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Enfermagem na Promoção a Saúde

CLÍNICA AMPLIADA, EQUIPE DE REFERÊNCIA E PROJETO TERAPÊUTICO SINGULAR


CLÍNICA AMPLIADA

1De modo geral, quando se pensa em clínica, um conjunto de sinais e sintomas que somente
imagina-se um médico prescrevendo um nele se expressam de determinado modo. Com
remédio ou solicitando um exame para isso, abrem-se inúmeras possibilidades de
comprovar ou não a hipótese do usuário ter intervenção, e é possível propor tratamentos
uma determinada doença. No entanto, a clínica muito melhores com a participação das
precisa ser muito mais do que isso, pois todos pessoas envolvidas.
sabemos que as pessoas não se limitam às Podemos dizer então que a clínica
expressões das doenças de que são ampliada é:
portadoras. • um compromisso radical com o sujeito
Alguns problemas como a baixa adesão doente, visto de modo singular;
a tratamentos, os pacientes refratários (ou • assumir a RESPONSABILIDADE sobre os
“poliqueixosos”) e a dependência dos usuários usuários dos serviços de saúde;
dos serviços de saúde, entre outros, • buscar ajuda em outros setores, ao que se
evidenciam a complexidade dos Sujeitos que dá nome de INTERSETORIALIDADE;
utilizam serviços de saúde e os limites da • RECONHECER OS LIMITES DOS
prática clínica centrada na doença. É certo CONHECIMENTOS dos profissionais de saúde e
que o diagnóstico de uma doença sempre das TECNOLOGIAS por eles empregadas e
parte de um princípio universalizante, buscar outros conhecimentos em diferentes
generalizável para todos, ou seja, ele supõe setores, como no exemplo mencionado
alguma regularidade e produz uma igualdade anteriormente em que o serviço de saúde
que é apenas parcialmente verdadeira, por incorporou o conhecimento acerca da
exemplo: um alcoolista é um alcoolista e um situação de exclusão em que viviam seus
hipertenso é um hipertenso. usuários;
Mas isso pode levar à suposição de que • assumir um compromisso ÉTICO profundo.
basta o diagnóstico para definir todo o Como se sabe, não são poucas as
tratamento para aquela pessoa. Entretanto, situações em que o adoecimento é causado ou
como já dizia um velho ditado: “cada caso é um agravado por situações de dominação e
caso”. E esta consideração pode mudar, ao injustiça social. Algumas dessas dominações
menos em parte, a conduta dos profissionais podem passar despercebidas, como é o caso
de saúde. Por exemplo, se a pessoa com das relações de gênero, dada a prevalência em
hipertensão é deprimida ou não, se está isolada, alguns contextos culturais. As doenças (como
se está desempregada ou não, tudo isso a LER/DORT) causadas pela superexploração,
interfere no desenvolvimento da doença. O pelas condições de trabalho inadequadas ou
diagnóstico pressupõe uma certa regularidade, formas de gestão autoritárias também são
uma repetição. Mas para que se realize uma outros exemplos. A clínica ampliada exige,
clínica adequada é preciso saber, além do que portanto, dos profissionais de saúde um exame
o sujeito apresenta de igual, o que ele permanente dos próprios valores e dos
apresenta de diferente, de singular, inclusive, valores em jogo na sociedade. O que pode ser
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ótimo e correto para o profissional pode Outras pessoas precisam de algum tipo
estar contribuindo para o adoecimento de um de ajuda para fazer isto. Portanto, a Clínica
usuário. O compromisso ético com o usuário Ampliada propõe que o profissional de saúde
deve levar o serviço a ajudá-lo a enfrentar, ou desenvolva a capacidade de ajudar as pessoas,
ao menos perceber, estas causalidades não só a combater as doenças, mas a
externas. transformar-se, de forma que a doença,
E por falar de dificuldades, não mesmo sendo um limite, não a impeça de viver
podemos esquecer que, às vezes, o próprio outras coisas na sua vida.
diagnóstico já traz uma situação de Nas doenças crônicas ou muito graves
discriminação social que aumenta o sofrimento isto é mais importante, porque o resultado
e dificulta o tratamento (exemplos são as sempre depende da participação da pessoa
doenças que produzem discriminação social, e doente, e essa participação não pode ser
os “diagnósticos” que paralisam a ação de entendida como uma dedicação exclusiva à
saúde, em vez de desencadeá-la). Cabe à clínica doença, mas, sim, uma capacidade de
ampliada não assumir como normal estas “inventar-se” apesar da doença. É muito comum
situações, principalmente quando nos serviços ambulatoriais que o descuido com
comprometem o tratamento. a produção de vida e o foco excessivo na
Vejamos alguns exemplos: doença acabe levando usuários a tornarem-se
1) “Quando vejo uma pessoa com a vida conhecidos como “POLIQUEIXOSOS” (com
igual à minha, desejo uma boa isquemia. Porque muitas queixas), pois a doença (ou o risco)
eu renasci, aprendi, foi um Big-Bang para mim” torna-se o centro de suas vidas.
