Você está na página 1de 14

DOI: 10.

5902/ 2317175817461 69

DEPENDÊNCIA QUÍMICA E TRABALHO VOLUNTÁRIO: ajuda ao


outro ou continuação da reabilitação?*

ADDICTION AND VOLUNTEER: Help each other


or continue rehabilitation?

Pâmela Koch1 e Amanda Saraiva Angonese2

Recebido em: 28/03/2015


Aprovado em: 11/11/2015

RESUMO ABSTRACT

Poucas pessoas estão dispostas a se doar frente Few people are willing to donate facing a re-
a uma realidade já vivenciada, principalmente ality already experienced, especially when it
quando este é um fato doloroso de ser lembrado. is a painful fact to remember. Therefore, this
Sendo assim,o presente estudo teve como objeti- study aimed understand the reasons of an ex-
vo principal entender os motivos que levam um drug user to volunteer in a therapeutic com-
ex-usuário de drogas a se voluntariar em uma co- munity. It also sought find what are the diffi-
munidade terapêutica. Buscou também verificar culties faced of the volunteer workers and the
quais são as dificuldades encontradas pelo traba- feelings of the volunteer work. For this, five
lhador voluntário e suas emoções frente ao traba- male people have been interviewed, ex-users
lho voluntário. Para isso, foram entrevistadas cin- of illicit drugs, that were working voluntar-
co pessoas do gênero masculino, ex-usuários de ily in a therapeutic community. Methodo-
drogas ilícitas, que estavam trabalhando em uma logically, was used the qualitative research
comunidade terapêutica voluntariamente. Meto- with content analysis, using as instrument for
dologicamente, foi utilizada a pesquisa qualitativa collection of data a semistructured interview.
com análise de conteúdo, tendo como instrumento From the analysis of the participants report,
para a coleta de dados uma entrevista semiestru- was possible realize that their motivation is
turada. A partir da análise dos relatos dos partici- help others. At the same time, however, the
pantes,foi possível perceber que a sua motivação volunteering is seen by the interviewees as a
consiste em ajudar o outro. Ao mesmo tempo, way to continue their treatment, which leads
contudo, o voluntariado também é visto pelos to feelings of spirituality and recognition.
entrevistados como mais uma forma de continuar While the main difficulties found are linked to
o seu tratamento, que origina sentimentos como interpersonal relationships and how to han-
espiritualidade e reconhecimento. Já as principais dle with their feelings facing the other.
dificuldades encontradas por estes trabalhadores Keywords: Addiction; Volunteer work; Ther-
estão interligadas aos relacionamentos interpes- apeutic communities; Motivation.
soais e ao fato de ter de lidar com os próprios sen-
timentos frente ao outro.
Palavras-chave: Dependência química; Trabalho
voluntário; Comunidades terapêuticas; Motivação.

*Trabalho de Conclusão de Curso apresentado como pré-requisito para a obtenção do título de Graduada em Psicologia, da Universidade do Oeste de
Santa Catarina (UNOESC), Unidade de Pinhalzinho.
1
Acadêmica do curso de Psicologia pela UNOESC, Brasil. E-mail: pame_koch@hotmail.com.
2
Psicóloga e Professora do curso de graduação em Psicologia da UNOESC (Universidade do Oeste de Santa Catarina), Brasil. Especialista em Psicologia
Hospitalar pelo Hospital de Clínicas de Porto Alegre/UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul), Pós-graduada em Saúde Mental Coletiva pela
UNOESC. E-mail: amanda.angonese@unoesc.edu.br.

SOCIAIS E HUMANAS, SANTA MARIA, v. 28, n. 02, mai/ago 2015, p. 69 - 82


70 Pâmela Koch E Amanda Saraiva Angonese

1 Introdução Entender os motivos que levam


um ex-usuário de drogas a buscar o
A Organização Mundial de Saúde voluntariado, mesmo este sabendo que
(OMS) define a dependência química poderá enfrentar uma realidade que já
como o estado psíquico e algumas vezes vivenciou, é de suma importância, pois
físico resultante da interação entre um existem poucas pesquisas sobre este as-
organismo vivo e uma substância, carac- sunto e, muitas vezes, os voluntários não
terizando-se por modificações de com- têm alguém que os escute e os entenda,
portamento e diversas outras reações que de forma que acabam guardando para
sempre incluem o impulso a utilizar a si as suas angústias e emoções. O prin-
substância de modo contínuo ou perió- cipal motivo para a escolha deste tema
dico com a finalidade de experimentar foi que, após o contato com dois jovens
seus efeitos psíquicos e, algumas vezes, ex-usuários de drogas e que trabalham
de evitar o desconforto da privação, con- voluntariamente em uma comunidade
forme a Universidade Aberta do Sistema terapêutica, começou-se a refletir sobre
Único de Saúde (UNA-SUS), [20--]. o que os motiva a, sem nenhuma re-
Segundo a Classificação de Transtornos muneração, escolher entrar em contato
Mentais e de Comportamento (CID-10) com situações já vivenciadas, sabendo
(1993), a dependência é um conjunto de que isso poderá mobilizar sentimentos
fenômenos fisiológicos, comportamen- como a angústia, por exemplo.
tais e cognitivos, em que o uso de uma
ou mais substâncias alcança uma prio- 2 Fundamentação teórica
ridade muito maior para o indivíduo do
que outros comportamentos que antes 2.1 Dependência química
tinham um maior valor.
O objetivo principal deste artigo “A droga é apenas um dos fatores da
foi entender os motivos que levam um tríade que leva à dependência, os ou-
ex-usuário de drogas ase voluntariar em tros dois são o indivíduo e a socieda-
comunidades terapêuticas. Este estu- de na qual o indivíduo e a droga se
do buscou, assim, verificar os motivos encontram” (FONSECA; LEMOS,
2011, p. 25-26).
atrelados à busca do trabalho voluntá-
rio,bem como as dificuldades enfren-
O consumo de drogas sempre exis-
tadas pelo trabalhador voluntário e os
tiu no mundo, não sendo um fenômeno
sentimentos inerentes a esse processo.
novo como muitas pessoas pensam, mas
O ex-usuário de drogas que esco-
uma prática milenar e universal. Porém,
lhe trabalhar voluntariamente em uma
segundo Pratta (2009, p. 203), é impor-
comunidade terapêutica com depen-
tante pontuar que os hábitos e costumes
dentes químicos em tratamento estará
de cada sociedade é que direcionavam o
sujeito a se deparar com uma realidade
uso das substâncias em rituais, festas e
vivenciada por ele anteriormente, assim
cerimônias coletivas, caracterizando um
como poderá ter de enfrentar situações
consumo que era restrito a pequenos gru-
em que se sentirá desvalorizado e/ou
pos, diferentemente dos tempos atuais,
desconfortável e dificilmente contará
em que esse uso ocorre em quaisquer cir-
com apoio psicológico, tendo, portanto,
cunstâncias e por pessoas de diferentes
de enfrentar suas dificuldades sozinho.
grupos e realidades.
Também estará longe de sua família e
Segundo o Manual Diagnóstico
do conforto do lar, não podendo (de-
e Estatístico de Transtornos Mentais
pendendo da comunidade escolhida) se
(DSM - IV, 2002, p. 208):
casar e ter filhos, de modo que terá de
viver com o vínculo afetivo apenas da
comunidade terapêutica.

