orixá foi assentado, é
padrão clássico de mulher com aspecto frágil e delicado de que a pessoa está ‘pronta’. Neste processo de ascensão na
beleza tendendo ao modelo mais roliço. Buscam a forma de ordem simbólica, efetua-se também a ascensão na estrutura
“um violão mais esbelto, mais p’ra guitarra elétrica...” como social do terreiro. Cada santo assentado significa um pata-
afirmou uma informante. De certa forma, então, tentam fugir mar ascendido na hierarquia do grupo. Quando o último
do modelo que imperou até bem pouco tempo. As veteranas assentamento se conclui o indivíduo torna-se “senhor de si
constróem o papel de mulheres ativas e independentes que e de outros”. “Senhor de si” porque controla seu transe, não
querem ser reconhecidas pela sua capacidade profissional, sofrendo mais a possessão comum aos neófitos e iniciados
liderando empreendimentos, e a forma entra neste processo mais novos; “senhor de outros” porque torna-se tata, alguém
como um item de auxílio à ascensão quando necessário e que chegou ao ápice da hierarquia social no terreiro e tor-
como um processo de auto construção de identidade. O nou-se uma pessoa completa. A pessoa, nesta concepção, é
“sentir-se bem consigo mesma, com seu corpo” é um estado considerada fragmentada, folheada e múltipla e todo o es-
mental muito valorizado que dá sensação de um poder cal- forço do sistema, realizado ritualisticamente, parece voltado
cado na autonomia. Dentre os inúmeros relatos de veteranas para fundi-la em uma grande unidade que enfim nunca se
este pode indicar o que foi dito acima: realiza plenamente, já que, segundo a cosmologia do Can-
domblé, os únicos seres plenamente unitários são os orixás.
No campo da musculação o processo é parecido. Não quero
Meu namorado me deu um ultimato: ou eu, ele disse, ou
com isso dizer que a musculação é uma religião e sim que
a academia. Não pensei duas vezes; terminei o namoro de
seis anos. Foi difícil, porque seis anos não são seis dias. determinados processos rituais são similares em instituições
Mas a minha liberdade não tem preço(...) Eu venho p’ra diferentes. Como bem notou Bourdieu “o rito propriamente
academia seis vezes por semana, deixo de comer uma religioso é apenas um caso particular dentre todos os rituais
porção de coisas p’ra ficar com o percentual de gordura sociais” (1996a:95). A construção da pessoa no fisiculturis-
baixo e faço isso já tem quatro anos. Fora os ‘ciclos’ [uso de mo das academias cariocas se realiza através da construção
anabolizantes]. Não vou parar por causa de homem que no
da forma física musculosa. Esta construção não é tão bem
fundo quer aquela mulher que ninguém olha (porque ele
delimitada como ocorre no Candomblé onde o período de
tem medo de perder) e que vai ter filhos e ficar engordando
em casa enquanto ele tem amantes na rua (Patrícia, 24 fabricação da pessoa já está mais ou menos estabelecido. Nas
anos, advogada). academias de musculação o processo é menos longo, levan-
do de dois a quatro anos. O neófito, entre os homens, pode
querer se tornar um fisiculturista ou um veterano, e, entre as
O terceiro tipo da hierarquia feminina nas academias de mulheres, a iniciante pode se tornar uma veterana - poucas
musculação é o comum que segue, mutatis mutandis, o desejam se tornar fisiculturistas. Para que isso ocorra o indi-
mesmo processo masculino: são gordas, gordinhas queren- víduo tem que adequar seu corpo à forma correspondente
do emagrecer, magras querendo “ganhar massa muscular” destes papéis sociais, e para que o processo seja rápido, de
ou mesmo - e aqui já há uma diferenciação em relação aos forma que considerem eficaz, ele necessita utilizar drogas. O
homens - mulheres com o corpo em forma apenas querendo uso da droga constitui-se aqui como “um fato social total”,
manter esta forma. acontecimento de dimensões biopsicosociais como escreveu
Mauss (1974). Cabe ressaltar, porém, a dimensão simbólica
deste uso específico. Entre os marombeiros há um rito de pas-
CONSTRUÇÃO RITUAL DE PESSOA E DROGAS sagem, ou como prefere Bourdieu (1996a), um rito de insti-
tuição, no qual o uso da droga surge como item crucial na
Goldman (1986), em artigo sobre a construção de pessoa e transição do indivíduo de um status para outro no campo da
possessão no Candomblé, indicou como o ritual tem a capa- musculação. Este relato, um entre muitos, é um pequeno
cidade de elaborar a identidade dos indivíduos no decorrer indício do que pode significar o uso de anabolizantes:
de um processo específico de interação social. Para o autor,
a fabricação da divindade - já que o santo é feito - “corre-
A primeira vez que tomei ‘bomba’ foi o Paulão que me
sponde à gênese de um indivíduo ‘novo’” (Idem:39). Esta
arranjou e me aplicou também... eu tinha muito medo, mas
construção se processa gradativamente por intermédio de sabia que mais cedo ou mais tarde eu teria que tomar se eu
ritos de passagem que fixam orixás na cabeça do indivíduo e quisesse chegar aonde eu queria. Naquele dia passei a me
simultaneamente conferem-lhe novo status no grupo - já que sentir outra pessoa... vi que começava a malhar de verdade,
o orixá é também um componente da pessoa. Após vinte e que participava de uma espécie de... acho que... segredo...

