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Diretora Editorial: Roseméri Laurindo
Vice-diretor Editorial: Iury Parente Aragão
Presidente do Conselho Editorial: Giovandro Ferreira (UFBA)

Conselho Editorial – Intercom

Alex Primo (UFRGS) Marcio Guerra (UFJF)


Alexandre Barbalho (UFCE) Margarida M. Krohling
Ana Sílvia Davi Lopes Kunsch (USP)
Médola (UNESP) Maria Teresa Quiroz (Univer-
sidade de Lima/Felafacs)
Christa Berger (UNISINOS)
Cicília Maria Krohling Marialva Barbosa (UFRJ)
Peruzzo (UAM) Mohammed Elhajii (UFRJ)
Erick Felinto (UERJ) Muniz Sodré (UFRJ)
Etienne Samain (UNICAMP) Nélia R. Del Bianco (UnB)
Giovandro Ferreira (UFBA) Norval Baitelo (PUCSP)
José Manuel Rebelo Olgária Chain Féres Matos
(ISCTE, Portugal) (UNIFESP)
Jeronimo C. S. Braga Osvando J. de Morais
(PUCRS) (UNESP)
Juremir Machado da Silva Pedro Russi Duarte (UnB)
(PUCRS) Sandra Reimão (USP)
Luciano Arcella
Sérgio Augusto Soares
(Universidade d’Aquila, Itália) Mattos (UFRB)
Luiz Cláudio Martino (UnB)

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Fluxos em redes
sociotécnicas:
das micronarrativas ao big data

BEATRIZ POLIVANOV

WILLIAN ARAÚJO

CAIO C. G. OLIVEIRA

TARCÍZIO SILVA

(organizadores)

São Paulo

Intercom

2019
Fluxos em redes sociotécnicas:
das micronarrativas ao big data

Licença:

Direção editorial: Rosiméri Laurindo


Projeto gráfico e diagramação: Patricia Bruschi e Yuri Amaral
Capa: Willian Araújo
Revisão: organizadores e autores

Dados Internacionais da Catalogação na Publicação (CIP)

4
Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comu-
nicação - INTERCOM
Rua Joaquim Antunes, 705 - Pinheiros - CEP 05415-012
São Paulo - SP - Brasil
Tel: (11) 2574-8477 | 3596-4747
http://portalintercom.org.br | E-mail: secretaria@intercom.org.br

5
SUMÁRIO

PREFÁCIO 9

APRESENTAÇÃO 16

PARTE I: NARRATIVAS PESSOAIS, PRÁTICAS DE 23


CONSUMO E DISPUTAS DE SENTIDO NA CULTURA
DIGITAL

1. “Desconstruindo a Maternidade”: narrativas 24


pessoais, intimidade e confiança em mídias sociais
Beatriz Polivanov e Ana Luiza Figueiredo Souza

2. Cartografia das controvérsias midiatizadas 53


sobre “ideologia de gênero” na publicidade de Omo
Vanessa Brandão

3. Influenciadores por herança: apropriação do


77
“eu” do recém-nascido por pais influenciadores que
compartilham conteúdo em seu nome
Daniele Rodrigues

4. Studygrams: comunicação, consumo e os


novos modos de estudar do estudante conectado 102
Gisela Castro; Bianca Biadeni

6
PARTE II: EPISTEMOLOGIAS DECOLONIAIS 126

5. Teoria racial crítica e comunicação digital: 127


conexões contra a dupla opacidade
Tarcízio Silva

6. Gringos react to Brazil: uma proposta de 157


conceituação dos reaction videos em diálogo com as
narrativas estrangeiras sobre um Sul Global
“bastardo”
Davi Rebouças, Luana Inocêncio, Andrea Medrado

PARTE III: O QUE FAZEM AS MÁQUINAS E COMO 180


PESQUISÁ-LAS? REFLEXÕES SOBRE PLATAFORMAS E
SEUS ALGORITMOS

7. Assim falam as plataformas: uma proposta


de análise da constituição de práticas e 181
comportamentos pelo estudo dos textos em
plataformas digitais
Willian Fernandes Araújo

8. Máquinas falantes: proposta teórico-


metodológica para pensar a agência a partir das 206
assistentes pessoais digitais
Luiza Carolina dos Santos

9. Reflexões necessárias sobre a 233


plataformização das atividades sociais na Internet
Caio C. G. Oliveira
PARTE IV: POLÍTICA E OPINIÃO PÚBLICA EM UM 256
BRASIL (DES)CONECTADO

10. Opinião pública nas plataformas de 257


circulação mediadas por algoritmos
Kérley Winques

11. Intervenção militar já: os memes da internet 283


e o imaginário da nova direita brasileira sobre a
ditadura civil-militar
Guilherme Popolin

12. Golden Shower e imoralidades 308


carnavalescas: disputas por sentidos e polarização
nas redes
Allan Santos

13. Sobre o que falam os fãs de Olavo de 337


Carvalho? Uma análise computacional de
comentários no Facebook
Celina Lerner

14. Net-ativismo e política na era do big data e 359


dos algoritmos
Marina Magalhães de Morais

SOBRE OS/AS AUTORES/AS 382


 PREFÁCIO

Fluxos em redes sociotécnicas: das micronarrativas ao big


data é a primeira coletânea do Grupo de Pesquisa Comunicação
e Cultura Digital que compõe a Sociedade Brasileira de Estudos
Interdisciplinares da Comunicação (Intercom). Organizada por
Beatriz Polivanov (UFF), Willian Araújo (UNISC), Caio C. G. Oli-
veira (PUC-MG) e Tarcízio Silva (UFABC), a publicação reúne 14
artigos apresentados no Grupo durante o 42º Congresso Brasi-
leiro de Ciências da Comunicação, realizado na Universidade Fe-
deral do Pará (UFPA), em Belém – PA, de 2 a 7 de setembro de
2019.
Esta coletânea marca os 18 anos de existência do Grupo e é
interessante perceber o quanto o seu conteúdo reflete: 1) o mo-
mento histórico pelo qual o país atravessa no ano em que foi pro-
duzida; 2) a diversidade institucional que caracteriza o Grupo,
não só entre os organizadores da publicação, mas também entre
os autores dos artigos que a compõem e 3) a atualização dos pes-
quisadores de Comunicação Digital brasileiros quanto a diversos
desmembramentos relacionados a uma vida social cada vez mais
atravessada por procedimentos automatizados, que convertem
afetos, atividades e opiniões em dados, sob condições específicas,
quando realizadas em plataformas digitais.
A obra leva em consideração, para além do contexto sociopo-
lítico, a própria temática central do Congresso da Intercom 2019,
intitulado “Fluxos comunicacionais e crise da democracia”. De
acordo com a organização do evento, o tema

não se centra apenas nas discussões dos movimentos contínuos


de algo ou alguém para algum lugar, nas configurações dos mo-
vimentos nas infovias. Antes disso, e sobretudo, convoca-nos a

9
perceber os fluxos que tecem as relações entre os diferentes ato-
res na sociedade atual. Fluxos que se configuram de forma di-
reta e indireta, fragmentada e contínua, linear e não linear, di-
versificada e homogênea, unidirecional e multidirecional.1

Dessa forma, observamos também na constituição dos capítu-


los, os fluxos de temáticas específicas que permeiam tais debates,
que vão do ativismo à opinião pública, ao consumo e à centrali-
dade das plataformas digitais nos atravessamentos cotidianos do
público e do privado e nas mediações das relações sociais, mer-
cadológicas, identitárias, entre outras mediações e agenciamen-
tos nos quais as complexidades e desafios das culturas e da co-
municação são pensados.
Em relação a aspectos institucionais, vale lembrar que nestes
18 anos de existência, o Grupo mudou de nome e, consequente-
mente, de ementa, por três vezes: Núcleo de Pesquisa Tecnolo-
gias da Informação e da Comunicação (2001-2007), Grupo de
Pesquisa Cibercultura (2008-2016) e Grupo de Pesquisa Comu-
nicação e Cultura Digital (2017-)2. Neste movimento, percebe-se
que o Grupo se transformou tanto em relação aos objetos de pes-
quisa e, consequentemente, aos referenciais teóricos e aborda-
gens metodológicas para tratá-los, quanto em relação à própria
Intercom, ajustando-se, por exemplo, em função da organização
dos grupos em Divisões Temáticas. Nesse sentido, o ajuste da
ementa atual do Grupo também levou em consideração suas pró-
prias especificidades no sentido de se diferenciar dos temas pri-
vilegiados pelos demais grupos da DT 5 - Comunicação Multimí-
dia. Com isso, tem-se a seguinte ementa e palavras-chave:

1 Disponível em: <http://intercom2019.com.br/tema/>. Acesso em: 23 out. 2019.


2 Coordenadores do Grupo neste período: Paulo Vaz (UFRJ), de 2001 a 2002, Simone
Pereira de Sá (UFF), de 2003 a 2004, Erick Felinto (UERJ), de 2005 a 2006, Fátima Régis
(UERJ) em 2007, Alex Primo (UFRGS), de 2008 a 2009, Fátima Régis (UERJ), de 2010
a 2012, Adriana Amaral (UNISINOS), de 2013 a 2015, Sandra Portella Montardo (Uni-
versidade Feevale), de 2016 a 2017, e Beatriz Polivanov (UFF), de 2018 a 2019.

10
Ementa
O Grupo de Pesquisa em Comunicação e Cultura Digital com-
preende o estudo sobre apropriações diversas das Tecnologias de
Informação e Comunicação (TIC), bem como das redes sociais
digitais, em termos de novas configurações das práticas e do pen-
samento sobre essas práticas, seja no âmbito da complexificação
do mercado de Comunicação, no que se destacam novas relações
de consumo e de entretenimento, seja no que diz respeito a ações
relativas à socialização online e sua repercussão nas subjetivida-
des contemporâneas.

Palavras-chave: comunicação digital; cultura digital; con-


sumo digital; socialização online; teorias e métodos de pesquisa
na internet.3

Pesquisadores de instituições públicas e privadas do Brasil


participam desta coletânea, o que também se observa na consti-
tuição da atual Coordenação do Grupo e no perfil de professores
e estudantes que submetem suas pesquisas ao debate nos eventos
regionais e nacionais da Intercom. A diversidade de realidades
institucionais, de estágios de pesquisa em que se encontram os
pesquisadores e de configurações regionais de origem dos parti-
cipantes do Grupo enriquecem as experiências de troca de conhe-
cimentos por ele promovidas.
Em outras palavras, é impossível para nós, autoras deste pre-
fácio, dissociarmos esta publicação da história deste Grupo, em
função, justamente, de nossa relação com ele e com a pesquisa
em Comunicação Digital, uma vez que observamos e participa-
mos das discussões teóricas e epistemológicas que pautaram tais
transformações na área e nas ementas – como participantes e co-
ordenadoras – e sobretudo dos fluxos de afetos e sociabilidade
presentes em tais articulações. O Grupo sempre prezou pela in-
clusão de jovens pesquisadores e pela participação de autores de

3 Disponível em:
<http://www.portalintercom.org.br/eventos1/gps1/gp-ciberculturas>. Acesso em: 24
out. 2019.

11
correntes teóricas e localizações geográficas e instituições distin-
tas. Além disso, a diversidade de abordagens e problemas de pes-
quisa dentro da especificidade da comunicação e cultura digital
se faz presente nesta coletânea, apontando para um bom pano-
rama da atualidade dos debates no campo.
Percebe-se, finalmente, que o conteúdo da coletânea atualiza
os pesquisadores interessados em Comunicação Digital, pois re-
verbera a produção da área desenvolvida em diversos Programas
de Pós-Graduação brasileiros voltados ao tema. Uma publicação
anterior (AMARAL e MONTARDO, 2011) classificou a produção
do Grupo entre os anos de 2001 e 2010, de modo a identificar 13
categorias temáticas4 que designam objetos de pesquisa e sua
base teórica de origem. Inútil dizer que um novo estudo deveria
ser elaborado para dar conta das configurações de temáticas
apresentadas no Grupo desde então que, certamente, relacio-
nam-se com as mudanças institucionais da própria Intercom
(surgimento de novos grupos que passaram a contemplar algu-
mas das categorias temáticas ali identificadas, por exemplo),
além, é claro, de referirem-se ao aparecimento de novos objetos
de estudo a serem considerados, o que implica, por vezes, a emer-
gência de novas abordagens teóricas e metodológicas para dar
conta desses objetos.
Nesse sentido, é possível arriscar que o critério adotado para
a escolha dos artigos publicados considerou a sensibilidade dos
seus autores quanto a identificarem nos fenômenos analisados a
sua implicação com os procedimentos automatizados que os
constituem. Os autores de The Platform Society: Public values in
a connective world (2018) citam Couldry e Hepp (2016) quando
esses afirmam que as plataformas não refletem a sociedade, mas
produzem-na. E isso porque plataformas digitais consistem em

4 Linguagem, Critica da técnica/do imaginário tecnológico, Subjetividade, Apropriação


tecnológica, Economia política da comunicação mediada por computador, Ciberativismo,
Epistemologia, teorias e métodos, Imaginário tecnológico, Inclusão digital, Práticas de
consumo mercadológico, Sociabilidade online, Jornalismo digital e Entretenimento digi-
tal (AMARAL e MONTARDO, 2011).

12
uma “arquitetura digital programável projetada para organizar
interações entre os usuários” (VAN DIJCK, POELL e DE WAAL,
2018, p. 9) e, com isso, promovem algumas conexões e impedem
outras, afetando, invariavelmente, a experiência contemporânea
de vida pública (GILLESPIE, 2015).
Uma vez que todos os artigos selecionados referem-se a algum
tipo de plataforma digital, é cabível que esse aspecto tenha sido
examinado para que se pudesse entender os fenômenos sobre os
quais esses artigos se debruçam. Ainda nessa linha de raciocínio,
se algoritmos são sequências de etapas bem definidas para a so-
lução de problemas abstratos, o que, consequentemente, implica
que nem tudo possa ser algoritmizável (SILVEIRA, 2019), cabe
questionar o que relevância quer dizer quando se considera o co-
nhecimento advindo dessas lógicas (GILLESPIE, 2018). Isso no
sentido de ser fundamental uma postura crítica quanto ao tipo de
conhecimento que emerge de fenômenos observados nesse tipo
de plataforma.
Da mesma forma, os autores dos artigos desta coletânea, ao
tensionarem essas lógicas com as práticas analisadas, com os
comportamentos observados e com as narrativas possíveis a par-
tir de plataformas digitais, contribuem de maneira decisiva com
o campo de Comunicação Digital já que, para tanto, promovem
novos arranjos teóricos e testam métodos compatíveis com essa
realidade. Finalmente, não seria exagero afirmar que qualidade
científica em Comunicação Digital, nos dias de hoje, pressupo-
nha esse tipo de sensibilidade.
Por tudo isso, parabenizamos os organizadores e autores e de-
sejamos uma boa leitura a todos!

Sandra Portella Montardo e Adriana Amaral

13
ADRIANA AMARAL é professora e pesquisadora do Pro-
grama de Pós-Graduação em Ciências da Comunicação da Uni-
versidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS) e Bolsista PQ do
CNPq. Realizou pós-doutorado em Comunicação, Mídia e Cul-
tura na University of Surrey do Reino Unido (Estágio Sênior
CAPES). Foi coordenadora do GP Cibercultura (atual GP Comu-
nicação e Cultura Digital) da Intercom de 2013 a 2015.

SANDRA PORTELLA MONTARDO é professora e pesquisa-


dora dos Programas de Pós-Graduação em Processos e Manifes-
tações Culturais, em Diversidade Cultural e Inclusão Social e do
Mestrado Profissional em Indústria Criativa (Universidade Fee-
vale). Foi Coordendora do GP Comunicação e Cultura Digital da
Intercom de 2016 a 2017.

14
REFERÊNCIAS:

AMARAL, A.; MONTARDO, S. Pesquisa em Cibercultura. Uma


análise da produção brasileira da Intercom. Revista Logos, v.
1, n. 34, p. 102-116, 1º semestre 2011. Disponível
em:<http://www.logos.uerj.br/PDFS/34/08_logos34_montard
o_amaral_pesquisa.pdf>. Acesso em 24 out. 2019.

GILLESPIE, T. A relevância dos algoritmos. Revista Pará-


grafo, v. 6, n. 1, p. 95-121, jan-abr 2018.

GILLESPIE, T. Platforms Intervene. Social Media + Society,


v. 1, n. 1, abr-jun 2015.

SILVEIRA, S. Democracia e os códigos invisíveis. Como os


algoritmos estão modulando comportamentos e escolhas políti-
cas. São Paulo: Sesc Publicações, 2019.

VAN DIJCK, J.; POELL, T; DE WAAL, M. The Platform Soci-


ety: Public Values in a Connective World. Oxford: Oxford Uni-
versity Press, 2018.

15
 APRESENTAÇÃO

Em setembro de 2018, na reunião de encerramento do encon-


tro anual do Grupo de Pesquisa (GP) em Comunicação e Cultura
Digital da Intercom, na cidade de Joinville, discutimos, como de
costume, os aspectos positivos que marcaram o evento e aqueles
que poderiam ser aprimorados. Refletimos sobre o que podería-
mos fazer para ampliar os diálogos que construímos nos espaços-
tempos determinados dos encontros anuais para além de seus
participantes presentes, assim como gerar uma obra que pudesse
materializar o espírito de coletividade do grupo e sinalizar as dis-
cussões mais recentes que têm emergido na esfera da cultura di-
gital. Daí nasceu a ideia da publicação desta coletânea, que se
configura enquanto a primeira publicação do grupo.
Lembremos que o cenário naquele período era bastante con-
turbado no país. Estávamos às vésperas de um processo eleitoral
marcado, dentre outros fatores, pela intensa polarização política,
pela produção e circulação em grande escala de ações de desin-
formação e por uma disputa que punha em xeque preceitos de-
mocráticos, já abalados forte e recentemente, desde 2016. Em
meio a ataques às universidades, à pesquisa e à educação, decidi-
mos que faríamos a coletânea, mesmo que não houvesse verba
para tal. E assim o fizemos.
O livro – que desde o início foi pensado como uma obra digital
(e-book), copyleft e de acesso gratuito – tem como objetivo reu-
nir textos que abordem as múltiplas implicações que a circulação
de narrativas e grandes dados gera no contexto das redes socio-
técnicas em termos de fluxos comunicacionais, buscando explo-
rar conflitos e negociações emergentes dentre diversos agentes e
instituições.

16
Definimos que a convocação para a coletânea partiria da pró-
pria chamada para o encontro anual do grupo em 2019. Assim,
aproveitamos a ocasião do prazo para envio de trabalhos ao 42º
Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação, que foi reali-
zado entre os dias 02 e 07 de setembro de 2019 em Belém (PA).
A necessária observação da midiatização da sociedade sob o
prisma das tecnologias digitais interativas direcionou a chamada
de trabalhos para esta publicação. Dentre os temas desejados
para os artigos destacamos, a partir de abordagens quali e/ou
quantitativas, as emergentes questões relacionadas à(s):
• manipulações algorítmicas das plataformas digitais;
• circulação de narrativas contestadoras de práticas sociais;
• construções e controvérsias identitárias;
• repercussões online de acontecimentos;
• convocação a diferentes formas de ativismo;
• vigilância, monitoramento e uso de dados;
• propagação de ações de desinformação;
• relações de poder norte-sul.
Assim, foram selecionados para a obra 14 textos de destaque
submetidos ao Grupo no ano de 2019 que tratassem de tais as-
pectos, abordando as variadas consequências que as relações hu-
mano-maquínicas têm gerado para o âmbito comunicacional no
universo das redes sociotécnicas.
Neste ano recebemos 75 textos para o encontro, o que nos con-
figurou como o GP com maior número de submissões (fato que
já ocorrera em outras edições do Congresso). É importante des-
tacar que somente foram levados em consideração para o livro os
artigos cujos autores expressaram o desejo para tal e ainda aque-
les que foram efetivamente apresentados no encontro. Ainda,
que dentre os critérios de seleção estava a afinidade com os temas
propostos, de modo que todos os trabalhos aprovados para apre-
sentação no GP têm sem dúvidas seu mérito, mas nem todos pu-
deram ser escolhidos para esta obra.

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Atentamos também para que houvesse aqui uma diversidade
de estados do país e instituições representadas, bem como auto-
res/as em diversos estágios de desenvolvimento de suas pesqui-
sas. E ficamos contentes em reconhecer que a grande maioria é
composta por mulheres (são 12 autoras no total).
Como poderá se perceber, os artigos são versões aprimoradas
daquelas que foram apresentadas no encontro e que compõem os
Anais da Intercom deste ano. A partir dos pareceres recebidos e
dos debates que ocorreram durante o evento este ano os/as au-
tores/as puderam fazer alterações em seus textos, o que, espera-
mos, colaborou para uma qualificação dos trabalhos.
Apesar de estarmos tratando aqui de fluxos comunicacionais
que, sabemos, se dão de modo nada linear, buscamos organizar
os capítulos em quatro partes de acordo com suas temáticas, se-
guindo ainda a ideia de partimos das micronarrativas para depois
chegamos aos grandes dados. Desse modo, na primeira parte tra-
zemos trabalhos que abordam as "Narrativas pessoais, práticas
de consumo e disputas de sentido na cultura digital".
O artigo de Beatriz Polivanov e Ana Luiza Figueiredo Souza
inaugura a obra, trazendo uma discussão, ainda pouco feita no
campo da Comunicação no Brasil, sobre as narrativas pessoais
que mulheres interessadas no tema da maternidade comparti-
lham em plataformas de redes sociais, tendo como foco um grupo
no Facebook. As autoras argumentam que o compartilhamento
de narrativas (até certo ponto) íntimas, pessoais e tidas como “re-
ais” cria um sentimento de confiança na busca por informações
sobre experiências maternas, sendo valorizadas pelas participan-
tes do grupo, ao passo em que a autoridade do discurso médico-
científico também é tida como de alto valor.
Na sequência o artigo de Vanessa Brandão analisa, através de
perspectivas da intermidialidade e da Teoria Ator-Rede, a con-
trovérsia gerada a partir de uma campanha publicitária da marca
Omo Brasil no YouTube em torno do que tem sido denominado
como “ideologia de gênero”. A autora mapeia os diversos atores
envolvidos na controvérsia, concluindo, dentre outros aspectos,

18
que uma série de indivíduos e instituições colocam debates rele-
vantes concernentes aos direitos humanos das crianças e à iden-
tidade de gênero como algo que seria da ordem da esfera privada,
não cabendo, segundo eles, à alçada da publicidade, que, ao con-
trário, mostra-se como importante campo de disputas discursi-
vas.
Ainda nos mantendo em discussões sobre temas que envol-
vem a infância, o artigo de Daniele Rodrigues traz um fenômeno
recente, ainda pouco investigado: os perfis no Instagram de cri-
anças, filhos de influenciadores digitais, chamados pela autora de
“influenciadores por herança”. A partir da observação de mais de
40 publicações de dois desses perfis, Daniele argumenta que há
a construção de capitais simbólicos um pouco distintos: en-
quanto em um caso foi utilizada uma estratégia narrativa que au-
xilia no processo de transição da nova persona que o pai influen-
ciador deseja criar, no outro caso há uma complementariedade
da influência do modo como foi construída.
Encerrando a primeira parte do livro o artigo de Gisela Castro
e Bianca Biadeni traz também o Instagram como objeto de pes-
quisa, mas a partir de um outro fenômeno e recorte: os perfis de
estudantes, intitulados de “studygrams”. Com base em diálogo
teórico com estudos sobre consumo, bem como análise empírica
de três perfis na plataforma, as autoras apontam para os novos
fluxos de comunicação que têm emergido no ambiente educacio-
nal, a partir da mediação de tais tecnologias. E argumentam que
as imagens postadas nos perfis trazem “elementos indicadores
dos modos de viver” de tais “estudantes conectados”, podendo
gerar inclusive fascínio dentre os seguidores, mas que junto a ele
deve-se estar atento ao processo de mercantilização das intera-
ções e construção de pensamento crítico desses sujeitos, o que
configura um grande desafio.
Adentrando a segunda parte do livro, os artigos de Tarcízio
Silva e o de Davi Rebouças, Luana Inocêncio e Andrea Medrado
trazem subsídios para pensarmos diferentes aspectos da cultura
digital a partir de "Epistemologias decoloniais". Enquanto

19
trabalhos situados em contextos históricos e sociais específicos,
os artigos criticam pretensões universalistas de parte do pensa-
mento sobre a comunicação digital através do reconhecimento
das categorias de relações raciais e coloniais na apreensão dos
fenômenos digitais.
O artigo de Tarcízio Silva apresenta reflexões urgentes sobre
os estudos de internet e a considerável invisibilidade do debate
racial sobre as dinâmicas sociais e políticas tecnológicas, resga-
tando de forma interdisciplinar os pilares da Teoria Racial Crítica
como um instrumento para preencher estas lacunas.
Por sua vez, Davi Rebouças, Luana Inocêncio e Andrea Me-
drado se debruçam sobre um formato narrativo particular desen-
volvido em plataformas como YouTube, os chamados reaction
videos. A partir da proposição de uma definição conceitual de tais
conteúdos, os autores problematizam construções de sentido so-
bre o Brasil em vídeos realizados por estrangeiros quanto à cul-
tura, evocando categorias analíticas como colonialidade e cultu-
ras bastardas.
Na terceira parte da obra, intitulada "O que fazem as máqui-
nas e como pesquisá-las? Reflexões sobre plataformas e seus al-
goritmos" os artigos de Willian Araújo, Luiza Carolina dos Santos
e Caio C. G. Oliveira nos instigam a refletir sobre os imbricamen-
tos humano-maquínicos nas relações mediadas por diversos dis-
positivos e de que modos podemos buscar estudá-los a partir do
campo da Comunicação.
O trabalho de Willian Araújo traz uma proposta esquemática
de análise de dispositivos textuais que tem por objetivo mapear
as formas através das quais as plataformas digitais atuam condi-
cionando práticas e comportamentos. Em seu texto, Willian
busca aportes nos Estudos de Ciência e Tecnologia (ECT) e na
Teoria Ator-Rede (TAR), apresentando um modelo metodológico
que pode auxiliar pesquisadores/as nos estudos de narrativas
produzidas em ambientes online.
Em seguida Luiza Carolina dos Santos colabora com sua in-
vestigação focada nas relações entre as políticas dos sistemas de

20
Inteligência Artificial e a interação humana. Seu trabalho busca
investigar, a partir das assistentes pessoais digitais como Alexa e
Siri, as formas de agenciamentos de sistemas baseados em inte-
ligência artificial e propõe um desenho de pesquisa baseado nas
dimensões técnica, científica e social.
Já o texto de Caio C. G. Oliveira apresenta uma discussão re-
levante que envolve as práticas de publicação e circulação de con-
teúdos em plataformas sociais proprietárias, em especial o Face-
book. O autor alerta, a partir do diálogo com referencial teórico e
exemplos recentes envolvendo a plataforma / empresa, sobre a
importância de não se concentrar os fluxos conversacionais na
mesma, buscando outros espaços que não estejam submetidos
“aos imperativos do big data”.
Por fim, a quarta parte do livro revela e reverbera preocupa-
ções sobre "Política e opinião pública em um Brasil (des)conec-
tado". Os cinco artigos que a compõem apresentam um conjunto
de reflexões atuais e necessárias sobre a apropriação das plata-
formas sociais para organização social e manifestação político-
ideológica em nosso país.
O texto de Kérley Winques abre esta parte com uma discussão
acerca das implicações da intervenção algorítmica na formação
da opinião pública. O texto trata do papel que as plataformas de
rede social e os buscadores desempenham na consolidação dos
debates e da memória coletiva.
A seguir, Guilherme Popolin trata do uso de memes no debate
político brasileiro. Seu trabalho aborda os conteúdos em forma
de memes postados por apoiadores da ditadura civil-militar no
Brasil para evocar o mito da Era de Ouro, negando fatos históri-
cos e banalizando a morte e perseguição dos brasileiros que se
opunham ao regime ditatorial instalado no país.
Já Allan Santos busca em seu texto analisar as disputas de
sentido que se deram a partir da divulgação, no perfil de Twitter
do Presidente da República do Brasil, de um vídeo contendo uma
performance do que se denomina de “golden shower”, fato ocor-
rido no carnaval de 2019. Por meio da observação das postagens

21
contendo duas hashtags sobre o caso e aplicação da Análise de
Discurso Crítica o autor examina o fenômeno da polarização po-
lítica na plataforma.
O trabalho de Celina Lerner traz o processo de mapeamento
do ideário comum aos usuários que comentam na fanpage do au-
tointitulado filósofo Olavo de Carvalho no Facebook, evidenci-
ando que, desde 2014, aquele espaço fomentava ideias que viriam
a emergir nos resultados das eleições de 2018 no Brasil.
Marina Magalhães encerra a coletânea com seu artigo tecendo
importantes considerações sobre o ativismo político no contexto
das plataformas de rede social. Em seu texto, a autora reflete que,
embora a noção de ativismo em rede ofereça uma leitura possí-
vel, consolidada e de ampla adoção nas pesquisas científicas,
existem diferentes caminhos possíveis para observar o social co-
nectado.
Finalizamos esta apresentação destacando que todo o pro-
cesso de realização deste livro se deu graças ao empenho coletivo
de organizadores/as, autores/as, debatedores/as e o apoio do
Instituto Brasileiro de Pesquisa e Análise de Dados (IBPAD), que
se encarregou da diagramação e publicação do mesmo. Vale res-
saltar ainda que o processo de revisão final dos textos foi feito
pelos próprios organizadores e autores, de forma conjunta e dis-
tribuída. E tivemos ainda o privilégio de contar com um belo pre-
fácio escrito por Sandra Montardo e Adriana Amaral, coordena-
doras do GP nas gestões anteriores.
Gostaríamos de agradecer imensamente a cada um/a, dese-
jando que continuemos a ter força para fazer pesquisa no país e
que os/as leitores/as possam encontrar aqui reflexões instigan-
tes para ampliar o nosso diálogo.
Uma ótima leitura!

Beatriz Polivanov, Willian Araújo, Caio C. G. Oliveira


e Tarcízio Silva

Organizadores

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 PARTE I:
NARRATIVAS PESSOAIS, PRÁTICAS DE
CONSUMO E DISPUTAS DE SENTIDO NA
CULTURA DIGITAL

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 “DESCONSTRUINDO A MATERNIDADE”: NARRATIVAS
PESSOAIS, INTIMIDADE E CONFIANÇA EM MÍDIAS SOCIAIS

BEATRIZ BRANDÃO POLIVANOV


ANA LUIZA DE FIGUEIREDO SOUZA

RESUMO

Em um contexto de questionamento da credibilidade de insti-


tuições midiáticas e científicas, marcado pela noção da “eu-piste-
mologia” (VAN ZOONEN, 2012), bem como o “excesso informa-
cional” (TANG e LIU, 2015), este artigo objetiva investigar as per-
cepções de mães sobre fontes de informação por elas entendidas
enquanto confiáveis, tendo como base empírica pesquisa de cu-
nho exploratório realizada em um grupo online do Facebook in-
titulado “Desconstruindo a maternidade” (DAM). São propostos
três eixos de discussão sobre: a) razões de criação e entrada no
grupo; b) fontes de informações e critérios de confiabilidade para
mídias sociais e perfis; e c) compartilhamento de experiências ín-
timas. As conclusões indicam que as narrativas pessoais das
mães são centrais para criar uma sensação de confiança dentre
as participantes do grupo, aliadas ao discurso médico, que possui
alto valor. Nota-se, também, que o compartilhamento da intimi-
dade parece ser um capital valorizado no estabelecimento das re-
lações no DAM. Ao selecionarem quais aspectos de suas vivências
maternas expõem e com quais fins, as integrantes do grupo cons-
troem uma intimidade que pode ser entendida como parcial, ne-
gociada, direcionada e desconfiada. Dinâmica que se integra ao
contexto cultural, midiático e histórico em que tais narrativas são
produzidas.

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PALAVRAS-CHAVE: maternidade; confiança; narrativas pesso-
ais; mídias sociais; grupo no Facebook “Desconstruindo a mater-
nidade”.

ABSTRACT

In a context of questioning the credibility of media and


scientific institutions, characterized by the notion of “I-
epistemology” (VAN ZOONEN, 2012), as well as “informational
excess” (TANG and LIU, 2015), this article aims to investigate the
perceptions of mothers about sources of information they
understand to be reliable, based on an empirical exploratory re-
search conducted on an online Facebook group called “Descon-
struindo a maternidade” (DAM), translated as “Deconstructing
Motherhood”in English. Three axes of discussion are proposed
regarding: a) the reasons for creating the group and being part of
it; b) the sources of information and reliability criteria for social
media and profiles; and c) the sharing of intimate experiences.
The findings indicate that mothers' personal narratives are
central to creating a sense of trust among the group’s partici-
pants, allied with the medical discourse, which is highly valued.

KEYWORDS: motherhood; trust; personal narratives; social me-


dia; “Desconstruindo a Maternidade” Facebook group.

INTRODUÇÃO

Desde que o ciberespaço foi aclamado, nos anos 1990, como


um ambiente fomentador da inteligência coletiva (LÉVY, 1997) e
a “terra prometida” para a democratização das mídias (PRIMO,
2013), ele e, mais especificamente, as chamadas mídias sociais5

5 Usamos o termo que se popularizou fora e dentro do meio acadêmico, entendendo


que as mídias sociais podem ser definidas como “tecnologias e práticas on-line usadas por

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agora geram importantes debates sobre a circulação de fake
news (MARCHI, 2002), a agência de algoritmos em processos
comunicativos (ARAÚJO, 2017; SILVA, 2019), a violação da pri-
vacidade dos sujeitos e o controle sobre seus dados (BRUNO,
2008), dentre outros. Em meio a tais problemáticas, encontra-se
a questão sobre em que ou em quem se pode confiar enquanto
fonte de informação.
Conforme argumenta Van Zoonen (2012), instituições políti-
cas, científicas e midiáticas não detêm mais uma posição garan-
tida na proclamação do que pode ser considerado como a ver-
dade. Nas mídias sociais, observamos um número de narrativas
pessoais que emergem nessa era de “excesso informacional”
(TANG e LIU, 2015), disputando valor de autenticidade com os
representantes de tais instituições.
Entre tais narrativas destacamos um grupo específico: o de
mães e tentantes (mulheres que desejam engravidar) que ofere-
cem e/ou procuram conselhos sobre a maternidade em mídias
sociais. Observamos que o número de grupos de apoio e informa-
ção a essas pessoas no site de rede social Facebook tem crescido
consideravelmente nos últimos cinco anos. Apesar de isso certa-
mente não ser uma especificidade do universo parental – pode-
se argumentar que há grupos online para basicamente qualquer
tema atualmente – e não ter tido início com as mídias sociais –

pessoas ou empresas para disseminar conteúdo, provocando o compartilhamento de opi-


niões, ideias, experiências e perspectivas” (SOUSA e AZEVEDO, 2010, p. 4). São, por-
tanto, “mídias voltadas para a web que focam a interação social, o diálogo, seguindo a
lógica da web 2.0 e distinguindo-se assim dos meios de comunicação de massa tradicio-
nais que se baseiam em grande medida em uma dinâmica informativa de mão única (um
polo emissor enviando a mesma mensagem para um grupo de receptores tido como ho-
mogêneo)” (POLIVANOV, 2012, p. 32). Em uma visada mais próxima à perspectiva das
materialidades da comunicação, tais mídias podem ser referidas como sociotécnicas. Se-
gundo a visão de Polivanov (2012), os sites de redes sociais seriam um tipo de mídia so-
cial, assim como os blogs, por exemplo. As delimitações de tais conceitos ainda são deba-
tidas por pesquisadores. A esse respeito, sugere-se a leitura do texto de Raquel Recuero,
publicado na plataforma Medium em 09/07/2019 e disponível no link:
https://bit.ly/2MtCgo3. Último acesso em: 18/10/2019.

26
podemos rememorar as comunidades virtuais de MUDs6, chats
etc. em outros tempos – o que nos chama a atenção é o fato de
que, no Brasil, mais mulheres têm usado plataformas como o Fa-
cebook para expor suas dificuldades pessoais em cuidar dos fi-
lhos e o que seria a “maternidade real” (FIGUEIREDO SOUZA,
2019). O termo tem sido usado por muitas mães em sites de redes
sociais para se referir às dificuldades e desafios trazidos pela ma-
ternidade, visando trazer perspectivas supostamente mais realis-
tas e menos ilusórias e/ou romantizadas sobre ela. Assim, assun-
tos que eram considerados demasiado particulares no passado
estão sendo compartilhados com grupos de desconhecidos (em
ambientes não anônimos, como o Facebook), em quem essas
mães e tentantes parecem confiar mais do que outras fontes de
informação, o que configurava a hipótese inicial deste trabalho.
Argumentamos que debates sobre mídias sociais e confiança
são frequentemente focados na esfera política, enquanto à inter-
seção entre os campos da maternidade e da cultura digital faltam
mais estudos, conforme sustenta Tomaz (2015). Desse modo, o
objetivo principal deste artigo é investigar as percepções das
mães e tentantes sobre quais tipos de fontes de informação po-
dem ser tidas como confiáveis quando se trata da maternidade.
Tivemos como campo de pesquisa, de janeiro a junho de 2019,
o grupo no Facebook chamado “Desconstruindo a maternidade”7
que, além de ter sido um dos mais ativos nesse âmbito, era fe-
chado (não secreto), ou seja, podia ser encontrado por qualquer
pessoa com acesso a seu link, ao mesmo tempo em que protegia
seu conteúdo e suas participantes, que necessitavam de aprova-
ção prévia das moderadoras para integrá-lo.8 O grupo foi retirado
do ar por razões que exploraremos na seção metodológica, tendo

6 Acrônimo que pode se referir a multi-user dungeon, dimension ou domain. Tratam-


se de jogos de computador online criados na década de 1970 para múltiplos jogadores,
mesclando elementos de RPG (role-playing games) e chat (salas de conversa).
7 Anteriormente denominado “Descobrindo a maternidade”.
8 O fato de uma das pesquisadoras ter estabelecido contato prévio com a criadora do
grupo também foi levado em consideração para escolhê-lo, pois facilitaria a realização das
entrevistas.

27
sido reativado um mês após a conclusão da análise exploratória.
De todo modo, nos baseamos empiricamente neste artigo nas
postagens dele coletadas, bem como nas entrevistas realizadas
com sua criadora (e principal administradora) e mais oito parti-
cipantes.
Como objetivos secundários, visamos a descobrir quais plata-
formas as mães e tentantes do grupo “Desconstruindo a mater-
nidade” consideram mais confiáveis e por quais razões. De início,
a hipótese principal era a de que experiências pessoais de outras
mães seriam centrais para criar uma ideia de confiança, e que
grupos fechados ou secretos de Facebook, assim como do What-
sapp, seriam tidos por elas como fontes de informação confiáveis.
De modo a construir a fundamentação teórica e empírica do
artigo, ele se estrutura da seguinte forma: na primeira seção dis-
cutimos brevemente sobre a noção de confiança e mídias sociais
de modo mais amplo, a partir de revisão da literatura sobre o
tema; na segunda seção apresentamos o contexto dos debates
contemporâneos sobre maternidade e o grupo online aqui estu-
dado; na terceira trazemos os resultados da pesquisa para, ao fi-
nal, chegarmos às conclusões e encaminhamentos futuros sobre
as relações entre maternidade, confiança em fontes de informa-
ção e mídias sociais.

CONFIANÇA E CULTURA DIGITAL

Certamente não é a partir das mídias sociais que a discussão


sobre confiança em informações veio à tona. Se o campo do jor-
nalismo buscou historicamente se construir com base em proble-
máticos ideais de objetividade, neutralidade e imparcialidade9,

9 Segundo argumentam Miguel e Biroli (2010, p. 66): “a imparcialidade não é apenas


inatingível. Ao ser ativada como um valor de referência para a avaliação do grau de de-
mocracia, justiça e pluralidade presente nos meios de comunicação (...) não permite con-
siderar uma parte relevante das dinâmicas de opressão. A imparcialidade, como valor-
guia, colabora para a ocultação dos lugares de enunciação dos discursos e das redes de

28
assistimos – desde os anos 1980, a partir de pesquisas sobre a
sensação de que as notícias são tendenciosas (GOMES, 2016) – a
uma queda ou, ao menos, à reconfiguração dessa narrativa. Tal
reconfiguração tem acarretado múltiplos efeitos. Com as mídias
sociais, parecemos ter chegado ao ápice da desconfiança em re-
lação não apenas a fontes jornalísticas, mas também científicas,
jurídicas e midiáticas.
Muitos dos trabalhos que se dedicam ao tema da confiança e
mídias sociais estão voltados para o campo da política, conforme
apontamos na introdução. Neste campo, a questão das fake news
mais especificamente tem atraído uma série de pesquisadores,
ainda mais tendo-se em mente o contexto das últimas eleições
presidenciais nos Estados Unidos e no Brasil. Apesar de não se-
rem um fenômeno necessariamente da cultura digital, Dourado
e Gomes ressaltam que

a vida digital comporta possibilidades nunca experimentadas


no território da contrafação de narrativas factuais, sobretudo
porque acrescenta a esta atividade uma capacidade sem prece-
dentes de alcance na disseminação de conteúdo falso e uma ve-
locidade antes impensável de propagação. Sem mencionar a fa-
cilidade na produção de conteúdo, as possibilidades de distri-
buição extremamente segmentada para o público-alvo, a capa-
cidade de exposição inadvertida nos smartphones, a extrema
maleabilidade e reprodutibilidade dos materiais digitais
(DOURADO e GOMES, 2019, p. 7).

Nosso olhar aqui volta-se, no entanto, não exatamente para


uma qualificação dos conteúdos em si que circulam no grupo
“Desconstruindo a maternidade”, – se podem ser considerados
verdadeiros ou não – mas que fontes e quais critérios são utiliza-
dos por suas membras ao buscarem informações sobre a mater-
nidade. E, assim, de que modos a cultura digital pode estar

diferenciação que os caracterizam e fazem com que circulem por determinados espaços e
sejam aceitos como verdadeiros”.

29
afetando práticas maternas na era da chamada pós-verdade.
Conforme argumenta Van Zoonen (2012), estaríamos vivendo
um momento histórico de “suspeita epistemológica”, no qual a
noção de verdade outrora trazida por instituições consagradas
passa a ser substituída pela perspectiva subjetiva e pela memória
individual, no que a autora denomina eu-pistemologia (I-piste-
mology).10
Onde a epistemologia está preocupada com a natureza, fontes
e métodos do conhecimento, a eu-pistemologia responde essas
questões com base no Eu (em mim) e na Identidade, tendo a In-
ternet como grande facilitadora (VAN ZOONEN, 2012, p. 60, tra-
dução nossa).11
Desse modo, a dimensão da experiência pessoal ganha força
como lugar de verdade. Plataformas online corroboram para que
as assim encaradas verdades pessoais sejam disseminadas em
rede, ficando a questão de como lidar com a pluralidade de vozes
que reivindicam suas verdades a partir das próprias experiências
particulares.
Interessam-nos, portanto, as relações de confiança estabeleci-
das entre as participantes do grupo “Desconstruindo a materni-
dade”, e de que modos as narrativas pessoais que compartilham,
baseadas em experiências tidas como reais, se relacionam com
narrativas outras, como o discurso científico. Os laços sociais es-
tabelecidos no grupo confeririam valor de confiabilidade aos con-
teúdos nele divulgados? Como se dá o processo de confiança não
apenas nas informações, mas também nos sujeitos do grupo no
que tange à maternidade?
Ainda que não nos caiba fazer um debate sobre a noção de
“confiança” de modo mais abrangente, é importante destacar
que, como explica Lundasen,

10 Ainda que o contexto de observação da autora seja o da Europa e o dos Estados


Unidos, julgamos suas ideias pertinentes também para entender o cenário brasileiro.
11 No original: “Where epistemology is concerned with the nature, sources and meth-
ods knowledge, then I-pistemology answers these questions from the basis of I (as in me,
myself) and Identity, with the Internet as the great facilitator”.

30
de um ponto de vista mais psicológico, a confiança pode ser di-
vidida em três níveis diferentes: confiança generalizada (na na-
tureza humana), confiança relacional (relacionada com pessoas
conhecidas específicas) e confiança na rede (nível intermediá-
rio relacionado com as redes sociais12 ou familiares)
(LUNDASEN, 2002, p. 310).

O nível que nos interessa investigar neste artigo é, assim, o da


“confiança na rede”. Buscamos entender que fontes de informa-
ção e pessoas eram tidas, no período em que realizamos a pes-
quisa empírica, como confiáveis no grupo, no qual a maior parte
das interações se dava entre mulheres que não se conheciam pes-
soalmente, mas que, ainda assim, compartilhavam de um ele-
mento que as unia na comunidade: a maternidade ou o forte de-
sejo por ela.

“DESCONSTRUINDO A MATERNIDADE”: DEBATES


CONTEMPORÂNEOS E O GRUPO NO FACEBOOK

Em um cenário no qual as experiências pessoais ganham des-


taque, servindo de base para discussões públicas, o compartilha-
mento de relatos, vídeos, imagens e depoimentos acerca da ma-
ternidade apresenta aumento significativo, gerando repercussão
entre diferentes públicos e veículos midiáticos. As mídias sociais,
especialmente o Facebook, aparecem enquanto o suporte tecno-
lógico mais mobilizado por mulheres interessadas em dividir
suas vivências maternas: conjunto de valores e ideologias relaci-
onados à maternidade que cada mulher – por meio do convívio
familiar, instituições de ensino, cotidiano social, redes de conta-
tos, produções midiáticas, entre outros – adquire ao longo da
vida. Esse conjunto ajuda a estabelecer o lugar reservado à

12 Vale lembrar que “redes sociais” não são sinônimo de “sites de redes sociais” e que
os autores se referem às redes de sociabilidade formadas ao longo da vida dos sujeitos,
independentemente de mídias digitais como o Facebook.

31
maternidade dentro do planejamento pessoal das mulheres e,
também, a forma como a enxergam em termos coletivos
(FIGUEIREDO SOUZA, 2019).
Ao compartilharem suas vivências maternas em ambientes
coletivos, as participantes das discussões online sobre a materni-
dade constroem redes de apoio, trocam conselhos, revelam expe-
riências e sentimentos que costumam ser censurados tanto no
convívio social quanto na mídia massiva, fazem demandas, desa-
bafam sobre os problemas enfrentados por terem ou não terem
filhos, descobrem pontos em comum com outras vivências ma-
ternas e discutem a maternidade de forma mais ampla, refletindo
sobre sua construção social e o impacto que possui na vida das
mulheres, independentemente de serem mães. Contudo, tam-
bém encontram contestações, desprezo, ataques, deboches, vi-
sões de mundo muito diferentes (ou mesmo antagônicas) às suas
e preconceitos, além de denúncias aos comentários e postagens
que publicam.
Nesse contexto potencialmente agressivo e condenatório, é
possível compreender a proliferação de grupos (sobretudo fecha-
dos ou secretos) no Facebook voltados para questões maternas.
Por serem restritos às participantes e especificarem o perfil de
público ao qual são dirigidos, fornecem maior privacidade e se-
gurança àquelas que o integram, já que, em princípio, estão entre
pessoas que agem e pensam de forma parecida com a sua.
Entre eles encontrava-se o grupo fechado “Desconstruindo a
Maternidade” (chamado pelas membras de DAM), que era bas-
tante ativo quanto à frequência de postagens e contava com 1.300
participantes em 15 de junho de 2019. O grupo deriva de outro
cujo nome era “Descobrindo a Maternidade” (também abreviado
como DAM), criado em outubro de 2018 por G.13 e administrado
por ela e mais cinco amigas: duas que já a conheciam de longa
data e três que a conheceram por meio do grupo. Até o início de
junho de 2019, tinha quase 12 mil membras. No entanto, ex-

13 Optamos por identificar as participantes da pesquisa somente pelas iniciais de seus


nomes, de modo a manter seu anonimato.

32
integrantes que dele haviam sido banidas se juntaram para de-
nunciarem o grupo ao Facebook, fazendo-o ser excluído pelo site.
As participantes que desejavam que o grupo fosse recriado man-
daram mensagens privadas via Facebook (inbox) para G. e, no
dia 11 de junho de 2019, ela cedeu a seus pedidos, alterando o
nome para “Desconstruindo a Maternidade”. As denúncias con-
tinuaram e, em 17 de junho de 2019, o novo grupo também foi
derrubado.
No final de julho de 2019, porém, G. recriou o grupo sob o
nome “Descobrindo a Maternidade OFICIAL”14, que, até o mo-
mento (14 de novembro de 2019), permanece ativo com 1.422
participantes. As diversas reativações do grupo revelam quão di-
nâmicos podem ser grupos maternos em mídias sociais enquanto
objetos de pesquisa – o que requer maior agilidade no recolhi-
mento de dados (aptos a se tornarem indisponíveis de um dia
para o outro, com a extinção do grupo) e, também, ponderação
acerca de qual versão do grupo analisar. O funcionamento e con-
teúdo do grupo atual são bastante semelhantes aos dos dois gru-
pos anteriores, sendo que já havíamos reunido boa quantidade
de postagens da segunda versão do DAM, além de entrevistas
com algumas integrantes que não fazem parte da versão atual.
Desse modo, optamos por manter o artigo focado no grupo “Des-
construindo a Maternidade”.
Este se apresentava como “gestacional feminista” e destinava-
se a mulheres brasileiras tentantes, grávidas ou que já tinham fi-
lhos. Segundo informado na seção ‘Sobre’, havia a proposta de
ser um ambiente de trocas e descontração. Apesar de colocar-se
enquanto local para “assuntos polêmicos” e “sem tabus”, evitava
abordar alguns tópicos mais problemáticos, como o aborto. Entre
as regras, postar lives15 sobre política também era proibido, o que
mais uma vez revela incongruência diante da autodescrição

14 O grupo pode ser encontrado neste link: https://bit.ly/2P1s1sg. Último acesso em:
14/11/2019.
15 Função do Facebook que permite que usuários façam vídeos ao vivo e os publiquem
em grupos ou em suas linhas do tempo.

33
enquanto “feminista”. Uma vez que o feminismo busca a eman-
cipação feminina por meio do fim do patriarcado e demais estru-
turas que subjugam as mulheres – que se expressam inclusive
nas instituições políticas – entendemos que cercear o debate po-
lítico reduz as chances de desenvolver discussões mais profun-
das, que poderiam causar algum impacto social a partir das ati-
tudes e posicionamentos das integrantes do grupo que se enga-
jassem em tais diálogos.
Ainda que seja possível argumentar que a proibição de postagens
sobre o aborto procure manter o foco do grupo em maternidade
– e não naquilo que, de forma voluntária ou involuntária, impede
uma mulher de se tornar mãe do embrião ou feto que se tornaria
seu/sua filho(a) –, acaba colocando a pauta do aborto enquanto
oposta à maternidade ou não tão cara ao próprio feminismo com
o qual o grupo afirma se identificar. Contudo, na prática, diferen-
tes estudos têm demonstrado que mães constituem a parcela da
população feminina que mais interrompe gestações voluntaria-
mente no Brasil (MELO, 2018).

Figura 1: Regras de uso do grupo “Desconstruindo a Maternidade”

34
Fonte: Grupo DAM no Facebook, 12 de junho de 2019.

Nota-se que a preservação do perfil de participantes (sem fa-


kes ou homens) e o cuidado com a manutenção do grupo consti-
tuíam fortes preocupações das regras de uso, mas não impediram
que o DAM fosse retirado do ar novamente. Havia ainda a tenta-
tiva de criar um ambiente harmônico e respeitoso, sem agressões
ou julgamento. Considerando-se o nível de cobrança com o qual
mães convivem no cotidiano, estabelecer que o grupo “não julga

35
e não tolera julgamentos” provavelmente funcionava como fator
que não apenas trazia maior confiança às participantes para in-
tegrá-lo, mas também estimulava que tivessem menos receio de
expor suas vivências maternas. Ainda assim, ocorriam conflitos
entre as integrantes, perpassados por juízos de valor.
Também se percebiam a seriedade e o cuidado quanto a fazer
aconselhamentos de cunho medicinal dentro do grupo (proibição
de se indicar ou mesmo citar medicamentos), que contrastava
com a forma direta e humorada de informar sobre as “sexta[s] da
maldade”, dia estipulado para discutir temáticas sexuais, em que
o “mimimi”, ou seja, o excesso de zelo e sensibilidade, não seria
bem-vindo. Tal configuração alinhava-se à proposta do grupo e
ao perfil de seu público: eram majoritariamente mães dividindo
suas experiências (inclusive sexuais) em uma cultura midiática
mais expositiva, não médicas prescrevendo tratamentos. Além de
revelar a importância dada à prática e ao discurso médicos, ade-
quava-se ao lugar de fala das participantes e ao tipo de postagem
mais comum no DAM: relatos e dúvidas sobre os filhos/rotina
materna. Raramente se postavam links externos ou matérias de
sites informativos. A maioria das postagens era produzida pelas
próprias integrantes, na aba de discussões do grupo, a partir de
suas vivências maternas.

Figura 2: Posts da “sexta-feira da maldade”

36
Fonte: Grupo DAM no Facebook, 14 de junho de 2019.

Ao solicitarem entrada no DAM, as proponentes precisavam


responder um questionário com três perguntas para, segundo G.,
“as integrantes ficarem cientes das regras do grupo. Lá nós dei-
xamos as regras resumidas e explicamos que não toleramos ma-
chismo etc.”. Mais uma vez, nota-se a tentativa de criar um am-
biente convidativo e seguro para as mães, junto à de enfatizar o
modo de funcionamento daquele espaço.

37
METODOLOGIA E DISCUSSÃO DE RESULTADOS

O presente artigo apresenta uma abordagem qualitativa,


sendo baseado no estudo exploratório do grupo “Desconstruindo
a Maternidade” e em entrevistas com uma de suas administrado-
ras (também criadora do grupo) e oito participantes. O grupo ha-
via sido escolhido para a pesquisa depois de um mapeamento dos
mais recentes e ativos grupos maternos brasileiros no Facebook,
e que aceitaram a entrada das pesquisadoras (ambas não mães).
A escolha do site como plataforma para estudo havia se dado a
partir de observações anteriores (FIGUEIREDO SOUZA, 2019),
que mostram o quanto tem sido utilizado para debates sobre a
maternidade no contexto do Brasil contemporâneo.
Para atingir os objetivos anteriormente mencionados, estabe-
lecemos os seguintes passos metodológicos, com base nos prin-
cípios da etnografia virtual16 (HINE, 2000; PINK et al., 2016): 1)
seleção do grupo a ser estudado; 2) negociação para entrar nele;
3) participação no grupo; 4) realização de entrevistas estrutura-
das com as integrantes (via Facebook e/ou WhatsApp no período
de 6 a 22 de junho de 2019); e 5) compartilhamento dos resulta-
dos do trabalho com as participantes. Propomos também a inclu-
são de mais uma etapa, antes da quinta: a categorização do con-
teúdo das entrevistas baseada em eixos de discussão, advindos
das perguntas elaboradas para a pesquisa e da observação do
grupo. Desse modo, estruturamos os resultados da seguinte
forma: a) razões de criação, entrada e confiança no grupo DAM;
b) fontes de informações e critérios de confiabilidade para mídias
sociais e perfis; e c) compartilhamento de experiências íntimas e
sua relação com a confiança. Ainda que o grupo tenha sido exclu-
ído e, posteriormente, recriado durante a finalização deste traba-
lho, acreditamos que o material coletado de sua versão anterior
e as entrevistas com suas membras trazem dados relevantes.

16 A etnografia digital ou virtual tem sido tema de uma série de livros e artigos desde
o final da década de 90, não sendo foco de discussão mais detalhada neste trabalho, que
a tomou como inspiração metodológica.

38
a) Razões de criação, entrada e confiança no grupo
DAM

Segundo G., criadora e uma das administradoras do DAM,


quando ela e suas amigas o formaram tinham a “intenção de fazer
amizades, união, um grupo bem de maternidade real, com todas
as coisas boas e ruins”. Diferentemente de outros grupos dos
quais participava “e só via tipo fralda, foto de barriga, não sentia
que elas [membras] eram unidas”, no DAM “as mãezinhas sabem
que podem desabafar de estarem cansadas da maternidade por-
que sabem que ninguém vai deixar outra pessoa julgá-las”. Ter
uma suposta liberdade para falar de aspectos positivos e negati-
vos da vivência materna, bem como criar laços sociais, foi tam-
bém o que motivou L., K., R., J., S., L2 e Y. a entrarem no grupo
(L. e Y. estavam grávidas quando foram a ele adicionadas).
Apesar da intenção de não haver julgamentos de valor e criar
um ambiente de união entre as mulheres do grupo, L. relata que
já houve casos de “má fé”, como a publicação de fotos de bebês
de membras do grupo sem autorização, enquanto K. afirma que
o grupo possuía “muita talarica infiltrada”. Apesar disso, tanto L.
quanto R. o consideravam confiável “por não haver muitos mem-
bros e todas terem uma certa amizade virtual” para a primeira e
porque as administradoras estavam “sempre de olho para nos de-
fender” para a segunda. Esta última fala se alinha à da adminis-
tradora G.

Transmitimos confiança quando damos a cara a tapa por


elas. Por exemplo, sempre que uma mamãe faz algum desabafo
de sua vida pessoal lá, quando outra integrante tenta humilhar,
fazer a pessoa se sentir mal, a gente já logo corta as asas da mal-
educada. Então acho que com o fato de estarmos sempre de
olho e sempre defendermos, elas se sentem à vontade e confi-
antes para postar (G., 2019).

Quanto à confiança nas membras do grupo, L., J. e R. relatam


ser possível saber em quem confiar, mas por razões distintas.

39
Para L., o critério é a “atitude de alguma forma ajudar membros
que estão passando por um momento difícil assim como eu pas-
sei” [L. sofreu um aborto espontâneo]. Para J. é “pelos comentá-
rios, o jeito que acolhe”, enquanto para R. confiáveis são as mu-
lheres “diretas, sem mimimi e que não fazem questão de agradar
e falam o que pensam, goste quem gostar”, com as quais se iden-
tifica. Já para K. é muito difícil distinguir quais perfis seriam
fake, confiáveis ou de infiltradas, razão para acreditar que “ne-
nhum grupo é confiável”.
Dois elementos aparecem, assim, como centrais para o grupo:
a ideia de ser possível falar mais abertamente sobre problemas
relacionados à maternidade, ainda que houvesse julgamentos
morais, e a busca por laços afetivos e de suporte – conforme Fi-
gueiredo Souza (2019) já havia apontado. A imagem abaixo traz
a fala de outra membra fundadora do grupo, ressaltando que seu
sofrimento devido à solidão foi superado graças às amizades cri-
adas no DAM, embora sem conhecer pessoalmente muitas das
amigas.

Figura 3: Post sobre amizade e acolhimento

40
Fonte: Grupo DAM no Facebook, 13 de junho de 2019.

Contudo, é importante destacar que, pelo que pudemos obser-


var, o grupo foi excluído ao menos duas vezes pelo Facebook (em
duas diferentes versões) devido a denúncias feitas por ex-inte-
grantes. Uma delas, acreditamos, estaria relacionada ao fato de
que uma grávida de 14 anos entrou no grupo solicitando conse-
lhos, o que não foi bem visto por algumas membras, que “super
criticaram” e “julgaram” a menina, “acharam um absurdo” (G.) a
gravidez em tão pouca idade. Assim, por mais que os ideais de
união se fizessem presentes – a ponto de permitir que o DAM
fosse recriado –, os conflitos e divergências acabaram por su-
plantar, mais de uma vez, a própria existência do grupo.

b) Fontes de informações e critérios de confiabili-


dade para mídias sociais e perfis

Inicialmente aventamos como hipótese que, na era da assim


denominada pós-verdade e da “eu-pistemologia” (VAN
ZOONEN, 2012), o discurso científico teria menos valor de con-
fiabilidade para as membras do grupo do que suas experiências
pessoais. Contudo, observamos as regras que proibiam a

41
indicação de remédios. Além disso, destacamos que uma das ad-
ministradoras, S., era, segundo G., enfermeira-obstétrica, sendo
a única quem dava suporte sobre dúvidas relacionadas à gestação
(dores, desconfortos etc.) e às crianças (por exemplo, reações a
vacinas) que envolvessem conhecimento médico. Apesar disso,
por vezes alguma participante fornecia um conselho nesse es-
copo em comentários, a partir, geralmente, de algo que seu pró-
prio médico havia indicado. Tais manifestações, porém, eram si-
lenciadas e excluídas pelas moderadoras, uma vez que, conforme
explica G., “apenas médicos podem indicar remédios e afins. Não
sabemos se a criança tem alergia a algo indicado por alguma in-
tegrante”.

Figura 4: Autoridade dos relatos pessoais e do discurso médico

42
Fonte: Grupo DAM no Facebook, 12 de junho de 2019.

As falas das participantes também revelam o respeito à auto-


ridade médica e àqueles que possuem tal formação. K. relata con-
fiar em “médicos e [em canais no] Youtube de mães que são mé-
dicas ou psicólogas”. Conforme esclarece R.: “Pra mim só médi-
cos e enfermeiras e algumas amigas que entendem do assunto ou
lá no DAM porque qualquer coisa errada busco ajuda da S. [mo-
deradora enfermeira]”. As amizades eram levadas em considera-
ção, mas apenas as que se qualificavam como entendidas naquilo
que era perguntado. Enquanto L. afirma que “sempre consulto a
internet e um site (de mães jornalistas) específico” por achar
“bem confiável por conter tópicos sobre tudo e experiência de lei-
toras também”, J. diz que confia em “médicos e grupos de mães,
os médicos pelo conhecimento e os grupos devido à experiência
como mãe”. Junto ao discurso médico, as narrativas sobre expe-
riências pessoais são tidas como as mais confiáveis.
De modo algum defendemos que somente o conhecimento ci-
entífico poderia ser tido como confiável quanto à maternidade
(ou que bastaria uma formação na área médica para quem al-
guém se tornasse digno de confiança), mas ressaltamos que as
fronteiras entre os discursos científico e popular parecem dimi-
nuir nas redes, sendo a internet importante lugar de mediação e
visibilidade dos relatos pessoais, inclusive os provenientes de ci-
entistas.

43
Tratando-se de sujeitos comuns17, podemos nos apoiar em
Tang e Liu (2015, p. 1), ao ressaltarem que “no contexto das mí-
dias sociais a confiança ajuda a responder questões como em
quem podemos confiar para compartilhar informações e de
quem podemos aceitar informação sem verificação adicional”.
Quando perguntadas sobre em que mídias e perfis tendiam a
confiar mais, as entrevistadas apresentaram diversos critérios.
Para L. o mais importante não é a mídia em si, mas o número de
pessoas que participam de determinado grupo. Em suas pala-
vras: “quanto mais pessoas tiverem, menos confiável ele se
torna”. Já R. afirma ter um comportamento que podemos cha-
mar de lurker (espreitador), a observação dos grupos e ambien-
tes para avaliar se podem ser considerados confiáveis ou não. En-
quanto K. insiste que “nenhuma rede de tecnologia [pode] ser
confiável por causa de fakes e infiltrados”, por isso “pesquiso so-
bre tudo que uso”. L2 classifica o DAM como confiável, pois “tem
mãezinhas ali que já são mães de segunda viagem pra cima e po-
demos confiar nelas”. O alinhamento entre o conteúdo da mídia
e sua proposta também se mostrou relevante para Y., que afirma
que “procuro conhecer as ADMs primeiro, relacionar as publica-
ções pra ver se os assuntos batem com a proposta do grupo”.
As entrevistadas demonstraram desconfiança nas assim clas-
sificadas novas tecnologias devido à possibilidade de perfis fake.
Seus critérios para avaliar um perfil como verdadeiro variavam
entre o número de amigos em comum, número de postagens (se
poucas, menor confiança) e tipo de postagens (fotos com filhos e
família tornariam os perfis menos prováveis de serem falsos).
Ainda que no DAM pudesse haver perfis fake, era majoritaria-
mente tido como lugar de confiança.

17 Pessoas que não são celebridades ou figuras públicas.

44
c) Compartilhamento de experiências íntimas e sua
relação com a confiança

A classificação do grupo como espaço de construção de laços


sociais e amizades apontava, de início, para a ideia de que,
quanto mais fortes os laços, maior confiança seria estabelecida
entre as participantes. Contudo, chamou-nos a atenção a posta-
gem abaixo:

Figura 5: Desabafo somente para não conhecidas

Fonte: Grupo DAM no Facebook, 11 de junho de 2019.

No caso acima a participante demonstra a vontade de “desa-


bafar”, de tornar explícitos sentimentos e pensamentos vincula-
dos ao seu eu, mas receia fazer tal movimento em um grupo no
qual podem estar presentes pessoas do seu contato mais pró-
ximo, trazendo à tona uma relação complexa entre intimidade e
anonimato. Em diálogo com o artigo de Queiroz e Rezende
(2019), poderíamos argumentar que, uma vez que a participante

45
do grupo entende que não se encontra em um ambiente de “des-
conhecidos íntimos”, mas sim em um no qual poderia haver co-
nhecidas, ela perde (ou altera) o desejo de compartilhar certos
aspectos de si mesma.
Quando questionadas sobre que tipos de conteúdos pessoais
compartilhavam no grupo, K. afirmou que “tento o máximo não
me expor muito, tento contar pouco de minha vida em redes so-
ciais, tem muita gente maldosa”, enquanto L2 explicou que “a
vida íntima eu não gosto muito de publicar, mas conversar com
algumas meninas eu gosto”. Já L. apontou que outra plataforma
do grupo teria maior pertinência para relatos mais íntimos: “so-
bre desabafos e minhas conquistas prefiro falar no grupo DAM
do WhatsApp, com as amigas que fiz lá”.
Tais discursos apontam para um cuidado com a não exposição
excessiva de si, assim como para a autorreflexão sobre os conte-
údos a serem compartilhados em ambientes distintos, reiterando
dados da pesquisa de Polivanov (2012) – sobre um grupo social
distinto – de que não se trataria de uma exposição aleatória da
intimidade dos sujeitos nos sites de redes socais, mas de um pro-
cesso que modula aspectos do que se deseja deixar à mostra e
compartilhar com diferentes grupos e aquilo que deve permane-
cer oculto.
Reiterando tal argumento – da dinâmica autorreflexiva no
processo de apresentação de si nas redes –, mas com posiciona-
mento distinto das participantes acima mencionadas, C. relatou
confiar o suficiente no grupo para expor informações pessoais
suas: “tenho certeza que é confiável porque as mulheres do grupo
são incríveis, ajudam com tudo que podem e tiram nossas dúvi-
das, somos um grupo de mães unidas e isso me faz confiar no
nosso grupo”. De modo similar, Y. afirma que compartilha expe-
riências pessoais “de todos os tipos, me sinto bem à vontade” no
DAM, atribuindo seu diferencial ao “fato de só ter mulheres no
grupo. Me sinto um pouco mais segura do que em outras mídias
e grupos”. O convívio entre mulheres com vivências maternas se-
melhantes à própria é importante para considerar uma mídia na

46
qual ocorrem discussões sobre a maternidade como mais ou me-
nos confiável. Para J., “a vantagem [do DAM] é que sempre tem
alguém na mesma situação”. L. se alinha a ela ao dizer que “lá eu
encontro pessoas que de alguma forma têm a ver comigo e com a
minha realidade”, ainda que tenha ressaltado que o WhatsApp
seria uma plataforma mais adequada para “desabafos” do que o
grupo no Facebook.
Para tais participantes, o grupo funcionaria como uma comu-
nidade na qual se partilham aspectos em comum, gerando um
sentimento de confiança para a exposição de informações que
não seriam cabíveis em outros espaços.18 E, ainda que mulheres
como Y. afirmem que compartilhem experiências “de todos os ti-
pos”, argumentamos que não são relevadas, no grupo, informa-
ções que expõem a totalidade da vida das mulheres, mas sim os
aspectos voltados para um dos elementos que constituem suas
identidades, que é o fato de serem mães. Tratam-se, pois, de par-
tes íntimas específicas que são compartilhadas, fora de um con-
texto mais amplo. Assim, mesmo havendo relatos expositivos de
cunho pessoal, eles expõem certos aspectos apenas, aqueles com
os quais as autoras desses posts precisam de ajuda, de modo bas-
tante similar aos “desconhecidos íntimos” do grupo investigado
por Queiroz e Rezende, criando um jogo complexo de narrativas
com ocultamentos e exposições intencionadas, em que “não há
nada mais privado do que tornar a intimidade pública” (2019, p.
14).