SOCIAIS E HUMANAS, SANTA MARIA, v. 28, n. 02, mai/ago 2015, p. 69 - 82


DEPENDÊNCIA QUÍMICA E TRABALHO VOLUNTÁRIO:
ajuda ao outro ou continuação da reabilitação?
71

A característica essencial da depen- de substância (como fumar


dência de substância consiste na em grupo) ou para se recupe-
presença de um agrupamento de sin- rar de seus efeitos;
tomas cognitivos, comportamentais 6. importantes atividades so-
e fisiológicos indicando que o indi- ciais, ocupacionais ou re-
víduo continua utilizando uma subs-
tância, apesar de problemas signifi-
creativas são abandonadas
cativos relacionados a ela. Existe um ou reduzidas em virtude do
padrão de autoadministração repetida uso da substância;
que geralmente resulta em tolerância, 7. o uso da substância conti-
abstinência e comportamento com- nua, apesar da consciência
pulsivo de consumo da droga. de ter um problema físico ou
psicológico persistente ou
Ainda segundo o DSM-IV decorrente que tende a ser
(2002), a dependência é definida como causado ou exacerbado pela
um agrupamento de três ou mais dos substância (por exemplo, uso
seguintes sintomas, ocorrendo em um atual de cocaína, embora o
período de 12 meses: indivíduo a reconheça como
indutora de sua depressão,
1. tolerância, definida pela ne- ou consumo continuado de
cessidade de quantidades bebidas alcóolicas, embora
progressivamente maiores o indivíduo reconheça que
da substância para obter a uma úlcera piorou devido ao
intoxicação ou o efeito de- consumo do álcool).
sejado,ou pela acentuada re-
dução do efeito com o uso Existem diversos fatores de risco
continuado da mesma quan- envolvidos no surgimento da depen-
tidade de substância; dência química. Dentre estes, desta-
2. abstinência, manifestada cam-se os fatores: biológicos, como a
por quaisquer dos seguintes predisposição genética, a capacidade
aspectos:Síndrome de absti- de tolerância do cérebro, a capacidade
nência característica da subs- de metabolização do corpo e a natureza
tância; A mesma substância farmacológica da substância; psicológi-
(ou uma substância estreita- cos, como os distúrbios do desenvolvi-
mente relacionada é consu- mento, as morbidades psiquiátricas, os
mida para avaliar ou evitar problemas de comportamento, a baixa
sintomas de abstinência); resiliência, as limitadas habilidades so-
3. a substância é frequentemen- ciais e a expectativa positiva quanto aos
te consumida em maiores efeitos da substância de abuso; e os fa-
quantidades ou por um perío- tores sociais, como a estrutura familiar,
do mais longo do que o pre- a escolaridade, a exclusão e a violência
tendido; social, a pressão do grupo para o con-
4. existem um desejo persisten- sumo e o ambientenão saudável com
te ou esforços malsucedidos características que podem levar/estimu-
no sentido de reduzir ou con- lar aoconsumo (MARQUES, 2006). Se-
trolar o uso da substância; gundo Fonseca (2011), todas as drogas
5. muito tempo é gasto em ati- capazes de causar euforia e alívio da dor
vidades necessárias para a têm uma característica em comum: elas
obtenção da substância (por liberam dopamina, pois atuam de ma-
exemplo, consultas a vários neira diferenciada no circuito de prazer
médicos ou longas viagens ou recompensa.
de automóvel), na utilização

SOCIAIS E HUMANAS, SANTA MARIA, v. 28, n. 02, mai/ago 2015, p. 69 - 82


72 Pâmela Koch E Amanda Saraiva Angonese

Relacionada à dependência quí- É importante, também, destacar


mica, há o policonsumo de Substâncias que, em 1976, o National Instituteon-
Psicoativas (SPAs), que é o consumo Drug Abuse (NIDA) patrocinou nos Es-
concomitante ou consecutivo de dife- tados Unidos uma conferência de plane-
rentes drogas lícitas e/ou ilícitas. Este jamento das comunidades terapêuticas,
policonsumo está se tornando regra en- em que “profissionais reuniram-se para
tre os usuários. deliberar e esclarecer a natureza e o pro-
pósito das CTs como tratamento para o
A associação de substâncias pode abuso de substâncias psicoativas (SPA)”
estar relacionada à busca de maximi- (FRACASSO, 2011, p. 63). Ao longo
zação de sensações percebidas como das últimas décadas, profissionais e par-
prazerosas pelo usuário, minimiza- ticipantes de comunidades terapêuticas
ção de efeitos relacionados à intoxi-
de todo o mundo enfrentam a tarefa de
cação e abstinência e também pode
refletir a disponibilidade de drogas e definir esta modalidade de tratamento,
os padrões de consumo próprios de com intensa participação nas discussões
meios ou contextos específicos. Em realizadas pelas Federações Nacionais,
qualquer desses cenários, é funda- Internacionais e Mundial de Comunida-
mental que o poliuso seja detectado des Terapêuticas (FRACASSO, 2011).
e considerado tanto nas abordagens As comunidades terapêuticas são:
psicoterápicas quanto nas farmacoló-
gicas nos diferentes níveis de atenção Instituições provadas, sem fins lu-
(AZEVEDO, 2011, p. 119). crativos e financiadas, em parte,
pelo poder público. Oferecem gra-
2.2 Comunidades terapêuticas tuitamente acolhimento para pessoas
com transtornos decorrentes do uso,
Segundo Fracasso (2011), em abuso ou dependência de drogas. São
agosto de 1959, em Santa Mônica (Ca- instituições abertas, de adesão exclu-
sivamente voluntária, voltadas a pes-
lifórnia), foi fundada a primeira co-
soas que desejam e necessitam de um
munidade terapêutica, chamada Syna- espaço protegido, em ambiente resi-
non, por Charles (Chuck) Dedrich, um dencial, para auxiliar na recuperação
dependente de álcool em recuperação da dependência à droga. O tempo de
que uniu suas experiências de irman- acolhimento pode durar até 12 meses.
dade de alcoólicos anônimos a outras Durante esse período, os residentes
influências filosóficas, pragmáticas e devem manter seu tratamento na rede
psicológicas, a fim de lançar e desen- de atenção psicossocial e demais ser-
volver o programa da Synanon. Ainda viços de saúde que se façam necessá-
de acordo com Fracasso, o que distin- rios (COMUNIDADES..., [20--]).
gue a comunidade terapêutica Synanon
da irmandade de alcoólicos anônimos Estas comunidades devem garan-
“são os aspectos relativos ao ambiente tir o respeito à pessoa e à família, inde-
residencial do programa, sua estrutura pendente da etnia, do credo religioso, da
organizacional, o perfil dos participan- ideologia, da nacionalidade, da orienta-
tes, bem como suas metas, sua filosofia ção sexual, de antecedentes criminais
e sua orientação psicológica” (2011, p. ou da situação financeira (COMUNI-
62). Neste modelo de comunidade tera- DADES..., [20--]). Devem, também,
pêutica, os indivíduos permaneciam 24 garantir ao usuário e ao seu responsá-
horas em ambiente residencial; sendo vel a orientação clara sobre as normas e
assim, ficavam afastados de elementos rotinas da instituição, incluindo os cri-
sociais, circunstanciais e interpessoais térios sobre visita e comunicação com
da comunidade mais ampla que pode- familiares e amigos, bem como garantir
riam influenciar o uso de substâncias. a permanência voluntária, a vedação

