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ARTIGO ARTICLE 773

Culto ao corpo e uso de anabolizantes entre


praticantes de musculação

Body cult and use of anabolic steroids by


bodybuilders

Jorge Alberto Bernstein Iriart 1


José Carlos Chaves 1
Roberto Ghignone de Orleans 1

Abstract Introdução

1 Instituto de Saúde Coletiva,


This study focused on the reasons for practicing Uma das facetas que tem caracterizado a socie-
Universidade Federal da
Bahia, Salvador, Brasil. bodybuilding and the use of anabolic steroids, dade de consumo contemporânea é a crescen-
as well as the social representations and uses of te importância atribuída à aparência corporal.
Correspondência the body among bodybuilding steroid users. This Nas últimas décadas, o corpo tornou-se alvo de
J. A. B. Iriart
Instituto de Saúde Coletiva, ethnographic study involved participant obser- uma atenção redobrada com a proliferação de
Universidade Federal da vation in middle and lower-class bodybuilding técnicas de cuidado e gerenciamento dos corpos,
Bahia.
gyms in Salvador, Bahia State, Brazil, and 43 tais como dietas, musculação e cirurgias estéti-
Rua Augusto Vianna s/n, 2 o
andar, Campus Universitário in-depth interviews with steroid users. Aesthetic cas. Homens e mulheres investem cada vez mais
do Canela, Salvador, BA reasons are the main motivation for bodybuild- tempo, energia e recursos financeiros no consu-
40110-060, Brasil.
ing and steroid use in both middle and lower- mo de bens e serviços destinados à construção
iriart@ufba.br
class users. Dissatisfaction with one’s real body as e manutenção do invólucro corporal. Por outro
compared to the ideal standard flaunted by the lado, alguns estudos mostram que em paralelo ao
mass media, fear of being devalued or shunned culto ao corpo tem aumentado a insatisfação das
by one’s peer groups, the symbolic capital associ- pessoas com seus corpos, assim como o consu-
ated with a “pumped-up” body, and the sense of mo das chamadas “drogas da imagem corporal”,
immediacy in obtaining results all contributed entre as quais se incluem os esteróides anabóli-
to steroid use. Preventive campaigns are needed, cos androgênicos ou anabolizantes 1.
targeting young people and combining a critical Os anabolizantes são substâncias sintetiza-
view and deconstruction of the values assigned das em laboratório, relacionadas aos hormônios
to the body by consumer society, counteracted by masculinos (androgênios). O consumo destas
high-quality information on the health risks as- substâncias produz efeitos anabólicos, como o
sociated with anabolic steroid use. aumento da massa muscular esquelética, e efei-
tos androgênicos ou masculinizantes. O aumen-
Anabolic Agents; Exercise; Body Image to do consumo não terapêutico dos anabolizan-
tes, especialmente entre a população jovem, tem
sido relatado por pesquisadores em vários países
2,3,4,5,6 constituindo-se em crescente problema

de saúde pública. As altas taxas de consumo de


esteróides entre os jovens apontam para uma
mudança no perfil dos usuários. O uso de ana-

