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1De modo geral, quando se pensa em clínica, um conjunto de sinais e sintomas que somente
imagina-se um médico prescrevendo um nele se expressam de determinado modo. Com
remédio ou solicitando um exame para isso, abrem-se inúmeras possibilidades de
comprovar ou não a hipótese do usuário ter intervenção, e é possível propor tratamentos
uma determinada doença. No entanto, a clínica muito melhores com a participação das
precisa ser muito mais do que isso, pois todos pessoas envolvidas.
sabemos que as pessoas não se limitam às Podemos dizer então que a clínica
expressões das doenças de que são ampliada é:
portadoras. • um compromisso radical com o sujeito
Alguns problemas como a baixa adesão doente, visto de modo singular;
a tratamentos, os pacientes refratários (ou • assumir a RESPONSABILIDADE sobre os
“poliqueixosos”) e a dependência dos usuários usuários dos serviços de saúde;
dos serviços de saúde, entre outros, • buscar ajuda em outros setores, ao que se
evidenciam a complexidade dos Sujeitos que dá nome de INTERSETORIALIDADE;
utilizam serviços de saúde e os limites da • RECONHECER OS LIMITES DOS
prática clínica centrada na doença. É certo CONHECIMENTOS dos profissionais de saúde e
que o diagnóstico de uma doença sempre das TECNOLOGIAS por eles empregadas e
parte de um princípio universalizante, buscar outros conhecimentos em diferentes
generalizável para todos, ou seja, ele supõe setores, como no exemplo mencionado
alguma regularidade e produz uma igualdade anteriormente em que o serviço de saúde
que é apenas parcialmente verdadeira, por incorporou o conhecimento acerca da
exemplo: um alcoolista é um alcoolista e um situação de exclusão em que viviam seus
hipertenso é um hipertenso. usuários;
Mas isso pode levar à suposição de que • assumir um compromisso ÉTICO profundo.
basta o diagnóstico para definir todo o Como se sabe, não são poucas as
tratamento para aquela pessoa. Entretanto, situações em que o adoecimento é causado ou
como já dizia um velho ditado: “cada caso é um agravado por situações de dominação e
caso”. E esta consideração pode mudar, ao injustiça social. Algumas dessas dominações
menos em parte, a conduta dos profissionais podem passar despercebidas, como é o caso
de saúde. Por exemplo, se a pessoa com das relações de gênero, dada a prevalência em
hipertensão é deprimida ou não, se está isolada, alguns contextos culturais. As doenças (como
se está desempregada ou não, tudo isso a LER/DORT) causadas pela superexploração,
interfere no desenvolvimento da doença. O pelas condições de trabalho inadequadas ou
diagnóstico pressupõe uma certa regularidade, formas de gestão autoritárias também são
uma repetição. Mas para que se realize uma outros exemplos. A clínica ampliada exige,
clínica adequada é preciso saber, além do que portanto, dos profissionais de saúde um exame
o sujeito apresenta de igual, o que ele permanente dos próprios valores e dos
apresenta de diferente, de singular, inclusive, valores em jogo na sociedade. O que pode ser
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ótimo e correto para o profissional pode Outras pessoas precisam de algum tipo
estar contribuindo para o adoecimento de um de ajuda para fazer isto. Portanto, a Clínica
usuário. O compromisso ético com o usuário Ampliada propõe que o profissional de saúde
deve levar o serviço a ajudá-lo a enfrentar, ou desenvolva a capacidade de ajudar as pessoas,
ao menos perceber, estas causalidades não só a combater as doenças, mas a
externas. transformar-se, de forma que a doença,
E por falar de dificuldades, não mesmo sendo um limite, não a impeça de viver
podemos esquecer que, às vezes, o próprio outras coisas na sua vida.
diagnóstico já traz uma situação de Nas doenças crônicas ou muito graves
discriminação social que aumenta o sofrimento isto é mais importante, porque o resultado
e dificulta o tratamento (exemplos são as sempre depende da participação da pessoa
doenças que produzem discriminação social, e doente, e essa participação não pode ser
os “diagnósticos” que paralisam a ação de entendida como uma dedicação exclusiva à
saúde, em vez de desencadeá-la). Cabe à clínica doença, mas, sim, uma capacidade de
ampliada não assumir como normal estas “inventar-se” apesar da doença. É muito comum
situações, principalmente quando nos serviços ambulatoriais que o descuido com
comprometem o tratamento. a produção de vida e o foco excessivo na
Vejamos alguns exemplos: doença acabe levando usuários a tornarem-se
1) “Quando vejo uma pessoa com a vida conhecidos como “POLIQUEIXOSOS” (com
igual à minha, desejo uma boa isquemia. Porque muitas queixas), pois a doença (ou o risco)
eu renasci, aprendi, foi um Big-Bang para mim” torna-se o centro de suas vidas.