Arquivos em Movimento, Rio de Janeiro, v.1, n.1, p.7-16, janeiro/junho 2005 13


Fora isso o efeito foi muito bom. Na mesma semana já tava começa a desfrutar a sociabilidade exterior à academia, con-
pegando quinze quilos a mais no leg press [máquina de solidando sua posição no campo por intermédio do reforço
exercitar as pernas] e na semana seguinte todo mundo ‘tava
das relações sociais. O fato de ser convidado já significa
dizendo: ‘Aí, hein, tá com maior pernão... tá sarada. Diante
o reconhecimento pelo grupo de um novo status atingido
disso só dá p’ra se sentir bem, né?! Cê se sente forte, gostosa
e poderosa [risos]. (Márcia, 29 anos, economista). pelo indivíduo devido à sua forma física. Estes ritos vão de-
marcando as posições entre dominados e dominantes, entre
aqueles que são “fortes, saudáveis e bonitos” e os outros
Considero o início do consumo de anabolizantes um com- que são “fracos, doentios e feios”. Neste sentido, é possível
portamento ritual que consagra a diferença, instituindo-a. repetir com Bourdieu que as instituições são “atos de magia
Este comportamento contribuirá para ressaltar a linha de social”, pois “criam a diferença ex-nihilo” (Idem:100).
passagem entre um status - o de indivíduo comum - para a As drogas apolíneas representam item fundamental neste
condição de aspirante à outra posição superior. O que deve processo de construção estética diferencial e masculini-
ser frisado é que a hierarquia de papéis nas academias de zante. Todos (as) os(as) usuários(as) sabem que elas causam
musculação se inscreve no corpo através da forma que este câncer, impotência sexual e até mesmo morte, e, por isso
gradativamente adota, isto é, a mudança física fabricada mesmo, seu uso representa papel importante nos ritos de
significa mudança de status, pois, esta traduz a aquisição instituição que compõem a construção de identidade entre
de capital de competência - onde comprar as drogas, com os marombeiros, já que é a utilização do sofrimento infligido
quem, quais os efeitos de cada uma, para qual o objetivo ao corpo que faz com que estes ritos sejam o que são, já que
cada uma delas se presta -, além de capital corporal. os indivíduos aderem de maneira tanto mais decidida a uma
Este rito delimita a distribuição de autoridade no interior do instituição quanto mais severos e dolorosos tiverem sido os
campo através do que Lévi-Strauss (1975) denominou eficá- ritos iniciáticos a que se submeteram (cf.BOURDIEU,1996a;
cia simbólica, ou seja, o poder, que é próprio do rito, de TURNER,1974).
agir sobre a realidade agindo sobre a representação que os Os pares de oposições binárias, acima mencionados - fortes/
indivíduos fazem desta realidade. Portanto, nas academias, fracos, saudáveis/doentios, bonitos/feios - estão diretamente