(Carnavalesco Joãozinho Trinta, em 1998, se
referindo a um derrame cerebral). Algumas sugestões práticas
2) O compositor Tom Jobim uma vez
foi perguntado por que havia se tornado 3 A ESCUTA – Escutar significa, num primeiro
músico. Bem-humoradamente ele respondeu momento, acolher toda queixa ou relato do
que foi porque tinha asma. Como assim, usuário mesmo quando possa parecer não
perguntou o entrevistador? “Acontece que interessar diretamente para o diagnóstico e
estudar piano era bem mais chato do que sair tratamento. Mais do que isto, é preciso ajudá-lo
com a turma, namorar... como eu ficava muito a reconstruir (e respeitar) os motivos que
em casa por causa da asma, acabei me ocasionaram o seu adoecimento e as
dedicando ao piano.” correlações que o usuário estabelece entre o
2 Outro aspecto fundamental da clínica que sente e a vida – as relações com seus
ampliada, além da busca de autonomia para os convivas e desafetos. Ou seja, perguntar por
usuários, é a capacidade de equilibrar o que ele acredita que adoeceu e como ele se
combate à doença com a PRODUÇÃO DE VIDA. sente quando tem este ou aquele sintoma.
Os exemplos de Joãozinho Trinta e de Tom Quanto mais a doença for compreendida e
Jobim mostram que as pessoas podem correlacionada com a vida, menos chance
inventar saídas diante de uma situação imposta haverá de se tornar um problema somente do
por certos limites. Algumas pessoas especiais serviço de saúde, mas sim, também, do sujeito
fazem isso sozinhas. Elas “aproveitam” para doente. É mais fácil, assim, evitar a
enxergar o evento mórbido como uma infantilização e a atitude passiva diante do
possibilidade de transformação, o que não tratamento. Pode não ser possível fazer uma
significa que elas deixem de sofrer, mas que escuta detalhada o tempo todo para todo
elas encontram no sofrimento e apesar dele mundo (dependendo do tipo de serviço de
uma nova possibilidade de vida. saúde), mas é possível escolher quem precisa
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mais, e é possível temperar os encontros danos. O real significado e as expectativas das
clínicos com estas “frestas de vida”. pessoas quando procuram um serviço de
saúde precisam ser trabalhados na clínica
VÍNCULO E AFETOS – Tanto profissionais ampliada, para diminuir o número de doenças
quanto usuários, individualmente ou causadas por tratamento e para não iludir as
coletivamente, transferem afetos. Um usuário pessoas.
pode associar um profissional com um
parente e vice-versa. Um profissional que tem EVITAR RECOMENDAÇÕES PASTORAIS E
um parente com diabete não vai sentir-se da CULPABILIZANTES. NEGOCIAR RESTRIÇÕES
mesma forma, ao cuidar de um sujeito com SEM RANCOR E LEVANDO EM CONTA
diabete, que um profissional que não tem este INVESTIMENTOS DO DOENTE – Quem nunca viu
vínculo afetivo. É necessário aprender a aquele usuário que se compraz em provocar a
prestar atenção nesses fluxos de afetos equipe contando que não tomou a medicação
para melhor compreender-se e compreender ou que burlou uma dieta? Como isso
o outro, e poder ajudar a pessoa doente a acontece? Acontece que muitas vezes a
ganhar mais autonomia e lidar com a doença equipe, acreditando que uma determinada
de modo proveitoso para ela. Nesse processo, forma de viver seja mais saudável, põe-se a
a equipe de referência é muito importante, orientar enfaticamente os usuários sobre o
porque os fluxos de afetos de cada membro que fazer e evitar. Fala muito e escuta pouco.