(Carnavalesco Joãozinho Trinta, em 1998, se
referindo a um derrame cerebral). Algumas sugestões práticas
2) O compositor Tom Jobim uma vez
foi perguntado por que havia se tornado 3 A ESCUTA – Escutar significa, num primeiro
músico. Bem-humoradamente ele respondeu momento, acolher toda queixa ou relato do
que foi porque tinha asma. Como assim, usuário mesmo quando possa parecer não
perguntou o entrevistador? “Acontece que interessar diretamente para o diagnóstico e
estudar piano era bem mais chato do que sair tratamento. Mais do que isto, é preciso ajudá-lo
com a turma, namorar... como eu ficava muito a reconstruir (e respeitar) os motivos que
em casa por causa da asma, acabei me ocasionaram o seu adoecimento e as
dedicando ao piano.” correlações que o usuário estabelece entre o
2 Outro aspecto fundamental da clínica que sente e a vida – as relações com seus
ampliada, além da busca de autonomia para os convivas e desafetos. Ou seja, perguntar por
usuários, é a capacidade de equilibrar o que ele acredita que adoeceu e como ele se
combate à doença com a PRODUÇÃO DE VIDA. sente quando tem este ou aquele sintoma.
Os exemplos de Joãozinho Trinta e de Tom Quanto mais a doença for compreendida e
Jobim mostram que as pessoas podem correlacionada com a vida, menos chance
inventar saídas diante de uma situação imposta haverá de se tornar um problema somente do
por certos limites. Algumas pessoas especiais serviço de saúde, mas sim, também, do sujeito
fazem isso sozinhas. Elas “aproveitam” para doente. É mais fácil, assim, evitar a
enxergar o evento mórbido como uma infantilização e a atitude passiva diante do
possibilidade de transformação, o que não tratamento. Pode não ser possível fazer uma
significa que elas deixem de sofrer, mas que escuta detalhada o tempo todo para todo
elas encontram no sofrimento e apesar dele mundo (dependendo do tipo de serviço de
uma nova possibilidade de vida. saúde), mas é possível escolher quem precisa
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mais, e é possível temperar os encontros danos. O real significado e as expectativas das
clínicos com estas “frestas de vida”. pessoas quando procuram um serviço de
saúde precisam ser trabalhados na clínica
VÍNCULO E AFETOS – Tanto profissionais ampliada, para diminuir o número de doenças
quanto usuários, individualmente ou causadas por tratamento e para não iludir as
coletivamente, transferem afetos. Um usuário pessoas.
pode associar um profissional com um
parente e vice-versa. Um profissional que tem EVITAR RECOMENDAÇÕES PASTORAIS E
um parente com diabete não vai sentir-se da CULPABILIZANTES. NEGOCIAR RESTRIÇÕES
mesma forma, ao cuidar de um sujeito com SEM RANCOR E LEVANDO EM CONTA
diabete, que um profissional que não tem este INVESTIMENTOS DO DOENTE – Quem nunca viu
vínculo afetivo. É necessário aprender a aquele usuário que se compraz em provocar a
prestar atenção nesses fluxos de afetos equipe contando que não tomou a medicação
para melhor compreender-se e compreender ou que burlou uma dieta? Como isso
o outro, e poder ajudar a pessoa doente a acontece? Acontece que muitas vezes a
ganhar mais autonomia e lidar com a doença equipe, acreditando que uma determinada
de modo proveitoso para ela. Nesse processo, forma de viver seja mais saudável, põe-se a
a equipe de referência é muito importante, orientar enfaticamente os usuários sobre o
porque os fluxos de afetos de cada membro que fazer e evitar. Fala muito e escuta pouco.