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bolizantes, que antes era restrito a atletas e fisi- tes por mulheres e adolescentes, mesmo por um
culturistas, popularizou-se entre os jovens não curto período, pode ocasionar efeitos colaterais
atletas que passaram a utilizá-los para fins esté- irreversíveis 4. Nas mulheres, tais efeitos incluem
ticos. Segundo Evans 4, dois terços dos usuários alterações na menstruação, engrossamento da
de anabolizantes são praticantes recreativos de voz, encolhimento dos seios, aumento da libido,
musculação. crescimento de cabelos no corpo, e aumento do
Nos Estados Unidos, estimativas recentes tamanho do clitóris 3. Outro ponto a ser destaca-
indicam a existência de 3 milhões de usuários. do é que os efeitos colaterais associados ao uso
De 2,7% a 2,9% dos jovens adultos americanos destes produtos por longos períodos, tanto em
usaram anabolizantes pelo menos uma vez em doses terapêuticas quanto suprafisiológicas, ain-
suas vidas 4. Outros estudos mostram que 4% a da são desconhecidos 4. Complicações decorren-
6% dos estudantes do sexo masculino do Ensino tes da aplicação de anabolizantes por via paren-
Médio (high school) admitem ter usado anaboli- teral também podem causar sérios problemas de
zantes em algum momento de suas vidas e que o saúde, como inflamações, fibroses musculares,
uso por mulheres aumentou significativamente infecções e abscessos. Somam-se a estes efeitos
na última década 3. Estudos realizados no Cana- adversos o risco de contrair o HIV, ou os vírus das
dá, Suécia, Inglaterra, Austrália e África do Sul hepatites B e C pelo uso de equipamentos não
relataram prevalências entre escolares do Ensi- estéreis de injeção 12.
no Médio (high school) que variam de 1% a 3% 3. Um volume crescente de literatura traz evi-
Levantamentos realizados em academias de dências também da associação entre o uso de
musculação revelam que a prevalência de uso anabolizantes e desordens psiquiátricas, como
destas drogas entre fisiculturistas é bastante al- distúrbios de personalidade, depressão, mania,
ta, variando de 15% a 30% 4. psicose, suicídio e aumento nos níveis de irrita-
No Brasil, o consumo para fins estéticos dos bilidade e agressividade podendo causar depen-
anabolizantes ainda é pouco estudado. Estudos dência 3,4,13.
qualitativos como os de Iriart & Andrade 7 e Sabi- No Brasil, vários casos de danos à saúde cau-
no 8 descrevem o grande consumo dessas subs- sados pelo consumo de anabolizantes têm sido
tâncias, incluindo o uso de produtos veterinários, relatados 7,9,10, mas pouco tem sido feito para
entre praticantes de musculação em Salvador prevenção do uso dessas substâncias entre os
(Bahia) e no Rio de Janeiro. Estudos quantitati- jovens.
vos realizados em academias de musculação de O presente estudo teve por objetivo investi-
São Paulo 9, Porto Alegre (Rio Grande do Sul) 10 gar as motivações para a prática da musculação
e Goiânia (Goiás) 11 encontraram altas prevalên- e para o uso de anabolizantes, assim como as re-
cias do uso de anabolizantes (respectivamente, presentações e usos sociais do corpo entre usuá-
19%; 11,1% e 9%). rios de anabolizantes que praticam musculação
O uso abusivo de anabolizantes está asso- em academias de bairros populares e de classe
ciado a vários efeitos colaterais nocivos à saú- média de Salvador.
de 3,4,12,13. No sistema reprodutivo masculino,
o consumo de anabolizantes acarreta dese-
quilíbrio hormonal com redução nos níveis de Culto ao corpo e sociedade de consumo
testosterona endógena podendo levar à gineco-
mastia, atrofia testicular, alterações na morfolo- Para compreender o consumo de anabolizantes
gia do esperma e infertilidade. Entre os efeitos faz-se necessário compreender o crescente cul-
dermatológicos, encontra-se a acne que, segun- to ao corpo na sociedade de consumo contem-
do Melnik et al. 6, ocorre em 50% dos usuários porânea. Desde os estudos pioneiros de Marcel
de anabolizantes e é um importante indicador Mauss, a antropologia tem mostrado como o cor-
clínico do abuso dessas substâncias. po constitui-se, em todas as culturas, em símbolo
O uso de anabolizantes também tem sido re- sobre o qual se inscrevem as normas culturais. Os
lacionado com fatores de risco cardiovasculares, padrões de beleza, os significados associados aos
existindo relatos de casos de hipertensão, hiper- músculos ou ao corpo obeso transformam-se ao
trofia ventricular, arritmia, trombose, infarto do longo do tempo e refletem os valores centrais de
miocárdio e morte súbita 4. A estrutura e função cada contexto cultural. Nas sociedades tradicio-
do fígado são alteradas pelo uso de anabolizan- nais, as marcas sociais no corpo indicavam o per-
tes podendo acarretar hepatite, hiperplasia e tencimento do nativo a determinada etnia e sua
adenoma hepatocelular 3. Os efeitos colaterais inserção no espaço social. O fato novo, contudo,
se acentuam com o consumo de altas doses por para o qual chama atenção Marzano-Parisoli 14
longos períodos de tempo. É importante ressal- é a amplitude do fenômeno de valorização do
tar, no entanto, que o consumo de anabolizan- invólucro corporal e o reforço dos critérios esté-