18 Vale ressaltar que, apesar de usarem o Facebook e o DAM para conversarem sobre
suas vivências maternas, a maior parte das entrevistadas não se sentia segura ou confor-
tável o bastante para compartilhar experiências e relatos íntimos na maioria das mídias
sociais.

47
CONSIDERAÇÕES PARCIAIS

Como a pesquisa é um trabalho ainda em desenvolvimento, os


resultados não são finais, mas tendem a indicar considerações
parciais interessantes. Apontamos, em relação às razões para as
mulheres criarem o grupo aqui estudado e nele entrarem, uma
vontade de terem espaços tidos como seguros para discutirem so-
bre aspectos variados da sua condição como mãe, por um lado, e
dos cuidados com os filhos, por outro. Se o aconselhamento pa-
rental no passado recente parecia ter maior foco nas crianças,
agora nas mídias sociais há uma proliferação de discursos que se
voltam para as próprias mães enquanto mulheres, para além de
seus filhos. E ao mesmo tempo em que há maior cobrança para
que os pais compartilhem as atividades de cuidado de seus filhos
com as mães, existe também a necessidade da criação do que po-
deríamos considerar zonas de segurança voltadas somente às
mulheres. Ainda, as disputas entre os pontos de vista das mulhe-
res participantes foram tão acirradas que levaram ao fechamento
do grupo por ao menos duas vezes, demonstrando que a intenção
de ele ser um espaço nos quais não houvesse “julgamentos” aca-
bou não se concretizando.
No que concerne às fontes de informação tidas como mais
confiáveis, destacamos que a própria noção de confiança é uma
construção discursiva complexa que está relacionada, no cenário
da modernidade tardia, a um sentimento de ansiedade por se ter
que fazer escolhas diariamente, como Giddens (1991) já havia
apontado. Ela envolve disputas narrativas que afetam e são afe-
tadas por esferas distintas, como a religiosa, a científica e a polí-
tica. Ademais, não está relacionada somente a humanos, mas
agora também a algoritmos e companhias que desenvolvem sites
de redes sociais cujas regras e modos de funcionamento nem
sempre são claros, aspecto que não abordamos aqui.
As mídias sociais possuem grande relevância como fonte de
informação para as membras do grupo. As narrativas pessoais de
mães que dele participavam provêm de experiências

48
consideradas reais, mesmo que venham de pessoas com as quais
se compartilham laços fracos. Porém, a autoridade médica está
presente tanto nas regras do DAM quanto na convicção pessoal
de suas participantes. Assim, por um lado, as mulheres inseridas
na cultura digital têm mais acesso à informação do que em tem-
pos anteriores, mas, por outro, precisarem lidar com a multipli-
cidade de discursos pode ser confuso e mesmo frustrante.
Por fim, o compartilhamento da intimidade parece ser um ca-
pital valorizado no estabelecimento das relações, contudo, trata-
se de uma intimidade que poderíamos tentar definir como par-
cial – uma vez que diz respeito somente ao aspecto identitário de
ser mãe –, negociada – dá-se alguma informação pessoal bus-
cando receber outras informações e/ou suporte emocional –, di-
recionada – a certas redes de contato específicas – e desconfi-
ada, tendo em vista que não se sabe ao certo quem gerencia os
perfis com os quais se interage.
Assim, esperamos seguir com esta pesquisa e discutir, em tra-
balhos futuros, aspectos como a presença de perfis tidos como
falsos no DAM e outros grupos, as disputas e conflitos entre as
narrativas maternas e as especificidades de plataformas distin-
tas, como Facebook e WhatsApp.

49
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52
 CARTOGRAFIA DAS CONTROVÉRSIAS MIDIATIZADAS
SOBRE “IDEOLOGIA DE GÊNERO” NA PUBLICIDADE DE
OMO

VANESSA CARDOZO BRANDÃO

RESUMO

A partir das associações discursivas em torno da campanha


publicitária “Comunicado Urgente para Pais e Mães” da marca
Omo Brasil, o artigo discute controvérsias midiatizadas em torno
da questão de gênero. Partindo da perspectiva da Teoria Ator-
Rede (Latour, 2012), associada à da Intermidialidade (Elleström,
2017), é possível observar como se estabelece um campo de dis-
puta de sentidos no ambiente digital. A Publicidade é tomada
como mediadora de diálogos para além da dimensão do con-
sumo, reveladora de dissensos em torno da questão da sexuali-
dade e da infância. Com métodos digitais combinados à análise
de associações discursivas em rede – perspectiva que vem sendo
desenvolvida em projeto de pesquisa desde 2016 –, busco perce-
ber a controvérsia estabelecida por diferentes públicos em torno
da “ideologia de gênero” – expressão que ganhou força no acir-
ramento de debates políticos no Brasil a partir de 2015.

PALAVRAS-CHAVE: controvérsias midiatizadas; teoria ator-


rede; associações discursivas em rede; publicidade digital; ideo-
logia de gênero.

53
ABSTRACT

The article analyzes mediatized controversies around Gender,


based on the discursive associations around the advertising cam-
paign of Omo brand in Brazil, “Urgent Announcement for Fa-
thers and Mothers”. From the perspective of Network-Actor The-
ory (Latour, 2012), associated with Intermidiality (Elleström,
2017), it is possible to observe how a field of meaning dispute is
established in the digital environment. Advertising is taken as a
mediator of dialogues beyond the dimension of consumption, re-
vealing dissent around sexuality and childhood. Using digital
methods combined with the analysis of network discursive asso-
ciations - a perspective that has been developed in a research pro-
ject since 2016 -, I seek to understand the controversy established
by different audiences around the “gender ideology” - an expres-
sion that has emerged and gained strength in the political de-
bates in Brazil since 2015.

KEYWORDS: mediatized controversies; actor-network theory;


network discursive associations; digital advertising; “gender ide-
ology”.

AS CONTROVÉRSIAS NA MEDIAÇÃO PUBLICITÁRIA

Quem fala nas redes? Empresas, organizações, pessoas co-


muns, algoritmos, plataformas, atores de diversas naturezas e in-
teresses. Com a ampliação de espaços midiáticos e de agentes
enunciadores em rede, torna-se cada vez mais difícil para pesqui-
sadores articular metodologias que se apliquem aos complexos
arranjos discursivos em fluxos intermidiáticos.
A partir da perspectiva de intermidialidade de Lars Elleström
(2017), o vídeo da campanha Omo para o Dia das Crianças de
2017 será tomado como acontecimento midiatizado, ponto de
partida em uma rede de relações de agenciamento

54
comunicacional. Enquanto “produto de mídia”, o vídeo publici-
tário é mediador de uma “transferência” de um “valor cognitivo”
entre o produtor e o perceptor, termos usados por Elleström ao
se referir ao modelo de comunicação intermidiático. Fundamen-
tado na semiótica de Charles Sanders Peirce, o autor concebe o
produto de mídia como signo em cadeia semiótica, que estabe-
lece a relação entre o ato de produção e o de percepção. Portanto,
interessa aos estudos fundados na intermidialidade as diversas
inter-relações das nomeadas entidades de comunicação. Sendo
irredutível, o processo de comunicação apenas pode ser compre-
endido olhando para as relações entre as quatro entidades do
processo de comunicação: produtor, perceptor, valor cognitivo
(mensagem) e produto de mídia (canal de transferência).
A perspectiva da intermidialidade parece especialmente pro-
dutiva para análise de discursos circulantes em rede, por possi-
bilitar olhar para as várias dimensões do processo de comunica-
ção: a partir do fundamento semiótico, observa-se meio/plata-
forma (e sua materialidade, especialmente relevante em contex-
tos de propagação digital), a mensagem e sua dimensão discur-
siva ampliada, além dos jogos entre instâncias produtora e recep-
tora.
Somada a esse olhar, do fluxo intermídias, a perspectiva teó-
rico-metodológica da Teoria Ator-Rede (TAR) será utilizada
nesse trabalho como inspiração cartográfica na observação do
objeto empírico. Assim como em outras análises integrantes do
projeto de pesquisa “Atravessamentos discursivos na Publici-
dade Contemporânea: associações entre marcas e atores nos am-
bientes digitais interativos”, dedicada à apropriação da temática
de gênero pela Publicidade, o trabalho parte da concepção de es-
tudos da TAR, buscando ir além da percepção desse discurso em
uma perspectiva “institucionalista”, de como uma marca en-
quanto ethos discursivo se aproveita da lógica midiática das re-
des sociais digitais para ganhar divulgação massiva de seus pro-
dutos.

55
A análise de discursos midiáticos, em especial na Publicidade,
é um campo que se ancorou em aportes analíticos que frequente-
mente enfatizam a instância “produtora” – a marca – como agen-
ciadora dos sentidos propostos. Essa ênfase no discursos “das”
mídias, enquanto agentes propositores de sentido e detentores
de canais de circulação, se manifesta de variadas formas na aná-
lise de discursos e narrativas de marcas que, mesmo que com
abordagens diversas, como a análise do discurso, análise narra-
tiva ou a semiótica, ainda assim tendem a voltar o esforço analí-
tico à enunciação das organizações, em um viés fortemente vol-
tado à instância produtora como agenciadora de sentidos pro-
postos aos sujeitos-consumidores.
A partir da rede sociotécnica19 formada a partir da controvér-
sia midiatizada da campanha “Comunicado Omo para Pais e
Mães”, esse artigo tem por objetivo revelar um campo de associ-
ação discursiva engendrado a partir da Publicidade, mas não res-
trito a ela. Mais do que enfatizar processos de comunicação “da”
marca centrados nas estratégias publicitárias, pretendo apontar
como a Publicidade tem se tornado campo de associação e inte-
ração de diversas dimensões da vida social, ganhando fortes con-
tornos políticos para mediação de debates sobre pautas de inte-
resse público, tais como sexualidade, gênero e infância, no caso
ora analisado.

19 Retomo o conceito de rede sociotécnica como coletivo híbrido (LATOUR, 1994)


constituído tanto por indivíduos que representam instituições em suas funções técnicas
quanto por outros atores como participação individual. Tal conceito se articula com ques-
tões comunicacionais que fundamentam a proposta teórico-metodológica desse artigo,
através da análise das associações entre atores em rede, e se estabelece pela aproximação
dos conceitos de mediação e associação. Como Alzamora e Ziller (2013) já demonstraram
através da articulação da semiótica peirciana e da sociologia da associação da TAR, “As
mediações comunicacionais são aqui discutidas na abordagem peirceana, que se refere à
semiose, e na abordagem de Latour, relacionada a transformar, traduzir, distorcer e mo-
dificar o que quer que veiculem. Ao contrário de se oporem, os dois conceitos se comple-
mentam – ainda que partam de referências teóricas distintas.” (ALZAMORA e ZILLER,
2013, p. 127).

56
ANÁLISE DE ASSOCIAÇÕES DISCURSIVAS A PARTIR DE
FUNDAMENTOS TEÓRICO-METODOLÓGICOS DA TAR

Para além de compreender os discursos e mensagens que cir-


culam nas mídias digitais, o objetivo é olhar para a rede de asso-
ciações que uma controvérsia midiatizada pode instaurar: com
atores diversos, discursos, enunciados, plataformas, instituições
e atravessamentos entre diversas dimensões, a saber, consumo,
vida social, comportamento, política, religião, família e infância.
A partir da perspectiva da Teoria Ator-Rede (TAR), a carto-
grafia das controvérsias pode ajudar a captar movimentos de ins-
tabilidade, aberturas e sentidos em desvio que provocam um mo-
vimento, submetendo anunciados a uma “provação” – conceito
de Bruno Latour. O conceito de provação em Latour está relacio-
nado a outros dois fundamentais: o de tradução e o de controvér-
sia. No contexto dos estudos do sociológo, em especial na obra
“Cogitamus” (2016), Latour apresenta vários sistemas sociotéc-
nicos que são submetidos à “provação”, a partir de processos de
desvio e recomposição de sentidos por parte dos atores envolvi-
dos. Por isso, a controvérsia se torna um importante e produtivo
conceito: é no momento das controvérsias que o sistema de agen-
ciamento da rede coloca o sentido – aparentemente uno – à
prova, revelando o dissenso e as composições de desvio operadas
por atores em rede. As controvérsias midiatizadas, por isso, ofe-
recem oportunidade de observar a dinâmica do processo comu-
nicacional em ação.
No ambiente digital, é notável o quanto a controvérsia se torna
fator de engajamento e, portanto, visibilidade para marcas. Mas
proponho observar não apenas o processo de publicização
(CASAQUI, 2011) estrategicamente provocado pela marca, mas a
rede de sentidos em disputa agenciada nas controvérsias midia-
tizadas pela publicidade. Do modo como pretendo mostrar, a
provação é um processo ao qual a Publicidade contemporânea se
submete, a partir dos confrontos com diversos atores no ambi-
ente digital. Tomando por base as contribuições de Bruno

57
Latour, é possível olhar para a comunicação publicitária de uma
marca a partir da compreensão da rede de fluxos e relações das
quais ela faz parte, para além do enfoque estrito no interesse de
persuasão dos seus diversos públicos.
Nesse sentido, a Publicidade se torna um campo comunicativo
que leva questões do social a processos de “tradução” e “desvio”
(LATOUR, 2012), desestabilizando sentidos socialmente com-
partilhados sobre pautas de interesse público, como o debate de
gênero. Na perspectiva dessa análise da Publicidade, tão impor-
tante quanto que identificar o que é dito e quem o diz (posição
enunciativa), será observar a própria associação dos discursos na
rede sociotécnica em que se articulam atores variados: marca, in-
divíduos, plataforma digital e seus algoritmos de visibilidade,
atuando na organização dos discursos pessoas “comuns”, celebri-
dades, políticos e mesmo entidades representativas de institui-
ções sociais, como a religião.
Esses atores se associam em torno da disputa da “ideologia de
gênero”, a partir da ação da Omo, que se originou de um vídeo no
Youtube para o Dia das Crianças em 2017. Partindo do comercial
online, é possível ver os atravessamentos de vozes com diversos
enunciados que tornam o espaço comunicacional da rede digital
um campo rico para observação das controvérsias midiatizadas.
Como já trabalhado a partir da análise de estratégias publici-
tárias que associaram esporte e feminismo nas Olimpíadas de
2016, a igualdade de gênero e outras temáticas de forte visibili-
dade e interesse público tem se tornado elementos de mediação
para a comunicação institucional e mercadológica. Em especí-
fico, a temática da igualdade de gênero tem sido incorporada no
discurso de marcas e organizações:

O engajamento forjado em redes formadas no ambiente di-


gital tem acontecido de maneira cada vez mais crescente com
as temáticas de interesse público, com desdobramentos políti-
cos e de ativismo social. Debates sobre questões culturais rele-
vantes, como o empoderamento feminino, reverberam com a
formação de comunidades engajadas, criando circuitos em que

58
processos de mediação sociocultural ganham ampla visibili-
dade em processos de midiatização em rede. (BRANDÃO, 2017,
p. 142)

Contextualizando o caso de Omo, é importante destacar que a


campanha propõe um discurso sobre gênero e brincadeiras na
infância, a partir da perspectiva da igualdade de gênero. No en-
tanto, a rede discursiva que se formou em torno do vídeo opera
um “desvio”, deslocando a questão para outros campos, como si-
naliza a associação da campanha com o termo “ideologia de gê-
nero”. A partir das buscas pela temática, é possível rastrear o mo-
mento do surgimento do uso massivo do termo, no Brasil:

Figura 1: Gráfico Google Trends de buscas pelo termo “Ideologia de


Gênero” no Brasil

Fonte: dados gerados pela busca da autora desde 2004 até junho de
2019, a partir do Google Trends

Pode-se ver que o termo teve uma alta de buscas a partir de


junho de 2015. Esse mês coincide com um acontecimento de
grande visibilidade no país: o lançamento de “Escola sem

59
Homofobia”20, material educativo que visava trabalhar respeito à
diversidade sexual nas escolas, elaborado pelo MEC com a con-
sultoria e aprovação da Unesco. O material havia sido elaborado
em 2011, enquanto Fernando Haddad era o Ministro da Educa-
ção, no governo Dilma Rousseff. Apenas em 2015, o material co-
meçava a ser produzido e entrava em circulação, quando foi alvo
de protestos encampados por setores conservadores da socie-
dade. Chamado “kit gay” pelo então Deputado Federal Jair Bol-
sonaro, primeiro político a se posicionar contra segundo fontes
jornalísticas, o material provocou fortes reações na sociedade
brasileira21.

Figura 2: Tabela de termos relacionados às buscas pelo termo “Ideo-


logia de Gênero” no Brasil

Fonte: dados gerados pela busca da autora desde 2004 até junho de
2019, a partir do Google Trends

20 Após polêmica, o referido material foi retirado de circulação. É possível encontrar


parte do material educativo replicado em sites não oficiais, com a nomeação “kit gay”.
Nota oficial disponível em: http://pfdc.pgr.mpf.mp.br/informacao-e-comunica-
cao/eventos/direitos-sexuais-e-reprodutivos/audiencia-publica-avaliacao-programas-
federais-respeito-diversidade-sexual-nas-escolas/projeto-escola-sem-homofobia/nota-
oficial-sobre-o-projeto-escola-sem-homofobia. Acesso em 14 nov. 2019.
21 Disponível em: https://www.huffpostbrasil.com/2017/08/29/o-que-foi-o-kit-
gay-material-escolar-sobre-homossexualidade-criticado-por-bolsonaro-e-ines-bra-
sil_a_23188320/. Acesso em 27 jun. 2019.

60
Como vemos pelas buscas relacionadas, é possível perceber a
associação da temática de gênero e educação deslizando do
campo da “igualdade de gênero” e da “identidade de gênero” para
a “ideologia de gênero”. A campanha da Omo acontece em 2017,
outro ponto de pico nas buscas pelo termo mostrado no gráfico
da figura 1. O método cartográfico usa a estratégia de descrição e
observação da rede como um modo de observação do social em
ação, assim como D’Andrea aponta:

Partindo de uma frase lacunar (“apenas observe as contro-


vérsias e descreva o que você vê”) repetida por Bruno Latour
em suas aulas, Venturini caracteriza controvérsias como situa-
ções onde a vida coletiva se torna mais complexa: onde a maior
e mais diversa seleção de atores está envolvida; onde as alianças
e oposições se transformam sem muita prudência; onde nada é
tão simples quanto parece; onde todos estão gritando e bri-
gando; onde conflitos crescem de maneira áspera
(VENTURINI, 2010, p. 262). (D’ANDREA, 2018, p. 31)

Com a inspiração do método cartográfico, passo a narrar a cir-


culação da campanha mapeando como o vídeo desencadeia um
processo de associação de atores em uma rede sociotécnica for-
mada a partir da disputa em torno do termo “Ideologia de Gê-
nero”.

DA REVISÃO DOS ESTERÓTIPOS DE GÊNERO EM


“#MOMENTOSQUEMARCAM À CONTROVÉRSIA SOBRE
“IDEOLOGIA DE GÊNERO”

Em 06 de outubro de 2017, a marca de sabão em pó líder de


vendas no mundo Omo (Unilever) publica em seu canal no

61
Youtube omobrasil22 o vídeo de 1 minuto e 15 segundos “Comu-
nicado Urgente OMO para Pais e Mães”:

Figura 3: Impressão de tela do vídeo publicitário veiculado no You-


tube

Fonte: Youtube – Brand Channel omobrasil

Na mesma data, foi postado outro vídeo de 35 segundos em


versão resumida, possivelmente estimulado com o formato de
publicidade paga “anúncio pulável”. No entanto, o vídeo que al-
cançou grande visibilidade é a versão longa, de mais de 1 minuto,

22 Disponível em: https://www.youtube.com/channel/UCOFYEeJbwQzNKn-


j2qfiung. Acesso em 20 jun. 2018.

62
que reproduzimos na imagem anterior. Na tela, o texto passa em
rolagem simples, remetendo a comunicados muito usados por
marcas da indústria automobilística quando desejam anunciar
um recall, e acompanhado por uma locução em off (voz mascu-
lina):
Omo convoca pais e mães a fazerem recall de todas as brin-
cadeiras que reforcem clichês sobre gênero, com o objetivo de
ressaltar a importância da experiência e do desenvolvimento
das crianças. Meninas podem, sim, se divertir com minicozi-
nha, miniaspirador e minilavanderia, mas também podem ter
acesso a fantasias de super-heróis, bloquinhos de construção,
carrinhos velozes e dinossauros assustadores. E meninos tam-
bém devem ter toda a liberdade para brincar de casinha, gostar
de castelos, trocar fraldas de bonecas e ter uma incrível coleção
de panelinhas. Porque mais importante do que o brinquedo é a
brincadeira, a participação dos pais no processo de aprendiza-
gem e os momentos que vão marcar a vida delas para sempre.
Esse comunicado tem caráter educativo e busca convidar pais e
mães, nesta data tão especial, a incentivarem seus filhos a se
divertirem sem se preocupar com cores, regras e padrões.
Junte-se a Omo na campanha pelo direito de toda criança de se
sujar e brincar livremente. Compartilhe o vídeo e seus #Mo-
mentosQueMarcam ao longo da semana com a gente. Não deixe
o dia das crianças passar em branco. Omo. Porque bons mo-
mentos marcam.

Destacam-se alguns elementos marcantes da linguagem da


peça: ênfase em texto escrito rolando na tela, acompanhado de
locução masculina em off, e pouco investimento em direção de
arte. A não ser pela escolha do fundo branco e algumas interven-
ções gráficas na assinatura final da peça, o aspecto visual do co-
mercial é secundário, o que reforça o peso do texto escrito como
elemento de agenciamento discursivo. O vídeo, que alcançou ra-
pidamente mais de 1 milhão e duzentos mil visualizações, teve
alto índice de engajamento, mas com forte reação negativa: mais
de 52 mil marcaram “gostei”, e mais de 258 mil “não gostei”, fato

63
mais facilmente explicado quando observarmos a rede de outros
vídeos que se formou em reação à peça publicitária.
O uso de métodos digitais para análise e visualização de redes
tornou possível a visualização da rede textual de contestação ao
discurso da Publicidade, combinando uma abordagem quanti e
qualitativa. Rapidamente, dezenas de vídeos em reposta à marca
se formaram e, com o auxílio das ferramentas, foi possível ras-
treá-los. Para coletar dados de vídeos relacionados pelo algo-
ritmo do Youtube, foi utilizada a ferramenta Youtube Data Tools,
criada por Bernhard Rieder (2015) do Digital Methods Initia-
tive23 (DMI), na função Video Network. O vídeo da marca Omo
foi postado em 06/10/2017, e a coleta de Video Network foi feita
em 25/10/2017, período suficiente para contemplar o maior mo-
vimento de produção de vídeos relacionados à controvérsia pu-
blicitária. A seguir, os dados da rede foram convertidos em grafo
para visualização com uso do software livre Gephi24, tornando
possível representar a cartografia das associações da rede:

23 Disponível em: https://tools.digitalmethods.net/netvizz/youtube/. Acesso em 25


out. 2017.
24 Disponível em: https://consortium.gephi.org. Acesso em 27 out. 2017.

64
Figura 4: Grafo de cartografia de vídeos relacionados ao vídeo publi-
citário da Omo no Youtube

Fonte: Gephi, a partir do Youtube Data Tools (grafo gerado pela autora
em 23/10/2017)

65
O que o grafo mostra é uma rede ampla de mais de 80 vídeos
relacionados, subdivididos em três conjuntos associados com in-
dicação de cores distintas, agrupadas pelo software Gephi. Apro-
ximaremos de cada um desses conjuntos, seguindo o percurso do
grafo, que norteou ainda a criação de um diário de registro feito
para global de vídeos. Todos da rede grafada foram assistidos du-
rante a pesquisa, no período de outubro e novembro de 2017,
possibilitando que a análise qualitativa de textualidades da con-
trovérsia pudesse se aprofundar, com a extração manual dos ter-
mos usados no conteúdo dos vídeos da rede. Alguns desses ví-
deos foram retirados do ar, não estando mais disponíveis na pla-
taforma do Youtube, mas a observação e mapeamento deles foi
feita logo após o lançamento da campanha, o que permitiu fazer
um resumo das principais palavras-chave usadas tanto no título,
quanto na descrição, e no conteúdo de cada um deles.
Começaremos pelo centro do grafo, em cor lilás, que é também
onde se encontram os vídeos mais assistidos e que criam mais
conexões com os demais. Nesses vídeos, destaca-se a repetição
do termo “Ideologia de Gênero” diretamente ligada à dimensão
do consumo da marca Omo, que se articula ainda com outros ter-
mos vistos nos títulos e repetidos no texto falado dos autores de
cada vídeo, palavras como: “polêmica, bizarra, aberração”, a
marca é vista como agente que “impõe, ordena” e quer “empur-
rar”, “goela abaixo” uma “manipulação”. Os termos usados têm
forte carga emocional, como “enfurecido”, “ódio”, “hate”, “de-
tona”, e convocam o público ao “boicote”, provoca “revolta” e
gera “protesto” como mostra a nuvem de palavras gerada a partir
dos títulos dos vídeos:

66
Figura 5: Nuvem de palavras parte lilás do grafo – Omo: Consumo e
Ideologia de Gênero

Fonte: elaborado pela autora, a partir dos títulos dos vídeos no grafo
Gephi (gerado em 23/10/2017)

Nesses vídeos, a questão está em torno de protestar contra a


marca Omo por considerar que ela está impondo a pais e crianças
a ideologia de gênero. Outras associações aparecem de modo se-
cundário, como “educação”, “como educar filhos”, “mudar ca-
beça das crianças”, “homem é homem”, “princesa”, “diferenças
naturais”, “natureza”, “contra família brasileira”. Menos fre-
quente, em vídeos pontuais, aparecem outras palavras e argu-
mentos atravessados pelo enunciado moral e religioso, com ocor-
rência de termos no conteúdo dos vídeos como “veado”, “sapa-
tona”, “desgraça”, “praga do cão”. Mas o ponto central é o de cri-
ticar a marca por querer pregar e “impor” uma ideologia, o que é
visto como invasão ao espaço da família e o papel dos pais. A
marca é vista como oportunista, ou mesmo mal-intencionada em
parte de uma “agenda global”, ao buscar visibilidade em cima de
uma onda de ideologia “contra a família brasileira”. Há aqui,

67
também, atores que se posicionam como cristãos, com atraves-
samento do discurso religioso, moralista e, não raro, político
(com menções ao pastor Silas Malafaia e ao pastor e Deputado
Federal Marco Feliciano).
Na parte azul do grafo, há mais vídeos repercutindo a polê-
mica, com um tom de aparente “distanciamento” do juízo sobre
ideologia de gênero. Expressa-se, aqui, um procedimento relati-
vamente comum em controvérsias na web: há um bom número
de vídeos que se propõem a noticiar a própria polêmica, trans-
formando um produto de comunicação – no caso, o comercial e
a crítica feita a ele em redes sociais e na web – em acontecimento
midiático. Muitos canais especializados em comentar as polêmi-
cas do universo web fazem uma espécie de “cobertura” da polê-
mica que, na verdade, parece criar e reforçá-la. Parece haver um
movimento duplo que confere visibilidade ao discurso criticado,
ao mesmo tempo em que tensiona o sentido originalmente pro-
posto pelo comercial, operando um desvio no sentido de Latour.
Ao invés de repercutir o discurso da campanha publicitária sobre
brincadeiras na infância, os vídeos falam da polêmica provocada
por ela já a partir do uso da expressão “ideologia de gênero”, que
aparece junto a outras. Mas nesse conjunto, não são usados ter-
mos tão intensos nos nomes e descrição quanto antes vimos no
conjunto lilás do grafo. Os termos pretendem ser mais “neutros”
no posicionamento, revelando tendência de os atores se coloca-
rem como se estivessem a reportar a campanha como um fato,
uma notícia a ser dada: “Globo e Omo sofrem retaliação na web”,
“Omo e a questão de gênero”, “Omo faz campanha de identidade
de gênero”, “Comercial Omo Ideologia de Gênero gera polêmica”.

68
Figura 6: Nuvem de palavras da parte azul do grafo – Vídeos “noti-
ciam” a polêmica campanha de Omo

Fonte: elaborado pela autora, a partir dos títulos dos vídeos no grafo
Gephi (gerado em 23/10/2017)

Embora os vídeos, a princípio, se coloquem como notícias da


campanha como acontecimento midiático, e por vezes até come-
cem dizendo que não vão dar a opinião sobre o caso, percebe-se
pelos termos usados ao longo do conteúdo mapeado na leitura
qualitativa manual que, ao reportar o que aconteceu, repete-se o
tom moralista que condena a marca na ocorrência repetida de
palavras como “família ideal”, “chuva de críticas”, “pautas libe-
rais”, “conservadorismo”, “adentrar na área privada”, “criação
dos filhos”. Ocorre ainda a qualificação da propaganda Omo
como “infeliz” e “polêmica”, e persiste a sugestão do boicote à
marca pela sua campanha.
Por fim, na área verde do grafo, a questão da ideologia de gê-
nero aparece em forte associação com outros atores e aconteci-
mentos, tanto na perspectiva das marcas e consumo – Avon e
Globo – quanto de instituições públicas, com menção explícita ao
MEC. Cabe lembrar o histórico já mencionado da política de

69
educação formulada o projeto “Escola sem homofobia”25. Com a
polêmica em 2015, o material educativo voltado a educadores e
alunos do Ensino Médio foi retirado de circulação. O recuo sobre
a política deu mais força ao discurso conservador, afastando o
debate sobre sexualidade das escolas. Nesse conjunto de vídeos,
há ecos de outros enunciados e agentes, além de menção a fatos
polêmicos anteriores e contemporâneos à campanha:

Figura 7: Nuvem de palavras da parte verde do grafo – Associações a


outras marcas e acontecimentos.

Fonte: elaborado pela autora, a partir dos títulos dos vídeos no grafo
Gephi (gerado em 23/10/2017)

Muitos vídeos mencionam a campanha da Avon “Repense as


Princesas – Mais que Lindas” – vídeo26 lançado no Youtube na

25 Disponível em: https://www.huffpostbrasil.com/2017/08/29/o-que-foi-o-kit-gay-


material-escolar-sobre-homossexualidade-criticado-por-bolsonaro-e-ines-bra-
sil_a_23188320/. Acesso em 21 jun. 2019.
26 Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=AWFep_wyCec. Acesso em:
21 jun. 2019.

70
mesma época da campanha da Omo – outra peça publicitária que
gerou uma rede midiatizada de controvérsias no ambiente digi-
tal. Há ainda menção à Rede Globo, em função de uma reporta-
gem sobre uma escola no Rio de Janeiro que eliminou distinção
entre brinquedos de meninos e meninas, exibida no programa
Fantástico de 08 de outubro de 201727. Há vídeos que associam a
campanha da Omo também à capa da Revista Veja de outubro de
2017:

Figura 8: Capa da Revista Veja – edição 2552

Fonte: site da revista Veja (veja.abril.com.br)

Outra aproximação feita, embora com menor frequência, é


com a cobertura que veículos jornalísticos fizeram à censura à
exposição “Queer Museu”28, cancelada pelo Santander Cultural

27 Disponível em: http://g1.globo.com/fantastico/edicoes/2017/10/08.html. Acesso


em: 26 jun. 2019.
28 Disponível em: https://veja.abril.com.br/blog/rio-grande-do-sul/veja-imagens-
da-exposicao-cancelada-pelo-santander-no-rs/. Acesso em 27 jun. 2019.

71
no RS após manifestações contrárias por parte de grupos religio-
sos e de integrantes do Movimento Brasil Livre (MBL).
Como vemos, nessa rede de vídeos representada na parte
verde do grafo, agentes e acontecimentos diversos são reunidos
em uma trama intertextual formada em torno da questão da in-
fância, gênero e sexualidade. Embora as reportagens e textos
mencionados abordem a temática dentro do escopo do respeito à
identidade de gênero, ou à educação infantil para a redução das
desigualdades de gênero, percebe-se aqui claramente o processo
de “tradução” e “desvio” associado por Latour às controvérsias.
Todos textos são enquadrados como “ideologia de gênero”: auto-
res desse conjunto de vídeos relacionam Avon, Globo, Omo, Veja
e MEC, que são tidos como equivalentes e parte de uma “conspi-
ração de empresas”, da “mídia” - “marcas”, “séries”, “novelas”,
“exposição”, “produtos lixo” que querem “impor” a ideologia de
gênero, “destruir”, provocar “confusão”, “reprogramar” as “cri-
anças”, confundir a identidade de “meninos e meninas”. Essas
palavras são usadas ao lado de outras como “doutrinação”. Tam-
bém aqui nesse agrupamento de vídeos, há a ocorrência de ter-
mos religiosos, porém intensifica-se o uso de palavras como
“guerra contra família”, “cristianismo”, “deixem crianças em
paz”, “depravados”, “pervertidos”, e o apelo ao boicote é em nome
de “Deus”, da “fé”, da ação de “pessoas de família” contra a
“farsa” e “vergonha” da “ideologia” do “sexo indefinido”.

APONTAMENTOS FINAIS: ASSOCIAÇÕES DISCURSIVAS


NA CONTROVÉRSIA DA “IDEOLOGIA DE GÊNERO”

Com a visão geral dos três subconjuntos de atores e vozes que


aparecem, a partir da análise do grafo de visualização da rede dis-
cursiva formada em torno do vídeo da Omo, foi possível perceber
a recorrência da ideia da “ideologia de gênero” que, como vimos,
ganhou notoriedade no Brasil em 2015. Embora esse termo não
apareça no discurso da marca, diversos atores que se articulam

72
em torno do discurso da Publicidade associam-se com um ele-
mento em comum: a proteção da infância da “ideologia de gê-
nero”, frequentemente vista como doutrinação e imposição sobre
as famílias.
Como já relatado, além de ter utilizado de métodos digitais
para extrair dados da rede formada em torno do vídeo comercial
da marca Omo, os vídeos da rede foram assistidos em sua totali-
dade. Com o registro manual de palavras-chave usadas em seu
conteúdo, foi gerada uma nuvem de palavras que apresenta as
disputas de argumentos nos vídeos.

Figura 9: Nuvem de palavras dos termos usados no conteúdo dos vídeos da


rede da controvérsia “Ideologia de Gênero” na Publicidade da marca Omo

Fonte: coleta manual feita pela autora a partir dos vídeos da rede ge-
rada pelo Gephi

É notável a repetição de termos como “menino” e “menina”


relacionados a uma visão binária de gênero, no campo da perfor-
matividade associada a padrões sociais, como os de que meninos
brincam de carrinho e meninas brincam de boneca. A

73
controvérsia aparece exatamente em torno dos estereótipos que
a Publicidade de Omo propõe que o público repense. Também
vale notar a carga emocional forte de muitos termos usados,
como é possível verificar pela nuvem de palavras.
Para finalizar, cabe destacar que há outra linha que unifica a
rede discursiva engendrada pela rede sociotécnica: a ideia de que
marcas e empresas não devem entrar no domínio “privado” da
educação infantil. Parece haver uma sensação geral, de fundo,
por trás dos variados posicionamentos dos atores da rede. Fica
implícita a ação de um afeto operando sobre os atores: o medo
parece atuar na difusão do discurso sobre gênero e sexualidade
na infância. Mesmo na perspectiva do respeito às diferenças, a
intenção educativa do discurso da igualdade de gênero é igno-
rada e subvertida, na medida em que se demonstra o temor de
que o debate de gênero possa interferir na própria conformação
da sexualidade infantil, como sugere o título do vídeo “Ideologia
de gênero: o que pode causar em nossas crianças”.
Os atores articulam discursos com enunciados variados: mo-
ral, religioso, político, educativo, e mesmo do consumo, a partir
da proposição do boicote. Mas uma coisa, todos parecer ter em
comum. Parecem dizer, em uníssono, que a sexualidade é um de-
bate de foro íntimo das famílias. Em síntese, retomo o título de
um dos vídeos mais vistos, central no grafo da rede, que diz:
“Omo, Avon, Globo, Veja, MEC - ideologia de gênero, sexo inde-
finido?”. A controvérsia evoca o chamado à liberdade dos pa-
drões de performatividade de gênero, nos termos de Butler
(2015). Talvez, a campanha tenha gerado tantas reações por as-
sociar a liberdade de gênero à infância, através da ideia do “livre
brincar” que se explicita no argumento publicitário da campanha
de Omo: “Esse comunicado tem caráter educativo e busca convi-
dar pais e mães, nesta data tão especial, a incentivarem seus fi-
lhos a se divertirem sem se preocupar com cores, regras e pa-
drões. Junte-se a Omo na campanha pelo direito de toda criança
de se sujar e brincar livremente.”

74
Através do Comunicado feito para o Dia das Crianças, a marca
se coloca no debate da igualdade de gênero: pais de meninas e
meninos são chamados a repensar os estereótipos presentes nas
brincadeiras típicas ligadas ao gênero feminino e masculino. É
precisamente esse o “atravessamento” que afeta e faz agir todo
um conjunto de atores híbridos e diversos na rede sociotécnica
formada a partir do vídeo publicitário: para além da dimensão do
consumo e do discursos da marca de sabão em pó de que “se sujar
faz bem”, diversos indivíduos e instituições se mobilizam em ou-
tra direção. O que parecem dizer é que empresas não deveriam
“invadir” o espaço da família, com a sugestão de como as crianças
devem brincar. Como diz o ditado: roupa suja se lava em casa. O
espaço da infância, a partir da demarcação das brincadeiras de
meninos e meninas, é tomado como “privado” e inviolável. Um
campo onde nem mesmo Escolas, com agentes especializados em
políticas educacionais, recebem licença para agir, como a associ-
ação reprobatória com o Ministério da Educação e Cultura
(MEC) no resgate de outras controvérsias anteriores parece mos-
trar.
O trabalho analítico realizado aponta não apenas para o dis-
curso publicitário da marca e seu engajamento com a igualdade
de gênero como estratégia de visibilidade midiática. Com a car-
tografia das controvérsias, é possível perceber o conjunto de ato-
res humanos e não-humanos (pessoas, marcas, plataforma digi-
tal Youtube e algoritmos de recomendação de conteúdo relacio-
nado do sistema Google), enunciados e discursos associados em
rede, apontando para um cenário contemporâneo em que mesmo
a Publicidade, com seu propósito persuasivo e mercadológico,
pode se tornar mais um dos campos de disputa social sobre ques-
tões controversas relacionadas aos direitos humanos fundamen-
tais, como o respeito à identidade de gênero e à orientação se-
xual.

75
REFERÊNCIAS

ALZAMORA, G. C.; ZILLER, J. A dinâmica associativa das mí-


dias sociais: semiose e convergência. TECCOGS: Revista Digital
de Tecnologias Cognitivas, São Paulo, v. 8, p. 115-130, 2013.

RIEDER, B. YouTube Data Tools (Version 1.11) [Software].


Disponível em
<https://tools.digitalmethods.net/netvizz/youtube/>, acesso
em 25 de outubro de 2017.

BRANDÃO, V. C. Keep Playing #LikeAGirl: fluxos mercadológi-


cos, institucionais e políticos no discurso da igualdade de gênero
por meio do esporte. In: ZILLER, J.; D'ANDREA, C.. (Org.).
Olimpíadas Rio 2016: mídia, política, humor. Belo Horizonte:
PPGCOM UFMG, v. 1, p. 136-154, 2017.

BUTLER, J. Problemas de gênero: feminismo e subversão da


identidade. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2015.

CASAQUI, V. Por uma teoria da publicização: transformações no


processo publicitário. Significação: Revista de Cultura Audio-
visual, São Paulo, v. 38, n. 36: p. 131-151, 2011.

D’ANDREA, C. F. Cartografando controvérsias com as platafor-


mas digitais: apontamentos teórico-metodológicos. Galáxia,
São Paulo, n.38, pp.28-39, 2018.

ELLESTRÖM, L. Ensaios sobre comunicação, semiótica e


intermidialidade. Porto Alegre: EDPUCRS, 2017.

LATOUR, B. Cogitamus. São Paulo: Editora 34, 2016.

LATOUR, B. Reagregando o social: uma introdução à teoria


do ator-rede. Salvador: Edufba, 2012.

76
 INFLUENCIADORES POR HERANÇA: APROPRIAÇÃO DO
“EU” DO RECÉM-NASCIDO POR PAIS INFLUENCIADORES
QUE COMPARTILHAM CONTEÚDO EM SEU NOME

DANIELE RODRIGUES

RESUMO

Partindo de premissas da Internet Studies, o artigo mergulha


nas motivações estratégicas por trás da criação de perfis para fi-
lhos de influenciadores nas plataformas digitais sociais, especifi-
camente no Instagram. Esses “influenciadores por herança” nas-
cem com uma base de seguidores formada por milhares de pes-
soas, com alto engajamento e até com parto patrocinado por
marcas de grande porte. O recorte investigado, por meio de aná-
lise de conteúdo, envolve publicações no feed de Instagram de
dois perfis - @Gael e @babyzion. Estes perfis são de filhos de dois
influenciadores digitais – do youtuber Christian Figueiredo e da
Instagramer de lifestyle Jade Seba, respectivamente. O período
de publicação dos conteúdos analisados é desde o lançamento
dos perfis (final de 2018) até 16 de Junho de 2019 - que corres-
ponde ao meio da gravidez até as primeiras semanas de vida das
crianças.

PALAVRAS-CHAVE: influenciadores digitais; Instagram; Mar-


keting de Influência; estratégias narrativas.

ABSTRACT

Based on assumptions from Internet Studies, the article in-


vestigates the strategic motivations behind profiling influencers'

77
children on social digital platforms, specifically on Instagram.
These “heritage influencers” are born with thousands of follow-
ers, and even with their birth sponsored by major brands. The
investigated clipping through content analysis involves posts on
Instagram of two profiles: @Gael and @babyzion. These profiles
are from the children of two digital influencers: Christian
Figueiredo (youtuber) and Jade Seba (lifestyle instagramer), re-
spectively. The period of publication of the analyzed content is
from the release of the profiles (at the end of 2018) until the 16th
of June 2019, period corresponding to the middle of pregnancy
until the first weeks of the children’s lives.

KEYWORDS: digital influencers; Instagram; Influence Market-


ing; narrative strategies.

INTRODUÇÃO

O nascimento de um filho é cercado de rituais e preparativos


- desde cuidados médicos e burocráticos até emocionais. A vida
dos pais muda em diferentes aspectos: rotina, finanças, distribui-
ção de tarefas etc. Quando uma criança chega ao mundo como
parte de uma família de influenciadores, esse processo tem cui-
dados singulares. A escolha do nome, por exemplo, ganha uma
camada extra de verificação: é um perfil liberado nas principais
redes sociais? A preocupação com a persona no ambiente digital
faz parte dessa escolha por alguns motivos. Para aterrissar a dis-
cussão sobre esta temática, foram analisadas publicações no feed
do Instagram dos perfis @babyZion (762 mil seguidores no perí-
odo coletado) e @Gael (137 mil seguidores no período coletado)
- filhos dos influenciadores Jade Seba e Christian Figueiredo,
respectivamente, desde a primeira foto ou vídeo publicados no
perfil até o dia 16 de Junho de 2019 (totalizando 30 conteúdos no
feed de @Gael e 42 no feed de @babyZion). Na ocasião do re-
corte, as crianças possuíam poucas semanas de vida e, antes de

78
mesmo de nascerem, já acumulavam esses milhares de seguido-
res. Importante destacar que o recorte dá margem para diferen-
tes abordagens: 1) jurídica, ao passo que a existência dos perfis
ferem a política do Instagram (apenas pessoas com 13 anos po-
dem ter conta) e por envolver publicidade nesses perfis atribuí-
dos a pessoas incapazes de compreender o uso da sua imagem;
2) psicológica, no que diz respeito à construção de personalida-
des, opiniões e sentimentos para os recém-nascidos; 3) estrutura
narrativa voltada ao universo do Marketing de Influência. Este
artigo se debruça apenas sobre o item três, recorrendo sobretudo
a autores que debatem Tecnologias da Informação e Comunica-
ção (TICs) e Marketing de Influência.
A análise está ancorada na abordagem teórica Internet Stu-
dies, entendendo a Internet como artefato cultural e como mídia,
nos termos de Fragoso, Recuero e Amaral (2012). Para tanto, é
central compreender nos recortes selecionados as práticas comu-
nicacionais decorrentes da inserção das TICs na vida cotidiana e
o jogo de produção de sentido derivado desse processo.
A dinâmica de produção de sentido no contexto atual ocorre a
partir de bases mais complexas, sobretudo com as redes sociais
digitais que facilitam a interação em rede - em constante expan-
são e caracterizada por escalas diversas de familiaridade, fragili-
dade e troca de conteúdo simbólico. Diante desse cenário, Tho-
mpson (2018) reviu sua Teoria Interacionista da Mídia, baseada
no tipo de ação e interação que os meios de comunicação tornam
possíveis, acrescentando uma quarta categoria, a Interação Me-
diada Online que considera as interações possíveis no ambiente
digital conectado. Apenas a título de recapitulação, as três já exis-
tentes eram: Interação Face a Face (contexto de copresença, com
caráter dialógico e com multiplicidade de sinais simbólicos como
gestos, expressões faciais e elementos sensoriais); Interação Me-
diada (pressupondo o uso de meio técnico de comunicação, como
telefone, que permite a transmissão de conteúdos para in-
divíduos distantes no espaço e/ou no tempo, ainda com caráter
dialógico, mas com limitação nas possibilidades de sinalizações);

79
e o terceiro que é a Quase-interação Mediada (também possível
num tempo-espaço remoto e com limitação de sinais, mas numa
lógica unidirecional de um para muitos, como a televisão e outros
meios de massa).
No contexto do mundo midiatizado em que vivemos, as rela-
ções sociais acontecem justamente na sobreposição dessas 4 for-
mas de interações. Para a pesquisadora Musse (2017), que por
um tempo se dedicou a estudos envolvendo a plataforma Insta-
gram, o processo de construção e identidade nos ambientes digi-
tais sociais garante autonomia ao indivíduo para gerir sua pró-
pria imagem e publicizar seus discursos. “O sujeito, por conta
própria passa a falar de si, fazer imagens de si, escrever sobre si,
criando narrativas que possam dar sentido a sua própria existên-
cia” (2017, p. 52); O que não é o caso de Zion e Gael ao passo que
são apenas bebês.
Nesse contexto, faz-se importante atentar para a importância
da instituição família, pois os perfis analisados não são de quais-
quer usuários do Instagram e, sim, de filhos de influenciadores.
Segundo Alves (2014), família é o lugar no qual se insere o in-
divíduo de modo mais íntimo - estando nela implantado pelo
nascimento ou por laços afetivos - moldando sua personalidade
e seu caráter, sendo essencial e básica para a formação de cada
pessoa e constituindo o núcleo fundamental onde repousa toda a
organização social. A vida das crianças em questão – Gael e Zion
– é publicizada em plataformas digitais de alto impacto e alcance,
impulsionadas pela relevância e audiência dos seus pais influen-
ciadores. As narrativas criadas por seus pais em seus nomes de-
sencadeiam produção de sentido que extrapolam a relação da
instância família nuclear, se ramificando em milhares de “tios” e
demais designações de parentescos autoatribuídos pelos fãs. A
vida nessa lógica reality show das crianças e a formação de uma
gigantesca base de fãs/ seguidores antes mesmo do nascimento
são alguns dos argumentos que embasam a nomenclatura pro-
posta nesse artigo de “influenciadores por herança”, termo

80
cunhado para designar os perfis em redes sociais de filhos de in-
fluenciadores.
Em termos de análise, o quadro abaixo traz um resumo do
conteúdo selecionado para o presente estudo e os elementos sob
os quais se fundamentam as análises.

Figura 1: Resumo do escopo de análise

Fonte: formulado pela autora

ATENÇÃO. SILÊNCIO NO ESTÚDIO. GRAVANDO

Conectando à visão de Thompson (2018) apresentada anteri-


ormente, para compreender a estratégia narrativa por trás desses
“influenciadores por herança”, uma primeira discussão é sobre a
vida representada, numa lógica de Sociedade do Espetáculo –
termo de Debord (1997), cunhado há mais de 50 anos e ainda as-
sim coerente com a sociedade contemporânea. Segundo o autor,
com a consolidação da mídia de massa, a vida das pessoas se tor-
nou uma grande soma de espetáculos. Existe a experiência

81
gastronômica vivenciada pelos nossos sentidos e a experiência
estética performática (melhorada ou piorada) pelos recursos da
plataforma digital social escolhida para compartilhar esse mo-
mento. Nos termos de Recuero (2009), as redes sociais digitais
potencializam nossas experiências, ao passo que são formas de
representação dos relacionamentos afetivos ou profissionais dos
indivíduos entre si e entre seus grupamentos de interesse mútuo,
propiciando o compartilhamento de ideias entre sujeitos com in-
teresses e valores comuns numa escala exponencial.
Um conceito que reforça essa visão, é o 'imperativo da visibi-
lidade', apresentado por Sibilia (2003, apud OLIVEIRA, 2019),
que diz que rede social é uma forma de exposição em que a visi-
bilidade se faz necessária para que o ator social exista no ciberes-
paço. O sujeito se apropria do referido espaço (perfil) e constrói
o seu “eu” se valendo dos recursos da própria plataforma. Par-
tindo deste racional – tanto da Sociedade do Espetáculo como do
imperativo de visibilidade – a paternidade do Christian e a ma-
ternidade da Jade precisam ser ostentadas nos espaços públicos,
especialmente no YouTube e no Instagram, respectivamente,
plataformas onde a reputação e o capital simbólico de ambos fo-
ram construídos: “importa é saber e contar aos demais o que es-
tamos fazendo – neste momento ou em qualquer outro; o que
importa é ‘ser visto’” (BAUMAN, 2011, p. 27).
O interesse por eventos familiares de celebridades não é re-
cente e há alguns estudos a respeito disso, como a construção da
imagem e relevância da família Kardashian (LADEIRA, 2018) ou
sobre casamentos e nascimentos na família real britânica. Zana-
tta (2012), por exemplo, analisou a página no Facebook da famí-
lia real, resgatando alguns momentos de alta audiência, como o
casamento do Príncipe William com Kate Middleton. Segundo o
pesquisador, o evento foi assistido na internet por mais de 72 mi-
lhões de pessoas, além dos dois bilhões de pessoas que o próprio
governo britânico estima que tenham acompanhado a cerimônia
pela televisão. Estudar o fenômeno da comunicação em torno do
nascimento de filhos de influenciadores passa por alguns

82
elementos desse universo, mas sem perder de vista que a relação
do público com influenciadores tem pressupostos diferentes em
comparação com a relação celebridade e público.
Esfera Pública e Opinião Pública são conceitos que vêm so-
frendo mudanças expressivas nesse novo cenário tecnológico e
comunicacional. Para Palácios (1996), isso tem acontecido por-
que a comunicação em rede altera relações, reposiciona os agen-
tes e reestrutura critérios de autoridade e relevância. Ao revisitar
sua própria obra, Habermas (2003) admite a existência de desi-
gualdade de posições dentro da esfera pública moderna, afir-
mando que pessoas com interesses similares podem usar esse
ambiente comum para propagar suas ideias e estratégias de po-
der, sendo que alguns indivíduos possuem informações ou pos-
tos privilegiados, em situação de clara vantagem comunicativa.
Eis o caso das celebridades e influenciadores digitais.
No entanto, a autoridade e o poder de reverberação desses
agentes sociais estão atrelados a características diferentes. En-
quanto uma celebridade como a apresentadora Xuxa, indepen-
dente de usar a marca de cosmético Monange, fala sobre o pro-
duto sem ser questionada (propagação atendendo a lógica de al-
cance), dos influenciadores digitais se espera o compartilha-
mento de experiências reais (propagação com intuito de en-
dosso).
Intimidade é outro elemento diferenciador. A celebridade se
ancora numa lógica do inatingível, do apenas admirável e com
rarefeita conexão com o público em contextos como redes sociais,
enquanto influenciadores são vistos como emocionais, espontâ-
neos, próximos e comungando elementos de identificação com o
público - sendo não apenas porta vozes de uma mensagem rotei-
rizada, mas parte da experiência e se portando como o amigo que
está compartilhando detalhes corriqueiros da sua vida.
Se partimos do pressuposto que Christian e Jade são influen-
ciadores digitais, ocupando elevada posição em rankings de rele-
vância e número de seguidores, soa "natural" exporem cada de-
talhe do dia a dia com o filho em seus canais digitais - ocasiões

83
propícias para a narrativa na lógica do espetáculo. Isso é parte do
acordo velado entre seguidores e influenciador: o reconhecem
como relevante, repercutindo o que ele posta, em troca de conte-
údo de qualidade, inédito ou exclusivo.

A proximidade desses sujeitos de seus públicos, de sua rede,


a partir da escrita íntima, do uso da primeira pessoa (no caso
dos blogs, Instagram, Twitter) e da pessoalidade cria uma apro-
ximação entre o criador de conteúdo e seus públicos. É nessa
sustentação que se ergue o capital simbólico dos blogueiros (...)
(KARHAWI, 2016, p. 47).

Ainda segundo a autora, outra razão para a preocupação com


a persona no ambiente digital dos filhos de influenciadores é que
a imagem da família do influenciador é parte da lógica da “ima-
gem mercadoria” que experienciam:

(os influenciadores constituem-se como marcas e, em muitos


casos, constituem-se como veículos de mídia. Não estamos ape-
nas lidando com influenciadores no ambiente digital, um su-
jeito revestido de capital simbólico e que engaja e influencia ni-
chos. (...) Nesse processo, o influenciador comercializa não ape-
nas banners em seu blog ou negocia posts e vídeos pagos em
que fala de marcas parceiras, mas monetiza a sua própria ima-
gem. Assim, aceita-se o Eu como uma commodity (KARHAWI,
2016, p. 41-42).

Se a força dos perfis de Jade e Christian está nessa suposta


evidência do "eu" de cada um deles nos conteúdos que produzem
e compartilham (narrativas com personalidade e verossimi-
lhança em diferentes formatos), diferenciando-os das celebrida-
des tradicionais, eis uma contradição: criar e alimentar perfis em
nome dos seus filhos. O público ama os influenciadores pelo seu
"eu". Quando pais criam perfis e narrativas para seus filhos, com
textos em primeira pessoa e até interações com os próprios pais
e com outros agentes sociais o recém-nascido se torna um

84
factoide. Sem julgamento sobre questões morais, nesse artigo,
mais à frente, serão abordadas hipóteses das motivações da cria-
ção dos perfis.
Ainda partindo do pressuposto que a imagem (e a vida) dos
influenciadores é mercadoria, é importante trazer em cena a re-
levância de um "bem" escasso atualmente, a atenção – combus-
tível dos motores do mercado. Segundo Silveira, Avelino e Souza
(2018), hoje a atenção é para as empresas o que as fazendas e os
campos foram para as sociedades rurais, o que as fábricas repre-
sentaram à Revolução Industrial e o que o conhecimento signifi-
cou à Era da Informação.
Segundo Berger (2014), o potencial de contágio de uma men-
sagem, ou seja, potencial de se espalhar de pessoa para pessoa
por boca a boca e influência social é alimentado por alguns fato-
res: 1) ser uma moeda social: conteúdo com notabilidade interior,
alavancando uma espécie de mecânica de jogo que dá às pessoas
formas de alcançar símbolos de status visíveis que possam osten-
tar frente a outras pessoas; 2) ser gatilho: mensagens com ele-
mentos familiares à bagagem cultura dos interlocutores e/ou ao
momento vivido no instante da interação; 3) capacidade de emo-
cionar: “quando nos importamos, compartilhamos. (…) Por isso,
precisamos escolher as emoções certas para evocar” (p. 32); 4)
ter valor prático: conteúdos úteis; e 5) boas histórias: “pessoas
não compartilham apenas informação, contam histórias”. (p.
33).
O conteúdo gerado para os perfis analisados explora várias
dessas artimanhas, especialmente emoção e história. Uma das
supostas interações do bebê Gael aos fãs na primeira publicação
na timeline entrega o tom da narrativa que será construída.
“ainda estou no forninho! Mas meus pais deixaram eu comparti-
lhar a minha história com vcs”.

85
ESVAZIAMENTO DO EU: GAEL, O LOKINHO, E BABYZION
#AD

Antes de abordar a criação e manutenção dos perfis @baby-


Zion e @Gael no Instagram sobre o ponto de vista estratégico de
marketing de influência para os pais (e talvez para a criança),
cabe uma breve discussão sobre o esvaziamento do eu por traz
dessas @. Qual o limite da exposição quando envolve um terceiro
que ainda não tem noção do que está acontecendo e não dispõe
de capacidade cognitiva e social de participar das trocas simbóli-
cas nas quais seu perfil digital está sendo envolvido?

Figura 2: Print de interação no primeiro post29 do perfil @Gael

Fonte: Instagram, 30 de julho de 2019

As legendas que acompanham as publicações e as reações aos


comentários feitos nas postagens chamam a atenção no que
tange a apropriação do eu. No caso do Gael, das 30 publicações
analisadas (praticamente 100% no formato foto) todas estão com
legenda em primeira pessoa, marcadores temporais precisos e
adjetivações que ajudam a construir uma linha do tempo clara e
rica em detalhes desde o momento da gestação até as primeiras
semanas pós-nascimento. “No mesmo dia em que o papai e a ma-
mãe me viram pela primeira vez (14/09/2018), eles ligaram para
o meu vovô Wandy para contar a novidade (.... ) ou “hoje completo
37 semanas na barriga da mamãe! já não sou mais considerado um

29 Link do post onde o comentário foi feito:


https://www.instagram.com/p/BrOiIaiH-Cd/. Acesso em 02 dez. 2019.

86
bebê prematuro ! a minha previsão de chegada (...)” são exem-
plos de legendas.
O perfil do filho do Christian está ancorado numa persona
construída. A criação de persona é um recurso comum na publi-
cidade, que pressupõe a definição de características comporta-
mentais, de expressão e de visão de mundo (imagem pública)
para guiar a comunicação com o público-alvo de “forma coerente,
com personalidade, tom e características definidas, sem confun-
dir os públicos com estilos diferentes a cada nova mensagem”
(SILVA e AMARAL, 2016, p. 189).
A persona por trás das publicações do Zion não é tão evidente.
A maior parte é feita em terceira pessoa - como relato da mãe ou
do pai sobre a situação exibida. O formato escolhido é prioritari-
amente vídeo, envolvendo produção profissional e controle esté-
tico elevado, assim como as produções do perfil @JadeSeba.
Ainda sobre o ponto da apropriação do eu, ambos os pais in-
teragem nas publicações dos perfis dos recém-nascidos, simu-
lando um diálogo. Contudo, novamente as respostas via perfil do
Gael são as mais estrategicamente elaboradas, focadas em cons-
truir uma imagem de pais heroicos. Exemplos de interações si-
muladas: “Quero ser igual você quando eu crescer, papai <3”
(@gael) ou “sexxtouu” (numa suposta resposta ao pai Bruno que
comentou na foto do @babyZion).

87
Figura 3: Print de interações dos perfis @Gael e @babyzion

Fonte: Instagram, 30 de Julho de 2019

MOTIVAÇÕES

No âmbito das possíveis motivações para a criação dos perfis


selecionados – sob a ótica da estratégia de influência (BERGER,
2017), do consumo de conteúdo na Sociedade da Conexão
(JENKINS, 2014) e da Cultura da Participação (SHIRKY, 2011) –
, vislumbram-se alguns caminhos:
1. Os perfis são necessários para fazer sentido a nova narrativa
dos canais dos pais, que produzem conteúdos sobre o seu cotidi-
ano e a criança é um fato novo que passa a demandar muita aten-
ção, pelo menos nesse primeiro momento, dos influenciadores;

88
2. Fonte de renda, na medida em que para alguns segmentos
é possível contar histórias interessantes na interação mãe/pai e
filho, especialmente quando ambos possuem audiência de no mí-
nimo milhares de seguidores;
3. Complementar ao ponto 2, construção de perfis com poten-
cial de serem influenciadores digitais no futuro ancorados na
base de fãs dos pais, como uma espécie de herança simbólica de
relevância e audiência.
Sobre o primeiro possível motivo, vale citar a lei de Metcalfe,
cunhada por Bob Metcalfe, inventor do protocolo Ethernet que
conecta computadores. "A lei diz que a utilidade de uma rede au-
menta cada vez mais rápido sempre que acrescentamos uma
nova pessoa à rede" (PARISER, 2012, p. 42). Apesar do autor es-
tar se referindo a redes, podemos estender essas premissas às te-
máticas abordadas pelos influenciadores. As pessoas estavam co-
nectadas ao Christian por conteúdos distantes ao universo da pa-
ternidade. Seu bordão é "e aí meus lokões e lokonas de todo o
Brasil" e sua biografia, que ficou por meses na lista de livros mais
vendidos no país, traz relatos reais de táticas nada lícitas para ter
relações sexuais com mulheres. Na obra, relatou um caso em que
estimulou o consumo de álcool por uma menina para facilitar o
convencimento. Poucos meses depois de iniciar seu namoro com
Zoo, também influenciadora, o então jovem que transitava por
assuntos do universo da zoeira ou trivialidades cotidianas se
transforma num pai ansioso que muda de casa para garantir a
segurança do filho e que compartilha cada passo da gestação. A
paternidade chegou e essa mudança na vida pessoal do influen-
ciador não pode ser ignorada, ainda mais no caso de uma pessoa
que tem um compromisso velado com sua audiência de compar-
tilhar cada experiência vivida. Com Jade Seba não foi diferente.
De dezenas e dezenas de posts patrocinados por marcas sobre
produtos ou serviços fitness, de moda ou estilo de vida, ela passa
a povoar seu feed com imagens da evolução da sua gestação, das
roupas que não servem mais e do projeto do quarto do bebê.

89
É preciso um alinhamento de expectativas com seus seguido-
res, pois o storytelling diário de ambos ganha novos atores e pri-
oridades. A construção de um perfil para o Gael com personali-
dade similar ao do Christian - o mesmo no caso da Jade e seu
filho Zion - pode corroborar para fazer a transição editorial nos
canais dos influenciadores de modo mais sutil e emotivo. Ainda
é cedo para afirmar o impacto em termos de engajamento e rele-
vância dos canais, bem como se haverá a manutenção da antiga
base. As plataformas digitais sociais de Jade Seba e Christian Fi-
gueiredo estão "em obras" e seus filhos – sem saber ainda – tal-
vez desempenhem papel de arquitetos sociais nessa empreitada.
A exposição do filho do Christian Figueiredo como conteúdo
central das narrativas nos canais do influenciador é mais forte
em comparação com a influenciadora Jade. Na semana que an-
tecedeu o nascimento e na primeira semana de vida da criança,
Christian fez vídeos diários no seu canal secundário30 no You-
Tube - com mais de 5 milhões de inscritos, que representa me-
tade da base do principal, exclusivamente sobre isso, inclusive
fazendo stories quase em tempo real do parto. Depois desse pe-
ríodo, a temática segue sendo quase 100% sobre o filho, resul-
tando em crescimento no número de inscritos no canal e da au-
diência média dos vídeos.

30 O canal principal do Christian no Youtube é “euficoloko” e o secundário é “eufico-


loko2”.

90
Figura 4: Home do canal no Youtube “Eu fico loko 2”

Fonte: Youtube, 30 de Julho de 2019

Sob o aspecto de participar de conteúdo patrocinado por mar-


cas – segunda motivação hipotética deste artigo – foram identi-
ficadas ocorrências em ambos os casos. Christian, que é um dos
embaixadores da marca de refrigerante Fanta, ao lado de outros
youtubers, fez um publieditorial ainda na maternidade. A publi-
cação com a presença da marca, envolvendo também outros três
youtubers embaixadores de Fanta, foi postada no perfil do Gusta
Stockler31 no Twitter, mas sem a identificação padrão de publici-
dade. Parte dos comentários fez alusão ao patrocínio desde o nas-
cimento: "O bebê é patrocínio da fanta?"; “o menino já nasceu
com patrocínio klkkk"; "Já nasceu patrocinado?"; "Tá, mas quem
é Gael e pq a Fanta patrocina algo em um hospital?"; "bebê

31Publicação patrocinada, no dia 14/maio/2019, às 10h11:


twitter.com/gustastockler/status/1128301716103946240. Acesso em 02 dez. 2019.

91
patrocinado pela fanta"; "até o parto vocês patrocinaram?? kkk-
kkkkkkkkkk como assim"; e "Gael é um novo refrigerante? Já tem
no Pão de Açúcar?" são exemplos desses questionamentos ou
brincadeiras com o patrocínio do post.

Figura 5: Post no perfil de Twitter do Gusta e exemplos da repercussão

Fonte: Twitter, 30 de Julho de 2019

Jade Seba também parece ter publicado conteúdo patrocinado


em seu perfil e no perfil do Zion. Das 42 publicações analisadas,
pelo menos quatro se assemelham a publieditoriais não identifi-
cados com #ad ou indicação de parceria paga. As legendas, con-
tudo, apresentam características comuns de posts encomenda-
dos. Abaixo, três conteúdos no perfil @BabyZion que, possivel-
mente, são frutos de parceria com marcas.

92
Figura 6: Publicações no Instagram de @babyZion

Fonte: Instagram, 30 de Julho de 2019

Sobre a suposta formação de uma carreira de influenciador


para a criança, há muitas histórias de pais que sonharam com o
filho sendo um jogador de futebol, profissão em que fama, status,
poder e riqueza são recorrentes no imaginário social. Agora, não
raro, pais estimulam desde a infância a atuação como produtores
de conteúdo para plataformas digitais sociais, reproduzindo nar-
rativas clichês de youtubers jovens (e até adultos). Já existe até
ranking de relevância de youtuber mirins32, por exemplo. Para
Bauman (2011, p. 80), “a autoridade amplia o número de segui-
dores, mas, no mundo de fins incertos e cronicamente subdeter-
minados, é o número de seguidores que faz - que é - a autoridade”.
Nessa lógica, o perfil dos pais com milhões de seguidores pode
ajudar os perfis dos recém-nascidos a terem uma base

32 Matéria da Revista Veja sobre youtubers mirins destaques no Brasil


(04/01/2019). Disponível em: http://oglobo.globo.com/cultura/conheca-os-youtubers-
mirins-mais-populares-da-internet-brasileira-23342467. Acesso em 02 dez. 2019.