da equipe com o usuário e familiares são Então, quando os usuários encontram
diferentes, permitindo que as possibilidades de dificuldades de seguir “as ordens” ou têm
ajudar o sujeito doente sejam maiores. Sem outras prioridades, a equipe se irrita com eles,
esquecer que, dentro da própria equipe estas muitas vezes não se dando conta disso. Essa
transferências também acontecem. irritação transparece e dificulta o diálogo e a
possibilidade de uma proposta terapêutica
4 MUITO AJUDA QUEM NÃO ATRAPALHA – pactuada com o usuário, provocando reações
Infelizmente o mito de que os tratamentos e de “afirmação de autonomia” e resistência ao
intervenções só fazem bem é muito forte. tratamento, gerando um neurótico círculo
Ocorre, entretanto, com relativa frequência, vicioso. É muito importante tentar produzir
o uso inadequado de medicações e exames, co-responsabilidade e não culpa. A culpa
causando graves danos à saúde e desperdício anestesia, gera resistência e pode até humilhar.
de dinheiro. Os diazepínicos e antidepressivos Muitas vezes, entra em funcionamento uma
são um exemplo. Aparentemente, muitas vezes, forma inconsciente da equipe de lidar com as
é mais fácil para os profissionais de saúde e limitações do tratamento transferindo o ônus
também para os usuários utilizarem esses de um possível fracasso para o usuário.
medicamentos, do que conversar sobre os
problemas e desenvolver a capacidade de 5 TRABALHAR COM OFERTAS E NÃO
enfrentá-los. O uso abusivo de antibióticos e a APENAS COM RESTRIÇÕES – As mudanças de
terapia de reposição hormonal são outros hábitos podem ser encaradas como ofertas
exemplos. Quanto aos exames, também existe de experiências novas e não apenas como
uma mitificação muito forte. É preciso saber restrições. Atividade física pode ser uma
que muitos deles têm riscos à saúde e limites, prazerosa descoberta, pratos mais adequados
principalmente quando são solicitados sem os podem ser bons, etc. Se admitirmos que o jeito
devidos critérios. A noção de saúde como bem normal de viver a vida é apenas mais um, e não
de consumo (“quanto mais, melhor”) precisa o único, e que as descobertas podem ser
ser combatida para que possamos diminuir os
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interessantes, fica mais fácil construir 6 EVITAR ASSUSTAR O USUÁRIO – O medo
conjuntamente propostas aceitáveis. nem sempre é um bom aliado. Provavelmente
funciona menos do que se imagina. Afinal,
ESPECIFICAR OFERTAS PARA CADA SUJEITO supor que o medo de adoecer ou morrer vai
– Se um usuário ama a atividade X ou a comida funcionar sempre significa supor que as
Y que, no entanto, não são recomendáveis pessoas agem sempre de forma racional em
para sua condição biológica, é preferível não direção aos seus interesses de sobrevivência.
começar o tratamento por ali. Ou então, Evidentemente, não somos assim. Existem
tentar um “meio termo” possível (redução de forças internas, como os desejos (por
danos). Especificar os Projetos Terapêuticos exemplo, por uma comida “especial”, ou uma
significa procurar o jeito certo e a proposta atividade importante); existem forças externas,
certa para cada pessoa ou grupo, de acordo como a cultura, definindo papéis sociais e
com suas preferências e história. hábitos de vida. Por tudo isso, talvez na maioria
das vezes, assustar o usuário é uma ação
EVITAR INICIAR CONSULTAS QUESTIONANDO pouco eficaz que pode tanto levar a pessoa a
AFERIÇÕES E COMPORTAMENTOS. uma dependência do serviço, quanto à
VALORIZAR QUALIDADE DE VIDA – Ao lidar resistência ao tratamento. Isso não significa
com pessoas portadoras de doenças que não devam ser apresentados os possíveis
crônicas, pode ser muito eficiente não riscos.
começar todos os encontros com perguntas
sobre a doença (comeu, não comeu, tomou LEMBRAR QUE DOENÇA CRÔNICA NÃO PODE
remédio ou não, etc.) ou infantilizantes SER A ÚNICA PREOCUPAÇÃO DA VIDA.