da equipe com o usuário e familiares são Então, quando os usuários encontram
diferentes, permitindo que as possibilidades de dificuldades de seguir “as ordens” ou têm
ajudar o sujeito doente sejam maiores. Sem outras prioridades, a equipe se irrita com eles,
esquecer que, dentro da própria equipe estas muitas vezes não se dando conta disso. Essa
transferências também acontecem. irritação transparece e dificulta o diálogo e a
possibilidade de uma proposta terapêutica
4 MUITO AJUDA QUEM NÃO ATRAPALHA – pactuada com o usuário, provocando reações
Infelizmente o mito de que os tratamentos e de “afirmação de autonomia” e resistência ao
intervenções só fazem bem é muito forte. tratamento, gerando um neurótico círculo
Ocorre, entretanto, com relativa frequência, vicioso. É muito importante tentar produzir
o uso inadequado de medicações e exames, co-responsabilidade e não culpa. A culpa
causando graves danos à saúde e desperdício anestesia, gera resistência e pode até humilhar.
de dinheiro. Os diazepínicos e antidepressivos Muitas vezes, entra em funcionamento uma
são um exemplo. Aparentemente, muitas vezes, forma inconsciente da equipe de lidar com as
é mais fácil para os profissionais de saúde e limitações do tratamento transferindo o ônus
também para os usuários utilizarem esses de um possível fracasso para o usuário.
medicamentos, do que conversar sobre os
problemas e desenvolver a capacidade de 5 TRABALHAR COM OFERTAS E NÃO
enfrentá-los. O uso abusivo de antibióticos e a APENAS COM RESTRIÇÕES – As mudanças de
terapia de reposição hormonal são outros hábitos podem ser encaradas como ofertas
exemplos. Quanto aos exames, também existe de experiências novas e não apenas como
uma mitificação muito forte. É preciso saber restrições. Atividade física pode ser uma
que muitos deles têm riscos à saúde e limites, prazerosa descoberta, pratos mais adequados
principalmente quando são solicitados sem os podem ser bons, etc. Se admitirmos que o jeito
devidos critérios. A noção de saúde como bem normal de viver a vida é apenas mais um, e não
de consumo (“quanto mais, melhor”) precisa o único, e que as descobertas podem ser
ser combatida para que possamos diminuir os
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interessantes, fica mais fácil construir 6 EVITAR ASSUSTAR O USUÁRIO – O medo
conjuntamente propostas aceitáveis. nem sempre é um bom aliado. Provavelmente
funciona menos do que se imagina. Afinal,
ESPECIFICAR OFERTAS PARA CADA SUJEITO supor que o medo de adoecer ou morrer vai
– Se um usuário ama a atividade X ou a comida funcionar sempre significa supor que as
Y que, no entanto, não são recomendáveis pessoas agem sempre de forma racional em
para sua condição biológica, é preferível não direção aos seus interesses de sobrevivência.
começar o tratamento por ali. Ou então, Evidentemente, não somos assim. Existem
tentar um “meio termo” possível (redução de forças internas, como os desejos (por
danos). Especificar os Projetos Terapêuticos exemplo, por uma comida “especial”, ou uma
significa procurar o jeito certo e a proposta atividade importante); existem forças externas,
certa para cada pessoa ou grupo, de acordo como a cultura, definindo papéis sociais e
com suas preferências e história. hábitos de vida. Por tudo isso, talvez na maioria
das vezes, assustar o usuário é uma ação
EVITAR INICIAR CONSULTAS QUESTIONANDO pouco eficaz que pode tanto levar a pessoa a
AFERIÇÕES E COMPORTAMENTOS. uma dependência do serviço, quanto à
VALORIZAR QUALIDADE DE VIDA – Ao lidar resistência ao tratamento. Isso não significa
com pessoas portadoras de doenças que não devam ser apresentados os possíveis
crônicas, pode ser muito eficiente não riscos.
começar todos os encontros com perguntas
sobre a doença (comeu, não comeu, tomou LEMBRAR QUE DOENÇA CRÔNICA NÃO PODE
remédio ou não, etc.) ou infantilizantes SER A ÚNICA PREOCUPAÇÃO DA VIDA.