ao adquirir, par i passu, um corpo musculoso, o aspirante relacionados a uma weltanschauung específica - não podem-
a marombeiro vai sendo consagrado a um novo papel. Sua os esquecer que os marombeiros são, em geral, indivíduos
identidade fragmentada vai sendo construída pelo processo pertencentes à classe média urbana em busca de ascensão -
ritual até que o indivíduo se torne um veterano ou fisicul- radicada em disposições duradouras como gostos de classe.
turista, mas, diferente do processo ritual estudado por Gold- Estes gostos, que reiteram a distinção social, se traduzem em
man (1986) no Candomblé, onde o indivíduo que se torna signos exteriores, sendo, obviamente, a forma física o signo
tata não necessita mais pagar seu sacrifício que é, no caso, a de distinção por excelência do grupo estudado. A muscula-
possessão, o marombeiro, mesmo que chegue a ser fisicul- tura rígida e evidente surge como sinal de distinção social e
turista, terá sempre que pagar o preço do sacrifício de tomar poder, sendo que ter o corpo esculpido por intermédio de
drogas e incorrer nos riscos que o consumo destas repre- máquinas e drogas é diferente de ter um corpo de trabalha-
senta, pois sua pessoa está radicada diretamente na forma dor (cf. BOLTANSKI,1979). Contudo, o aspecto mais intrig-
que seu corpo apresenta, e, como esta forma está sempre em ante deste processo de construção corporal da distinção é a
risco de se deteriorar - já que depende de drogas e exercícios adesão feminina ao culto e cultivo de uma estética masculin-
- sua identidade como marombeiro também está constante- izante. O modelo da masculinidade hegemônica - o homem
mente ameaçada. forte, destemido, independente e durão - parece estar sendo
Este processo de construção social da pessoa do marom- adotado por um número significativo de mulheres de classe
beiro é similar ao processo de construção da masculinidade, média que buscam “vencer na vida” e acham que para tal
já que o “homem de verdade” tem que estar constantemente têm que demonstrar força, não apenas em atitudes mas em
provando a si e aos outros que é forte e macho o bastante. músculos.
O rito de investidura entre os freqüentadores das academias Um exemplo etnográfico pode auxiliar-nos a compreender
se inicia primeiro através da expressão do comportamento este processo. Entre os índios piegan do Canadá existem
ritual do uso de anabolizantes, e, posteriormente, através de mulheres que são denominadas como tendo “coração de
diversos tipos de festas e eventos para as quais passa a ser homem” (HÉRRITIER,1989). Nesta sociedade patriarcal, o
convidado e que funcionam como ritual de passagem, como comportamento feminino ideal é feito de submissão, reserva,
foi abordado no primeiro capítulo. Nestas, o indivíduo doçura, pudor e humildade. No entanto, entre eles, existe