SOCIAIS E HUMANAS, SANTA MARIA, v. 28, n. 02, mai/ago 2015, p. 69 - 82


DEPENDÊNCIA QUÍMICA E TRABALHO VOLUNTÁRIO:
ajuda ao outro ou continuação da reabilitação?
73

de qualquer forma de contenção física, 2.3 Trabalho voluntário


isolamento ou restrição à liberdade, a
possibilidade de o usuário interromper “O voluntário é um jovem ou adulto
a permanência a qualquer momento e a que, por interesse pessoal e espírito
privacidade quanto ao uso de vestuário cívico, dedica parte de seu tempo,
próprio e de objetos pessoais. sem remuneração alguma, a ativida-
De acordo com o Observatório des voltadas ao bem estar social ou
Brasileiro de Informações sobre Drogas a outros campos” (ORGANIZAÇÃO
(OBID, 2007), o programa desenvolvi- DAS NAÇÕES UNIDAS, 2014, s/p).
do no período de tratamento na comu-
nidade terapêutica tem como objetivo De acordo com o art. 1º da Lei
ajudar o dependente químico a se tornar n.º 9.608, de 18 de fevereiro de 1998,
uma pessoa livre por meio da mudança que regulamenta a atividade voluntária
de seu estilo de vida, pois a comunida- no Brasil, a atividade voluntária é:
de terapêutica é uma ajuda eficaz para
A atividade não remunerada, prestada
quem tem a necessidade de liberar as por pessoa física a entidade pública
próprias energias vitais para poder ser de qualquer natureza, ou a instituição
um homem em seu sentido pleno, adul- privada de fins não lucrativos que te-
to e autônomo, que seja capaz de reali- nha objetivos cívicos, culturais, edu-
zar um projeto de vida sem a ajuda de cacionais, científicos, recreativos ou
substâncias psicoativas e de aprender de assistência social, inclusive mu-
a estar de bem consigo mesmo. Além tualidade (BRASIL, 1998).
disso, para o tratamento ocorrer corre-
tamente, a equipe deve acreditar que, Segundo Hudson (1999 apud
independente de qualquer comporta- SOUZA, 2012, p. 98), o setor voluntá-
mento que o dependente tenha tido, este rio oferece três contribuições importan-
pode mudar, assim como o dependente tes para a sociedade:
deve acreditar em sua mudança. O am-
biente deve possibilitar a aprendizagem 1. Representação, por contri-
social e a oportunidade de interagir, es- buir para o desenvolvimento
cutar, aprender, projetar, envolver-se e de políticas públicas e para
crescer de maneira que reflita no poten- os processos de integração e
cial individual e coletivo dos que fazem coesão social;
parte da comunidade terapêutica. 2. Inovação, por incorporar
ações que transformam o
O comportamento começa a mudar meio social, desenvolvendo
através da auto-iniciativa do residen- sujeitos e comunidades; e,
te. Como ele vem de uma vivência de 3. Cidadania, por ser realizada
sub-cultura (valores não aceitos pela a partir de ações de nature-
sociedade), devemos solicitar que ele za informal e, mesmo assim,
exercite agir com honestidade, pon-
sob elevado grau de eficiên-
tualidade, solidariedade, etc., (valo-
res aceitos pela sociedade) para que cia e eficácia.
os internalize e os vivencie através
das mudanças de estilo de vida. A di- Em relação aos aspectos conside-
nâmica desse processo depende, em rados importantes ao voluntariado, exis-
parte, da organização social da CT e, tem pelo menos quatro: as características
em parte, da motivação das pessoas demográficas do fenômeno de volunta-
envolvidas (OBID, 2007, s/p). riado, que podem incluir a distribuição
geográfica, o estatuto social, a educação
e/ou a personalidade dos voluntários; as
motivações que conduzem ao volunta-