93
expressiva, ou seja, com potencial de seguir a carreira dos pais.
Ambos já estão com cerca de 10% da base de fãs dos pais. Nessa
escola informal de influenciadores, o perfil do Zion já ostenta fo-
tos e vídeos com a hashtag #lookdoZion, por exemplo, temática
na qual sua mãe é referência há anos.
Ainda é cedo para dizer se a estratégia de construir perfis de
influenciadores para os filhos antes mesmo do nascimento será
sucesso. Relevância e influência são valores ressignificados ve-
lozmente mediantes as condições ambientais, estruturais e com-
portamentais relacionadas às TICs. Contudo, como defende Can-
clini (2008), com a comunicação digital os públicos não nascem,
são formados, em especial por experiências narrativas multipla-
taformas. Ambos parecem estar cientes disso, investindo no per-
fil de seus filhos, sendo evidente a indução da persona dessas cri-
anças - ao menos no ambiente digital. No aspecto do indivíduo,
o quanto essa representação levada a cabo pelos pais estará pró-
xima da realidade ou será bem recebida por cada um, possivel-
mente, será um tema para a terapia.

EU E/OU NÓS: NARRATIVAS ESTRATÉGICAS AO


MARKETING DE INFLUÊNCIA

Há uma diferença de peso na atuação entre os dois influenci-


adores analisados. O pai Christian Figueiredo se esforça para tra-
zer Gael para os conteúdos em seu canal (praticamente a pauta
exclusiva do vlog nas primeiras semanas de vida da criança) e
insiste no uso de narrativas em primeira pessoa no perfil @Gael,
construindo uma personalidade para o perfil (leia-se, para o
bebê). O primeiro post no perfil é um sinal de como a história
será contada no @, inclusive com supostas respostas aos fãs an-
tes mesmo de nascer - "ainda estou no forninho! mas meus pais
deixaram eu compartilhar a minha história com vcs". A escolha do
sujeito é intencional. A estrutura narrativa se repete em outras
publicações, como o suposto texto de parabéns para o papai, com

94
adjetivos que reforçam a imagem de herói. Gael se tornou uma
extensão da narrativa do Christian.

Figura 7: primeira publicação no perfil @Gael e publicação no aniver-


sário do pai

Fonte: Instagram, 30 de Julho de 2019

Jade, embora também publique conteúdos no perfil de Zion


usando a primeira pessoa do singular (mas em menor escala),
não fez da maternidade o tema exclusivo de suas redes. A estra-
tégia está no uso combinado dos dois perfis (o dela e de Zion)
com potencial de parceria com marcas – motivações hipotéticas
2 e 3 discutidas acima.

95
CONSIDERAÇÕES FINAIS

A vida dos influenciadores é uma espécie de reality show e


quando Gael e Zion entraram em cena os diretores do programa,
seus pais, passam a roteirizar suas falas e papéis estratégicos na
narrativa que sustentam na arena digital para serem continua-
mente legitimados como influenciadores. As narrativas constru-
ídas por meio das postagens analisadas – mais de 40 publicações
no caso do perfil de @babyZion e 30 no perfil de @Gael – corro-
boram para a construção de capitais simbólicos levemente dife-
rentes, conforme resumo abaixo.

Figura 8: Resumo das estratégias

Fonte: formulado pela autora

Christian Figueiredo vivencia um momento de reposiciona-


mento como produtor de conteúdo ao passo que suas vivências
atuais estão cada vez mais distantes do contexto sob o qual edifi-
cou a produção de material que alimenta seus perfis/canais soci-
ais. Os momentos com Gael e o próprio perfil do filho servem
como ponto de apoio para esse momento de transição, mos-
trando um Christian “pai em formação”, ou seja, com marcadores
textuais familiares – manteve vocativos e termos marcantes –, e

96
trazendo a rotina com a esposa Zoo e o filho como matéria-prima
para produzir vídeos e fotos em formatos/editoriais já existentes
e esperados pela sua base de fãs. O próximo passo é adicionar
novas editorias e discussões em seu canal rumo ao projeto edito-
rial que substituirá o “ex-lokão”, quando a paternidade deixar de
ser assunto novo e/ou relevante, a menos que opte por ser pro-
dutor de conteúdo especializado, como Marcos Piangers33.
Jade Seba, por sua vez, está construindo universos um pouco
mais apartados. A carga emotiva atrelada à maternidade se revela
de modo intenso no @babyZion, enquanto o aspecto atitudinal e
reflexivo sobre o seu momento de vida prevalece no perfil @Ja-
deSeba onde, embora o filho apareça de modo recorrente, há di-
versas publicações (em parceria com marcas ou não) similares ao
período anterior à gravidez, especialmente sobre lifestyle. Se
Christian vive uma transição de influência por conta de necessi-
dade de uma revisão editorial, Jade adjetivou a persona criada
em suas redes: lifestyle com alto requinte estético e mãe, uma
“hot mama”, assinatura presente nos conteúdos que posta.
Relativizando a abordagem crítica empregada na análise das
publicações e supostas motivações estratégicas das narrativas,
numa toada mais otimista da presença da tecnologia nas relações
sociais, é possível trazer a reflexão de Johnson (2012) de que um
dos pontos benéficos da sociedade conectada foi o rompimento
do isolamento social. Antes os conflitos estavam “trancados na
sala de estar” e agora mesmo os rituais mais pessoais, como o
nascimento de um filho, ocorrem também na arena das platafor-
mas digitais sociais.
Em outros termos, nascimentos, aniversários, batizados, ca-
samentos e afins são rituais em nossa vida sujeitos às transfor-
mações sociais e culturais ao longo do tempo como tudo a nossa
volta. Os pedidos de casamento envolvem surpresas real time, a
gestação pode ser tema de blog e pontos de vista sobre educação
dos filhos alimentam debates acalorados em fóruns digitais. É

33 Marcos Piangers, influenciador focado em paternidade. Disponível em:


https://www.youtube.com/user/piangers/. Acesso em: 02 dez. 2019.

97
menos sobre ser certo ou errado e, sim, sobre entender o papel
da comunicação nessas novas práticas sociais e, claro, as conse-
quências decorrentes disso tudo. Como afirmou Bauman (2011,
p.8), “nosso mundo líquido moderno, sempre nos surpreende; o
que hoje parece correto e apropriado amanhã pode muito bem se
tornar fútil, fantasioso ou lamentavelmente equivocado”. Essa é
apenas uma primeira discussão do fenômeno “influenciadores
por herança”. Pelo pouco tempo dos perfis analisados (e também
da vivência da maternidade/paternidade pelos influenciadores
em questão) ainda há muito a se investigar para compreender
essa apropriação do “eu”, bem como de que forma a entidade fa-
mília passa a ser operacionalizada como um conceito público
com potencial de monetização e de capital simbólico, investiga-
ções essas para futuros trabalhos.

98
REFERÊNCIAS

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novas configurações e o preconceito. TCC (Graduação em
Direito) – Universidade Federal do Rio Grande do Norte, 2014.

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101
 STUDYGRAMS: COMUNICAÇÃO, CONSUMO E OS NOVOS
MODOS DE ESTUDAR DO ESTUDANTE CONECTADO

GISELA G. S. CASTRO
BIANCA S. BIADENI

RESUMO

Face à emergência de uma categoria cultural que estamos de-


nominando como estudante conectado, refletimos sobre compar-
tilhamento de conteúdo educacional na forma de um novo gê-
nero midiático denominado studygram. Esse fenômeno usa
como plataforma o aplicativo para smartphones Instagram, o
qual observamos a partir de alguns parâmetros sobre cultura vi-
sual pensados por Lev Manovich (2017). Evidenciamos a promo-
ção de certas formas de estudar nesse fluxo de comunicação, so-
ciabilidade e consumo que se complementa ao ambiente escolar.
Discutimos como o consumo material se entrelaça ao contexto
das práticas de estudar por meio de um formato de marcado
apuro estético e ênfase na habilidade manual para a confecção de
materiais de estudo. Para embasar a discussão, servimo-nos dos
aportes de autores de referência nos estudos do consumo, tais
como Featherstone, Douglas e Isherwood; e da comunicação em
rede, como Lemos, Primo e Recuero, dentre outros.

PALAVRAS-CHAVE: comunicação e consumo; modos de estu-


dar; redes sociais digitais; Instagram; studygram.

ABSTRACT

Reflecting on the rise of a cultural category we name as the


connected student this paper discusses new forms of studying by

102
sharing educational content in a media genre called studygram.
This uses the Instagram smartphone application as a platform.
Visual culture parameters discussed by Lev Manovich (2017)
guide our empirical analysis. We highlight the promotion of cer-
tain modes of studying within networks of communication, so-
ciability and consumption that complement the school environ-
ment. We argue that material consumption is part of the study
practices that are characterized by the refined aesthetics of hand-
made educational materials. Consumption studies as in Feather-
stone, Douglas and Isherwood as well as digital communication
studies as in Lemos, Primo and Recuero form the theoretical
framework that grounds our discussion.

KEYWORDS: communication and consumption; social media;


modes of studying Instagram; studygram.

O ESTUDANTE CONECTADO NO INSTAGRAM

Em junho de 2018, o aplicativo de rede social Instagram anun-


ciou ter chegado à marca de 1 bilhão de usuários ativos34, o que
significa que esse enorme contingente de pessoas acessam a pla-
taforma ao menos uma vez por semana para utilizar alguma de
suas funções. O Brasil ocupa a segunda posição35 no ranking glo-
bal de usuários do aplicativo, atrás apenas dos Estados Unidos,
onde foi criado.
Observando esses dados, é possível imaginar que utilizar as
redes sociais digitais para trocar ideias, buscar e disseminar in-
formações é uma forma de comunicação já integrada ao cotidi-
ano dos brasileiros que estão conectados às redes digitais. De
acordo com o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e

34 Disponível em: https://exame.abril.com.br/tecnologia/instagram-superou-1-bi-


lhao-de-usuarios-ativos/. Acesso em: 12 out. 2019.
35 Disponível em: https://exame.abril.com.br/tecnologia/estes-sao-os-dez-paises-
que-mais-usam-o-instagram/. Acesso em: 12 out. 2019.

103
Estatística), o país possuía aproximadamente 126,4 milhões de
usuários de internet em 201736, cerca de 60% da população.
Ao tecer considerações sobre os sentidos do digital em nossos
dias, Sergio Amadeu (2019, p. 24) destaca a centralidade das in-
terações online no cotidiano desse enorme contingente de brasi-
leiros conectados, 90% dos quais, à época, “eram clientes de apli-
cativos de mensagens instantâneas (...) e 77% utilizaram redes
sociais (...). Tais números evidenciam que não podemos falar de
cultura digital desconsiderando a dinâmica das redes de relacio-
namento online”. Destacamos neste artigo a forte presença das
redes sociais online no cotidiano de grandes contingentes de bra-
sileiros.
De acordo com Recuero (2012, p. 17-18), as conversas que
acontecem nas redes sociais digitais “influenciam a cultura, cons-
troem fenômenos e espalham informação e memes, debatem e
organizam protestos, criticam e acompanham ações políticas e
públicas”. Essas ações extrapolam o âmbito virtual, pois, na atual
conjuntura, não é mais possível fazer separação entre o que acon-
tece online e off-line. Conforme Castells (2017, p. 202), “o mundo
real em nossa época é um mundo híbrido, não um mundo virtual
nem um mundo segregado que separaria a conexão online da in-
teração off-line”. Consideramos o estar conectado às redes online
um fenômeno disseminado no cotidiano de brasileiros de diver-
sas localidades, idades e classe socioeconômica.
Se fenômenos culturais e sociais são influenciados e/ou têm
origem na esfera online, as formas de estudar também deixaram
de ser apenas aquelas que tradicionalmente vigoraram nas bibli-
otecas e salas de aulas. No âmbito escolar, o computador passou
de ferramenta de pesquisa para o acesso a plataformas de educa-
ção a distância (EAD), canais educacionais no YouTube, páginas

36 Disponível em:
https://g1.globo.com/economia/tecnologia/noticia/2018/12/20/numero-de-internau-
tas-cresce-em-cerca-de-10-milhoes-em-um-ano-no-brasil-aponta-ibge.ghtml.
Acesso em: 7 out. 2019.

104
de sites de rede social, como o Facebook, que tiram dúvidas do
vestibular, além de diversos outros conteúdos voltados para o en-
sino que permeiam os ambientes online. Essa reconfiguração cul-
tural constitui a face atual da cibercultura, a qual André Lemos
define como

o conjunto tecnocultural emergente no final do século XX im-


pulsionado pela sociabilidade pós-moderna em sinergia com a
microinformática e o surgimento das redes telemáticas mundi-
ais; uma forma sociocultural que modifica hábitos sociais, prá-
ticas de consumo cultural, ritmos de produção e distribuição da
informação, criando novas relações no trabalho e no lazer, no-
vas formas de sociabilidade e de comunicação social. Esse con-
junto de tecnologias e processos sociais ditam hoje o ritmo das
transformações sociais, culturais e políticas nesse início de sé-
culo XXI (LEMOS, 2014, p. 21-22).

Nesse cenário, emerge uma figura que aqui estamos denomi-


nando como estudante conectado. Trata-se de alguém cujos há-
bitos de estudo estão fortemente associados às interações que se
dão nos ambientes online. Ao lado de livros e cadernos, o estu-
dante conectado se serve com desenvoltura das telas e conexões
para complementar suas práticas de estudo. Em sintonia com os
hábitos de consumo midiático atuais, pode também criar seu
próprio canal na web para compartilhar dicas, referências e in-
formações, bem como para divulgar a si próprio e às suas práticas
de estudo, podendo eventualmente vir a ser admitido no seleto
rol dos chamados influenciadores digitais.
Ao se debruçar sobre as práticas dos brasileiros nos ambientes
online, Amadeu traça um interessante perfil dos que publicam
conteúdo próprio em plataformas da internet:

É preciso realçar que 37% das conectadas e conectados bra-


sileiros, em 2017, publicaram conteúdos próprios na internet,
ou seja, 1 em cada 3 pessoas postou suas próprias criações, tex-
tos, imagens, vídeos ou músicas. Essa incrível força criativa re-
força a diversidade e, simultaneamente, aumenta a

105
concentração de poder nas plataformas, estruturas sugadoras
das criações sociais. (...) Quem mais publica está na faixa dos
16 aos 34 anos (45%) e esse percentual vai caindo com a eleva-
ção da idade. Curiosamente, as imensas diferenças de classe são
bem reduzidas quando se trata de postagem do seu próprio con-
teúdo na rede. Postaram suas criações 39% das classes A e B,
36% da C e 35% da D e E. Essa informação precisa ser melhor
compreendida (AMADEU, 2019, p. 24).

Com efeito, nas tramas de ubíquas redes telemáticas, que de-


vem ser entendidas também em seu caráter afetivo, é nas intera-
ções entre pares que se configuram certos sentidos de comuni-
dade. Assim sendo, Castro (2013; 2014) propõe entendê-las em
seu aspecto agregador, como redes de comunicação e sociabili-
dade. Chamando a atenção para as invisíveis, porém lucrativas,
operações de prospecção e processamento de nossas interações
online para fins comerciais a autora propõe, ainda, que sejam en-
tendidas como redes de comunicação, sociabilidade e negócios.
Em sintonia com tal perspectiva, Primo (2013, p. 1) assinala a
emergência do consumidor que é simultaneamente coprodutor e
distribuidor de conteúdos nesta “segunda geração de serviços on-
line que se caracteriza por potencializar as formas de publicação,
compartilhamento e organização de informações, além de am-
pliar os espaços para a interação entre os participantes” nas redes
sociais digitais.
Desse modo, se os sites de redes sociais se tornaram ferramen-
tas importantes no relacionamento interpessoal, também se
mostraram como um canal estratégico de comunicação entre
marcas e seus públicos. De modo crescente, a mensagem publi-
citária deixa de ser apenas apresentada sob a forma de interrup-
ção da programação nos meios massivos para se incorporar ao
conteúdo midiático em circulação. “Para fugir do modelo clássico
que muitos consideram invasivo, o marketing investe em novas
formas de conectar marcas e consumidores” (CASTRO, 2013, p.
11). A convocação da atenção e do engajamento do consumidor
conectado pelas estratégias de mercado e a apropriação

106
comercial dos canais de influenciadores digitais para a promoção
de marcas e serviços têm sido estudadas em nosso meio37. Cons-
tata-se, assim, a transformação do consumidor conectado em um
valioso produto no disputado cenário da comunicação publicitá-
ria atual.
No caso do Instagram, essa conexão entre os usuários e as
marcas acontece a partir da linguagem visual pela qual se apre-
sentam. Nessa rede social digital a comunicação é feita a partir
da captura de uma imagem, aliada a técnicas de design e um con-
teúdo específico. Esse formato é chamado por Lev Manovich
(2017) de Instagramism38 (termo que poderia ser traduzido
como instagramismo), um movimento cultural “moldado por mi-
lhões de autores conectados e participando do Instagram e de ou-
tras redes sociais” (idem, p.115, tradução nossa39).
As formas de consumir o Instagram são diferentes. Há quem
o faça de modo mais informal e caseiro, compartilhando imagens
como fotos de reuniões de família ou com amigos, conteúdos que
em geral atraem pessoas de um círculo social próximo. Para esta
análise, interessa-nos observar os instagrammers40, pessoas que
não apenas usam o aplicativo, mas que entendem e sabem aplicar
certas táticas para popularizar suas postagens. Isso não significa
que esses perfis, ao menos de início, objetivem comercializar de
alguma maneira suas interações, mas que utilizam as habilidades
que possuem para encontrar e se comunicar com pessoas que
partilham de interesses em comum e desejam se popularizar en-
tre elas.
As imagens produzidas por esses usuários vão de paisagens a
objetos do cotidiano. São capturadas e tratadas até que estejam
dentro de determinados padrões definidos como estéticas atra-
entes para agregar seguidores. Como explica Manovich (2017), os

37 Vide, por exemplo, Andrade (2019), Duarte (2019).


38 O termo faz referência a movimentos artísticos como o fauvismo e o cubismo.
39 No original: “Instragramism is shaped by millions of authors connected by, and
participating in, Instagram and other social networks”.
40 Influenciadores digitais que utilizam o Instagram.

107
instagrammers utilizam elementos da cultura do consumo como
parte da composição das imagens e não os degustam como ele-
mentos contraditórios: “arte e comércio, individual e corpora-
tivo, natural e fabricado, bruto e editado - São misturados”
(idem, p. 124, tradução nossa41).
Ao definirem o estilo que irão adotar em seus perfis, os usuá-
rios constroem uma narrativa que será gerenciada por meio de
filtros e cores, uma espécie de “planejamento editorial” da apre-
sentação do autor na rede. A identidade cultural também irá in-
fluenciar tais escolhas. Como elucida Manovich (2017), ao se des-
creverem como viajantes, fotógrafos ou outra categoria especí-
fica, esses perfis se posicionam em uma “Instagram class”. Esse
termo se refere a jovens que usam feeds elaborados e usam apli-
cativos externos ao Instagram para aperfeiçoarem as imagens.
Por meio de hashtags como #travel ou #photographer, por
exemplo, irão se identificar visando encontrar outros usuários
com interesses semelhantes.
Neste artigo, refletimos em especial sobre a figura do estu-
dante conectado para compreender o uso do Instagram como ca-
nal de troca de experiências de estudo, acompanhado por uma
promoção do consumo no ambiente escolar, que pode despertar
o interesse em produtos e práticas que compõem modos de ser e
de estudar condizentes com o universo dos perfis denominados
studygrams. Passaremos a discorrer sobre esse novo gênero mi-
diático no próximo tópico.

STUDYGRAMS: NOVOS FLUXOS DE COMUNICAÇÃO NO


AMBIENTE EDUCACIONAL

As formas de estudar vêm se modificando. Com a evolução da


banda larga e da conectividade sem fio, nasceram as plataformas

41 No original: “art and commerce, individual and corporate, natural and fabricated,
raw and edited are blended together”.

108
de estudos, jogos online para treinar temáticas específicas, gru-
pos de estudo no WhatsApp, canais no YouTube com aulas de
uma infinidade de temas, lecionadas tanto por curiosos no as-
sunto como por professores que trabalham também fora da rede,
dentre outros gêneros midiáticos relacionados a conteúdos esco-
lares na internet. Além disso, aplicativos têm sido criados para
anotações compartilhadas em rede, tais como o Evernote e o Go-
ogle Docs. Observamos, assim, a crescente relevância das práti-
cas de estudo que se servem de ferramentas e plataformas online
no ambiente escolar.
Entendemos os ambientes online como espaços discursivos
que, por sua natureza multimodal e hipertextual, ensejam o sur-
gimento de gêneros midiáticos dos mais diversos, os quais com-
binam “num só meio várias formas de expressão, tais como texto,
som, imagem, movimento” (NOGUEIRA, 2017, p. 53). Os stu-
dygrams42 nos parecem constituir um gênero midiático particu-
larmente instigante, razão pela qual o elencamos como objeto de
estudo deste trabalho. Os studygrams são perfis43 de estudantes
no Instagram que vão desde o ensino fundamental, passando por
vestibulandos, universitários e pessoas que estão estudando para
concursos públicos, popularmente conhecidos por “concursei-
ros”. Entre os conteúdos compartilhados estão resumos de maté-
rias, mapas mentais, dicas de como organizar os estudos, mensa-
gens motivacionais, técnicas de caligrafia conhecidas como lette-
ring, artigos de papelaria, dentre outros.
Uma busca pela hashtag #studygram mostra mais de 4 milhões
de publicações, enquanto a versão brasileira, #studygrambr, apre-
senta mais de 150 mil posts. Fenômeno ainda pouco conhecido do
grande público, mereceu matéria44 do portal de notícias Estado de
Minas com o título “Studygram: saiba como perfis do Instagram
ajudam nos estudos e na aprovação”45. Em uma das primeiras

42 Junção das palavras study (estudar, em inglês) e Instagram.


43 Conhecidos como “igs”.
44 Em 6 de setembro de 2018.
45 Disponível em:

109
publicações sobre o tema, o site deu enfoque às contas de conteúdo
voltado aos vestibulandos e participantes do Exame Nacional do
Ensino Médio (Enem). Algum tempo depois46, o Estadão47, site do
jornal O Estado de S. Paulo, publicou matéria em que apresentou
o formato dos perfis como uma forma de compartilhamento de es-
tudos e apontou o lado positivo desse uso da rede social ao entre-
vistar educadores e usuários. Na listagem de personagens elenca-
das, foram citadas três pessoas que alcançaram popularidade no
aplicativo ao postarem fotos de seus resumos e técnicas de estudo.
Ao observar os perfis da rede social dessas personagens, os cha-
mados studygrammers, levantamos os seguintes questionamen-
tos: Qual o papel da rede social na promoção de modos de ser e de
estudar? Que tipos de relações de consumo permeiam essa intera-
ção online entre estudantes? Que marcas e produtos também estão
sendo promovidas nesse contexto?
Ao nos referimos ao consumo, tomamos aqui a definição pro-
posta por García Canclini (2006, p. 60), segundo a qual “o con-
sumo é o conjunto de processos socioculturais em que se reali-
zam a apropriação e os usos dos produtos”. Além de estender o
consumo para além dos atos de compra com base nessa aborda-
gem, entendemos as práticas de consumo em sua dimensão ma-
terial e simbólica. Fundamentados em Appadurai (2008), Fea-
therstone (2007) e Douglas e Isherwood (2006), observamos a
constituição social dos processos de atribuição de sentidos e va-
lores culturais aos bens e às práticas de consumo. Ressaltando a
inter-relação entre comunicação e consumo nas práticas cotidia-
nas em nossos dias, Castro (2014, p. 60-61) lembra que “cada ato
de consumo é também, simultaneamente, um ato de comunica-
ção. Por meio das escolhas que fazemos (...) criamos significados
e alimentamos circuitos simbólicos”. Ao ressaltar que modos de

https://www.em.com.br/app/noticia/especiais/educacao/2018/09/06/internas_edu-
cacao,986639/studygram-saiba-como-perfis-do-instagram-ajudam-nos-estudos-e-na-
apro.shtml. Acesso em: 7 jun. 2019.
46 Em 29 de outubro de 2018.
47 Disponível em: https://educacao.estadao.com.br/noticias/geral,studygram-a-ima-
gem-que-resume-os-estudos-nas-redes-sociais,70002570771. Acesso em: 7 jun. 2019.

110
ser, estilos de vida, valores e discursos são aprendidos ao longo
do processo de socialização, a autora salienta que “a cultura mi-
diática interpreta a produção e socializa para o consumo, contri-
buindo para a associação entre marcas, produtos e serviços nas
diversas experiências do cotidiano” (idem, 2012, p. 61). Na oni-
presença das telas, as representações midiáticas se hibridizam
com as dinâmicas do entretenimento e as linguagens do con-
sumo, constituindo, em grande medida, o imaginário social.
A comunicação online permitiu uma aprendizagem colabora-
tiva, que, como explica José Moran, tornou mais importante a
troca entre os próprios alunos fora do ambiente escolar:

A combinação dos ambientes mais formais com os informais


(redes sociais, wikis, blogs), feita de forma inteligente e inte-
grada, nos permite conciliar a necessária organização dos pro-
cessos com a flexibilidade de poder adaptá-los à cada aluno e
grupo (MORAN, 2015, p. 24).

O uso das redes sociais como ferramenta no âmbito educacio-


nal ainda é muito recente e tem merecido estudos em diversos
âmbitos, em todo o mundo. Regis (2008, p. 35) destaca a capaci-
tação cognitiva promovida pela apropriação social das tecnolo-
gias de informação e de comunicação. Seu estudo enfatiza o po-
tencial desenvolvimento de competências cognitivas, entendidas
como “o conjunto de conhecimentos (saberes), habilidades (sa-
ber fazer) e atitudes (saber ser) necessárias para os usos, criações
e recombinações de linguagens, interfaces e códigos promovidos
pelas tecnologias digitais nas práticas de comunicação e de en-
tretenimento contemporâneas”, advindo do uso das ferramentas
e plataformas online.
Preocupada com a alta incidência dos chamados analfabetos
funcionais no Brasil contemporâneo, Santaella (2019, p. 20) ar-
gumenta que “quando faltam aos usuários habilidades cognitivas
mais complexas, a navegação se dá meramente na superfície, fi-
cando-lhes barradas as múltiplas camadas que se adensam ao sa-
bor do interesse e da curiosidade intelectual do usuário”.

111
Neste artigo, situamos os studygrams nesse contexto e exa-
minamos seu papel na difusão de novas práticas de estudo em
uma contemporaneidade fortemente marcada pelas articulações
entre comunicação, sociabilidade e lógicas do consumo.
Uma vez que as redes sociais se mostram tão presentes na vida
de tantos de nós, configuram-se como mais uma oportunidade de
o estudante conectado encontrar uma sensação de pertenci-
mento a partir das relações com os pares. Entre as principais bar-
reiras ao uso integrado das redes sociais digitais entre professo-
res e alunos, são apontadas questões de privacidade, segurança
e, muitas vezes, falta de consistência do que é oferecido como
conteúdo.

Estes sujeitos, que permanecem distantes dos objetivos pro-


clamados pela escola, estão ligados a uma rede de intercâmbio
ampliada, atribuindo significados e aprendizagens de diversas
naturezas e, em grande medida, sem estabelecer relações com
os conhecimentos planejados no âmbito escolar (CARRANO,
2017, p. 414).

Outros fatores incluem questões éticas sobre como mesclar


entretenimento e estudos com claros fins pedagógicos e, sobre-
tudo, como filtrar adequadamente a gigantesca profusão de con-
teúdos de procedências várias que hoje se ofertam na web. Em-
bora em grande parte os processos de ensino e de aprendizagem
pareçam ser hoje ditados pelo “faça-você-mesmo” das conexões
não lineares e hipertextuais dos ambientes digitais, estudiosos
como Nogueira (2017) destacam a figura do professor como fun-
damental para mediar os processos de interação nos ambientes
digitais online, bem como fora deles.
Vale recordar que não se pretende, nesta discussão, questio-
nar o uso de redes sociais digitais no ambiente de aprendizado.
Reafirmamos nosso objetivo de examinar as articulações entre
comunicação, sociabilidade e consumo no universo específico
dos studygrams.

112
O INSTAGRAM COMO FERRAMENTA DE ESTUDOS

Para melhor conhecer sobre os studygrammers, decidimos


observar os perfis destacados pela matéria mencionada acima,
sendo 1) estudante do curso de direito, 19 anos, com mais de 250
mil seguidores; 2) estudante de 11 anos que possui mais de 220
mil seguidores; e 3) estudante de 18 anos com mais de 120 mil
seguidores.
A partir do exame desses perfis e seus usuários, procuramos
conhecer os conteúdos educacionais e os modos de estudar que
são compartilhados, além de observar as indicações sobre marcas
e produtos nas imagens postadas na linha do tempo48 de cada
perfil. Interessante notar, inicialmente, que todos os três perfis
elencados são produzidos por pessoas que se apresentam como
jovens estudantes do gênero feminino.

Figura 1: Fotos da timeline de 3 perfis de studygrammers

Fonte: capturas de tela de feita pelas autoras.

48 Como são chamadas as coleções de postagens na rede social.

113
Na descrição49 do Perfil 1, a autora disponibiliza um link que
dá acesso a uma pasta compartilhada no aplicativo Google Drive.
Neste espaço, a vestibulanda divide com os seguidores resumos
de química, redação, literatura e matemática e compartilha as
anotações de aulas dessas disciplinas. Além disso, estão disponí-
veis uma apostila para treinar técnicas de lettering e páginas para
imprimir um planner50, uma espécie de agenda que pode ser
moldada a partir das preferências de formatos individuais de pla-
nejamento semanal. Esse último item é bastante divulgado no
universo dos studygrams.

Figura 2: Perfil de studygram 1 – Compartilhamento e downloads

Fonte: Captura de tela feita pelas autoras.

Mais focada nas técnicas de lettering, a autora do segundo


perfil de studygram divulga em sua linha do tempo fotos de seus
resumos escolares, feitos em caligrafias coloridas e estilizadas,

49 No Instagram, esta descrição é chamada de “bio”.


50 Em tradução livre: agenda para planejamento semanal.

114
com mensagens motivacionais para estudantes. A jovem também
criou um canal no YouTube onde compartilha técnicas de estudo
tais como formas de criar resumos, elaboração de mapas men-
tais51 e estratégias de organização

Figura 3: Perfil de studygram 2 – Lettering e conexão com YouTube

Fonte: Captura de tela feita pelas autoras.

A mais jovem das studygrammers apresentada usa as fotos


postadas na sua linha do tempo para divulgar dicas de estudo e
resumos, ambos desenhados em lettering esmerado, rico em for-
mas e cores. Com base nos conteúdos visualmente primorosos
publicados nesses studygrams, está presente não apenas o com-
partilhamento de ferramentas, sugestões e técnicas de estudo,
mas travam-se também conversas sobre semelhanças e diferen-
ças nas formas de estudar e sobre as dificuldades encontradas no
processo de aprendizagem.

51 Técnica de memorização em que se desenha uma espécie de diagrama a partir dos


elementos em questão.

115
Figura 4: Perfil de studygram 3 – Compartilhando experiências

Fonte: Captura de tela imagem feita pelas autoras.

Dessa forma, os perfis não servem apenas para a partilha de


materiais e dicas, mas também como espaços de troca de experi-
ências entre estudantes que partilham das mesmas dificuldades
e do mesmo gosto por uma estética fortemente marcada pelo
apuro estético. São imagens feitas com capricho em cada detalhe,
para ver e admirar.
Nas palavras de Manovich (2017, p. 5), o Instagram é o meio
primoroso da “sociedade estética”. Trata-se de um espaço onde
são valorizados os indivíduos que dominam ferramentas visuais
para a produção de conteúdo de mídia. O autor cita o conceito de
“tribo urbana”, cunhado na década de 1980 por Michel Maffesoli,
ao dizer que essa rede também é um espaço de mídia onde grupos
emergem e se expressam por meio de estilos de vida que benefi-
ciam a aparência e a forma. No studygram, as curvas vão do pa-
pel à tela em um combinado de cores que vão formar um feed
padronizado para atrair seguidores e comentários.

116
COMUNICAÇÃO, SOCIABILIDADE E CONSUMO NO
AMBIENTE ESCOLAR

Em contrapartida aos conteúdos educacionais que são com-


partilhados, os três perfis aqui examinados também contribuem
para a divulgação de determinados modos de estudar e de certos
itens de consumo que acompanham esse estilo organizado e fi-
namente estilizado de compor visualmente os espaços e os mate-
riais de estudo. No caso da adolescente do Perfil 1, que mantém
um canal no YouTube veiculado ao studygram52, o conteúdo pos-
tado em vídeo versa majoritariamente sobre seus produtos de pa-
pelaria favoritos. Dos 41 vídeos publicados até 09 de junho de
2019, pelo menos 15 deles tratam primordialmente sobre mate-
riais escolares que teriam sido recém adquiridos pela autora dos
posts. Nos demais vídeos, além de curiosidades sobre a protago-
nista, apresentam-se técnicas de lettering, um tour pelo seu local
de estudos e detalhadas demonstrações de produtos como cane-
tas e estojos. Todo esse material é divulgado também na forma
de chamadas em sua conta do studygram.
O canal do Perfil 2 não difere muito do primeiro. Criado em
2013, abriga muito mais produções que o anterior, que tem me-
nos de um ano de existência. No início, os conteúdos desse perfil
variavam em temas não relacionados aos estudos. Dentro da te-
mática escolar, os vídeos são apresentados no formato vlog53, em
que a estudante discorre sobre sua preparação para o Enem, a
organização e as dificuldades da sua rotina de estudos, descreve
suas visitas a determinadas papelarias, exibe testes de materiais
escolares variados, um tour pelo “cantinho54” próprio de estudos,
com exibição em detalhe dos itens escolares que compõem o es-
paço e ostentação de novos materiais escolares que teriam sido
recentemente adquiridos.

52 A criação do canal é posterior ao perfil na rede Instagram.


53 Uma junção das palavras vídeo e blog; ou seja, um blog em formato de vídeo.
54 No universo dos studygrammers, o local de estudos é comumente chamado de
cantinho.

117
Um tipo de conteúdo em comum une os dois perfis menciona-
dos acima: em ambos os casos, faz-se sorteios de materiais esco-
lares. Em parceria com lojas ou com outros perfis online, em
busca de aumentar o número de seguidores, as estudantes sor-
teiam itens de papelaria, tais como mochilas, estojos e canetas
variadas. Como forma de participar, na maioria das vezes basta
seguir a studygrammer, o perfil parceiro no sorteio e marcar nos
comentários os perfis de amigos, para que o alcance dos posts
seja ampliado.
A estudante que produz o Perfil 3 ainda não possui um canal
próprio no YouTube, estando o seu em processo de criação. Tam-
pouco faz sorteios por meio das fotos que posta. No entanto, pu-
blica pequenos vídeos que, no Instagram, são chamados de sto-
ries. Essas pequenas histórias podem ser fixadas logo abaixo de
sua descrição do perfil, local onde encontramos o tour pelo seu
espaço de estudos e vemos os produtos que, segundo anuncia,
são enviados a ela por lojas para testes. Em sua linha do tempo,
predominam fotos de resumos escolares feitos com letterings co-
loridos. Tais estilos de caligrafia são demonstrados por meio de
uma estética padronizada, sempre acompanhados da exibição de
comentários sobre as qualidades das canetas que ajudaram na
sua confecção.
Apesar dos conteúdos serem diversificados, uma vez que cada
usuário focaliza em sua própria temática de estudo, os “igs” divi-
dem uma característica em comum: na grande maioria, as ima-
gens apresentam um determinado grupo de canetas e certo estilo
ou estética partilhada como a forma adequada, proveitosa e de-
sejável de se estudar.
No studygram, cada estudante conectado parece ter a oportu-
nidade de aperfeiçoar à exaustão a versão de si que vai apresentar
publicamente. No entanto, independente da forma como vai fa-
zer as combinações estéticas que o representam nesse ambiente,
seu cotidiano será exibido por meio das escolhas dos produtos
fotografados ou, segundo Featherstone (2007, p. 119), a partir

118
dos “indicadores de individualidade do gosto e o senso de estilo
do proprietário/consumidor” do perfil selecionado.
Ao se oferecerem como modelo de estudantes competentes e
dedicadas, as sudygrammers cujos perfis examinamos fixam
para si próprias um padrão de destreza manual, organização im-
pecável e perfeição formal que é difícil de ser copiado. Evidente-
mente, e por vários motivos, nem todos os admiradores desse
modo de viver e de estudar vão conseguir reproduzi-lo por com-
pleto, ainda que sigam os tutoriais e dicas oferecidos. Ainda que
não possam adotar totalmente esses modos de estudar em função
de suas próprias limitações e idiossincrasias, isso não impede
que se deleitem com uma sensação de proximidade e pertenci-
mento ao seguir com regularidade os perfis, fazer download das
dicas e dos materiais disponibilizados, tomar conhecimento dos
produtos recomendados e interagir online, por meio de comen-
tários e outros tipos de posts. Talvez se contentem em participar
daquela forma de ser e estudar apenas ao diariamente “curtir”
ideias de uma vida que, para si, pode não ser possível.
Ainda que nem todos os elementos desses feeds possam ser
replicados, aquele que deseja ser um studygrammer e não possui
os mesmos itens que compõem as publicações, ou mesmo quem
deseja se aproximar de seu influenciador ou grupo, recorre às
técnicas para reproduzir imagens comuns a essa rede social digi-
tal para efetuar essa integração. Como aponta Manovich (2017,
p. 138), o instagramismo não é um movimento elitista, pois os
softwares para captar o mesmo estilo visual são em sua maioria
gratuitos. As marcas podem ser diferentes, mas os produtos em
fotos acuradamente compostas apresentam estética semelhante.
De modo paradoxal, o studygram se apresenta também como
elemento de promoção de modos analógicos de estudar. En-
quanto as formas de estudar se apoiam mais e mais em ferramen-
tas digitais como notebooks e tablets sendo usados para fazer e
revisar anotações de estudos, e com a ideia do uso das redes so-
ciais para compartilhar resumos e dicas de formas de memorizar
conteúdos, os perfis estão repletos de imagens de peças feitas a

119
mão com o auxílio de produtos típicos da cultura material: cane-
tas, marca-textos, agendas e cadernos com adesivos, fichas etc.
Tal ênfase na manufatura pode ser entendida como uma
forma de identificação com os seguidores, seja no plano do reali-
zável ou do aspiracional, como vimos acima. A ênfase nos ele-
mentos concretos parece sugerir uma ponte entre a materiali-
dade dos produtos escolares e o fascínio do compartilhamento do
conhecimento nos ambientes digitais online. Como advertem
Douglas e Isherwood (2009, p. 36): “os bens são neutros, seus
usos são sociais podem ser usados como cerca ou como pontes”.
Se observarmos a presença dos materiais escolares que com-
põem a exposição dos modos de estudar nos studygrams, a partir
da abordagem sobre o consumo proposta pelos autores elencados
para fundamentar a discussão que estamos propondo, vemos que
esses objetos se integram ao formato de comunicação estabele-
cida entre as studygrammers e seus seguidores. Como reforçado
por Appadurai (2008, p. 48) ao dizer que o consumo é “social,
relacional e ativo”, esses itens fazem parte de um contexto social
em que são gerados os significados partilhados pelos integrantes
desse fluxo comunicacional.
Embora possam se mostrar como ferramentas de uma norma-
tização estética dos modos de estudar, os studygrams podem ser
entendidos, a partir de Featherstone (2007, p. 100) como algo
que “confronta as pessoas com imagens-sonho que falam de de-
sejos e estetizam e fantasiam a realidade”. Como vimos, ao com-
porem a estética de seus perfis, as studygrammers aqui exami-
nadas expõem não apenas estojos, canetas e estilos de caligrafia
combinadas por cores e formas, mas mostram ainda suas mesas
de estudo, cadernos e adereços por meio dos quais exibem uma
vida a se admirar – e invejar. Desse modo, oferecem-se como
exemplos de dedicação e competência estudantil, transfor-
mando-se, elas próprias, em produtos a serem consumidos em
termos de seus modos de ser, de viver e de estudar.

120
CONSIDERAÇÕES FINAIS

A partir de uma discussão mais geral sobre a estetização da


vida cotidiana no pano de fundo, notamos uma contribuição
desse fator para a construção de uma comunicação que mescla o
compartilhamento de ferramentas estudantis com uma formula-
ção dos modos de estudar baseados nas lógicas do consumo.
Como vimos, nas redes de comunicação, sociabilidade e negó-
cios, as lógicas de consumo informam, de modo nem sempre ex-
plícito, as interações entre pares. Nenhuma das studygrammers
revela em suas postagens no Instagram se estão trabalhando com
patrocínio ou se estão fazendo propaganda para as marcas que
aparecem nas imagens selecionadas para compor seus respecti-
vos perfis. No entanto, ao apresentarem determinada caneta, es-
tojo ou caderno para compor a estética dos seus modos de estu-
dar, além dos resumos, mapas mentais, planners, fichas e outros
materiais feitos a mão, exibem um altíssimo nível de excelência,
compondo um ideal de perfeição formal e estética a ser admirado
e tomado como modelo.
Desenhadas para serem ofertadas como objeto de desejo, as
imagens postadas nos studygrams estão ali repletas de elemen-
tos indicadores dos modos de viver e de se constituir como estu-
dante exemplar. Em que pesem as competências cognitivas re-
queridas e estimuladas nesses modos de estudar, que paradoxal-
mente parecem anacrônicos em sua ênfase no estilo “feito-a-
mão-e-tão-perfeitinho”, podemos localizar, com base nos aportes
de Regis (2008, p. 35), competências de ordem sensorial, lógica,
criativa, social e cibertextual, sendo que esse último aspecto com-
preende “o conjunto de características das TIC que ao possibilitar
a hibridação de meios, linguagens e textualidades, afeta a produ-
ção de textos, sua leitura e participação do leitor”.
Afinal, tratam-se de estudantes conectados, indivíduos que
utilizam com desenvoltura as ferramentas digitais e se habitua-
ram a postar a conteúdo próprio em redes sociais na internet.
Para concluir a discussão cabe, ainda, uma última e não menos

121
importante consideração a respeito da sempre relevante questão
do papel da educação na estruturação do pensamento crítico, es-
teio das interações qualificadas com os novos meios.
É preciso conjugar o fascínio das cintilantes imagens e sons
que proliferam na web ao rigor necessário para processar e ava-
liar o fluxo vertiginoso de informações de modo a gerar conheci-
mento consistente e relevante. Esse nos parece ser o principal de-
safio enfrentado pelo estudante conectado face à crescente mer-
cantilização das interações nos mais diversos ambientes online.
Tal capacidade crítica resulta de aprendizado contínuo, o que en-
tendemos dever ser estimulado e guiado por uma educação de
qualidade.

122
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125
 PARTE II:
EPISTEMOLOGIAS DECOLONIAIS

126
 TEORIA RACIAL CRÍTICA E COMUNICAÇÃO DIGITAL:
CONEXÕES CONTRA A DUPLA OPACIDADE

TARCÍZIO SILVA

RESUMO

O artigo apresenta uma introdução à Teoria Racial Crítica,


framework teórico-metodológico proposto inicialmente por pes-
quisadores do Direito para combater a aplicação racista da legis-
lação, para discutir debates e objetos contemporâneos da comu-
nicação digital. A Teoria Racial Crítica (TRC) transpôs as frontei-
ras do Direito e tem sido aplicada em diversos países afrodiaspó-
ricos à Educação, Sociologia e outras áreas como a Comunicação,
mas ainda tangencial nesta última. Com o objetivo de colaborar
para as conexões deste framework teórico, o artigo apresenta e
discute, do ponto de vista da comunicação digital, seis pilares de-
finidores da TRC: a) a ordinariedade do racismo; b) construção
social da raça; c) interseccionalidade e anti-essencialismo; d) re-
conhecimento do conhecimento experiencial; e) agência no com-
bate efetivo da opressão racial; e f) a interdisciplinaridade.

PALAVRAS-CHAVE: teoria racial crítica; comunicação digital;


algoritmos; plataformas digitais; raça.

ABSTRACT

The article presents an introduction to Critical Race Theory, a


theoretical-methodological framework initially proposed by law
researchers to combat racist application of legislation, to discuss
contemporary objects of digital communication. Critical Race

127
Theory (CRT) has crossed the boundaries of legal scholarship
and has been applied in several aphrodiasporic countries to edu-
cation, sociology and other areas such as communication, but
still tangential in the latter. In order to contribute to connect this
theoretical framework to digital communication studies, the ar-
ticle presents and discusses six defining pillars of the CRT: a) the
ordinary nature of racism; b) social construction of race; c) inter-
sectionality and anti-essentialism; d) recognition of experiential
knowledge; e) agency in the effective fight against racial oppres-
sion; and f) interdisciplinarity.

KEYWORDS: critical race theory; digital communication; algo-


rithms; digital platforms; race

INTRODUÇÃO

A construção de uma genealogia do interesse acadêmico sobre


estudos comunicacionais debruçados sobre a internet não é fácil,
na medida em que tanto a transformação dos objetos quanto das
lentes de pesquisa é um fenômeno contínuo e cambiante em in-
teração – os próprios métodos e materiais de observação transi-
tam ao longo do tempo.
Scolari (2009) apresentou dez anos atrás uma das tipologias
mais interessantes das primeiras décadas dessa história. A pri-
meira fase é intitulada como Founding Fathers e compreende o
período entre 1960 e 1984 quanto às primeiras especulações teó-
ricas sobre computação e produção de protótipos. A segunda
fase, Origens, é caracterizada por produções sobre hipertextos,
interfaces, comunicação mediada por computador e afins, entre
1984 e 1993. Com a disseminação da web, o terceiro período com-
preende de 1993 a 2000 e multiplica os discursos sobre as "ciber-
culturas": popular, acadêmica e crítica. Em um foco, as reflexões
sobre sociedade digital na imprensa, audiovisual e debate pú-
blico, e noutro foco, a descrição sistemática dos processos, atores

128
e eventos pela academia, com um nicho performando aborda-
gens mais críticas e aprofundadas.
Entre 2000 e 2008, Scolari identifica um período que chama
de Internet Studies. No período, a pesquisa se torna mais inter-
disciplinar e há uma reconfiguração das teorias e metodologias
sobre a comunicação digital, incluindo perspectivas da Teoria
Ator-Rede, Análise de Redes Sociais e afins, coincidindo com o
boom dos sites de redes sociais.
Ao final deste período, alguns casos clássicos de interferên-
cia/imbricação da internet em esferas da sociedade são registra-
dos, como a vitoriosa e disruptiva campanha de Obama nos EUA
(GOMES et al, 2009) e a evolução da massa crítica de usuários
de internet e sites de redes sociais – o Facebook superou MyS-
pace neste ano e se consolidou como a maior plataforma de mídia
social, com mais de 100 milhões de usuários.
A partir desse período se discute amplamente como a internet
pode ser um espelho ou representação da sociedade. Do ponto de
vista do estudo etnográfico digital, Hine (2015) defende três ca-
racterísticas (os 3 “Es”) da internet: embedded (“imersa”), embo-
died (“corporificada”) e everyday (“cotidiana”), em evidente
contraste com a ideia da separação do “virtual” e presencial
(HINE, 2000) do final da década de 90 e início dos 2000s,
quando a metáfora das janelas para o ciberespaço (TURKLE
1997; LEMOS e PALACIOS, 2001) era vigente, onde os internau-
tas poderiam, inclusive, experienciar identidades até contrastan-
tes com suas identidades perceptíveis físicas. Uma década de-
pois, porém, os sites de redes sociais multiplicam as ancoragens
de dados e identificadores com os papéis sociais presenciais e fí-
sicos dos indivíduos (BOYD, 2010; RECUERO, 2012), onde parte
da empolgação está na capacidade de mudar as lentes entre indi-
víduos e redes na coleta e visualização de dados.
Alguns declaram, portanto, o “fim do virtual”, pois a questão
não seria mais “o quanto da sociedade e cultura está online, mas
como diagnosticar mudanças culturais e condições sociais

129
através da Internet” (ROGERS, 2013, p. 2155). Entretanto, a ideia
de um mundo e sociedade totalmente digitalizados parte de uma
visão ocidental e eurocentrada, complexificada tanto pelas trans-
formações dos problemas do “digital divide” (DANIELS, 2013)
quanto da luta de grandes corporações contra a neutralidade das
redes, como a iniciativa de lobby Internet.org, que tentou inten-
sificar a colonização de dados dos países periféricos ao oferecer
“internet gratuita”, mas para acessar apenas sites e aplicativos de
um punhado de corporações (SHAHIN, 2019).
Finalmente, presenciamos o protagonismo de perspectivas
críticas – ou mesmo desalentadoras – do pensamento sobre o di-
gital tanto na academia quanto na conversação pública. Diagnós-
ticos e críticas sobre os impactos nocivos da internet na dissemi-
nação de desinformação (LYNCH, FREELON e ADAY, 2016), al-
goritmização (PASQUALE, 2015; SILVEIRA, 2017) e capitalismo
de plataforma (SRNICEK, 2017) ganham destaque associados ao
avanço da desigualdade econômica e radicalização de grupos, so-
bretudo ultra-direita, neo-nazistas e supremacistas brancos.
Neste panorama complexo, um framework teórico-metodoló-
gico desenvolvido no Direito e Educação afrodiaspóricos tem
sido aplicado por pesquisadoras para entender os fenômenos so-
cio-tecnológicos contemporâneos, a Teoria Racial Crítica (TAL,
1996; POMPPER, 2005; NOBLE, 2013, 2018; BROCK, 2012,
2016; ALI, 2013; BENJAMIN, 2016; MUNGO, 2017). Conside-
rando sua ainda relativamente ausente da bibliografia brasileira
sobre o tema, o objetivo do artigo é realizar uma apresentação
dos seus pilares, sublinhando sua adequação aos estudos sobre
raça, relações étnico-raciais e racismo e implicações nas tecnolo-
gias de comunicação, entendidas como práticas complexas mate-
rializadas.

55 Texto original: “how much of society and culture is online, but rather how to diag-
nose cultural change and societal conditions by means of the Internet”.

130
TEORIA RACIAL CRÍTICA

Qual o lugar do debate sobre categorias e identidades raciais,


do ponto de vista de construção de comunidades por empatia ét-
nico-racial, de um lado, e das opressões e dominações racializa-
das, por outro, nos estudos sobre internet? Em revisão bibliográ-
fica dos estudos de internet sobre raça e racismo, Daniels (2013)
levanta a bibliografia anglófila em grupos de temas como identi-
dade e comunidade, games, fandoms online e cultura popular,
notícias online e esportes, sites de redes sociais, blogs, entre ou-
tros. Concluiu que a literatura dos Internet Studies reproduz a
exotização da alteridade, resiste à análise honesta do racismo en-
quanto sistema e à recusa de ver o papel da branquitude, nunca
racializada quanto os demais grupos minorizados. Assim, preci-
saríamos de um framework teórico que “reconheça a persistên-
cia do racismo online enquanto simultaneamente reconheça as
profundas raízes da desigualdade racial nas estruturas sociais
existentes que moldam a tecnocultura”56 (DANIELS, 2013, p.
711).
Defendemos que a Teoria Racial Crítica (TRC)57 é este fra-
mework teórico interdisciplinar contra o que chamamos de dupla
opacidade, o modo pelo qual os discursos hegemônicos invisibi-
lizam tanto os aspectos sociais da tecnologia quanto os debates
sobre a primazia de questões raciais nas diversas esferas da soci-
edade – incluindo a tecnologia, recursivamente. A Teoria Racial
Crítica tomou forma nos Estados Unidos durante o final dos anos
1970, reunindo inicialmente professores, advogados, ativistas e
pesquisadores do Direito preocupados tanto com a estagnação
dos avanços obtidos pelos movimentos de direitos civis no país
quanto com a aplicação discrepante da lei ao mesmo tempo em

56 Texto original: "acknowledges the persistence of racism online while simultane-


ously recognizing the deep roots of racial inequality in existing social structures that
shape technoculture".
57 Originalmente Critical Race Theory, também traduzida por “Teoria Crítica da Raça”
ou “Teoria Crítica Racial”.

131
que se defendia sua neutralidade. Um dos eventos fundadores foi
o curso e livro de Derrick Bell, primeiro professor afro-americano
na escola de Direito de Harvard, Race, Racism and American
Law. No curso (lançado em 1981) e em suas atuações acadêmicas
e civis, Bell desafiou as concepções liberais do Direito como “ce-
gueira racial”, integracionismo e “igualdade legal formal” que, ao
invés de serem efetivas, apenas serviam à retórica do poder con-
tra qualquer debate racial.
A saída de Bell de Harvard deflagrou um movimento, por es-
tudantes, para solicitar a manutenção de um curso sobre raça e
racismo no Direito do ponto de vista de algum/a professor/a de
grupo minorizado e racializado, como afro-americanos ou asiáti-
cos-americanos. Entretanto, Harvard negou-se a levar essa soli-
citação em consideração. Como resultado, estudantes criaram o
“The Alternative Course” (“O Curso Alternativo”), que se tornou
a primeira expressão institucionalizada da Teoria Racial Crítica
ao juntar diversas pensadoras e pensadores que desenvolveram
a perspectiva ao longo das décadas seguintes (CRENSHAW et al.,
1996).
Desafiando a força institucional da universidade ao desenvol-
ver seu próprio evento, os proponentes da TRC manifestaram o
poder das contra-narrativas como alternativas a um fazer cientí-
fico falho por se pretender neutro enquanto representava apenas
interesses de uma elite limitada. Allen, de acordo, identifica na
Comunicação, que a teorização nos campos hegemônicos da dis-
ciplina “geralmente não mergulha nas dinâmicas raciais de po-
der. Além disto, raramente menciona racismo de modo a explici-
tamente analisar questões de níveis macro”58 (ALLEN, 2007,
p.260). Então seguimos na identificação e descrição de alguns
dos principais pressupostos e objetivos da Teoria Racial Crítica
(TRC): a) a ordinariedade do racismo; b) a visão sobre raça e das
relações raciais como construção social; c) interseccionalidade e
anti-essencialismo; d) a importância do reconhecimento do

58 Texto original: "usually does not delve into power dynamics of race. Furthermore,
it infrequently mentions racism in explicit ways that analyze macrolevel issues”.

132
conhecimento experiencial; e) a agência da TRC no combate efe-
tivo da opressão racial e f) a necessária interdisciplinaridade
(FERREIRA, 2014; DELGADO e STEFANCIC, 2017; FERREIRA
e QUEIROZ, 2018).

a) Ordinariedade do racismo

Vivemos em um mundo que “foi fundamentalmente moldado


nos últimos quinhentos anos pelas realidades da dominação eu-
ropeia e a gradual consolidação da supremacia branca global”59
(MILLS, 2014, p. 354). No Brasil, as manifestações contemporâ-
neas e mensuráveis da supremacia branca podem ser citadas do
macro ao micro, de economia e emprego à violência obstetrícia:
mulheres negras recebem em média apenas 50% do que recebem
homens brancos60; apenas 4,7% do quadro executivo das 500
maiores empresas do Brasil é composto por pessoas negras61; es-
tudantes negros representam apenas 28,9% na pós-graduação e
professoras pretas doutoras um desalentador 0,3%62; 75% das ví-
timas de homicídio no país são negras63; e mulheres negras são
66% das vítimas de violência obstétrica64.
Esses dados e outras realidades sociais percebidas pela popu-
lação negra brasileira levaram Nascimento a falar da iniquidade

59 Texto original: “"foundationally shaped for the past five hundred years by the
realities of European domination and the gradual consolidation of global white suprem-
acy".
60 Disponível em: https://www.dieese.org.br/analiseped/2013/2013pednegros-
met.pdf. Acesso em: 02 dez. 2019.
61 Disponível em: http://www.onumulheres.org.br/wp-content/uplo-
ads/2016/04/Perfil_social_racial_genero_500empresas.pdf. Acesso em: 02 dez. 2019.
62 Disponível em: http://agenciabrasil.ebc.com.br/educacao/noticia/2015-05/ne-
gros-representam-289-dos-alunos-da-pos-graduacao. Acesso em: 02 dez. 2019. Dispo-
nível em: https://www.geledes.org.br/menos-de-3-entre-docentes-da-pos-graduacao-
doutoras-negras-desafiam-racismo-na-academia/. Acesso em: 02 dez. 2019.
63 Disponível em: https://brasil.estadao.com.br/noticias/geral,75-das-vitimas-de-
homicidio-no-pais-sao-negras-aponta-atlas-da-violencia,70002856665. Acesso em: 02
dez. 2019.
64 Disponível em: https://www.almapreta.com/editorias/realidade/segundo-minis-
terio-da-saude-62-8-das-mulheres-mortas-durante-o-parto-sao-negras. Acesso em: 02
dez. 2019.

133
como característica fundamental do Estado brasileiro, pois “tem
sido a cristalização político-social dos interesses exclusivos de
um segmento elitista, cuja aspiração é atingir o status ário-euro-
peu em estética racial, em padrão de cultura e civilização”
(NASCIMENTO, 2019, p. 286), através de um “pacto narcísico”
que inclui um esforço contínuo de exclusão econômica, moral,
afetiva e política dos negros no universo social brasileiro
(BENTO, 2002). Então a ideia de que atos de racismo são apenas
aqueles explícitos, ligados à discriminação explícita e geralmente
discursiva, ignora as formas mais insidiosas de racismo que man-
têm e reproduzem as desigualdades abissais de forma recursiva.
Consequentemente, a Teoria Racial Crítica vê o racismo como
“ordinário, não aberracional – “ciência normal”, o modo usual
pela qual sociedade funciona, a experiência comum e cotidiana
da maior parte das pessoas de cor deste país”65 (DELGADO e
STEFANCIC, 2017, p. 8, trad. livre), sido definida como a “inves-
tigação crítica sobre como o Direito “reproduz, reifica e norma-
liza racismo na sociedade”66 (LÓPEZ, 2003, p. 83) em particular
para indivíduos de classe baixa e pessoas racializadas. Ao enfati-
zar o olhar sobre os processos de reprodução, reificação e norma-
lização do racismo em seu campo de emergência, a TRC natural-
mente foi expandida para outros campos, onde a população afro-
diaspórica passou a ter um olhar crítico e lugar de fala e análise
sobre a realidade social.
Ganham lentamente corpo na pesquisa sobre comunicação e
sociedade digitais as questões raciais, ao mesmo tempo que a
ameaça oferecida “pela supremacia branca online é risco episte-
mológico à nossa acumulação e produção de conhecimento sobre

65 Texto original: “ordinary, not aberrational - "normal science," the usual way soci-
ety does business, the common, everyday experience of most people of color in this coun-
try”.
66 Texto original: “critically interrogate how the law reproduces, reifies, and normal-
izes racism in society”.

134
raça, racismo e direitos civis na era digital”67 (DANIELS, 2009,
p. 8). Por exemplo, a lassidão da pesquisa sobre raça e racismo
online contrastou com a visão estratégica de membros da Ku
Klux Klan que, como documenta Daniels, viam na internet uma
possibilidade de “criar uma reação em cadeia de esclarecimento
racial que vai chacoalhar o mundo pela velocidade de sua con-
quista intelectual” nas palavras do supremacista branco David
Duke em 1998 (DANIELS, 2018, p. 64). Duke é ativo apoiador do
portal neonazista Stormfront, responsável por uma das primei-
ras grandes estratégias análogas a fake news, ao comprar o do-
mínio <martinlutherking.org>, simular um website sério e publi-
car informações falsas sobre o ativista negro.
Aqui, essa percepção sobre a ordinariedade do racismo é es-
pecialmente importante quanto aos impactos tecnológicos sobre
relações raciais em um mundo construído sobre a retroalimenta-
ção entre capitalismo e supremacia branca (NASCIMENTO,
2016, 2019; MILLS, 2014; SOUZA, 2017). Podemos falar de uma
dupla opacidade da dificuldade de tratarmos tanto de questões
raciais quanto da incorporação de valores em dispositivos tecno-
lógicos – sobretudo os que reúnem mais e mais dispositivos au-
tomatizados como os algorítmicos.
Vinte anos depois da citação acima de Duke, o uso de plata-
formas digitais como mídias sociais e mensageiros mobile virou
o jogo em eleições e referendos por todo o mundo, enquanto
ainda há batalhas discursivas se estes movimentos são ou não ex-
tremistas ou supremacistas. A construção das sociedades moder-
nas é fruto de colonização e racialização desenvolvida ao longo
de séculos e, portanto, “somente entendendo a descolonização e
a desracialização eles (acadêmicos da diáspora africana) pode-
riam entender o desenvolvimento do capitalismo e da sociedade
moderna” (ZUBERI, 2016, p. 476).

67 Texto original: “white supremacy online is the epistemological menace to our ac-
cumulation and production of knowledge about race, racism, and civil rights in the dig-
ital era”.

135
Ao ignorar as relações étnico-raciais no processo de design e
construção de dispositivos de comunicação digital, “a indústria
tech deixou uma abertura para nacionalistas brancos – e eles es-
tão sempre procurando oportunidades para empurrar sua ideo-
logia”68 (DANIELS, 2018, p. 63, trad. livre) ao paroxismo do final
da década de 2010.

b) Raça como construção social

A assunção e os desdobramentos da percepção de raça como


uma construção social compõem o segundo grande pilar da Teo-
ria Racial Crítica. Apesar da aparente superação do racismo cien-
tífico na segunda metade do século XX, ainda são frequentes as
recusas em se discutir raça e racismo, geralmente pautadas por
argumentos a-históricos sobre igualdade biológica. É preciso
ainda sublinhar que raça não é “objetiva, inerente ou fixa, não
corresponde a uma realidade biológica ou genérica; na verdade,
raças são categorias que a sociedade inventa, manipula ou apo-
senta quando conveniente”69 (DELGADO, STEFANCIC e
HARRIS, 2017, p. 9, trad. livre). Entretanto, como acontece na
maioria das esferas da atividade humana, seu impacto se dá nas
trocas simbólicas que criam, reforçam ou contestam relações de
poder. Raça, neste sentido efetivo e na práxis, pode ser vista
como “um fenômeno social sui generis no qual sistemas contes-
tados de significado servem como conexões entre características
físicas, faces e personalidade” (LÓPEZ, 2003, p. 240).
É particularmente relevante sublinhar este ponto da TRC, por
considerar que a presença ou ausência de variáveis e identifica-
ção de leituras raciais por produtores e usuários de sistemas in-
formacionais online também não é um dado fixo, mas em

68 Texto original: “the tech industry has left an opening for White nationalists—and
they are always looking for opportunities to push their ideology”.
69 Texto original: “objective, inherent, or fixed, they correspond to no biological or
genetic reality; rather, races are categories that society invents, manipulates, or retires
when convenient”.

136
constante reinvenção e controvérsias. Os significados de raça, ra-
cismo e processos de racialização se transformam na relação en-
tre informação e corporificação nas tecnologias digitais de comu-
nicação, biometria e vigilância, que possuem fronteiras cada vez
menos nítidas.
Uma postura comum das plataformas de mídias sociais é es-
conder o caráter explícito de raça, mas permitir suas manifesta-
ções ou manipulações através de proxies ou atalhos por atores
específicos. Sweeney (2013), por exemplo, identificou o direcio-
namento de anúncios discriminatórios a afro-americanos através
do uso de nomes próprios de cultura negra e africana no busca-
dor Google. Por outro lado, a oferta de conteúdo de mídia em
bancos de imagens como Shutterstock traz como resultado famí-
lias e representações brancas – apenas depois de mobilização de
grupos, como a ONG Desabafo Social, o site incluiu a variável de
raça/etnia como filtro no buscador70.
A escolha de inclusão ou exclusão de variáveis raciais em in-
terfaces de busca de conteúdo ou anúncios é contextual e deve ser
vista como variável analítica relevante. Um dos casos mais rele-
vantes neste sentido foi a denúncia feita pela ProPublica, em
2016, de que o Facebook permitia excluir racialmente públicos
em anúncios de habitação, prática proibida desde 1968 nos EUA.
Mais chocante foi a estratégia de defesa: a plataforma alegou que
as opções tratavam apenas de “Afinidade Multicultural”, mas a
exclusão só poderia ser realizada nas categorias Afro-America-
nos, Asiáticos-Americanos e Hispânicos. Caucasianos/brancos,
porém, não se configurava como uma categoria possível no sis-
tema, gerando um dos casos mais explícitos de design discrimi-
natório que se desenrola desde então (SYLVAIN, 2018).
Desse modo, não só as interfaces digitais para os usuários co-
muns quanto as possibilidades ou impossibilidades para os usu-
ários corporativos de exercer influência e construir mensagens

70 Disponível em: http://desabafosocial.com.br/blog/2017/06/12/desabafo-social-


interfere-no-mecanismo-de-busca-do-maior-banco-de-imagem-do-mundo/. Acesso em:
02 dez. 2019.

137
de forma racializada são apresentadas de forma intencional-
mente confusas pelas plataformas, aproveitando-se do fato que
“a velocidade com a qual as funcionalidades de tecnologias da co-
municação podem evoluir levam a um estado persistente de re-
tardamento entre percepção e realidade” (NAPOLI e CAPLAN,
2018, p. 157).

c) Interseccionalidade

A perspectiva interseccional nasceu na interface entre Teoria


Racial Crítica e estudos feministas a partir de uma proposição de
Kimberlé Crenshaw (1989). A autora partiu de casos de batalhas
legais sobre discriminação laboral nos EUA, onde já existia al-
guma sensibilidade e precedentes para análise do papel do ra-
cismo e do machismo de forma isolada. Mas a intersecção entre
duas ou mais opressões, que penaliza mulheres negras, por
exemplo, não era considerada em suas particularidades. Para
Crenshaw, adotar “frameworks de questão-única não apenas
marginaliza as mulheres negras nos próprios movimentos que as
clamam como parte constituinte, mas também torna o objetivo
elusivo de acabar com o racismo e patriarcado ainda mais difícil
de atingir”71 (1989, p. 152).
A relevância da interseccionalidade, portanto, levou pesquisa-
doras e pesquisadores a elaborar a partir dessa prerrogativa, en-
tendendo a relação entre categorias e marcadores de diferença
quanto a raça, gênero, classe, origem geográfica, neuroatipici-
dade, status de cidadania e outros. Nos estudos de objetos de co-
municação, a ingerência do digital na vida cotidiana evoca alertas
específicos sobre o papel da interseccionalidade. Na medida em
que a privatização da internet complica a dataficação, o neolibe-
ralismo enfraquece avanços sociais e o capitalismo de dados se

71 Texto original: “single-issue framework for discrimination not only marginalizes


Black women within the very movements that claim them as part of their constituency
but it also makes the illusive goal of ending racism and patriarchy even more difficult
to attain”.