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ticos e éticos de controle aplicados aos corpos na dade da conversação é alimentada em razão das
contemporaneidade. respostas dadas pelo entrevistado, possibilitan-
Na sociedade contemporânea, marcada por do aprofundá-las com questões de seguimento
valores como o consumismo, o individualismo, a (follow up questions). As entrevistas tiveram em
busca do sucesso e o acúmulo de bens materiais, média mais de uma hora de duração e foram
o corpo tornou-se também objeto de consumo. gravadas e transcritas integralmente.
O consumismo permite aos indivíduos se situar A observação participante foi realizada em
socialmente mediante a possessão e acúmulo de uma academia num bairro de classe média e du-
capital material e simbólico 15. As mercadorias, as academias localizadas em bairros populares.
os objetos, as roupas e o corpo enquanto objetos A entrada em campo aconteceu a partir do con-
de consumo passam a dizer a “verdade” sobre o tato com instrutores e responsáveis pelas aca-
sujeito constituindo suas referências, sua auto- demias. Os pesquisadores matricularam-se nas
estima, e sua identidade. A enorme valorização academias e passaram a freqüentá-las semanal-
da aparência corporal inscreve-se num processo mente, em diferentes horários e dias da semana
em que o corpo físico assume um papel funda- de forma a conhecer suas rotinas e observar a
mental na exteriorização da subjetividade e na dinâmica das interações sociais no seu interior. A
construção das identidades. Esse processo foi observação nas academias incluiu as conversas
potencializado pela mídia, que adquiriu enorme informais com instrutores e praticantes de mus-
poder de influência sobre as pessoas na contem- culação antes, durante e depois das práticas dos
poraneidade, passando a ocupar um papel im- exercícios, permitindo também a observação da
portante na disseminação de valores e padrões relação dos praticantes entre si. Todas as obser-
estéticos 16 e contribuindo para a criação de no- vações foram registradas em diários de campo.
vas necessidades que, por sua vez, alimentam A observação participante com presença sis-
uma milionária indústria da estética que não temática em campo permitiu o contato com os
cessa de se expandir. praticantes de musculação e a identificação de
Segundo Bourdieu 17, a relação com o cor- alguns usuários de anabolizantes. Foi utilizada
po é uma forma de experimentar a posição do também a técnica da bola de neve (snowball sam-
sujeito no espaço social, medida pela distância pling), por intermédio da qual um entrevistado
entre o corpo real e o corpo ideal legitimado pela indica outro e assim sucessivamente. A técnica
sociedade. As marcas corporais, ou o conjunto de tem se mostrado útil na realização de entrevistas
signos distintivos que constituem o corpo permi- com pessoas envolvidas com atividades estigma-
tem distinguir os indivíduos e grupos na estrutu- tizantes (como a prostituição ou o uso de dro-
ra social. Para este autor, enquanto produtos so- gas ilícitas) por favorecer o acesso a pessoas que
ciais, as propriedades corporais são apreendidas sem o contato pessoal poderiam recusar serem
através de categorias de percepção e de sistemas entrevistadas 19. Nas academias dos bairros po-
de classificação intimamente associados à inser- pulares, o acesso aos usuários de anabolizantes
ção de classe dos agentes sociais. também foi facilitado pela mediação dos agentes
comunitários da Aliança de Redução de Danos
Fátima Cavalcante da Universidade Federal da
Metodologia Bahia (ARD-FC/UFBA) que realizam trabalho de
redução de danos em bairros de Salvador com
Foi realizado um estudo qualitativo de nature- ações que incluem a troca de seringas entre usu-
za etnográfica com utilização de técnicas qua- ários de anabolizantes.
litativas, como entrevistas semi-estruturadas Foram considerados usuários e selecionados
e observação participante em academias de para as entrevistas em profundidade praticantes
musculação de bairros das camadas médias e de musculação de 18 a 35 anos que tenham feito
populares de Salvador. O trabalho de campo de- uso em algum momento de suas vidas de este-
senvolveu-se num período de oito meses, du- róides anabolizantes. A escolha dos informantes
rante os quais foram realizadas 43 entrevistas buscou contemplar o critério da heterogeneida-
em profundidade com usuários de anabolizan- de dos consumidores levando em conta, além
tes e sete com instrutores das academias. Dois das diferenças de sexo, idade e classe social, o
roteiros semi-estruturados foram elaborados e padrão de consumo e o tempo de uso de anabo-
utilizados como guias para as entrevistas. Por lizantes.
entrevistas em profundidade 18 entende-se o
tipo de entrevista que encoraja a narrativa do Análise
entrevistado e favorece a livre expressão de suas
concepções sobre o tema da entrevista (estrutu- Como categoria analítica importante nesta pes-
rando-o do seu ponto de vista) e cuja continui- quisa foi utilizado o conceito de representações

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sociais, entendido como “um tipo de saber so- Resultados