(“comportou-se??”). Isso mostra ao usuário o EQUILIBRAR COMBATE À DOENÇA COM
que queremos: ajudá-lo a viver melhor e não PRODUÇÃO DE VIDA – “Medicalização da vida” é
torná-lo submisso às nossas propostas. quando a doença torna-se preocupação
central na vida do usuário. Isso é muito comum
PERGUNTAR O QUE O USUÁRIO ENTENDEU DO em doenças crônicas. A autonomia diminui e
QUE FOI DITO SOBRE SUA DOENÇA E procurar médicos e fazer exames torna-se
MEDICAÇÃO – A linguagem dos profissionais de uma atividade central e quase única. Na
saúde nem sempre é compreensível. Portanto, verdade, as mesmas atitudes que podem
habituar-se a perguntar o que foi ouvido do produzir resistência ao tratamento podem
que dissemos ajuda muito. Além disso, é facilitar a medicalização. Resistência ou
importante ouvir quais as causas da doença na dependência são duas faces da mesma moeda.
opinião dos usuários. Em doenças crônicas é A equipe deve saber adequar as propostas
muito comum que a doença apareça após um terapêuticas aos investimentos afetivos do
estresse, como falecimentos, desemprego ou usuário (ou seja, o que gosta ou o que não
prisões na família. Ao ouvir as associações gosta) para que a doença e o tratamento não
causais, a equipe pode saber em que situações se tornem o seu objeto de investimento
similares o usuário pode piorar e o quanto o central. Isso é equilibrar as preocupações e
tratamento pode depender do desenvolvimento ações de combate à doença com as
da capacidade do usuário de lidar com essas preocupações de produção de vida.
situações.
Algumas sugestões para tentar evitar 7 ATUAR NOS EVENTOS MÓRBIDOS COM O
hipocondria e hipermedicação MÁXIMO DE APOIO E O MÍNIMO DE
MEDICAÇÃO. PREFERIR FITOTERÁPICOS A
DIAZEPÍNICOS – Muitos usuários iniciam uma
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doença durante processos de luto ou aproximação à lógica das concepções e
situações difíceis, como desemprego, prisão práticas sobre o processo saúde-doença
de parente, etc. A repetição ou persistência afeitas ao sujeito doente e à sua rede social,
dessas situações também pode agravar a como de possíveis negociações terapêuticas
doença. É importante que a equipe tente lidar no objetivo de atingir resultados que combinem
com essas situações da forma competente e maiores chances de eficácia biomédica com
tentando evitar dependência dos ansiolíticos aceitabilidade cultural.
(diazepínicos, principalmente). A capacidade de
escuta da equipe é uma grande ferramenta e PROJETO TERAPÊUTICO SINGULAR – PTS
é preciso saber que parte da cura depende
do sujeito aprender a lidar com essas O PTS é um conjunto de propostas de
situações agressivas de uma forma menos condutas terapêuticas articuladas, para um
danosa. A ideia de que toda dor ou estresse sujeito individual ou coletivo, resultado da
requer um ansiolítico é extremamente discussão coletiva de uma equipe
difundida, mas não pode seduzir a equipe de interdisciplinar, com apoio matricial se
saúde, que deve apostar num conceito de necessário. Geralmente é dedicado a situações
saúde ampliado que inclui também a capacidade mais complexas. No fundo é uma variação da
de lidar com os limites e revezes da vida da discussão de “caso clínico”. Foi bastante
forma mais produtiva possível. O ansiolítico desenvolvido em espaços de atenção à saúde
deve ser de preferência inicialmente mental como forma de propiciar uma atuação
fitoterápico, por não gerar dependência, e integrada da equipe valorizando outros
deve ser encarado como se fosse um pedido aspectos, além do diagnóstico psiquiátrico e da
de tempo numa partida esportiva: permite uma medicação, no tratamento dos usuários.
respirada e uma reflexão para continuar o Portanto, é uma reunião de toda a equipe em
jogo. Mas o essencial é o jogo e não sua que todas as opiniões são importantes para
interrupção. ajudar a entender o Sujeito com alguma
demanda de cuidado em saúde e,
DIREITO À DIFERENÇA – Uma outra consequentemente, para definição de
possibilidade, importante no caso de atenção à propostas de ações. O nome Projeto
população étnica ou culturalmente Terapêutico Singular, em lugar de Projeto
diferenciada, como indígenas, negros ou Terapêutico Individual, como também é
ciganos é considerar a provável existência de conhecido, nos parece melhor porque destaca
recursos e de atores sociais que atuam com que o projeto pode ser feito para grupos ou
o terapeutas tradicionais, que compõem o famílias e não só para indivíduos, além de
universo sociocultural desses segmentos da frisar que o projeto busca a singularidade (a
população. A procura paralela e autônoma diferença) como elemento central de
desses recursos deve ser considerada. O articulação (lembrando que os diagnósticos
diálogo respeitoso sobre essa possibilidade tendem a igualar os sujeitos e minimizar as
configura condição indispensável tanto da diferenças: hipertensos, diabéticos, etc.).