14 Arquivos em Movimento, Rio de Janeiro, v.1, n.1, p.7-16, janeiro/junho 2005


um tipo de mulher que se comporta sem reserva e modéstia, diretamente à masculinidade. Apesar de serem exemplos
com agressividade, arrogância e audácia. Os piegan homens de independência feminina, inconscientemente tais mu-
aceitam estas mulheres porque elas são poderosas. De fato, lheres - da mesma forma que vêm fazendo os homens há
para ser uma “coração de homem” é preciso ter uma posição milênios - semantizam a condição feminina tradicional, e
social elevada, e uma excelente condição econômica. Tais tudo que a ela se relaciona, como condição incompleta que
mulheres, todas casadas, conseguem orientar seus próprios deve ser evitada por todos aqueles que querem ser bem su-
assuntos sem o apoio dos homens, e, por vezes, nem de- cedidos. Contra a violência simbólica utilizam as próprias
ixam que o maridos empreendam seja o que for sem o seu categorias que a constituem enquanto tal. Não seria todo
consentimento. Algumas chegam a se comportar como ho- este movimento pós-revolução feminista de cultivo à forma
mens urinando publicamente, cantando músicas masculinas musculosa o prenúncio de uma androlatria que viria marcar
e imiscuindo-se nas conversas dos homens. O exemplo de- as relações de gênero neste início de milênio?
sta sociedade é sugestivo. Nela, estas mulheres conseguiram
Portanto, a musculação enquanto instrumento de maximiza-
impor aos homens sua aceitação. Eles, por sua vez, como
ção da forma pode radicar-se em uma prática estética rela-
indica o próprio termo que utilizam para denominá-las, clas-
cionada à uma ética baseada em classificações da realidade
sificam-nas como tendo âmago masculino.
que reproduzem, através das categorias de belo e feio, forte
Ousando seguir uma sugestão feita por Dumont: ”aquele e fraco, viril e feminil, as distinções funcionais de gênero e
que se volta com humildade para a particularidade mais ín- econômicas de classe. Na superfície fabricada dos corpos
fima é que mantém aberta a rota do universal” (1993:52), esculpidos a suor, ferro, dietas, complementos alimentares e
proponho uma breve comparação da sociedade piegan, anabolizantes, inscreve-se a visão de mundo burguesa que
nestes aspectos específicos, com a nossa. Entre eles apenas tende a reproduzir no cerne de sua economia simbólica as-
as mulheres com respaldo sócio-econômico têm consegui- pectos da própria economia monetária que a constitui en-
do realizar atos que são considerados privilégio mascu- quanto locus na estrutura social. A aparência torna-se assim
lino, e esta liberação é possível devido a este poder que uma espécie de capital corporal a ser investido em harmo-
as torna independentes dos homens. Estas mulheres ten- nia com a lógica do lucro inerente ao mercado. Mulheres
dem a adotar o ethos masculino. Por fim, existe a questão bonitas empregando sedutoramente suas formas e trejeitos
semântica que classifica independência, empreendimento trabalhados em academias na busca de homens fortes, inte-
e audácia como componentes da personalidade masculina ressantes e bem sucedidos (adjetivos que também são sím-
radicando tais itens na própria natureza biológica (GOLD- bolos de masculinidade em nossa cultura), e homens que
ENBERG,1997), já que o coração de tais mulheres é de buscam instituir e ampliar seu prestígio através da produção
homem, isto é, sua essência - se é que esta palavra pode ser da forma viril conjugada à ostentação de símbolos de poder
aplicada aos piegan - é masculina. Tudo se passa como se a que venham proporcionar-lhes status e desfrute da beleza e
masculinidade trouxesse em si todos os atributos considera- dos favores sexuais das suas pretendentes. Beleza e favores
dos necessários, tanto por homens quanto por mulheres, à que também tornam-se objetos simbólicos que contribuem
gerência da vida social (MUNIZ,1992). Toda a positividade para o aumento do prestígio masculino enquanto senhor de
de qualquer dimensão parece estar, portanto, associada à todos estes bens.
tradicional condição masculina hegemônica. Promotor,
imperioso e desbravador o sexo masculino representaria
o centro irradiador das virtudes humanas. Estas categorias The ritual use of anabolic steroids at gym’s and fitness
inconscientes, estão presentes tanto no pensamento de ho- clubs. An anthropological vision.
mens e mulheres piegan quanto no pensamento de nossos
Abstract: The aim of this article is to comprehende the
marombeiros e marombeiras urbanos de classe média ca-
ritual aspects of the anabolics steroids use at gyms clubs
rioca. Talvez isto explique a crescente busca, por parte de
presenting this substances like essencial factor for the
mulheres independentes, da adoção da ética masculina e
marombeiro (bodybuilder) person construction. It en-
do cultivo de corpos masculinizados, já que elas são obri-
phasizes the institutional masculinities construction, the
gadas a reutilizar contra os dominantes as suas próprias
practices and body representations, further on aesthetics
armas, tendo que aplicar e aceitar para demolir, as próprias
hierarchies of the group.
categorias que pretendem demolir, integrando as mes-
mas categorias contra a qual se revoltam (cf. BOURDIEU, Keywords: anabolic steroids, drugs, body practices, gen-
1996b; 1999). No inconsciente destas mulheres é possível der, masculinities, simbolic power.
que os valores considerados positivos estejam associados