138
insere na gestão do cotidiano, como aponta Cottom (2016). Ao
estudar o modo pelos quais faculdades privadas online direcio-
nam atividades e comunicação a estudantes negras marginaliza-
das, aponta que suas atividades classificatórias também combi-
nam camadas de raça, classe e gênero e “focar nos processos pe-
los quais atenção é estratificada usando affordances técnicas
como geradores de leads e algoritmos de busca pode clarificar es-
tes processos”72 (COTTOM, 2016, p. 225).
Mais do que uma prerrogativa programática, a intersecciona-
lidade se torna também aspecto inerente do método da TRC. Ao
revisar a contribuição do pensamento de mulheres negras para a
comunicação no Brasil, Correa e colaboradores apontam, a partir
dos desdobramentos de Crenshaw,

que a emergência dos discursos, expressões e formas de conhe-


cimento dos sujeitos marginalizados permite a compreensão de
aspectos estruturais e complexos das interações sociais de
forma mais ampla. Desse modo, partindo das práticas de des-
legitimação discursiva e violência epistêmica como mecanis-
mos do racismo, sexismo e demais formas de opressão estrutu-
rais e estruturantes, estas práticas se ramificam em toda a soci-
edade, organizando todos os espaços de poder e visibilidade
(CORREA et al, 2018, p. 156)

Interseccionalidade é essencial, portanto, para entender como


o capitalismo se reinventa para manter e aproveitar ao máximo a
“subordinação estrutural, a confluência entre gênero, classe, glo-
balização e raça” (CRENSHAW, 2002, p. 14). Do ponto de vista
empírico da disciplina e ferramental das humanidades digitais, o
projeto interseccional “pede que comecemos com as especificida-
des de um conjunto de dados, identifiquemos as camadas de di-
ferença que intersectam com estes dados e usemos o conheci-
mento como base para o desenho do projeto” (RISAM, 2015, p.

72 Texto original: “focusing on the process by which attention is stratified using tech-
nical affordances like lead generators and search algorithms can clarify these pro-
cesses”.

139
30, trad. livre73). Essas camadas de diferença são relevantes para
a compreensão de um dos temas de pesquisa mais relevantes da
comunicação digital hoje – os algoritmos e seus vieses nocivos
(OSOBA e WELSER IV, 2017). Estes últimos são efetivamente
inscritos em tecnologias muitas vezes por omissão direcionada
por uma falta de noção de alteridade de desenvolvedores e enge-
nheiros de computação (ALI, 2013).
Quem produz as tecnologias? Quem escreve os códigos? Qual
o usuário-padrão imaginado por estas pessoas? Uma perspectiva
interseccional formula estas questões sobre os objetos de pes-
quisa – e sobre os pesquisadores. Entre as principais empresas
do Vale do Silício, por exemplo, a mediana de profissionais ne-
gros é de apenas 2,5%, enquanto representam cerca de 14% da
população estadunidense74. Os olhares que um grupo minorizado
pode ter sobre um determinado problema pode, com frequência,
abrir as caixas-pretas de um determinado sistema, como vere-
mos no caso de Buolamwini e Gebru (2018) na próxima seção. O
conceito de lugar de fala, popularizado para além da academia
nos últimos anos no Brasil em grande medida por feministas ne-
gras (RIBEIRO, 2017) se aproxima de preocupações interseccio-
nais sobre os objetos de análise, mas também sobre seus sujeitos.
De forma similar, Pompper investiga o conceito de diferença nas
Relações Públicas, a partir das propostas da TRC, e descobriu se-
rem especialmente raros os trabalhos escritos por “pesquisador
que explicitamente descreva seu ou sua raça, etnia e cultura em
comparação às dos participantes do estudo ou que descreva

73 Texto original: "asks us to begin with the specificities of a data set, identify the
layers of difference that intersect within it, and use that knowledge as a basis for project
design".
74 Dados combinados a partir da Comissão de Iguais Oportunidades em Emprego
dos EUA e de crowdsourced, compilados em https://www.revealnews.org/article/heres-
the-clearest-picture-of-silicon-valleys-diversity-yet/. Acesso em: 02 dez. 2019.

140
esforços para endereçar diferença a fim de minimizar vieses po-
tenciais”75 (POMPPER, 2005, p. 154).

d) Conhecimento experiencial

O reconhecimento do ponto de vista da população e dos pes-


quisadores negros e de minorias políticas e sexuais como agentes
de construção de conhecimento também é um pilar da Teoria Ra-
cial Crítica, frequentemente ligada ao ativismo efetivo nos ambi-
entes acadêmicos e de produção do conhecimento. Essa alteri-
dade experienciada continuamente no cotidiano parte de uma
dualidade constante entre o pensamento, oralidades e escrita so-
bre si por parte da população negra em contraposição aos ideais
totalizantes do positivismo. Para além disto, pesquisadoras ne-
gras evocam a noção de “outro do outro”, ao tratar do ponto de
vista ou lugar de fala (RIBEIRO, 2017), reconhecendo que “con-
ceitos de sabedoria, conhecimento acadêmico e ciência estão in-
trinsicamente ligados ao poder e autoridades raciais”
(KILOMBA, 2008, p. 27).
Zuberi enfatiza este ponto ao tratar de como a Teoria Racial
Crítica se desdobrou nas Ciências Sociais, nos EUA, advinda do
Direito. Mas, a rigor, boa parte de pensadores negros desde o fi-
nal do século XIX, que escreveram sobre sociedade, como o pró-
prio W. E. B. Du Bois, Maria H. Stewart e Frederick Douglass,
pavimentaram o caminho do uso da fundamentação analítica
para combater a supremacia branca na prática.

Assim como os pesquisadores marginalizados, mulheres e


pessoas de cor frequentemente se engajavam na academia
como agentes de mudança. Eles estavam preocupados em de-
safiar as hierarquias existentes e transformar as próprias pers-
pectivas dos cientistas sociais. Eu faço este destaque para que

75 Texto original: “researcher who explicitly described his or her race, ethnicity, and
culture as compared to study participants’ or who described efforts to address difference
in order to minimize potential bias”.

141
possamos reconhecer que a TCR existia ainda antes que tivesse
este nome. A emergência da TCR como um movimento intelec-
tual e político é um momento fundamentalmente importante
desta articulação. (ZUBERI, 2016, p. 467)

A emergência de dois grupos de objetos na pesquisa em comu-


nicação digital recente é exemplo do conhecimento experiencial
de pesquisadoras negras dedicadas ao campo e da “função das
histórias e da cultura e da maneira como as histórias são histori-
camente e socialmente posicionadas à medida que contamos”
(FERREIRA, 2014, p. 245). Um deles é resultado da convergên-
cia entre três aspectos: a ascensão de pontos de vista de mulheres
negras em espaços acadêmicos, a tendência de valorização da
transição capilar como um resgate político da estética afro-brasi-
leira e mídias sociais como espaço de agregação comunitária e
contra-narrativas. Os prolíficos trabalhos sobre as comunidades
relacionadas a transição capilar e cabelo afro nos últimos cinco
anos, realizados por graduandas, pós-graduandas e pesquisado-
ras negras, mostram o uso do online na construção dessas comu-
nidades e contra-narrativas estéticas. A partir de Crenshaw, por
exemplo, Souza e Muniz concluem sobre universitárias da Unilab
que “o empoderamento que a afirmação estética trouxe para elas
possibilitou inclusive um questionamento maior das opressões a
que estavam submetidas em contexto universitário e também ge-
ográfico” (2017, p. 97). Sobre os desafios da invisibilidade, Buo-
lamwini publicou diversos experimentos de análise de viés e dis-
criminação algorítmica nos últimos anos, com destaque para dois
projetos. O primeiro deles (BUOLAMWINI, 2017;
BUOLAMWINI e GEBRU, 2018) investigou APIs de visão com-
putacional para entender vieses de raça e gênero na identificação
de rostos e características como o próprio gênero e idade. Estas
tecnologias, de corporações como IBM e Microsoft, são emprega-
das de aplicativos mobile de entretenimento a tecnologias de vi-
gilância e, portanto, cada vez mais críticas nos fluxos de mensu-
ração biopolítica. As pesquisadoras identificaram também um

142
abismo na acurácia de identificação das variáveis, de um espectro
que vai da precisão altíssima em fotos de homens brancos a taxas
de erros enormes em fotos de mulheres negras. Além do artigo
acadêmico, disponibilizaram o site GenderShades.org, que ex-
plica claramente os principais resultados do experimento com
páginas interativas, gráficos e vídeos. E desenvolveram um da-
taset mais eficiente que o usado por aqueles fornecedores de vi-
são computacional. Depois de publicar os resultados, os fornece-
dores supracitados das tecnologias publicaram notas sobre os er-
ros. Um ano depois, o projeto reproduziu o experimento nas APIs
para conferir se os índices melhoraram (RAJI e BUOLAMWINI,
2019), identificando que o gap entre a acurácia diminuiu – tam-
bém incluíram outros fornecedores, Amazon e Kairos, para com-
paração e expansão do impacto.
O fazer acadêmico nesta trajetória destes experimentos de Bu-
olamwini, como pudemos ver, foi além da materialidade das mé-
tricas tradicionais de publicação e citações, incluindo divulgação
científica e impacto mensurável. Ao “destacar o tema das dispa-
ridades de performance classificatória e amplificar consciência
pública do problema, o estudo foi capaz de motivar empresas a
priorizar a questão e gerar melhorias significativas” (RAJI e
BUOLAMWINI, 2019, p. 6). Mas esta jornada começou antes, do
ponto de vista experiencial da estudante. Em um TED de 2016,
Joy Buolamwini comentou como, em uma demonstração de re-
conhecimento racial durante um evento,

a demonstração funcionou com toda a gente até chegar a minha


vez. Provavelmente já adivinham. Não conseguiu detectar o
meu rosto. Perguntei aos responsáveis o que é que se passava,
e acontece que tínhamos usado o mesmo software genérico de
reconhecimento facial. Do outro lado do mundo, aprendi que o
preconceito do algoritmo pode viajar tão depressa quanto um
download de arquivos da Internet.76

76 Disponível em: https://www.ted.com/talks/joy_buolamwini_how_i_m_figh-


ting_bias_in_algorithms/transcript?language=pt. Acesso em: 02 dez. 2019.

143
A ênfase que a Teoria Racial Crítica dá, então, ao conheci-
mento experiencial não pode ser subestimada. Além do caso
acima ter sido visto por milhões de pessoas no site da TED e ter
motivado a pesquisadora, trata-se de um caso particular sobre o
valor do conhecimento experiencial particular. Associado à des-
treza técnica e acadêmica posterior, este conhecimento permitiu
que duas pesquisadoras sozinhas propusessem um sistema mais
eficiente do que dezenas de desenvolvedores da IBM e Microsoft.

e) Transformação social

O próximo pilar é imbricado nos anteriores e podemos evocar


os casos citados. A prática política de transformação social, en-
tão, é outro pilar do movimento, uma vez que esta “mede pro-
gresso pelo avanço nos trilhos para a transformação social fun-
damental” (MATSUDA et al, 1993, p. 202)77. Desse modo, habili-
tar mudanças positivas da realidade social é uma prerrogativa da
TRC. Se as tecnologias podem engendrar processos de racializa-
ção e injustiças, também é necessário “pressionar as fronteiras
das políticas públicas de modo que a compreensão dos modos
que a marginalização é mantida possa mudar substancial-
mente”78 (NOBLE, 2018, p. 1301).
Em trabalho sobre websites de universidades e seu papel na
representação e acolhimento de estudantes racializados nos
EUA, Mungo pontua que “a presença ou ausência de pessoas de
cor em websites de universidades, o texto que ocorre junto a suas
imagens, os papéis que desempenham e as mensagens sobre raça
são todos elementos importantes”79 (MUNGO, 2016, p. 242). In-
terrogar os modos pelos quais estes websites são construídos é

77 Texto original: “measures progress by a yardstick that looks to fundamental social


transformation”.
78 Texto original: “press the boundaries of public policy so that the understanding of
the complex ways that marginalization is maintained can substantially shift”.
79 Texto original: “presence or absence of people of color on university websites, the
text that occurs alongside their images, the roles they are shown playing, and the mes-
sages about race are all important elements”.

144
uma tarefa que envolve tanto a análise de representação dos per-
sonagens escolhidos quanto sua contextualização socio-histórica
com dados – como distribuição racial da cidade do campus e da
composição do alunado da instituição – e reflexão sobre o papel
das universidades no combate às desigualdades, por exemplo.
Este chamado pelo trabalho “além dos muros da academia”,
para citar a frase que já se tornou clichê, não se trata de uma crí-
tica ao acadêmico ou “academicismo” como se fosse uma posição
ruim per si. Como apontam Ladson-Billings e Donnor, o desafio
não é a rejeição do conhecimento acadêmico ou papel da univer-
sidade nem defender que todos devam seguir o lugar e o ethos
acadêmico “mas reconhecer as identidades ‘de fora da academia’
que devemos recrutar para nós mesmos a fim de sermos pesqui-
sadores mais efetivos em nome de quem pode usar nossas com-
petências e habilidades”80 (2008, p.298).
Em um zeitgeist neoliberal que glorifica as empresas de tec-
nologia e CEOs, Broussard propôs o termo “technochauvinismo”
para dar conta de algumas assunções hegemônicas sobre tecno-
logia:

a crença que a tecnologia é sempre a solução [...], geralmente


acompanhada por crenças vizinhas como meritocracia; valores
políticos tecnolibertarianistas; celebração da liberdade de ex-
pressão ao ponto de negar que assédio online é um problema; a
noção que computadores são mais “objetivos” ou “enviesados”
porque eles destilam questões e respostas em avaliação mate-
mática; e uma fé inabalável que se o mundo criasse mais com-
putadores e os usassem apropriadamente, problemas sociais
desapareceriam e criaríamos uma utopia digital (BROUSSARD,
2018, p. 166).

A comunicação como objeto e como fim se entrelaçam no


olhar da TRC, uma vez que os ambientes digitais se tornam um

80 Texto original: “recognize the 'outside the academy' identities that we must recruit
for ourselves in order to be more effective researchers on behalf of people who can make
use of our skills and abilities”.

145
local essencial para disputas de narrativas do ponto de vista da
retórica dos ativismos e participação digitais e também do res-
gate de história, dados e informações ou, ainda, promoção de li-
teracias digitais na interface com a educação (DANIELS,
NKONDE e MIR, 2019). Uma “tecnologia do resgate” é o que de-
fine Gallon ao propor uma perspectiva negra sobre as humanida-
des digitais. Os esforços de “trazer a humanidade plena de pes-
soas marginalizadas através do uso de plataformas e ferramentas
digitais”81 (GALLON, 2015, s.p.) aproximam, para a autora, tanto
projetos típicos de humanidades digitais quanto movimentações
como o #BlackLivesMatter e casos de auditoria algorítmica como
os citados.

f) Interdisciplinaridade

Por fim, como também o conceito de interseccionalidade já ci-


tado evoca, a interdisciplinaridade é considerada marca essencial
para os objetivos de projetos calcados na Teoria Racial Crítica.
Para Obasogie, “ligar métodos das ciências sociais com a teoria
crítica racial fornece uma oportunidade notável de produzir pen-
samento acadêmico racial que seja tanto teoricamente sofisti-
cado quanto empiricamente robusto”82 (OBASOGIE, 2013, p.
185).
Ao transitar do Direito para Educação, História, Sociologia,
Comunicação e outras disciplinas, a TRC demonstrou sua capa-
cidade transdisciplinar que, justamente, pode ajudar a superar
uma “literatura acadêmica hegemônica tende a tratar raça como
um aspecto a-histórico, essencialista e despolitizado da identi-
dade”83 (ALLEN, 2007, p. 260). Mas, para além de inspirar

81 Texto original: “bring forth the full humanity of marginalized peoples through the
use of digital platforms and tools”.
82 Texto original: “Linking social science methods with critical race theory provides
a remarkable opportunity to pursue race scholarship that is both theoretically sophisti-
cated and empirically robust”.
83 Texto original: “mainstream communication scholarship tends to treat race as an
ahistorical, essential, and depoliticized aspect of identity”.

146
programas de investigação em outras disciplinas, a TRC procura
ir além para promover “uma análise mais abrangente e multifa-
cetada de como raça, racismo e (des)igualdade racial se manifes-
tam” (FERREIRA, 2014, p. 243). Uma vez que o digital se es-
praiou para diferentes facetas semânticas e materiais da socie-
dade, merecem destaque propostas informadas pela TRC que se
debruçam especialmente sobre o aspecto interdisciplinar, pode-
mos citar a Critical Technocultural Discourse Analysis e a apro-
ximação ao conceito de “microagressões raciais”.
Desenvolvida pelo psiquiatra Chester Pierce nos anos 1970, a
trajetória das pesquisas sobre microagressões tenta entender
como racismo – e posteriormente outros tipos de opressões – se
manifestam em agressões contínuas e aparentemente sutis no
cotidiano de grupos minorizados. Aproximar da TRC permite
que se vá “além da interação agressor-vítima e ilustra que estes
atos racistas cotidianos possuem um propósito, sejam cometidos
conscientemente ou não, de perpetuar e justificar um sistema
amplo de dominação racial”84 (HUBER e SOLORZANO, 2014, p.
18). Aplicada a estudos de racismo online e crimes de ódio em
suas manifestações discursivas e algorítmicas, expande-se a tipo-
logia clássica de microagressões para incluir desinformação e de-
seducação (TYNES et al, 2019; SILVA, 2019).
A Análise Tecnocultural Crítica de Discurso (Critical
Technocultural Discourse Analysis) foi proposta por Brock
(2012, 2016) e performa “análises do design virtual e material das
tecnologias da informação com um olhar investigativo sobre a
produção de significado através das práticas e articulações dos
usuários em questão”85 (BROCK, 2016, p.2). O entendimento é
que a CTDA busca abordar a Internet e objetos de mídia para
pensar multimodalmente: infraestrutura, serviço, plataforma,

84 Texto original: “beyond a perpetrator-target interaction and illustrates that these


everyday racist acts have a purpose, whether committed consciously or not, to perpet-
uate and justify a larger system of racial domination”.
85 Texto original: “analyses of information technology material and virtual design
with an inquiry into the production of meaning through information technology prac-
tice and the articulations of information technology users in situ”.

147
aplicações, objeto, sujeito, ação e discurso são indissociáveis e o
pesquisador parte da análise crítica não apenas de conteúdos,
mas também como o meio evoca e materializa as relações de po-
der e racialização que formatam os "usuários" e "produtores" em
diferentes engajamentos com o fenômeno em questão.

CONCLUSÕES E DESDOBRAMENTOS

Buscamos, neste artigo, apresentar os principais pilares da


Teoria Racial Crítica e colaborações possíveis para debates con-
temporâneos sobre objetos da comunicação digital, notadamente
potenciais impactos de interfaces e algoritmos digitais em um
mundo plataformizado e cada vez mais opaco.
A partir de seis dos pilares mais característicos da perspectiva
da Teoria Racial Crítica, queremos promover – sem pretensões a
universalismos ou perspectivas positivistas – que de fato louva-
mos seu “reconhecimento como um movimento, assim como
através da colaboração de indivíduos e tradições oriundas de ou-
tras disciplinas” (ZUBERI, 2016, p. 482). Concordamos com
Silva e Pires quanto ao papel da TRC “questiona fatos que tam-
bém são relevantes no Brasil ao se discutir a estrutura racial-
mente hierarquizada da sociedade e das instituições” (2015, p.
68). As semelhanças entre a tradição estadunidense e o pensa-
mento de pensadores negros brasileiros sobre raça permite “evi-
denciar tanto as estratégias e políticas antirracistas desenvolvi-
das pelos acadêmicos negros, como as estratégias de exclusão, si-
lenciamento e apagamento articuladas pelo supremacismo
branco – ambos em uma perspectiva transnacional” (FERREIRA
e QUEIROZ, 2018, p. 218). Um projeto interdisciplinar que não
veja a comunicação apenas como campo de formatos e meios por
uma “tecnofilia acrítica” e possa buscar de fato seu valor social,
cultural e político (SODRÉ, 2012).
Em trabalhos vindouros se buscará a verticalização do debate
sobre os pilares da Teoria Racial Crítica no campo, fenômenos,

148
objetos e redes da comunicação digital, com vista a somar aos es-
forços de conexões epistemológicas das similaridades e proble-
mas em comum das populações afrodiaspóricas.

149
REFERÊNCIAS

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 GRINGOS REACT TO BRAZIL: UMA PROPOSTA DE
CONCEITUAÇÃO DOS REACTION VIDEOS EM DIÁLOGO
COM AS NARRATIVAS ESTRANGEIRAS SOBRE UM SUL
GLOBAL “BASTARDO”

DAVI REBOUÇAS
LUANA INOCÊNCIO
ANDREA MEDRADO

RESUMO

Atentos ao fenômeno dos reaction videos como formato


narrativo no YouTube, contextualizamos as potencialidades do
vídeo de reação como gênero nativo da cultura digital, mapeando
traços comuns ao formato, a fim de estabelecer uma definição
conceitual sobre ele. Partimos de uma problematização que
aborda as narrativas estrangeiras de sujeitos do Norte Global
sobre o Brasil e seus bens culturais. Valemo-nos da análise de
conteúdo com abordagem qualitativa, privilegiando construções
de sentido marcadas por traços de colonialidade (MIGNOLO,
2005). Pudemos identificar nas narrativas traços de
assujeitamento de brasileiros, indo ao encontro das proposições
de Rincón (2016) sobre “culturas bastardas” da América Latina,
e de legitimação do poder avaliativo do estrangeiro,
reproduzindo hierarquias culturais (BHABHA, 1998), além de
uma representação estereotipada composta por valores predomi-
nantemente negativos.

PALAVRAS-CHAVE: reaction videos; YouTube; conteúdo ge-


rado por usuários; Sul Global; colonialidade.

157
ABSTRACT

In this chapter, we focus on the phenomenon of reaction vid-


eos as a narrative format on YouTube. First, we provide context
on reaction videos as an audiovisual genre that stems from digital
culture, mapping out the characteristics that define this format
and offering a conceptual definition about it. Our starting point
is to identify the problems that revolve around how subjects from
the Global North construct their narratives about Brazil and its
cultural goods. In order to achieve this, we have adopted a quali-
tative approach and employed a content analysis to explore
meaning-making processes marked by traces of coloniality
(MIGNOLO, 2005). We were able to identify narrative traces of
subordination of Brazilian subjects to the cultures of the Global
North. Such traces confirm Rincón’s (2016) ideas of Latin Amer-
ican “bastard cultures” and help legitimise the foreigner’s (as in
Non-Brazilian) evaluative power, reproducing cultural hierar-
chies (BHABHA, 1998) and presenting a stereotypical represen-
tation comprised of predominantly negative values.

KEYWORDS: reaction videos; YouTube; user generated content;


Global South; coloniality.

INTRODUÇÃO

Desde o final do século XX, passamos por uma série de trans-


formações sociais que, especifica e principalmente, pelo desen-
volvimento de novas tecnologias de comunicação e informação,
fizeram-nos reinventar as cotidianas formas de interação medi-
ada. Na verdade, não só a comunicação se modificou, mas a
grande maioria das sociedades ao redor do mundo passou e passa
por transformações culturais, marcadas pelo hibridismo, pela
mixagem, pelo diálogo com outras culturas e formas de ver e vi-
ver o mundo, provocando reestruturações socioculturais. Um

158
grande “facilitador” desse complexo processo são as mídias digi-
tais.
Em contato com diversos discursos e culturas dispersas geo-
graficamente, passamos a incorporar, em nossas práticas sociais,
identidades e representações exportadas de outras sociedades.
Nesse cenário, nos chama a atenção um tipo de conteúdo especí-
fico que tem tido grande destaque na plataforma de vídeos You-
Tube: vídeos de reação produzidos por estrangeiros sobre a cul-
tura brasileira. Compreendidos aqui como micronarrativas cola-
borativas do humor (INOCÊNCIO, 2018), tais conteúdos, tam-
bém chamados de reaction videos, têm por objetivo apresentar
momentos de “surpresa” do produtor de conteúdo ao ter um pri-
meiro contato com objetos ou assistir a cenas impactantes de ou-
tros conteúdos audiovisuais, por exemplo. Os materiais que ins-
piram essa reação são os mais diversos.
A origem moderna desse tipo de produção, como conhecemos
e discutiremos aqui, se dá por volta de 2006, um ano após o sur-
gimento do próprio YouTube. Desde então, é possível perceber-
mos a consolidação dos reaction videos como um gênero audio-
visual nativo da cultura digital, com uma relativa padronização
estética e uma busca pelo exagero na performance da reação
apresentada, como forma de reforçar a autenticidade do prota-
gonista da produção. Os interagentes dos ambientes digitais pa-
recem dispor de cada vez mais formas de expressar seus senti-
mentos, emoções e reações. Os vídeos de reação também repre-
sentam uma possibilidade para isso, mas se diferenciando por se
tratar de conteúdo produzido pelos próprios usuários.
Nesse sentido, nasce a seguinte problemática: quais seriam as
principais características definidoras dos reaction videos que
possibilitem, futuramente, sua operacionalização enquanto gê-
nero audiovisual nativo da cultura digital? Nos rastros dessa
questão, buscamos: a) contextualizar as potencialidades do vídeo
de reação como um gênero audiovisual nativo da cultura digital;
b) mapear características comuns a esse formato que permitam
a definição de um conceito preliminar de reaction videos a fim

159
de legitimá-lo enquanto objeto investigativo do campo da comu-
nicação; c) articular tais observações ao discutir, na análise de
caso, sobre a produção de vídeos de reação estrangeiros acerca
de bens culturais brasileiros lidos como “culturas bastardas”
(RINCÓN, 2016), refletindo sobre questões geopolíticas e coloni-
ais que perpassam as construções de sentido dessas práticas dis-
cursivas no YouTube. Parte de uma investigação maior, adota-
mos, nesta etapa da pesquisa, a análise de conteúdo de aborda-
gem qualitativa, perfazendo, também, uma imersão no campo a
fim de estabelecer uma descrição do cenário.
Feitos esses apontamentos exploratórios, vislumbra-se como
hipótese que as narrativas audiovisuais elaboradas por sujeitos
situados no Norte Global geopolítico (MIGNOLO, 2005) agluti-
nam enquadramentos de um Brasil estereotipado, a partir de
uma interpretação colonialista (QUIJANO, 1997) e hierarquiza-
dora (BHABHA, 1998) desses bens culturais. Adotamos aqui um
determinado enquadramento para viabilizar a construção de um
conceito, adotando vídeos de canais com grande audiência, a fim
de identificar padrões seguidos nas narrativas. Optamos, ainda,
por utilizar vídeos com volume significativo de engajamento
(curtidas e comentários). Em nossa análise, valemo-nos de três
vídeos de três canais e que também são contemplados por esses
critérios: NiceNienke, E-Dubin TV e Sweedie.
Como confirmação de que esse gênero tem despertado o inte-
resse de cada vez mais criadores de conteúdo, é importante men-
cionar o fato de que em 2016, o canal Fine Brothers Entertain-
ment86 (FBE), registrado no YouTube desde 2007, e, atualmente,
acumulando 7,4 bilhões de visualizações, gerou intensa repercus-
são negativa ao tentar registrar o termo “react” como uma
marca87 para monetizar e licenciar seus direitos autorais, a partir
do enorme sucesso de sua série de reaction videos. Os produtores
tentaram explicar que a intenção seria impedir que outros

86 Disponível em: <https://www.youtube.com/user/TheFineBros>. Acesso em: 10


jun. 2019.
87 Disponível em: <https://goo.gl/zv7mRq>. Acesso em: 10 jun. 2019.

160
criadores simplesmente copiassem o formato narrativo criado
por eles e não censurar qualquer outro tipo de reaction video no
YouTube. Complementaram informando que poderiam fornecer
licenças pagas para os que desejassem fazer seus próprios vídeos
no estilo. O pronunciamento apenas alimentou uma nova rodada
de rechaço, incluindo um vertiginoso movimento de boicote e
perda de inscritos, com outros youtubers realizando transmis-
sões ao vivo para comemorar a contagem decrescente de inscri-
tos e compartilhando novos reactions irônicos ao anúncio.
Anteriormente, em 2010, o canal lançou sua primeira sequên-
cia de produções reaction, Kids React to Viral Videos88, protago-
nizado por crianças reagindo a trechos de vídeos virais populares
como Leave Britney Alone89, Trololo90, Annoying Orange91 e
MysteryGuitarMan92. O formato de vídeo utilizado pelo FBE
traz diferentes grupos de pessoas (crianças, idosos, estrangeiros
e youtubers famosos) assistindo a variados produtos culturais,
desde vídeos virais da própria internet até comerciais publicitá-
rios da década de 1980. O gênero reaction foi a porta de entrada
do Fine Brothers Entertainment para alcançar o sucesso na pla-
taforma, sendo os produtores também grandes responsáveis pela
popularização desse tipo de conteúdo. Tais vídeos renderam aos
responsáveis, a partir de 2013, uma extensão própria em um
novo canal, o REACT Channel93, atualmente, com 10 milhões de
inscritos e mais de 3,3 bilhões de visualizações.

88 Disponível em: <https://goo.gl/97NK2E>. Acesso em: 10 jun. 2019.


89 Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=WqSTXuJeTks>. Acesso
em: 10 jun. 2019.
90 Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=2Z4m4lnjxkY>. Acesso em:
10 jun. 2019.
91 Disponível em: <https://www.youtube.com/user/realannoyingorange>. Acesso
em: 10 jun. 2019.
92 Disponível em: <https://www.youtube.com/MysteryGuitarMan>. Acesso em: 10
jun. 2019.
93 Disponível em: <https://www.youtube.com/user/React>. Acesso em: 10 jun.
2019.

161
USER GENERATED CONTENT NA PLATAFORMA DE
VÍDEOS YOUTUBE

Com os avanços tecnológicos das últimas décadas, passamos


a experienciar novas formas de produção e de consumo midiá-
tico. Redirecionamos o foco da distribuição para a circulação de
conteúdos, compreendendo que os sujeitos, enquanto atores so-
ciais, moldam, compartilham, reconfiguram e remixam os conte-
údos de mídia, formulando o cenário de uma cultura participa-
tiva (JENKINS, 2014); na verdade, atualizando o conceito de cul-
tura participativa que foi apresentado pelo autor em 1992. O You-
Tube, em especial, tem figurado como um ambiente em que essas
ações são concretizadas e somadas às possibilidades interativas
oferecidas pela plataforma, fazendo com que novos modos enun-
ciativos, discursivos e performáticos se evidenciem por meio da
produção dos interagentes.
Originado em 2005, o YouTube é a maior plataforma de com-
partilhamento de vídeos do mundo e a segunda maior ferra-
menta de buscas online94, na qual usuários profissionais e não
profissionais participam da criação, do upload e da visualização
de conteúdo. Atualmente, cerca de 1,9 bilhão de usuários únicos
visitam o site por mês (quase um terço dos usuários da internet
como um todo), assistindo a mais de 1 bilhão de horas de conte-
údo diariamente. Vale destacar que o Brasil é o segundo maior
público consumidor de vídeos da plataforma, ficando atrás ape-
nas dos Estados Unidos95. Os conteúdos disponibilizados são di-
versos, vão desde vídeos de poucos segundos a produções com
horas de duração.
A relativa facilidade de upload de conteúdos faz com que se-
jam encontrados diferentes formatos de linguagem na plata-
forma, bem como múltiplas possibilidades de apropriação.

94 Dados da própria plataforma, disponíveis em: <http://bit.ly/2JjcDV6>. Acesso em:


10 jun. 2019.
95 Todos os dados da pesquisa estão disponíveis em: <http://bit.ly/2JkcFux>. Acesso
em: 29 jun. 2019.

162
Podemos encontrar produções amadoras, de usuários “comuns”
e descompromissados com as padrões narrativos e/ou estéticos;
mais profissionais, de youtubers conhecidos, em emergência ou
ainda desconhecidos ou de empresas dedicadas à produção de ví-
deos para a plataforma; e criações profissionais que não foram
produzidas originalmente para o YouTube (como filmes, capítu-
los de novelas e programas de TV), mas forma disponibilizadas
no ambiente digital, seja pelos detentores dos direitos autorais
ou por algum usuário. A multiplicidade de formatos narrativos
faz com que haja uma maior quantidade de usos da plataforma
no cotidiano dos sujeitos, que a utilizam com fins educativos,
contra-hegemônicos e de entretenimento.
Trazendo para este debate valiosos insights que orientarão
nossa discussão, Park et al (2014) analisaram o comportamento
de upload de milhares de Conteúdos Gerados pelo Usuários
(UGCs ou User Generated Contents) no YouTube e identificaram
que o maior volume de produções não profissionais no site está
relacionado a videoclipes oficiais, um dos formatos de produtos
do entretenimento de maior circulação nas ambiências digitais.
Nesse cenário, os autores mapearam os formatos de vídeos UGC
mais frequentes relacionados à apropriação dos produtos musi-
cais: paródias, remixes, remakes, covers e versões acústicas, per-
formances de dança, flash mobs e reaction videos, foco de nosso
estudo.
Ao descobrirem que a popularidade desses videoclipes no
YouTube (em contagem de visualizações) é diretamente propor-
cional ao volume e à frequência de upload de UGC “relaciona-
dos”, ou seja, ao conteúdo recriado a partir do videoclipe original,
os autores perceberam que os padrões de crescimento na conta-
gem de visualizações desses produtos davam saltos repentinos
que coincidiam com o período de maior upload de UGC. Assim,
a investigação sugere o potencial de utilizar as informações de
UGCs criados para prever a popularidade do conteúdo original.
Essas criações dos participantes online, entretanto, não têm
como inspiração apenas videoclipes. Diferentes bens culturais,

163
atualmente, são utilizados como pontapé para novas produções
que expõem, por exemplo, as reações dos protagonistas dos ví-
deos. Há, inclusive, diversos canais do YouTube destinados à vei-
culação desse tipo de conteúdo de reação, tais como Reaction
time, React Brasil e Fine Brothers. Além desses, é possível en-
contrar canais estrangeiros destinados ao público brasileiro e que
contemplem os bens culturais próprios do Brasil.
Esse tipo de vídeo em que reações são expostas tem se mos-
trado popular entre os interagentes (BURGESS; GREEN, 2018)
e se convencionou chamar por reaction videos. Uma breve pes-
quisa com o termo “reaction brazil”, ou seja, vídeos de reação a
aspectos brasileiros, gera em torno de 3.290.000 de resultados
de vídeo, sendo que, só nos últimos dois anos, são mais de 540
mil.
Ao iniciar os apontamentos sobre uma breve incursão empí-
rica preliminar desta pesquisa, observa-se que diversas platafor-
mas ou artefatos midiáticos protagonizam um papel especial
para a experiência dos interagentes com as materialidades, como
é o caso do YouTube, especialmente valioso para o corpus espe-
cífico deste trabalho – reaction videos. Pereira de Sá (2014) ca-
racteriza esse site como mediador da experiência cultural nas re-
des digitais, destacando-se como plataforma que inaugura novas
dimensões estéticas, lúdicas e de sociabilidade, a partir de suas
potencialidades tecnológicas em conjunto com práticas culturais:
“a rede de mediadores que transformou o YouTube num sistema
cultural é ampla, complexa e heterogênea, indo além da dicoto-
mia entre usuários comuns (amadores) versus profissionais”
(PEREIRA DE SÁ, 2014, p.161).
Inseridos no contexto de vídeos virais e videomemes que po-
voam intensamente a internet, conforme identificado em outras
etapas desta pesquisa (INOCÊNCIO, 2018), os reaction videos
compõem um gênero audiovisual cada vez mais comum no You-
Tube. Essas criações são valorizadas como “vídeos de YouTube”,
um produto orgânico e genuíno da cultura participativa, em que
“elementos tais como humor, espontaneidade, improviso e

164
nonsense tornaram-se marcas estéticas importantes para circu-
lação de vídeos” (PEREIRA DE SÁ, 2014, p. 164).

REACTION VIDEOS COMO GÊNERO AUDIOVISUAL NA


CULTURA DIGITAL

Ao resgatarmos em nosso imaginário as diversas tipologias de


vídeos caseiros que surgiram a partir da proliferação de câmeras
portáteis não profissionais, não é difícil lembrar de gravações que
pretendiam registrar as emoções das pessoas a eventos surpresas
dedicados a elas, por exemplo. Poderíamos arriscar, a partir
disso, que esses vídeos seriam os inspiradores dos reaction vi-
deos nos formatos atuais. Contudo, apesar de ser um tipo de ví-
deo comum, produzido e encontrado em grande quantidade na
internet, não localizamos uma conceitualização teórica para os
reactions videos.
Burgess e Green (2018) identificam os reaction videos como
parte de um conjunto específico de conteúdos gerados pelos usu-
ários (ou User Generated Content, UGC), sendo um dos “gêneros
vernáculos-chave” do YouTube, ao lado de outros formatos po-
pulares, como tutoriais de beleza, gameplays e outros vídeos vi-
rais, com códigos e convenções próprios da cultura popular do
site, conforme veremos na análise. Os autores, entretanto, não
têm a pretensão de estabelecer uma definição sobre o gênero,
apresentando apenas suas características principais.
A busca por uma conceitualização de nosso objeto de estudo
tem nos levado, então, a um desafio tanto metodológico como
epistemológico: a definição consistente e criteriosa de reaction
videos ou vídeos de reação no contexto da cultura digital. Temos
buscado, para isso, investir na reflexão científica desse tipo de
conteúdo midiático, definindo-o, por fim, como uma narrativa
audiovisual e intertextual cujo propósito é exibir reações a um
(suposto) primeiro contato com outros textos, bens culturais ou
objetos diversos, a uma audiência, seguindo, para isso, determi-
nada estética visual em um formato marcado pela “surpresa” a

165
algo “inesperado” e pelo caráter avaliativo dos objetos-pautas da
reação, muitas vezes atravessado pelo humor.
Essa formulação é resultado de observação empírica, operaci-
onalizada com abordagem da análise de conteúdo qualitativa, en-
quadrando diferentes produtores de vídeos que se autodenomi-
nam como “de reação” a algo. Os recortes, especificamente, que
compõem o corpus da análise são os canais do YouTube Fine
Brothers96, NiceNienke97, Reaction Time98, Vinie Mattos99 e blog
UOL Reage100.
É relevante ressaltar que, dado o caráter fluído, dinâmico e
efêmero das ambiências digitais e da contemporaneidade, não te-
mos a pretensão de formular um conceito rígido, engessado e
com categorias estanques. Compreendemos, sim, como uma for-
mulação dinâmica e sujeita a transformações, conforme eventu-
ais mudanças sociais e da plataforma e demandas que venham a
surgir dos interagentes. Algumas características mais definido-
ras, todavia, podem ser conjecturadas a fim de sustentar nossa
proposta, que serão desdobradas a seguir: 1) São um formato de
avaliação atravessado pelo entretenimento; 2) Possuem estéticas
visual e narrativa reconhecidas como “de YouTube”; 3) Permea-
dos pela intertextualidade, metalinguagem e humor; 4) Trazem
uma escolha estratégica do conteúdo base:

1) Formato de avaliação atravessado pelo entreteni-


mento

Lançando mão de um olhar mais crítico sobre essas produ-


ções, podemos nos deparar com um aspecto problemático das re-
ações expostas: o teor avaliativo que elas eventualmente

96 Disponível em: <https://www.youtube.com/user/TheFineBros>. Acesso em: 9 jun.


2019.
97 Disponível em: <https://www.youtube.com/user/NiceNienke>. Acesso em: 9 jun.
2019.
98 Disponível em: <http://bit.ly/2qkniYm>. Acesso em: 12 jun. 2019.
99 Disponível em: <http://bit.ly/2qknl6u>. Acesso em: 13 jun. 2019.
100 Disponível em: <https://mov.uol.com.br/uol-reage/>. Acesso em: 29 maio 2019.

166
possuem. Sendo distribuídos, principalmente, com o objetivo de
entreter, os reactions podem encobrir avaliações do protagonista
quanto à pauta. Nada haveria de se problematizar se essas avali-
ações se restringissem a objetos ou mercadorias diversas, como
parece ser o caso dos reviews, em que o propósito é explicita-
mente avaliar e, consequentemente, possíveis marcas de entrete-
nimento surgem em decorrência da encenação.
No entanto, como discutimos anteriormente, os vídeos de re-
ação se valem dos mais diversos bens culturais como ponto de
partida. Ao fazerem isso, muitos outros discursos passam a se en-
trelaçar na produção e, à medida que isso acontece, algumas vo-
zes e perspectivas são exaltadas enquanto muitas outras são si-
lenciadas, o que demanda olhares crítico-reflexivos. Almejamos
desenvolver essas visadas adotando como corpus os vídeos de re-
ação produzidos no estrangeiro, mas tendo como base produtos
culturais brasileiros.

2) Estéticas visual e narrativa “de YouTube”

Conforme comentamos anteriormente, determinadas estéti-


cas visuais, narrativas e retóricas próprias de vídeos do YouTube
(ou vlog) estão presentes nos vídeos de reação. Foi possível per-
ceber, através de aprofundamento empírico no campo, que esses
vídeos adotam, majoritariamente, o seguinte padrão: a) o prota-
gonista se encontra próximo à câmera, em primeiro plano, talvez
como estratégia para tornar suas expressões ainda mais eviden-
tes, além de conferir maior proximidade com o público; b) comu-
mente, no enquadramento, há um espaço dedicado à exibição do
conteúdo ao qual o enunciador está reagindo; c) tentativa de se
demonstrar surpreso ou surpresa com o material a que se está
reagindo e presença do exagero, do humor e da performance nas
expressões faciais.
Fruto do caráter fluido e dinâmico de nossa proposição, uma
ponderação se faz necessária quanto a tais características. Elas
dizem respeito a vídeos de reação produzidos com a presença de

167
um único ou de poucos protagonistas. Contudo, é possível verifi-
carmos que tem se tornado cada vez mais comum a circulação de
vídeos de reações coletivas. Estes adotam padrões um pouco di-
ferente, como: um enquadramento que, logicamente, contempla
diferentes protagonistas e que transita por eles, procedendo a um
plano de câmera fechado (close) quando há uma reação mani-
festa de modo mais expressivo, como se verifica na figura 1.

Figura 1: Vídeo de reação coletiva ao assistir a série Game of Thrones


(HBO)

Fonte: YouTube101

3) Intertextualidade, metalinguagem e humor

Ao terem como pauta ou referência textos anteriormente pro-


duzidos ou outros produtos e expressões culturais perpassados
por retóricas plurais, podemos defender que os vídeos de reação
devem ser considerados interdiscursivos e intertextuais, ou seja,
em diálogo com outras vozes e/ou textos. Mesmo quando mate-
rialidades textuais propriamente ditas não são a pauta da produ-
ção ou não são expostas/referenciadas no material (dado um mo-
delo estético amplamente utilizado e que abordaremos a seguir),

101 Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=7yuZk543q6s&t=139s>.


Acesso em: 23 jun. 2019.

168
o conteúdo é interpelado por relações dialógicas, sendo, por-
tanto, interdiscursivo (FIORIN, 2006).
Reverberados, majoritariamente, em uma plataforma onde de-
terminados padrões audiovisuais são seguidos (YouTube), os ví-
deos de reação, além de adotarem uma construção relativamente
estável, em termos bakhtinanos, buscam se enquadrar nos forma-
tos narrativos de vlogs, inserindo, na encenação, características
próprias destes, tais como: cumprimentos, chamadas para ação e
despedidas, além de pequenas inserções de outros textos, como
memes, que marcariam o valor humorístico atribuído a esse tipo
de conteúdo. Havendo, pois, essa estabilidade tipológica na con-
cepção de reaction videos, entendemo-lo como um gênero discur-
sivo (BAKHTIN, 1997) audiovisual que possui relações com outros
formatos próprios da cultura digital.
A identificação de que os vídeos não se limitam a apresentar
reações sobre algo, mas também comentam sobre e buscam, às
vezes, explicar o porquê de determinadas ações, nos leva a defen-
der a existência de uma metalinguagem no formato midiático que
discutimos aqui.

4) Escolha estratégica do conteúdo base

Com a ampliação da profissionalização de conteúdos do You-


Tube e da busca por monetização destes, a escolha das temáticas
tem sido cada vez mais estratégica e os vídeos de reação não fo-
gem a essa realidade. É possível observarmos que a grande mai-
oria dos conteúdos originais já possui um certo destaque e enga-
jamento na rede. Os produtores de reaction parecem se valer
desse “sucesso” para produzir seus vídeos, ampliando as chances
de adesão da audiência ao conteúdo, traduzida em visualizações,
avaliações (Gostei e Não gostei), comentários e compartilhamen-
tos.
Esses conteúdos não seriam mais um efeito colateral e despre-
tensioso da audiência no processo de disseminação passiva de
conteúdo, posto que em outras etapas desta investigação

169
(INOCÊNCIO, 2018) busca-se enfatizar também a intencionali-
dade desses atores na busca por capital social – que disputam se
tornarem localizáveis nos mecanismos de busca em associação
aos títulos dessas produções que alcançam grande popularidade.
Nesse sentido, a derivação de Conteúdos Gerados por Usuários
(UGCs) no formato de vídeo vem sendo evidenciada por diversos
pesquisadores como elemento definidor que influencia o nível de
alcance e popularidade nas plataformas e comunidades digitais
– portanto, um fator central que tem profundo impacto no pro-
cesso geral de produção, distribuição e consumo de produtos de
entretenimento nas ambiências da cultura digital.

GLOBALIZAÇÃO, TRANSCULTURALIDADE E A REAÇÃO


AO OUTRO

Desde o início de nossa história civilizatória, parece que bus-


camos formas de perceber o mundo a partir de uma visão mani-
queísta e por uma lógica de poder: cristãos e céticos, Ocidente e
Oriente, negros e brancos, civilizados e selvagens, opressores e
oprimidos, Nós e Eles. Segundo Lander (2005), porém, essas se-
parações se tornaram mais sistematizadas a partir do período
Ilustrado e, posteriormente, com o desenvolvimento das ciências
modernas. Nosso objeto de estudo demonstra bem essas separa-
ções, principalmente na contemporaneidade: sujeitos com recur-
sos que possibilitam a produção de conteúdos versus audiência,
desenvolvidos versus periféricos, avaliadores legitimados versus
culturas objetificadas para a avaliação.
No processo de transnacionalização cultural e de globalização,
a importância do lugar na constituição da cultura e da identidade
parece ter sido reduzida, como afirma Escobar (2005). Para o au-
tor, faz-se necessário um resgate da relevância do lugar nas in-
vestigações, explicando-o, mas sempre levando em conta a circu-
lação global do capital. Ou seja, é preciso uma maior valorização
do lugar, de sua historicidade e dos impactos da globalização

170
sobre ele. No recorte que apresentamos aqui, contudo, essas
frentes não são amplamente aprofundadas, pois nos detemos a
oferecer uma contextualização mais ampla.
A seguir, apresentamos três frames de três canais distintos,
todos em reação a produções brasileiras. Da esquerda para di-
reita, temos, respectivamente: 1) Nienke, do canal NiceNienke,
reagindo a videoclipes da cantora brasileira Iza102; 2) Mah e Jess,
em vídeo do canal E-Dublin TV, reagindo a videoclipes brasilei-
ros, de diferentes gêneros musicais103; e em 3) Sweedie reage a
diferentes textos meméticos musicais produzidos por interagen-
tes brasileiros104.

Figura 2: Frames de vídeos em que youtubers reagem ao “Brasil”

Fonte: YouTube105

102 Disponível em: <http://bit.ly/2NkWl1N>. Acesso em: 25 jun. 2019.


103 Disponível em: <http://bit.ly/2NmfSPa>. Acesso em: 18 dez. 2018.
104 Disponível em: <http://bit.ly/2ZUFHHB>. Acesso em: 27 jun. 2019.
105 Os vídeos estão disponíveis, respectivamente, nos links das notas 17, 18 e 19.

171
Holandesa, Nienke tem conquistado muitos fãs no Brasil,
desde que começou a criar vídeos tentando falar em português,
em 2016. Após o sucesso do primeiro vídeo com esse propósito,
com mais de 3 milhões de visualizações, a youtuber passou a pro-
duzir conteúdos mais direcionados ao público brasileiro, princi-
palmente reaction videos, como nesse primeiro material a ser
discutido aqui.
É possível identificarmos que, apesar da intenção explícita de
Neinke em valorizar os bens culturais brasileiros, uma série de
problemáticas pode ser depreendida de suas enunciações. Ao re-
agir aos videoclipes de Iza, a youtuber profere diversos elogios à
cantora e à sua música e demonstra, em diversos momentos, es-
tar surpresa com a performance da artista. Para Nienke, o hit
“Pesadão”, o primeiro a ser reagido, faz parte do estilo “pop” e
poderia ser categorizado como “internacional”. Já sobre a música
“Dona de mim”, a holandesa se diz impressionada com a profun-
didade das letras e com a habilidade de Iza trazer à tona temáti-
cas “de uma boa maneira com sua voz” (5’15”). Para arrematar,
temos o seguinte enunciado opinativo: para mim, ela é a Beyoncé
do Brasil.
Assim, podemos perceber que, por mais que o bem cultural
seja apresentado dentro de uma contextualização (o estrangeiro
reagindo ao que lhe é alheio), contemplando, ainda, sua catego-
rização (uma música em português interpretada por uma brasi-
leira), há uma reapropriação para o referenciar a partir da expe-
riência norte-americana. Uma cultura vista como importada. Sa-
bemos que Iza pode ter Beyoncé como uma referência, uma vez
que, no início de sua carreira, a brasileira interpretava músicas
da norte-americana. Trata-se de um imaginário constituído pelo
discurso colonial em que o ocidente é legitimado (MIGNOLO,
2005) como o lugar responsável pelas produções “originais”, ao
passo que reforça traços da colonialidade do poder (QUIJANO,
1997), que é simbólica.
As culturas são sempre marcadas por hibridismos. Para
Bhabha (1998, p. 165), esses hibridismos são um “deslocamento

172
de valor do símbolo ao signo que leva o discurso dominante a di-
vidir-se ao longo do eixo de seu poder de se mostrar representa-
tivo, autorizado”. Logo, as práticas culturais também represen-
tam relações de poder, onde os países historicamente coloniza-
dores ocupariam uma posição “superior”, que lhe autorizaria a
perpetuar suas representações (BHABHA, 1998), como se essas
nações fossem responsáveis por civilizar “suas colônias” ou paí-
ses subdesenvolvidos. Fica evidente, pois, que esses colonizado-
res são notadamente países desenvolvidos, detentores de gran-
des capitais e que exportam/impõem seus modelos culturais,
epistêmicos, financeiros etc. Os bens das regiões periféricas se-
riam, então, dotados de menor valor.
No segundo vídeo em análise, há a presença de duas protago-
nistas: Mah e Jess. A primeira é uma irlandesa e a segunda, uma
brasileira que vive na Irlanda. No filme, elas reagem a videoclipes
brasileiros de diferentes gêneros musicais. Logo de início, elas
apresentam suas reações ao clipe de “Eu amei te ver”, de Tiago
Iorc. Nesse momento, as youtubers desenvolvem um diálogo so-
bre o bem cultural, do qual destacamos dois enunciados.
Ao perceber que os artistas do videoclipe estão abraçados des-
pidos, a brasileira comenta “Eles estão pelados. Esse é o Brasil”,
como verificamos na legenda do segundo frame da figura 2. A
fala é problemática em diversos aspectos. Ela vai ao encontro de
uma narrativa construída historicamente e desperta o imaginário
de que o Brasil seria um país marcado pelo que poderíamos cha-
mar de “cultura de prostituição”. Ainda nesse sentido, a enunci-
ação de Jeh reproduz uma visão hiper-sexualizada da cultura
brasileira e parece legitimar o ideário de que há a necessidade de
passarmos por um processo civilizatório pelos países de Norte.
Outra fala de Jeh que vai ao encontro das considerações de
Bhabha (1998) é “tipicamente brasileiro é algo que não existe”,
quando Mah sugere compreender que a música de Tiago Iorc não
parece tipicamente brasileira. Podemos depreender dessa enun-
ciação a propagação de certa hierarquização entre as culturas de
diferentes países, mas também entre os bens culturais, seguindo

173
uma estética de gosto e uma distinção entre bens de alta e baixa
cultura (BOURDIEU, 2007).
Em nosso último material analisado, o americano Sweedie re-
age a memes brasileiros enviados por uma suposta amiga do Bra-
sil. Nesses textos meméticos, há a prevalência da presença de
personagens integrantes do grupo conhecido por Carreta Fura-
cão. Trata-se de um serviço de entretenimento em que diversas
pessoas embarcam em um “trenzinho”, na cidade de Ribeirão
Preto, no interior de São Paulo, junto a diversos personagens (su-
per-heróis, palhaços, personagens de quadrinhos etc.) que de-
senvolvem performances ao longo de um trajeto pela cidade.
Esse tipo de atração existe em diferentes cidades brasileiras e fez
surgir diferente memes na internet.
Para Xu et al (2016), o YouTube é o ambiente perfeito para a
criação memética seriada, com um estágio orgânico de espalha-
mento e retenção da atenção que dura cerca de 3 meses – sendo
que diferentes gêneros de “vídeos meméticos”, como denomi-
nam, atraem níveis distintos de atenção e ação por parte da au-
diência. A partir desse reconhecimento de novas possibilidades
narrativas, os interagentes podem imitar ações e estilos, editar e
manipular o conteúdo original em algo novo para expandir sua
antiga fronteira cultural e diegética – compondo, assim, não ape-
nas cópias com replicação do conteúdo original, mas versões pa-
ralelas a enriquecer os produtos culturais originais com novos
segmentos narrativos e estéticos.
Valendo-se desses conteúdos, Sweedie apresenta em seu vídeo
inúmeras ofensas à sociedade brasileira. Diante da imagem ex-
pondo a quantidade de pessoas no transporte da Carreta Fura-
cão, o youtuber diz que a imagem condiz exatamente com o que
ele “imaginava” sobre o país, em uma clara alusão a uma visão
subdesenvolvida do Brasil. O vídeo segue com uma série de críti-
cas às criações e reações e comentários que poderiam, inclusive,
ser compreendidos como xenófobos. O protagonista critica as
mixagens realizadas entre as gravações brasileiras e músicas
norte-americanas. Complementa que não consegue

174
compreender as produções e que “imaginou que elas seriam nor-
mais”, como se houvesse a necessidade de as produções brasilei-
ras serem aprovadas e compreendidas pelo estrangeiro e como se
houvesse um padrão normativo a ser seguido.
Essas tensões dialogam com a definição de cultura “popular”
elucidada por Rincón (2016) como “culturas bastardas”, produ-
ções de sentido provenientes dos sujeitos subalternos, domina-
dos, excluídos ou colonizados. Em um complexo ecossistema mi-
diático, os sites de redes sociais se apresentam como espaços
para práticas bastardas do popular, que dizem respeito à busca
dos indivíduos de minorias raciais, de classe e gênero pelo reco-
nhecimento social, através da visibilidade historicamente negada
a fim de criar uma narrativa em primeira pessoa de suas experi-
ências:

O popular dá conta e reivindica o sujeito chamado outro


constituído como denso em sua cultura, mas fraco, subjugado,
bárbaro e dominado pela cultura branca-masculina-ocidental.
O sujeito outro (o popular) resemantizado para ganhar sua
agência em e desde outros lugares culturais, históricos e narra-
tivos: suas lógicas, relatos e linguagens próprias. Isto significa
reconhecer subjetividades outras, saberes outros e uma agên-
cia outra: indígenas, afros, mulheres, LGBTIQ. O popular (ha-
bitado pelo outro) está cheio de silêncios e esquecimentos por-
que suas vozes e histórias foram excluídas dos relatos públicos
e da esfera midiática, o que constitui uma injustiça simbólica.
Daí surge “o perigo de uma só história” que se dá quando a
“mostramos a um povo como uma só coisa, várias vezes, até que
se converta nisso” e isto é possível porque o lugar de enunciação
e relato é um ato de poder de domínio ocidental, branco, mas-
culino e midiático que se atribui o lugar “de contar a história do
outro” e “fazer com que essa seja a história definitiva… (E) uma
única história”, o qual significa um ato de enunciação que
“rouba a dignidade dos povos e dificulta o reconhecimento”
(Adichie, 2010). Mas, também, se pode resistir nos relatos por-
que “tudo muda quando se conhecem diferentes fontes de re-
lato” e sobretudo se conta desde a enunciação do outro, essa do

175
dominado e excluído. Reivindica-se o político que habita no ou-
tro como experiência do “dominado” e por isso “o popular no-
meia, na América Latina contemporânea, e de maneira radical,
aquele que está fora do visível, do dizível e do enunciável” (Ala-
bárces, 2012, p. 32). (RINCÓN, 2016, p. 8-9, grifos do autor).

Fica claro, pelos exemplos apresentados, que a cultura é um


espaço de disputas de significações e de poder. O cultural é um
“efeito de práticas discriminatórias” (BHABHA, 1998, p. 166) em
escala global. Ele produz e prolifera discursos hegemônicos do-
tados de interesses de capital e de colonização, hierarquizando
culturas em nível macro e micro, a fim de estabelecer e manter a
dominação.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A disseminação de novas formas de interação mediada e de


midiatização das práticas cotidianas tem suscitado o desenvolvi-
mento de investigações que busquem contemplar esses cenários
de constantes transmutações. Nos espaços digitais de socializa-
ção emergem diferentes tipos de disputa: culturais, discursivas e
de poder. Nesse contexto, é possível verificarmos diferentes for-
mas enunciativas que merecem atenção, como os reaction vi-
deos.
Assim, diante dos objetivos postos, ratificamos a compreen-
são de que os vídeos de reação têm tido grande protagonismo en-
quanto gênero audiovisual da cultura digital, mas que, dado seu
aspecto dinâmico, há a necessidade de aprofundamentos que le-
vem a uma maior consolidação do conceito que introduzimos
aqui. Para isso, faz-se necessário ultrapassar o caráter descritivo
e lançar mão de olhares mais críticos.
Observamos que não só nas enunciações dos vídeos analisa-
dos, mas também nas interlocuções, diversas formações discur-
sivas são evocadas na construção de sentido. Os estrangeiros

176
parecem compreender o Brasil através de uma visão estereoti-
pada por características como a não civilidade, a incapacidade de
produzir “bens culturais de alto valor”, a supervalorização da se-
xualidade e a não originalidade.
Essas avaliações apresentadas nas narrativas compõem valores
que são agregados às representações empregadas por estrangeiros
ao Brasil. Na medida em que isso acontece e é outorgado pelo pú-
blico, é possível identificarmos certo grau de assujeitamento dos
sujeitos brasileiros e uma legitimação do poder de avaliador do es-
trangeiro que, geralmente, é sujeito branco, nascido em nações de-
senvolvidas e detentoras de grandes capitais e, que, historica-
mente, explorou/colonizou outros povos. Mignolo (2005) nos
alerta que a consciência dos colonizados possui duplo sentido, pois
é subalterna, necessitando, portanto, da aprovação do coloniza-
dor.
A imprescindibilidade de se investigar a construção, a disse-
minação e as implicações dessas representações e discursos na
sociedade brasileira é uma demanda que identificamos. Reco-
nhecidamente plural, a cultura brasileira nos vídeos reaction é
vislumbrada sob o prisma da comicidade, do exótico e do passível
de ser melhorado pelo Outro. Há, portanto, uma clara ligação en-
tre essa visão estereotipada e preconceituosa e as históricas rela-
ções coloniais que precisam ser aprofundadas.

177
REFERÊNCIAS

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do discurso. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 1997.

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nov. 2019.

179
 PARTE III:
O QUE FAZEM AS MÁQUINAS E COMO
PESQUISÁ-LAS? REFLEXÕES SOBRE
PLATAFORMAS E SEUS ALGORITMOS

180
 ASSIM FALAM AS PLATAFORMAS: UMA PROPOSTA DE
ANÁLISE DA CONSTITUIÇÃO DE PRÁTICAS E
COMPORTAMENTOS NOS TEXTOS DE PLATAFORMAS
DIGITAIS

WILLIAN FERNANDES ARAÚJO

RESUMO

O capítulo desenvolve uma proposta de esquema de análise


que visa mapear as formas como plataformas digitais buscam
condicionar práticas e comportamentos a partir do estudo dos
seus textos. A proposta é baseada na análise de dispositivos
textuais (ARAÚJO, 2017), um enquadramento analítico para
estudo do texto que busca descrever os atores e traduções
constituídos na composição das narrativas, mapeando objetivos,
relações e efeitos. Trata-se de uma matriz de análise constituída
a partir de contribuições dos Estudos de Ciência e Tecnologia
(ECT) e da Teoria Ator-Rede (TAR), com objetivo de sistematizar
um estudo do caráter performativo dos textos. Ao final, é
proposta uma estrutura para análise de dispositivos textuais
orientada para o estudo de plataformas digitais.

PALAVRAS-CHAVE: Análise de Dispositivos Textuais; platafor-


mas digitais; Teoria Ator-Rede; Estudos de Ciência e Tecnologia.

ABSTRACT

This chapter aims to develop an analysis scheme of texts to


map the ways in which digital platforms condition practices and
behaviors. The proposal is based on the analysis of textual de-
vices (ARAÚJO, 2017), an analytical framework for the study of

181
the text that seeks to describe the actors and translations consti-
tuted in the composition of narratives. It is a matrix of analysis
based on contributions from the Science and Technology Studies
(STS) and the Actor-Network Theory (ANT), with the aim of sys-
tematizing a study of the performative character of the texts. As
a conclusion, it is proposed a structure for textual device analysis
oriented to the study of digital platforms.

KEYWORDS: Analysis of Textual Devices; digital platforms; Ac-


tor-Network Theory; Science and Technology Studies.

INTRODUÇÃO

“Dê uma olhada e descubra tudo o que você precisa para se


inspirar, interagir e ter sucesso” (YOUTUBE, 2017, documento
online). Esta é a frase que estampa a tela de boas-vindas na Es-
cola de Criadores de Conteúdo do YouTube, página de web com
cursos voltados a quem pretende produzir conteúdo audiovisual
para a plataforma. Nesses textos106, uma série de práticas e com-
portamentos são destacados como ideais para que criadores de
conteúdo tenham sucesso dentro da plataforma. A forma como
falam as plataformas digitais por meio desses textos representa
um poderoso instrumento de constituição do que elas são e da
relação que estabelecem com outros atores relevantes como
usuários, criadores de conteúdo, desenvolvedores etc. Seja em
publicações para imprensa, em mensagens aos usuários através
de interfaces, em cursos para criadores de conteúdo, uma gama
de textos é mobilizada para constituição das plataformas, articu-
lando compreensões e racionalidades específicas para, por exem-
plo, construir cenários nos quais pareçam ser meras facilitadoras
das ações dos usuários (GILLESPIE, 2018).

106 O termo texto é usado neste capítulo em um sentido amplo, para designar não
apenas os escritos, mas também imagens e vídeos criados por plataformas para comuni-
cação com usuários, desenvolvedores, imprensa, etc.

182
Ao centralizarem boa parte do fluxo informativo global, plata-
formas digitais consolidam-se como mediadoras dos processos
midiáticos, incorporando a eles dinâmicas dirigidas por algorit-
mos e dados digitais (VAN DIJCK; POELL; WALL, 2018). Neste
cenário, plataformas representam arquiteturas digitais desenvol-
vidas para organizar a interação entre usuários a partir da siste-
mática coleção, processamento e monetização dos seus dados
(VAN DIJCK; POELL; WALL, 2018). Mais que um padrão téc-
nico específico, plataformas são um modelo sociotécnico con-
temporâneo de organização de práticas online.
Porém, a abordagem construída neste capítulo defende que é
essencial para estudar plataformas digitais reconhecer que o que
elas são e o que elas fazem não são definições decorrentes exclu-
sivamente da materialidade digital das estruturas e serviços ofe-
recidos. Tais conceitos dependem também de construções mate-
riais e discursivas que visam informar e dar sentido a práticas e
comportamentos nesses ambientes. “Plataformas digitais são,
portanto, compostas não apenas de seus arranjos materiais, mas
também, de forma inseparável, de discursos que dão sustentação
a determinadas práticas” (ARAÚJO, 2018, p. 5).
Ao mesmo tempo, a forma como práticas e comportamentos
se constituem em plataformas digitais é sempre efeito de um pro-
cesso relacional de negociação entre múltiplos atores. O que re-
presenta produzir conteúdo para o YouTube, por exemplo, não
pode ser reduzido ao que a plataforma define adequado ou ideal.
Práticas e comportamentos são inseparáveis das apropriações e
reconfigurações impostas pelos usos desses mecanismos. Assim,
estudar as produções materiais e discursivas sobre suas funcio-
nalidades oferece um espaço de observação parcial dessas dinâ-
micas. Entretanto, como sustento neste capítulo, esse pode ser
um lócus importante para mapear as lógicas performadas por
plataformas digitais.
Assim, o objetivo deste capítulo é desenvolver uma proposta
de esquema de análise capaz de contribuir com o mapeamento
de como plataformas digitais condicionam práticas e

183
comportamentos a partir dos textos que elas produzem e colocam
em circulação. Para isto, tomou-se como base a análise de dispo-
sitivos textuais (ARAÚJO, 2017), como proposta de enquadra-
mento analítico para o estudo do texto que busca descrever os
atores e traduções constituídos na composição da narrativa, ma-
peando objetivos, relações e efeitos. Trata-se de uma uma matriz
de análise constituída a partir de contribuições dos Estudos de
Ciência e Tecnologia (ECT) e da Teoria Ator-Rede, com objetivo
de sistematizar um estudo do caráter performativo dos textos. Ao
final, é proposta uma estrutura para análise de dispositivos tex-
tuais orientada para o estudo de plataformas digitais, constituida
em quatro etapas: seleção dos textos, interdefinição dos atores,
reconstrução das cadeias de mediação e elaboração do relato tex-
tual.