O PTS contém quatro momentos: diante de forças como as doenças, os desejos


1) O diagnóstico: que deverá conter uma e os interesses, assim como também o
avaliação orgânica, psicológica e social, que trabalho, a cultura, a família e a rede social.
possibilite uma conclusão a respeito dos riscos Ou seja, tentar entender o que o Sujeito faz
e da vulnerabilidade do usuário. Deve tentar de tudo que fizeram dele.
captar como o Sujeito singular se produz
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2) Definição de metas: uma vez que a equipe c) o tempo de um PTS: o tempo mais dilatado
fez os diagnósticos, ela faz propostas de de formulação e acompanhamento do PTS
curto, médio e longo prazo, que serão depende da característica de cada serviço.
negociadas com o Sujeito doente pelo membro Serviços de saúde na Atenção Básica e
da equipe que tiver um vínculo melhor. Centros de Especialidades com usuários
3) Divisão de responsabilidades: é importante crônicos têm um seguimento longo
definir as tarefas de cada um com clareza. (longitudinalidade) e também uma necessidade
4) Reavaliação: momento em que se discutirá a maior da Clínica Ampliada. Isso, naturalmente,
evolução e se farão as devidas correções de significa processos de aprendizado e
rumo. transformação diferenciados. Serviços com
tempo de permanência e vínculo menores
É realmente muito simples, mas alguns farão PTSs com tempos mais curtos. O mais
aspectos precisam ser observados: difícil é desfazer um viés imediatista que a
a) a escolha dos casos para reuniões de PTS: cultura hospitalar imprimiu em profissionais e
a proposta é de que sejam escolhidos usuários usuários. Geralmente não se faz uma
ou famílias em situações mais graves ou abordagem integral em um encontro único,
difíceis, na opinião de alguns membros da mesmo que seja uma consulta longa. Muitas
equipe (qualquer membro da equipe). Não informações essenciais surgem no decorrer
parece necessário nem possível que o grande do seguimento e a partir do(s) vínculo(s) com
esforço de fazer um PTS seja dirigido a o usuário. A história, em geral, vai se
todos os usuários de uma equipe, exceto em construindo aos poucos, embora, obviamente,
hospitais e, eventualmente, centros de não se possa falar de regras fixas para um
especialidade; processo que é relacional e complexo.
b) as reuniões para discussão de PTS: de d) PTS e Mudança: quando ainda existem
todos os aspectos que já discutimos em possibilidades de tratamento para uma doença,
relação à reunião de equipe, o mais importante não é muito difícil provar que o investimento
no caso deste encontro para a realização do da equipe de saúde faz diferença no
PTS é o vínculo dos membros da equipe com resultado. O encorajamento e o apoio podem
o usuário e a família. Cada membro da equipe, contribuir para evitar uma atitude passiva por
a partir dos vínculos que construiu, trará parte do usuário. Uma pessoa menos deprimida,
para a reunião aspectos diferentes e poderá que assume um projeto terapêutico solidário,
também receber tarefas diferentes, de como projeto em que se (re)constrói e
acordo com a intensidade e a qualidade desse acredita que poderá ser mais feliz,
vínculo. Defendemos que os profissionais que evidentemente tende a ter um prognóstico e
tenham vínculo mais estreito assumam mais uma resposta clínica melhor. No entanto, não
responsabilidade na coordenação do PTS. se costuma investir em usuários que se
Assim como o médico generalista ou outro acreditam “condenados”, seja por si mesmos,
especialista pode assumir a coordenação de como no caso de um alcoolista, seja pela
um tratamento frente a outros profissionais, estatística, como no caso de uma patologia
um membro da equipe também pode assumir a grave. Se esta participação do usuário é
coordenação de um projeto terapêutico importante, é necessário persegui-la com um
singular frente à equipe. Uma estratégia que mínimo de técnica e organização. Não bastam
algumas equipes utilizam é reservar um tempo o diagnóstico e a conduta padronizados. Nos
fixo, semanal ou quinzenal, para reuniões casos de “prognóstico fechado”, ou seja, de
exclusivas do PTS. usuários em que existem poucas opções
terapêuticas, como no caso dos usuários sem
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possibilidade de cura ou controle da doença, é Uma anamnese para a Clínica Ampliada e o PTS
mais fácil ainda para uma equipe eximir-se de A concepção de Clínica Ampliada e a
dedicar-se a eles, embora, mesmo nesses proposta do PTS convidam-nos a entender que
casos, seja bastante evidente que é possível as situações percebidas pela equipe como de
morrer com mais ou menos sofrimento, difícil resolução são situações que esbarram
dependendo de como o usuário e a família nos limites da Clínica Tradicional. É necessário,
entendem, sentem e lidam com a morte. O PTS portanto, que se forneçam instrumentos para
nesses casos pode ser importante como que os profissionais possam lidar consigo
ferramenta gerencial, uma vez em que mesmos e com os Sujeitos acometidos por
constitui um espaço coletivo em que se pode uma doença de forma diferente da tradicional.