(“comportou-se??”). Isso mostra ao usuário o EQUILIBRAR COMBATE À DOENÇA COM
que queremos: ajudá-lo a viver melhor e não PRODUÇÃO DE VIDA – “Medicalização da vida” é
torná-lo submisso às nossas propostas. quando a doença torna-se preocupação
central na vida do usuário. Isso é muito comum
PERGUNTAR O QUE O USUÁRIO ENTENDEU DO em doenças crônicas. A autonomia diminui e
QUE FOI DITO SOBRE SUA DOENÇA E procurar médicos e fazer exames torna-se
MEDICAÇÃO – A linguagem dos profissionais de uma atividade central e quase única. Na
saúde nem sempre é compreensível. Portanto, verdade, as mesmas atitudes que podem
habituar-se a perguntar o que foi ouvido do produzir resistência ao tratamento podem
que dissemos ajuda muito. Além disso, é facilitar a medicalização. Resistência ou
importante ouvir quais as causas da doença na dependência são duas faces da mesma moeda.
opinião dos usuários. Em doenças crônicas é A equipe deve saber adequar as propostas
muito comum que a doença apareça após um terapêuticas aos investimentos afetivos do
estresse, como falecimentos, desemprego ou usuário (ou seja, o que gosta ou o que não
prisões na família. Ao ouvir as associações gosta) para que a doença e o tratamento não
causais, a equipe pode saber em que situações se tornem o seu objeto de investimento
similares o usuário pode piorar e o quanto o central. Isso é equilibrar as preocupações e
tratamento pode depender do desenvolvimento ações de combate à doença com as
da capacidade do usuário de lidar com essas preocupações de produção de vida.
situações.
Algumas sugestões para tentar evitar 7 ATUAR NOS EVENTOS MÓRBIDOS COM O
hipocondria e hipermedicação MÁXIMO DE APOIO E O MÍNIMO DE
MEDICAÇÃO. PREFERIR FITOTERÁPICOS A
DIAZEPÍNICOS – Muitos usuários iniciam uma
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doença durante processos de luto ou aproximação à lógica das concepções e
situações difíceis, como desemprego, prisão práticas sobre o processo saúde-doença
de parente, etc. A repetição ou persistência afeitas ao sujeito doente e à sua rede social,
dessas situações também pode agravar a como de possíveis negociações terapêuticas
doença. É importante que a equipe tente lidar no objetivo de atingir resultados que combinem
com essas situações da forma competente e maiores chances de eficácia biomédica com
tentando evitar dependência dos ansiolíticos aceitabilidade cultural.
(diazepínicos, principalmente). A capacidade de
escuta da equipe é uma grande ferramenta e PROJETO TERAPÊUTICO SINGULAR – PTS
é preciso saber que parte da cura depende
do sujeito aprender a lidar com essas O PTS é um conjunto de propostas de
situações agressivas de uma forma menos condutas terapêuticas articuladas, para um
danosa. A ideia de que toda dor ou estresse sujeito individual ou coletivo, resultado da
requer um ansiolítico é extremamente discussão coletiva de uma equipe
difundida, mas não pode seduzir a equipe de interdisciplinar, com apoio matricial se
saúde, que deve apostar num conceito de necessário. Geralmente é dedicado a situações
saúde ampliado que inclui também a capacidade mais complexas. No fundo é uma variação da
de lidar com os limites e revezes da vida da discussão de “caso clínico”. Foi bastante
forma mais produtiva possível. O ansiolítico desenvolvido em espaços de atenção à saúde
deve ser de preferência inicialmente mental como forma de propiciar uma atuação
fitoterápico, por não gerar dependência, e integrada da equipe valorizando outros
deve ser encarado como se fosse um pedido aspectos, além do diagnóstico psiquiátrico e da
de tempo numa partida esportiva: permite uma medicação, no tratamento dos usuários.
respirada e uma reflexão para continuar o Portanto, é uma reunião de toda a equipe em
jogo. Mas o essencial é o jogo e não sua que todas as opiniões são importantes para
interrupção. ajudar a entender o Sujeito com alguma
demanda de cuidado em saúde e,
DIREITO À DIFERENÇA – Uma outra consequentemente, para definição de
possibilidade, importante no caso de atenção à propostas de ações. O nome Projeto
população étnica ou culturalmente Terapêutico Singular, em lugar de Projeto
diferenciada, como indígenas, negros ou Terapêutico Individual, como também é
ciganos é considerar a provável existência de conhecido, nos parece melhor porque destaca
recursos e de atores sociais que atuam com que o projeto pode ser feito para grupos ou
o terapeutas tradicionais, que compõem o famílias e não só para indivíduos, além de
universo sociocultural desses segmentos da frisar que o projeto busca a singularidade (a
população. A procura paralela e autônoma diferença) como elemento central de
desses recursos deve ser considerada. O articulação (lembrando que os diagnósticos
diálogo respeitoso sobre essa possibilidade tendem a igualar os sujeitos e minimizar as
configura condição indispensável tanto da diferenças: hipertensos, diabéticos, etc.).
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