A ASCENSÃO DAS PLATAFORMAS DIGITAIS

Ao longo da última década, a partir de transformações ocorri-


das na estrutura da web pela centralização de grande parte dos
fluxos informacionais em sistemas proprietários (FRAGOSO,
2007), as plataformas emergem como modelo de organização do-
minante entre serviços digitais (HELMOND, 2015). Essas estru-
turas, presentes em boa parte de nossas atividades cotidianas,
não são ferramentas neutras (MILAN, 2015): elas moldam as for-
mas como realizamos essas práticas (VAN DIJCK, 2013;
GILLESPIE, 2015), promovem determinados entendimentos so-
bre outros (BEER, 2008), incentivam determinados comporta-
mentos em detrimento de outros (ARAÚJO, 2017), atuam pro-
duzindo classificações valorativas como mais relevantes, mais
populares, mais importante, de maior qualidade etc.
(GILLESPIE, 2014). Ou seja, são constructos sociotécnicos que
trazem “normas e valores específicos inscritos em suas

184
arquiteturas”107 (VAN DIJCK; POELL; WAAL, 2018, p. 3, tradu-
ção minha).
O conceito de plataforma vem sendo usado por pesquisadores
e pesquisadoras de mídias digitais para dar visibilidade ao cará-
ter pró-ativo dessas estruturas e, ao mesmo tempo, destacar sua
performatividade108 (INTRONA, 2016). Seja na forma como nos
informamos (GILLESPIE, 2014), interagimos com outros (VAN
DIJCK, 2013), mobilizamos-nos (MILAN, 2015), ou navegamos
pela web (HELMOND, 2015), plataformas são mediadores, no
sentido que a Teoria Ator-Rede dá ao termo (LATOUR, 2012),
como agentes que moldam os atos sociais, ao invés de meramente
facilitá-los (VAN DIJCK, 2013), condicionando conteúdos, práti-
cas e comportamento, por exemplo, ao metrificar as interações
entre usuários (MILAN, 2015; GROSSER, 2014). Para Gillespie
(2015, p. 2, tradução minha), reconhecer que plataformas digi-
tais “moldam as dinâmicas sociais que dependem delas nos per-
mite estabelecer conexões entre o desenho (técnico, econômico e
político) das plataformas e os contornos do discurso público que
elas mantêm”109.
Parte da resistente crença na transparência ou irrelevância
das plataformas na constituição de práticas e processos online
pode ser atribuída à contínua produção de discursos que buscam
representá-las como ferramentas neutras e eminentemente téc-
nicas (VAN DIJCK, 2013). Nas diferentes instâncias que consti-
tuem as plataformas, o foco da ação é colocado sobre os usuários,
suas relações e os conteúdos. Seja em interfaces, em funcionali-
dades específicas ou em manuais para usuários, é possível obser-
var construções materiais e discursivas que buscam enquadrar a
agência das plataformas como um elemento invisível ou insigni-
ficante diante do “contato social recompensador, do conteúdo

107 Texto original: “specific norms and values inscribed in their architectures”.
108 O conceito de performatividade é apresentado no tópico A performatividade do
texto.
109 Texto original: “shape the social dynamics that depend on them allows us to draw
connections between the design (technical, economic, and political) of platforms and the
contours of the public discourse they host”.

185
excitante, do palpável senso de comunidade”110 (GILLESPIE,
2018, documento online, tradução minha).
Boas práticas, manuais ou dicas de como melhor usar funcio-
nalidades representam inscrições materiais que enquadram cer-
tos entendimentos, por exemplo, classificando alguns comporta-
mentos ou usos como bizarros, inapropriados, indesejados etc.
Plataformas como o YouTube e o Facebook costumam produzir e
disponibilizar um significativo número de publicações online a
fim de informar e instrumentalizar o uso de seus serviços. Logo,
esses textos representam um privilegiado lócus de análise da
constituição das práticas e comportamentos em plataformas di-
gitais, possibilitando a observação de normas e de valores espe-
cíficos aí inscritos (VAN DIJCK; POELL; WAAL, 2018).
Para realizar uma análise de como plataformas digitais cons-
tituem-se por meio dos textos é necessário assumir um entendi-
mento performativo sobre a natureza dos textos na conformação
de objetos técnicos.

A PERFORMATIVIDADE DO TEXTO

De objetos simplórios a artefatos de alta complexidade, textos


são elementos centrais na constituição do que um mecanismo é
e do que ele faz, dando sentido e enquadrando ações e práticas.
Manuais, contratos, termos e instruções de uso carregam senten-
ças “que são proferidas (contínua e silenciosamente) pelos meca-
nismos para o benefício dos que são mecanizados: faça isso, faça
aquilo, comporte-se dessa maneira”111 (LATOUR, 1992, p. 157,
tradução minha). Como parte constituinte de um objeto técnico,
textos configuram-se como mediadores que estabelecem,

110 Texto original: “beneath the rewarding social contact, the exciting content, the
palpable sense of community”.
111 Texto original: “that are uttered (silently and continuously) by the mechanisms for
the benefit of those who are mechanized: do this, do that, behave this way”.

186
performam e prescrevem entendimentos específicos sobre a rea-
lidade, definindo um cenário no qual se desenvolve uma ação.
Pense, por exemplo, no feed de notícias do Facebook, espaço
onde é possível visualizar publicações de amigos e páginas. O que
leva você a compartilhar algo com suas conexões no Facebook? É
claro que você tem os seus propósitos e objetivos pessoais ao de-
cidir compartilhar um conteúdo e que outra pessoa poderá ter
motivações distintas ou contrárias às suas. Porém, ao estudar a
construção desse mecanismo a partir dos textos dirigidos pelo
Facebook aos seus usuários, é possível entrever a construção de
uma noção do que estar em visibilidade significa, adotando uma
perspectiva positiva que, gradualmente, tem se tornado uma
compreensão amplamente naturalizada entre usuários (VAN
DIJCK, 2013; ARAÚJO, 2017). Como sugere van Dijck (2013),
não é possível compreender o significado de compartilhar em
plataformas de redes sociais sem acompanhar o constante pro-
cesso de transformação da ideia de privacidade e do valor de es-
tar em visibilidade. Compartilhar “não é simplesmente algo que
‘está aí’ na sociedade e é refletido online. Em vez disso, os propri-
etários e os usuários têm negociado o significado de compartilhar
desde o início [do Facebook], em Harvard, em 2004, até a sua
estreia na Nasdaq em 2012”112 (VAN DIJCK, 2013, p. 46, tradu-
ção minha). A transformação do que estar em visibilidade e, con-
sequentemente, compartilhar significa também é resultado dos
arranjos materiais e discursivos do Facebook, dos quais os textos
são parte importante.
A construção de uma abordagem do texto como um agente po-
dutor de realidades, definido como um enquadramento perfor-
mativo (BARAD, 2003), está ancorada no cruzamento dos Estu-
dos de Ciênia e Tecnologia (ECT) e Teoria Ator-Rede. Embora
parte significativa dos esforços empíricos de pesquisa associados
à ECT e à TAR sejam de caráter etnográfico, o estudo de textos

112 Texto original: “is not simply ‘out there’ in society and reflected online. Instead,
owners and users have been negotiating the meaning of sharing from the very start of
the Harvard-based college network in 2004 up to its Nasdaq debut in 2012”.

187
tem uma trajetória consistente dentro dessas perspectivas. Como
destaca Nimmo (2011), a TAR oferece uma forma distinta de ana-
lisar textos, abrindo espaço para entendê-los como inscrições re-
lacionais incorporadas em uma ampla rede que eles ajudam a
constituir. Estudos seminais como os de Latour (1993) e Callon
(2002) observam textos como mediadores que produzem obje-
tos, constituem práticas e cristalizam entendimentos específicos
sobre a realidade.
Em relação ao termo “performatividade”113, sua definição é ba-
seada na proposta realista agencial de Barad (2003), emergente
no seio das perspectivas pós-humanistas e bem aceito nos ECT
(INTRONA, 2016; ZIEWITZ, 2012). O entendimento performa-
tivo das práticas discursivas, segundo Barad (2003), desafia o
excessivo poder atribuido à linguagem na definição do que é real,
bem como a noção do texto como representação de algo pré-exis-
tente. Portanto, a performatividade é entendida como uma pos-
tura que possibilita reconhecer o caráter produtivo dos textos
como participantes ativos no processo de constituição do que é a
realidade (BARAD, 2003).
Outro aspecto essencial desta abordagem é a busca pela que-
bra do dualismo entre o que é material e o que é discursivo. “Prá-
ticas discursivas e fenômenos materiais não estão em um relaci-
onamento de externalidade”114 (BARAD, 2003, p. 822, tradução
minha). Não há nenhuma separação a priori do que é discursivo
e do que é material, aspecto que aproxima esta perspectiva da
uma compreensão foucaultiana do discurso, como o conjunto de
relações que recursivamente produz sujeitos, objetos e conheci-
mentos, e limita o que pode ser dito (LAW, 2004). Consequente-
mente, matéria e significado são considerados como mutua-
mente articulados, pois “práticas discursivas são específicas

113 É importante enfatizar que performatividade não apresenta nenhuma relação com
o conceito de performance de Erwin Goffman. Para uma discussão detalhada, ver Law
(2004).
114 Texto original: “Discursive practices and material phenomena do not stand in a
relationship of externality to one another”.

188
(re)configurações materiais do mundo, por meio das quais são
performadas diferentemente de determinações locais de frontei-
ras, propriedades e significado”115 (BARAD, 2003, p. 820-821,
tradução minha).
Pensar o texto por uma perspectiva performativa implica re-
conhecê-lo não apenas como a fruto de determinada realidade,
mas também como agente produtor de realidades. Ou seja, é en-
tender como resultado, mas também como ponto de partida
(CALLON, 2002), como um ator que está associado a uma rede
com outros atores, mas que a expande ou a atualiza. Para isto, é
necessário girar o foco analítico e abandonar a busca por definir
se um texto distorce uma dada realidade, com a finalidade de
mapear as características das realidades performadas. Para usar
a metáfora de Haraway (1992), é mudar o foco das questões de
reflexo, para as questões de difração: é deixar de questionar se tal
enunciado reproduz a realidade e passar a mapear qual realidade
produz (BARAD, 2003). Portanto, textos “são parte das práticas
de atuar e intervir no mundo e, assim, performar uma de suas
versões – até que se torne realidade”116 (MOL; LAW, 2002, p. 19,
tradução minha).
Ao realizar esse giro do foco analítico, deixam-se de lado as
questões hermenêuticas para seguir e traçar “o trabalho de ins-
crição, tradução e mediação performado por textos.”117 (NIMMO,
2011, p. 114, tradução minha). É neste sentido que Nimmo (2011)
vai designar textos como tecnologias de mediaçãos, como inscri-
ções materiais e móveis que performam, descrevem, possibilitam
e conectam atores, práticas e conhecimentos.
Portanto, no item a seguir, passo a delinear o que venho cha-
mando de análise de dispositivos textuais (ARAÚJO, 2017),

115 Texto original: “discursive practices are specific material (re)configurings of the
world through which local determinations of boundaries, properties, and meanings are
differentially enacted”.
116 Texto original: “They are rather part of a practice of handling, intervening in, the
world and thereby of enacting one of its versions—up to bringing it into being”.
117 Texto original: “the work of inscription, translation and mediation performed by
texts”.

189
como uma proposta de enquadramento analítico que tem como
objetivo descrever o caráter performativo desses dispositivos, ob-
servando a constituição dos atores da narrativa e mapeando seus
objetivos e seus efeitos.

TEXTO COMO DISPOSITIVO: O DESENVOLVIMENTO DE


UM ENQUADRAMENTO ANALÍTICO

Pensar o texto como dispositivo é enfatizar o seu caráter per-


formativo, ressaltando seu papel como agente produtor de práti-
cas e sentidos. A proposta de entender o texto como dispositivo é
desenvolvida no trabalho de Callon (2002) em torno do conceito
de dispositivos escritos. Essa proposição é fruto de sua incursão
etnográfica nas formas de organização de diferentes empresas. A
definição de dispositivos escritos enfatiza textos impressos, como
manuais e cartilhas, buscando ressaltar suas caraterísticas per-
formativas como ferramenta de gestão. Nesse contexto, a noção
de dispositivo deriva da proposta de Deleuze (1990), que, a partir
das discussões da obra de Foucault, desenvolve um entendi-
mento bastante próximo da ideia de agenciamento. Nesse sen-
tido, entender dispositivo como agenciamento implica enfatizar
a distribuição da agência. Assim, “é apenas quando os dispositi-
vos são entendidos como agenciamentos que se torna possível
rastrear os crescentes meandros da agência.”118 (CALLON,
MILLO e MINUESA, 2007, p. 3, tradução minha).
Logo, dispositivo textual é uma noção empregada para desig-
nar os textos colocados em circulação, seja na web de modo geral,
ou em uma plataforma específica, como agentes materiais e dis-
cursivos que atuam na conformação de práticas e comportamen-
tos, performando visões particulares sobre o que são e o que fa-
zem plataformas digitais. O termo dá proeminência ao papel do

118 Texto original: “It is only when devices are understood as agencements that the
evolving intricacies of agency can be tackled”.

190
texto como mediador, que sempre é o resultado de determinado
processo, mas também estabelece agenciamentos que se esten-
dem com caráter produtivo.
A análise de dispositivos textuais, portanto, representa um en-
quadramento para o estudo do texto que busca descrever os ato-
res constituídos na composição da narrativa, mapeando seus ob-
jetivos, relações e efeitos. Embora o uso de um termo específico
busque dar certa unidade à proposta, a análise de dispositivos
textuais não representa um método novo, experimental ou origi-
nal. Ela é uma proposta de enquadramento de análise que reúne
contribuições já proeminentes no campo dos ECT, com objetivo
de sistematizar um estudo do caráter performativo dos textos.
Seu propósito é reunir essas contribuições a fim de produzir uma
proposta de análise adequada para o estudo de processos socio-
técnicos a partir dos textos, entendendo-os como agentes consti-
tuintes desses processos. Trata-se de uma proposta de enquadra-
mento analítico complementar e dependente de outras estraté-
gias metodológicas.

ELEMENTOS CONSTITUINTES DA ANÁLISE DE


DISPOSITIVOS TEXTUAIS

Como enquadramento analítico, a análise de dispositivos tex-


tuais tem como propósito mapear a forma como esses agentes
constituem o cenário para a ação a partir da sua narrativa. Ou
seja, produzir um ferramental capaz de auxiliar na descrição dos
roteiros de ação dos dispositivos, mapeando assim seus enqua-
dramentos (históricos, políticos, ideológicos). Partindo das con-
tribuições de Latour (1993) e Nimmo (2011), o foco central desta
matriz de análise é seguir a narrativa constituída em um dado
texto, acompanhando a produção dos atores aí incorporados,
mapeando seus desvios, derivações, traduções, buscando descre-
ver a rede de associações montada para fazer emergir determi-
nado enquadramento. Como destaca Latour (1993), é seguir as

191
“histórias que definem quem são os atores principais, o que acon-
tece com eles, quais são os desafios encontrados”119 (LATOUR,
1993, p. 9, tradução minha).
Essa proposta de análise baseada na descrição de ator-redes e
suas formações emerge na obra de Latour (1993) como uma
apropriação da teoria narrativa de Algirdas Julius Greimas
(BEETZ 2013), sem avançar nos meandros da linguística e se-
miótica (SCHMIDGEN, 2014). A partir das contribuições de La-
tour (1993) e Nimmo (2011), é possível eleger dois focos princi-
pais de atenção na observação dessas narrativas: interdefinição
dos atores e as cadeias de tradução. Estas duas incidências ana-
líticas representam também dois conceitos fundamentais da Te-
oria Ator-Rede: as noções de ator-rede e de tradução120.
Interdefinição dos atores representa a observação dos traços
inscritos nos dispositivos textuais para descrever os atores impli-
cados no que é narrado. Na análise, o objetivo, portanto, é traçar
como os agentes são definidos no interior dessas narrativas (por
exemplo, usuários, investidores, dados, algoritmos etc., toda a
entidade que faz algo) e como esses agentes se relacionam com
outros.
Já as cadeias de tradução remetem às sucessivas equivalências
ou transformações estabelecidas nos dispositivos, como o deslo-
camento mediado, como o “trabalho graças ao qual os atores mo-
dificam, deslocam e transladam seus vários e contraditórios in-
teresses.” (LATOUR, 2001, p. 356). Ou seja, o termo busca des-
crever os processos de composição de redes de mediação para
produção de equivalências, de transformações ou de desloca-
mentos. Latour (1994, p. 32, tradução minha) define tradução
como “o deslocamento, a variação, a invenção, a mediação, a

119 Texto original: “stories that define for us who are the main actors, what happens
to them, what trials they undergo”.
120 Para uma descrição detalhada das duas noções, ver Lemos (2013).

192
criação de uma ligação que não existia antes e que até certo
ponto, modifica dois elementos ou agentes”121.
A interdefinição dos atores e das cadeias de tradução são os
elementos centrais na descrição dos roteiros de ação dos dispo-
sitivos textuais. São duas noções que auxiliam neste processo de
decomposição, mas que, empiricamente, são inseparáveis. Por-
tanto, é preciso ter cuidado ao tomar tais categorias de observa-
ção, buscando não realizar uma abordagem essencialista, como
se fossem dois elementos totalmente estanques.
Conforme o objetivo estabelecido para o capítulo, passo no
item a seguir a propor uma sistematização do esquema de análise
desenvolvido a partir dos pressupostos que integram a análise de
dispositivos textuais.

ANÁLISE DE DISPOSITIVOS TEXTUAIS EM QUATRO


PASSOS: UMA PROPOSTA DE ESTRUTURA ANALÍTICA

Neste item, busco desenvolver uma proposta de estrutura de


análise adequada ao estudo da constituição de práticas e compor-
tamentos em plataformas digitais a partir da análise de disposi-
tivos textuais. Assim, proponho uma organização do processo de
análise a partir de quatro etapas: seleção dos textos, interdefini-
ção dos atores, reconstrução das cadeias de mediação e elabora-
ção do relato textual (Figura 1).

121 Texto original: “displacement, drift, invention, mediation, the creation of a link
that did not exist before and that to some degree modifies two elements or agents”.

193
Figura 1: Esquema ilustrativo das etapas do processo metodológico da
análise de dispositivos textuais

Fonte: Elaborado pelo autor

Conforme a Figura 1 busca evidenciar, essas etapas estão divi-


didas em três momentos, já que, como destacado anteriormente,
o processo de identificação da interdefinição dos atores e de re-
construção das cadeias de tradução conformam duas etapas in-
separáveis no processo de análise.

a) Seleção dos textos

Como é comum a qualquer proposta metodológica, sua capa-


cidade de produzir uma análise adequada aos objetivos estabele-
cidos depende da seleção dos dados a serem analisados, levando
em consideração os objetivos traçados para a pesquisa. No caso
da análise de dispositivos textuais, qualquer texto pode ser utili-
zado com o propósito de observar seu caráter performativo. En-
tretanto, ao tomar como objetivo entender como as plataformas
digitais condicionam práticas e comportamentos, torna-se mais
proveitoso observar os textos que se dirigem especificamente aos
sujeitos das plataformas digitais, sejam eles os usuários finais, os

194
criadores de conteúdo, os desenvolvedores de aplicativos, os ges-
tores de páginas/perfis etc.
De modo geral, publicações deste tipo apresentam sugestões,
dicas ou orientações para o desenvolvimento de um uso ade-
quado ou para a otimização das ações dentro desses sistemas. Es-
ses textos representam dados fundamentais para o estudo das
inscrições produzidas por plataformas digitais para normatiza-
ção de comportamentos e conteúdos em suas infraestruturas. Pá-
ginas como o News Feed FYI do Facebook122 e a Escola de Cria-
dores de Conteúdo do YouTube123 representam repositórios de
conhecimento que buscam orientar as chamadas boas práticas
nestas duas plataformas. Portanto, nesses textos é possível ob-
servar com mais clareza a construção de conceitos pelos quais
plataformas digitais definem suas funcionalidades, antecipam
usuários e normatizam as relações entre os diferentes atores im-
plicados.

b) Interdefinição dos atores

Mapear a interdefinição dos atores significa traçar como os


agentes são definidos no interior das narrativas construídas pe-
los dispositivos textuais analisados. O objetivo é mapear como
eles agem nesses roteiros e, a partir dessas ações, que relaciona-
mento estabelecem entre si: obediência, discordância, indife-
rença, etc. Para isto, é fundamental não realizar qualquer pré-de-
finição do que ou quem é um ator: basta traçar como os agentes
são definidos no interior das narrativas produzidas no disposi-
tivo analisado e qual é o resultado de suas ações.
Ao analisar um dos cursos da Escola de Criadores de Conteúdo
do YouTube (ARAÚJO, no prelo), foi possível observar a consti-
tuição do algoritmo como um agente nas narrativas sobre ser

122 Disponível em: https://newsroom.fb.com/news/category/news-feed-fyi/. Acesso


em: 02 dez. 2019.
123 Disponível em: https://creatoracademy.youtube.com/page/education?hl=pt-br.
Acesso em: 02 dez. 2019.

195
visível na plataforma. Nos textos analisados, o algoritmo é per-
formado como um agente reativo, que apenas segue o público: “O
algoritmo tem dois objetivos simples: 1) Ajudar os espectadores
a encontrar os vídeos que eles querem assistir, 2) Fazer com que
continuem assistindo o conteúdo favorito deles.” (YOUTUBE,
2017, documento online). Portanto, o que o algoritmo faz é defi-
nido nesses roteiros como uma resposta às ações dos usuários da
plataforma. Estes sim, os usuários, por meio de suas atividades
dentro da plataforma, são performados como se fossem os prin-
cipais responsáveis pelo que o sistema classifica como relevante.
“Você deve estar se perguntando: ‘O que fazer para o algoritmo
gostar dos meus vídeos?’ É simples: faça o público gostar deles.
O algoritmo segue o público.” (YOUTUBE, 2017, online).
Portanto, o algoritmo é performado como um agente unitário
e linear, como se apenas transmitisse aos criadores as escolhas
de seus públicos, buscando assim inviabilizar a racionalização
por parte dos criadores de conteúdo sobre o funcionamento do
sistema. Essa construção é reforçada, por exemplo, pelo emprego
de uma metáfora em um vídeo do curso (Figura 2), na qual o al-
goritmo é ilustrado como uma máquina de características analó-
gicas do século XX, com espaços de interação bem definidos pe-
las interfaces físicas de botões e pelos dados figurativamente re-
presentados por fitas magnéticas.

Figura 2: Ilustração do algoritmo em vídeo sobre como funcionam os


processos de pesquisa e descoberta no YouTube

196
Fonte: YouTube (2017)

Essa representação do algoritmo como um agente unificado e


reativo tem importante implicação na definição que esses dispo-
sitivos buscam construir para o que significa criar conteúdo no
YouTube. Nesses roteiros, como é possível observar ao analisar o
algoritmo enquanto ator dessa narrativa, todo o foco da ação é
colocado no usuário, subscrevendo o algoritmo como um mero
intermediário que apenas transmite aos criadores de conteúdos
os interesses de seus públicos.
Inspirado pela abordagem de Latour (1993), e tomando o es-
tudo sobre o algoritmo no YouTube como exemplo (ARAÚJO, no
prelo), é possível elaborar questões que podem ajudar a melhor
conduzir esse processo de mapeamento a definição dos atores
nas narrativas analisadas: o que o algoritmo faz? Por que ele faz
isso? Quais seus objetivos? Quem mais age? Quais atores estão
implicados pelas suas ações? Quais os efeitos da ação do algo-
ritmo e dos outros atores que figuram no roteiro? Qual a relação
entre eles? Quem é contra e quem é a favor? Quais equivalências
são estabelecidas? Como a diferença é justificada?

c) Reconstrução das cadeias de traduções

Cadeias de tradução é o termo usado por Bruno Latour (1993)


para descrever os processos de produção de equivalência, geral-
mente através de dispositivos de inscrição (SCHMIDGEN, 2014).
Trata-se do processo de mobilização de diferentes atores a fim de
consolidar uma determinada noção, valor ou conceito. A estabi-
lidade de uma noção/valor/conceito depende justamente da mo-
bilização dessas redes de agentes.
No estudo realizado sobre o Feed de Notícias do Facebook,
que analisou a constituição do mecanismo durante seus primei-
ros 10 anos (ARAÚJO, 2017), foi possível observar um grande
número de cadeias de tradução mobilizadas para a definição do
que o feed era e o que fazia ao definir o que é relevante para cada

197
usuário ou usuária da plataforma. Em muitos casos, são compos-
tas diversas cadeias de tradução que reúnem cientistas, bancos
de dados, sistemas de inteligência artificial, recrutamento de
usuários, discursos etc. Em um dos casos analisados, é observada
a constituição do conceito valorativo de conteúdo de alta quali-
dade por meio de cadeias de tradução que mobilizam práticas de
categorização e fatores estatísticos para construi-los computaci-
onalmente. Nesse caso em específico, a cadeia de tradução esta-
belecida tem como propósito igualar a ação de filtragem dos con-
teúdos do Feed de Notícias à seleção de conteúdo de alta quali-
dade. Noções valorativas como alta qualidade representam es-
paços valiosos para decomposição das traduções e observação da
racionalidade que orienta o processo. Na análise desse caso, foi
possível observar que conteúdo de alta qualidade é justificado
pelos dados que mostram um aumento das interações dentro do
Facebook. Ou seja, há na construção dessa funcionalidade a
constituição de uma cadeia de tradução que visa tornar a noção
de conteúdo de alta qualidade equivalente aos dados de aumento
do engajamento de usuários na Facebook. Portanto, a partir da
decomposição dessa cadeia de traduções é possível entrever uma
racionalidade específica orientada por dados de comportamento
dos usuários da plataforma, que busca igualar produção de enga-
jamento ao bom funcionamento do sistema.

d) Construção do relato

A partir das perspectivas que compõem o que chamo de aná-


lise de dispositivos textuais, o relato textual é a ferramenta ana-
lítica usada para mapear a interdefinição dos atores e as cadeias
de tradução. Relato textual é, portanto, a construção pela pesqui-
sadora de uma descrição escrita que visa retraçar como os dispo-
sitivos analisados “geram e ‘naturalizam’ novas formas e ordens
de causalidade e, certamente, novas formas de conhecimento

198
sobre o mundo”124 (AKRICH, 1992, p. 207, tradução minha). Tal
proposta configura-se como uma descrição dos roteiros inscritos
nesses textos, buscando tornar visível a geografia de responsabi-
lidades que atribuem a outros (humanos ou não humanos) e as
novas causalidades ou novas formas de conhecimento sobre o
mundo que decorrem desse cenário (AKRICH, 1992).
A produção de um relato textual capaz de retraçar a ação dos
dispositivos depende de uma série de aspectos a serem conside-
rados. Para Latour (2012), um bom relato textual é capaz de tecer
uma rede de mediadores que interatuam e produzem um ao ou-
tro. “A tarefa consiste em desdobrar os atores como redes de me-
diações – daí o hífen na palavra composta ‘ator-rede’” (LATOUR,
2012, p. 198). Desse modo, a produção de um relato textual visa
seguir as ações e atores inscritos nos dispositivos analisados,
acompanhando seus desvios e traduções. Para isso, é necessário
mobilizar o máximo de mediadores possível e privilegiar ações ao
invés de efeitos. Para isso, é necessário não definir a priori como
os atores são levados à ação, mas sim, sem nenhuma pressuposi-
ção, descrever a interdefinição dos dispositivos observados. É
não definir “como atores devem ser levados à ação, mas detectar
os diferentes mundos que os atores elaboram uns aos outros”
(Ibid., p. 80).
Nesse sentido, a atitude de apenas descrever produz um as-
pecto importante para a construção do relato: descrever implica
em não explicar. Isto é, não mobilizar conceitos e categorias para,
a priori, explicar, definir ou disciplinar o que é descrito. “Caso a
descrição precise de explicação, então ela é ruim” (Ibid., p. 200).
Ou seja, trata-se de não definir antes da descrição o que é um
dado fenômeno, para entendê-lo a partir de sua conformação nos
dispositivos analisados. Por exemplo, retomando o exemplo dos
conteúdos da Escola de Criadores de Conteúdo do YouTube, não
se assume antes da descrição nenhuma definição do que é um al-
goritmo. O que se faz é observar o que a noção de algoritmo passa

124 Texto original: “generate and ‘naturalize’ new forms and orders of causality and,
indeed, new forms of knowledge about the world”.

199
a significar nos dispositivos analisados. Ou seja, trata-se de “des-
crever e não disciplinar” (Ibid., p. 88, grifo do autor), observando
e mapeando o mundo performado nos roteiros analisados. Po-
rém, conceitos e categorias são fundamentais para que se estabe-
leça o debate acadêmico e, após a descrição, devem ser apropria-
dos para constituição de uma discussão consistente e plural.
Por fim, é fundamental ter em mente que esse relato textual
descritivo produzido pelo pesquisador de forma alguma deve ser
entendido e praticado como a recomposição exata de uma reali-
dade empírica. Ele também é uma mediação, ou seja, uma mobi-
lização específica sobre a realidade.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O presente capítulo desenvolveu uma proposta de esquema de


análise que visa mapear as formas como plataformas digitais
buscam condicionar práticas e comportamentos a partir do es-
tudo dos seus textos. A proposta é baseada na análise de disposi-
tivos textuais (ARAÚJO, 2017), uma matriz analítica, com base
nos estudos de ciência e tecnologia e na Teoria Ator-Rede, que
tem como propósito descrever o caráter performativo de textos,
observando a constituição de enquadramentos específicos por
meio da descrição dos atores da narrativa, do mapeamento dos
seus objetivos, relações e efeitos.
Portanto, essa abordagem metodológica pode oferecer a futu-
ras investigações uma via de pesquisa coerente com as perspec-
tivas dos STS e principalmente da TAR. Embora exista um amplo
referencial teórico e uma tradição de aproximação do ator-rede
da semiótica greimasiana (BEETZ, 2013; CALLON, 2002;
LATOUR, 1993), é possível constatar o restrito número de estu-
dos com base na TAR que apresentem construções metodológi-
cas voltadas a análise de textos. Como destaca Nimmo (2011), a
TAR oferece uma forma distinta de analisar textos, abrindo es-
paço para entendê-los como inscrições relacionais incorporadas

200
em uma ampla rede que ajudam a constituir. Portanto, ao opera-
cionalizar esses princípios metodológicos em uma forma de aná-
lise coerente pode contribuir para futuros estudos do campo da
Comunicação.
É importante ter em conta que o processo de constituição de
práticas e comportamentos em plataformas digitais é sempre um
processo relacional, no qual interatuam múltiplos atores, huma-
nos e não humanos. Logo, o estudo dos dispositivos textos das
plataformas digitais nos dá uma dimensão parcial deste pro-
cesso, que deve ser comparada com outras perspectivas, como as
percepções e práticas desenvolvidas por usuários, que, em mui-
tos casos, deflagram relações de conflito com as visões performa-
das nos textos.

201
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205
 MÁQUINAS FALANTES: PROPOSTA TEÓRICO-
METODOLÓGICA PARA PENSAR A AGÊNCIA A PARTIR
DAS ASSISTENTES PESSOAIS DIGITAIS

LUIZA CAROLINA DOS SANTOS

RESUMO

O objetivo deste trabalho é apresentar a proposta teórico-me-


todológica da tese de doutorado em andamento, que busca inves-
tigar as formas de agência de sistemas baseados em inteligência
artificial com interface de voz, a partir do caso específico das as-
sistentes pessoais virtuais (Alexa, Siri, Cortana, Google Assis-
tant). A investigação se foca na relação entre a política dos siste-
mas de Inteligência Artificial e suas características enquanto ob-
jetos sociais, especificamente as assistentes pessoais digitais, e a
interação humana. A proposta teórico-metodológica esboça um
desenho de pesquisa baseado em três dimensões de análise para
o objeto em questão: técnica, científica e social. Tal desenho tem
por objetivo pensar o entrelaçamento entre polos (especialmente
o técnico e o social) que são com frequência tratados de forma
segmentada em pesquisas envolvendo tecnologias digitais.

PALAVRAS-CHAVE: Comunicação; inteligência artificial; assis-


tentes pessoais virtuais; agência; machine learning.

ABSTRACT

This paper aims to present the theoretical-methodological


proposal of a doctoral thesis in progress, which seeks to investi-
gate artificial intelligence-based devices with voice interface and

206
understand their forms of agency. We base our investigation on
the specific case of virtual assistants (Alexa, Siri, Cortana, Google
Assistant, so on). The research focuses on the relationship be-
tween the policy of Artificial Intelligence systems and their char-
acteristics as social objects and human interaction. The theoreti-
cal-methodological proposal outlines a research design based on
three dimensions of analysis for the object in question: technical,
scientific and social. Such design aims to think the intertwining
between poles (especially the technical and the social) that are
often treated in a segmented way in research involving digital
technologies.

KEYWORDS: Communication; artificial intelligence; personal


digital assistants; agency; machine learning.

INTRODUÇÃO

O exercício imaginativo do futuro pós-virada do milênio fa-


lhou em nos fornecer uma ideia adequada da realidade que nos
aguardava: não temos carros voadores, exercícios físicos sem es-
forço ou uma empregada doméstica em forma robótica, tal como
previa o desenho animado “Os Jetsons”125. Nossas tecnologias
contemporâneas seguiram um rumo mais discreto, alterando o
tecido social de forma gradativa – e, talvez, com modos de funci-
onamento menos evidentes. Pouco a pouco, estamos dotando de
animação não seres que reconheceríamos imediatamente como
robôs, de forma figurativa humana: animamos nossos objetos em
si, sem a necessidade de um terceiro ente autônomo animado que
manipule esses objetos – são os próprios objetos que podem se
manipular. Essa não foi a narrativa prevista na ficção científica

125 Série animada de televisão criada durante a década de 60, que apresentava uma
família vivendo no contexto tecnológico do futuro.

207
tradicional, ainda que objetos dotados de vida sejam um conto –
e um pequeno medo – tão antigo quanto o tempo.
É nesse campo curioso, onde surgem objetos digitais capazes
de formas de ação autônomas, que essa investigação pretende
adentrar. São objetos pensados, planejados, desenhados, progra-
mados e desenvolvidos, posteriormente postos no mundo para
serem utilizados – de formas previstas e imprevistas. As assisten-
tes pessoais digitais, dispositivos de inteligência artificial base-
ada em linguagem natural falada, podem estar presentes em nos-
sos celulares, computadores, tablets e carros, como a Siri (da Ap-
ple) e a Cortana (da Microsoft), ou, ainda, em nossas casas, como
a Alexa (da Amazon) e o Google Home (do Google). São interfa-
ces comunicacionais baseadas na interação por voz, capazes de
executar tarefas associadas a nossas contas nestas empresas, to-
car música, realizar buscas, fazer compras, realizar transações
bancárias, ler notícias, conceder informações, entre muitas ou-
tras habilidades constantemente atualizadas. Para além da rea-
lização de tarefas, as assistentes pessoais também se configuram
como objetos com os quais dialogamos, algumas vezes sem uma
funcionalidade necessária: elas incorporam personagens, nos
respondem de formas imprevistas, engraçadas e ousadas; con-
tam histórias, piadas, cantam e riem. Os próprios diálogos esta-
belecidos propõem um modo de ocupar o mundo e de se relacio-
nar com humanos: não importa que tenhamos ouvido, “virtual
assistants have feelings too”, informa Siri.
Estas assistentes configuram nesse trabalho nosso objeto em-
pírico de investigação, a forma pela qual se torna possível a ma-
terialização de nossas inquietações. Tais objetos operam tanto
como mediadores em processos comunicacionais (ou seja, en-
quanto interface, fazendo ligações, buscas na internet etc.),
quanto como objeto de interação direta com humanos (estabele-
cendo diálogos, por exemplo). Ao mesmo tempo em que partem
de uma programação específica, com diálogos pré-estabelecidos,
também se alteram na interação com os humanos, através da co-
leta de dados que são, com o passar do tempo e das interações,

208
transformados em padrões (de comportamento, preferências, to-
nalidade da voz, etc.) – desde a perspectiva específica do ma-
chine learning. Como sistema, seus modos de funcionamento são
opacos para os usuários, mas sua constituição traz em si opera-
ções específicas, de resultados nem sempre previsíveis, sendo
composto por camadas que são tanto políticas quanto sociais. As
nuances destas questões é que são, muitas vezes, invisíveis, ou-
tras, incompreensíveis.
Essa investigação se foca na relação entre a política dos siste-
mas de Inteligência Artificial e suas características enquanto ob-
jetos sociais, especificamente as assistentes pessoais digitais, e a
interação humana, buscando compreender as possíveis decor-
rências de ordem social, cultural e política dessa intersecção. O
problema de pesquisa norteador desta investigação pode ser co-
locado da seguinte maneira: Como podemos compreender as for-
mas de agência dos sistemas de inteligência artificial baseados
em interação por linguagem natural?
O processo investigativo se baseia, por um lado, na análise das
técnicas e lógicas envolvidas no funcionamento das assistentes
pessoais virtuais e na observação e discussão dos efeitos intera-
cionais e sociais destas tecnologias. A partir desta perspectiva
teórico-metodológica nossa ideia é fazer uma aproximação das
especificidades técnicas com os usos sociais, unindo dois polos
de investigação que com frequência são analisados de forma se-
parada (por dificuldades que são tanto teóricas quanto metodo-
lógicas). Este artigo se propõe a apresentar, justificar e debater a
proposta teórico-metodológica para a tese em andamento, vis-à-
vis nosso objeto de estudo. Ressaltamos que, por se tratar de um
projeto em andamento, este artigo não visa expor resultados em-
píricos da pesquisa, restringindo-se a discussão teórico-metodo-
lógica ainda em fase de aplicação (e, portanto, correndo o risco
de ser modificada durante o processo de execução).

209
POR QUE ESTUDAR INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL A PARTIR
DA COMUNICAÇÃO?

Em 1966 surgia, nos Estados Unidos, a primeira robô de con-


versação – ELIZA126. Criada por Joseph Weizenbaum, professor
de ciência da computação do MIT, ELIZA simulava o papel de
uma terapeuta Rogeriana na interação com usuários que assu-
miam o papel de pacientes. Reza a lenda que, entre leigos e estu-
dantes de computação, muitos usuários trataram a psicotera-
peuta artificial como uma profissional com a qual pudessem con-
versar abertamente sobre questões pessoais – e que a assistente
pessoal do pesquisador pediu para que ele se retirasse da sala
para que ela pudesse dialogar com a ELIZA com mais privacidade
(TURKLE, 2005). Mais tarde, tal episódio ficou conhecido como
“Efeito ELIZA”, termo utilizado para se referir ao efeito social
deste dispositivo (BASSET, 2018).
A entusiasmada recepção dos usuários e da própria comuni-
dade acadêmica levou o pesquisador a questionar sua própria
carreira e se dedicar a desvelar a opacidade dos objetos digitais.
Como resposta ao “Efeito ELIZA”, Weizenbaum (1966) publica
um artigo que visava explicar o caráter técnico do programa, na
expectativa de que esta explicação pudesse dissolver o deslum-
bramento da comunidade:

Costuma-se dizer que explicar algo é o mesmo que minimi-


zar algo. Essa máxima não tão verdadeira em nenhum outro
âmbito quanto na programação heurística e na inteligência ar-
tificial. Pois nesses reinos as máquinas são feitas para se com-
portar de formas maravilhosas, suficientes, muitas vezes, para
deslumbrar até o observador mais experiente. Mas uma vez que
um programa em particular é desmascarado, uma vez que seu
funcionamento interno é explicado em linguagem suficiente-
mente clara para introduzir a compreensão, sua mágica

126 O caso da ELIZA será tratado com maior profundidade na tese em questão, por
ora, resumiremos aqui a fim de deixar clara nossa argumentação.

210
desmorona; É revelado como uma mera coleção de procedi-
mentos, cada um bastante compreensível 127 (WEIZENBAUM,
1966, p. 36).

Nessa passagem, localizada no artigo no qual descreve o fun-


cionamento de ELIZA, Weizenbaum (1966) aponta para a impor-
tância da compreensão do modo como um sistema funciona para
que seja possível compreender também sua forma interacional,
seu modo de agir no mundo. O esforço do pesquisador é louvável
por pontuar que é no desconhecimento e na não-compreensão
que a relação de cunho ‘mágico’ se estabelece – e que tal relação
é perigosa quando tratamos de Inteligência Artificial. Além disso,
o autor é pioneiro (com mais de cinco décadas de antecipação)
em denunciar e combater um certo hype (ou, em bom português:
uma empolgação exagerada) em torno dos feitos e das potencia-
lidade dos sistemas de inteligência artificial, fenômeno obser-
vado atualmente – e, de certa forma, similar ao contexto da dé-
cada de 60 –, quando os avanços da área, ainda que interessan-
tes, são frequentemente exacerbados por uma corrida em busca
de resultados positivos. Falar de singularidade ou de sistemas
efetivos de inteligência artificial geral é tão irresponsável e irrea-
lista hoje quanto em 1960 – entretanto, isso não nos exime de
detectar e discutir formas autônomas de sistemas de inteligência
artificial, como algumas aplicações em machine learning, por
exemplo, ainda que não seja uma autonomia similar à humana
(FAZI, 2018). A separação e distinção entre as formas de inteli-
gência, ou de autonomia, produzidas pelo homem e pela má-
quina é, na verdade, crucial para que o campo crítico não se deixe
levar nem por uma ilusão de uma máquina mais-que-humana

127 No original: “It is said that to explain is to explain away. This maxim is nowhere
so well fulfilled as in the area of computer programming, especially in what is called
heuristic programming and artificial intelligence. For in those realms machines are
made to behave in wondrous ways, often sufficient to dazzle even the most experienced
observer. But once a particular program is unmasked, once its inner working are ex-
plained in language sufficiently plain to introduce understanding, its magic crumbles
away; it stands revealed as a mere collection of procedures, each quite comprehensible”.

211
(BRAGA, 2019), nem se esquive de investigar formas preocupan-
temente autônomas e imprevisíveis que emergem atualmente no
âmbito da IA.
Também defendemos, tanto quanto o autor, que a compreen-
são dos modos de operação de um sistema é essencial nas pes-
quisas que envolvem tecnologias digitais (ainda que tal domínio
possa ser mais complicado quando falamos do estudo desses dis-
positivos a partir das ciências humanas e sociais). A descrição do
modo de operação, entretanto, não é suficiente para que possa-
mos compreender os efeitos sociais desses sistemas, uma vez que
tal questão não depende exclusivamente de seus atributos técni-
cos, mas da dinâmica estabelecida na aproximação de técnicas
específicas de desenvolvimentos tecnológicos com padrões e
questões socioculturais. Ou seja, explicar como ELIZA (ou qual-
quer outra tecnologia de inteligência artificial) funciona, não ex-
plica o ‘Efeito ELIZA’. O ‘Efeito ELIZA’ pode ser pensado como a
agência deste programa e pode apenas ser explicado se levarmos
em conta os aspectos sociais conjuntamente com os aspectos téc-
nicos. Para além de compreender os modos de funcionamento de
um objeto de inteligência artificial, importa compreender a
forma como esses operam (e são operados) em uma dinâmica so-
cial.
Os objetos digitais possuem um modo de existência (HUY,
2015) que lhes é particular, distinto de outras mídias por ques-
tões inicialmente relacionadas ao modo de funcionamento e à
materialidade. Se hoje nos comunicamos com objetos digitais ba-
seados em inteligência artificial, que possuem tanto potenciali-
dades quanto limitações de ordem técnica, a compreensão desses
modos de funcionamento é elemento relevante para as pesquisas
na área das ciências humanas e sociais que envolvam tais objetos.
Em cada um dos processos e protocolos necessários para o fun-
cionamento das assistentes pessoais digitais, procedimentos e
modos de funcionamento opacos ao usuário operam direciona-
mentos associados com aquilo que podemos entender como mi-
crodecisões (SPRENGER, 2015). Não apenas as microdecisões

212
automatizadas de cada sistema, mas também as técnicas algorít-
micas (RIEDER, 2018) que compõem um dado sistema e formam
um determinado horizonte epistemológico e de formas de inter-
venção, são relevantes para a compreensão das imbricações ine-
vitáveis entre técnica e cultura no contexto social contemporâ-
neo.
Para a comunicação, o campo da inteligência artificial repre-
senta um entrelaçamento interessante através, principalmente,
dos robôs de conversação, dos quais derivam as assistentes pes-
soais digitais. Esse entrelaçamento entre comunicação e inteli-
gência artificial está posto desde o princípio do campo
(GUNKEL, 2012; 2017), quando Alan Turing associa a possibili-
dade de existência de uma máquina inteligente à simulação do
comportamento humano, a ser avaliada através do que ele deno-
mina o jogo da imitação (TURING, 1950), cuja questão crucial
para a comunicação está no fato de que tal teste deve se dar a
partir da interação conversacional entre um juiz, um agente hu-
mano e um agente de Inteligência Artificial, pela avaliação das
habilidade comunicacionais dos concorrentes. O que o jogo da
imitação avalia, em termos gerais, são as habilidades comunica-
cionais de uma Inteligência Artificial, sempre de uma forma an-
tropomórfica (ou seja, quanto mais similar à comunicação hu-
mana, melhor). A esse modo de pensar e programar uma Inteli-
gência Artificial, a partir de uma comparação com o humano, da-
mos o nome de Paradigma Simulativo (FAZI, 2018) – e podemos
afirmar que a Comunicação é parte constitutiva deste paradigma.
Os avanços na área da Inteligência Artificial (WALSH, 2015) e
a capacidade de tornar parte desses avanços em produtos lucra-
tivos, traz uma preocupação crescente com as posições ocupadas
(ou que podem vir a ser ocupadas) por objetos de inteligência ar-
tificial no âmbito social. A preocupação com questões relaciona-
das à ética e responsabilização podem ser verificadas a partir de
propostas legislativas sobre o tema que pipocam desde 2017 em

213
diversos países do norte global128. Não é apenas no âmbito da
ética, entretanto, que estes objetos se mostram relevantes para
as ciências humanas e sociais, conforme argumentamos ao longo
deste trabalho.
Que os artefatos baseados em Inteligência Artificial sejam
tanto produzidos quanto legislados e pensados eticamente a par-
tir do norte global, mas que seu consumo seja feito de forma ir-
regularmente distribuída no mundo todo, coloca outra questão
para este trabalho: se faz importante um estudo não apenas das
formas de uso, mas dos vieses e percepções de países do sul glo-
bal, que consomem sistemas de IA desenvolvidos em contextos
internacionais. Se a corrida pela Inteligência Artificial é uma cor-
rida de caráter geopolítico, também o é a corrida pelo estabeleci-
mento de seus parâmetros éticos e legais, gerando uma determi-
nação nos países que não lideram esta corrida não apenas dos
dispositivos a serem consumidos, mas da própria forma como se
pode produzir e consumir, que não necessariamente corresponde
a anseios universais (ou, explicando melhor, não é possível exis-
tir universalidade sobre esses conceitos).
Com tudo isso queremos dizer: as questões que os processos
de automação e o desenvolvimento de inteligência artificial colo-
cam para os países do norte global, são distintas daquelas que
colocam para os países do sul, onde se entrecruzam com questões
locais, como desigualdade social, desenvolvimento econômico,
alocação de mão-de-obra, desemprego, raça e gênero, seu pró-
prio lugar em uma economia global, entre outros. Um exemplo
disto, talvez, seja a discussão em torno dos processos de automa-
ção de atividades de trabalho humano e da elaboração de uma

128 Tais como o relatório para regulação da criação e uso de robôs e inteligência artificial
europeu (2017), o Tratado de Toronto (2018) e o General Data Protection Regulation (2018).
Não nos passa desapercebida a dinâmica geopolítica intrínseca nesse processo, onde não ape-
nas o norte global é responsável pela produção dos dispositivos de Inteligência Artificial, mas
também pelos parâmetros éticos e legais de seu uso e produção.

214
renda básica universal129: a) primeiro, a forma como a automação
de atividades econômicas afeta cada país diz respeito também a
um desenho de divisão mundial do trabalho; b) a competição en-
tre produções altamente automatizadas e produções dependen-
tes de mão-de-obra humana trazem um custo de investimento
alto, mas uma possibilidade de lucro e competição altas; c) em
um país com dilemas sociais como o Brasil, falar de uma renda
básica universal em um contexto de automação dos processos
produtivos soa quase absurdo. Poderíamos seguir no debate e
exemplificação, entretanto, essa questão serve apenas para pon-
tuar a importância de compreender a circulação, o uso e o imagi-
nário brasileiro em torno de sistemas de IA, assim como pontuar
uma questão inerente a este trabalho: enquanto tentamos fazer
uma aproximação entre as técnicas e lógicas das assistentes pes-
soais (produzidas, ainda que com versões em língua portuguesa,
em um cenário internacional) e os usos e percepções sociais (no
Brasil, com usuários que nasceram e se desenvolveram aqui), as
dinâmicas entre norte e sul global estarão sempre presentes
como pano de fundo.
Considerando nosso objeto empírico específico, as assistentes
pessoais virtuais, em 2017 uma pesquisa de mercado realizada
pela agencia Ovum130, dos Estados Unidos, estimou que a partir
de 2021 existirão mais assistentes pessoais digitais como a Alexa
do que humanos no planeta. Esse tipo de dispositivo também
vem sendo utilizado como tecnologia assistiva para usuários com
deficiência visual131, como ferramenta de facilitação da socializa-
ção de crianças autistas132, e, como nos mostram resultados

129 Detalhes sobre a proposta aqui: https://www1.folha.uol.com.br/ilustris-


sima/2018/02/por-causa-de-robos-ideia-de-renda-basica-universal-ganha-mais-adep-
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130 GREEN, Penelope. Alexa, where have you been all my life? New York Times.
Publicado em julho de 2017. Disponível em:
https://www.nytimes.com/2017/07/11/style/alexa-amazon-echo.html. Acesso em: 10 de
jul. 2019.
131 Idem.
132 CHIN, Louie. Para Siri, com amor. Zero Hora. Publicado em 28 de outubro de
2014. Disponível em:

215
preliminares desta pesquisa, como interface de acesso para cri-
anças que ainda não sabem ler e escrever e adultos analfabetos
(para fazer buscas na internet, por exemplo, ou encontrar vídeos
no Youtube) e para facilitar tarefas cotidianas de deficientes físi-
cos. As formas variadas de utilização das assistentes pessoais
apontam para um cenário comunicacional contemporâneo cada
vez mais complexo e gerando a necessidade de se pensar em pro-
fundidade as formas interacionais desses sistemas no cotidiano
social.

INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL: UM IMBRICAMENTO DE


QUESTÕES TÉCNICAS, CIENTÍFICAS E SOCIAIS

Para o desenvolvimento deste trabalho, partimos de pressu-


postos teóricos bem delimitados, dos quais iremos expor breve-
mente aqui apenas aqueles que consideramos centrais para a dis-
cussão da pertinência e aplicabilidade deste projeto de pesquisa
no campo da Comunicação.
Podemos sistematizar nossa base teórica da seguinte forma:
a) objetos digitais com base em inteligência artificial interagem
em nosso tecido social de formas cada vez mais cotidianas
(BASSET, 2018), gerando um imbricamento entre as técnicas das
tecnologias e as práticas sociais (RIEDER, 2018); b) a forma de
funcionamento e a materialidade de nossos objetos digitais com-
põem formas de sentido não-hermenêuticas (GUMBRECHT,
2010; KITTLER, 2017); c) objetos digitais baseados em Inteligên-
cia Artificial geram efeitos materiais no mundo (FAZI e PARISI,
2014), através de seus modo de funcionamento (SPRENGER,
2015; KITTLER, 2017) e de interação com humanos (TURKLE,
2005); d) explicar como um objeto digital funciona
(WEIZENBAUM, 1966) não desvenda de forma completa o seu

https://gauchazh.clicrbs.com.br/saude/vida/noticia/2014/10/Como-Siri-assistente-vir-
tual-da-Apple-se-tornou-a-melhor-amiga-de-uma-crianca-autista-4630628.html.
Acesso em: 15 de jul. 2019.

216
efeito (ou sua agência); e) a existência de uma fenda teórica entre
os desenvolvedores das tecnologias digitais e os cientistas sociais
dificulta uma abordagem transdisciplinar de compreensão des-
tes (RIEDER, 2018); f) os aparatos técnicos baseados em inteli-
gência artificial são objetos de investigação profícua para o
campo da comunicação (GUNKEL, 2012; 2017); g) a Inteligência
Artificial pode ser pensada fora de um paradigma simulativo, não
atrelada à características humanas (FAZI, 2018); h) as microde-
cisões que envolvem estes objetos digitais (SPRENGER, 2015),
daquelas que surgem de seus modos de programação e funciona-
mento do sistema até aquelas ligadas à construção de um objeto-
personagem dotado de Inteligência Artificial, possuem desdo-
bramentos sociais e políticos (SWEENEY, 2013; WALSH, 2015).
Partindo destas noções, estabelecemos três eixos principais de
análise para este trabalho, que nos permitisse olhar para nosso
objeto de pesquisa a partir de uma ideia de: a) objeto técnico; b)
objeto antropomórfico; e c) objeto interacional. Cada um destes
eixos, representa, portanto, tanto um conjunto teórico de análise
quanto movimentos metodológicos específicos em torno de
nosso objeto de pesquisa, na tentativa de compreender as assis-
tentes pessoais virtuais no entrelaçamento entre estes três âmbi-
tos.
O eixo de investigação técnica diz respeito ao modo de exis-
tência de nosso objeto digital, o que implica, portanto, em des-
trinchar as técnicas e lógicas de tal dispositivo. Para tanto, parti-
mos da perspectiva teórica das Materialidades da Comunicação,
compreendendo a inteligência artificial como um objeto digital,
marcado por características de seu próprio sistema e modo de
funcionamento. Consideramos quatro elementos básicos para o
funcionamento desse sistema, que são centrais para a análise da
ação material dos objetos de inteligência artificial no cotidiano, a
serem discutidos: a) hardware; b) software; c) algoritmo; d)
banco de dados. A partir dos trabalhos de autores como F. Kittler
(1990; 1999; 2006; 2017), F. Sprenger (2015; 2016), W. Chun
(2004; 2008), L. Manovich (2001; 2013), P. Dourish (2017) e B.

217
Rieder (2018), entre outros, buscamos analisar o objeto digital a
partir dos elementos que caracterizam a sua medialidade e, por
tanto, impactam nos processos comunicacionais decorrentes:
uma visão sobre os componentes do digital e suas implicações.
Em termos metodológicos, essa perspectiva se associa a uma
etapa de compreensão das lógicas e técnicas do dispositivo em
questão. Uma vez que, por questões que são tanto proprietárias
(as tecnologias são patenteadas e, portanto, seu componente al-
gorítmico é fechado) quanto de impossibilidade técnica (a análise
algorítmica seria inviável – e potencialmente infrutífera – dada a
complexidade das programações), optamos por tentar compre-
ender as lógicas e técnicas (RIEDER, 2018) que guiam o funcio-
namento das assistentes pessoais virtuais a partir de uma pes-
quisa de cunho teórico. A partir disso, surgem novos conceitos-
chave que serão detalhados na seção metodológica. Ainda, tenta-
mos perceber e analisar traços destas técnicas através da própria
interação com a interface de voz dos dispositivos, em uma ter-
ceira etapa de nossa metodologia.
O segundo eixo se foca nos principais conceitos e desenvolvi-
mentos do campo da Inteligência Artificial. Propomos aqui que,
desde seu início, o âmbito da IA está atrelado a uma ideia antro-
pomórfica baseada no pensamento e modos de ação humanos e
que existe uma ligação entre a Comunicação e a IA a partir da
proposta de uma avaliação conversacional dos sistemas autôno-
mos pela proposta do Jogo da Imitação. Posteriormente iremos
propor a saída do paradigma simulativo da IA e a compreensão
da autonomia computacional como uma modo de produção
onto-epistemológico distinto do humano (FAZI, 2018), mape-
ando questões éticas que emergem a partir disso.
Os autores que sustentam as discussões deste eixo são autores
do campo da ciência da computação, tais como A. Turing (1950),
J. Weizenbaum (1966) e S. Hanard (2008), pensados a partir de
um viés crítico; autores da crítica clássica à IA (também conside-
rados por nós como antropomórficos, por centrarem suas críticas
na incapacidade da máquina de ser como um humano), como

218
Searle (1960) e Dreyfus (1992); e autores do âmbito da filosofia
e das ciências sociais, como B. Fazi (2018) e D. Gunkel (2012;
2017). Essa linha de análise se sobrepõe, em alguns aspectos,
com a análise do eixo técnico, uma vez que, aqui também, carac-
terísticas técnicas do sistema são importantes, porém são pensa-
das essencialmente dentro dos desenvolvimentos de Inteligência
Artificial, funcionando, parcialmente, como elemento que auxilia
na ligação entre o eixo técnico e o eixo de objeto interacional.
No que concerne aos passos metodológicos, este segundo eixo
será composto por pesquisa documental e análise da interação da
própria pesquisadora com as assistentes pessoais virtuais, guia-
das por conceitos-chave que emergem de uma extensa pesquisa
de cunho bibliográfico sobre o próprio campo da IA. Além disso,
entrevistas em profundidade com usuários devem abordar a per-
cepção do sujeito em relação aos aspectos antropomórficos das
assistentes.
O terceiro eixo procura analisar as assistentes pessoais virtu-
ais a partir daquilo que optamos por chamar de objetos interaci-
onais: objetos digitais baseados em inteligência artificial que
propõe um modo de interação comunicacional entre ser humano
e objeto, nesse caso, através da fala. Esse conceito surge do des-
locamento da noção de objeto relacional proposto por Sherry
Turkle (2005; 2007). A partir disso, iremos explorar as confor-
mações desses objetos, pensados como personagens, por serem
dotados de uma personalidade específica que possui efeitos co-
municacionais nas interações com os humanos.
Este eixo nos permite explorar algumas intersecções desses
aparatos na vida social humana e pensar uma expansão do con-
ceito de microdecisões (SPRENGER, 2015) utilizado no eixo téc-
nico, compreendendo outra ordem de decisões que auxiliam na
composição do objeto e que podem adquirir dimensões sociais e
políticas quando naturalizadas. Nesse sentido, o antropomor-
fismo é uma das camadas utilizadas na constituição desses obje-
tos, porém outras escolhas como qual será a voz utilizada naquele
objeto, que tipo de respostas irá fornecer em determinadas

219
situações, qual será o gênero atribuído ao seu nome e como isso
se relaciona com a função que irá exercer também são microde-
cisões que marcam o modo como estes objetos irão habitar a so-
ciedade, gerando modos de interação específicos e preocupações
com questões éticas.
Nesta camada, além de pensar a inteligência artificial en-
quanto objeto de interação no tecido social, propomos uma lei-
tura com enfoque feminista das tecnologias computacionais. Os
autores centrais deste eixo são, em sua maioria, do âmbito das
ciências sociais, tais como B. Latour (1992; 2012), S. Freud
(1919), S. Federici (2017), S. Sharma (2017), C. Basset (2018), D
Haraway (1988; 1991) e Wajcamn (1991; 2004). Os passos meto-
dológicos mais marcantes deste eixo são o formulário quantita-
tivo e as entrevistas em profundidade com usuários, somados a
etapa de análise documental.
Essas três camadas que utilizamos para pensar nosso objeto
se sobrepõem e entrecruzam em momento distintos, uma vez que
a separação completa do objeto de análise é inviável por caracte-
rísticas inerentes ao mesmo. Também poderíamos, de forma não
tão distinta, renomear estas camadas a partir da seguinte dire-
triz: pensar uma camada técnica (como os objetos são programa-
dos e de que forma funcionam – e as implicações de tais funcio-
nalidades), uma camada científica (que diz respeito ao âmbito da
IA, da qual o direcionamento antropomórfico deriva) e uma ca-
mada social (na qual emergem aspectos sociais embutidos nestas
tecnologias, assim como formas de relação e interação entre pes-
soas e estes dispositivos – ou seja, uma camada que pensa o so-
cial na tecnologia e a tecnologia no social). As três camadas – téc-
nica, científica e social – dizem respeito tanto às condições de
emergência de determinado objeto quanto a sua própria circula-
ção no tecido social. Ou seja, estas três camadas são tanto um
emaranhado de relações complexas que fazem com que um ob-
jeto emerja de determinada maneira quanto vão sendo ressigni-
ficadas ao atuarem no mundo.

220
Enquanto esse cruzamento representa um desafio metodoló-
gico, também acreditamos que é justamente no potencial de en-
trecruzamento analítico entre estas camadas que reside o poten-
cial de compreensão do objeto de pesquisa. Não apenas tal dese-
nho nos permite um olhar múltiplo sobre nosso próprio objeto,
como também é objetivo desta proposta teórico-metodológica fa-
zer emergir uma teoria da agência para esses dispositivos que
seja capaz de integrar os âmbitos técnicos, científicos e sociais de
nossas tecnologias. Assim, ao mesmo tempo em que aspectos
teóricos são discutidos ao longo da tese, de correntes diversas,
vis-à-vis nosso objeto empírico, nossa ideia é ir além dessas teo-
rias no desenvolvimento deste desenho teórico-metodológico.
Vale ressaltar que, embora os passos específicos da pesquisa, em
termos de método, sejam um desenho particular que nasce do
cruzamento de nosso objeto empírico com o problema de pes-
quisa, acreditamos que a orientação teórico-metodológica de
pensar um objeto digital a partir de camadas de construção e de
circulação de sentido podem ser aplicadas de formas diversas em
outros objetos empíricos, resultando em descobertas tanto com-
plexas quanto interessantes.