cialmente negociado, contido no senso comum e
na dimensão da vida cotidiana, que permite ao Perfil dos usuários de anabolizantes
indivíduo uma visão de mundo e o orienta nos entrevistados
projetos de ação e nas estratégias que desenvolve
em seu meio social” 20 (p. 25). Enquanto conhe- Dos 43 usuários entrevistados, 27 freqüentavam
cimentos enraizados social e culturalmente 21, academias em bairros populares e 16 acade-
as representações sociais só adquirem senti- mias em bairros de classe média e alta; eram
do e significado pleno no contexto sócio-cul- 37 homens e seis mulheres. Entre as mulheres,
tural e situacional em que se manifestam 20. É apenas uma usuária freqüentava academia em
importante frisar que não existe uma relação bairro popular. O pequeno número de usuários
direta entre representações e comportamento do sexo feminino identificados para entrevista
individual. Enquanto código partilhado e cultu- está de acordo com o encontrado na literatura,
ralmente carregado, porém, as representações que mostra a preponderância do sexo masculi-
estabelecem disposições e motivações para a no no consumo de anabolizantes. Os usuários
ação social. de anabolizantes praticantes de musculação em
A análise teve por objetivo evidenciar o có- academias de bairros de classe média alta pos-
digo pelo qual se elaboram significações ligadas suem alta escolaridade. Dos dezesseis entrevis-
às condutas individuais e coletivas 21, no caso, tados, nove são estudantes universitários e três
a prática da musculação e o uso de anabolizan- possuem curso superior completo. Já nas aca-
tes, interpretando os discursos e práticas em seu demias dos bairros populares os praticantes de
contexto sócio-cultural mais amplo. musculação entrevistados se caracterizam pela
Em um primeiro momento, as entrevistas e baixa e média escolaridade. Dos 27 entrevista-
diários de campo foram lidos e relidos em uma dos, 13 tem o Ensino Fundamental incompleto;
“leitura flutuante” na busca de temas salientes, sete tem o Ensino Médio completo e apenas um
padrões recorrentes e discordantes, estrutu- está cursando o Ensino Superior.
ras de relevância dos atores sociais, expressões
idiomáticas e metáforas 22. Cada entrevista Substâncias mais utilizadas nas academias de
transcrita foi então analisada e códigos foram bairros populares e de classe média
indutivamente elaborados para designação dos
temas emergentes. Este processo possibilitou a Entre os usuários das academias em bairros de
construção das categorias empíricas (a exemplo classe média, as substâncias mais utilizadas fo-
dos “ideais de corpo” ou das categorias êmicas ram Durateston (proprionato/fenilpropriona-
“malhar para modelo” ou “malhar para seguran- to/isocaproato/caproato de testosterona; Orga-
ça”), e de seu confronto com as categorias ana- non, Brasil), Deca-durabolin (decanoanato de
líticas (representações do corpo, usos sociais landrolona; Organon, Brasil) e Winstrol (estano-
do corpo, representações da musculação e dos zolol; Zambon, Espanha). Foram mencionados
anabolizantes) na busca das inter-relações e in- também o Deposteron (cipionato de testostero-
terconexões 22. na; Sigma Pharma, Brasil), Primobolan (mete-
Para auxiliar o ordenamento, codificação e nolona; Shering, México/Espanha/Alemanha),
facilidade na recuperação dos dados, foi utiliza- Hemogenin (oximetalona; Sanofi-Aventis, Sar-
do o programa de análise de dados qualitativos sa/Hoechst Marion Roussel, Brasil) e produtos
N.Vivo 2 (QRS International Pty, Doncaster, Aus- veterinários como Androgenol (testosterona
trália). Este programa permite a codificação dos animal; Hertape, Brasil) e ADE (complexo vita-
dados das entrevistas e observações em catego- mínico; Labovet, Hertape e Pfizer, Brasil). Entre
rias e possibilita imprimir relatórios específicos os usuários das academias dos bairros popula-
(por cada categoria), além de facilitar o acesso res, as substâncias mais utilizadas foram Du-
aos dados para a criação de subcategorias 23. rateston, ADE e Deca-durabolin, seguidas de
Estradon-p (testosterona e estradiol; Organon,
Considerações éticas Brasil), Hemogenin, Estigor (nandrolona animal
e ADE; Burnet, Argentina), Potenay (complexo
O presente estudo foi aprovado pelo comitê de vitamínico veterinário e estimulante; Fort Dod-
ética do Instituto de Saúde Coletiva da UFBA ge, Brasil), e Deposteron. Chama a atenção entre
(processo nº. 044-05/CEP-ISC) e cumpriu todos os usuários das academias dos bairros popula-
os requisitos da Resolução nº. 196/96 do Conselho res o grande consumo em doses muito elevadas
Nacional de Saúde. de produtos veterinários, sendo os principais: o
ADE, Androgenol, Estigor, Potenay e Equipoise
ou Equifort (undecilenato de boldenona; Pu-

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rina, Brasil). Os anabolizantes utilizados, em R: “Um corpo definido sem, sem gordura, o
geral, são os que têm os preços mais acessíveis, mínimo de gordura” (25 anos, sexo masculino,
enquanto os usuários de classe média recorrem classe média).
freqüentemente a produtos importados e mais R: “Um corpo sem gordura, abdômen zero, a
dispendiosos como o anabolizante Winstrol. Os musculatura do abdômen tudo desenhado” (29
anabolizantes Durateston e Deca-durabolin, no anos, sexo feminino, classe média).
entanto, encontram-se entre os produtos mais Chama a atenção nos discursos, a freqüente
utilizados tanto por usuários de classe média alusão à busca de um ideal de perfeição corporal.
quanto das classes populares. Fala-se em “corpo perfeito” e acredita-se ser pos-
sível atingir este ideal no qual o desenvolvimento
A busca do corpo ideal de uma musculatura trabalhada é uma das prin-
cipais características. A possessão do corpo ideal
A preocupação com a estética foi sem dúvida é vista pelos entrevistados como condição im-
a principal motivação referida pelos usuários, portante para aumentar sua auto-estima e sen-
tanto nas academias dos bairros populares co- tir-se bem consigo mesmo.
mo nas academias de classe média, para o iní- “Eu espero um bom resultado, modelar meu
cio da prática da musculação. Os resultados corpo, definir meu corpo. Eu ainda não cheguei
indicam que a preocupação com o invólucro onde eu quero. Eu preciso de mais... entendeu? En-
corporal e a crescente obsessão com a forma tão, eu quero chegar à perfeição” (32 anos, sexo
física não se restringem apenas aos estratos so- masculino, classe média).
ciais mais elevados. A busca da construção de P: “E o que é a perfeição pra você?”.
um corpo adequado aos padrões valorizados na R: “É o corpo todo simétrico, todo na medida
sociedade contemporânea, e difundidos pela certa, com tudo correto, compatível com o que se
mídia, dissemina-se pelas diferentes camadas deseja” (32 anos, sexo masculino, classe média).
sociais fazendo-se presente nas dispendiosas O descompasso entre o “corpo real” e o pa-
academias da elite soteropolitana como nas drão de perfeição corporal idealizado gera gran-
precárias e improvisadas academias dos bairros de insatisfação com o próprio corpo: “Eu era um
populares da cidade. pouco raquítico..., então eu entrei na malhação
“Eu comecei a malhar pra ficar com um cor- buscando dar uma melhorada no meu corpo...”
pinho legal” (sexo masculino, 18 anos, classes (30 anos, sexo masculino, classes populares).
populares). “Eu me achava muito magra, eu queria ga-
“Eu tava preocupado em estética, assim, ter nhar corpo” (25 anos, sexo feminino classe mé-
corpo bonito, sarado...” (sexo masculino, 22 anos, dia).
classes populares). É interessante notar a transformação nos sig-
O modelo de corpo perseguido pelos prati- nificados do corpo musculoso, que no passado
cantes de musculação se caracteriza pela mus- além de associar-se ao poder masculino, denota-
culatura saliente e definida e pela quase ausên- va também o trabalho manual e a condição pro-
cia de adiposidade. “Definir a musculatura” é letária 14. Na contemporaneidade, entretanto, o
a expressão mais recorrente nos discursos dos músculo perde esta última conotação e se torna
entrevistados e remete ao cuidadoso trabalho ícone cultural altamente valorizado, simbolizan-
de tonificação e delineamento dos músculos: do vigor, saúde e sucesso 14,24. Mais do que isso,
“Corpo dividido é assim: você vê que tem pessoas o corpo musculoso adquire também um valor
que esticam a perna e você vê os cortes. Então aí é moral por meio do qual as pessoas passam a ser
uma perna dividida. Por que, além de ser grande, classificadas e julgadas: “Hoje em dia se você não
você vê os cortes... Igual o braço. Você puxa aqui, tiver um corpo malhado, se você for fora de forma,
tem bíceps, puxa ali e então o tríceps é definido. as pessoas não tem o mesmo respeito por você” (29
Então você tem o ombro... O ombro você puxa anos, sexo feminino, classe média).
assim e vê os cortes. O peito você olha assim e não A imposição do ideal de corpo contemporâ-
vê aquele peito gordo, você vê um peito definido. neo é claramente percebida como coercitiva por
Então um corpo dividido, é um corpo desenha- alguns informantes, sobretudo os mais jovens,
do, os músculos são desenhados” (30 anos, sexo que sofrem a pressão de seu grupo de pares para
masculino, classes populares). se adequarem aos padrões normativos: “Eu era
A gordura é vista como a grande vilã no cami- muito magro... as pessoas ficavam fazendo crí-
nho do corpo perfeito e o objetivo é erradicá-la ticas... diziam que eu era magro, que eu era se-
por completo. co, que eu era carcaça, que eu tinha que tomar
P: “E que tipo de corpo você deseja obter com ‘bomba’ pra sair daquilo. Eu era muito cobrado.
a musculação?”. A sociedade impõem isto, esse padrão de estética”
(23 anos, sexo masculino, classe média).

