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Lucas Brum

João Henrique da Silva


João Roque Martins

DROGAS E SAÚDE MENTAL

Santa Maria
Junho, 2019
1) INTRODUÇÃO

A vida não é totalmente minha, nem “não minha”, ela é minha e contingente a... parte
da vida é minha. Outra parte, é nossa. O trabalho em questão busca trazer uma perspectiva
histórica de fatos e circunstâncias relacionados à droga e afins, alinhando-as à atualidade e
onde a mesma se insere em contextos de saúde mental; individual e coletiva. O indivíduo,
pertencente a sociedade, direta ou indiretamente está ligado ao assunto - pois condiz com
aquilo que é nosso – e, percebendo a historicidade de tal fato, compreende-se a importância de
aprofundarmo-nos nestas relações a buscar uma melhor compreensão acerca da temática.

Conforme interesse em aproximação da temática, o indivíduo acaba por ir


compreendendo alguns mecanismos para um certo posicionamento quanto a tudo que engloba
a droga; do contrário, refletimos sobre um certo repúdio vir a ser manifestado e se isto não
estaria girando em torno de um viés cultural - uma certa política de exterminação - onde eu
sou a favor daquilo e contra aquilo, não havendo um meio termo para levarmos em
consideração. Uma cristalização do eu e não uma fluidez, fazendo-nos colocarmo-nos uns
contra os outros.

E ai que talvez queiramos chegar: Compreender que estamos na mesma barca e que a
droga faz parte de nossas vidas; partindo do pressuposto de como vamos trabalhar a partir daí,
com foco em buscar reconhecer e lidar com que o outro traz e não trabalhar com políticas
excludentes, ou mesmo querendo “tratar” este sujeito. A questão é pararmos para pensar neste
sujeito enquanto ser desejante, autônomo e consciente de suas escolhas, porém, imersos em
uma política “construtora de moral”, que, convencidos de universalidade dos valores e normas
por eles defendidos, fazem verdadeiras “cruzadas”, procurando impô-los ao conjunto de uma
comunidade (MATHIEU, 2005).

2) FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

2.1) PSICOATIVOS E SUA HISTORICIDADE

O termo “droga” designa uma substância, natural ou sintética, capaz de mudar os


estados de consciência, como por exemplo a maconha, cocaína, a heroína, o ópio, o álcool ou
os remédios psicotrópicos. O Larousse medical (1995) diferencia, sob esse ponto de vista,
quatro famílias de droga: 1) as drogas psicodepressoras, que se caracterizam por sua ação
calmante, soporífera e ansiolítica: o álcool, as drogas à base de ópio (os opiáceos),
barbitúricos, tranquilizantes (sedativos e hipnóticos) ou solventes (éter e terebintina); 2) as
drogas psicoestimulantes, como a cocaína e seu derivado, o crack, as anfetaminas, o ecstasy, e
até mesmo a cafeína, o khat ou a nicotina; 3) as drogas psicodislépticas, que apresentam
efeitos alucinógenos, como o LSD, alguns cogumelos e o haxixe; 4) por fim, certos remédios
com efeitos psicotrópicos. É importante observar que os efeitos psicoativos das diferentes
drogas não são apenas de naturezas diferentes, mas também apresentam uma intensidade
variável de uma droga para outra, algumas delas possuindo, por exemplo, propriedades
tóxicas comprovadas e severas (mesmo pequenas doses podem ser mortais para certos
organismos não habituados), ao passo que outras são consideradas menos nocivas
(BERGERON, 2012, p 13-14).

Em nossos dias ainda, a droga é investida do poder de subjugar as almas, perverter as


vontades, dissipar toda moralidade e arrebatar os sujeitos psicológica ou fisicamente
vulneráveis numa viagem sem volta. Pois bem, partindo desses pressupostos, a vontade, a
razão, a capacidade de autonomia ou a responsabilidade seriam competências que ficam
suspensas ou neutralizadas quando se é dependente? Ou, para parafrasear uma elegante
fórmula de Ehrenberg (1998): o sujeito termina na dependência? Alguns alegam ter escolhido
livremente esse caminho; outros dizem encontrar nele um prazer que não entendem por que
vem a ser condenado; outros ainda afirmam passar por ele para desenvolver certas
capacidades (com finalidades artísticas, espirituais, esportivas e de sociabilidade etc.) com as
quais não se consideram agraciados. Sejam quais forem essas razões, a verdade é que o
consumo de drogas é, há muito tempo, moralmente reprovado, medicinalmente apreendido e
juridicamente sancionado (BERGERON, 2012, p 17-18).