falar do sofrimento dos trabalhadores em Se todos os membros da equipe fazem
lidar com determinada situação. A presunção as mesmas perguntas e conversam da mesma
de “não envolvimento” compromete as ações forma com o usuário, a reunião de PTS pode
de cuidado e adoece trabalhadores de saúde e não acrescentar grande coisa. Ou seja, é
usuários, porque, como se sabe, é um preciso fazer as perguntas da anamnese
mecanismo de negação simples, que tem tradicional, mas dando espaço para as ideias e
eficiência precária. O melhor é aprender a as palavras do usuário. Exceto que ocorra
lidar com o sofrimento inerente ao trabalho alguma urgência ou dúvida quanto ao
em saúde de forma solidária na equipe (ou diagnóstico orgânico, não é preciso direcionar
seja, criando condições para que se possa demais as perguntas e muito menos duvidar
falar dele quando ocorrer). dos fatos que a(s) teoria(s) não explica(m) (“só
Diante dessa tendência, é importante no dói quando chove, por exemplo”). Uma história
PTS uma certa crença de que a pessoa tem clínica mais completa, sem filtros, tem uma
grande poder de mudar a sua relação com a função terapêutica em si mesma, na medida
vida e com a própria doença. A herança das em que situa os sintomas na vida do Sujeito e
revoluções na Saúde Mental (Reforma dá a ele a possibilidade de falar, o que implica
Psiquiátrica), experimentando a proposta de algum grau de análise sobre a própria
que o Sujeito é construção permanente e que situação. Além disso, esta anamnese permite
pode produzir “margens de manobra”, deve ser que os profissionais reconheçam as
incorporada na Clínica Ampliada e no PTS. À singularidades do Sujeito e os limites das
equipe cabe exercitar uma abertura para o classificações diagnósticas. A partir da
imprevisível e para o novo e lidar com a percepção da complexidade do sujeito
possível ansiedade que essa proposta traz. Nas acometido por uma doença, o profissional
situações em que só se enxergava certezas, pode perceber que muitos determinantes do
podem-se ver possibilidades. Nas situações em problema não estão ao alcance de
que se enxergava apenas igualdades, podem-se intervenções pontuais e isoladas. Fica clara a
encontrar, a partir dos esforços do PTS, necessidade do protagonismo do Sujeito no
grandes diferenças. Nas situações em que se projeto de sua cura: autonomia.
imaginava haver pouco o que fazer, pode-se A partir da anamnese ampliada o tema
encontrar muito trabalho. As possibilidades da intervenção ganha destaque. Quando a
descortinadas por este tipo de abordagem história clínica revela um sujeito doente imerso
têm que ser trabalhadas cuidadosamente pela em teias de relações com as pessoas e as
equipe para evitar atropelamentos. O caminho instituições, a tendência dos profissionais de
do usuário ou do coletivo é somente dele, e é saúde é de adotar uma atitude “apostólica”
ele que dirá se e quando (BALINT, 1988). Propomos que não predomine
nem a postura radicalmente “neutra”, que
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valoriza sobremaneira a não-intervenção, nem evento mórbido, como um falecimento de
aquela típica na prática biomédica, que familiar ou uma briga, as pioras no controle
pressupõe que o Sujeito acometido por uma glicêmico estarão muitas vezes relacionadas a
doença seja passivo diante das propostas. eventos semelhantes (na perspectiva do
Outra função terapêutica da história Sujeito acometido pela diabete). Ao fazer esta
clínica acontece quando o usuário é estimulado pergunta, muitas vezes damos um passo no
a qualificar e situar cada sintoma em relação sentido de ajudar o Sujeito a reconhecer e
aos seus sentimentos e outros eventos da vida aprender a lidar com os “eventos” de forma
(modalização). Exemplo: no caso de um usuário menos adoecedora.