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778 Iriart JAB et al.

“Se você tem o seu corpo legal, bonitinho, te de saúde do indivíduo e o corpo trabalhado passa
ajuda em muitas coisas. Você tem que ser magro, a ser indicador importante de boa saúde.
ou então ter o corpo definido, entendeu? Se você Para alguns usuários entrevistados nas aca-
tiver fora desse padrão, você já é visto como dife- demias populares, o discurso da saúde engloba o
rente. Eu sei que é, assim que eu to sendo igual a fato de a prática da musculação e o cuidado com
todo mundo, o que a cultura atual quer” (22 anos, o corpo favorecerem o afastamento de vícios co-
sexo masculino, classe média). mo fumar e beber, tanto quanto o consumo de
O medo de ser diferente, desvalorizado ou de outras drogas percebidas como mais nocivas à
não obter sucesso junto ao sexo oposto mobiliza saúde que os anabolizantes: “para nós que vive-
as pessoas, particularmente os mais jovens à prá- mos em um meio que não é muito favorável ao
tica da musculação. O sucesso na aquisição de nosso desenvolvimento... [a musculação] me afas-
um corpo mais adequado aos padrões vigentes, tou do uso de tóxicos... me ajudou a me afastar da
por outro lado, recompensa aqueles que passam marginalidade que há no meu bairro” (22 anos,
a se destacar pela presença física e conquistar o sexo masculino, classes populares).
reconhecimento de seus pares. É muito forte nos
discursos o desejo de atrair o olhar do outro: “a Representações e usos sociais do corpo
gente acaba malhando para o outro, para mostrar
os músculos”. Um dos principais núcleos de sentido no discur-
O culto da aparência esta baseado na cons- so dos entrevistados é a representação do corpo
trução de um corpo para ser visto, o que Le Bre- como um objeto incompleto, que necessita ser
ton 25 denomina de estética da presença, sendo a construído, trabalhado e aperfeiçoado. O corpo
musculatura desenvolvida um dos modos privi- é concebido como um objeto plástico no qual o
legiados de visibilidade do corpo no anonimato indivíduo pode e deve trabalhar, controlando-o e
urbano 24. moldando-o segundo sua vontade.
“Eu tô completando meu corpo” (30 anos, se-
Estética e saúde xo masculino, classes populares).
“Para mostrar que eu posso fazer o que eu que-
Menos importante que a motivação estética, ro” (29 anos, sexo masculino, classes populares).
mas igualmente presente nas justificativas dos “Eu tô conquistando o corpo que eu desejo”
usuários de anabolizantes para a prática da (23 anos, sexo feminino, classe média).
musculação é o “discurso da saúde” que enalte- O processo de construção e de controle do
ce as conseqüências positivas para a saúde ad- corpo torna-se extremamente valorizado, distin-
vindas da musculação. Este discurso perpassa guindo as pessoas “que se cuidam” das “pessoas
as diferentes camadas sociais e caracteriza-se desleixadas” que não investem em seus corpos.
também pela preocupação com o envelheci- Como afirma Marzano-Parisoli 14 (p. 37), na con-
mento e o desejo de manter-se eternamente jo- temporaneidade o corpo deve estar completa-
vem: “quero chegar aos 40, 50 anos com cara de mente “sob controle” e “é o corpo musculoso que
20. Porque é bom para saúde, fortalece os ossos, dá a prova mais importante da capacidade que se
fortalece o tecido, ajuda no batimento cardíaco, tem de dominar a própria vida”. Já um corpo gor-
redução de algumas doenças cardiovasculares, do e flácido é julgado com desprezo, pois indica
pressão alta...” (31 anos, sexo masculino, classes a falta de determinação no cuidado de si e, por-
populares). tanto, fraqueza moral. O processo de metamor-
“É obter um envelhecimento saudável. Porque fose e reconstrução do corpo é fundamental na
através da musculação, quanto mais você enve- ideologia do bodybuilding 24. No fisiculturismo, o
lhece, seu corpo precisa da massa muscular. Então, invólucro corporal torna-se alvo de uma atenção
é melhor porque você não vai apresentar nenhum obsessiva, que implica enorme autodisciplina
risco, coração, cardíaco, coisas assim. Você está aproximando-se de um culto profano com ritos
com seu corpo forte. Envelhece na idade, mas o quase religiosos 24. A prática da musculação ad-
corpo continua novo” (31 anos, sexo masculino, quire contornos ascéticos em que o esforço, o
classes populares). sacrifício e a dor sentida pelo praticante no pro-
É interessante notar que a preocupação com cesso de construção corporal são valorizados e
a saúde, manifesta na justificativa para a prática atestam a sua superioridade moral, fato corrobo-
da musculação, não impede o uso de anaboli- rado por um dos nossos informantes ao afirmar
zantes. Contribui para este fato a representação, que: “a pessoa que tem o corpo grande demonstra
similar ao relatado por Luz 26 em estudo no Rio que é superior”.
de Janeiro, de que manter o “corpo em forma” Na contemporaneidade, o corpo passou a
torna-se cada vez mais equivalente a ter um cor- desempenhar um papel essencial na promoção
po saudável. A aparência corporal revela o estado individual, transformando-se em um objeto de