Além disso, o drogado seria considerado como alguém que perdeu as qualidades
essenciais que fazem um sujeito social digno e respeitável. Ogien (1998) vê aqui o sinal de
uma cultura que crê fortemente na dualidade corpo/espírito e que valoriza as noções de
integridade da pessoa, de plena consciência, de autonomia da vontade e de uma natureza
soberana. Assim, o sujeito moderno e “normal” não teria muita necessidade de recorrer ao
artifício. Segundo ele, essa imagem ideal do ser humano teria duas origens: a primeira deve
ser buscada no contexto das religiões monoteístas, para as quais Deus teria criado o homem,
determinaria seu destino e seria o único a conhecer sua essência. Desses postulados foram
extraídos os princípios de inviolabilidade e unicidade do envelope corporal, estipulando que
qualquer tentativa de modificar seu destino deveria ser banida. A segunda se situa no contexto
de uma concepção particular da natureza, que institui a integridade da pessoa como um valor
essencial e convoca o indivíduo a não tentar esquivar-se das leis que regem o mundo natural
dos vivos. Assim, modificar-se, recorrer a artifícios, seria carecer de autenticidade. Segundo
Ogien, o uso de droga é sistematicamente associado a quatro características que negam esses
valores essenciais: decadência, compulsão, irresponsabilidade, animalidade. Essas
características ameaçariam, assim, a integridade da pessoa. (BERGERON, 2012, p 18-19).

Reconhecemos aqui uma certa ligação cultural da droga com uma espécie de
degradação corporal e mental, onde o sujeito que faz uso inevitavelmente irá deparar-se com
essas situações, prejudicando a sua vida, além de seu entorno. Mas até onde essas informações
são precisas e concretas? Até que instância não se servem como um marcador social, onde há,
intrinsicamente, o desejo de repúdio aos alteradores de consciência, desconsiderando por
completo as vontades do próprio sujeito?

Bennett (1986) certamente está entre os que levaram mais longe possível a utilização
desse quadro de análise. Tendo como base a entrevista de 135 indivíduos, divididos em seis
amostras diferentes, num estudo que realizou entre 1982 e 1984, ele mostra que as escolhas e
decisões dos indivíduos considerados representam um papel-chave nos processos de iniciação,
continuação e cessação do consumo. Embora reconheça pesquisas que atribuem um papel
decisivo às significações garantidas pelos atores sociais, ele critica neste último o fato de não
prestar maior atenção aos processos de decisão em si mesmos, processos que são, entretanto,
cruciais na explicação sociológicas do uso. Bennet apresenta, assim, os resultados de seu
estudo: 1) a maioria das pessoas estudadas começou a consumir essas substâncias com um
amigo, e não, como muitos acreditam, por injunção de traficantes; 2) a maioria dos usuários
confessa ter tomado a decisão de iniciar-se na prática antes da data efetiva de experimentar, e
explica que tomou a decisão conscientemente, esperando a oportunidade propícia à realização
dessa experiência. Assim, essa decisão deve ser considerada, adianta Bennett, como o fruto de
uma deliberação. A primeira das razões invocadas é a curiosidade; a segunda consiste em
querer fazer como os amigos ou conhecidos, seja para se sentir mais bem integrado no grupo,
seja para dividir essa experiência com pessoas próximas, seja para atender ao desejo de
tornar-se membro da comunidade de usuários; 3) a adição leva tempo para se instalar (pelo
menos um ano para as pessoas entrevistadas). Bennett não identificou nada de compulsivo ou
inevitável nos relatos de iniciação narrados pelos usuários; 4) mesmo quando se tornam
dependentes, os indivíduos são capazes de controlar o próprio consumo. Há, inclusive, os que
interrompem o uso durante dias, semanas ou mesmo anos. Alguns decidem parar quando essa
prática perturba manifestamente sua capacidade de se divertir ou se opõe significativamente a
sua atividade profissional. Assim, equilibram o consumo e sua frequência em função dos
custos e benefícios que, a certa altura, ele engendra em suas trajetórias; 5) entre as razões para
continuar, pouquíssimos mencionaram a necessidade de evitar a dor ligada à crise de
abstinência. Suas razões são mais positivas que essa: eles simplesmente gostam de usar droga;
6) as razões da interrupção são mais diversas: encontro de um parceiro estável, casamento ou
espera de um bebê.