SOCIAIS E HUMANAS, SANTA MARIA, v. 28, n. 02, mai/ago 2015, p. 69 - 82


74 Pâmela Koch E Amanda Saraiva Angonese

riado; o comportamento dos voluntários A análise dos dados coletados foi


na organização; e as recomendações para realizada por meio da técnica de aná-
uma gestão efetiva de voluntários, sen- lise de conteúdo proposta por Bardin
do estas duas últimas asáreas menos ex- (1977). Esse procedimento é composto
ploradas (JÄGER; SCHMIDT; BEYES, de três etapas: 1) pré-análise; 2) explo-
2007 apud FERREIRA, 2008). ração do material; e 3) tratamento dos
Segundo Latham e Pinder (2005 resultados, inferência e interpretação.
apud FERREIRA, 2008, p. 45), “a As categorias de análise foram escolhi-
motivação é um processo psicológico das a posteriori, ou seja, depoisda reali-
complexo que resulta de uma interação zação das entrevistas.
entre o indivíduo e o ambiente que o ro-
deia”. Sendo assim, o indivíduo motiva- 4 Apresentação e análise dos dados
se para o trabalho de acordo com suas
forças enérgicas, determinando a forma, Após a análise dos dados coleta-
direção, intensidade e duração deste. dos, optou-se por criar quatro catego-
Desse modo, ao iniciar um traba- rias: motivação, espiritualidade, dificul-
lho voluntário, o indivíduo voluntário dades encontradas e reconhecimento.
é guiado de acordo com seus valores, Entrevistaram-se cinco participantes,
seus traços de personalidade, suas ne- sendo eles Apolo (deus do sol – prin-
cessidades fisiológicas, o contexto em cípio da vida), 38 anos, foi usuário de
que está inserido, a questão monetária e cocaína, maconha, álcool e crack por
o tempo disponível. Segundo Wilson e 20 anos, é voluntário na comunidade há
Pimm (1996 apud FERREIRA, 2008, p. sete anos e meio e busca dar uma nova
47), “a vida útil de um voluntário pode vida para os internos livrarem-se da de-
ser limitada por um propósito, por uma pendência; Hélio (antigo deus do sol
organização específica ou por um deter- – visava proporcionar luz aos deuses e
minado período de tempo”. Os voluntá- mortais), 25 anos, foi usuário de cocaí-
rios não esperam um benefício financei- na, crack, maconha e cola de sapateiro
ro, mas têm o desejo de que seu trabalho por 12 anos, é voluntário na comunida-
seja apreciado e reconhecido. de há um ano e meio e busca, em sua
forma de cuidado e acolhimento, dar a
3 Método chance do recomeço para os internos
que chegam sem esperança; Fênix (ave
Esta pesquisa é de natureza qua- de grande força – após sua morte, entra
litativa, tendo sido desenvolvida por em autocombustão e depois renasce das
meio de entrevistas, com questões se- cinzas), 33 anos, foi usuário de crack
miestruturadas. Essas questões foram por 12 anos, é voluntário na comuni-
aplicadas a cincoex-usuários de drogas dade há seis meses, recaiu três anos
que trabalham voluntariamente na co- após a primeira internação − chegando
munidade terapêutica Fazenda da Es- a ficar três dias em uso da droga sem
perança em Casca, Rio Grande do Sul, alimentar-se, trancado em um quarto −,
local escolhido por conveniência. renasceu após a segunda internação e
No primeiro momento, as entre- agora busca ajudar outros usuários a re-
vistas foram gravadas e, após, transcritas nascerem; Ares (deus da guerra – agres-
para a elaboração da análise. O procedi- sivo e sanguinário, impopular entre os
mento ocorreu na Fazenda da Esperan- deuses e os seres humanos), 20 anos,
ça, de modo que cada participante, an- foi usuário de maconha, crack, heroína
tes de ser entrevistado, assinou o Termo e cocaína por dez anos, é voluntário na
de Consentimento Livre e Esclarecido comunidade há dois anos e meio, foi
(TCLE) para garantir o anonimato e a integrante das Forças Armadas Revo-
confiabilidade das informações obtidas. lucionárias da Colômbia (FARC) aos

SOCIAIS E HUMANAS, SANTA MARIA, v. 28, n. 02, mai/ago 2015, p. 69 - 82


DEPENDÊNCIA QUÍMICA E TRABALHO VOLUNTÁRIO:
ajuda ao outro ou continuação da reabilitação?
75

doze anos, assassinou 17 pessoas e foi cuperarem-se, eles devem retribuir esta
encontrado quase morto na rua por uma ajuda a partir do trabalho voluntário, a
senhora que o apresentou à comunida- fim de auxiliar outros dependentes quí-
de; e Eros (deus do amor), 26 anos, foi micos.
usuário de cocaína e dolantina por um
ano, é voluntário na comunidade há sete Tá dentro da Fazenda da Esperança,
meses, buscava no uso da droga encon- vivendo esse estilo de vida e abra-
trar companheiros que lhe dessem amor çando um carisma nascido dentro de
e satisfação afetiva, passou por três rea- uma comunidade terapêutica, mas
bilitações em um ano e hoje encontrou que, além de ter salvo a minha vida,
o amor que lhe carecia no cuidado com me torna veículo também pra que
o outro dentro da comunidade. Os no- outros encontrem esse caminho.[...]
mes utilizados neste artigo são fictícios, Principalmente porque essa vida me
visando preservar a integridade dos faz bem, porque essa vida me con-
participantes, sendo todos baseados na verte, me recupera todo dia, me dá
oportunidade de amadurecer, de ser
mitologia grega e relacionados às carac-
realmente assim um ser humano por
terísticas de cada entrevistado. excelência (Apolo).
4.1 Motivação É ajudar e também ser ajudado né,
porque eu ajudo eles, mas eles tam-
Davidoff (2001) define motivação bém me ajudam, porque eu terminei
como um estado interno que pode resul- meu ano de recuperação, porque eu
tar de uma necessidade. É um ativador sou voluntário eu também tenho cri-
ou despertador de comportamento dirigi- ses, eu também tenho dificuldades,
do para a satisfação da necessidade insti- então tem muitas vezes que eu sou
gadora. Conforme a autora, há dois tipos aquela voz de apoio pra eles, mas tem
muitas vezes que eles são pra mim né
de motivação: aquela que é estabelecida
(Ares).
principalmente pela experiência, conhe-
cida apenas como motivação; e aquelas
Ressalta-se também que, além de
que surgem para satisfazer as necessida-
continuarem recuperando-se, os volun-
des básicas relacionadas à sobrevivência,
tários buscam dar ao outro o que recebe-
que são conhecidas como impulsos. Para
ram, pois, como se sentiram bem quan-
Davidoff (2001), há ainda dois modelos
do acolhidos, desejam retribuir esse
de motivação: o homeostático, que suge-
amor gratuito que acreditam ter recebi-
re que o corpo tem padrões de referência
do. Sendo assim, para Sanchez e Nappo
para cada uma de suas necessidades, e,
(2008), em relação ao acolhimento do
quando surge uma necessidade, esta ati-
grupo, o contato físico sem preconcei-
va um motivo para manter o equilíbrio,
tos impressiona e valoriza os depen-
estando, assim, voltada à autorregulação
dentes químicos, de modo que estes são
do corpo; e o modelo de incentivo, que
colocados no mesmo nível de quem os
sugere que experiências e incentivos al-
acolhe e, além disso, ouvem relatos das
teram cognições e emoções levando à
pessoas que, assim como eles, também
motivação, a qual, por sua vez, aciona
erraram e conseguiram se redimir.
o comportamento, alterando emoções e
aumentando ou diminuindo o nível de Sempre de ser bem tratado, sempre
motivação. me darem atenção, e isso foi crescen-
Percebeu-se, ao longo das entre- do dentro de mim e quando eu fiz o
vistas, que a busca dos voluntários está meu ano, 2008/2009, na época o res-
ligada a ajudar o outro, mas também a ponsável era o padre Antônio, e quan-
continuar a sua recuperação, pois creem do terminei o ano ele me fez o convite
que, como a comunidade os ajudou a re- de ser padrinho (Fênix).