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consumo e de investimento. Como mostra Cour- “...Porque quando você tem um corpo avan-
tine 24, sustentados pela obsessão dos invólucros tajado com malhação, você é chamado para tra-
corporais, consolidaram-se, a partir dos anos 80 balhar em eventos, você tem vários lugares para
do século XX, verdadeiros impérios industriais trabalhar” (31 anos, sexo masculino, classes po-
que englobam academias de musculação, re- pulares).
vistas especializadas, suplementos alimentares, A hipervirilização do corpo associa-se tam-
aparelhos de musculação e regimes alimentares. bém à construção de um ideal de masculinidade
A beleza e a força física tornaram-se mercadorias hegemônica 27, bem expresso na fala de um en-
altamente valorizadas e o indivíduo assumiu o trevistado que afirmou a importância dos mús-
papel de gestor do seu corpo 24, que deve ser ad- culos para “impor sua masculinidade”. A muscu-
ministrado como um capital 17,25. latura hiperdesenvolvida atesta de forma inequí-
Para os entrevistados freqüentadores de voca a masculinidade do fisiculturista. Autores
academias de classe média, o investimento no como Klein 28, Courtine 24, e Le Breton 25 vêem
corpo ganha a forma, sobretudo do acúmulo de na hipervirilização uma resposta à ameaça que
capital simbólico. A possessão do corpo midiá- representa um sentimento de perda da potência
tico proporciona status à pessoa, que conquista viril na redefinição dos papéis de gênero. A ca-
admiração e popularidade no seu meio social, rapaça de músculos refletiria a insegurança em
permitindo também a conquista afetiva de pares um mundo no qual as relações de gênero estão
com mesmo nível de beleza. Entre os indivíduos em rápida transformação e o papel masculino
entrevistados pertencentes às classes populares tradicional é cada vez mais questionado.
o trabalho sobre o corpo assume a conotação de A imagem de sucesso associada a celebrida-
um forte investimento profissional. Este aspec- des com corpos musculosos disseminada pelos
to fica bem evidenciado nas categorias êmicas meios de comunicação de massa é uma impor-
“malhar para modelo ou malhar para segurança” tante fonte de motivação para a modificação cor-
utilizada por um dos informantes para fazer re- poral. Na lógica do consumo, a mídia contribuiu
ferência ao tipo de corpo que se deseja construir para expansão do consumo de bens e produtos
e às possibilidades de inserção no mercado de de beleza e transformou a aparência numa di-
trabalho, ou mesmo de ascensão social por in- mensão essencial na constituição da identidade
termédio do trabalho sobre o corpo. Malhar para e da subjetividade, enquanto importante com-
modelo tem como objetivo desenvolver modera- ponente da personalidade e do bem estar dos
damente a musculatura construindo um corpo indivíduos 16,29. Como afirma Costa 29(p. 166):
definido, mas não excessivamente musculoso. “estar feliz não se resume mais a se sentir senti-
Para os entrevistados, a boa aparência propor- mentalmente repleto. Agora é preciso também se
cionada pelo corpo modelado é vista como um sentir corporalmente semelhante aos ‘vencedo-
quesito que conta na busca da colocação no mer- res’...”. Para este autor 29, a massa dos indivídu-
cado de trabalho. Já “malhar para segurança” im- os é levada a admirar e a querer imitar o estilo
plica hipertrofiar a musculatura exageradamen- de vida dos ricos, poderosos e famosos. Dada,
te, construindo um corpo enorme que imponha no entanto, a dificuldade que a maioria tem de
respeito ao simples olhar. Foi muito freqüente, no ascender socialmente, o corpo aparece como o
discurso dos praticantes de musculação nas aca- principal instrumento passível de possibilitar ao
demias populares o desejo de construir um cor- indivíduo comum aproximar-se de alguma for-
po de fisiculturista, exageradamente musculoso. ma do círculo dos privilegiados. A corrida pela
Nomes como Ronnie Coleman e Arnold Schwar- posse do corpo midiático, do corpo-espetáculo,
zenegger são muito citados como modelos de conquistando uma imagem semelhante aos dos
corpo admirados pelos entrevistados. Muitos dos bens sucedidos representaria um meio de aceder
praticantes de musculação nas academias popu- simbolicamente a uma condição social da qual a
lares trabalham ou fazem bicos como segurança maioria da população está excluída 29. Na mesma
sendo esta ocupação, em um contexto de forte linha interpretativa, Le Breton 25 afirma que mo-
desemprego, a principal opção para inserção no difica-se o corpo na impossibilidade de modificar
mercado de trabalho. suas condições de existência. “Ao mudar o corpo,
“...Eu nunca, nunca tive um trabalho certo, o indivíduo pretende mudar sua vida, modificar
hoje em dia eu já tenho. Não tenho de carteira as- seu sentimento de identidade” 25 (p. 30). O corpo
sinada, mas tenho um trabalho, agradeço ao meu tornou-se um acessório da pessoa e ao perceber-
corpo porque, eu tenho uma estatura, eu traba- se cada vez mais enquanto reflexo de seu invó-
lho de segurança então, o pessoal já me visualiza lucro corporal, o indivíduo busca reduzir, pelo
mais... por ter porte bonito. Foi aí que minha vi- trabalho sobre o corpo, o desvio experimentado
da começou a mudar, depois da musculação” (30 entre sua aparência e seu eu-interior. Neste pro-
anos, sexo masculino, classes populares). cesso, a interioridade do sujeito encontra-se em