As conclusões lhe parecem evidentes: a toxicomania (consumo compulsivo de


substâncias ativas sobre o psiquismo) deve ser compreendida como um processo intencional,
que permite o controle do uso, e as razões que presidem a interrupção nada têm a ver com
uma desintoxicação bem-sucedida (à qual geralmente chegam por si mesmos, estando mais
certamente relacionadas às mudanças que ocorrem em seu estilo de vida e que tornam a
abstinência ao mesmo tempo possível e desejável). Portanto, há que se olhar a toxicomania
pelo prisma particular da “escolha racional”, e não sob a ótica da patologia individual ou
social. Essas perspectivas, demasiado deterministas, são incapazes de explicar as variações do
uso, na escolha do produto e das doses no tempo. (BERGERON, 2012, p 63-65).

A droga e a toxicomania, que está associada a ela de modo quase inseparável, há muito
tempo passaram a constituir as jurisdições do direito e da medicina. Considera-se que as
drogas, cujo uso e comércio estão proibidos por lei, possuem um poder assustador: o de
introduzir o sujeito na animalidade e na decadência moral e social. No entanto, nem sempre
foi assim, nem em todo lugar.

Sabe-se nos dias de hoje que vivemos em uma sociedade que, além de ser movida pela
tecnologia, acabou criando uma certa “cultura da droga”. Porém, é importante analisarmos
como esse fato se estabeleceu do ponto de vista histórico e o que é exatamente a droga. De
acordo com Bergeron (2012, p.7)

O consumo de substâncias que têm o poder de modificar os estados de consciência


(efeitos conhecidos como psicoativos), das quais (algumas delas) se pode dizer que
são capazes de produzir “dependência” e engendrar a “toxicomania”, e que as
convenções internacionais e as legislações nacionais classificaram como
“entorpecentes”, já se tornou um fato social bem-estabelecido: com efeito, o uso
daquilo que se designa habitualmente como “drogas” (ópio, heroína, maconha etc.)
se desenvolveu nas sociedades ocidentais no final do século XIX, difundindo-se de
modo mais abrangente a partir dos anos 1960, nos Estados Unidos, em seguida na
Europa e, hoje, em muitos outros países.
Geralmente quando falamos em drogas o que vem à cabeça são as drogas ilícitas,
porém a droga é tudo aquilo que pode modificar os estados de consciência do sujeito,
independente da sua legalidade ou não. Por exemplo, segundo Bergeron (2012) “nem todas as
substâncias psicoativas, como o álcool, mas também o tabaco e os remédios psicotrópicos, são
classificadas juridicamente como entorpecentes, veiculando essa diabólica reputação”. Então,
do ponto de vista histórico, é necessário compreender que a premissa de uma droga ser lícita
ou ilícita depende muito mais de uma convenção social e cultural do que dos benefícios e/ou
malefícios que ela pode trazer.

Historicamente, o uso de drogas acompanha os seres humanos há um bom tempo, ou


seja, “da mastigação da folha de coca, nos Andes, passando pela ingestão de peiote (certo tipo
de cacto alucinógeno), praticada pelo povo huichol, no México (Cardinal, 1988), até o
consumo de álcool fermentado no Sudeste asiático” (Bergeron, 2012, p.19). Dessa forma
conseguimos observar que, inicialmente, o uso de drogas era realizado mais por uma questão
medicinal, espiritual ou religiosa. Além disso, as drogas destinadas ao campo espiritual e
religioso acabavam sendo uma maneira de unificar as pessoas que participavam de
determinados rituais, de forma que ela conectava os sujeitos que ali se encontravam para tal
prática. Porém, “a droga também serve para marcar as diferenças sociais, e seu uso regulado
constitui um meio de reafirmar a hierarquia social que existe entre os membros da
coletividade e aqueles que gozam de acesso exclusivo à utilização dessas substâncias”
(Dugarin e Nominé, 1987). Atualmente no Brasil conseguimos ver que a pessoa que vem da
periferia e possui uma carência financeira acabará por “usufruir” de uma droga mais barata, já
o indivíduo de classe alta poderá comprar uma substância de maior valor. Essas diferenças
sociais e culturais é um dos motivos que acabam por marcar a hierarquia que se desenvolveu
no nosso país.