SOCIAIS E HUMANAS, SANTA MARIA, v. 28, n. 02, mai/ago 2015, p. 69 - 82


76 Pâmela Koch E Amanda Saraiva Angonese

Dar de graça o que recebeu de gra- O enfrentamento das dificuldades, a


ça, e eu fui gostando da fazenda né, e partir da perspectiva espiritual apoia-
aquela coisa de viver também (Eros). do na fé, acaba proporcionando afas-
tamento natural de atitudes contrárias
Dar de graça o que tu recebeu de gra- a moral difundida pela religião. Além
ça (Ares). disso, o fato de se contar com a aju-
da irrestrita de Deus gera um amparo
É possível perceber, ainda, que há constante, conforto e bem-estar.
uma crença dos voluntários de que eles
se recuperarão totalmente da dependên- A partir disso, nota-se que a fé
cia química se fizerem este trabalho. promove o bem-estar nos voluntários,
Segundo Beck (2013), as crenças sobre fazendo - os faz acreditar que sua re-
si mesmo, outras pessoas e seus mun- cuperação depende dessa doação vo-
dos começam a desenvolver-se ainda luntária, como se não houvesse outras
na infância, sendo consideradas como possibilidades para alcançarem esta
uma verdade absoluta para a pessoa, conquista. Sendo assim, esta crença os
que acredita que as coisas são da forma impulsiona a continuarem ajudando o
que ela pensa. As crenças centrais in- outro para conseguirem a recuperação
fluenciam a sua visão de uma situação, plena da dependência química.
alterando o modo como ela pensa, sente
e se comporta. Quando terminei o ano, me fizeram o
convite de ser padrinho voluntário e
Ajudar as pessoas e a mim mesmo, eu fiquei três meses e assim, da minha
sempre e porque o trabalho voluntá- livre e espontânea vontade, sem falar
rio... nós falamos na fazenda que con- com ninguém, simplesmente peguei
tinuamos nos recuperando né (Eros). minhas coisas e fui embora. A propos-
ta era de um ano e eu acabei ficando
Mas a minha sobriedade, pra mim me somente três meses. Eu fui pra casa
manter limpo é, só tá através dessa tentei reconstruir minha vida, traba-
experiência como voluntário. [...] Eu lhar, mas aquela coisa de não ter cum-
fui pra casa tentei, reconstruir minha prido esse tempo de voluntário sempre
vida, trabalhar, mas aquela coisa de ficou dentro de mim. [...] Antes da re-
não ter cumprido esse tempo de vo- caída eu tive várias oportunidades de
luntario sempre ficou dentro de mim. vir até a fazenda fazer visita ou mes-
[...] Eu vejo que a minha sobrieda- mo que fosse nos dias fora de visita,
de, a reconstrução da minha vida tá só pra visita e tals, mas nunca vim, aí
dentro desse voluntariado, tá dentro quando eu tive a recaída eu lembrei
desse trabalho que eu tô exercendo da fazenda novamente e foi por causa
e deixar com que Deus conduz meu disso que agora, depois que eu fiz meu
caminho (Fênix). recomeço de quatro meses, novamen-
te, o Fabinho que já era responsável e
a Maria me fizeram o convite e eu não
Percebe-se que esta comunidade tive dúvida que Deus quer que eu faça
já os faz acreditar que eles continuarão esse trabalho (Fênix).
em um processo de recuperação e que
Deus escolhe os seus caminhos. Segun- Pode-se perceber que, conforme
do Sanchez e Nappo (2008, p. 269): a fala do entrevistado, que voltou para
casa após a primeira recuperação, mas
A fé promove a qualidade de vida. A sentiu-se incomodado por não ter feito
adoção de referenciais da religião faz o voluntariado. Após a segunda reabi-
com que o fiel confie na proteção de litação na mesma comunidade, instau-
Deus e respeite as normas e valores
impostos pela religião, melhorando
rou-se uma crença para este voluntário
a qualidade de vida dos adeptos. [...] de que a sua recuperação dependia do
voluntariado que ele estava exercendo.

SOCIAIS E HUMANAS, SANTA MARIA, v. 28, n. 02, mai/ago 2015, p. 69 - 82


DEPENDÊNCIA QUÍMICA E TRABALHO VOLUNTÁRIO:
ajuda ao outro ou continuação da reabilitação?
77

4.2 Espiritualidade nesta comunidade terapêutica, fator que


influencia o pensamento e no comporta-
A religião católica oferece dois mento dos voluntários. Além disso, po-
recursos terapêuticos exclusivos: a con- de-se perceber que as crenças que eles
fissão e a eucaristia. A confissão é con- têm sobre a sua recuperação e sobre a
siderada terapia espiritual. Quando o comunidade em si podem influenciar a
sacerdote pronuncia a absolvição sacra- forma como eles sairão dela e como agi-
mental, traça o sinal da cruz e declara rão, levando-os a exercerem um maior
que o pecadorestá perdoado, o indiví- controle dos seus atos:
duo é tocado por uma sensação de ter
saído da condição de pecador e evoluí- O tesouro que tenho não passa, mas
do para a de servo de Jesus, melhorando sei que tudo aquilo que me cerca no
sua autoestima (SANCHEZ; NAPPO, mundo, até os meninos que vêm e que
2008). Segundo o Estatuto da Fazenda vão, tudo passa, mas esse tesouro que
da Esperança, encontrei ele não passa, que é a vida
em Cristo, que é a vida no amor, na
simplicidade, no desapego, na vida
Para garantir o espírito de família e a
que preenche e que não passa (Apo-
esperança sempre renovada, o mem-
lo).
bro vive a espiritualidade do Evange-
lho, como radicalidade, comunicando
Porque a realidade na fazenda é uma,
entre si as experiências feitas à luz
lá fora é outra né, então aqui eu estou
da palavra de Deus, de forma que se
dentro da fazenda, lá fora eu vou ter
realize em suas vidas e na de sua co-
que levar a fazenda dentro de mim,
munidade a frase do evangelho: “E
pra poder lutar contra o mundo, pra
o verbo se fez carne e habitou entre
poder ir todo dia e colocar em prática
nós” (Jó 1,14). Da mesma forma,
tudo que aprendi aqui, lá fora né, ten-
o membro vive à luz da Palavra de
tar ser uma pessoa cada dia como eu
Deus o amor recíproco e a escolha
sou aqui né (Ares).
de Jesus abandonado, contribuindo
para que as Fazendas da Esperança
se tornem “Santuários da Nova Evan- Savio e Bruscagin (2008, apud-
gelização” a serviço da comunidade FUCHS; HENNING, 2011) destacam
eclesial (2010, p. 31-33). que a espiritualidade influencia a forma
como os indivíduos podem lidar com as
Nas comunidades terapêuticas adversidades, as experiências de dor e
católicas, a confissão exime o depen- de sofrimento. A religiosidade atua, as-
dente de drogas da culpa de seus erros sim, como prescritora e proibidora de
passados e torna possível um futuro comportamentos cotidianos, estimulan-
novo, como se o indivíduo recomeçasse do os comportamentos saudáveis e fa-
sua vida a partir de um novo ponto zero. zendo a pessoa pensar sobre sua forma
Na comunhão, os entrevistados creem de comer, beber, conduzir automóveis,
que estão recebendo parte de Jesus, que ter relações sexuais, usar substâncias lí-
os protegerá da vontade de consumir citas e ilícitas, seguir prescrições médi-
drogas. Sendo assim, percebe-se como cas, educar os filhos e relacionar-se com
os voluntários acreditam que estão re- seu parceiro (SAVIO; BRUSCAGIN,
cuperados e que estão livres da culpa 2008, apud FUCHS; HENNING, 2011).
dos erros passados, o que faz com que
sintam que se tornaramo caminho para Hoje eu percebo um amadurecimento
os outros e até mesmo um exemplo a ser muito grande, não só na questão do
seguido (SANCHEZ; NAPPO, 2008). lado humano, mas nos aspectos que
nos cercam. [...] Lembro que, quando
A espiritualidade é a base do tra- decidi optar pelo celibato, havia uma
tamento para a dependência química dúvida: mas com relação à sexualida-