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constante esforço de exteriorização, reduzindo- o incentivo de amigos, namorados(as) e colegas


se a sua superfície corporal 25. de academia como um fator que favoreceu o uso
de anabolizantes. O medo de ser desvalorizado
Razões para o uso de anabolizantes entre os seus pares ou até mesmo de ser excluído
do grupo favorece que o jovem busque se ade-
A motivação primeira para o uso de anabolizan- quar ao padrão de corpo socialmente valorizado
tes é o imediatismo na obtenção do corpo de- e acompanhe o comportamento do grupo no uso
sejado. Busca-se o rápido aumento de massa e dos anabolizantes.
definição muscular. No dizer de um informante: “Tomei só de onda, os outros tomando, fui na
“conseguir em 3 meses o que conseguiria em 3 pilha e tomei também” (18 anos sexo masculino,
anos”. A insatisfação com a lentidão do cresci- classes populares).
mento muscular na musculação “natural” ou a “Eu via as pessoas se aplicando, aí comecei a
sensação de que está malhando, mas não es- me injetar também” (20 anos, sexo masculino,
tá desenvolvendo musculatura foi trazida por classes populares).
alguns informantes como razão para o uso de Entre os usuários das classes populares, os
anabolizantes. A comparação com colegas de anabolizantes aparecem também como meio
academia que começaram a praticar muscula- mais barato de construção do corpo ideal na
ção ao mesmo tempo e apresentaram rápido ausência de recursos financeiros para comprar
desenvolvimento muscular aparece como es- suplementos alimentares e manter uma alimen-
tímulo para o consumo, fortalecido pela cultu- tação adequada.
ra de uso de anabolizantes disseminada entre “E eu tomava suplemento alimentar tudo e
grupos que freqüentam as academias. Em uma não via nenhum [resultado], era caro, né? Com-
das academias de um bairro popular em que foi plicado pra mim e o anabolizante era mais barato
realizada observação participante foi possível o efeito era rápido aí eu resolvi usar” (18 anos,
observar o uso explícito de anabolizantes. Os sexo masculino, classes populares).
próprios praticantes aplicavam uns nos outros Para alguns entrevistados, particularmente
injeções de Durateston e ADE antes de iniciar a os que desejam hipertrofiar exageradamente o
malhação. Na lixeira do banheiro da academia, corpo, os anabolizantes são a droga que permite
a grande quantidade de seringas e agulhas des- ultrapassar os limites fisiológicos na perseguição
cartáveis utilizadas atestava o grande consumo do corpo ideal.
de anabolizantes. Os anabolizantes eram tema “Eu já malho há algum tempo. Eu percebi que
freqüentes de conversações e brincadeiras entre eu cheguei num platô, não saia dali, eu queria
os praticantes de musculação. mais. Então, anabolizante me proporcionou, pe-
Já os freqüentadores de academias de classe gar mais peso” (25 anos, sexo masculino, classe
média e alta tendem a ocultar o seu uso, que é média).
feito fora do espaço da academia, mostrando- Muitos entrevistados referiram não ter ener-
se também mais reservados nas conversas sobre gia para malhar sem a utilização de anabolizan-
o consumo de anabolizantes. A maior parte dos tes. A musculação destituída de ajuda química
instrutores de academias entrevistados conde- torna-se um sacrifício pouco recompensante.
nou o uso de anabolizantes, enfatizando os efei- Este fato, somado à rápida perda muscular quan-
tos danosos à saúde. Alguns, contudo, fazem ou do se interrompe o uso dos anabolizantes, faz
já fizeram uso de esteróides. Um personal trainer com que muitos usuários prolonguem o uso das
justificou o uso de anabolizantes afirmando que drogas correndo o risco de tornarem-se depen-
necessita possuir um corpo musculoso e defini- dentes: “...as pessoas pararam de me elogiar, pa-
do, pois assim consegue aumentar o número de raram de me olhar. Então eu tenho que voltar a
alunos interessados em realizar aula particular. fazer minha musculação, tenho que voltar a ter
O seu corpo funcionaria como um espelho, re- meu corpo, tenho que crescer novamente. Aí tem
fletindo o modelo de corpo no qual o aluno se aquele negócio do vício, né. Aí toma [anabolizan-
inspiraria na busca de seus objetivos. Nas aca- te], aí sempre quer mais, quase sempre se convence
demias mais precárias dos bairros populares é de que não tá suficiente, não tá legal, não tá bom,
comum que o instrutor seja autodidata. Em uma e aí, desenfreia” (22 anos, sexo masculino, classes
das academias na qual se realizou a observação populares).
participante o papel de instrutor era assumido
por praticantes de musculação veteranos que
orientavam os novatos. Conclusões
Para os jovens, o pertencimento ao grupo de
amigos é uma faceta fundamental de sua iden- Os resultados do estudo mostram que a princi-
tidade e vários usuários entrevistados relataram pal razão para a prática da musculação e para o