Vemos que o uso de drogas (lícitas e ilícitas) é uma prática que perpassa boa parte da
história da humanidade, corroborando com essa afirmação vemos que segundo Labate; Fiore e
Goulart (2008, p.23) “o consumo sistemático de um grande conjunto de substâncias capazes
de alterar o comportamento, a consciência e o humor dos seres humanos é comprovadamente
milenar. No entanto, sua elevação à categoria de problema social é historicamente recente,
nada que alcance, com muita boa vontade, muito mais do que um século”. Pensamos que
muitos efeitos do sistema capitalista em que vivemos somado com determinadas alterações
que o avanço da tecnologia tem demonstrado possa ser alguns dos motivos que o uso de
drogas tenha se tornado um problema social. Não obstante, consequências como o aumento da
violência, miséria e doenças também são fatores decorrentes da sociedade em que vivemos e
que muitas vezes acabam fazendo com que os sujeitos procurem uma saída fácil e prazerosa
para o problema: a droga. Dessa forma, um dos grandes causadores do aumento do uso de
drogas e a sua migração de uso medicinal para o uso “desregulado” foi a Revolução
Industrial, pois segundo Bergeron (2012, p. 24) “no Reino Unido, foco da Revolução
Industrial, muito usuários são camponeses, mas muitos outros trabalham em fábricas e moram
em grandes conjuntos urbanos”. Assim vemos que o trabalho exaustivo e repetitivo fez com
que esses trabalhadores procurassem um prazer temporário, pois “se deve considerar esse
fenômeno como consequência do nascimento de uma classe operária que tentaria esquecer sua
condição de precariedade e dificuldade econômica mediante o consumo regular das
substâncias psicoativas” (Bergeron, 2012, p. 25).

Portanto, as drogas hoje em dia são vistas mais como uma forma de escape para algum
sofrimento que o sujeito esteja passando do que como uma ferramenta medicinal. Segundo
Bergeron (2012, p. 28)

o período posterior à Segunda Guerra Mundial marca o início de uma “grande


epidemia” (Bachmann e Coppel, 1989), principalmente nos Estados Unidos, onde os
anos 1950 são os palcos de uma verdadeira explosão do consumo. Com alguns anos
de diferença, em meados dos anos 1960, com maior certeza em meados dos anos
1970, a Europa parece seguir o exemplo de seu aliado americano. A droga se instala
duravelmente nas sociedades ocidentais e começa a introduzir-se em todas as
categorias sociais.

Dito isso, é necessário ressaltar que com essa banalização do uso de drogas cria-se
uma cultura tanto do uso quanto da droga vista como um malefício e algo a ser banido e
proibido da sociedade. De acordo com Labate, Fiore e Goulart (2008, p. 23) “desde que as
“drogas” e seu uso se tornaram uma questão social relevante, a produção de conhecimento a
seu respeito foi, com raras e valiosas exceções, pautada pela lógica da negatividade: não se
pode estudar, pensar e discutir a questão do uso de “drogas” sem um posicionamento
claramente entrincheirado – a trincheira capaz de conter esse mal”. Portanto, ao invés do uso
de drogas ser visto como um direito do sujeito e, a partir disso discutir políticas públicas para
os usuários, a pauta do uso de drogas passou a ser discutida com um posicionamento
proibicionista e raso. Faugeron e Kokoreff (2002) são muito incisivos ao dizerem que “deve-
se aceitar a evidência: a sociedade moderna é uma sociedade com drogas”. Atualmente
obtivemos avanços relacionados a um olhar mais clínico e sensível ao uso de drogas, de forma
que a ideia reducionista de ver a droga como algo a ser banido da sociedade já não tem tanta
força, porém esse é um debate que no Brasil levará anos para ser melhor elaborado.

2.2) POLÍTICAS PÚBLICAS PARA USUÁRIOS

O consumo de álcool e de outras drogas tornou-se uma prática habitual preocupante


em todo o mundo. Há estudos que mostram que cerca de 10% da população urbanizada de
todo o globo já fez uso abusivo de drogas e que somente o uso de álcool é responsável por
3,2% das mortes que ocorrem no mundo (Pinho et al, 2008). Segundo o relatório emitido
pelas Nações Unidas sobre drogas e crimes, 68,7% da população brasileira já consumiu álcool
em algum momento da vida, sendo que 11,2% apresentam dependência. Este mesmo relatório
revela a prevalência do uso de outros tipos de drogas pela população brasileira, bem como a
cocaína, a maconha, a anfetamina e o ecstasy (GALDURÓZ; CAETANO, 2004).