que apresenta falta de ar, é interessante • Procurar conhecer as singularidades
saber como ele se sente naquele momento: do Sujeito, perguntando sobre os medos, as
com medo? Conformado? Agitado? O que raivas, as manias, o temperamento, seu sono e
melhora e o que piora os sintomas? Que fatos sonhos. São perguntas que ajudam a entender
aconteceram próximo à crise? Isso é a dinâmica do Sujeito e suas características.
importante porque, culturalmente, a doença e Elas têm importância terapêutica, pois
o corpo podem ser vistos com um certo possibilitam a associação de aspectos muito
distanciamento e não é incomum a produção singulares da vida com o projeto terapêutico.
de uma certa “esquizofrenia”, que leva muitas • Procurar avaliar se há negação da
pessoas ao serviço de saúde como se elas doença, qual a capacidade de autonomia e quais
estivessem levando o carro ao mecânico: a os possíveis ganhos secundários com a
doença (e o corpo) fica dissociada da vida. Na doença. Na medida em que a conversa
medida em que a história clínica traz para transcorre, é possível, dependendo da
perto dos sintomas e queixas elementos da situação, fazer estas avaliações, que podem
vida do Sujeito, ela permite que haja um ser muito úteis na elaboração do projeto
aumento da consciência sobre as relações da terapêutico.
“queixa” com a vida. Quando a doença ou os • Procurar perceber a chamada
seus determinantes estão “fora” do usuário, a contratransferência, ou seja, os sentimentos
cura também está fora, o que possibilita uma que o profissional desenvolve pelo usuário
certa passividade em relação à doença e ao durante os encontros; procurar descobrir os
tratamento. limites e as possibilidades que esses
O que chamamos de história “psi” em sentimentos produzem na relação clínica.
parte está misturado com o que chamamos de Existem muitas pessoas e instituições falando
história clínica, mas aproveitamos recursos do na conversa entre dois Sujeitos. O profissional
campo da saúde mental para destacar está imerso nestas forças. Perceber a raiva,
aspectos que nos parecem essenciais. os incômodos, os rótulos utilizados (bêbado,
• Procurar descobrir o sentido da poliqueixoso, etc.), ajuda a entender os rumos
doença para o usuário: respeitar e ajudar na da relação terapêutica, na medida em que, ato
construção de relações causais próprias, contínuo, pode-se avaliar como se está lidando
mesmo que não sejam coincidentes com a com estas forças. Num campo menos sutil, é
ciência oficial. Exemplo: por que você acha importante também analisar se as intenções do
que adoeceu? É impressionante perceber as profissional estão de acordo com a demanda
portas que essa pergunta abre na Clínica: ela do usuário. O profissional pode desejar que o
ajuda a entender quais redes de causalidades o Sujeito use preservativos e não se arrisque
Sujeito atribui ao seu adoecimento. Em doenças com DST ou uma gravidez indesejada. O Sujeito
crônicas como o diabete, quando a sua pode estar apaixonado. O profissional quer
primeira manifestação está associada a um controlar a glicemia, o Sujeito quer ser feliz.
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Enfim é preciso verificar as intenções, as a ser negociada com o usuário. Se o objetivo
linhas de força que interferem na relação é que o projeto seja incorporado pelo usuário,
profissional-usuário para produzir algum essa negociação deve ser flexível, sensível às
caminho comum. mudanças de curso e atenta aos detalhes. É
• Procurar conhecer quais os projetos importante que haja um membro da equipe que
e desejos do usuário. Os desejos aglutinam uma se responsabilize por um vínculo mais direto e
enorme quantidade de energia vital e podem acompanhe o processo (coordenação).
ser extremamente terapêuticos, ou não. Só Geralmente esta pessoa deve ser aquela com
não podem ser ignorados. quem o usuário tem um vínculo mais positivo.
• Conhecer as atividades de lazer (do
presente e do passado) é muito importante. A A Reunião de Equipe
simples presença ou ausência de atividades É preciso reconhecer que a forma
prazerosas é bastante indicativa da situação tradicional de fazer gestão (CAMPOS, 2000)
do usuário; por outro lado, conhecer os tem uma visão muito restrita do que seja uma
fatores que mais desencadeiam transtornos reunião. Para que a equipe consiga inventar um
no usuário também pode ser decisivo num projeto terapêutico e negociá-lo com o
projeto terapêutico. São questões que em um usuário é importante lembrar que: Reunião de
número muito razoável de vezes apontam EQUIPE NÃO É um espaço apenas para que
caminhos, senão para os projetos uma pessoa da equipe distribua tarefas às
terapêuticos, pelo menos para o outras. Reunião é um espaço de diálogo e é
aprofundamento do vínculo e da compreensão preciso que haja um clima em que todos
do Sujeito. tenham direito à voz e à opinião. Como vivemos
• Fazer a história de vida é um recurso que numa sociedade em que os espaços do
pode incluir grande parte das questões cotidiano são muito autoritários, é comum que
propostas acima. Como demanda mais tempo, uns estejam acostumados a mandar e outros a
deve ser usado com mais critério. Muitas calar e obedecer. Criar um clima fraterno de
vezes requer também que haja um vínculo e troca de opiniões (inclusive críticas), associado
um preparo anterior à conversa, para que à objetividade nas reuniões, exige um
seja frutífera. aprendizado de todas as partes e é a primeira
tarefa de qualquer equipe.