DAS ESCOLHAS METODOLÓGICAS: OPERACIONA-


LIZANDO A PESQUISA

A construção de um desenho de pesquisa capaz de capturar


um objeto do tempo presente, em constante transformação,
tanto técnica quanto social, representa um desafio para o pesqui-
sador. Para a construção de nossa proposta teórica-metodoló-
gica, que visa dar conta de um objeto empírico e de uma questão
específica (porém é possível que tal desenho possa servir como
base para outras pesquisas), adotamos a posição epistêmica de
Giorgio Agamben (2009), na tentativa de desenvolver uma rela-
ção de contemporaneidade com nosso objeto. Compreendemos o
contemporâneo como aquele que é capaz de dividir o seu tempo

221
e relacioná-lo com outros tempos, para, por fim “ler nele de modo
inédito a história” (AGAMBEN, 2009, p. 73).
Considerando que a pesquisa de cunho teórico se relaciona
com a criação de quadros teóricos de referência, com perguntas
que buscam a explicação de um determinado fenômeno da reali-
dade, e que a pesquisa empírica se volta para a codificação da-
quilo que pode ser observado na realidade social, a pesquisa aqui
proposta deve se desenhar como um processo de diálogo entre
essas duas fases, em constante interrogação uma com a outra.
Compreendemos que o processo de descrição passa também, no
caso desta pesquisa, por um movimento de explicação, ou seja,
não apenas “constatar o que existe” (DEMO, 2009, p. 11), a partir
de uma perspectiva empírica, mas também “desvendar por que
existe” (Ibidem.). O problema de pesquisa que propomos, se per-
gunta tanto por qual é a forma da agência, quanto por explicações
possíveis para o fenômeno observado.
Conforme explicitado anteriormente, nossa pesquisa se baseia
em três eixos analíticos que possuem a função principal de dire-
cionamento, sendo estes: a) análise enquanto objeto técnico; b)
análise enquanto objeto antropomórfico; c) análise enquanto ob-
jeto interacional. Para tanto, compreendemos as assistentes pes-
soais digitais como artefatos culturais (FRAGOSO, AMARAL e
RECUERO, 2012), integradas ao cotidiano comunicacional e
com potencial interacional distinto, a depender do contexto es-
pecífico no qual são utilizadas. O desenho metodológico que ire-
mos propor, portanto, tenta dar conta das especificidades de
cada um dos eixos desenhados, sem deixar de pensar na sua ine-
rente interconexão – uma vez que é justamente o entrelaçamento
entre técnicas tecnológicas e práticas culturais que nos interessa
nesta investigação.
O primeiro movimento desta pesquisa é, portanto, a investi-
gação teórica (DEMO, 2009) em áreas de interesse, principal-
mente da Ciência da Computação, com foco na Inteligência Arti-
ficial, mas também no âmbito do Design e das Ciências Sociais.
São quatro os elementos chave dessa pesquisa bibliográfica a

222
partir da Ciência da Computação, na qual buscamos refinar o que
compreendemos como técnicas e lógicas dos sistemas em ques-
tão: 1) as técnicas algorítmicas específicas envolvidas nos desen-
volvimentos das assistentes pessoais virtuais; 2) a abordagem
das redes neurais profundas; 3) a técnica do machine learning;
4) o reconhecimento de linguagem natural. Esse primeiro con-
junto de palavras-chave, que auxilia a compreender como esses
dispositivos são programados e pensados para agir no mundo,
compõe o que entendemos pelo eixo técnico de pesquisa. Estes
conceitos-chave devem funcionar como norteadores no sentido
de compreender as técnicas e lógicas envolvidas no objeto em in-
vestigação e suas características sociais, que deverão, posterior-
mente, ser cruzadas com os dados obtidos durante a pesquisa
empírica.
O maior entrave no desenvolvimento desta pesquisa (e, por
consequência, da nossa proposta teórico-metodológica) reside já
nestes conceitos-chave iniciantes. A primeira dificuldade se ori-
gina pela formação acadêmica: como dar conta de elementos e
lógicas de funcionamento tão distintos do conjunto de habilida-
des que aprendemos em uma formação no âmbito das ciências
sociais aplicadas? A segunda, diz respeito ao método: como en-
contrar as marcas das programações técnicas nas formas intera-
cionais socialmente estabelecidas com esses dispositivos? A pri-
meira questão, respondemos com uma tentativa de apropriação
de termos de uma disciplina distinta, a ciência da computação,
através de leituras, aulas, eventos acadêmicos e participação em
equipes multidisciplinares. Já a segunda, tentamos responder na
forma do desenho metodológico aqui exposto, a partir da inclu-
são de duas etapas em particular, expostas na sequência: a) a
auto-observação da interação com esses sistemas e b) entrevistas
em profundidade com usuários.
Um segundo conjunto, a partir do Design e das Ciências Soci-
ais, traz os conceitos-chave, também investigados: 1) interface e
2) antropomorfismo (relacionados ao segundo eixo, de cunho an-
tropomórfico); 3) voz; e 4) gênero/personalidade (integrados ao

223
conceito de objeto interacional, nosso terceiro eixo). A totalidade
destes conceitos-chave também diz sobre o eixo norteador deste
trabalho na tentativa de compreender as formas de agência das
assistentes pessoais virtuais e guiam, de uma forma ou de outra,
os demais passos metodológicos. Vale ressaltar que, para chegar-
mos ao refinamento destes conceitos como sendo aqueles que
mais nos interessam, passamos por uma extensa pesquisa bibli-
ográfica, sendo somada aos passos seguintes de pesquisa docu-
mental e auto-observação. Com isso quero dizer que, estes con-
ceitos apenas foram estabelecidos da forma como apresentados
aqui durante o andamento das duas etapas seguintes metodoló-
gicas, na qual já avançamos. Ou seja, a pesquisa é um diálogo en-
tre suas etapas metodológicas, quando a execução de um deter-
minado passo impacta tanto os passos seguintes quanto seus an-
tecessores.
Após o aprofundamento dos conceitos propostos, a pesquisa
avança para a análise documental focada nas assistentes pessoais
virtuais e no material já divulgado e trabalhado em relação a este
objeto, principalmente na mídia especializada em tecnologia e
em revistas científicas. Tal pesquisa nos fornece subsídios inte-
ressantes, a partir de casos específicos, que utilizamos como ma-
terial para o entrecruzamento das técnicas com os usos sociais.
Dentre os documentos analisados até o momento, existem subsí-
dios interessantes para pensar não apenas como as pessoas se re-
lacionam com a presença e utilização destes dispositivos (como,
por exemplo, conseguimos observar em colunas e comentários
principalmente relacionados ao uso da Alexa e da Siri), mas tam-
bém quais são os medos, anseios e profecias socialmente propa-
gados em relação a este tipo de dispositivo através da circulação
midiática (de cunho ético ou profissional, por exemplo).
O terceiro passo consiste na auto-observação da utilização dos
sistemas propostos, nomeadamente: Alexa (Amazon), Cortana
(Microsoft) e Siri (Apple). As auto-observações são registradas
com mecanismos utilizados na etnografia para documentação

224
das interações no campo (GEERTZ, 1978)133, a partir de anota-
ções sistematizadas das interações e registro de diálogos que for-
necem insights interessantes. Além disso, o dispositivo da Ama-
zon, a Alexa, mantém um log de atividades realizadas no aplica-
tivo utilizado para registrar e sincronizar as contas e dados do
usuário com a assistente pessoal, o que facilitou o processo de
registro das interações. É importante ressaltar que, ainda que os
quatro dispositivos tenham sido utilizados durante o período da
auto-observação, as assistentes Siri e Alexa foram utilizadas de
forma mais extensiva. Aqui, nos interessa perceber, através dos
diálogos, as lógicas e técnicas que mapeamos enquanto conceitos
teóricos na construção destes dispositivos: ou seja, o quanto a in-
terface deixa perceber seu modo de funcionamento. Fica evi-
dente, por exemplo, a construção destas assistentes enquanto um
tipo de personagem, no sentido de construção de uma personali-
dade coesa que elas exprimem em suas interações, através de fa-
las específicas e formas de interação. Que o tipo de personagem
construído seja caracterizado como feminino, não apenas através
da voz, mas também de estereótipos de diálogo, ação e reação,
compõem mais uma camada de complexidade.
Após a auto-observação, traçamos pontos específicos intera-
cionais, para o desenvolvimento de perguntas de cunho quanti-
tativo para um formulário aplicado no formato on-line a partir
da rede de contatos da própria pesquisadora, buscando expandir
para contatos dos contatos. A partir de indicações e da manifes-
tação de respondentes do formulário, alguns participantes foram
selecionados para entrevistas em profundidade sobre seus usos e
percepções das assistentes pessoais virtuais. Demos prioridade
para usuários com mais anos ou frequência de uso, uma vez que
estes poderiam trazer contribuições mais interessantes para a
pesquisa. Ainda que as etapas não sejam estritamente lineares,
ou seja, elas não ocorrem uma após a outra, elas dialogam entre

133 Essas técnicas também são frequentemente utilizadas nas adaptações do método
etnográfico para a internet (HINE, 2000; BRAGA, 2006; KOZINETS, 2007; FRAGOSO;
AMARAL; RECUERO, 2012);

225
si. Após o andamento considerável das etapas de investigação
teórica, investigação documental e auto-observação, foi possível
delinear seis elementos-chave para análise desses dispositivos, a
partir da lógica dos três eixos já mencionados. Estes elementos
são aqueles que, ao longo desta pesquisa, compreendemos como
sendo centrais na constituição da agência das assistentes pesso-
ais virtuais e que passam, a partir daí, a nortear a discussão da
tese e possibilitam a estruturação do formulário e da entrevista
em profundidade.
A partir do eixo técnico, os quatro termos anteriormente cita-
dos como elementos de referência para a pesquisa bibliográfica
na área da Ciência da Computação foram, a partir da auto-obser-
vação de uso, sistematizados em dois: a) lógica computacional;
b) algoritmos e machine learning. Estes dois elementos de aná-
lise se somam a: c) interface; d) antropomorfismo (proveniente
do eixo antropomórfico); e) voz; f) gênero e personalidade (rela-
cionado ao eixo relacional). Assim, cada uma das camadas desta
pesquisa possui dois elementos analíticos centrais, que foram
utilizados como diretrizes para compor o formulário quantitativo
e as entrevistas em profundidade. As perguntas criadas para cada
uma destas ferramentas de coleta de dados foram pensadas vi-
sando obter respostas relacionadas aos seis elementos de análise,
elementos estes que passam a guiar de forma transversal a aná-
lise dos dados obtidos em todas as etapas. Ou seja, o elemento
analítico interface, por exemplo, passa a ser atravessado por ele-
mentos de revisão bibliográfica, de pesquisa documental, de
auto-observação e das respostas quantitativas e qualitativas a
partir do formulário e da entrevista.
Dessa forma, tentamos garantir o entrelaçamento entre os
âmbitos técnico, científico e social, que originou o desenho teó-
rico-metodológico desta pesquisa. Isso se dá uma vez que, cada
elemento analítico, ainda que pertencente a um desses eixos, é
atravessado por todas as etapas metodológicas da pesquisa e, de
uma forma ou de outra, cada um desses elementos se relaciona
com os outros de forma distinta. Ao analisar o conceito de

226
interface enquanto operante nas assistentes pessoais, nos depa-
ramos, por exemplo, com questões que se relacionam com a ló-
gica computacional (na forma como esses dispositivos compre-
endem ou não o que está sendo solicitado), com a voz, que é o
que dá forma a essa interface e, consequentemente, com questões
de gênero e personalidade que operam e atravessam essa inter-
face, entre outros cruzamentos possíveis.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao longo deste artigo buscamos discutir a proposta teórico-


metodológica desenvolvida para a tese em andamento a partir de
uma questão central: a tentativa de unir três âmbitos de investi-
gação em uma mesma análise. Estes três âmbitos foram chama-
dos, em diálogo específico com nosso objeto empírico de pes-
quisa, as assistentes pessoais virtuais, de: a) eixo técnico; b) eixo
antropomórfico; c) eixo relacional. Entretanto, podemos abstrair
estes mesmos três eixos específicos para três camadas mais
abrangentes (ou, mais universais, na medida do possível): a) a
camada técnica; b) a camada científica; c) a camada social. Desta
forma, estas três camadas nos permitiriam pensar e analisar o
entrelaçamento entre âmbitos distintos que envolvem um
mesmo objeto, sendo esta uma abordagem potencialmente frutí-
fera para os estudos de mídias digitais.
A camada técnica, corresponde, nos sistemas de mídias digi-
tais, as formas como esses objetos são projetados, pensados e de-
senvolvidos e, portanto, lida com questões cada vez mais aborda-
das no campo da comunicação digital, com discussões que envol-
vem software, algoritmos, banco de dados, computabilidade, en-
tre outros. A camada científica, dá conta de elementos que são
discursivos do campo no qual essas mídias digitais são produzi-
das, sendo este campo composto tanto pelos cientistas quanto
pelas empresas produtoras, possibilitando explorar questões, no
âmbito do digital, como ética, responsabilidade, lógica de

227
mercado, antropomorfização de sistemas de inteligência artifi-
cial, ideia de bolha, etc. Por fim, a camada social dá conta das
formas de circulação dessas mídias, como elas são consumidas,
utilizadas e pensadas pelos usuários, atualizando questões das
outras duas camadas e trazendo elementos novos, ressignifi-
cando esses objetos e gerando efeitos sociais que só podem ser
compreendidos no imbricamento das camadas apresentadas.
Dessa forma, pensamos que estas três camadas são tanto
constitutivas dos objetos digitais que possuímos hoje, ou seja,
elas agenciam elementos que possibilitam a sua emergência tal
como conhecemos. Por outro lado, estas camadas também fazem
emergir as formas de agência que esses dispositivos podem apre-
sentar, uma agência que é fruto de questões que combinam fato-
res técnicos, científicos e sociais e que são atualizadas na medida
em que são postos em circulação.

228
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232
 REFLEXÕES NECESSÁRIAS SOBRE A
PLATAFORMIZAÇÃO DAS ATIVIDADES SOCIAIS NA
INTERNET

CAIO C. G. OLIVEIRA

RESUMO

O presente texto tem como principal proposta refletir sobre


questões que envolvem e circundam a priorização do uso de pla-
taformas para tratar da presença tanto individual quanto comer-
cial no contexto digital. Para tanto, é apresentado um descritivo
das transformações pelas quais passou a comunicação na Inter-
net até chegar ao contexto atual. Chama-se atenção para o Face-
book, levando em consideração o impacto e a influência desta
plataforma em aspectos sociais, políticos e comerciais. O texto
apresenta importantes movimentos que proporcionaram ao Fa-
cebook o papel que hoje exerce na comunicação e na sociedade.
Além disso, traz reflexões sobre a influência da plataforma nas
dinâmicas de comunicação e busca problematizar as consequên-
cias da comunicação intermediada por plataformas e os impactos
disso nas vidas das pessoas e organizações. Ao final, são elenca-
das algumas questões de encaminhamento que podem ser des-
dobradas em investigações ou propostas de trabalhos futuros.

PALAVRAS-CHAVE: plataformas sociais; Facebook; comunica-


ção digital.

233
ABSTRACT

This paper aims to reflect on issues that involve and surround


the prioritization of the use of platforms to address both individ-
ual and commercial presence in the digital context. For this pur-
pose, a description of the transformations through which the
communication on the Internet has gone through until reaching
its current state is initially presented. Attention is therefore
drawn to Facebook, taking into account the impact and influence
of this platform on social, political and commercial aspects. The
text presents important movements made by Facebook that gave
the platform the role it plays in communication and in today's
society. In addition, it brings reflections on the influence of the
platform on communication dynamics and seeks to problematize
the consequences of platform-mediated communication and the
impacts on the lives of people and organizations. At the end,
some referral questions are listed that can be unfolded in future
work proposals or investigations.

KEYWORDS: social platforms; Facebook; digital communica-


tion.

DA WEB SOCIAL AO FACEBOOK

Em meados da década de 1990, quando o acesso à Internet


começou a ser explorado comercialmente, entusiatas descobri-
ram um forma diferente de se comunicar. Não era algo fácil como
dar um telefonema e tão pouco exigia o espaço físico, a presenca
e comprometimento de um grande número de pessoas como uma
aula. Construir um site e publicar qualquer tipo de informação
era uma empreitada relativamente fácil, embora demandasse co-
nhecimentos específicos da linguagem HTML desenvolvida anos
antes por Tim Berners-Lee. A criação de serviços como o Blogger,
desenvolvido pela Pyra Labs em 1999, proporcionou o empurrão

234
necessário para que a publicação de conteúdo chegasse às pes-
soas (GILLMOR, 2006). O crescimento de sites pessoais e blogs
se deu de forma surpreendente. Em apenas uma das plataformas
de criação de blogs, em janeiro de 2002, foram criados mais de
1.300 blogs por dia (RECUERO, 2003). Em um contexto de 2019,
este número pode parecer pequeno. No entanto, deve ser levado
em consideração que, em 2002, apenas 10% da população mun-
dial estava conectada à Internet134.
Com as emergentes plataformas de publicação de conteúdo
online houve uma diluição do poder na comunicação. Em um
contexto anterior, caracterizado pela mídia de massa, o poder es-
tava concentrado nas mãos daqueles atores que detinham o con-
trole do suporte para a circulação das informações. Com a emer-
gência da Internet e a criação de um novo contexto de comunica-
ção – o digital – este poder passa a ser distribuído e aqueles que,
no contexto da mídia de massa, eram espectadores, agora, no
contexto digital, passam também a ser emissores (CASTELLS,
2009). O fluxo de comunicação multidirecional da Internet e a
capacidade de produção e distribuição de informação ao alcance
de todos fizeram surgir um novo termo. Em um tempo em que o
conteúdo gerado por usuários passou a fazer parte das vidas nas
sociedades, emergiu a mídia social (KAPLAN e HAENLEIN,
2010).
A partir de 2001, quando o uso das plataformas sociais de pu-
blicação de conteúdo começa a ganhar popularidade, inicia-se
também o que pode ser considerado o futuro do jornalismo
(GILLMOR, 2006)⁠. Pessoas (e, depois, também as empresas)
passam a entender que, com as ferramentas sociais, podem esta-
belecer uma comunicação mais direta com seus interlocutores,
diferentemente do que ocorre no contexto da mídia de massa.
Neste novo cenário, produzir, disseminar e consumir conteúdo
ocorre em uma dinâmica própria. A adoção ampla das mídias

134 Disponível em: https://en.wikipedia.org/wiki/Global_Internet_usage . Acesso em:


16 out. 2019.

235
sociais é característica definidora de uma cultura digital
(SANTAELLA, 2003)⁠.
O modelo de comunicação que prevalecia à época em que em-
presas de comunicação atuavam como as “fontes oficiais” dos
acontecimentos (GILLMOR, 2006; KAPLAN e HAENLEIN,
2010) perde gradativamente importância e passa a disputar es-
paço com um novo jeito de se produzir, distribuir e consumir in-
formações. Nesse novo contexto cultural, pessoas e instituições
de diferentes tipos passaram a atuar e interagir em um ambiente
híbrido, dinâmico, onde os fluxos comunicacionais poderiam ser
pluridirecionais (CASTELLS, 2009).
Inicialmente, este novo contexto indicou que pessoas e em-
presas poderiam atuar como produtores e disseminadores de in-
formações, podendo alcançar eficiência no processo usando as
mídias sociais, minimizando ou eliminando a influência do poder
do dinheiro (e da mídia de massa) nas iniciativas de comunicação
(KELLY, 2002)⁠.
A descoberta e a adoção das mídias sociais mostraram-se
muito importantes para as dinâmicas sociais e, claro, comerciais.
A lógica da mídia de massa em que a luta de atenção do público
era um jogo de soma zero parecia ter sido plenamente superada.
A adoção das mídias sociais, inicialmente com os sites, proporci-
onou o entendimento de que não era mais necessário para uma
empresa monopolizar um determinado meio nem um canal de
mídia de massa para fazer sua mensagem chegar a um grande
número de pessoas apenas com o intuito de iniciar uma relação
com uma fração daquela audiência.
Com as mídias sociais, começou-se a entender que os princí-
pios do marketing de um para um, apresentados na virada das
décadas de 1980 para 1990 (PEPPERS e ROGERS, 1995) pode-
riam se materializar com mais facilidade e a um custo menor. A
Internet comercial e a web foram, então, tratadas com bastante
entusiasmo, proporcionando uma eufórica era das mídias soci-
ais. Manifestos (LOCKE et al., 2000) e receitas de ação (GODIN,

236
2000) potencializavam a emergência de práticas de marketing de
relacionamento.
Em termos de iniciativas de comunicação publicitária, a ação
de publicar conteúdo em um site próprio, de forma indepen-
dente, tinha sua eficiência catalisada pela emergência dos meca-
nismos de buscas como o Google. Com este tipo de combinação,
os esforços das empresas naquele momento eram direcionados
para a obtenção da atenção daqueles que estavam no processo de
encontrar uma solução. Para estes consumidores, era, então exi-
bida a oferta. A possibilidade de chegar a um potencial compra-
dor por meio de uma ação baseada em seu comportamento (a
busca) ficou conhecida como vencer o momento zero da verdade,
ou ZMOT, na sigla em inglês (LECINSKI, 2017) e, ainda hoje, in-
fluencia o desenvolvimento de ações publicitárias e de comuni-
cação no contexto da Internet. Desse modo – como estamos to-
dos em muitos processos paralelos de busca por soluções para
nossos problemas do dia a dia e constantemente à procura de in-
formações, notícias, produtos ou alguma resposta – acabou
sendo desenvolvido um rentável mercado de comunicação publi-
citária em torno das atividades de busca e de conteúdos publica-
dos em mídias sociais (ENGE et al., 2012; FOX, 2010;
HALLIGAN e SHAH, 2009).
O surgimento e a popularização dos sites de redes sociais
(SRS) catalisou o processo de participação das pessoas com os
recursos de publicação e disseminação de conteúdo na Internet.
Estes serviços, ao permitirem e serem baseados na construção de
um perfil individual, onde e por meio do qual as pessoas podem
conectar-se umas às outras e mostrarem as suas conexões; bem
como publicar conteúdo e interagir com outras pessoas e suas
publicações (BOYD e ELLISON, 2007; ELLISON et al., 2007;
RECUERO, 2009; 2012), têm proporcionado mudanças profun-
das em como as pessoas se relacionam (SPYER, 2017), se infor-
mam, deliberam sobre questões sociais e políticas, interagem
com marcas e aprendem (ROCKEMBACH e GARRÉ, 2018;
TEZANI, 2017).

237
É por meio dos SRS que a sociedade se apresenta e atua no
contexto digital. No entanto, apesar de proporcionar grande en-
tusiasmo, em virtude do uso cada vez mais proeminente deste
tipo de recurso tecnológico, é necessário refletir sobre estes es-
paços; em especial o Facebook, que conta com mais de 2.3 bi-
lhões de usuários135 ativos mensalmente.
Apesar de ser denominado e comumente identificado como
um SRS, é necessário encarar o Facebook (FB) como um empre-
endimento que transcende esta definição. Curiosamente, ao pro-
curar por uma definição do que vem a ser o Facebook no próprio
site da empresa, não se encontra uma resposta clara. Em entre-
vista, o executivo-chefe da empresa, Mark Zuckerberg, a define
como um espaço de compartilhamento de informações em que as
pessoas podem publicar aquilo que desejam (VOGELSTEIN,
2009)⁠. Nesse sentido, mais do que um SRS, o FB é também uma
plataforma social, reunindo as características de um SRS e tam-
bém aquelas das mídias sociais (OBAR e WILDMAN, 2015)⁠.
Mas, levando-se em conta que a influência do Facebook vai
muito além do compartilhamento de links, imagens e pequenos
textos com amigos e familiares, é preciso observar o Facebook
como algo ainda maior. Além de pessoas, empresas e organiza-
ções de diversas naturezas utilizam o Facebook como espaço de
interação com seus públicos interno e externo; também exploram
os serviços oferecidos pela empresa como plataformas de comu-
nicação e atendimento ao consumidor, o que leva a entendê-la
como algo que vai além da definição de site de rede social ou mí-
dia social. Pode-se considerar o Facebook como um agente cen-
tral nas relações sociais; uma plataforma que atua intermediando
relações entre agentes de diferentes modalidades.

135 Dados referentes aos primeiros três meses de 2019. Disponível em:
https://www.statista.com/statistics/264810/number-of-monthly-active-facebook-
users-worldwide/. Acesso em: 16 out. 2019.

238
TRÊS MOVIMENTOS PARA ENTENDER O DOMÍNIO DO
FACEBOOK

No começo dos anos 2000, usuários mais experientes passam


a usar feeds e agregadores RSS para se manterem informados.
Naquele período, a Internet experimentava um crescimento ex-
ponencial da publicação de conteúdo multimídia e acompanhar
a atualização de vários sites por meio de feeds e leitores (ou agre-
gadores) RSS proporcionava grande ganho para as pessoas.
Apesar da solução fornecida pelos feeds e agregadores RSS, o
processo para que isso funcionasse a contento representava uma
quantidade enorme de barreiras para a maioria das pessoas. Em
uma movimentação bastante estratégica e, ao mesmo tempo,
controversa para a empresa, em 2006 é disponibilizado o feed de
notícias do Facebook (HOADLEY et al., 2010). Esta solução mos-
trou ser a resposta fácil e eficiente do FB para a dificuldade que a
maior parte das pessoas enfrentava com RSS.
Esta movimentação é importante para entender o começo do
domínio do Facebook em termos de volume de usuários e tam-
bém de tempo de permanência no site. Com a implementação do
feed de notícias, aqueles usuários que achavam por demais com-
plicado publicar textos em um blog poderiam agora fazê-lo no
Facebook. Também os que mantinham sites pessoais passaram a
abastecer seus perfis no FB, uma vez que suas publicações na-
quela plataforma ganhavam mais acessos do que aquilo que pu-
blicavam em seus blogs.
Assim, o processo de produção, circulação e consumo de in-
formações estava, naquele contexto, deixando de ser baseado em
sites e passando a ser uma funcionalidade da plataforma FB. Em
um movimento estratégico muito importante para a empresa
(GERLITZ e HELMOND, 2013) o Facebook implementa uma
maneira de, ao mesmo tempo, conhecer sobre os hábitos e prefe-
rências de seus usuários e proporcionar a eles uma forma de mos-
trar para sua rede quais são os sites que eles valorizam e admi-
ram. O botão “curtir”, criado em 2009 (PEARLMAN, 2009),

239
passa a proporcionar ao FB a possibilidade de reunir informações
sobre seus usuários e seus hábitos tanto na plataforma quanto
fora dela, uma vez que o botão poderia ser inserido em qualquer
site da web.
Com estas duas movimentações – o botão curtir e o feed de
notícias – o Facebook passa a ser um espaço central para a vida
social na rede. Constitui-se como o lugar onde os gostos e hábitos
das pessoas são expostos, funcionando como bótons, de forma
semelhante (mas não necessariamente idêntica) às observadas
na exibição de comunidades do Orkut em perfis pessoais
(RECUERO, 2006)⁠.
A criação do feed de notícias converte o Facebook naquele lu-
gar na Internet onde todos poderiam publicar conteúdo sem pre-
cisarem de um site próprio para isso. Por meio do feed de notí-
cias, as pessoas podem acompanhar as postagens dos outros pra-
ticamente em tempo real. Isso proporciona uma adesão em
massa de pessoas. Não demorou para que empresas também des-
cobrissem e passassem a explorar aquele espaço. Com isso, a di-
nâmica em torno da circulação de conteúdo se torna bastante de-
sordenada. Pessoas e marcas lutam por atenção.
A solução para diminuir a sobrecarga de informações para os
usuários mostrou-se também como uma oportunidade para o Fa-
cebook: a redução do alcance orgânico das postagens. Para se ter
uma ideia, em fevereiro de 2012, 16% dos curtidores de uma pá-
gina visualizavam as suas postagens no feed. Em março de 2018
este número cai para menos de 6% (SEIS, 2018). O alcance or-
gânico estaria sendo reduzido para que as marcas que quisessem
atingir a maior parte do público que tanto lutaram para construir
só pudessem fazê-lo quando o Facebook recebesse seu dinheiro.
Pagar para alcançar. A mesma lógica que pode ser enxergada na
mídia de massa. Esta solução é considerada extremamente im-
portante em termos estratégicos porque é a solução fácil e con-
trolada para fornecer ao FB um modelo de negócios que lhe ga-
rante um fluxo contínuo de receita.

240
Como dito, estas três movimentações – feed de notícias, botão
curtir e controle do alcance orgânico de postagens – mostram-se
cruciais para a consolidação da empresa.
Ao fazer isso, o FB fecha um importante ciclo que fornece à
empresa grande poder e, consequentemente, controle sobre as
vidas das pessoas e as ações de empresas. Inicia-se com o o feed
de notícias, que proporciona às pessoas um espaço de dissemina-
ção e consumo de informações centralizado, sem a dificuldade
representada pelo RSS. A segunda movimentação se dá acompa-
nhando e recolhendo informações sobre os hábitos e gostos das
pessoas por meio do botão curtir, procedimento este que auxilia
na coleta de dados que vão ajudar a consolidar o que conhecemos
como big data (COULDRY e POWELL, 2014)⁠. A combinação des-
tes movimentos leva também as empresas para o espaço, propor-
cionando ruído ao FB, motivo que é utilizado como justificativa
para a movimentação final: o controle do alcance orgânico das
postagens.
De certa forma, isso resume o Facebook: todos trabalham para
Mark Zuckerberg, mesmo sem serem funcionários registrados da
empresa. As pessoas que usam a web todos os dias informam ao
Facebook sobre suas preferências por meio de cliques no botão
curtir em sites fora do FB e também em páginas. Além disso, im-
portantes informações são fornecidas por meio das métricas de
engajamento, a saber: curtidas em postagens, comentários, com-
partilhamentos e cliques em links. É a ilustração perfeita do tema
“The machine is us/using us”, ou seja, “as máquinas somos
nós/estão nos usando” (WESCH, 2007)⁠. Também as empresas
trabalham para Zuckerberg, despejando conteúdo no FB e lu-
tando para obter mais seguidores e, com isso, construir um pú-
blico maior para suas postagens naquele espaço. A grande vanta-
gem destas duas formas de trabalho prestadas para o Facebook
– por pessoas e empresas – é óbvia: não há remuneração paga
pelo Facebook para aqueles que colaboram com dados e conte-
údo.

241
É a terceira movimentação estratégica trabalhada nesta seção
que proporciona o rendimento financeiro direto para o Face-
book. Por meio do controle do alcance das postagens, as entida-
des presentes no FB que pretendem publicar mensagens destina-
das a seus curtidores precisam, para isso, pagar quantias cada vez
maiores de dinheiro para conseguir proporcionar às suas posta-
gens alcance a uma parte maior de seu público de curtidores.
Também é esta movimentação estratégica do FB que o coloca na
mesma posição de empresas de mídia de massa, como será tra-
tado a seguir.

AS SEMELHANÇAS NOS MODELOS DE NEGÓCIO DAS


PLATAFORMAS E VEÍCULOS DE MÍDIA DE MASSA

Mesmo que o Facebook deva ser ou tenha sido imaginado ini-


cialmente para ser constituído como um SRS, seu crescimento o
transformou em uma plataforma com funcionalidades em uma
lista que supera muito as de um SRS e objetivos comerciais ou-
tros. Além disso, seu funcionamento baseia-se em um modelo de
negócios que se assemelha ao que estamos acostumados a ver na
mídia de massa.
As empresas que operam seguindo esta lógica são denomina-
das “mercadores de atenção” (WU, 2017)⁠. O objetivo deste tipo
de negócio é manter a atenção das pessoas focada em seus pro-
dutos intercalando conteúdo de interesse com ofertas publicitá-
rias. O produto é oferecido de forma gratuita para as pessoas e as
empresas que objetivam alcançar estas pessoas para mostrar-
lhes suas ofertas comerciais pagam a estes operadores (os mer-
cadores), que exibem a mensagem para os usuários.
O Facebook é um exemplo completo de mercador de atenção,
operando dentro da mesma lógica de venda de espaços publicitá-
rios, como era visto no contexto da mídia de massa, na progra-
mação da TV ou do rádio. No entanto, em virtude da possibili-
dade da coleta de informações dos usuários, como uma

242
plataforma de anúncios, o Facebook pode ir muito além do que
emissoras e até mesmo publicações segmentadas da mídia de
massa vão ou são capazes de ir. É neste ponto que pode ser en-
contrada uma diferença crucial entre as formas de operar das
empresas de comunicação na mídia de massa e as do Facebook.
O diferencial que é, ao mesmo tempo a garantia de uma capa-
cidade distintiva para o FB e uma ameaça a diferentes processos
sociais, refere-se à questão do contexto e do comportamento. Por
meio de funcionalidades de controle para o usuário, é possível
configurar o feed de notícias do Facebook para que sejam exibi-
das apenas informações e postagens de interesse direto das pes-
soas. Isso é feito curtindo (ou seja: optando por seguir/visualizar
postagens de páginas específicas) e seguindo apenas aqueles
amigos dos quais as pessoas querem receber/ver noticias em seu
feed. No entanto, há também a forma não direta de se configurar
o feed. O Facebook aprende com as interações das pessoas e
passa a priorizar publicações que a máquina entende serem de
maior interesse para cada um.
A consequência disso é chamada de filtro-bolha (PARISER,
2012)⁠: as pessoas visualizarão apenas aquilo que lhes agrada.
Muito embora esta não seja uma invenção ou característica ex-
clusiva da plataforma – sabe-se que as pessoas tendem a dialogar
com aqueles que pensam de forma semelhante (LEVINE et al.,
2009) –, com a seleção e o sortimento de mensagens a partir das
indicações comportamentais dos usuários o Facebook consegue
êxito criando o ambiente perfeito para que as pessoas fiquem
cada vez mais tempo conectadas ao serviço. Quanto mais tempo
conectadas, maior a quantidade de publicidade que pode ser
mostrada para cada usuário rolando o feed de notícias em busca
de novidades.
Como o Facebook está coletando informações sobre hábitos e
gostos dos seus usuários dentro da plataforma (por meio das in-
terações com postagens) e também fora dela – por meio dos bo-
tões curtir e de scripts de rastreamento de navegação instalados
em sites que optam por inserir estes botões em seus ambientes –

243
há a coleta praticamente constante de um enorme volume de in-
formações sobre os comportamentos das pessoas (COULDRY e
POWELL, 2014; GILLESPIE, 2018). A justificativa inicial do FB
para realizar este tipo de ação é a de que, com estas informações,
a empresa será capaz de fornecer filtros cada vez mais inteligen-
tes para anunciantes e, ao mesmo tempo, proporcionar aos usu-
ários a exposiçào a anúncios que sejam cada vez mais acertados
com seus interesses em qualquer momento.
Com este tipo de iniciativa baseada no comportamento das
pessoas – Online Behavioral Advertising, ou seja, Publicidade
Comportamental Online (BEALES, 2010; UR et al., 2012)⁠ – o Fa-
cebook insere anúncios diferentes, personalizados nos feeds de
cada um de seus usuários. Apesar de a lógica inicial ser a mesma
– a plataforma atua como um intermediador da mensagem entre
o anunciante e a audiência – há algumas questões potencial-
mente problemáticas nessa aplicação.
No contexto da mídia de massa, se duas pessoas estiverem as-
sistindo o mesmo programa de televisão em suas casas, mas em
vizinhanças diferentes de uma mesma cidade, a mensagem pu-
blicitária que eles assistirão é a mesma. No caso do Facebook, de-
vido ao fato de as publicações de cunho publicitário poderem ser
baseadas no comportamento de cada usuário, cada um deles será
impactado por mensagens diferentes.
Os desdobramentos deste tipo de orientação são muitos. A co-
meçar pela própria natureza do Facebook, em que os anúncios e
as mensagens patrocinadas não são facilmente identificadas pe-
los usuários. Nesse sentido, há uma dificuldade inicial até de di-
ferenciar o que é publicidade e o que é uma postagem que apare-
ceria naturalmente no feed de notícias.
Além disso, em virtude da personalização da mensagem base-
ada em filtros que foram construídos a partir das características,
hábitos, gostos e comportamentos individuais de cada usuário,
as mensagens publicitárias podem também ser altamente perso-
nalizadas e moldadas para disparar comportamentos específicos

244
em cada usuário. Esta questão leva à mesa outro ponto compli-
cador e que merece ser devidamente problematizado e estudado.
De qualquer forma, voltando às semelhanças com o modelo de
negócios da mídia de massa, se uma determinada marca quer que
sua mensagem chegue a um determinado público, deve pagar ao
Facebook para que a plataforma exiba esta mensagem em forma
de anúncios ou postagens impulsionadas (postagens feitas por
páginas curtidas pelos usuários, mas que não seriam mostradas
a eles em virtude do baixo alcance orgânico controlado pela pró-
pria empresa).
Por meio deste conjunto de procedimentos estratégicos, o Fa-
cebook se assemelha muito mais ao que se entendia anterior-
mente como mídia de massa, adotando práticas tradicionais de
intermediação, do que como um site de redes sociais. Entretanto,
como dito, com as ferramentas de filtragem e direcionamento de
anúncios, o FB tem ainda maior eficiência do que a mídia de
massa ao proporcionar a visualização de anúncios e postagens
apenas por usuários que se encaixem ou atendam parâmetros es-
pecíficos.
A ideia inicial de que os SRS constituiriam espaços livres onde
os participantes (sejam eles pessoas ou empresas) poderiam se
relacionar, publicar e fazer informações circularem de maneira
independente mostra-se, na prática, uma fantasia. Ao compreen-
der o FB como um mercador de atenção, a constatação de que a
comunicação livre e verdadeiramente desintermediada evidencia
uma utopia bastante fácil de enxergar (WU, 2017). Além disso, as
questões e especificidades da exploração publicitária baseada em
comportamentos dos usuários mostram-se potencialmente pro-
blemáticas.
Para se viabilizar financeiramente, estas entidades passam a
intervir naquilo que é exibido para seus usuários. O que é publi-
cado nestes espaços não mais é mostrado para todas as pessoas
com as quais cada usuário ou marca está conectado; apenas parte
destas pessoas visualizam aquilo que é publicado por suas cone-
xões. Nesse sentido, o alcance orgânico é reduzido e impera

245
aquele alcance que não é orgânico; ou seja, entendido como “não
natural”, precisando ser inflado por meio de impulsionamento de
postagens e, claro, anúncios.
Ao introduzir esta forma de relação com as postagens e anún-
cios, estabelece-se, então, um modelo de faturamento baseado na
intermediação das mensagens postadas. O modelo adotado é o
de que apenas por meio de pagamentos para quem controla o al-
cance das postagens aqueles com interesse de ter suas mensa-
gens consumidas por seu público podem divulgar mensagens e
ter o público atingido.
Assim sendo, embora o contexto seja digital, a lógica da mídia
de massa, baseada no poder financeiro, é a que ainda impera.
Aqueles com mais dinheiro podem aproveitar os melhores luga-
res nos melhores horários de TV, mídia impressa ou estações de
rádio e alcançar seu público. No Facebook, aqueles com dinheiro
podem fazer com que suas postagens alcancem seu público.

ENCAMINHAMENTOS E REFLEXÕES

É necessário, em primeiro lugar, reforçar a questão de que a


Internet, e consequentemente a web, é um espaço aberto e livre.
Nesse sentido, cabe entender que nenhuma boa solução para o
coletivo pode vir quando se abre mão do controle dos espaços e
delega-se a uma grande empresa esse poder.
É preciso recuperar o controle dos processos comunicacionais
(produção, circulação e consumo de informação) no contexto di-
gital (LANIER, 2019)⁠. Seja por meio da adoção e manutenção de
espaços não controlados por corporações ou com outras iniciati-
vas não submetidas aos imperativos do big data (COULDRY e
TUROW, 2014) ⁠. Talvez a resposta esteja em lembrar que a web
é um sistema aberto e que o RSS ainda é uma tecnologia bastante
atual e utilizada (HOLIDAY, 2013).
Além disso, tanto para pessoas quanto para empresas, é im-
portante ter em mente que este espaço social representado pelo

246
FB tem uma função. As funcionalidades deste espaço voltam-se
para a conexão entre pessoas, tal qual enumerado nas caracterís-
ticas de um SRS. Ademais, para empresas, hoje o Facebook é
usado como uma forma de atrair pessoas e colocá-las no topo de
um funil de marketing (HALLIGAN e SHAH, 2009)⁠. Negar sua
utilidade, tentar eliminar por completo este serviço do contexto
digital, pode ser prejudicial. No entanto, é importante colocar seu
uso em perspectiva. Espaços como o FB podem ser bastante úteis
para publicizar mensagens, mas não devem ser a única forma de
se fazer comunicação publicitária no contexto digital.
No âmbito da comunicação de empresas, embora, como dito
acima, o Facebook possa ser um bom espaço para publicizar uma
mensagem e levar as pessoas para um site e começar a se comu-
nicar com elas, é necessário entender que o FB não deve ser a
única forma de se conseguir isso. E, retomando o aspecto da co-
municação interpessoal, há de se considerar que é estratégico
para os indivíduos não fornecerem dados que depois podem ser
trabalhados visando não o melhor para cada um, mas interesses
e metas de corporações (COULDRY e TUROW, 2014; SEARLS,
2012; SILVEIRA, 2017)⁠.
Não é a melhor solução para resolver o problema e atender o
interesse coletivo deixar que uma ou poucas corporações contro-
lem ou decidam o que se pode ou não ver (JURNO e D’ANDREA,
2017)⁠. Isso é o que a mídia de massa sempre fez e é o que o Face-
book faz. Para empresas, não é inteligente investir tanto dinheiro
em conteúdo e desdobrar esforços para criar um público que não
se poderá alcançar porque a plataforma controla este alcance via
algoritmo (GILLESPIE, 2018)⁠.
Ainda é preciso considerar a sequência de controvérsias en-
volvendo o Facebook, especialmente desde as eleições presiden-
ciais estadunidenses de 2016, quando foi demonstrado que a pla-
taforma havia sido utilizada para influenciar os resultados da-
quele pleito a partir de dados explorados pela empresa Cambri-
gde Analytica (GRANVILLE, 2018)⁠. Desde tal ocasião, repetidos

247
problemas envolvendo o manejo e gestão de dados dos usuários
foram evidenciados, provocando redução significativa na confia-
bilidade da empresa.
Como se trata de empresa de capital aberto, as questões e con-
trovérsias a respeito da privacidade e do acesso aos dados de seus
usuários representaram impacto no valor das ações negociadas
na bolsa de valores. Em virtude disso, o Facebook vem traba-
lhando intensamente sua imagem e, recentemente, anunciou
uma guinada, não menos controversa, rumo a um foco mais vol-
tado para a privacidade (SULLIVAN, 2019)⁠. A controvérsia desta
guinada se dá em função de declarações prévias de Mark Zucker-
berg sobre o fim da privacidade (JOHNSON, 2010)⁠. Por isso, a
última investida da empresa rumo a um cenário mais voltado
para a proteção dos dados dos usuários é vista com muito descré-
dito e ceticismo; certamente merecendo estudos e acompanha-
mento futuro.
Há ainda que se considerar uma série de questões envolvendo
o Facebook que ajudam a entender a argumentação deste artigo
de que concentrarmos a presença – tanto individual quanto ins-
titucional – no contexto digital em plataformas pode não ser be-
néfico. Algumas delas merecem encaminhamento aqui para fu-
turos desdobramentos.
A primeira se relaciona com a influência do que ocorre na pla-
taforma em resultados eleitorais, por exemplo. Em virtude da
manipulação algorítmica e da formação de filtros-bolha, plata-
formas de comunicação (em especial o Facebook) desempenham
um papel importante na difusão de ações de desinformação e no-
tícias falsas. Ações voltadas a priorizar informações checadas e
verificadas contradizem a dinâmica criada e mantida pela plata-
forma de colocar nos feeds de notícias das pessoas aquilo que tem
origem em seus círculos de amizade. Com isso, fontes de infor-
mações checadas são colocadas em segundo plano, criando-se
um problema ainda maior. Uma das frentes de ação do Facebook
nesse sentido é a de atuar como intermediária também em ter-
mos financeiros entre usuários e conteúdo (SLOANE, 2017)⁠. Por

248
representar mais uma barreira financeira (tanto para veículos
quanto para usuários), este tipo de iniciativa tem evidentes des-
dobramentos que merecem atenção, problematização e investi-
gação.
Outra questão importante refere-se à proliferação de discurso
de ódio na plataforma e como a empresa lida com isso. Recente-
mente vieram a público questões envolvendo as precárias condi-
ções de trabalho e remuneração de funcionários de empresas
contratadas pelo FB que atuam como responsáveis pela avaliação
de conteúdo postado e sinalizado no Facebook (NEWTON,
2019)⁠.
Por fim, um último tópico que merece acompanhamento e en-
caminhamento refere-se à questão do domínio do Facebook em
diferentes aspectos da comunicação no contexto social. Tanto
que um de seus cofundadores demonstrou, em artigo opinativo,
a necessidade de que a empresa seja dividida, dada a influência e
o poder que exerce sobre a sociedade (HUGHES, 2019)⁠.
Espera-se que, por meio deste texto, as questões principais re-
lacionadas aos impactos das ações das plataformas, sobretudo o
Facebook, no contexto da comunicação digital tenham sido en-
dereçadas. Além disso, espera-se que tenha sido contemplada a
intenção de encaminhamento conjunto de desdobramentos pos-
síveis de investigação para trabalhos futuros no que se refere à
importante questão do uso de plataformas sociais, em especial o
Facebook.

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255
 PARTE IV:
POLÍTICA E OPINIÃO PÚBLICA EM UM BRASIL
(DES)CONECTADO

256
 OPINIÃO PÚBLICA NAS PLATAFORMAS DE CIRCULAÇÃO
MEDIADAS POR ALGORITMOS

KÉRLEY WINQUES

RESUMO

Este artigo tem como objetivo discutir as implicações dos al-


goritmos no que se refere à formação da opinião pública. Tam-
bém aborda como o uso dos filtros pode afetar a distribuição de
conteúdos online, tendo em vista que o cenário é pautado pela
individualização, circulação mediada por algoritmos e, ainda,
pelo aumento da disseminação de boatos. Portanto, de cunho
teórico, o trabalho versa, principalmente, sobre o papel das redes
sociais e dos buscadores no contexto contemporâneo. Destaca-se
que os estudos que visam compreender a opinião pública na in-
ternet devem levar em consideração a existência de uma série de
atores que compõem o meio, não sendo mais exclusividade da
mídia de massa formar os debates e a memória coletiva.

PALAVRAS-CHAVE: algoritmos; plataformas digitais; opinião


pública; jornalismo; Comunicação.

ABSTRACT

This article aims to discuss the implications of algorithms with


regard to the formation of public opinion. It also discusses how
the use of filters can affect the distribution of content online, due
to the fact the scenario is based on individualization, circulation
mediated by algorithms and the increased spread of rumors.
Therefore, from a theoretical nature, the work deals mainly with

257
the role of social networks and searchers in the contemporary
context. It is noteworthy that studies aimed at understanding
public opinion on the Internet must consider the existence of
many actors that compose the scenario, and it is no longer exclu-
sively for mass media to form debates and collective memory.

KEYWORDS: algorithms; digital platforms; public opinion;


journalism; Communication.

INTRODUÇÃO

As primeiras reflexões acerca do conceito de opinião pública


datam dos séculos XVII e XVIII. Porém, foi a partir do século XIX
que a maioria dos autores passou a traçar relações entre opinião
pública e uma série de modificações ocorridas na sociedade, tais
como: o aumento da alfabetização, a expansão dos meios de co-
municação, a ascensão da classe média e a difusão e desenvolvi-
mento das instituições democráticas. Essa fase é marcada pelo
surgimento da sociedade burguesa, resultante do progresso do
público leitor somado ao avanço da imprensa. Essas característi-
cas criaram condições para a formação de uma esfera na qual in-
divíduos foram capazes de exibir opiniões sobre variados assun-
tos de interesse geral. Embora limitada ao seu caráter histórico,
foi a partir da observação da “burguesia”136 que Habermas
(2003) compreendeu que o sujeito só faz parte da esfera pública
enquanto portador de uma opinião pública. Contudo, muito an-
tes desse período, nos fins do século V a.C., em Atenas, Grécia,
surgiram os primeiros indícios de uma formação da opinião pú-
blica. As deliberações dos indivíduos na ágora (praça), espaço da
pólis (cidade), marcam o desenvolvimento da democracia grega

136 A formulação de uma esfera pública burguesa na obra de Habermas (2003) foi
concebida a partir da observação de um conjunto de pessoas privadas, reunidas para dis-
cutir questões particulares que eram publicamente relevantes. Os cafés e os salões literá-
rios eram os espaços por excelência utilizados nessas reuniões.

258
e demonstram a formação de um espaço para a repercussão das
opiniões.
Desde que as primeiras formulações sobre opinião pública e
esfera pública foram construídas muita coisa mudou em relação
aos meios de informação e comunicação. A crise de confiabili-
dade nas instituições se alargou, bem como no jornalismo. A cen-
tralidade do jornalismo tradicional e sua estrutura industrial per-
deram força. Com o surgimento das tecnologias digitais e seus
crescentes avanços, a indústria jornalística passou a vivenciar o
contexto do Jornalismo Pós-Industrial (ANDERSON, BELL e
SHIRKY, 2013). A crise estrutural que atingiu os meios de comu-
nicação, principalmente os conglomerados, delineou um cenário
em que a massificação deu lugar a um ambiente de mídia com-
plexo, com transformações que atingiram os processos de produ-
ção, circulação e consumo de notícias. Assim, a participação ativa
do público (massiva ou individual) na internet, a ágora digital,
também foi um dos fatores que modificou as rotinas de produção
e circulação das narrativas e opiniões online.
Além de considerar que a internet não pode ser tomada como
uma esfera pública, Maia (2008) questiona se esse ambiente é de
fato um instrumento de democratização. Afinal, mesmo promo-
vendo novas possibilidades de participação descentralizadas, a
web pode sustentar formas de centralização de poder. Nesse se-
gundo caso, empresas como Google e Facebook ganham força.
Por meio de algoritmos e serviços constroem um cenário de indi-
vidualização e consumo segmentado. A estrutura da mídia afeta
o caráter da sociedade, a opinião se forma perante o acesso às
informações (FARIAS, 2019). Por isso, é pertinente observar de
que modo os algoritmos transformam o corpo social e, acima de
tudo, a opinião pública. Afinal, existem empresas de tecnologia
determinando o que os usuários recebem ou não. No cenário bra-
sileiro, desde o contexto industrial há concentração midiática, ou
seja, o oligopólio midiático não é uma invenção da internet. Po-
rém, o que se percebe é uma frustração com os rumos que a con-
centração de poder tomou na web, uma vez que ela se

259
popularizou com a noção de democratização do acesso e da pro-
dução de informações. No ecossistema industrial, Bunz (2017)
observa que as instituições de mídia forneciam notícias de ma-
neira ampla e homogênea, já a opinião pública digital passou a
ser composta por unidades fragmentadas: amigos do Facebook;
seguidores do Instagram; e leitores de um blog.
Por tais características este artigo foca nas transformações
que os algoritmos dos monopólios digitais trazem para as análi-
ses de opinião pública nas redes online. A discussão, de cunho
teórica, será distribuída em três eixos: 1) Opinião pública: três
autores-chave; 2) Monopólios digitais, algoritmos e a esfera pú-
blica da internet; e 3) Opinião pública nas plataformas digitais.
No que tange ao primeiro, os autores base são: Noelle-Neumann
(2010), Lippmann (2010) e Lage (1998). O segundo eixo traz a
pesquisa sobre a concentração de poder na internet realizada
pelo coletivo Intervozes (2018) e tem como autores principais
Bunz (2017), Just e Latzer (2017), Napoli (2013) e Pasquale
(2017). Já o terceiro item é dividido em: 1) consumo individuali-
zado e isolamento; e 2) boatos, amigos e a lógica da proximi-
dade. Em um cenário no qual, cada vez mais, há tentativas de
avaliar o comportamento dos leitores por intermédio de números
de cliques e acessos, o presente artigo discute a problemática dos
algoritmos e o quanto decisões automatizadas podem implicar na
circulação de informações e de opiniões na internet.

OPINIÃO PÚBLICA: TRÊS AUTORES-CHAVE

Determinar o que é opinião pública não é uma tarefa fácil. Em


meados de 1960, Harwood Childs, citado por Noelle-Neumann
(2010), dedicou-se a listar e recolher as definições existentes. Na
época foram encontrados em torno de 50 conceitos diferentes.
No entanto, Bourdieu (1972) julga os métodos analíticos e afirma
que a opinião pública não existe. Sua crítica se fundamenta na
avaliação de que as pesquisas de opinião solicitam que as pessoas

260
tomem posições de opiniões já formuladas e, com isso, acabam
por propagar estatísticas de opiniões produzidas. Todavia, este
estudo assume que é preciso compreender a opinião pública. Isso
porque a concepção de opinião pública ficou muito contaminada
com o surgimento das pesquisas de opinião, na década de 1930
nos Estados Unidos, porém, a opinião existe independentemente
das pesquisas estatísticas.
A combinação dos termos opinião e pública, de acordo com
Habermas (2003), teria ocorrido somente com as filosofias de-
mocráticas e liberais do século XVIII. Noelle-Neumann (2010),
Lippmann (2010) e Lage (1998) são os principais autores adota-
dos neste artigo. A primeira avalia a opinião pública como sendo
as argumentações sobre temas controversos, de modo que essas
podem ser expressas sem o risco de isolamento; esta interpreta-
ção se aplica a situações em que opiniões competem entre si. É
no âmbito social das tradições, da moral e das normas consolida-
das que opiniões e comportamentos vão determinar o isolamento
ou não do indivíduo; daí sua relação com o controle social. Sob
uma perspectiva, Noelle-Neumann (2010) observa que a ordem
vigente é mantida pelo medo individual do isolamento e pela ne-
cessidade de aceitação; de outra, há as exigências públicas, com
o peso de um tribunal social, que empurram o cidadão para que
se adeque aos comportamentos e às opiniões estabelecidos. O
medo do isolamento obriga o indivíduo a atender à natureza so-
cial do seu meio – essa é a base da principal teoria formulada pela
autora, a espiral do silêncio137.
Por sua vez, Lippmann (2010, p. 40) compreende que a opi-
nião pública aparece nos aspectos do mundo exterior relaciona-
dos ao comportamento. Assim, o conjunto de imagens que com-
põem a cabeça dos sujeitos, “a imagem de si próprios, dos outros,
de suas necessidades, propósitos e relacionamento, são suas opi-
niões públicas”. Além disso, o autor conceitua “Opinião Pública”,

137 O livro A espiral do silêncio – opinião pública: nosso tecido social foi lançado
originalmente em 1982, na Alemanha. Noelle-Neumann avalia que o desejo de evitar o
isolamento por defender determinada visão publicamente culmina na espiral do silêncio.

261
com letras maiúsculas, como aquelas imagens que são feitas por
indivíduos ou grupos agindo em nome de grupos. É nesta se-
gunda formulação que a mídia possui um papel importante, pois
a forma como os sujeitos agem, muitas vezes de maneira incons-
ciente, está estritamente conectada com acontecimentos repor-
tados por meio dos jornais. Por último, Lage (1998) avalia que os
indivíduos não pertencem a um grupo só, em razão de que têm
algumas adesões maiores, tais como: classe social, culturas naci-
onal e regional, padrões ligados à faixa etária, comunidades, lo-
cais de trabalho e família. São esses espaços que vão auxiliar nas
políticas de identificação e de rejeição. Na perspectiva do autor,
considerar apenas o indivíduo, seu meio social e os meios de co-
municação é, demasiado, simples. O meio é composto de gente,
por isso também é preciso levar em consideração os líderes de
opinião – pessoas que ocupam a função de ser mediadoras entre
os meios de comunicação e os demais componentes do grupo.
Nesse sentido, a influência do grupo acontece não apenas quanto
ao conhecimento dos fatos, “à fruição de mensagens e adoção de
hábitos, mas também quanto à aceitação de versões e a exterio-
rização de opiniões que expressam juízos de valor; estas, na ver-
dade, compõem a opinião pública, isto é, a opinião publicamente
manifesta” (LAGE, 1998, p. 211).
Se a opinião pública resulta da interação entre os grupos e os
indivíduos com o seu meio social e a mídia, é preciso compreen-
der: quais as transformações na formação de opiniões a partir da
lógica algorítmica presente nas redes? Trata-se de um processo
em pleno desenvolvimento, de um sistema de construção da opi-
nião pública e coletiva pautado por plataformas baseadas em al-
goritmos curadores.

262
MONOPÓLIOS DIGITAIS E A ESFERA PÚBLICA DA
INTERNET

A política e a cultura, segundo Pasquale (2017, p. 19), foram


influenciadas pelos meios de comunicação de massa durante a
segunda metade do século XX, permanecendo estáveis até mea-
dos da década de 1990. Após esse período, “a esfera pública so-
freu mais uma transformação estrutural, em razão da automati-
zação das decisões comunicacionais capitaneadas por megaem-
presas digitais como Facebook e Google”. Essa mudança, na ava-
liação do autor, passou a impactar a agenda pública, bem como a
democracia, pois essas plataformas passaram a desestabilizar as
mídias tradicionais e o acesso ao conhecimento.
Uma pesquisa do coletivo Intervozes (2018) avalia a concen-
tração e a diversidade dos discursos e mensagens na internet, no
âmbito brasileiro, com foco nos chamados Monopólios Digitais.
Entre as argumentações, é possível considerar que: 1) a concen-
tração de propriedade, resultado da dinâmica empresarial na
rede, manifesta-se por meio da desigualdade na esfera da estru-
tura de mercado. Portanto, o que se observa é uma redução da
competição a partir do crescimento da digitalização e da coleta e
processamento de dados. Essa concentração é marcada pelos gi-
gantes: Google, Amazon, Facebook, Apple e Microsoft; 2) a for-
mação desse cenário é definida pela coleta de dados em larga es-
cala e por seu processamento por meio do uso de algoritmos e de
inteligência artificial; 3) essas plataformas são espaços de medi-
ação construídos para diferentes atividades e interações, pois co-
locam em contato diversos agentes para a aquisição de um bem
ou serviço (Amazon), para a interação social (Facebook), para a
circulação de conteúdo (Google) ou para a realização de ativida-
des específicas; e 4) a superexposição de informações no âmbito
da circulação mediada abriu espaço para que grandes intermedi-
ários passassem a ter um papel central na disponibilização de no-
tícias.

263
O algoritmo, em sua fórmula clássica, escrito em um vocabu-
lário permeado por símbolos e códigos fixos, é regido por instru-
ções precisas e seus resultados são sempre finitos. Já o modelo
de aprendizagem de máquina (machine learning), presente em
sistemas mais complexos, aprende os processos automatica-
mente e é capaz de executar um conjunto de instruções em para-
lelo, portanto, tem o potencial de oferecer resultados infinitos.
Isso se deve, especialmente, ao uso de redes neurais (neural
networks), que podem aprender e resolver problemas de ma-
neira complexa. O aprendizado de máquina, na concepção de Do-
mingos (2015), pode ser aplicado como: modelagem estatística,
reconhecimento de padrões, descoberta de conhecimento, mine-
ração de dados, sistemas adaptativos e auto-organizados, análise
preditiva, dentre outros. Nessa abordagem, Rieder (2018) alerta
que as investigações que visam à crítica de software e de seus pa-
péis sociais devem se beneficiar de uma compreensão aprofun-
dada sobre as técnicas algorítmicas. Grande parte dos mecanis-
mos complexos encontrados na internet possui em sua estrutura
algoritmos com características de aprendizagem, tais como o Fa-
cebook, que faz uso do EdgeRank (ARAÚJO, 2017), e o Google,
que é regido, principalmente, por seu algoritmo primário, o Pa-
geRank (BUNZ, 2017).
Na ótica de Just e Latzer (2017), os algoritmos formam uma
peça central no estágio onde operam. A partir da solicitação de
um usuário e de suas características disponíveis, os algoritmos
aplicam operações estatísticas automatizadas para selecionar
elementos de um conjunto de dados e atribuir relevância a eles.
Por isso, o que os algoritmos calculam e fazem não pode ser se-
parado da constituição das estruturas dos dados, que são forma-
das por rastros digitais (BRUNO, 2012) compostos por milhões
de informações geradas pelos usuários: desde questões socioeco-
nômicas e geográficas até padrões de buscas.
Sobre o consumo de mídia, conforme avaliado por Napoli
(2013), os algoritmos auxiliam no processo de navegação. Redes
que agregam um grande número de indivíduos precisam de

264
mecanismos que auxiliem na distribuição de informações – caso
contrário, o sistema ficaria asfixiado pelas ações coletivas. Em
função disso, o algoritmo resolve uma situação problemática de
sobrecarga de informações, oferecendo um conjunto de princí-
pios operacionais que pode ser utilizado na resolução de proble-
mas. Portanto, existe limitação técnica para enviar todas as men-
sagens em serviços e em plataformas com muitos usuários conec-
tados. A ampla proliferação de volumes de dados aliada à cres-
cente necessidade de orientação por seleção impulsiona o uso de
algoritmos. Todavia, as aplicações das variáveis executadas pela
máquina formam os bastidores de uma plataforma que, na con-
cepção de Latzer et al. (2014), operam no sentido de modelar o
consumo como um todo. Isto é, um status onipresente que não
pode ser simplesmente justificado como uma limitação técnica
da máquina.
No que se refere aos filtros formados pelos algoritmos, no âm-
bito brasileiro, Recuero, Zago e Soares (2017) estudaram a for-
mação de bolhas a partir da circulação de conteúdos políticos no
Twitter. Baseados em uma combinação de métodos, que envol-
veu, principalmente, Análise de Redes Sociais e de Conteúdo, os
autores encontraram resultados que demonstram a existência de
clusters de informação nas redes de conversação política. Com a
apropriação dos termos-chave “impeachment” e “Bolsonaro”,
identificou-se que nos grupos analisados circulam apenas discur-
sos que ecoam a posição política dominante dos atores que com-
põem o grupo. Ou seja, no período explorado não foi observada a
circulação de discursos diferentes ou opostos. Pelo contrário, os
autores encontraram “uma padronização dos processos, com
grande visibilidade para alguns (poucos) nós, uma grande maio-
ria que apenas repassa informações e discursos homogêneos cir-
culando nesses grupos” (RECUERO, ZAGO e SOARES, 2017, p.
25)138.

138 Para os autores, um agregado de nós na rede é um cluster. Uma rede social, no que
se refere à estrutura, possui como características a tendência à grupabilidade e aos bura-
cos estruturais. A grupabilidade expressa o grau de ligação entre os nós. Para a Análise de

265
O exemplo mencionado reforça a afirmação de Thompson
(2005) de que os meios de comunicação não são apenas disposi-
tivos técnicos que transmitem informações de um indivíduo para
outro. Em vez disso, eles criam novas formas de ação e interação
que possuem propriedades distintas. Dependendo dos atributos,
ao usar a mídia de comunicação, a natureza da interação do su-
jeito será moldada por essas propriedades espaciais e temporais
e pelas características diversas do meio. É a partir das novas tec-
nologias e do acesso ubíquo à internet que, na perspectiva do au-
tor, as formas de visibilidade são modificadas.
A noção de modulação proposta por Silveira (2019) colabora
com essa compressão. As redes sociais e os buscadores organi-
zam o ambiente de interação social e com seus algoritmos con-
trolam quem pode ver os conteúdos. Desta forma, a modulação
da opinião pública é realizada “pelo controle da visualização de
conteúdos. As plataformas de relacionamento social online, em
geral, não produzem conteúdos, mas direcionam, organizam e
disseminam as produções de seus usuários, ou seja, utilizam téc-
nicas de modulação” (SILVEIRA, 2019, p. 92). Como instru-
mento, as redes online possuem um grande potencial discursivo
e deliberativo, mas elas só poderão funcionar como parte da es-
fera pública se forem utilizadas com esse objetivo de engaja-
mento cívico por indivíduos, coletivos, instituições e associações.

OPINIÃO PÚBLICA NAS PLATAFORMAS DIGITAIS

O Brasil possui aproximadamente 210 milhões de habitantes,


cerca de 70% da população tem acesso à internet e, destes, 97%
utiliza o celular móvel como dispositivo para acessar a rede
(IBGE, 2018). Diante desse cenário, os avanços dos aparelhos
portáteis configuram a terceira onda de transformação

Redes Sociais, “a estrutura social é representada por uma rede, onde os atores são nós e
as arestas são suas conexões sociais” (RECUERO; ZAGO e SOARES, 2017, p. 9).

266
tecnológica, marcada pela primazia dos smartphones e, ainda,
pelo domínio de grandes empresas de tecnologia que ganharam
espaço no mercado em termos de publicidade dirigida e audiên-
cia (BELL e OWEN, 2017).
No século XX, o jornalismo cumpria o papel de orientar a po-
pulação, formular a agenda e informar sobre os acontecimentos
do mundo. Questões relacionadas ao modo como os meios de co-
municação de massa tradicionais contribuem para a construção
das realidades sociais ao selecionar ou omitir certas informações
sempre estiveram ligadas, em grande parte, aos estudos de gate-
keeper, agenda-setting e enquadramento. Já na contemporanei-
dade, sem transparência ou uma política editorial definida, os al-
goritmos possuem critérios de distribuição indecifráveis. Con-
forme Silveira (2019), as plataformas digitais têm sido funda-
mentais para a formação da opinião política; porém, a sociedade
não tem como saber se a interferência algorítmica possui um viés
político na condução dos debates e na disseminação de conteú-
dos. Apesar de serem estruturas privadas, plataformas como Go-
ogle e Facebook se tornaram espaços nos quais ocorrem impor-
tantes debates públicos e locais em que se dão confrontos de vi-
sões e articulações de opiniões.
Portanto, é possível afirmar que a construção da realidade e
da memória coletiva passa pela seleção algorítmica automati-
zada. E isso difere das versões tradicionais, segundo Just e Latzer
(2017), por dois motivos: 1) a personalização da construção da
realidade contribui para uma maior individualização nas socie-
dades; e 2) a constelação de atores são parte integrante do ecos-
sistema da internet. Também é possível adicionar: 3) em função
dos algoritmos, a imprensa tradicional ou independente tem
cada vez menos controle sobre a agenda do que os usuários vão
debater; e 4) os boatos oferecem outros enquadramentos que não
aqueles pautados pela imprensa séria e/ou pelos fatos. Nesse úl-
timo caso, indivíduos podem produzir informações fundamenta-
das pelas próprias opiniões, sem que estejam conectadas com os
fatos e com a realidade.

267
Dito isso, os próximos passos dividem-se em análises que
agregam teorias ligadas aos algoritmos e à opinião pública. As
considerações ficam estabelecidas por: 1) consumo individuali-
zado e isolamento; e 2) boatos, amigos e a lógica da proximidade.

1) Consumo individualizado e isolamento

Os algoritmos filtram as informações recebidas a partir de


uma estruturação e de um gerenciamento na base de dados. Isso
ocorre por meio de uma categorização que, como salienta Gilles-
pie (2014), é uma poderosa intervenção semântica e política que
dita como as coisas são e como elas deveriam ser. Para classificar
os conjuntos de dados, os modelos variam de: histórico de nave-
gação, informações geográficas, sexo, idade, comportamento,
preferências políticas, rendimento etc. Outras análises contam
dias da semana de acesso, intervalos de tempo, permanência, as-
siduidade, entre outros elementos.
Um dos principais objetivos dos algoritmos, no ponto de vista
de Just e Latzer (2017), é a personalização de processos e resul-
tados. Trata-se de transformar uma atividade em algo individual,
específico ou pessoal. O processo automatizado e instantâneo dos
algoritmos realiza uma seleção em grandes bases de dados, sem-
pre aplicando critérios de escolha personalizada. Apesar de os
dados serem produzidos por centenas de atividades dos usuários,
o recorte realizado pelo filtro e a classificação ocupam-se apenas
de uma parte da realidade específica de cada indivíduo. Por isso,
defende-se que os critérios adotados em uma distribuição reali-
zada por meio de algoritmos são construídos por meio de pa-
drões, muito mais que personalização. Isso, porque os provedo-
res de dados e os insumos dos processos de seleção das informa-
ções são baseados em padrões de comportamentos prévios e pre-
vistos, gerados a partir das interações dos sujeitos. São movimen-
tos e variáveis que agem de maneira repetitiva e que resgatam
aquilo que usuários possuem de mais evidente. Os algoritmos são
projetados em torno de regularidades da estrutura dos dados, e

268
não em torno do conteúdo. É por isso que esses softwares ampli-
ficam as tendências de fragmentação e a individualização do pú-
blico. Assim são formadas as bolhas, a partir de um entrelaça-
mento entre personalização do conteúdo individual e algorítmico
nas plataformas de agregação, criadas para desviar conteúdos
que não correspondem às preferências de orientação política ou
ideológicas estabelecidas por meio da vigilância do usuário.
Individualização e isolamento, por consequência, obscurecem
a diversidade. Os fluxos de informações oferecem ênfases dife-
rentes, e essas narrativas tocam em um ponto crucial: a realidade
do mundo e da opinião no espaço de coesão social – principal-
mente no que tange à consciência coletiva. Desse modo, os algo-
ritmos operam como parte do processo. A estrutura maior é a
forma como os usuários encontraram no isolamento algorítmico
uma forma de ver e conduzir sua experiência, apropriação e sig-
nificação. As práticas cotidianas são performativas, de modo que
se situam e dão forma a esse isolamento. Assim, a ordem vigente
que seria mantida pelo medo individual do isolamento e a neces-
sidade de aceitação, conforme defende Noelle-Neumann (2010),
é quebrada pelos filtros que acolhem os discursos de seus usuá-
rios e os transformam em clusters. Esse cenário oferece o poten-
cial de aumentar a disposição dos sujeitos para expressarem suas
opiniões, conforme avaliado por Malaspina (2014), ou seja, o au-
têntico tribunal social, que empurra o cidadão para que se
amolde às opiniões estabelecidas, é quebrado pelo fortaleci-
mento da zona ofertada pela junção de opiniões similares em um
mesmo espaço de circulação mediada pelos algoritmos. Por outro
lado, a espiral do silêncio, foco da discussão de Noelle-Neumann,
é fortalecida. Não pelo medo do isolamento, mas pela forma
como os algoritmos auxiliam no silenciamento de discursos e
conteúdos divergentes – fundamentais para a democracia.
A espiral do silêncio, formada pela circulação mediada por al-
goritmos, pode ser ilustrada pelo caso dos protestos do

269
adolescente negro Michel Brown139, morto por policiais em Fer-
guson, nos Estados Unidos. As notícias sobre o movimento, se-
gundo Bell e Owen (2017), foram ocultadas do feed do Facebook.
Enquanto muitos usuários acompanhavam o fato pelo Twitter
(que funcionava por ordem cronológica), os que estavam presen-
tes no Facebook recebiam publicações sobre o “desafio do balde
de gelo” – vídeos virais sobre a conscientização da esclerose late-
ral amiotrófica (ELA). Esse fato não possui relação nenhuma com
a quantidade de conteúdos e de relatos que foram produzidos so-
bre o acontecimento, “conforme conta o jornalista John McDer-
mott, embora houvesse muito mais notícias sobre Ferguson do
que sobre o desafio do balde de gelo, no Facebook o número de
‘referrals’ (referências) aos protestos foi muito menor” (BELL e
OWEN, 2017, p. 76).
Um jornal não personalizado costuma trazer as notícias do
dia, uma representação dos acontecimentos. Por meio de publi-
cações determinados fatos ganham repercussão pública. Ao na-
vegar pelas páginas, é inevitável que alguns conteúdos recebam
proporções maiores no tempo gasto com a leitura, contudo o ato
de passar os olhos, de saltar aqui e ali, faz com que o leitor tenha
conhecimento de que outras histórias existem. Na ação formada
pelos filtros, Pariser (2012) avalia que a situação é diferente, os
sujeitos não enxergam pautas que não os “interessam”. Não fi-
cam cientes, mesmo de maneira latente, de que existem outros
eventos acontecendo. Esse cenário implica na perda de agenda-
mento da mídia que, apesar de ainda pautar temas de interesse
público, sofre com a forma como as plataformas controlam o
acesso dos indivíduos. Em relação a isso, o The Intercept Brasil
questionou o modo como o Google News estava escondendo o
jornal dos leitores que utilizam o agregador para se informar. Um

139 O homicídio de Michael Brown ocorreu em 9 de agosto de 2014, na cidade de Fer-


guson, na periferia de St. Louis. Brown, um jovem negro de dezoito anos, morreu após
ser alvejado pelo oficial da polícia municipal Darren Wilson.