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CULTO AO CORPO E USO DE ANABOLIZANTES 781

consumo de anabolizantes, tanto entre usuários poraneidade, o corpo tornou-se um objeto de


de classe média como das classes populares, é consumo e de investimento, e os anabolizantes
a motivação estética, fato que tem sido consta- são vistos como as drogas que permitem con-
tado em estudos realizados em outras capitais quistar rapidamente o corpo ideal. Os resulta-
brasileiras 8,9,10. A insatisfação com corpo real dos apontam a necessidade de realização de
em comparação ao padrão ideal disseminado campanhas de prevenção voltadas aos jovens e
pela mídia, o receio de ser excluído do grupo de centradas, de um lado, na visão crítica e na des-
pares ou de ser desvalorizado, associado a um construção dos valores associados ao corpo na
discurso que associa saúde a “estar em forma” e sociedade de consumo, e de outro, na veicula-
o imediatismo na obtenção do corpo desejado ção de informação de qualidade sobre os riscos
favorecem o uso de anabolizantes. Na contem- à saúde no consumo de anabolizantes.

Resumo Colaboradores

O objetivo do estudo foi investigar as motivações para J. A. B. Iriat participou da elaboração do projeto, coor-
a prática da musculação e uso de anabolizantes, assim denação da equipe no trabalho de campo, análise dos
como as representações e usos sociais do corpo entre dados e redação do artigo. J. C. Chaves e R. G Orleans
usuários de anabolizantes praticantes de musculação. participaram do trabalho de campo, análise de dados e
Foi realizado um estudo etnográfico com observação redação do artigo.
participante em academias de musculação de bairros
de classe média e classes populares de Salvador, Bahia,
Brasil, e realização de 43 entrevistas em profundidade Agradecimentos
com usuários de anabolizantes. A prática da muscula-
ção e o uso de anabolizantes, tanto entre usuários de Financiado pelo Conselho Nacional de Desenvolvi-
classe média quanto populares, são motivados sobre- mento Científico e Tecnológico (CNPq – processo nº.
tudo por razões estéticas. A insatisfação com corpo real 480742/2004-9 Edital Universal). R. G. Orleans contou
em comparação ao padrão ideal disseminado pela mí- com bolsa de iniciação científica da Fundação de Am-
dia, o receio de ser desvalorizado ou excluído do grupo paro à Pesquisa do Estado da Bahia (PIBIC/FAPESB)
de pares, o capital simbólico associado ao corpo “tra- durante a realização do estudo.
balhado” e o imediatismo na obtenção dos resultados
favorecem o uso de anabolizantes. Faz-se necessária a
realização de campanhas de prevenção voltadas para
os jovens que aliem a visão crítica na desconstrução
dos valores associados ao corpo na sociedade de con-
sumo à veiculação de informação de qualidade sobre
os riscos à saúde no consumo de anabolizantes.

Anabolizantes; Exercício; Imagem Corporal

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