A partir do que foi observado no II levantamento domiciliar sobre o uso de drogas


psicotrópicas, realizado aqui no Brasil em 2005 pelo Cebrid (Centro brasileiro de
informações sobre drogas psicotrópicas), verificou-se que 12,3% das pessoas que
participaram da pesquisa, com idade entre 12 e 65 anos, fazem uso contínuo de bebidas
alcoólicas (são dependentes do álcool), e aproximadamente 75% já haviam feito uso do
álcool pelo menos uma vez na vida ( Carlini et al., 2007).

Com base nos resultados de um estudo realizado pela Universidade de Harvard,


constatou-se que dentre as dez doenças mais incapacitantes, metade delas são de natureza
psiquiátrica, como: a depressão, o transtorno afetivo bipolar, o alcoolismo, a esquizofrenia e o
transtorno obsessivo-compulsivo (Ministério da Saúde, 2003). Na maioria das vezes a
assistência direcionada aos problemas relacionados com o uso de álcool e outras drogas
sempre esteve conectada a um modelo assistencial psiquiátrico, o qual ficou marcado pela
violação dos direitos humanos e por não dispor de um serviço de cuidado de qualidade ao
usuário. Sendo que, os cuidados dispensados ao usuário esteve centrado no modelo
hospitalocêntrico (Ministério da Saúde, 2003).

Porém com a aprovação da Lei 10.216 em 2001, ocorreram mudanças significativas


referente ao desenvolvimento das práticas e da construção dos saberes ligados à assistência à
saúde mental. Essas mudanças garantiram para os usuários dos serviços de saúde mental e
também para aqueles que sofrem com transtornos decorrentes do uso de álcool e outras drogas
a universalidade de acesso e direito à assistência, bem como a sua integralidade, valorizando
a territorialização do atendimento. Foram criadas redes assistenciais de atendimento ao
usuário com a intenção de evitar o isolamento do indivíduo e de excluí-lo do convívio social
(Pinho et al., 2007).

De acordo com o Ministério da Saúde (2007), até o ano de 2001 não havia grande
interesse por parte da saúde pública brasileira em criar medidas políticas para o grave
problema da prevenção e tratamento dos transtornos associados ao álcool e outras drogas. O
que predominava nessa época em relação a essa problemática eram “alternativas de atenção’’
de caráter fechado, baseadas em práticas de natureza medicamentosa, disciplinar ou de
cunho religioso-moral, reforçando o isolamento social e o estigma.

Mas a partir de 2002, surge uma nova Política Nacional Específica para Álcool e
Drogas, criada pelo Ministério da Saúde. Essa nova política tem como objetivo principal
prevenir, tratar e reabilitar os usuários, segundo a lei 10.216/1, marco legal da Reforma
Psiquiátrica no Brasil. A partir de então, os Centros de Atenção Psicossocial em Álcool e
Drogas (CAPSad) tornaram-se a mais importante estratégia de tratamento, junto com a
estratégia de redução de danos; ambos considerados hoje, como sendo ferramentas
importantíssimas que são utilizadas nas ações de prevenção e promoção de saúde (Pinho et
al., 2007).

Foi através da portaria GM/MS n.336, que houve a redefinição dos CAPS, sendo que
estes foram constituídos dentro das seguintes modalidades de serviço: CAPS I, CAPS II e
CAPS III, definidos por ordem crescente de porte, complexidade e abrangência populacional.
Foi através dessa portaria que os Centros de Atenção Psicossocial Álcool e outras Drogas
foram instituídos na modalidade II ( CAPS ad II). O CAPS ad configura um serviço de
Atenção Psicossocial, o qual presta atendimento a pacientes com transtornos decorrentes do
uso e dependência de substâncias psicoativas. Para isso, o serviço deve ser constituído por
uma equipe mínima, onde o profissional enfermeiro deve estar presente (VARGAS;
DUARTE, 2011).

O alvo principal para implantação destes dispositivos foram as grandes regiões


metropolitanas, as quais possuem indicadores epidemiológicos relevantes, assim como, vastas
experiências em relação ao manejo com os problemas de álcool e outras drogas na atenção
básica, contam com redes de suporte social, estrutura de atendimento hospitalar de urgência e
emergência e rede hospitalar de retaguarda para esses usuários. Os Centros de Atenção
Psicossocial em Álcool e Drogas foram criados com intuito de prestar atendimento à
população, tendo uma área de abrangência definida, onde promove atividades terapêuticas e
preventivas à comunidade (Ministério da Saúde, 2017).