Por último, em relação à inserção
social do Sujeito, acreditamos que as PTS e Gestão
informações mais importantes já foram ao As discussões para construção e
menos aventadas no decorrer das questões acompanhamento do PTS são uma excelente
anteriores, visto que o usuário falou da sua oportunidade para a valorização dos
vida. No entanto, nunca é demais lembrar que trabalhadores da equipe de saúde. Haverá uma
as questões relativas às condições de alternância de relevâncias entre os diferentes
sobrevivência (moradia, alimentação, trabalhos, de forma que em cada momento
saneamento, renda, etc.) ou da inserção do alguns membros da equipe estarão mais
Sujeito em instituições poderosas, como protagonistas e criativos do que outros (já que
religião, tráfico, trabalho, frequentemente as necessidades de cada usuário variam no
estão entre os determinantes principais dos tempo). No decorrer do tempo vai ficando
problemas de saúde e sempre serão evidente a interdependência entre todos na
fundamentais para o Projeto Terapêutico. equipe. A percepção e o reconhecimento na
A partir de todo este processo, equipe desta variação de importância é uma
chega-se a uma proposta, que deve começar
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forma importante de reconhecer e valorizar pensamentos e sentimentos possam ser
a “obra” criativa e singular de cada um. livremente expressados.
O espaço do PTS também é privilegiado _____________________________
para a equipe construir a articulação dos Referência
Brasil. Ministério da Saúde. Secretaria de Atenção à
diversos recursos de intervenção que ela
Saúde. Núcleo Técnico da Política Nacional de
dispõe (fazer um cardápio com as várias Humanização. Clínica ampliada, equipe de referência e
possibilidades de recursos disponíveis, projeto terapêutico singular / Ministério da Saúde,
percebendo que em cada momento alguns Secretaria de Atenção à Saúde, Núcleo Técnico da
Política Nacional de Humanização – 2. ed. – Brasília:
terão mais relevância que outros). Dessa
Ministério da Saúde, 2008. 60 p.: il. color. – (Série B.
forma é um espaço importantíssimo para Textos Básicos de Saúde)
avaliação e aperfeiçoamento desses mesmos ISBN 978-85-334-1337-5
recursos (“por que funcionou ou não esta ou 1. Sistema Único de Saúde. 2. Política de saúde. 3.
aquela proposta?”). Prestação de cuidados de saúde. I. Título. II. Série.

Outra importante utilidade gerencial dos


encontros de PTS é o matriciamento com
(outros) especialistas. Na medida em que a
equipe consegue perceber seus limites e suas
dificuldades (e esta é uma paradoxal condição
de aprendizado e superação), ela pode pedir
ajuda. Quando existe um interesse sobre
determinado tema, a capacidade de
aprendizado é maior. Portanto, este é
potencialmente um excelente espaço de
formação permanente. Por outro lado, é um
espaço de troca e de aprendizado para os
apoiadores matriciais, que também
experimentarão aplicar seus saberes em uma
condição complexa, recheada de variáveis que
nem sempre o recorte de uma especialidade
está acostumado a lidar. Este encontro é
tanto mais fecundo quanto mais houver um
contrato na rede assistencial de que haja
equipes de referência e apoio matricial.
Para as reuniões funcionarem é
preciso construir um clima favorável ao
diálogo, em que todos aprendam a falar e
ouvir, inclusive críticas. O reconhecimento de
limites, como dissemos, é fundamental para
invenção de possibilidades. Mas é preciso mais
do que isso, é preciso que haja um clima de
liberdade de se pensar “o novo”. O peso da
hierarquia, que tem respaldo não somente na
organização, mas também nas valorizações
sociais entre as diferentes corporações,
pode impedir um diálogo real em que

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