SOCIAIS E HUMANAS, SANTA MARIA, v. 28, n. 02, mai/ago 2015, p. 69 - 82


78 Pâmela Koch E Amanda Saraiva Angonese

de, com relação ao afetivo, ao emo- situação em que o indivíduo é coloca-


cional; mas é o retorno desse amor doinfluencia os efeitos da hereditarieda-
gratuito, quando retorna pra nós, ele de e do ambiente sobre a personalidade,
é tão intenso, tão divino, que trans- pois uma pessoa pode mudar conforme
cende ao humano, ao divino, humano a situação. Sendo assim, pode-se per-
até compreendendo na sua psique, no
emocional, no físico principalmente
ceber o modo como a personalidade de
no divino, quando esse amor retorna, cada uma das pessoas da comunidade
parece que o humano mergulha nessa terapêutica pode influenciar a convi-
realidade (Apolo). vência entre os voluntários.

Os voluntários seguem as regras Olha, muitas vezes é difícil lidar com


da comunidade, acreditando que a espi- várias pessoas, porque eu sou uma
pessoa de temperamento muito for-
ritualidade supre todas as suas necessi-
te, porque eu muitas vezes tem outra
dades, pois sentem o amor gratuito. “As pessoa que também tem o tempe-
crenças religiosas fornecem apoio atra- ramento muito forte e muitas vezes
vés do reforço da aceitação, resistência duas pessoas de temperamento forte
e resiliência, gerando paz, autoconfian- juntas vai dar explosão (Ares).
ça, perdão a si próprio, e as demais pes-
soas, doação e autoimagem positiva” Quando as dificuldades se apresen-
(MOREIRA-ALMEIDA; LOTUFO tam, elas se apresentam na questão da
NETO; KOENIG, 2006 apud FUCHS; convivência, sabe. [...] Mas são coi-
HENNING, 2011, p. 3). As crenças sas que acontece na fazenda e sempre
são fundamentais para estes indivíduos vai acontecer, de ter aquelas pessoas
que vem como voluntario e às vezes
se manterem dentro do voluntariado,
acabam entrando num certo comodis-
pois, se não houvesse a crença de que mo, entendeu, e eu sofro com isso,
eles recebem a recompensa espiritual, entendeu (Eros).
presume-seque eles não conseguiriam
suportar o não suprimento destas neces- Nem sempre as relações com o
sidades. outro são fáceis, ainda mais em uma co-
munidade onde os indivíduos que nela
4.3 Dificuldades encontradas vivem têm pouco acesso a outras pessoas
e acabam sendo obrigados a conviver
Segundo Robbins (2004), a per- com pessoas de diversas culturas e cria-
sonalidade de um indivíduo adulto é a ções, que, muitas vezes, têm tempera-
soma total das maneiras como reage e mentosdiferentes. Na comunidade,todos
interage com as demais, ou seja, é re- os integrantes são do gênero masculino,
sultado de diversos fatores ambientais o que também pode afetar a convivência,
e hereditários, moderados pelas condi- visto que, segundo as normas que regem
ções situacionais. A abordagem heredi- esta comunidade terapêutica, os mesmos
tária define que a personalidade de um devem se privar de sua satisfação sexual
indivíduo está na estrutura molecular quando resolvem ser voluntários e dedi-
de seus genes, sendo influenciada pelos carem-se à comunidade.
perfis biológicos, fisiológicos e psico- A convivência com o outro tam-
lógicos dos pais. O ambiente influencia bém está ligada às emoções, definidas
a personalidade de acordo com a nossa por Robbins (2004) como sentimentos
cultura, a qual estabelece normas, atitu- intensos direcionados a alguém ou al-
des e valores, que são transmitidos de guma coisa. Estas emoções podem se
geração em geração, influenciando a transformar em humores, que podem
forma como somos criados, as condi- gerar um sentimento relacionado à
ções de infância, as normas familiares, pessoa que lhe causou a emoção. Para
as amizades, os grupos sociais etc. Já a

SOCIAIS E HUMANAS, SANTA MARIA, v. 28, n. 02, mai/ago 2015, p. 69 - 82


DEPENDÊNCIA QUÍMICA E TRABALHO VOLUNTÁRIO:
ajuda ao outro ou continuação da reabilitação?
79

trabalhar bem com outras pessoas, de- voluntários é o autoconhecimento e o


ve-se possuir não apenas competências conhecimento do outro, que fazem com
técnicas para realizar suas funções, mas que se amplie a compreensão de como
também competências emocionais. cada um age.
Em relação às dificuldades en-
contradas, também foi destacada pelos 4.4 Reconhecimento
voluntários a dificuldade em lidar com
os próprios sentimentos frente ao outro Segundo Siqueira e Gomide
e compreender o outro como um ser hu- (2004, apud BENDASSOLLI, 2012), o
mano com defeitos. Tal contato é com- reconhecimento é o elemento-chave da
plexo devido, também, à dificuldade relação do sujeito com o trabalho e a or-
do voluntário em lidar com o seu senti- ganização, com implicações diretas nos
mento diante de algo que não considera processos motivacionais e nas percep-
como sendo aceitável: ções de reconhecimento e valorização.
Segundo as ideias de Hegel (1992 apud
Na fazenda me manter paciente, às BENDASSOLLI, 2012), o trabalho re-
vezes eu me explodo, sou explosivo, presenta um tipo de interação primaria-
muito rhaur, eu sou muito metódico... mente dependente do reconhecimen-
[...] O equilíbrio, entender um pouco to, pois é marcado pela atividade dos
o outro, eu tenho essa dificuldade ain-
outros. Percebe-se que, em suas falas,
da... (Eros).
os voluntários se sentem reconhecidos
Mas daí eu tenho que me testar, daí pelo trabalho que estão exercendo:
eu tenho que me pôr naquele momen-
to que acontece aqueles fatos, aonde Me sinto reconhecido, é, bem hones-
está meu voluntariado?, me igualar to sabe, bem no fundo do meu cora-
dele ou fazer menos que ele. [...]Por- ção eu posso te dizer que eu me sinto
que a gente tem um ponto fraco né, e reconhecido... (Fênix).
a gente tenta mais por esse ponto fra-
co né ele tenta te cutucar, mas vai de E eu sei que as pessoas reconhecem...
mim me deixar cutucar por ele. Por- pra mim a maior satisfação não preci-
que tudo depende de mim né (Ares). sa ‘ah eu reconheço teu trabalho’, só
de tu ver a alegria dos meninos, tu ou-
vir um obrigado eu fico contente. [...]
Muitas vezes, as dificuldades
eles não precisam dizer um obrigado
que surgem na relação com o outro são isso, as vezes um gesto, os gestos que
causadas pelo não equilíbrio da relação eles fazem pra nós, pra mim é total-
consigo mesmo. Portanto, é fundamen- mente suficiente (Ares).
tal o equilíbrio próprio para que se pos-
sa estar de bem com os outros. Sendo Brun e Dugas (2005 apud BEN-
assim, para ter uma relação saudável DASSOLLI, 2012) descrevem quatro
com o outro, é preciso, primeiramente, dimensões do reconhecimento no tra-
aprender a lidar com os próprios senti- balho: o reconhecimento da pessoa, de
mentos, para que estes não influenciem concepção humanista, direciona-se ao
a forma em que os relacionamentos in- indivíduo em si; o reconhecimento pe-
terpessoais possam acontecer. Os indi- los resultados, de base comportamen-
víduos apresentam maneiras pessoais tal, destaca os resultados assumindo a
para lidar com seus sentimentos e suas forma de recompensas financeiras; o
emoções, maneiras estas que entram reconhecimento pelo esforço, que es-
em contato com outros indivíduos que tipula que os resultados nem sempre
possuem suas próprias maneiras. Assim são proporcionais ao esforço investido,
sendo, o que pode facilitar ou dificul- independente de recompensas, sendo
tar a convivência e as relações entre os simbólico; e o reconhecimento pelas