É interessante ressaltar que o ponto evidenciado a atenção psicossocial oferecida pelo


CAPS ad, que presume o acolhimento de pessoas dependentes de álcool e drogas, se
estabelece através de um conjunto de ações que objetivam a substituição da lógica
manicomial como pilar principal de sustentação teórica para o cuidado em saúde mental,
reconhecidas como um paradigma das práticas dominantes. A partir desse novo modelo de
atuação com a saúde mental do sujeito, entende-se que “a loucura e o sofrimento não têm de
ser removidos a qualquer custo, eles são reintegrados como parte da existência, como
elementos componentes do patrimônio inalienável do sujeito.” (COSTA-ROSA, 2000, p.155).

3) CONCLUSÃO

O consumo de substâncias psicoativas popularmente referidas como “drogas” é


fenômeno recorrente e disseminado em diversas sociedades humanas e em diferentes
momentos de suas histórias. Do ponto de vista do campo de estudos da cultura e da política,
no seu sentido mais amplo, a existência e o uso de substâncias que promovem alterações na
percepção, no humor e no sentimento são uma constante na humanidade, remontando a
lugares longínquos e a tempos imemoriais. Ao mesmo tempo, porém – e isso é crucial –, os
múltiplos modos pelos quais essa existência e esses usos são concebidos e vivenciados variam
histórica e culturalmente. “Drogas” não são somente compostos dotados de propriedades
farmacológicas determinadas, que possam ser natural e definitivamente classificadas como
boas ou más. Sua existência e seus usos envolvem questões complexas de liberdade e
disciplina, sofrimento e prazer, devoção e aventura, transcendência e conhecimento,
sociabilidade e crime, moralidade e violência, comércio e guerra.

Apesar do crescente reconhecimento da relevância de abordagens, estudos e pesquisas


que enfatizam esses aspectos culturais do uso de “drogas”, ainda persiste uma tendência a
atribuir maior legitimidade aos estudos sobre o assunto desenvolvidos no âmbito das ciências
da saúde: como a medicina, a farmacologia e a psicologia. As abordagens sociais tendem a ser
levadas em consideração somente quando são realizadas no âmbito do crime, do tráfico, da
violência urbana ou da pobreza, sendo desvalorizadas quando enfrentam diretamente a
questão do uso de “drogas” e os usos culturais. A incapacidade de lidar com a complexidade
do fenômeno das “drogas” e essa opção por um tratamento unilateral influencia o campo
político, onde se percebe o empobrecimento das análises e a ausência dos aspectos
socioculturais na concepção das políticas públicas direcionadas a elas

Em síntese observou-se que a entrada do sujeito no mundo das drogas é muito relativa,
podendo estar ligada a diferentes fatores, bem como de ordem emocional, de ordem cultural,
pela vontade do próprio sujeito ou pelo fato dele querer se sentir pertencente a um grupo etc.
Muitas vezes ao invés de banalizar o uso destas substâncias ou crucificar o usuário é preciso
enxergar o outro lado da questão. Todos nós somos livres, ou pelo menos pensamos que
somos, para fazer nossas escolhas e exercer nossa autonomia. Demonizar o uso ou aquele que
depende de uma determinada substância não resolve o problema.

É crucial, portanto, compreender a interpretação que os sujeitos dão à experiência com


as “drogas”, de seu estado, da motivação que os impele a um consumo repetido de
determinada substância, dos sentidos e razões pelas quais a consideram importante ou
indispensável para satisfação de determinadas metas e necessidades.

Cabe, ainda, uma consideração sobre os vários modelos de “prevenção” ao chamado


“uso indevido de drogas”. Entre os especialistas tem sido cada vez mais consensual que as
políticas de “repressão” ou “demonização” do uso de drogas se mostraram historicamente
ineficazes. As propostas caminham muito mais no sentido da informação e da educação,
tornando disponível para a sociedade, principalmente os jovens, um conjunto de informações
mais precisas sobre as “drogas” e seus efeitos. Todo um arsenal de técnicos e especialistas –
ao lado da figura emergente do “usuário profissional” – vêm disputando espaços e recursos
estatais e privados para desenvolver projetos de “prevenção”, nas suas modalidades primária
ou secundária. Outra possível forma de evitação do “uso problemático” de “drogas” –
problema real, que aflige a muitos, podendo trazer consequências cruéis e muitas vezes
irreversíveis – é propor um olhar diverso sobre o tema, retirando-o do lugar de fala onde
habitualmente se encontra.

REFERÊNCIAS

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