270
editorial140 escrito por André Souza, publicado em agosto de
2019, apresenta os motivos de tais questionamentos. Entre eles,
o jornalista constata que os algoritmos do Google News não no-
taram os furos de reportagens feitos pelo veículo em relação à
Lava Jato141, mas, de maneira oposta, o que aparecem são sites
partidários e conteúdos falsos questionando a veracidade ou dis-
torcendo as informações produzidas pelo jornal.
Conforme Bucher (2012), dizer que o meio é a mensagem –
abordagem desenvolvida por Marshall McLuhan – é também
afirmar que é o meio que faz a mensagem visível, orientando a
visibilidade para uma determinada direção. A mídia como ins-
trumento de seleção e enquadramento aponta para o fato de que
a visibilidade dos meios de difusão nunca é neutra. Na concepção
da autora, é sempre um processo de como tornar o conteúdo sig-
nificativo. É assim que os algoritmos funcionam, como uma es-
trutura de variáveis que não pode ser medida nem observada
pelo prisma da neutralidade; pelo contrário, as exclusões são re-
flexos de um regime que não impõe visibilidade a todos os assun-
tos e indivíduos. As métricas vistas e as não vistas, na observação
de Beer (2016), produzem e definem possibilidades. Nessa lógica,
elas tomam a decisão final sobre qual informação será consu-
mida e qual será ignorada. Por isso, no que se refere à opinião
pública, os discursos que circulam moldam a forma como os usu-
ários enxergam os acontecimentos e formam suas opiniões, mui-
tas vezes de maneira inconsciente, conforme já defendia
Lippmann (2010). Por outro lado, são os próprios usuários que
involuntariamente moldam os conteúdos ao definirem os filtros

140 SOUZA, André. Como o Google News esconde o TIB de você. Texto original
enviado pela newsletter The Intercept Brasil em 17 de agosto de 2019. Texto publicado
na íntegra pela Carta Maior em 18 de agosto de 2019. Disponível em:
https://bit.ly/33YGD0A. Acesso em: 24 ago. 2019.
141 O The Intercept Brasil produziu, a partir de arquivos inéditos (mensagens privadas,
gravações em áudio, vídeos, fotos, documentos judiciais), enviados por uma fonte anô-
nima, uma série de reportagens que revelou comportamentos antiéticos de juízes e pro-
curadores da Lava Jato. A primeira reportagem da série está disponível em:
https://bit.ly/2MzHxfh. Acesso em: 24 ago. 2019.

271
de suas preferências. Isto é, trata-se de um sistema construído
com base nas informações resultantes da interseção de estraté-
gias sociais, culturais, políticas, econômicas e informativas.
É no sentido da polarização que os algoritmos atuam de ma-
neira direta. Noelle Neumann (2010) afirma que o risco do isola-
mento passa a ser mais frequente em períodos de mudanças so-
ciais drásticas. Mas, quais os efeitos das manifestações públicas
se elas não conseguem ultrapassar as barreiras impostas pelos
algoritmos? O isolamento dos filtros não permite a violação dos
espaços. Um redemoinho de silêncio se forma, progressistas fa-
lam com progressistas, conservadores com conservadores etc. A
violação dos valores vigentes e a transformação da opinião pú-
blica, nesse modelo, não passam pela transformação que deveria
estar ligada à tolerância, mas, pelo contrário, fortalecem grupos
extremos. Posto isso, não seriam os algoritmos os motores da na-
tureza desse modelo de opinião pública que se configura desde o
fortalecimento das redes sociais? Um espaço-tempo baseado em
cálculos que afastam, mais do que aproximam.

2) Boatos, amigos e a lógica da proximidade

Foi nesse contexto que a pós-verdade (post-truth) ganhou


força. Eleita a palavra do ano de 2016, pelo Dicionário de Oxford,
este substantivo denota circunstâncias nas quais fatos objetivos
têm menos influência em moldar a opinião pública do que apelos
a emoções e a crenças pessoais. Lippmann (2010, p. 77) consi-
dera a opinião pública como algo que está em intermitente con-
tato com as complexidades dos sujeitos, tais como “interesses
econômicos e ambição, animosidade pessoal, preconceito racial,
sentimentos de classe e tudo o mais”. Chama a atenção o fato de
que o autor já considerava que essas construções e complexida-
des “distorcem nossa leitura, nosso pensamento, nossa conver-
sação e nosso comportamento numa variedade de formas” (Ibi-
dem). Na interpretação de Kakutani (2018), a pós-verdade teria
bases no relativismo em ascensão desde as guerras culturais da

272
década de 1960 e no narcisismo e subjetividade em crescente de-
senvolvimento desde “a década do eu”, de Tom Wolfe. Com tais
características, não importa, verdadeiramente, a realidade, va-
lem mais as suposições construídas pelos indivíduos acerca dela.
No que tange ao declínio da verdade, Kakutani (2018) avalia
que o termo entrou para o léxico da era da pós-verdade. Contexto
que também abarca expressões usuais como fake news (notícias
falsas); ciência falsa (movimento antivacina e negacionistas das
mudanças climáticas); história falsa (negacionistas do Holo-
causto e da Ditadura Militar de 1964); e os perfis falsos criados
por trolls e bots. Ainda, é possível acrescentar: a distribuição
massiva de conteúdos falsos por meio de grupos de conversa; e o
uso intenso de dados de usuários, coletados por meio de invasão
de privacidade e de vigilância para criar perfis psicológicos para
manipulação por meio de conteúdos que reforçam crenças e
emoções.
No âmbito permeado por algoritmos, o que é aceito como ver-
dade, bom, realista não está apenas relacionado à forma como
sujeitos se autodefinem, mas também às experiências adquiridas
por meio dos filtros carregados de julgamentos acumulados pelo
rastreamento digital. Pariser (2012) chamou a atenção para o
modo como as redes sociais são configuradas com base em crité-
rios como proximidade, ou seja, os relacionamentos e as intera-
ções passam a ser caracterizados por sujeitos que pensam de ma-
neira homogênea. Nesse sentido, Napoli (2018) observa uma
nova heurística, em que a veracidade de uma notícia está sendo
substituída pela confiabilidade do indivíduo que compartilhou a
história. Isso indica que um artigo compartilhado por um amigo
confiável, mas escrito por uma fonte desconhecida, será avaliado
como mais confiável e, portanto, mais provável de ser consumido
e compartilhado pelo sujeito do que um artigo produzido por
uma fonte de notícias consolidada, mas compartilhado por al-
guém visto com menos confiança. Esse efeito, resumidamente,
define a forma como usuários são mais propensos a seguir e re-
comendar canais de notícias que foram encaminhados e

273
recebidos por membros confiáveis de sua rede social. Nesse caso,
a credibilidade passa a ser dada à fonte, ou melhor, ao fornecedor
da informação.
Em vista disso, cabe o resgate de duas pesquisas que apresen-
tam uma dimensão sobre a confiança na mídia. A primeira, de
2018, da Edelman Trust Barometer142, mostra o Brasil entre os
seis países com quedas altas de confiança. Em um comparativo
com anos anteriores, as maiores quedas aconteceram no go-
verno, que perdeu seis pontos e chegou a 18%, e na mídia, que
caiu cinco pontos e agora está com 43%. O ceticismo em relação
à imprensa aparece em três eixos, demarcados pela porcentagem
dos que concordam que os veículos são focados demais em: 1)
atrair grandes audiências (74%); 2) sacrificar a exatidão pelo furo
(71%); e 3) apoiar uma ideologia ao invés de informar o público
(67%). A pesquisa também mostra que 58% dos brasileiros não
sabem diferenciar o que é verdade do que é mentira. Já a se-
gunda, de 2019, feita pelo Digital News Report143, avalia que o
nível médio de confiança nas notícias caiu dois pontos percentu-
ais em todos os países, chegando a 42%. No contexto brasileiro,
a confiança caiu 11 pontos percentuais de 2018 para 2019 e agora
está em 48%.
A confiabilidade na mídia já era tema na literatura de Noelle-
Neumann (2010). Na obra sobre a espiral do silêncio, foi possível
encontrar a descrição de que as pessoas dão mais importância ao
que dizem e pensam seus amigos com ideologias similares do que
aquilo que dizem os desconhecidos. Porém, com as redes sociais,
essa aproximação entre os sujeitos com atrações sociais similares
foi facilitada, basta clicar nos botões de seguir ou de aceitar ami-
zade. Assim, além da valorização da amizade no campo das redes
de conversação, a presença de líderes de opinião –

142 Realizada pela Edelman, agência global de Relações Públicas, a pesquisa ouviu mais
de 33 mil pessoas em 28 países. Disponível em: https://bit.ly/2JFIKuW. Acesso em: 20
jan. 2019.
143 O estudo foi feito com mais de 75 mil consumidores de notícias online de 38 países.
Disponível em: http://www.digitalnewsreport.org/. Acesso em: 17 jun. 2019.

274
influenciadores – também não pode ser excluída, afinal, a partir
da formação de um canal/rede com milhões de seguidores, indi-
víduos propagam ideias e levantam bandeiras – sejam elas pagas
ou livres de financiamento. O meio é composto de gente, por isso
também é preciso levar em consideração a relação de proximi-
dade que as redes e os algoritmos formam. Conforme defendeu
Lage (1998), a adoção de hábitos e de aceitação de versões passa
pela relação entre os grupos. E essa ação de inclusões e exclusões
de indivíduos por meio dos filtros aumenta as narrativas que co-
laboram com percepções e crenças individuais, o que contribui
para a constituição de uma esfera pública parcial, com uma falsa
percepção de consenso, já que os sujeitos que compõem a rede
partilham das mesmas opiniões. O viés da confirmação por meio
dos filtros é uma força que auxilia usuários na proteção de seus
valores. Esse viés nada mais é, segundo Pariser (2012), do que a
tendência de acreditar naquilo que reforça noções preexistentes,
fazendo com que sujeitos enxerguem justamente o que querem
ver. Trata-se de uma força mental que protege valores e esque-
mas contra erosões e, ainda, favorece o conteúdo que ratifica “no-
ções existentes sobre o mundo, em detrimento de informações
que as questionam” (PARISER, 2012, p. 62).
Nessa acepção, de acordo com Napoli (2018), avança a espiral
do partidarismo, ou seja, a ascensão de canais de notícias ou bo-
atos partidários que, com base na exposição seletiva, justifica sua
existência a partir do consumo polarizado. Essa lógica de distri-
buição também impede que exposições de contradiscurso se pro-
paguem. E isso é uma das essências dos filtros algorítmicos, que
são criados para desviar fontes de notícias e conteúdos que não
correspondem às preferências do sujeito. Nesse ponto, segundo
o autor, entram também os problemas dos conteúdos falsos. O
filtro pode desviar notícias falsas que contradizem as legítimas,
bem como, pode desviar notícias legítimas que contradizem os
boatos.
Portanto, as plataformas de circulação mediadas por algorit-
mos podem alterar as condições do debate democrático pelo

275
controle de distribuição de informações, isso ocorre por meio da
filtragem e da hierarquização dos resultados encontrados a partir
das buscas. Silveira (2019) lembra que não basta um bombardeio
de conteúdos para que todos sejam convertidos, não há provas de
que a exposição de resultados possa convencer pessoas a apoiar
determinadas posições políticas – principalmente porque existe
uma série de outros atores e instituições que auxiliam na tomada
de decisões. Contudo, a disputa democrática depende das possi-
bilidades de os diversos atores envolvidos terem acesso a todas
as pessoas, ou, pelo menos, a maioria delas. A restrição dos dis-
cursos “pode gerar ignorância e desconhecimento de proposições
e tornar menos visíveis determinados grupos políticos. Pode criar
mais ou menos inação, desânimo, irritação, entorpecimento ou
revolta, a depender das mediações realizadas” (SILVEIRA, 2019,
p. 96). Desse modo, à medida que o ambiente se torna cada vez
mais fragmentado, a capacidade de satisfazer o crescente parti-
darismo e a intolerância é amplificada.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A proposta deste artigo foi discutir, de maneira teórica, as im-


plicações da circulação mediada por algoritmos no que se refere
à construção da opinião pública. Cabe destacar que se trata de
um estudo que arranha uma superfície que deve ser aprofundada
com estudos empíricos na tese de doutorado da autora144. Por
ora, sugere-se uma definição de opinião pública aplicável ao am-
biente contemporâneo:
Opinião pública é discurso que circula nos espaços sociais, vir-
tuais e individuais dos sujeitos. Representa os fragmentos de

144 A pesquisa de doutorado, em andamento, visa compreender de que forma os algo-


ritmos implicam na mediação e na recepção de notícias por integrantes de Igrejas Ne-
opentecostais e professores sindicalizados da rede pública de ensino. O estudo trata das
reconfigurações da espiral do silêncio no contexto contemporâneo e utiliza os estudos
culturais como base para a aplicação metodológica.

276
uma vida social construída a partir da educação, família, religião,
ideologia, política e consumo noticioso. Nesse sentido, a forma-
ção da opinião não designa apenas uma coisa, mas várias. Isso
porque a coletividade também não tem uma única forma de se
manifestar, mas diversas. Concordando com Farias (2019, p. 43),
“a opinião pública se forma em processo contínuo, movida por
fatos, circunstâncias, filtros, culturas e interesses”. No espaço
virtual, a opinião é o reflexo dos sentidos atribuídos ao que usu-
ários curtem, comentam, compartilham e espalham nos seus per-
fis públicos e privados. No entanto, seguindo a linha atribuída
por Farias (2019), nem toda opinião publicada é de fato opinião
pública145 – em virtude, principalmente, do controle exercido pe-
los monopólios digitais. Atribui-se ao jornalismo e aos boatos o
papel de auxiliar na formação desses sentidos e aos algoritmos –
como dispositivos de mediação – o de conduzir as definições de
opinião construídas pelos usuários conectados. Além disso, líde-
res de opinião – ou influenciadores – podem se formar a partir
de interações online e off-line entre os sujeitos, colaborando com
o campo das mediações que entrelaçam os movimentos ocasio-
nados pelos filtros algorítmicos.
O poder invisível, na avaliação de Silveira (2019, p. 131), não
está apenas nos corredores do Estado, nas articulações ocultas
entre os membros do Poder Judiciário e dos partidos políticos do
Poder Executivo. “O poder invisível de grande relevância para a
democracia está similarmente nos processos de formação das
preferências políticas e ondas de opinião, ou seja, está também
nas plataformas, nos códigos fechados dos seus softwares e algo-
ritmos”.
Posto isso, como defesa final deste estudo, os cálculos e as or-
denações desempenhados não são meramente demandas mate-
máticas, é preciso uma visão que não perca de vista as questões

145 Farias (2019), ao citar Vestena (2008), descreve que a opinião pública é a expres-
são que diz respeito a temas de interesse comum, já a opinião publicada é a apresenta-
ção pública da opinião. Logo, o autor defende que uma opinião jamais será pública se
não for publicada.

277
políticas, econômicas e sociais envolvidas por trás do funciona-
mento e da mediação dos algoritmos. E, acima de tudo, é indis-
pensável compreender a relação desse ambiente de circulação
mediada por algoritmos com o aumento do partidarismo e da in-
tolerância a partir da formação de uma esfera pública parcial e
fragmentada. Somente por meio da compreensão de como as me-
diações sociais circulam e ganham corpo no mundo das decisões,
moldando o que é possível e é visto, que será viável dimensionar
a potência dos algoritmos em contextos sociais, pois é com base
nessa avaliação que será possível vê-los como parte de forças po-
líticas e históricas mais amplas.

278
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282
 INTERVENÇÃO MILITAR JÁ: OS MEMES DA INTERNET E O
IMAGINÁRIO DA NOVA DIREITA BRASILEIRA SOBRE A
DITADURA CIVIL-MILITAR146

GUILHERME POPOLIN

RESUMO

Após junho de 2013, os memes políticos da internet passaram


a fomentar de modo latente o imaginário daqueles que se identi-
ficavam com a nova direita brasileira. Este artigo demonstra a
articulação entre os memes da internet, o imaginário da nova di-
reita e a ditadura civil-militar no Brasil (1964-1985) para evocar
o mito da Era de Ouro por meio de memes persuasivos, memes
de ação popular e memes de discussão pública. O arcabouço teó-
rico, com contribuições da comunicação, da história e das ciên-
cias sociais, permitiu lançar luz sobre a problemática proposta.
Fruto da cultura digital, os memes reatualizam o mito da Era de
Ouro, em articulação com o imaginário da nova direita brasileira
na internet, fomentando o negacionismo histórico, a relativiza-
ção dos crimes cometidos pelo Estado e a banalização da morte
das vítimas perseguidas, torturadas, assassinadas e ocultadas no
período ditatorial.

146 Uma versão preliminar deste trabalho foi apresentada no GP Comunicação e Cul-
tura Digital, no XIX Encontro dos Grupos de Pesquisas em Comunicação, evento compo-
nente do 42º Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação, na Universidade Federal
do Pará (UFPA). A presente versão incorpora as discussões realizadas durante o evento,
bem como as valiosas contribuições dos pareceristas. Agradeço especialmente aos orga-
nizadores do e-book, Profª. Drª. Beatriz Polivanov (UFF), Prof. Drº. Willian Fernandes
Araújo (UNISC), Prof. Drº Caio C. G. Oliveira (PUC-MG) e Tarcízio Silva (Douto-
rando/UFABC) pela valorização da pesquisa em Comunicação, sobretudo em relação à
Cultura Digital, para que possamos, por meio da ciência, compreender o mundo e buscar
soluções para as reveses que enfrentamos.

283
PALAVRAS-CHAVE: memes políticos; nova direita; imaginário;
mito da era de ouro; internet.

ABSTRACT

After June 2013, political memes began to latently foster the


imagination of those who identified with the New Brazilian
Right-wing. This article demonstrates the articulation between
internet memes, the New Right-wing’s imaginary and the civil-
military dictatorship in Brazil (1964-1985) to evoke the Golden
Age myth through persuasive memes, grassroots action memes
and public discussion memes. The theoretical framework, with
contributions from communication, history and social sciences,
shed light on the proposed problem. As a result of digital culture,
memes update the Golden Age myth in conjunction with the im-
aginary of the New Brazilian Right-wing on the internet, foster-
ing the historical negationism, the relativization of state crimes
and the banalization of the deaths of persecuted, tortured, mur-
dered and hidden victims in the dictatorial period.

KEYWORDS: political memes; new right-wing; imaginary;


golden age myth; internet.

INTRODUÇÃO

A partir das jornadas de junho de 2013, a direita brasileira ga-


nhou espaço na disputa simbólica proporcionada pela internet,
principalmente no site de rede social147 Facebook, uma vez que
elementos da cultura popular passaram a ser comumente

147 Um site de rede social é uma plataforma em que os participantes se comunicam por
meio de perfis de identificação única, com conteúdos produzidos pelo usuário, por outros
usuários e/ou pelo sistema. As conexões entre os participantes podem ser vistas e cruza-
das por outros. Os usuários podem produzir, consumir e interagir com conteúdos gerados
por meio de suas conexões no site. (ELLISON; BOYD, 2013. apud RECUERO, 2015).

284
utilizados no âmbito da política, com o meme da internet con-
densando novas e velhas formas de reatualização de mitos políti-
cos. Este artigo tem como objetivo compreender, de maneira pre-
liminar, como se constitui a produção do imaginário político e
social da nova direita brasileira sobre a ditadura civil-militar no
Brasil148 por meio dos memes da internet.
Com a internet, novas lideranças e novos articuladores políti-
cos despontaram em consonância com a emersão de uma nova
direita online (SILVEIRA, 2015). De acordo com Sylvia Mo-
retzsohn (2017), o ciberespaço149 amplifica a reprodução rasa do
senso comum sobre questões graves, de modo que as relações de
força muito desiguais do mundo presencial refletem no mundo
virtual, onde as relações de poder preexistentes se reproduzem e
se amplificam. Nesse contexto, o meme da internet torna-se uma
das principais formas de manifestação política, sendo assim, este
artigo levanta a seguinte problemática: de que maneira se dá a
articulação entre os memes da internet e o imaginário da nova
direita sobre a ditadura civil-militar no Brasil?
A fim de responder a problemática proposta, o percurso bibli-
ográfico e analítico é estruturado à luz de conceitos – sob as pers-
pectivas da comunicação, da história e das ciências sociais – so-
bre cultura digital, memes políticos da internet, a nova direita
brasileira e a ditadura no Brasil. O foco está em definir a direita
brasileira de maneira holística, sobretudo, a nova direita online.
Uma discussão mais aprofundada sobre a(s) esquerda(s) e a(s)
direita(s) demanda uma investigação semântica e histórica mais
específica, o que fugiria do escopo do presente trabalho.
Este artigo é um desdobramento do projeto de pesquisa de
mestrado do autor150 (POPOLIN, 2018). A metodologia é híbrida,
com características tanto quantitativas como qualitativas. Após a

148 O golpe civil-militar de 1964 levou o Brasil a um período ditatorial de 21 anos (1964-
1985). É considerado como civil-militar, já que parte da sociedade civil apoiou e foi de
grande importância para a manutenção dos militares no poder (SILVA, 2014).
149 Segundo Paulo Vaz (2004), a ideia de ciberespaço enquanto um lugar está em crise.
Entretanto, para essa fase da pesquisa, tal concepção não altera o objetivo pretendido.
150 Intitulada Memes de discussão pública: o mito do comunismo no Facebook.

285
coleta e catalogação dos memes, a análise é realizada por meio da
revisão bibliográfica (GERHARDT e SILVEIRA, 2009) e da aná-
lise de conteúdo (HSIEH e SHANNON, 2005), ambas com cará-
ter interdisciplinar, sobre memes políticos persuasivos, de ação
popular e de discussão pública (CHAGAS et al., 2017). A fonte
dos memes, como indicado abaixo das figuras ao longo do texto,
é a página do Facebook O Retrógrado, identificada por emitir
conteúdos ligados ao espectro da direita política.151 Por ser uma
fonte online sob a tutela de seus emissores e do site de rede social
onde é hospedada, realizou-se um backup das imagens, o que se
mostrou fundamental para o andamento da pesquisa. A página
original foi excluída do site de rede social, porém, como o obje-
tivo deste trabalho é analisar os memes em si e não seus instru-
mentos de propagação ou de recepção, a pesquisa não foi preju-
dicada.

OS MEMES COMO INSTRUMENTO DE DISPUTA SIMBÓLICA

Nas últimas décadas presenciou-se globalmente exemplos de


ciberativismo – como o Movimento Zapatista, a Batalha de Se-
attle, a Primavera Árabe e o 15-M – endossados pela comunica-
ção distribuída em redes. A cibercultura (LEMOS, 2002; LÉVY,
2010) permite o surgimento das comunidades virtuais povoadas
por multidões integradas em forma de rede no ciberespaço e, so-
bre este cenário, é possível o aparecimento de disputas de narra-
tivas com a intenção de conquistar a opinião pública (MALINI,
2013). Contudo, ao mesmo tempo em que induz uma certa eman-
cipação social, a internet passou a significar também o desman-
telamento das liberdades, “[...] favorecendo a fragmentação das
ideologias, fortalecendo Estados totalitários e lideranças que

151 O binômio direita e esquerda sintetiza propostas de políticas antagônicas, em que,


resumidamente, a esquerda busca a igualdade entre os seres humanos e a mudança da
ordem social. Já a direita considera a desigualdade como inerente aos seres humanos, ao
mesmo tempo em que valoriza o apego às tradições (BOBBIO, 2001).

286
aspiram a derrocada das democracias, bem como consolidando a
supremacia dos mercados sobre a sociedade” (MOROZOV apud
SILVEIRA, 2015, p. 214).
O tom festivo que muitos teóricos davam às redes sociais da
internet, vislumbrando a politização das massas e a organização
da sociedade em prol de bens comuns, deixa de existir quando
percebe-se a formação de redes sustentadas por solidariedades
opressoras. Nesse sentido, o potencial democrático da internet
pode ser aferido levando em conta os memes políticos na cons-
trução do debate público (CHAGAS, 2018a), na participação po-
lítica (DENISOVA, 2016) e na ciberdemocracia (LEMOS e LÉVY,
2010). Esse potencial pode não ocorrer de forma plena nos sites
de rede social por conta do que Axel Bruns (2005) conceituou
como gatewatching: a seleção feita pelo usuário do que é rele-
vante ser visto.
No caso do Facebook, a ação de gatewatching em confluência
com os algoritmos pode levar à formação de “bolha dos filtros”
(PARISER, 2012), ou seja, à extrema personalização dos conteú-
dos – que tem a polarização política como um efeito possível. Re-
cuero et al. (2017) demonstram, segundo o estudo de dois casos,
a existência da bolha dos filtros na mídia social brasileira, o que
segundo Julio Castro (2018) determina uma hiperespecialização
de interesses. A bolha dos filtros e os algoritmos nos sites de rede
social contribuem para determinar a realidade, potencializando
interesses e atividades específicos. Todavia, Bruns (2019) aponta
que a tendência em culpabilizar as plataformas e os algoritmos
como responsáveis pelas rupturas políticas, pelo aumento do po-
pulismo e pela hiperpolarização das democracias, recorre a uma
explicação enviesada pelo determinismo tecnológico, em detri-
mento das causas reais dos problemas. De fato, as plataformas,
como o Facebook, precisam se engajar em prol de desmantelar
redes opressoras e criminosas, contudo, o cerne do problema não
está nas mídias sociais, mas sim nas maneiras como são apropri-
adas por grupos políticos.

287
Nesse contexto, na cultura digital, de acordo com Jenkins
(2009), as responsabilidades civis são encaradas sob a perspec-
tiva da expertise de fã quando a política se transforma em um
tipo de cultura popular. O indivíduo tenta monitorar as informa-
ções políticas acumuladas, porém, ao não ter conhecimento so-
bre todas as questões adquire uma postura defensiva e vigilante.
Jenkins et al. (2014) apontam uma mudança no sentido da dis-
tribuição para a circulação de mensagens, o que significa um mo-
delo mais participativo de cultura. Nesse aspecto, a autocomuni-
cação de massas (CASTELLS, 2017) faz referência às pessoas que
até então só manifestavam suas opiniões políticas em uma roda
presencial de amigos, mas que com os sites de rede social passa-
ram a registrá-las online, por exemplo, no Facebook. Esse fenô-
meno contribui para a disseminação de mensagens que perpe-
tuam estereótipos e mitos políticos nas redes, endossando fenô-
menos como a pós-verdade (SCHNEIDER e PIMENTA, 2017) e
a tendência a preferir o já conhecido (VAZ, 2004). Portanto, “em
vez de os indivíduos se conectarem para se abrirem ao novo, eles
podem acessá-la [a internet] para ter mais do mesmo, restrin-
gindo suas visitas aos sites que confirmam suas crenças sobre o
mundo” (VAZ, 2004, p. 129).
Nessa perspectiva, muitas pessoas passam a se expressar e a
compreender o mundo, inclusive sobre o aspecto político, por
meio dos memes da internet. De acordo com Viktor Chagas
(2018b), os memes da internet podem ser compreendidos sob
dois panoramas: o primeiro ligado à Memética (BLACKMORE,
2000), em que o meme é entendido como uma unidade de repro-
dução cultural; o segundo e o considerado por esta pesquisa, de
forma holística, trata os memes como “um acervo, um coletivo
orgânico de conteúdos, de modo que só encontram sentido
quando analisados em conjunto” (CHAGAS, 2018b, p. 367).
A apropriação do termo “meme” – cunhado por Richard Daw-
kins (2007), em 1976 – define, hoje, os conteúdos que circulam
em conjunto pelas mídias sociais, portanto, segundo Limor
Shifman (2014), atuando em grupos, uma vez que os memes da

288
internet não atuam como unidades únicas, mas como grupos de
itens com características semelhantes. São reflexos de vozes co-
letivas – culturais e sociais – e de vozes individuais que carregam
as possibilidades de imitação e recriação. A autora define um
meme da internet como “(a) um conjunto de elementos digitais
que partilham características comuns de conteúdo, forma e/ou
(b) foram criados com consciência uns dos outros, e (c) foram
disseminados, imitados e/ou transformados pela Internet por
muitos usuários (p. 41, tradução nossa)”.152 Dessa maneira, o
meme pode integrar e socializar o indivíduo com a linguagem po-
lítica, funcionando como um comentário ou uma reação em rela-
ção a alguma situação específica. A experiência compartilhada de
construção política faz com que o meme aja também como um
ator de letramento político (CHAGAS, 2016).
Seguindo os caminhos apontados por Limor Shifman, Chagas
et al. (2017) desenvolveram uma matriz taxonômica baseada em
pesquisas sobre memes e Comunicação Política, a qual compre-
ende os memes como um conjunto semântico, ou seja, quando o
conjunto é separado em unidades isoladas, estas unidades não
conseguem atingir um significado. Os memes políticos foram di-
vididos em gêneros: os persuasivos, os de ação popular e os de
discussão pública. Os memes de persuasão caracterizam-se pela
retórica de suas mensagens e pelo poder de convencimento. A
sua lógica de funcionamento e de disseminação pode ser “[...]
identificada com o marketing viral, o meme persuasivo é o equi-
valente ao que Henry Jenkins caracteriza como uma sticky media
(ou uma “mídia-chiclete”, numa tradução livre)” (CHAGAS e
TOTH, 2016, p. 217).
Os memes de ação popular são compreendidos como aqueles
que possuem sentido quando atuam coletivamente. Frases de
efeito, bordões e comportamentos coletivos caracterizam-se
como ação popular (CHAGAS et al., 2017). Já os memes de

152 “(a) a group of digital items sharing common characteristics of content, form,
and/or stance, which, (b) were created with awareness of each other, and (c) were cir-
culated, imitated, and/or transformed via the Internet by many users”.

289
discussão pública possuem um humor latente e, geralmente, a
construção se faz a partir de uma imagem estática com legendas
sobrepostas ou com a adição de elementos característicos das fo-
tomontagens. Os memes de discussão pública “[...] flertam com
a ironia e o humor subversivo, dessacralizam e deslocam senti-
dos” (CHAGAS, 2016, p. 95).

A NOVA DIREITA E A DITADURA INJUSTIÇADA

A partir das jornadas de junho de 2013, o potencial democrá-


tico da internet foi posto à prova, pois o Brasil enfrentou recor-
rentes manifestações de descontentamento, por parte da popula-
ção, contra o governo. As manifestações, endossadas pelo capital
financeiro e pela mídia hegemônica, legitimaram o impeachment
da ex-presidenta Dilma Rousseff, em 2016 (SOUZA, 2016;
PRUDENCIO et al., 2018). Nesse contexto, a internet e as redes
sociais fervilharam em debates acalorados entre a “direita” e a
“esquerda”. O Mito da Idade de Ouro, o Mito do Herói Salvador,
o Mito do Império das Trevas e o Mito da Unidade (GIRARDET,
1987) encontraram território fértil para propagarem-se por meio
dos memes da internet.
No Brasil, na América Latina e no mundo, a direita se rea-
grupa, se atualiza e emprega novas táticas para propagar um dis-
curso que pode ser interpretado como conservador, reacionário
ou fascista. De acordo com Sebastião Velasco e Cruz (2015) a di-
ferença entre a direita e a esquerda é entendida como um juízo
diverso, que pode ser negativo ou positivo, sobre o ideal de igual-
dade no âmbito da moral e das visões de mundo: a esquerda
unida pela busca de um sentimento de igualdade, contra as inú-
meras desigualdades vistas pela direita como naturais e inevitá-
veis.
A direita nas redes sociais online passou a ser mais mobilizada
que a esquerda, com sua força fundamentada, entre outros moti-
vos, na associação entre os memes e o senso comum. A partir de

290
junho de 2013, os “memes da direita capturavam pessoas que não
se identificavam com sua agenda, mas queriam um mundo me-
lhor e acreditam em uma sociedade mais justa” (SILVEIRA,
2015, p. 225, grifo do autor). Os sites de rede social permitiram
que uma direita pouco expressiva no próprio parlamento e na mí-
dia tradicional, mas com forte capacidade de mobilizar o senso
comum, expressões de ódio e preconceito, reunisse pessoas dis-
persas e avançasse na articulação de adeptos.
A pesquisa Mapa das redes de mobilização no Facebook exe-
cutada pelos professores Esther Solano (Unifesp), Pablo Ortel-
lado (USP) e Marcio Moretto (USP) mostra a direita mais mobi-
lizada nas redes em relação à esquerda.153 Em 2018, um dos prin-
cipais líderes na nova direita foi eleito Presidente da República
do Brasil, uma vez que o bolsonarismo, com suas milícias digi-
tais,154 mostrou “(i) um esforço distribuído, capilar e voluntário
visivelmente maior do que seus adversários em termos de cam-
panha positiva e (ii) de uma visibilidade ‘viral’ da sua figura na
internet” (CRUZ e MASSARO, 2018, p. 18).
Nesse contexto, entre algumas hipóteses elencadas por Jorge
Chaloub e Fernando Perlatto está que o destaque conquistado
pelos intelectuais da “nova direita” na esfera pública se deve ao
“distanciamento temporal da ditadura militar”, a qual é identifi-
cada como de direita, “o que contribui para que aqueles setores
identificados com essa perspectiva se sintam mais à vontade para
esposar suas opiniões publicamente, sem maiores constrangi-
mentos” (2016, p. 27).
Ações da ditadura civil-militar consideradas positivas são tra-
zidas à tona pela nova direita com o objetivo de, por meio delas,
lançar luz sobre reveses da contemporaneidade. Para alguns in-
telectuais da nova direita – Olavo de Carvalho, Rodrigo

153 A direita está mais mobilizada que a esquerda nas redes. Disponível em:
https://www.cartacapital.com.br/politica/direita-esta-mais-mobilizada-que-a-es-
querda-nas-redes. Acesso em: 22 set. 2018.
154 As milícias digitais de Bolsonaro e o colapso da democracia. Disponível em:
https://revistacult.uol.com.br/home/naomatem-a-democracia/. Acesso em 3 jul. 2019.

291
Constantino, Reinaldo Azevedo e Marco Antonio Villa – o golpe
que deu início à ditadura civil-militar foi justo e necessário para
evitar a dominação da esquerda, o que faz com que, para esses
autores, alguns consensos históricos sobre o regime militar se-
jam tratados como injustiças. Os formadores de opinião da nova
direita legitimam o anseio de uma política pautada em princípios
neoliberais, muitas vezes aliados aos think tanks de direita em
defesa do livre mercado e das privatizações (MESSENBERG,
2017).

A DITADURA COMO UMA ÉPOCA DE ORDEM E HARMONIA

Os mitos possuem um caráter ambíguo e sua função de expli-


cação tem a missão de ordenar o caos perante os acontecimentos,
em busca da compreensão do presente (CAMPBELL, 2016).
Dessa maneira, o estudo da mitologia é indispensável a este ar-
tigo e à sua problemática. Raoul Girardet (1987) identifica quatro
grandes conjuntos de mitos políticos: a Conspiração, a Era de
Ouro, o Salvador e a Unidade, de modo que o adepto do mito da
Era de Ouro percebe o presente como um tempo de corrupção
dos valores e das instituições. Isso resulta em uma evocação de
tempos passados, de retorno a um tempo de harmonia e organi-
zação (GIRARDET, 1987).
O mito da Era de Ouro ressurge em tempos de mudanças e de
incertezas, com a intenção de trazer a segurança inalterável das
memórias do passado. No Brasil, com a ascensão da nova direita,
é evidente o desejo de uma parcela da população por uma volta
aos tempos de ordem, meritocracia e progresso – mesmo que na
verdade não tenham sido reais155 – representado pelo período da
ditadura civil-militar (1964 – 1985). Na cultura digital, com os
sites de rede social, esse desejo é expresso por meio dos memes

155 A economia na ditadura. Disponível em: http://www.cartacapital.com.br/econo-


mia/a-economia-na-ditadura. Acesso em: 14 jun. 2019.

292
da internet como pretende-se demonstrar com a análise. O ima-
ginário na sociedade contemporânea, demonstrado por Michel
Maffesoli (2009), está arraigado à movimentação de paixões e
emoções comuns na internet, condição que, na cultura digital,
proporciona a reatualização de mitos políticos.
Durante a pesquisa de mestrado do autor, coletou-se, com a
extensão DownAlbum para o navegador Google Chrome, 2.947
imagens postadas pela página O Retrógrado,156 no site de rede
social Facebook, no período de 17/07/2016 até 18/08/2017, data
em que a página apresentava 231.067 fãs e 232.543 seguidores.
Do total de 2.947 arquivos, imagens repetidas e imagens de cu-
nho publicitário foram deletadas. Restaram 2.605 imagens, das
quais 2.322 foram enquadradas previamente como memes da in-
ternet pertencentes a um dos quatro conjuntos mitológicos iden-
tificados por Raoul Girardet (1987): a Conspiração, a Era de
Ouro, o Herói Salvador e a Unidade.
Entre os memes coletados, 129 foram catalogados como per-
tencentes ao conjunto mitológico da Era de Ouro, 670 ao con-
junto da Conspiração, 136 ao conjunto do Herói Salvador, 1.419
ao conjunto da Unidade. Dessa maneira, a catalogação proporci-
onou um recorte mais específico em termos de análise, permi-
tindo que a pesquisa de mestrado do autor apontasse caminhos
e novas problematizações, como a apresentada no presente tra-
balho. Este artigo apresenta três memes pertencentes ao con-
junto mitológico da Era de Ouro – um de persuasão, um de ação
popular e um de discussão pública –, com o objetivo de compre-
ender, de maneira panorâmica, a articulação entre os memes da
internet e o imaginário da nova direita sobre a ditadura civil-mi-
litar no Brasil.
O meme (Figura 1) é um meme persuasivo por conta da retó-
rica em sua mensagem e de seu poder se convencimento. A “Pro-
fecia de Geisel” é uma estratégia de apelo, a qual busca convencer

156 Todos os memes – os que contém a marca d’água com o nome da página ou não –
foram coletados a partir da página O Retrógrado no Facebook.

293
o interlocutor sobre os interesses escusos da classe política pós-
ditadura, sobretudo, dos presidentes. O meme carrega um dog-
matismo ideológico da nova direita brasileira, imputando ao ou-
tro – os que lideraram o fim do regime – as mazelas enfrentadas
pelo país no período pós-ditadura.

Figura 1: Meme de persuasão

Fonte: Página O Retrógrado (Acervo do autor)

O meme persuasivo (Figura 1) reforça a ideia do presente


como um tempo de corrupção das instituições e evoca os valores
de tempos passados, em busca de harmonia e de organização. Da
mesma maneira, o meme de ação popular (Figura 2) apela ao
mito da Era de Ouro e recorre ao imaginário sobre a ditadura ci-
vil-militar no Brasil para reivindicar uma intervenção militar.
Além da página O Retrógrado em que foi coletado, a partir do
Google Imagens foi possível localizar a imagem que transfor-
mou-se em meme de ação popular em outras três fontes, em da-
tas variadas: no dia 28 de março de 2015 foi utilizada no blog

294
rvchudo157 para ilustrar um post em resposta ao jornalista Juca
Kfouri, publicado originalmente por João Luiz Mauad no site do
Instituto Liberal – think tank de direita vinculado à Atlas
Network; em 23 de maio de 2018, aparece como post – sem le-
genda – na página Vida de Caminhoneiro do site de rede social
Facebook158; e, por último, no dia 27 de maio de 2018, ilustra um
post no site Primeiro Segundo159 sobre a união do povo brasileiro
com os caminhoneiros em prol da intervenção militar no Brasil.

Figura 2: Meme de ação popular

Fonte: Página O Retrógrado (Acervo do autor)

A coleta feita na página O Retrógrado foi realizada entre ju-


lho/2016 e agosto/2017, portanto, os primeiros indícios desse
meme de ação popular remetem ao período das manifestações
pró-impeachment da ex-presidenta Dilma Rousseff. Além das

157 Resposta ao Juca Kfouri. Disponível em: http://rvchudo.blogs-


pot.com/2015/03/resposta-ao-juca-kfouri.html. Acesso em: 9 jun. 2019.
158 Post da página “Vida de Caminhoneiro”. Disponível em:
https://www.facbook.com/estradaepolitica/photos/a.753718558157857/755862887943
424. Acesso em: 9 jun. 2019.
159 O povo se uniu aos caminhoneiros e pedem a intervenção. Disponível em:
http://primeirosegundo.com.br/2018/05/27/governo-comunista-esta-ruindo-popula-
cao-pede-intevencao/. Acesso em: 9 de jun. 2019.

295
palavras de ordem “Intervenção militar já!! O Brasil exige: ordem
e progresso”, é possível ver em uma placa sobre o caminhão ver-
melho, da esquerda, o pedido de “Fora Dilma!!!”. O meme (Fi-
gura 2), o qual clama por uma intervenção militar, atua em con-
junto com outras palavras de ordem populares em memes políti-
cos de direita após 2013, como “Vai pra Cuba!” (DOS SANTOS,
2019) e “O Brasil vai virar Venezuela” (CHAGAS et al., 2019).
Esse meme de ação popular traz em seu cerne a necessidade de
engajar o próximo, em uma dinâmica de ação coletiva. Como de-
monstrado, o conteúdo foi reapropriado várias vezes, até mesmo
em contextos diferentes, para evocar o imaginário e a memória
da ditadura civil-militar – sob o viés da nova direita.
O pedido de intervenção militar – como solução para a crise e
para um momento de instabilidade política – atribui ao período
ditatorial brasileiro um caráter justo e necessário. O meme (Fi-
gura 2) reverbera ideias expostas por intelectuais da nova direita
sobre a ditadura, os quais, muitas vezes, contestam consensos
históricos sobre a ditadura e o golpe. Se em 1964 o golpe foi ne-
cessário para eliminar a ameaça esquerdista e comunista – men-
sagem difundida pelo Ipes-Ibad (SCHWARCZ, 2015) –, após
2013, uma intervenção militar é tida como necessária pelos mes-
mos motivos, já que as ações do PT – maior representante da es-
querda no Brasil – passaram a ser compreendidas a partir de
uma lógica comunista (AB’SÁBER, 2015; POPOLIN, 2019). A
volta de um tempo de segurança e de ordem são aspectos do mito
da Era de Ouro presentes neste meme de ação popular (Figura
2). Entretanto, a volta ao passado da ditadura representa perse-
guição e morte para aqueles que são considerados o outro pela
nova direita. O esquecimento e a negação da história foram es-
tratégias essenciais no processo de abertura, a fim de retirar de
parte da sociedade a culpa pela omissão, pelas prisões políticas e
pelas torturas:

Nos anos pós-1979, lembrar para esquecer, olhar sem ver.


[...] O conhecimento da tortura era de poucos, sobretudo

296
daqueles que a viveram, de suas famílias e de seus amigos. Os
demais não sabiam. Sabiam sobre – e viviam – o fechamento
do congresso nacional, a violação da constituição, os atos insti-
tucionais, as cassações etc., mas não sabiam da tortura, dos as-
sassinatos. Diante da barbárie – ou quando a barbárie é a dis-
ponibilidade de convivência com a barbárie –, recorre-se à ino-
cência (ROLLEMBERG, 2006, p. 89).

A ordem, a paz e a tranquilidade são elementos – presentes no


meme de discussão pública (Figura 3) – convocados para endos-
sar o imaginário da ditadura civil-militar no Brasil, com ecos do
mito da Era de Ouro. A articulação entre imagem e texto repro-
duz o image-macros, gerando uma tensão entre os códigos da
imagem e do texto. De acordo com Juracy Oliveira (2016), na cul-
tura digital, a comunicação é exercida de maneira ampla pelos
memes, sendo que uma codificação específica sem preterir um
dos códigos é necessária, pois a linguagem dialética entre ima-
gem e texto influencia no modo como o indivíduo imagina, con-
ceitua, comunica etc. O image-macros160 necessita de seus cria-
dores e observadores para circular pelas redes.
É por meio da comparação entre o Rio de Janeiro nos anos
1960 e em 2016 que o meme (Figura 3) pretende causar o efeito
de uma piada avulsa e autossuficiente. Com densa carga de iro-
nia, os textos-verbais possuem significados opostos aos das ima-
gens em que estão sobrepostos. A maioria da década de 1960 foi
vivida dentro do regime militar, com graves violações aos direitos
humanos e individuais. Porém, as perseguições, torturas e desa-
parecimentos ocorriam sobre aqueles considerados inimigos da
pátria – sobretudo, comunistas e a esquerda em geral –, fato que
permite a compreensão do período pelo imaginário da nova di-
reita como um tempo de ordem, progresso e harmonia.

160 “Correspondem a uma indefectível estrutura imagética-textual que dentro dessa


dialética carrega uma qualidade icônica” (OLIVEIRA, 2016, p. 97. Grifo do autor). Mui-
tas vezes confundido como o único modelo de meme possível, por ser o mais antigo e mais
clássico.

297
Mesmo que o Brasil não seja socialista, o meme de discussão
pública (Figura 3) traz os termos “socialista” e “comunista” para
se referir ao Rio de Janeiro de 2016 – momento em que o gover-
nador do estado era Luiz Fernando Pezão (MDB), o prefeito era
Eduardo Paes (DEM) e Dilma Rousseff (PT) era presidenta até
agosto de 2016, quando, após seu impeachment, foi substituída
por Michel Temer (MDB). Paranoia, alucinose e neo-transe são
termos utilizados por Ab’Sáber (2015) para se referir às motiva-
ções que inflamam o anticomunismo associado aos governos pe-
tistas. A Figura 3 demonstra essa associação feita também a go-
vernos não petistas.

Figura 3: Meme de discussão pública

Fonte: Página O Retrógrado (Acervo do autor)

A partir da pesquisa do Google Imagens foi possível concluir


que a imagem da parte superior – publicada em diversos sites,

298
sem créditos – é da praia de Copacabana em 1967. Já a imagem
da parte inferior é de uma ação da Guarda Municipal contra fur-
tos na orla da Zona Sul do Rio de Janeiro (RJ), em 2013.161 A par-
tir da ironia utilizada para o efeito de humor no meme (Figura 3),
o Brasil dos 21 anos de ditadura é visto sob a perspectiva do mito
da Era de Ouro: anos de inocência, virtude e pureza para quem
não simbolizasse uma ameaça ao regime ditatorial. De acordo
com a nova direita, os verdadeiros anos de chumbo foram os anos
dos governos do PT, simbolizados pela violência, agressividade e
desordem na imagem da parte inferior do meme (Figura 3).
A comparação e a ironia provocam o efeito de humor, já que
de acordo com o emissor do meme, o Rio de Janeiro de 1960 seria
maravilhoso, em oposição com 2016, momento em que a cidade
seria, sim, cruel. Nota-se, também, que na imagem predomina a
presença de mulheres, a maioria vestindo biquínis. Mesmo sendo
um retrato da praia, na ditadura era comum utilizar imagens de
mulheres e o apelo sexual para fomentar o turismo.162

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os memes analisados são utilizados como uma estratégia sim-


bólica pela nova direita, ao irrigar a imaginação com imagens e
símbolos que contribuem para dar um sentido para o mundo. As
configurações simbólico-discursivas de parte dos memes são dí-
ades: trazem explicitamente ou implicitamente as noções de “di-
reita-esquerda” ou de “nós-eles”. O agravamento da polarização,
uma consequência possível do gatewatching, endossa a sugestão

161 Onda de furtos volta a assustar banhistas na orla da Zona Sul nesta quarta-feira.
Disponível em: https://extra.globo.com/casos-de-policia/onda-de-furtos-volta-assus-
tar-banhistas-na-orla-da-zona-sul-nesta-quarta-feira-10833247.html. Acesso em: 9 jun.
2019.

162 No passado, Brasil já teve material oficial de turismo com apelo sexual. Disponível
em: http://g1.globo.com/turismo-e-viagem/noticia/2014/02/no-passado-brasil-ja-
teve-material-oficial-de-turismo-com-apelo-sexual.html. Acesso em: 9 jun. 2019.

299
de providências totalitárias e militares como solução para os pro-
blemas do presente. É importante frisar que o avanço da nova
direita, do conservadorismo, do reacionarismo e do fascismo não
tem como causa apenas o determinismo tecnológico. Em maior
ou menor medida, as mídias sociais somente potencializaram as
relações de poder e as tendências políticas que já existiam antes
delas, aspecto que aponta caminhos para futuras pesquisas em
comunicação.
Estudar a nova direita em consonância com a cultura digital
exige a reunião de diferentes ferramentas teóricas, como pro-
posta neste artigo, a fim de buscar entender a articulação entre
memes da internet e a mitologia. A esquerda e os comunistas são
identificados como o mal e o inimigo que precisam ser elimina-
dos, fomentando uma reação de medo e ódio externada pelos me-
mes. Em um momento no qual o Brasil é conhecido por ser uma
potência global na produção de memes,163 compreender de ma-
neira aprofundada os efeitos dos memes sobre a política se faz
necessário para entender os motivos que deixam a internet dis-
tante de uma democratização efetiva. A opressão, a tortura e o
assassinato daqueles considerados inimigos pela ditadura são re-
gularmente utilizados de maneira irônica pelos memes sobre a
ditadura.
O arcabouço teórico, com contribuições da comunicação, da
história e das ciências sociais, permitiu lançar luz sobre a proble-
mática proposta. Assim, os resultados obtidos neste artigo des-
dobram-se em novas problemáticas e novos objetivos, os quais
podem ser elucidados com a continuinade da pesquisa. Os sites
de rede social – como o Facebook – e as comunidades virtuais –
como a página O Retrógrado – permitem, também, a reunião de
grupos embasados em solidariedades opressoras.
A reatualização do mito da Era de Ouro por meio dos memes
é um fenômeno fruto da cultura digital e das novas possibilidades

163 Exemplo significativo da importância dos memes para a cultura nacional é o Museu
de Memes, projeto da Universidade Federal Fluminense (UFF). Disponível em:
http://www.museudememes.com.br/. Acesso em: 22 de jun. 2019.

300
de comunicação geradas por ela. Todavia, um conjunto mitoló-
gico, como o da Era de Ouro, não atua de maneira isolada, mas
sim em consonância com os outros conjuntos, como o da Cons-
piração, do Herói Salvador e da Unidade. Da mesma maneira, os
memes, que também atuam em grupos de itens com característi-
cas semelhantes, ao operar agregados com os mitos políticos for-
talecem, portanto, o imaginário da nova direita.
Os memes analisados neste artigo, em articulação com o ima-
ginário da nova direita brasileira, buscam traçar similiaridades
entre a contemporaneidade e o período da ditadura civil-militar
no Brasil. O mito da Era de Ouro é evocado para validar a neces-
sidade de uma intervenção militar ou exaltar o período ditatorial
brasileiro, a fim de recuperar valores caros à direita como a mo-
ral, a ordem, a segurança e a harmomia – em concomitância,
muitas vezes, ao silenciamento e à eliminação dos que são consi-
derados adversários.

301
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307
 GOLDEN SHOWER E IMORALIDADES CARNAVALESCAS:
DISPUTAS POR SENTIDOS E POLARIZAÇÃO NAS REDES

ALLAN SANTOS

RESUMO

O trabalho analisa as disputas de sentidos engendradas a par-


tir da circulação das duas hashtags que figuraram como os Tren-
ding Topics mais populares do Twitter, em 6 de março de 2019,
polarizando as narrativas sobre o caso golden shower no Carna-
val: #ImpeachmentBolsonaro e #BolsonaroTemRazão. Em um
primeiro momento, historicizamos o Carnaval, problematizando
que esta cultura é socialmente polarizada desde o seu surgimento
no Brasil oitocentista. Em seguida, examinamos como o fenô-
meno da polarização política e da intolerância às diferenças iden-
titárias passa a ser potencializado pelas redes sociotécnicas a par-
tir das Jornadas de Junho de 2013. Finalmente, a partir da Aná-
lise de Discurso Crítica, identificamos quatro sentidos discursi-
vos fixados em 611 postagens coletadas que pediram o impeach-
ment de Bolsonaro e quatro significados predominantes nos 1730
tuítes que defenderam que o presidente brasileiro tinha razão em
sua ação digital contra as imoralidades do Carnaval.

PALAVRAS-CHAVE: circulação de sentidos, polarização polí-


tica; Bolsonaro; golden shower; Carnaval.

ABSTRACT

The paper analyzes the disputes of meanings engendered by


the circulation of the two hashtags that figured as Twitter's most

308
popular Trending Topics on March 6th, 2019, polarizing the nar-
ratives about the golden shower case at Carnival: #Impeach-
mentBolsonaro and #BolsonaroTemRazão. At first, we histori-
cize the Carnival, problematizing that this culture has been so-
cially polarized since its emergence in the nineteenth-century
Brazil. Then, we examine how the phenomenon of political po-
larization and intolerance to identitarian differences has been
potentiated by the sociotechnical networks since the June 2013’s
Journeys. Finally, through the Critical Discourse Analysis, we
identified four discursive meanings fixed in 611 collected posts
that called for Bolsonaro’s impeachment and four prevalent
meanings in the 1730 tweets that argued that the Brazilian pres-
ident was right in his digital action against the Carnival’s immo-
ralities.

KEYWORDS: meaning’s circulation, political polarization; Bol-


sonaro; golden shower; Carnival.

INTRODUÇÃO

Foucault ([1978-1979] 2008) pensa a sexualidade – assim


como a moralidade, a loucura e a criminalidade – como objetos
transacionais e transitórios que, mesmo não tendo existido desde
sempre, são articulados a partir de práticas e discursos, consti-
tuindo técnicas de governamentalidade que nomeiam e legiti-
mam aquilo que é verdadeiro e falso em um dado regime de veri-
dição. Compreendendo a sexualidade como um “dispositivo dis-
cursivo” analisamos criticamente a fala da ministra da Mulher,
Família e Direitos Humanos, Damares Alves, que anunciou a as-
censão do governo Bolsonaro ao poder como a inauguração de
uma “nova era” na qual “menino veste azul e menina veste rosa”.
O discurso, que circulou amplamente pelas redes sociotécnicas
por meio de um vídeo amador feito em 2 de janeiro de 2019 – dia
da cerimônia de transmissão de cargo em que Damares assumiu

309
a pasta –, serviu para reafirmar subjetivamente a existência de
um ambiente político heteronormativo fundamentado na lógica
das opressões de gênero e sexualidade. Desta forma,

o ato de nomear o corpo acontece no interior da lógica que su-


põe o sexo como um “dado” anterior à cultura e lhe atribui um
caráter imutável, a-histórico e binário. Tal lógica implica que
esse “dado” sexo vai determinar o gênero e induzir uma única
forma de desejo. Supostamente, não há outra possibilidade se-
não seguir a ordem prevista. A afirmação “é um menino” ou “é
uma menina” inaugura um processo de masculinização ou de
feminização com o qual o sujeito se compromete (LOURO,
2004, p. 15)

Dentre as reações contra o conservadorismo moral do novo


governo e à fala da ministra e pastora evangélica – que afirma
estar ciente de que o Estado é laico, mas ser “terrivelmente
cristã”164 –, a cantora Daniela Mercury, em parceria com Caetano
Veloso, lançou a música e o clipe Proibido o Carnaval, usando
metáforas e referências da cultura popular brasileira para abor-
dar o cerceamento à liberdade de expressão e diversidade – como
o trecho É Proibido Proibir, música de Caetano com a banda Os
Mutante, e a expressão “sair do armário”, em referência à comu-
nidade LGBTQI+ –, além de destacar a importância de movi-
mentos contraculturais que marcaram a história, incluindo a
Tropicália brasileira e o levante de Stonewall, que completou 50
anos em 28 de junho de 2019.
As críticas ao governo também estiveram presentes nos blocos
de rua, marchinhas e escolas de samba do Carnaval 2019, tanto
na forma de fantasias de cheques-laranja, Jesus na goiabeira,
caixa dois, kits gays e mamadeiras de piroca, quanto em gritos
como “ai, ai, ai, Bolsonaro é o carai” e “Bolsonaro vai tomar no
cu” – tendo este último se tornado a hashtag mais popular do

164 Cf.: VIVAS, Fernanda. ‘Estado é laico, mas esta ministra é terrivelmente cristã’, diz
Damares ao assumir Direitos Humanos. In: Portal G1, 02 de janeiro de 2019. Disponível
em: https://glo.bo/33QOi0r. Acesso em: 15 nov. 2019.

310
Twitter no domingo de Carnaval, dia 3 de março. Dentre os vários
episódios de catarse política durante o primeiro Carnaval com
Bolsonaro no poder, se destacaram a forma como o boneco gi-
gante do presidente foi recebido com vaias, arremessos de latas
de cervejas e pedras de gelo, em Olinda (PE), assim como a cen-
sura imposta pelo capitão da Polícia Militar, Lizandro Sodré, que
tentou determinar o que poderia ser cantado pelos foliões e im-
pedir manifestações contrárias ao presidente no bloco Tchanzi-
nho Zona Norte, de Belo Horizonte (MG).
Não é novidade alguma que o Carnaval seja um momento no
qual política, crítica social e festa se misturam, tendo pensadores
como Goethe (1749-1832) e Bakhtin (1895-1975) descrito o acon-
tecimento anual como um tempo de inversão social, detração da
autoridade e revolta ritualizada. Não obstante, as manifestações
populares e os gritos de “ei Bolsonaro vai tomar no cu” causaram
uma evidente indignação no presidente brasileiro que, como re-
ação, postou em seu perfil no Twitter, no dia 5 de março, o vídeo
de uma marchinha com versos como “Tem gente ficando doida
sem a tal Lei Rouanet. O nosso Carnaval não está proibido, mas
com dinheiro do povo não será mais permitido. Meu Carnaval,
eu faço com o meu dinheiro, trabalhei o ano inteiro sem essa lei
me ajudar”165. Na postagem, o presidente escreveu que “dois ‘fa-
mosos”166 acusam o Governo Jair Bolsonaro de querer acabar
com o Carnaval. A verdade é outra: esse tipo de ‘artista’ não mais
se locupletará da Lei Rouanet” (BOLSONARO, 5 de março de
2019). Em seguida, o presidente tuitou que “tão importante
quanto a economia é o resgate de nossa cultura, que foi destruída
após décadas de governos com viés socialista. Buscaremos o país
da ordem e do progresso. Bom dia a todos!” (Idem). No dia se-
guinte, Bolsonaro declararia na plataforma digital que “a Lei
Rouanet foi usada para cooptar parte dos artistas ‘famosos’ num
projeto de Poder” (Id., 06 de março de 2019).

165 Vídeo disponível em: https://bit.ly/2Kqd0gC. Acesso em: 15 nov. 2019.


166 Referindo-se aos artistas baianos, Daniela Mercury e Caetano Veloso.

311
Contudo, foi a publicação de um segundo vídeo no dia 5 de
março – como forma de alerta sobre as imoralidades do Carnaval
de rua brasileiro – que causou um verdadeiro tsunami nos cir-
cuitos midiáticos amplificados. Em um bloco no centro de São
Paulo, chamado Blocu, um homem dança seminu no topo de um
ponto de táxi, enfiando o dedo no próprio ânus e, em seguida, se
curvando para que um outro rapaz urine em sua cabeça (con-
forme ilustrado na figura 1). Na manhã do dia seguinte, Quarta-
Feira de Cinzas, com apenas uma pergunta o representante do
cargo mais alto do Executivo brasileiro deixaria a população e a
mídia global atônitas e perplexas: “o que é golden shower?”
(BOLSONARO, 6 de março de 2019), em alusão à prática de cu-
nho sexual – conhecida tecnicamente como urofilia – perfor-
mada pelos dois homens no vídeo publicado e posteriormente
deletado da sua página oficial no Twitter. Desta forma, frente à
enxurrada de críticas nos carnavais de todo o país ao seu governo,
Bolsonaro contra-ataca e exemplifica para o mundo a maior festa
popular brasileira na performance isolada de dois jovens.

Figura 1: Imagem da cena do vídeo e postagens publicadas por Bolsonaro

312
Fonte: Página do Bolsonaro no Twitter, 5 e 6 de março de 2019, res-
pectivamente.

Apesar da tentativa do Palácio do Planalto de controlar as nar-


rativas publicando uma nota explicativa que afirma que o presi-
dente não teve intenção de criticar o Carnaval de forma genérica,

313
mas “caracterizar uma distorção clara do espírito momesco, que
simboliza a descontração, a ironia, a crítica saudável e a criativi-
dade da nossa maior e mais democrática festa popular”
(PALÁCIO DO PLANALTO, 6 de março de 2019), a tuitosfera foi
dominada por disputas por sentidos a partir da circulação das
hashtags #ImpeachmentBolsonaro, #BolsonaroTemRazão,
#goldenshowerpresident, #VergonhaDessePresidente e #EiBol-
sonaroVaiTomarNoCu167. Por um lado, usuárias e usuários da
plataforma digital afirmavam que a atitude do presidente se en-
quadraria na Lei nº 1.079, de 10 de abril de 1950 (Lei dos Cri-
mes de Responsabilidade, popularmente conhecida como “Lei
do impeachment”), que em seu Artigo 9º inclui entre os crimes
contra a probidade na administração, “proceder de modo incom-
patível com a dignidade, a honra e o decoro do cargo”. Por outro,
uma parcela expressiva da população considerou que Bolsonaro
não infringiu decoro algum e que estaria apenas exercendo o seu
papel de presidente ao mostrar a verdade que a imprensa hege-
mônica não mostra.
O trabalho analisa empiricamente os conflitos e negociações
de sentidos engendrados a partir da circulação das duas hashtags
que figuraram como os Trending Topics mais populares do Twit-
ter no dia após a publicação do vídeo escatológico pelo presi-
dente Jair Bolsonaro, 6 de março de 2019, polarizando os senti-
dos discursivos em disputa: #ImpeachmentBolsonaro e #Bolso-
naroTemRazão. Segundo Grohman (2018), o foco nos “sentidos”
nos diz que a circulação envolve mostrar como valores e visões
de mundo permeiam os fluxos comunicacionais. Neste contexto,
observamos que os sentidos fixados e ressignificados durante os
processos de repercussão do caso golden shower nas redes socio-
técnicas seguiram dinâmicas de alinhamento ideológico automá-
tico e radicalização dos valores morais, alimentando a

167 Cf.: GORTÁZAR, Naiara. A bomba escatológica de Bolsonaro populariza o ‘golden


shower’ nas redes. In: El País, 07 de março de 2019. Disponível em:
https://bit.ly/2KzrCM0. Acesso em: 23 jun. 2019.

314
polarização política entre progressistas e conservadores em ação
no país desde, pelo menos, as Jornadas de Junho de 2013.

CULTURA CARNAVALESCA E POLARIZAÇÃO SOCIAL

Segundo Tinhorão (2005), o Carnaval é, fundamentalmente,


a resposta a uma necessidade de lazer das camadas populares ur-
banas. O historiador e crítico musical conta que Goethe quando
foi a Roma, no século XVIII, e viu uma festa muito diferente de
tudo o que havia na Alemanha disse: “O Carnaval não é uma festa
que alguém ofereça; é uma festa que o povo oferece a si mesmo”.
Para Bakhtin (1987), os festejos carnavalescos, como todos os
atos e ritos cômicos que a ele se ligavam, ocupavam um lugar im-
portante na vida dos homens da Idade Média, oferecendo uma
visão do mundo totalmente diferente, deliberadamente não-ofi-
cial, exterior à Igreja e ao Estado. Compreendido como “uma fuga
provisória dos moldes da vida ordinária” (BAKHTIN, 1987, p. 6),
o Carnaval é regido pelas leis da liberdade e possui um caráter
universal de renascimento e renovação do mundo que só podia
alcançar sua plenitude nas festas populares e públicas, conver-
tendo-se “na forma de que se revestia a segunda vida do povo, o
qual penetrava temporariamente no reino utópico da universali-
dade, liberdade, igualdade e abundância” (Ibid., p. 8). Paradoxal-
mente, as festas oficiais da Igreja e do Estado apenas contribuíam
para sancionar e fortificar o regime em vigor, consagrando a es-
tabilidade, a imutabilidade e a perenidade das regras que regiam
o mundo: hierarquias, valores, normas, além de tabus religiosos,
políticos e morais correntes.
Apesar do caráter conservador, desde muito antes da Idade
Média, as religiões históricas criaram espaço para as festividades
carnavalescas em seus calendários: o Cristianismo as associou à
Quaresma que antecede a Páscoa; o Judaísmo à festa de Purim,
em homenagem à rainha Éster; o Islã situou as mascaradas no
início móvel de seu ano lunar. Na modernidade, “o Carnaval

315
seguiu os navegadores europeus pelo resto do mundo” (PRIORE,
2005, p. 17), apostando no papel maior ou menor das máscaras,
ligadas à Quaresma ou a ritos agrários, como se vê no México ou
nos Andes, no Mardi Gras de Nova Orleáns ou no Carnaval das
irmandades haitianas no qual as máscaras de vodu se confundem
com as do Carnaval.
No Brasil do século XIX só havia dois tipos de festas públicas:
as patrocinadas pela Igreja e as do Estado. O entrudo168, que ani-
mava as ruas cariocas durante o Carnaval, era uma coisa de es-
cravos e as pessoas de bem não saíam de suas casas, pelo contrá-
rio, ficavam jogando água pelas janelas em quem passava: “Den-
tro de casa eles brincavam com uns limões de cera cheios de lí-
quido perfumado. Quando jogava no outro, a película de cera
rompia e a pessoa ficava cheirosa. Era uma coisa delicadinha,
bem-comportada como requer a etiqueta. Já na rua, tinha gente
que jogava urina” (TINHORÃO, 2005, p. 40). Com os processos
de industrialização e diversificação social, a emergente classe
média quer participar do Carnaval e pede à autoridade policial
que privatize o espaço público, surgindo os ranchos com enredos
bem organizados e cantando trechos de árias de óperas tocados
por orquestras. Desta forma, “a partir dos ranchos vai se apa-
gando o verdadeiro carnaval no sentido da festa que o povo ofe-
rece a si mesmo. A imitação da estrutura dos ranchos dá origem
à Escola de Samba” (Idem., p. 41).
Neste contexto, torna-se necessário problematizar o mito de-
mocrático do Carnaval, sendo esta uma cultura polarizada soci-
almente desde o seu surgimento no Brasil oitocentista. Segundo
Cunha (2005), nos cortejos das sociedades carnavalescas – fi-
nanciados por homens de negócios e apoiados por jornalistas e
escritores –, as elites expunham à plebe, considerada bárbara e

168 Termo que englobava desde o hábito de jogar água nos passantes, brincar de pintar
o rosto ou outras formas de disfarce, até as brincadeiras “grosseiras” de mascarados, zé-
pereiras (conjuntos com bumbos e instrumentos variados que saíam às ruas anarquica-
mente) barulhentos que congregavam espontaneamente foliões das ruas e outros folgue-
dos que praticavam com entusiasmo. Cf.: CUNHA, 2005, p. 19.

316
perigosa, seus próprios pontos de vista sobre política, costumes
e os personagens que constituíam a vida da cidade e do país. Es-
tas sociedades declaravam que os seus cortejos eram o verda-
deiro Carnaval – tal como se praticava em Paris, Nice ou Veneza
– e a sua única forma legítima. Se num passado ainda recente o
entrudo podia divertir a todos – no interior dos lares ou nas ruas,
cada qual no seu lugar e com seus próprios códigos e hierarquias
–, agora o que estava em discussão era justamente a forma de
convivência entre desiguais, removidas as barreiras senhoriais,
dando forma a uma polarização permanente também na cultura
carnavalesca.

As regras se rompiam, rodeadas de perigos reais e imaginá-


rios, as normas se dissolviam e as hierarquias, que antes pare-
ciam sólidas, tendiam a desmanchar-se no ar. Perdidas as refe-
rências, elites liberais mas temerosas ansiavam por novas re-
gras para o país, como para o Carnaval. (...) Diante das diferen-
ças e da falta de regras do entrudo, buscava-se uma festa homo-
gênea que reafirmasse as velhas diferenças hierárquicas e de
classe (CUNHA, 2005, p. 24).