SOCIAIS E HUMANAS, SANTA MARIA, v. 28, n. 02, mai/ago 2015, p. 69 - 82


80 Pâmela Koch E Amanda Saraiva Angonese

competências. Percebe-se que os entre- história que evoca lembranças e senti-


vistados se sentem reconhecidos a partir mentos dolorosos. São admiráveis es-
da terceira esfera (reconhecimento pelo tas pessoas que decidem se doarem ao
esforço), pois, em suas falas, demons- outro, deixando de lado a sua família,
tram ser simbólica a forma com que são o conforto do lar e a sua independência
reconhecidos, manifestada por meio de para viver de forma voluntária em uma
abraço ou mesmo de um agradecimento comunidade religiosa.
verbal:- A comunidade terapêutica obser-
vada segue os princípios franciscanos,
Busco além do amor que eu dou, eu de modo que os voluntários devem viver
acabo sendo amado também né, aca- com o que a comunidade lhes proporcio-
bo sentindo, me sentindo bem fazen- na diante do trabalho realizado por eles e
do isso, porque muitas vezes chega sem poder ter relação afetiva com pessoas
alguém te agradece, muitas vezes
do sexo oposto dentro daquele espaço. A
nem agradece, muitas vezes tu sente
né, vê a pessoa bem, vê a pessoa vol- espiritualidade é o preceito fundamental
tando a vida dela (Hélio). do tratamento, sendo realizadas orações
todos os dias, a fim de buscar o perdão de
Sim, me sinto muito reconhecido, Deus por seus atos e também a recupera-
aquilo assim é, aqui na fazenda é mais ção plena da dependência química.
afetivo né. [...] aqui é um abraço, um Percebeu-se a falta de um acom-
obrigado, olha ficou bonito o que você panhamento psicológico nesta comuni-
fez né, levanta a autoestima, vai falar dade, pois há situações de relações inter-
que quem não gosta e eu... a parte de pessoais com as quais o voluntário não
reconhecimento aqui é assim, a parte sabe lidar, até mesmo porque, em diver-
mais afetiva mesmo (Eros).
sos momentos, voluntário identifica nos
usuários em tratamento uma realidade já
Em se tratando de um trabalho vivenciada por ele, o que acaba gerando
voluntário, o reconhecimento manifes- um conflito com os seus próprios senti-
ta-se de forma simbólica, pois, como o mentos. Em relação a isso, a maioria dos
voluntariado é uma doação para o outro voluntários nunca fez um acompanha-
e também para a instituição, o reconhe- mento psicológico e tem dificuldades em
cimento não vem em forma de incentivo lidar com os seus sentimentos, princi-
financeiro – salários – ou de mudança palmente quando se encontra diante de
de cargo – promoções –, como normal- alguma situação que lhe causa dor ou rai-
mente acontece em empresas e outras va, momento em que acabam agindo por
instituições. Percebeu-se nas entrevistas impulso e gerando mais conflitos.
o quanto esta forma de reconhecimento Durante as entrevistas, os volun-
é valorizada pelos próprios voluntários, tários falaram abertamente sobre todos
o que os estimula a continuarem aju- os assuntos questionados, não se ne-
dando ao outro e a buscarem estratégias gando a responder nenhum dos temas
para ajudarem a si mesmos, pois quanto suscitados por mais difíceis que pudes-
mais se sentirem reconhecidos e moti- sem ser. Em uma das entrevistas, o vo-
vados, maiores são as chances de con- luntário sensibilizou-se ao relatar uma
tinuarem o seu voluntariado, ajudando situação delicada que passou em seu
ao outro e também continuando a sua tempo de trabalho na comunidade tera-
reabilitação. pêutica, quando viu um usuário chegar
da mesma forma como ele chegou ao se
5 Considerações finais internar para o tratamento: morador de
rua, com as roupas rasgadas, todo sujo e
Nem todo ser humano está dis- em forte crise de abstinência. De acordo
posto a enfrentar uma parte de sua com o voluntário, logo que este interno

SOCIAIS E HUMANAS, SANTA MARIA, v. 28, n. 02, mai/ago 2015, p. 69 - 82


DEPENDÊNCIA QUÍMICA E TRABALHO VOLUNTÁRIO:
ajuda ao outro ou continuação da reabilitação?
81