Arquivos em Movimento, Rio de Janeiro, v.1, n.1, p.7-16, janeiro/junho 2005 15


REFERÊNCIAS HERRITIÉR, Françoise. Masculino/ Feminino. Enciclopédia
Einaudi. V. 20. Parentesco. Lisboa: Imprensa Nacional- Casa
da Moeda, 1989.
BARBOSA, Lívia Neves de Holanda. Tóxicos. Dicionário de
Ciências Sociais. Rio de Janeiro: FGV, 1986. LÉVI-STRAUSS, Claude. El Pensamiento Salvage. Mexico:
FCE, 1975.
BARTOLINI, Paolo. “Fórmula para Crescer” In: Notícias FA-
PESP. No. 43:20-2. São Paulo: FAPESP. Jun. 1999. LUZ, Madel Therezinha. Natural, Racional, Social. Rio de
Janeiro: Campus, 1988.
BECKER, Howard. Los Estraños. Sociologia de la deviación.
Buenos Aires: Ed. Tiempo Contemporáneo, 1971. ___________________ Racionalidades Médicas e Terapêuti-
cas Alternativas. Rio de Janeiro: IMS/UERJ. Série Estudos em
BIRMAN, Joel. Dionísios Desencantado. Série Estudos em
Saúde Coletiva. Outubro 1993.
Saúde Coletiva. Rio de Janeiro: IMS/UERJ. Agosto 1996.
____________________ Novos Saberes e Práticas em Saúde
BOLTANSKI, Luc. As Classes Sociais e o Corpo. Rio de Ja- Coletiva. São Paulo: Hucitec, 2003.
neiro :Graal, 1979.
MAUSS, Marcel. Sociologia e Antropologia. São Paulo: Epu/
BOURDIEU, Pierre. A Economia das Trocas Lingüísticas. Edusp, 1974
São Paulo: Edusp, 1996a
MUNIZ, Jacqueline. Feminino. Controvérsia do Óbvio. In:
______________ “Novas Reflexões Sobre a Dominação Physis. Revista de Saúde Coletiva. V.2. No. 1 Rio de Janeiro:
Masculina” IN: Lopes, Meyer & Waldow. Gênero e Saúde. IMS/UERJ. 1992:61-92.
Porto Alegre: Artes Médicas, 1996b.
RADCLIFFE-BROWN, R. Estrutura e Função na Sociedade
______________ “Marginália. Algumas Notas Adicionais So- Primitiva. Petrópolis: Vozes, 1973.
bre o Dom.” Mana. Estudos de Antropologia Social. Vol. 2.
TURNER, Victor. O Processo Ritual. Petrópolis: Vozes,
No. 2 MN/UFRJ. Outubro 1996: 7-19
1974.
______________ A Dominação Masculina. Rio de Janeiro:
VALE DE ALMEIDA, Miguel. Senhores de Si. Lisboa: Fim de
Bertrand Brasil,1999.
Século, 1995
CONNEL, Robert. Masculinities. Berkley: University of Cali-
VELHO, Gilberto. A Utopia Urbana. Um estudo de antro-
fornia Press, 1995.
pologia social. Rio de Janeiro: Zahar, 1978.
DA MATTA, Roberto. Carnavais, Malandros e Heróis. Rio _____________ Nobres e Anjos. Um estudo de tóxicos e hi-
de Janeiro: Zahar, 1983. erarquia. Rio de Janeiro: FGV, 1998.
DUMONT, Louis. Hommo Hierachicus. São Paulo: Edusp,
1993.

____________ O Individualismo. Rio de Janeiro: Zahar,


1985.

FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade. Rio de Janei-


ro: graal, 1980.

____________ Vigiar e Punir. Petrópolis, Vozes, 1988.

____________ Microfísica do Poder. Rio de Janeiro: Graal,


1993.

GOFFMAN, Erwing. Estigma. Notas sobre a manipulação


da identidade deteriorada. Rio de Janeiro: Zahar, 1982.

GOLDENBERG, Mirian. A Outra. São Paulo: Record, 1995. Recebido em: 27/07/2004
Aprovado em: 20/10/2004
GOLDMAN, Marcio. “A Construção Ritual da pessoa. A César Sabino
Possessão no Candomblé” Religião e Sociedade. V 2. No. 1. Correspondência: UERJ. Rua São Francisco Xavier, 7o andar
Agosto 1985: 22-55. IMS. Sala prof.a Madel Luz. E-mail: cesarsabino@aol.com

16 Arquivos em Movimento, Rio de Janeiro, v.1, n.1, p.7-16, janeiro/junho 2005

Você também pode gostar