chegou à comunidade, ele foi acolhê-lo, Referências


enquanto muitos o olhavam com repug-
nância e se afastavam. Descreveu esse
momento como o mais difícil passado 1. AMERICAN PSYCHIATRIC AS-
como voluntário, de modo que, após SOCIATION. Manual Diagnóstico e
acolher e auxiliar o novo interno com o Estatístico de Transtornos Mentais.
banho, sentiu a necessidade de retirar- 4. ed. Porto Alegre: ARTMED, 2002.
se e trancou-se no quarto para chorar. 2. AZEVEDO, R. C. S. de; OLIVEIRA,
Histórias como essa ajudam a com- K. D. Poliusuários de Substâncias Psi-
preender um pouco mais a doação que coativas. In: DIEHL, A.; CORDEIRO,
os voluntários realizam neste trabalho D. C.; LARANJEIRA, R. Dependência
na comunidade terapêutica, bem como Química: Prevenção, tratamento e po-
reforçam ainda mais a certeza de como líticas públicas. Porto Alegre: Artmed,
a presença de um profissional da Psico- 2011. p. 119-125.
logia poderia auxiliá-los, otimizando o
serviço oferecido nestas comunidades. 3. BARDIN, L. Análise de Conteúdo.
Ao longo deste trabalho, chamou Lisboa: Edições 70, 1977.
atenção o amor e o cuidado que esses vo- 4. BECK, J. S. Terapia Cognitivo-
luntários têm um com o outro − que cada Comportamental: teoria e prática. 2.
um deles desenvolve uma função dife- ed. Porto Alegre: Artmed, 2013.
rente na comunidade, buscando o cuida-
do com o outro e o bom funcionamento 5. BENDASSOLLI, P. F. Reconhe-
daquele espaço. Este cuidado ao outro é cimento no Trabalho: perspectivas e
importante quando se trata de uma reabi- questões contemporâneas. Psicologia
litação, pois a grande maioria dos inter- em Estudo, Maringá, v. 17, n. 1, p. 37-
nos vem de uma realidade difícil, em que 46, 2012.
muitos já foram até moradores de rua. 6. BRASIL. Lei nº 9.608 de 18, de fe-
Quando chegam à comunidade, geral- vereiro de 1998. Dispões sobre o servi-
mente estão psicologicamente fragiliza- ço voluntário e dá outras providências.
dos, não confiando em ninguém uma vez Diário Oficial da República Fede-
que já perderem a confiança inclusive de rativa do Brasil, Brasília, DF, 19 fev.
seus familiares e amigos. Então, este cui- 1998. Disponível em: <http://www.pla-
dado vai aproximando o voluntário do nalto.gov.br/ccivil_03/leis/L9608.htm>
interno, criando um vínculo que pode ser Acesso em: 09 mai. 2014.
primordial para o sucesso do tratamento
7. COMUNIDADES Terapêuticas. Dis-
para a dependência química.
ponível em: <http://www.brasil.gov.br/
Ressalta-se, ainda, que todos os
observatoriocrack/cuidado/comunida-
voluntários expuseram ter como moti-
des-terapeuticas.html> Acesso em: 14
vação para seu trabalho a ajuda ao outro,
abr. 2014.
bem como a continuação do seu próprio
tratamento. Todos sabem que, enquanto 8. DAVIDOFF, L. L. Introdução à Psi-
estiverem na comunidade, conseguirão- cologia. 3. ed. São Paulo: Pearson Ma-
se manter longe das drogas e dos fato- kron Books, 2001.
res que os levaram à dependência e que, 9. FAMÍLIA DA ESPERANÇA. Esta-
quando saírem da comunidade, estarão tuto. Guaratinguetá, 2010.
propensos às chances de depararem-se
com a droga novamente. 10. FERREIRA, M.; PROENÇA, T.;
PROENÇA, J. F. As Motivações do
Trabalho Voluntário. Revista Portu-
guesa e Brasileira de Gestão, Rio de
Janeiro, p. 43-53, 2008.

SOCIAIS E HUMANAS, SANTA MARIA, v. 28, n. 02, mai/ago 2015, p. 69 - 82


82 Pâmela Koch E Amanda Saraiva Angonese

11. FONSECA, V. A. da S.; LEMOS, T. 18. PRATTA, E. M. M.; SANTOS, M.


Farmacologia na Dependência Quími- A. dos. O processo saúde-doença e a
ca. In: DIEHL, A. CORDEIRO, D. C.; Dependência Química: Interfaces e
LARANJEIRA, R. Dependência Quí- evolução. Psicologia: Teoria e Pesqui-
mica: Prevenção, tratamento e políticas sa, v. 25, n. 2, p. 203-211, 2009.
públicas. Porto Alegre: Artmed, p. 25-
19. ROBBINS, S. P. Comportamen-
34, 2011.
to Organizacional. 9. ed. São Paulo:
12. FRACASSO, L. Comunidades Tera- Prentice Hall, 2002.
pêuticas. In: DIEHL, A.; CORDEIRO,
20. SANCHEZ, Z. Van der M.; NAP-
D. C.; LARANJEIRA, R. Dependência
PO, S. A. Intervenção Religiosa na Re-
Química: Prevenção, tratamento e polí-
cuperação de Dependentes de Drogas.
ticas públicas. Porto Alegre: Artmed, p.
Revista Saúde Pública, v. 42, p. 265-
61-69, 2011.
72, 2008.
13. FUCHS, G. C.; HENNING, M. C.
21. SOUZA, W. J. de; MEDEIROS,
A Influência da Espiritualidade na
J. P. de. Trabalho voluntário: Motivos
Recuperação de Dependentes Quími-
para sua realização. Revista de Ciên-
cos. Disponível em: <http://www.uniad.
cias da Administração, v. 14, n. 33, p.
org.br/images/stories/A_INFLUEN-
99-102, 2012.
CIA_DA_ESPIRITUALIDADE_NA_
RECUPERACAO_DE_DEPENDEN- 22. UNIVERSIDADE ABERTA DO
TES_QUIMICOS.pdf>. Acesso em: 08 SISTEMA ÚNICO DE SAÚDE (UNA-
out. 2014. SUS). Abordagem da Dependência
Química. Disponível em: <http://www.
14. MARQUES, A. C. P. R.; RIBEIRO,
unasus.unifesp.br/biblioteca_virtual/
M. (Orgs.). Guia Prático sobre Uso,
esf/1/casos_complexos/Vila_Santo_
Abuso e Dependência de Substân-
Antonio/Complexo_12_Vila_Aborda-
cias Psicotrópicas para Educadores
gem_dependencia.pdf> Acesso em: 02
e Profissionais da Saúde. São Paulo:
jun. 2014
Imprensa Oficial, 2006.
15. OBSERVATÓRIO BRASILEIRO
DE INFORMAÇÕES SOBRE DRO-
GAS (OBID). Tratamento, Modelo,
Comunidade Terapêutica. Dispo-
nível em: <http://www.obid.senad.
gov.br/portais/OBID/conteudo/index.
php?id_conteudo=11420&rastro=TRA-
TAMENTO%2FModelos/Comunida-
de+Terap%C3%AAutica>. Acesso em:
16 abr. 2014.
16. ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES
UNIDAS (ONU). O Trabalho Volun-
tário e a ONU, 2014. Disponível em:
<http://nacoesunidas.org/vagas/volun-
tariado/> Acesso em: 06 dez. 2014.
17. ORGANIZAÇÃO MUNDIAL
DE SAÚDE (OMS). Classificação de
Transtornos Mentais e de Comporta-
mento da CID-10. Porto Alegre: Art-
med, 1993.

SOCIAIS E HUMANAS, SANTA MARIA, v. 28, n. 02, mai/ago 2015, p. 69 - 82

Você também pode gostar