POLARIZAÇÃO NA CONTEMPORANEIDADE DE REDES


SOCIOTÉCNICAS

Deslocando a análise da cultura carnavalesca no Brasil oito-


centista para a cultura política contemporânea, nos interessa
compreender como o fenômeno da polarização política e da in-
tolerância às diferenças identitárias passa a ser potencializado
pelas redes sociotécnicas. Segundo Cook, McPherson e Smith-
Lovin (2001), a homofilia – literalmente, amor aos iguais – é ca-
racterizada como a tendência das pessoas de atração aos seus ho-
mônimos em relação a atributos como idade, sexo, crenças, edu-
cação e classe social. O termo foi cunhado em 1924 pelo psicana-
lista alemão Karl-Günther Heimsoth e, desde então, tem sido
amplamente utilizado pela sociologia e outros campos, tais como
nas análises de redes sociais de Internet.

317
Neste sentido, Dvir-Gvirsman (2017, p. 2) introduz o con-
ceito de “audiência midiática homofílica” para descrever a pre-
ferência de indivíduos por “sites de mídia partidários” que aten-
dem a uma clientela homogênea e com pontos de vista simila-
res. Esta atração está relacionada a uma necessidade de consis-
tência de si (manter, distinguir e reforçar estilos de vida) que
tende a polarizar as identidades políticas por meio de uma es-
piral de reforço. A pesquisadora sugere que, ao longo do tempo,
níveis mais altos de homofilia aumentam a acessibilidade do
self-político dos indivíduos, o extremismo ideológico e a intole-
rância.
No que tange ao contexto contemporâneo, Moretto e Ortel-
lado (2018) analisaram o comportamento das brasileiras e brasi-
leiros que interagem com páginas políticas no Facebook. Ao ras-
trearem as interações com perfis de atores políticos, movimentos
sociais e organização de defesa de direitos, os pesquisadores de-
senvolveram um mapa de como a opinião pública no país mudou
entre 2013 e 2016, revelando um retrato chocante da polarização
política em ação. Segundo os pesquisadores, em 2013, os usuá-
rios com interesses políticos da plataforma digital mais usada no
país podiam ser categorizados em seis comunidades distintas. O
quadro mudou drasticamente após as Jornadas de Junho de
2013, tendo os grupos começado a se dividir mais acentuada-
mente entre a esquerda e a direita, enquanto as outras categorias
desmoronaram. Finalmente, entre 2014 e 2016, as diferenças se
tornaram extremamente polarizadas: as seis comunidades de in-
teresses visivelmente distintos, porém com algumas sobreposi-
ções, foram separadas em apenas dois grupos: progressistas e
conservadores. Esse movimento de polarização política nas redes
sociotécnicas passou a ser ainda mais acentuado com a deposição
da ex-presidente Dilma, em 31 de agosto de 2016.
Para analisar especificamente a batalha do impeachment no
Facebook, Moretto e Ortellado (2016) capturaram todas as ma-
térias dos quatro dias que precederam a votação do processo na
Câmara dos Deputados, em 17 de abril de 2016, reunindo um

318
banco de dados de 8000 artigos jornalísticos que geraram mais
de seis milhões de compartilhamentos. Dentre as 100 reporta-
gens mais compartilhadas, 80% ilustravam ou a narrativa da
campanha #NãoVaiTerGolpe! ou da campanha #ForaDilma!, o
que sugere que as discussões políticas no Facebook foram toma-
das por uma dinâmica na qual, de maneira organizada ou espon-
tânea, militantes e aderentes dos dois lados reproduziram meca-
nicamente a dinâmica polarizada do debate, reforçando as mes-
mas ideias e deixando sem espaço o discurso político indepen-
dente. As narrativas dos dois lados tinham poucos argumentos
centrais, sendo a força persuasiva proveniente da reprodução sis-
temática de matérias jornalísticas aparentemente diferentes,
mas que ilustravam o mesmo ponto de vista, convertendo algu-
mas timelines em grandes fluxos de propaganda. Desta forma,

o efeito do medo de um golpe de estado produzido pela campa-


nha #NãoVaiTerGolpe! somado ao efeito da indignação contra a
corrupção generalizada produzido pela campanha #ForaDilma!
parece ter gerado comportamentos beligerantes permanentes
que inundaram a rede social com as mesmas mensagens até o
ponto em que quase nada mais consegue ser percebido
(MORETTO e ORTELLADO, 2016, online)

Analisando o período pré-eleitoral, observamos que o ano de


2017 foi marcado por denúncias de obscenidade e associações da
expressão artística brasileira à pedofilia, zoofilia, pornografia e
profanação de símbolos religiosos, tais como evidenciado no fe-
chamento antecipado da exposição Queermuseu no Santander
Cultural de Porto Alegre e na criminalização da performance La
Bête no MAM de São Paulo após a viralização de imagens de uma
criança tocando o corpo nu do artista Wagner Schwartz. Consi-
derando estes episódios contemporâneos de censura como acon-
tecimentos políticos que produzem, em primeiro lugar, “trans-
formações das subjetividades e do sensível” (LAZZARATO,
2006), sugerimos que, ao circularem retóricas moralistas despi-
das de valores democráticos, demonizarem as diferenças

319
humanas e incitarem a estigmatização de minorias identitárias
nas redes digitais com a finalidade de cercear as liberdades indi-
viduais, os grupos de direita estariam alimentando midiatica-
mente o “pânico moral” (COHEN, [1972] 2011) em um incessante
processo de produção de subjetividades conservadoras e radica-
lização do espectro político entre cidadãos de bem e monstros
morais que viria a configurar o modus operandi do Governo Bol-
sonaro.

GUERRA DE HASHTAGS: #ImpeachmentBolsonaro VS.


#BolsonaroTemRazão

Com base no que foi exposto no item anterior, o trabalho tem


como principal objetivo identificar e analisar os sentidos discur-
sivos fixados e ressignificados em torno do caso golden shower a
partir da circulação das hashtags #ImpeachmentBolsonaro e
#BolsonaroTemRazão no Twitter, evidenciando como os proces-
sos de produção de sentidos seguiram dinâmicas de alinhamento
ideológico automático e radicalização dos valores morais, ali-
mentando a polarização política entre progressistas e conserva-
dores em curso no país. A escolha das duas hashtags se deu tendo
em vista que estas figuraram como os Trending Topics na plata-
forma digital em 6 de março de 2019, ou seja, no dia seguinte à
postagem de Jair Bolsonaro que viralizou o vídeo no qual um ho-
mem dança seminu em um bloco de Carnaval no centro de São
Paulo, enfiando o dedo no próprio ânus e se curvando para que
um outro rapaz urine em sua cabeça.
Em uma verdadeira guerra de hashtags, logo pela manhã do
dia 6 de março, os ativistas de esquerda anunciavam um “TT
[Trending Topics] no Twitter emblemático com a esquerda em-
placando 3 no TT #goldenshowerpresidente #EiBolsonaroiVai-
TomarNoCu #ImpeachmentBolsonaro e os bolsominions empla-
cando um #BolsonaroTemRazão” (conforme mostra a figura 2).
Inúmeras postagens ironizavam a hashtag postada pela direita:

320
“A tag deles é sempre no sense né?! Bozo tem tanta razão que o
Twitter bloqueou a postagem dele (...)”, ou ainda, “O indivíduo
que posta #BolsonaroTemrazão além de demente é mais pernici-
oso à moral e aos bons costumes que o próprio seu Bolzo! Se en-
cher de ódio porque o povo brasileiro o mandou tomar caju não
lhe dá razão para ser imoral e obsceno no cargo de presidente!
#ImpeachmentBolsonaro”.

Figura 2: Trending Topics do Twitte

Fonte: Twitter, 06 de março de 2019

No outro lado da batalha, os militantes de direita postavam


palavras de ordem e modos estratégicos de impulsionarem a sua

321
hashtag e dominarem o debate polarizado nas redes sociotécni-
cas: “Vamos correr atrás do prejuízo. Ninguém nos vence nas
tags. #BolsonaroTemRazão”. Às 17:17hs do dia 06 de março,
Eduardo Bolsonaro – deputado federal e filho do chefe do Exe-
cutivo brasileiro – anunciou em seu perfil no Twitter que “A
hashtag “impeachmentbolsonaro toma uma invertida e a hashtag
#bolsonarotemrazão passa a ser, de longe, o assunto mais co-
mentado no Twitter” (conforme exposto na figura 3). Entretanto,
apesar de engajar quase o dobro de postagens na plataforma di-
gital, a hashtag compartilhada pela direita permaneceu em se-
gundo lugar nos Trending Topics do Twitter, causando grande
frustração e a ira nos apoiadores de Bolsonaro: “A hashtag #Bol-
sonaroTemRazão segue em segundo lugar no Twitter apesar de
apresentar um engajamento superior à hashtag impulsionada
pela militância petista”, além de fazer circular discursos de que a
plataforma estaria favorecendo o outro lado da disputa de senti-
dos.

Figura 3: A direita anuncia a sua vitória na “guerra de hashtags”

322
Fonte: Página de Eduardo Bolsonaro no Twitter, 06 de março de 2019

Metodologicamente, em um primeiro momento, conduzimos


uma busca avançada no Twitter para cada hashtag, resultando
na coleta manual de um total de 611 postagens dos internautas
que pediam a cassação do presidente brasileiro (#Impeach-
mentBolsonaro) e 1730 tuítes daqueles que defendiam que Bol-
sonaro tinha razão em seu posicionamento durante o Carnaval
(#BolsonaroTemRazão)169. Apontamos que o número de tuítes
não é absoluto em relação ao total publicado na plataforma, mas
o total fornecido pela ferramenta de busca disponibilizada pelo
Twitter (as hashtags combinadas geraram quase 800 mil tuítes
apenas no dia 6 de março). Em seguida, investimos na Análise de
Discurso Crítica – ADC para estabelecermos os padrões discursi-
vos, assim como os valores morais e posicionamentos ideológicos

169 A coleta foi realizada manualmente entre os dias 27 e 30 de junho de 2019.

323
nos enunciados verbais postados pelos cidadãos comuns conec-
tados. Nesta etapa da pesquisa, todo o material coletado foi cui-
dadosamente lido e categorizado a partir de quatro sentidos dis-
cursivos predominantes na circulação de cada hashtag (que se-
rão elencadas nas seções subsequentes).
Dialogando com autores como Fairclough, van Dijk, Fowler e
Kress, Wodak (2001) enfatiza que o discurso em si é uma prática
social usada em contextos específicos para a produção e manu-
tenção do poder. A partir da perspectiva foucaultiana, a linguista
austríaca observa que o discurso é também um meio para a re-
presentação das práticas sociais e uma forma de saber. Partindo
da compreensão dos discursos tanto como instrumentos do po-
der e da construção social da realidade para estabelecer um dis-
tanciamento epistemológico da postulação de simples relações
deterministas entre o textual e o social, a ADC é caracterizada
como uma abordagem metodológica que proporciona a interde-
pendência entre interesses de pesquisa e compromissos políticos
na análise de amplas unidades discursivas enquanto unidades
básicas da comunicação (assim como os processos sociais nos
quais estas unidades e os sentidos partilháveis são produzidos).
Considerando que “criticar é essencialmente tornar visível a in-
terconectividade das coisas” (FAIRCLOUGH, 1985, p. 747), a
ADC é um método capaz de trazer à luz as relações estruturais
opacas e transparentes de dominação, discriminação, poder e
controle que se manifestaram a partir das narrativas discursivas
que circularam neste recorte específico do caso golden shower
no Carnaval.
Para Wodak (2001, p. 11), o poder é exercido não apenas pelas
formas gramaticais textuais, mas também pelos gêneros associa-
dos a determinadas ocasiões sociais. Refletindo a respeito dos gê-
neros das manifestações discursivas na criação ideológica e na
vida, Bakhtin (1992) sugere que os diferentes campos da ativi-
dade humana são ligados ao uso da linguagem empregada na
forma de enunciados. Apesar de cada enunciado particular ser
individual, os diferentes campos de utilização da língua elaboram

324
seus tipos relativamente estáveis de enunciados, denominados
de gêneros do discurso. Deslocando a perspectiva bakhtiniana
para a contemporaneidade de redes sociotécnicas, analisamos
metodologicamente os discursos que circularam a partir da
guerra de hashtags durante o Carnaval brasileiro de 2019 como
gêneros estáveis da comunicação digital resultantes das dinâmi-
cas próprias que dois grupos de atores específicos imprimiram a
um conjunto de enunciados discursivos.

O ATAQUE DA ESQUERDA CONTRA BOLSONARO

Os sentidos que circularam nos ataques às postagens de Bol-


sonaro durante o Carnaval 2019 no Twitter foram sintetizados
por um usuário170 da plataforma digital analisadal: “Ele é um bo-
çal q assumiu a presidência #ImpeachmentBolsonaro. Ele é um
sem noção #goldenshowerpresident. # Ele só fala e faz merda
#EiBolsonaroVaiTomarNoCu. Ele é uma piada mundial #Vergo-
nhaDessePresidente”. Dentre as 611 postagens analisadas, iden-
tificamos quatro sentidos discursivos predominantes que justifi-
cariam o Impeachment do presidente brasileiro: 1) falta de de-
coro ao divulgar pornografia em sua conta oficial no Twitter; 2)
a incapacidade de Bolsonaro para governar o país; 3) o desprezo
do presidente à importância cultural e econômica do Carnaval
para o Brasil; 4) um sentimento generalizado de vergonha.
“Tá na Constituição!!! Bora transformar isso em algo real.
Como está não dá pra ficar!”. Com base na Lei nº 1.079/50, ci-
dadãos conectados se uniram em torno da hashtag #Impeach-
mentBolsonaro para denunciar “um presidente que divulga
pornografia em sua conta oficial nas redes sociais” e, portanto,

170 Por questões de ordem ética e de privacidade, identificaremos as autoras e autores


das postagens apenas como usuários, não apresentando quaisquer informações obre a
autoria dos tuítes. Entretanto, quando preciso, apresentaremos trechos literais das pos-
tagens, considerando que se trata de conteúdo público disponibilizados em uma plata-
forma digital.

325
possui um “comportamento impróprio no cargo”. Comparti-
lhando imagens e trechos do texto da Lei, os tuítes clamavam
por um “Brasil inteiro em uma só voz” pelo impeachment de
Bolsonaro: “Pessoal vamos nos unir ainda mais... e comparti-
lhar cada vez mais e seguir um ao outro... eles tem robot, mas
nós temos o povo unido a favor do #ImpeachmentBolsonaro”.
Para além da questão de crime de responsabilidade por falta
de decoro no cargo, circularam postagens problematizando
que “com a publicação do Decreto nº 9671/2019, o perfil pes-
soal de Jair Bolsonaro ganhou força de Oficial, dando, inclu-
sive, poder à Secretaria Especial de Comunicação Social da Se-
cretaria de Governo da Presidência da República, para admi-
nistrar sua conta”. De acordo com o Decreto, Bolsonaro não
estaria postando pornografia na conta pessoal de um cidadão
comum, mas em uma “das contas institucionais da Presidência
da República em mídias sociais”. Conforme ironiza um usuário
da plataforma social: “sabe aquele tiozão loucão da família que
manda um monte de merda no grupo do zap? Agora ele é pre-
sidente da república e faz a mesma coisa no Twitter oficial
dele!”. O debate sobre crime de divulgação de ato obsceno em
lugar público também circulou dentre as postagens analisadas:
“Um dos autores do pedido de impeachment de Dilma171 diz q
quebra de decoro de #goldenshowerpresident é passível de im-
peachment. E mais: divulgar é + grave no cód Penal q praticar
ato obsceno em lugar público”.
Junto com os comentários de que “o Brasil não tem um pre-
sidente, tem uma bloguerinha!” e de que “o presidente além de
governar pelo Twitter, vai governar pelo XVideos também.
Isso que dá andar com o Frota”, circularam postagens de bra-
sileiras e brasileiros preocupados com o que ocorreria se, de
fato, Bolsonaro fosse “o primeiro líder de uma nação derru-
bado por um tweet!”. Por um lado, havia o temor pela posse do
Vice-Presidente, o general Hamilton Mourão: “Sinuca de bico.

171 Em referência ao jurista Miguel Reale Júnior.

326
Enquanto pedem #ImpeachmentBolsonaro por ausência com-
pleta de capacidade em ocupar a cadeira da presidência, abrem
caminho p mourão, q é muito + articulado, preparado, e vem c
as mesmas bandeiras neoliberais (...)”. Por outro, discutia-se a
possibilidade de novas eleições: “Naaao!!! Se acontecer em
menos de 2 anos de governo, a chapa toda é cassada! Tem que
ter novas eleições”. Finalmente, em um processo de ressignifi-
cação sem controle, começou a circular a figura do “autopro-
clamado presidente do nosso país, Zé de Abreu”, que convocou
“Todos no Galeão no dia 8 de março às 18 horas” para a sua
posse.
O segundo sentido discursivo verificado nas 611 postagens foi
o questionamento da capacidade do “Excrementíssimo Presi-
dente Mijair Bolsoânus” para governar o país. Alegando que “ele-
geram um moleque imaturo” e afirmando estar com medo do
“que será desse pais em quatro anos de Mijair?”, as usuárias e
usuários do Twitter denunciaram que “Bolsonaro é inapto, des-
preparado e não tem condições mentais de ocupar o cargo”.
Tendo como exemplo o caso do presidente do Equador, Abdalá
Bucaram, que sofreu impeachment sob a alegação de “incapaci-
dade mental”, em 1997, foi questionado: “Será que não rola o
mesmo no nosso atual momento, devido aos últimos aconteci-
mentos?”.
Neste contexto discursivo, circularam nas redes as hipóteses
de que “(...) Exatamente por não ter condições q o colocaram de
testa de ferro”, ou ainda, que “As presepadas do celerado MiJair
Bolsonaro tem servido de cortina de fumaça (ou mijo) para des-
viar a atenção da opinião publica de temas realmente relevantes”.
Um internauta foi enfático ao postar que “Enquanto a gente dis-
cute o #ImpeachmentBolsonaro Eles agem na escuridão” [em re-
ferência à articulação do governo para vender a preço de banana
o sistema de energia nacional e permitir mineradoras gringas em
áreas indígenas]”. Desta forma, “A hora de chacotar o Bozo pas-
sou, quem sabe a postagem não foi tão aleatória assim”.

327
O terceiro sentido fixado a partir da circulação da hashtag
#ImpeachmentBolsonaro foi o desprezo do presidente à impor-
tância cultural e econômica do Carnaval para o país: “Imaginem
@realDonaldTrump postando vídeo de dois homens fazendo
Golden Shower na Flórida, dizendo que ‘isso é o que se resume a
Disney’. @EmmanuelMacron postando o mesmo dizendo ‘isso é
o que se resume a Torre Eiffel’”. Desta forma, Bolsonaro foi apon-
tado como o “típico patriota hipócrita: odeia tudo que é do país
dele e paga pau pra tudo que é gringo (...)”, além de “fundamen-
talmente BURRO” já que “Ao invés de fomentar a festa e cultura
popular, movimentação da economia em mais de 10 bilhões de
reais nesta época, incentivar a diversidade, não: ele quer man-
char a imagem do Carnaval e do povo inteiro, diminuir a maior
festa popular do mundo. Amador”.
Reverberou entre as postagens um sentimento de orgulho pela
nossa cultura carnavalesca, em um sentido bakhtiniano de festas
populares e públicas que se configuram como “a segunda vida do
povo” (BAKHTIN, 1987, p. 8): “Carnaval é a nossa história polí-
tica. É o nosso exercício de liberdade de expressão, é o ato artís-
tico do teor social brasileiro e filosófico. Não para a combativa da
nossa cultura! (...)”. Sendo o Carnaval uma festa que desestabi-
liza as hierarquias por permitir que a população acesse o “reino
utópico da universalidade, liberdade, igualdade e abundância”
(Idem.), os “carnavais” apresentados pelas escolas de samba Sal-
gueiro (1977), Beija-Flor (1989), Tuiuti (2019) e Mangueira
(2019), assim como os blocos de rua de 2019, foram apresentados
como verdadeiros “atos democráticos”: “lutas passadas conquis-
tadas para que estejamos na rua, gritar, para que nos escutem.
Querem nos silenciar novamente, não a combativa da cultura
brasileira! (...)”. Conforme bradou o carnavalesco da Mangueira,
Leandro Vieira, “Isso aqui é um recado pro Presidente Bolsonaro.
O Carnaval é isso aqui. E era isso que ele tinha que mostrar pro
mundo”.
Ao “humilhar a nação brasileira internacionalmente”, Bolso-
naro sobrepõe simbolicamente um sentimento generalizado de

328
vergonha ao orgulho do povo brasileiro pelo Carnaval: “Graças
ao presidente postando escatologia nas redes sociais, viramos
mais uma vez notícia vexatória na imprensa gringa! (…) [refer-
indo-se às matérias publicadas pelo The New York Times, The
Guardian, The Washington Post e The Daily Mirror]”. Desta
forma, os internautas lamentam a repercussão negativa da repre-
sentação ridicularizada e desonrada de sua cultura popular pelo
mundo, transformando a vergonha alheia da “cretinice do presi-
dente da maior Nação da América Latina” em “a vergonha de to-
dos nós”.

O ATAQUE DA DIREITA EM DEFESA DO MITO

“Atenção, a hashtag oficial para defender nosso mito hoje é


#BolsonaroTemRazão”. A partir de gritos de guerra como este os
apoiadores de Bolsonaro se engajaram desde a madrugada do dia
6 de março no Twitter contra a militância petista que pedia o
Impeachment do presidente: “Atenção amigos URGENTE AO
mostrar um vídeo ontem onde viado mijava no rabo do outro ex-
plicitamente hj nosso Presidente precisa de nosso total apoio, es-
querda querendo pedir impeachment. Podem pedir, vão ter é
guerra. Levantem a tag #BolsonaroTemRazão”. Com instruções
para tuitarem de três em três minutos para alcançarem o topo do
Trending Topics do Twitter, a direita do espectro político chegou
à marca de 500.000 postagens em um dia (quase o dobro de tuí-
tes da esquerda). Dentre as 1730 postagens analisadas, identifi-
camos quatro sentidos discursivos predominantes: 1) Bolsonaro
não cometeu falta de decoro algum, somente denunciou verda-
des; 2) o mito fez a esquerda negar a sua própria arte imoral; 3)
a imprensa hipócrita deveria estar escandalizada com o conteúdo
do ato, e não com a sua exibição; 4) um sentimento generalizado
de gratidão ao presidente pela limpeza moral no Brasil.
“Nosso Presidente está certíssimo nas suas atitudes”, sendo
“papel sim do presidente denunciar atos espúrios e nojentos

329
como esse”. Motivados por ideias como as de Olavo de Carvalho
que afirma que “Ter razão no Brasil é um crime hediondo”, os
apoiadores de Bolsonaro defenderam a exibição do vídeo pelo
presidente como a denúncia das verdades que “a esquerda depra-
vada tenta esconder”. Comparando as imoralidades carnavales-
cas ao terrorismo islâmico sugeriam que “O Capitão fez o que
Trump fez nos EUA, quando expôs pra todo mundo ver o horror
dos terroristas islâmicos lá! Bolsonaro é cidadão, e sempre de-
nunciou os horrores que via por aqui! E que ele continue!”. Desta
forma, se sentem protegidos porque agora “a maioria silenciosa
tem quem denuncie o absurdo do carnaval” que antes “no má-
ximo ganhava repercussão como ‘liberdade’ de manifestação”.
Para este lado, não houve falta de decoro algum nos atos do pre-
sidente, apenas a exibição daquilo que a cultura brasileira se tor-
nou nos últimos anos: “O presidente é linha dura e vai pegar pe-
sado com a banalização cultural. Se ele não expõe, a imprensa
não expõe”.
Com argumentos de que os militantes da esquerda “não sa-
bem distinguir o moral do imoral”, julgam o pedido do impeach-
ment do presidente como uma contradição em si: “Denunciar por
conteúdo impróprio? Só esqueceram de dizer que o conteúdo im-
próprio é deles; o Bolso só divulgou”. Para os apoiadores de Bol-
sonaro os “atores do grotesco espetáculo” é que deveriam ser cul-
pabilizados e não aquele que os denuncia: “Dois VEADOS dão
show de depravação no meio da rua e VOCÊ se escandaliza com
o Bolsonaro postando isso? Deixa de ser HIPÓCRITA! Rolou
p*taria em tudo que é canto do país! Infelizmente, o carnaval não
é só festa. ACEITA que DÓI MENOS”. Para eles, os brasileiros
que culpam quem denuncia o crime, e não o criminoso, estariam
sofrendo da “síndrome da burrice” que ainda não conseguiram se
recuperar depois de 16 anos de lavagem cerebral.
O segundo sentido discursivo que circulou a partir da hashtag
#BolsonaroTemRazão foi que, com apenas uma tuitada, Bolso-
naro teria feito a militância de esquerda ter negado a sua própria
arte imoral: “Vivi pra ver esquerdista dizer que vídeo de um

330
homem urinando na cabeça de um outro homem é pornografia,
e não ‘arte’ ou ‘liberdade de expressão’. Vocês estão mto perdi-
dos!”. Desta forma, denunciam que a “Esquerdalha pra atacar o
#mito vira até conservador!!!” em uma “lógica inversão de valo-
res! Típico da lógica de Gramsci”. Para os que defendem que Bol-
sonaro tem razão, “O ‘pensamento’ esquerdista é baseado em de-
turpação dos fatos, é fácil comprovar qdo se conhece as trapaças
argumentativas. O truque é inverter a lógica onde o certo, vira
errado. Quem ainda cai?”.
Compartilhando imagens da exposição Queermuseu no San-
tander Cultural e La Bête no MAM de São Paulo, os apoiadores
do presidente argumentaram que a mesma esquerda que estava
preocupada com o acesso de menores ao conteúdo do vídeo pos-
tado por Bolsonaro foi quem apoiou – e financiou – “crianças to-
cando peladão no museu”, crianças vendo “vídeo de um homem
recebendo ejaculação no rosto” e “quadros com cenas sexuais –
incluindo zoofilia”. Em um efeito contrário ao mito de Narciso
que se apaixona pelo reflexo de sua imagem, “Bolsonaro colocou
um espelho na frente daquilo que é o resultado de anos de liber-
tinagem, de sexualização pela mídia, do que os vermelhos cha-
mam de ‘arte’, etc... Eles olharam, viram sua própria imagem e
não gostaram...”.
Neste contexto, a mídia é definida como “hipócrita” por ter se
escandalizado com a exposição do ato deplorável pelo presidente
e não com o ato imoral praticado: “A mídia passou anos fazendo
golden shower na cabeça dos brasileiros. É compreensível que es-
teja revoltada quando alguém ataca a prática”. Os eleitores de
Bolsonaro questionam “Por que a imprensa está tão indignada?”
se “O Jornalismo militante e hipócrita apoiou durante anos a de-
composição da sociedade”. Desta forma, denunciam a “lógica da
grande mídia” que acha normal praticar ato sexual em público,
porém se escandaliza com a denúncia do ato em si: “Jornalistas
deveriam preocupar-se com o [que] acontece nas ruas em blocos
de Carnaval, onde ativistas cometem crime (Art. 233 ato obs-
ceno) à luz do dia, do que atacar o post do presidente, que mostra

331
a sua preocupação do que acontece no país. Bando de FDP’s”.
Para eles, o grande feito do “presidente mito” foi fazer jornalistas
defenderem a moral e os bons costumes: “Quarta-feira de Cinzas
de 2019: o dia em que a imprensa amanheceu moralista. Será o
espírito da Quaresma?”
Dentre os 1730 tuítes que defendiam Bolsonaro era explícito
um sentimento generalizado de gratidão ao presidente: “Isso!
#BolsonaroTemRazão! Este país precisa de uma limpeza moral.
Meus avós e pais devem estar se revirando nos respectivos túmu-
los, vendo o lixo em que isto aqui está se transformando”. Consi-
derado um “golaço político”, os tuítes de Bolsonaro teriam tra-
zido a “discussão política para um tema que incomoda a maioria:
o desrespeito aos que não concordam com o exagero do ativismo
na suposta defesa das pautas LGBT”. A narrativa combativa e as
várias controvérsias veiculadas por Bolsonaro, e que causam
grande perplexidade ao lado progressista, são enaltecidas pelo
polo político conservador que revalida em suas postagens o seu
voto e lealdade ao presidente: “Sinto extrema felicidade em saber
que o pai de família honesto, tenha votado ou não no @jairbolso-
naro, ao ver seu post, concordará com cada palavra dita por ele,
e o respeitará por ter a coragem de se posicionar contra. Foi pra
isso q votamos nele. Que orgulho!”. Neste passo, pedem ao pre-
sidente que “continue denunciando a podridão que permeia
nosso país. Muitos que hoje criticam vão começar a enxergar a
degradação de nossa nação. Eu creio nisso. #BolsonaroTemRa-
zão”.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Não é de hoje que o povo brasileiro aproveita o Carnaval para


expressar os anseios políticos, sendo esta uma tradição mais an-
tiga que a própria República – desde as campanhas abolicionis-
tas no Império, passando por Vargas, o processo de abertura da
ditadura militar, o japonês da Federal durante o processo da Lava

332
Jato e a agenda conservadora de Bolsonaro que se opõe ao espí-
rito transgressor e satírico do Carnaval. “É como um mecanismo
de sobrevivência, de conexão com o mundo, com o lugar, com a
cidade. No momento mais crítico… o bloco está na rua” (SIMAS,
2019, documento online).172
Os protagonistas do vídeo postado pelo presidente Jair Bolso-
naro como a “verdade” daquilo “que tem virado muitos blocos de
rua no carnaval brasileiro” publicaram o Manifesto Golden Sho-
wer, no qual afirmam que a performance não era “um fervo imo-
ral de carnaval”, mas um ato político-artístico contra o conser-
vadorismo e a colonização dos corpos e desejos dissidentes, se
posicionando ao lado da imoralidade de vidas ditas como irrele-
vantes e matáveis: “Somos os corpos não docilizados da escato-
logia social. Nossos desejos não dialogam com o sistema sexo-
produtivo do cis-heterossexismo, masculino e branco”173. Os dois
artistas afirmam que o bloco onde estavam e no qual o vídeo foi
gravado era declaradamente LGBTQI+ e que “o presidente,
frente à enxurrada de críticas nos carnavais de todo país, preferiu
produzir outra cortina de fumaça nas redes”, alimentando o pro-
cesso de demarcação de fronteiras simbólicas entre “pessoas
como nós” e “pessoas contra nós”.
Por meio de uma espiral de reforço dos valores morais e ide-
ológicos dos dois lados do espectro político brasileiro, as
hashtags que lideraram as postagens no Twitter na Quarta-
Feira de Cinzas, 6 de março de 2019, contribuíram para a inten-
sificação do extremismo ideológico e da intolerância às diferen-
ças em curso no país e no mundo, reforçando a consistência de
si dos sujeitos políticos. Ou seja, ao invés de estimularem o en-
gajamento de múltiplas perspectivas em debates vibrantes, pro-
dutivos e agonistas, levaram os cidadãos comuns conectados a

172 In: LOBEL, Fabrício. De Vargas a Bolsonaro, marchinhas florescem com crises po-
líticas. In: Folha de São Paulo, 4 de março de 2019. Disponível em:
https://bit.ly/2RxXf9H. Acesso em: 25 jun. 2019.
173 Texto na íntegra em: BALLOUSSIER, Anna V. Foi ato político, diz dupla do ‘golden
shower’ criticado por Bolsonaro. In: Folha de São Paulo, 7 de março de 2019. Dispo-
nível em: https://bit.ly/2C9hL9T. Acesso em: 25 jun. 2019.

333
disputarem e fixarem sentidos discursivos que aumentassem a
acessibilidade dos seus selfs-políticos e reforçassem o antago-
nismo excludente entre diferenças identitárias e políticas.
Seguindo o modus operandi estabelecido ainda na campanha
eleitoral de 2018, Bolsonaro reage a um Carnaval bastante poli-
tizado viralizando o caso específico de um bloco de rua como a
representação da depravação que tem virado o Carnaval brasi-
leiro e se colocando contra um dos principais responsáveis pela
destruição dos valores da tradicional família brasileira, os movi-
mentos LGBTQI+. Em uma estratégia de campanha permanente,
Bolsonaro procura desestabilizar a força das críticas do Carnaval
de rua ao seu governo, polarizando o debate político em seu fa-
vor: de um lado, estariam os cidadãos de bem que por defende-
rem a civilidade e a decência moral veem o presidente como o
mito que quer revelar a verdade que nunca foi mostrada para a
população pela mídia hipócrita; do outro, os monstros morais
que, ao defenderem um vídeo escatológico, estariam se posicio-
nando publicamente a favor de homossexuais promíscuos, artis-
tas pedófilos, feministas histéricas, jornalistas degenerados e co-
munistas vagabundos.
Segundo Tiburi (2019), o presidente brasileiro reproduz uma
fórmula de sucesso nos Estados Unidos a partir da Era Trump.
Enquanto confundem e geram reações de ódio e amor no campo
moral, Trump e Bolsonaro colocam em prática o projeto neolibe-
ral de acabar com os limites democráticos e éticos ao exercício do
poder e, assim, atender aos objetivos do mercado, sobretudo do
mercado financeiro que sempre soube lucrar com o caos, a des-
truição e a desorientação do povo. Conforme esclarece um usuá-
rio do Twitter, “O privilégio é a arma mais forte de Bolsonaro. O
pedido de impeachment não vai funcionar. Não é uma mulher na
presidência, nem um homem lutando contra a fome, é só um ma-
cho protegendo o capitalismo conservador. Essa é a realidade
que devora o Brasil. #ImpeachmentBolsonaro”.

334
REFERÊNCIAS

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WODAK, R. (Org.). Methods of critical discourse analysis:
introducing qualitative methods. Londres, Thousand Oaks,
New Delhi: Sage Publications, 2001.

336
 SOBRE O QUE FALAM OS FÃS DE OLAVO DE CARVALHO?
UMA ANÁLISE COMPUTACIONAL DE COMENTÁRIOS NO
FACEBOOK 174

CELINA LERNER

RESUMO

A recente escalada global da direita política relaciona-se inti-


mamente com a expansão das redes sociais digitais. Numa atua-
lização dos Estudos de Recepção e com abordagens em desenvol-
vimento nas Humanidades Digitais, identificamos as principais
preocupações dos apoiadores de direita no Brasil por meio da
análise de big social data. Coletamos mais de 100.000 comentá-
rios publicados entre 2014 e 2018 na página do Facebook do in-
fluente ativista conservador Olavo de Carvalho. Modelamos esses
textos em rede, tornando visíveis padrões presentes no discurso
coletivo. Verificamos que os comentários se concentram em
questões políticas e religiosas, e que prevalece a preocupação
com a ameaça comunista e com a degeneração em geral.

PALAVRAS-CHAVE: redes sociais digitais; comentários; redes


de palavras; conservadorismo.

ABSTRACT

The current global rise of right-wing politicians is closely


related to the expansion of digital social networks. By updating

174 Este texto é um desdobramento da tese de doutorado “A Mentalidade Conservadora


no Brasil: uma análise da interação política em redes sociais digitais (2012 – 2018)”, apre-
sentada ao PCHS/UFABC em junho de 2019.

337
Reception Studies and developing approaches in the Digital Hu-
manities, we identified key concerns of right-wing supporters in
Brazil through big social data analysis. We collected more than
100,000 comments posted between 2014 and 2018 on the Face-
book page of influential Brazilian conservative activist Olavo de
Carvalho. We modeled these texts in a network, making visible
patterns present in the collective discourse. We have found that
the comments focus on political and religious issues, and that
concern over the communist threat and widespread degeneration
prevails.

KEYWORDS: digital social networks; comments; word net-


works; conservatism.

INTRODUÇÃO

A ascensão política da direita no Brasil e no mundo é um


fenômeno complexo, multicausal e que tem sido investigado a
partir da dimensão político partidária, da relação entre economia
e política, do ponto de vista dos líderes e formadores de opinião,
das dinâmicas de comunicação nas novas mídias digitais e
muitas outras abordagens. Neste capítulo, jogamos luz sobre a
base social desse movimento. Especificamente, focamos nas di-
nâmicas de interação política no Facebook, buscando delinear a
visão de mundo dos grupos que sustentam e legitimam a ascen-
são do conservadorismo no país. Como numa atualização dos Es-
tudos de Recepção para o novo contexto comunicacional e dentro
das novas possibilidades de pesquisa nas Humanidades Digitais,
nos apropriamos das grandes quantidades de dados digitais pro-
duzidos nas interações em redes sociais para mapear as princi-
pais preocupações de um grupo específico de apoiadores das cau-
sas da direita: os fãs da página de Olavo de Carvalho no Face-
book.

338
O polemista e autointitulado filósofo ganhou notoriedade du-
rante a campanha presidencial de 2018 nos meios digitais e tem
sido chamado pela imprensa de “guru do governo Bolsonaro”.
Sua influência política é reconhecida também pela academia:

(Olavo de Carvalho é) certamente o maior influenciador das


novíssimas direitas conservadoras no Brasil, tem exercido uma
autoridade enorme na política brasileira, principalmente no
que se refere aos discursos produzidos sobre o processo de re-
democratização do país nos anos 1980, alimentando um po-
tente ódio aos islâmicos e, principalmente, socialistas e comu-
nistas, assim como aos liberais que atuam junto ao sistema fi-
nanceiro internacional, além dos illuminati e da maçonaria
(ROSA et al, 2018, p. 176).

A atuação de Olavo de Carvalho como ativista na Internet vem


de longa data: em 2002, ele criou o blog “Mídia sem Máscara”
com o objetivo de combater o “viés esquerdista da grande mídia
brasileira”175. No Facebook, sua página pública iniciou suas ativi-
dades em janeiro de 2014. Em dezembro de 2015, a página tinha
176 mil fãs e, em outubro de 2018, já ultrapassava a marca de
meio milhão de fãs (Figura 1).

175 JC Online, 09/07/2017, “Olavo de Carvalho, pensador que desperta opiniões anta-
gônicas”. Disponível em: https://jconline.ne10.uol.com.br/canal/cultura/noti-
cia/2017/07/09/olavo-de-carvalho-pensador-que-desperta-opinioes-antagonicas-
294204.php. Acesso em: 02 dez. 2019.

339
Figura 1: Página Olavo de Carvalho no Facebook

Fonte: Facebook <https://www.facebook.com/carvalho.olavo/>,


print screen de 02/04/2019

De acordo com os dados biográficos publicados na seção “so-


bre” de sua página, Olavo de Carvalho, nascido em Campinas-SP
em 1947, “tem sido saudado pela crítica como um dos mais origi-
nais e audaciosos pensadores brasileiros”. A tônica de sua obra é
a “defesa da interioridade humana contra a tirania da autoridade
coletiva”. Já na descrição de seu pensamento está presente o es-
quema básico da mentalidade conservadora: defesa diante de
uma ameaça. No caso do autor, essa autoridade coletiva ameaça-
dora é personificada na classe acadêmica, portadora ou defen-
sora de uma ideologia “científica”. Mais do que a compreensão
dos princípios e da prática da filosofia militante de Olavo de Car-
valho, nosso interesse recai nos valores que ele consegue mobili-
zar, chamando para si tantos seguidores. Focamos este estudo
não nas postagens, mas nos comentários feitos à página do início
de seu funcionamento até o fim de 2018.

340
O período é marcado pela expansão do acesso à Internet, princi-
palmente via celulares, e aumento do número de usuários das redes
socais digitais. Em 2014, havia cerca de 90 milhões de contas brasi-
leiras no Facebook, o equivalente à metade da população com 10
anos ou mais. No primeiro trimestre de 2018, a empresa anunciava
a marca de 127 milhões de usuários ativos por mês no Brasil, o que
corresponde a aproximadamente 70% da população nacional. A ex-
pansão das redes sociais digitais é concomitante à escalada da di-
reita no mundo. As novas dinâmicas de comunicação têm tido enor-
mes implicações no acesso à informação, nas práticas de sociabili-
zação e nos mecanismos de suporte aos sistemas políticos democrá-
ticos que ainda precisam ser melhor entendidas.
Ao mesmo tempo, essas novas formas de comunicação produ-
zem dados digitais de interações na Internet em larga escala –
conhecidos como big social data ou grandes dados sociais – e
vêm provocando uma virada nos métodos de pesquisa nas ciên-
cias humanas e sociais (MANOVICH, 2012; BURGESS e BRUNS,
2012). As interações em meio digital deixam rastros que podem
ser recuperados e analisados, criando uma oportunidade inédita
na história da ciência moderna de se estudar o cotidiano, um sem
número de ações, de um volume igualmente grande de pessoas,
em detalhes e numa escala nunca antes imaginável.
Mas, ao contrário de que se pode supor, grandes quantidades
de dados não implicam a realização de pesquisa estritamente
quantitativa. O trabalho com informações numéricas, com algo-
ritmos que realizam operações matemáticas, não torna a objeti-
vidade o principal ingrediente da análise de big social data, na
realidade, a subjetividade do pesquisador está abertamente en-
volvida no processo de extrair sentido dessa imensidão de dados.
Aplicamos neste estudo métodos mistos que visam a realiza-
ção de uma análise do discurso dos comentários da página Olavo
de Carvalho que leve em conta as condições contextuais da pro-
dução dos textos analisados e, principalmente, os contextos in-
tratextuais que emergem do discurso coletivo. Para entender a
natureza da interação comentário e que tipo de texto podemos

341
esperar coletar e analisar, inicio com uma genealogia dos comen-
tários na Internet. Na sequência, tratando texto como dados,
aplico uma modelagem em rede a mais de 100 mil comentários e
interpreto os resultados da análise voltando às enunciações ori-
ginais e buscando compor os principais contextos, temas e valo-
res compartilhados e construídos pelos autores dos comentários
à página Olavo de Carvalho e que legitimam, de alguma forma, a
atual guinada à direita na política nacional.

UMA BREVE HISTÓRIA DOS COMENTÁRIOS NA


INTERNET

Um comentário é uma interação textual (podendo conter


elementos não textuais como emoticons, gifs, imagens em geral,
links e vídeos) que um indivíduo faz a partir de uma publicação
primária em plataformas de comunicação digital. Essa primeira
publicação pode ser um texto que inaugura uma discussão em um
fórum, uma notícia de um site jornalístico, o texto de um blog, ou
uma foto ou vídeo em uma rede social. Logo abaixo do texto,
imagem ou vídeo que compõem a postagem primária, há opções
de interação com a mesma como o botão “curtir” ou a ferramenta
“compartilhar” do Facebook ou, o que nos interessa mais, uma
caixa de texto onde o usuário/leitor pode escrever um
comentário, que será exibido logo abaixo da postagem original.
Outras pessoas também podem fazer a mesma coisa, gerando
uma série de comentários atrelados à postagem original.
Essa dinâmica “publicação matriz/publicações derivadas” na
comunicação mediada por computador precede a própria Internet.
Pelo menos desde a década de 1980, esse tipo de configuração
dialógica operava em BBS ou Bulletin Boards Systems e redes
similares. O modelo corrente era o fórum ou lista de discussão, com
canais ou seções temáticas pré-determinadas, nos quais os usuários
podiam postar textos com conteúdo relativo ao tema do canal e
cujas colocações ou questões seriam respondidas por outros

342
usuários. A postagem original figurava em uma lista e de postagens
e, quando acessada, levava a uma tela em que a mensagem original
aparecia primeiro e as respostas a ela vinham na sequência, num
esquema denominado thread ou “linha” de discussão. Na Internet,
o modelo de fórum de discussões foi adotado desde o princípio,
inclusive para discussão de questões relativas ao desenvolvimento
da própria WWW e segue até hoje como um espaço de comunicação
importante para públicos especializados em determinados temas.
Na década de 1990, após a abertura comercial da Internet, no-
vas ferramentas de publicação de conteúdo e interação foram cri-
adas. Os blogs, sites com capacidade de atualização dinâmica de
conteúdo, se popularizaram rapidamente. Para além da
possibilidade de tirar o consumidor da passividade fornecendo-
lhe ferramentas e espaço para a própria expressão, o sucesso dos
blogs – e de todas as mídias sociais que se sucederam – está
intimamente ligado com a dinâmica de comunicação publicação
matriz/comentário. Investigando a motivação pessoal de autores
de blogs diversos, a pesquisadora norte-americana Ericka
Menchen-Trevino (2005), identificou como maior fator de
atração das plataformas a efetividade da formação de um público
leitor. Diferentemente de sites sem espaços para interação, os
blogs são lidos e geram uma resposta de seus leitores - expressa
nos comentários. Essa resposta estimula os autores a
continuarem postando e resulta na atualização constante de seu
conteúdo e na formação de comunidades de leitura/escrita. Os
comentários são uma parte importante desses novos veículos não
só porque permitem a expressão de um público que em outros
meios dificilmente seria ouvido, mas principalmente porque esse
retorno dos leitores estimula os autores a continuarem a produzir
e publicar novos conteúdos.
A ferramenta foi incorporada também pelos sites de imprensa
e celebrada por dar aos leitores uma oportunidade de
participação inédita na história da imprensa (NIELSEN, 2014).
Essa história, porém, não tem um final feliz. Como espaços nos
quais as pessoas podem, sem se confrontarem face-a-face,

343
perguntar coisas umas às outras sem restrições, os comentários
configuram um gênero dramático que pode facilmente levar ao
conflito (REAGLE JR, 2015). A linguagem escrita também pode
levar a uma falta de entendimento do “tom” da mensagem e os
comentários facilmente descambam para a troca de insultos
(KRUGER et al, 2005; BENKLER, 2006). Com dificuldades para
moderar as interações e manter um nível elevado na página, pelo
menos desde 2006, há registros do encerramento do espaço para
comentários em sites de imprensa tradicional176.
Com o desenvolvimento da Web 2.0, as discussões, assim
como outros tipos de interações na Internet, foram sendo
gradativamente transferidas para os sites de rede social
(ELLISON e BOYD, 2013). Pelo menos desde 2006, os
internautas mais jovens começaram a migrar dos blogs para as
redes sociais, preferindo o modelo de publicação e interação
oferecido pelas novas plataformas (LENHART et al, 2010). A
transição foi nitidamente notada na prática dos comentários en-
tre os mais jovens: enquanto diminuía em blogs, a prática de co-
mentários aumentava em páginas, murais (walls) e fotos de
amigos em redes sociais. Na última década, o gosto pelas redes
sociais digitais extrapolou o público jovem e atingiu todas as
faixas etárias. Interagir com seus contatos tem sido mais
importante para as pessoas do que o uso da rede para buscar
informações, passar o tempo, entreter-se, relaxar, expressar
opiniões ou vigiar/acompanhar as atividades de outras pessoas
(WHITING e WILLIAMS, 2013).
Inicialmente planejada para o compartilhamento de
momentos cotidianos expressos em fotos ou textos, a plataforma
de rede social ganhou usos tão diversos quanto as necessidades e
vontades de seus usuários. Ao longo do tempo, o Facebook se

176 Ver: GOUJAR, Clotilde. “Why news websites are closing their comments sec-
tions”. Disponível em: https://medium.com/global-editors-network/why-news-websi-
tes-are-closing-their-comments-sections-ea31139c469d. Acesso em: 02 dez. 2019. Ver:
ULMI, Nic. “The Dark, Decaying Underbelly Of Online Commenting” Disponível em:
https://www.worldcrunch.com/culture-society/the-dark-decaying-underbelly-of-on-
line-commenting/c3s19981 Acesso em: 02 dez. 2019.

344
tornou um campo privilegiado para a articulação de
mobilizações, para a discussão de temas de interesse público e
para a realização e repercussão de campanhas eleitorais.
Em especial no contexto brasileiro, a discussão sobre política
extrapolou os períodos eleitorais e difundiu-se no cotidiano. Em
2016, a política brasileira foi o segundo tema mais frequente no
Facebook no mundo todo, atrás somente da eleição para
presidente dos Estados Unidos177. Além da expansão do uso das
plataformas, os anos recentes são marcados por uma
diferenciação nas formas de usar as mesmas de acordo com
grupos de ação política e por uma crescente polarização entre
direita e esquerda (MALINI, 2016; ORTELLADO e RIBEIRO,
2018).
No campo da direita, formadores de opinião atuantes nas
mídias sociais digitais – dos quais Olavo de Carvalho é o maior
expoente – foram capazes de gerar empatia e congregar um
público que se identifica com as causas defendidas e dialoga
entre si, reforçando e atualizando coletivamente essa visão de
mundo conservadora. As redes sociais digitais deram, portanto,
uma dupla contribuição ao fortalecimento e à difusão do
conservadorismo: intensificaram o sentimento de ameaça pela
exposição constante a conteúdos alarmistas e anti-esquerda, ao
mesmo tempo em que possibilitaram às pessoas que vêem
sentido nesta cosmovisão encontrarem seu grupo de
pertencimento (LERNER, 2019). A grande quantidade de dados
digitais produzidas nas interações sociais possibilita uma nova
fase de Estudos de Recepção. Muito embora os comentaristas se-
jam autores e, portanto, emissores de seus comentários, eles são
os leitores e seguidores do autor das postagens originais. Foca-
mos a análise nos comentários, e não nas postagens de Olavo de

177 Dados da empresa Facebook com base na frequência em que os tópicos foram men-
cionados em postagens entre 1º de janeiro e 27 de novembro de 2016 em todo o mundo.
Disponível em:
https://newsroom.fb.com/news/2016/12/facebook-2016-year-in-review/. Acesso em:
02 dez. 2019.

345
Carvalho, pois nosso interesse recai sobre o discurso coletivo, so-
bre a mentalidade que sustenta a ascensão dessa nova direita no
cenário político nacional.

PARA LER MILHARES DE COMENTÁRIOS: MODELAGEM


DE TEXTO EM REDES DE PALAVRAS

Para apreender os sentidos construídos, compartilhados e re-


plicados pelos comentários à página Olavo de Carvalho, coletei
as postagens realizadas pelo autor entre 2014 e 2018. A raspagem
de dados retornou aproximadamente 600 postagens por ano e, para
cada uma delas, os 200 comentários considerados mais relevantes
pelo Facebook. No total, foram 2.844 postagens e 100.297
comentários coletados.
E como extrair sentido de tamanha quantidade de textos?
Adoto aqui a abordagem de texto como dados, em que modelos
matemáticos são utilizados para transformar textos em elemen-
tos operacionalizáveis por computador. Parto da teorização do
estatístico francês Jean-Paul Benzécri (1973), que propôs uma
modelagem de texto bastante simples que consiste na construção
de uma matriz que contabiliza a ocorrência de dois termos, um
substantivo e um verbo, numa mesma sentença. Avançando, o
engenheiro francês Max Reinert (1990) propôs o método
ALCESTE. No lugar de trabalhar com pares “sujeito/predicado”,
ele constrói um modelo que relaciona palavras em trechos de tex-
tos. A análise não se fixa nas relações sintáticas, uma vez que não
busca clarificar o conteúdo específico de uma determinada enun-
ciação. Seu objetivo é "mapear" os principais "tópicos" ou "luga-
res comuns" que constroem o mundo do discurso analisado.
Aplicada a um conjunto de textos, essa abordagem distribu-
tiva destaca uma dimensão de organização do texto que "memo-
riza" suas condições de produção. As palavras utilizadas se dife-
renciam e se relacionam e seus usos implicam constelações de
palavras que marcam uma construção simbólica coletiva. Reinert

346
(1993) propõe um modelo de análise contextual. A repetição, in-
dicada pela frequência com que determinadas palavras ocorrem
no texto, é um indicador da importância dada a ela pelo sujeito-
enunciador. Mas, mais do que saber quantas vezes uma palavra
ocorre em um texto, importa conhecer sua relação com as demais
palavras que frequentemente ocorrem juntas e com o texto como
um todo.
Avanço sobre a proposição de Reinert ao representar as pala-
vras em grafos de rede. A ideia básica da metodologia de redes de
palavras, que proponho neste trabalho, é que os sentidos de um
termo são apreendidos a partir de sua relação com outros termos.
As modelagens expostas até agora partem da mesma premissa,
mas a rede tem ainda a vantagem de apresentar visualmente es-
sas relações e permitir, a leitores pouco familiarizados à estatís-
tica, a aproximação intuitiva aos conteúdos latentes do discurso
representado.

MONTAGEM DA REDE DE PALAVRAS

Comecei coletando os comentários às postagens de 2014 a 2018


com o aplicativo Netvizz (RIEDER, 2013). Pré-formatei e carre-
guei os dados na plataforma CorText178 e extraí a lista de termos
mais relevantes. Optei por não usar a frequência absoluta, mas por
selecionar os termos considerando um balanço entre sua
especificidade e sua frequência, aplicando uma função que atribui
peso as palavras considerando a ocorrência total do termo em todo
o corpus sobre o número de documentos em que ela ocorre. Além
disso, apliquei um fator de correção de sobre-representação de
termos super recorrentes. Como resultado, palavras
extremamente frequentes em diferentes contextos – como os
nomes das páginas ou dos autores, cumprimentos, expressões de
emoção e os marcantes palavrões – tiveram sua importância

178 Disponível em: https://www.cortext.net/. Acesso em: 02 dez. 2019.

347
minimizada. Isso resultou em uma rede mais limpa, mais centrada
no conteúdo temático do que nas características textuais advindas
da especificidade interacional do meio.
Executei o mapeamento da rede tendo como ponto de partida
os primeiros 500 termos desta lista. Para o cálculo da relação
entre as palavras, utilizei uma medida indireta de distribuição,
que leva em consideração a distribuição global da co-ocorrência
de dois termos em relação a todos os outros nós.
Uma vez estabelecidas as distâncias entre todas as palavras,
construímos as arestas de ligação. Para facilitar a visualização das
conexões mais significativas, filtrei as arestas definindo a exibição
destas para apenas os cinco nós vizinhos de maior peso para cada
nó e excluindo qualquer aresta cujo peso fosse menor que um
limite de proximidade estabelecido. Utilizei o algoritmo Louvain
(BLONDEL et al. 2008), para a detecção de agrupamentos de nós
em comunidades marcadas pelas diferentes cores e a
espacialização dos nós foi feita automaticamente pelo CorTexT.

A REDE DE PALAVRAS DOS COMENTÁRIOS À OLAVO DE


CARVALHO

A rede dos termos mais relevantes do conjunto dos


comentários tem 467 nós e 2201 arestas distribuídos em 16
comunidades (Figura 2).

348
Figura 2: Rede de palavras dos comentários de Olavo de Carvalho

Fonte: a autora, elaborada com a plataforma CorTexT

Cada comunidade – representada pelas diferentes cores –


agrega palavras que ocorrem com frequência simultaneamente

349
num mesmo comentário, formando um contexto discursivo so-
bre o qual os comentadores da página discorreram reiterada-
mente durante o período analisado.
O contexto mais presente nos comentários é representado
pela comunidade amarela, “brasileiros & governo”, dando conta
de que o assunto central dos comentários é a política brasileira e
o teor das discussões da página não se dá num mundo das ideias
apartado da realidade social.
A palavra mais recorrente nos comentários é Brasil. De uma
forma geral, ao termo Brasil se ligam duas ideias principais: 1. à
ideia de povo, de um espírito unitário que caracteriza a popula-
ção deste Brasil, como em: “Brasil ... um país de imbecis”; e 2. à
ideia de país, de um território ou uma unidade política gerida por
um governo179, como no seguinte comentário: “Os Comunistas
elaboraram a Constituição de 1988. O Congresso deverá cessar o
avanço da Comunização do Brasil, que está previsto nessa cons-
tituição”.
À palavra Brasil, na rede, se ligam diretamente povo, popula-
ção, dinheiro, milhões e instituições. Bem próximo a Brasil, te-
mos corrupção, Federal, crime, civil, crise, projeto e outras. A
ideia mais persistente na totalidade dos comentários é a de que
há uma crise, uma situação muito grave, instaurada no país:
“O que é um xingamento, se comparado ao massacre de saúde,
educação e financeira que ela e a quadrilha dela submentem o
povo?”;
“E a saúde que é uma das piores? E a educação que é precária?
E a segurança que vergonhosa? E os bilhões desviados na cara
dura? E o enriquecimento de familiares cm o dinheiro público
(friboi)?...”;
"O Brasil está fudido. E isso é irreversível, não tem mais jeito.
Quem puder vá embora dessa bosta de país...”.

179 A dupla está explícita no nome da comunidade “brasileiros & governo”. Os termos
que nomeiam as comunidades são escolhidos automaticamente pela plataforma por se-
rem os termos do grupo com maior número de ligações com palavras deste mesmo grupo.

350
Os comentários em geral não tratam de situações específicas,
mas apontam genericamente vários setores em que a degenera-
ção impera. Duas coisas são certas: o país vai mal e a culpa é do
PT. São palavras extremamente frequentes agrupadas também
nesta comunidade PT, Lula, Dilma e comunista:

“...temos ainda a nossa DEMOCRACIA que VAI EXTIRPAR


da FACE da TERRA , da NOSSA TERRA, do nosso BRASIL, este
"CANCER" chamado Dilma, PT, Lula!!!!”
“De nossa parte o correto é persistir em alargar cada vez mais
as evidências da corrompida imagem que Lula e seus comparsas
trataram de dissimular nesses 12 anos e também investir na pro-
pagação incisiva e ininterrupta de que o pior inimigo do Brasil é
o Foro de São Paulo.”

A expressão Foro de São Paulo não aparece na rede, pois


acabou sendo filtrada da lista de termos por ser super-recorrente.
Ela ocupa a posição 117 no ranking de frequência absoluta e tem
o mesmo número de ocorrências que corrupção e puta. Seu uso
disseminado é um sinalizador de que os comentários se
desenvolvem em sintonia com o discurso dos formadores de opi-
nião atuantes nas mídias sociais digitais. Como um deles mesmo
escreveu: “Por quase duas décadas, os jornais e supostos
oposicionistas brasileiros esconderam do grande público a
existência do Foro de São Paulo” (BRASIL, 2014, p. 1). De fato, a
imprensa tradicional nunca deu muita atenção a este fórum das
esquerdas; já, os jornalistas, blogueiros, ativistas políticos da
rede conservadora, em especial Olavo de Carvalho,
continuamente se referem ao Foro como uma prova
incontestável de que há uma conspiração comunista em curso no
continente e da qual o Brasil foi vítima nos anos em que foi
governado pelo PT (MESSEMBERG, 2017).
Sobreposta à grande comunidade amarela, está a comunidade
roxa, “planeta & exército”, com as palavras comunismo, socia-
lismo, socialista, revolução e Gramsci. Contra ela, é necessário a

351
ação do exército, dos soldados e da FFAA180. Como no comentá-
rio: “...LEVEM SEUS CARTAZES PEDINDO SOS FORÇAS
ARMADAS. VAMOS LIVRAR O BRASIL DO COMUNISMO
ANTI CRISTO...”. Militares, intervenção e Forças Armadas apa-
recem na mesma região do grafo, em amarelo.
Logo acima, a comunidade verde, “mídia & política”, congrega
os termos: Estado, esquerda, política, sistema, Bolsonaro, de-
mocracia, escola, pública, liberdade, sociedade, cultura, violên-
cia e, curiosamente, crianças. Aparentemente, os comentários
que compõem este contexto versam sobre política ainda de ma-
neira generalista, mas de um ponto de vista mais pragmático,
como: “venho fazendo militância anti-comunista em sala de aula
na rede pública. Sou professor de filosofia e conservador” ou
“Olha globo sendo ‘golpista’, fazendo insinuações de que quem
trata repórter com violência é de direita”.
O terceiro contexto mais frequente nos comentários é
constituído pelos termos presentes em “fé & homem”, a
comunidade vermelha na parte superior direita do grafo. Entre
as palavras mais frequentes estão: vida, Deus, senhor, Jesus,
Cristo, igreja, realidade, religião e fé. Os comentaristas parecem
reverberar os valores espirituais mencionados na descrição da
página. É nessa comunidade que se encontram os termos ligados
às discussões de gênero como: mulheres, homens, mulher, gay,
sexo e aborto.

“Deus me levou até o Sr. professor! Ele sabe o que faz..rs”

180 A popularização do termo FFAA é mais uma prova de que o discurso conservador
se renova e se retro-alimenta nas redes sociais e nas ruas. A sigla FFAA é usada em refe-
rência às Forças Armadas. Embora a abreviação correta seja FA, o uso da forma dupla
cresceu depois de uma manifestação em Copacabana em 2012, em que faixas da UNEMA
(União das Esposas dos Militares das Forças Armadas) foram redigidas em inglês. Fonte:
Revista Sociedade Militar – O portal militar do BRASIL. Disponível em:
https://www.sociedademilitar.com.br/wp/2017/09/o-que-significa-ffaa-abreviaturas-
militares.html. Acesso em: 02 dez. 2019.

352
“As feministas adoram ficar falando em "igualdade de opor-
tunidades" com os homens "opressores" mas será que elas sabem
que 94% das pessoas mortas no trabalho são HOMENS?...”;
“Lembro de minha época de escola. Quando eu falava sobre a
fé cristã: ‘aqui não é lugar doutrinamento religioso, vai endeusar
Jesus na igreja’. Hoje eu responderia: ‘aqui não é lugar de dou-
trinamento socialista, vai endeusar Marx num campo de concen-
tração’.”

A parte superior do grafo concentra as comunidades relativas


à religião, enquanto na parte inferior estão os agrupamentos
referentes à política. Fazendo a conexão do cluster religioso com
o cluster “mídia & política”, está a comunidade “ocidental &
Israel”, que traz também os termos: ONU, islã e muçulmanos.
Mais acima, em laranja, há uma pequena comunidade que
também reúne termos religiosos chamada “religiosa & prega”.
Entre esta comunidade e o agrupamento de termos sobre
eleições, foi posicionada a comunidade “criminoso & culpa”, em
verde, e que traz também as palavras: estupro, estuprador e
vítima. Na posição mais baixa do grafo, duas comunidades
trazem termos ligados à política internacional: “posição &
países” em azul e “Rússia & regime” em verde. Ao lado, a
comunidade “mercado & Petrolão” reúne palavras como:
empresas, EUA, Petrobras, escândalos e operação.

CONCLUSÃO

O entendimento da escalada global da direita política passa


pela investigação das mudanças nas dinâmicas de comunicação
pública provocadas pela expansão da Internet. As mídias sociais
constituem hoje um importante veículo de difusão de ideias que
antes não circulavam na mídia convencional e que alcançaram os
espaços de poder. Todo esse movimento é apoiado por parte da
população que compartilha valores nos quais se apoiam essas no-
vas lideranças. Nos apropriamos dos rastros deixados pelas

353
interações no Facebook na busca de um entendimento de como e
porque tais ideias reverberam nos corações e mentes de tantas
pessoas. A análise computadorizada de grandes quantidades de
texto conjugada com métodos de pesquisa qualitativos é uma
porta de acesso aos discursos coletivamente construídos e aos va-
lores que os sustentam.
Verificamos que, em todo corpus, o léxico anticomunista apa-
rece em maior quantidade de formas únicas e maior frequência
que o vocabulário relativo às questões da lida diária do governo,
demonstrando que a preocupação maior dos comentaristas da
página Olavo de Carvalho é a ameaça comunista.
Os contextos que emergem da modelagem em redes de pala-
vras dão conta de um entendimento coletivo de que o mal – en-
carnado por um partido, por um grupo, por toda classe política,
por bandidos ou por pessoas degeneradas – está no poder ou pre-
tende dominar várias esferas da vida. Essa ameaça tem como res-
posta imediata a apresentação de mecanismos de combate a esse
mal. Temos a formação de pares opostos pela condição de que
um combate o outro: contra o bandido, a polícia; contra o crime,
a lei; mas contra a esquerda, a simples oposição da direita não é
suficiente. O que de fato se opõe à esquerda é a intervenção mi-
litar, as forças armadas ou FFAA, os militares, a ditadura. O
mal encarnado pela esquerda exige uma tomada de atitude forte
e a altura da ameaça que um governo comunista representa.
Para além do comunismo, a degeneração do presente é encar-
nada e atribuída também às drogas, ao sexo, aos gays e outros.
É como se esses elementos fossem ao mesmo tempo os causado-
res da degeneração e seus resultados:

“É uma podridão! Verdadeiro sepulcro calhado, repleto de ho-


mossexuais no armário que defende a causa gay, porque são de-
generados”;
“Se ficarmos de braços cruzados e formos imparciais em rela-
ção aos esquerdoPaTas eles voltam mais fortes. Sou favorável à
arrancar as vísceras de todo analfabeto funcional.”

354
A organização do cosmos que emerge dos comentários gira em
torno do entendimento dos elementos como “nossos” – bons,
edificantes, divinos, sagrados, santos, familiares, de direita – ou
como “deles” – maus, diabólicos, depravados, subversivos e tan-
tas outras palavras que ganham teor pejorativo ao serem locali-
zadas à esquerda do espectro político.

355
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358
 NET-ATIVISMO E POLÍTICA NA ERA DO BIG DATA E DOS
ALGORITMOS

MARINA MAGALHÃES

RESUMO

Diante das novas formas de conflitualidades irrompidas em


latitudes distintas, emergidas e veiculadas por meio das redes so-
ciais digitais, somos convidados a refletir sobre a transformação
da qualidade da ação em rede na paisagem contemporânea. A
ruptura da premissa moderna de que “tudo é política” torna-se
fundamental para pensarmos a qualidade desta ação nos nossos
dias. Entre as leituras que abordam o fenômeno, lançamos um
olhar crítico-analítico na direção daquelas que dimensionam o
net-ativismo nos quadros de um agir político, no âmbito de uma
nova esfera pública digital. Nesse sentido, propomos neste artigo
uma reflexão sobre como a política se inscreve na situação de di-
lúvio de informações e de dados da cultura das redes em sua fase
mais recente, marcada pela expansão do big data e da ação dos
algoritmos.

PALAVRAS-CHAVE: algoritmos; big data; net-ativismo; polí-


tica; redes sociais digitais.

ABSTRACT

In the face of the eruption of new forms of conflict at different


latitudes, that emerged and spread through digital social net-
works, we are invited to reflect on the transformation of network
action’s quality in the contemporary landscape. To think about

359
the quality of this action nowadays, it becomes fundamental to
break the modern premise that “everything is political”. We cast
a critical-analytical look on interpretations that address the phe-
nomenon of net-activism within the framework of political ac-
tion, as a new digital public sphere. In this sense, we propose a
reflection on how politics fits into the deluge of information and
data of network culture in its most recent phase, marked by the
expansion of big data and the action of algorithms.

KEYWORDS: algorithms; big data; net-activism; politics; digital


social networks.

INTRODUÇÃO

Os caminhos para pensar a qualidade da ação em rede no âm-


bito das redes sociais digitais se transformam no compasso das
inovações tecnológicas e das formas de conflitualidades que bro-
tam no cenário global contemporâneo. A temática desafia os in-
vestigadores de diversos campos, sobretudo da Comunicação,
por não se tratar de algo estático e externo ao homem, mas de um
fenômeno que transcende as posições divididas entre sujeito e
objeto, ou as separações entre homem, natureza e tecnologia.
A crise da política como uma herança do niilismo moderno,
que colocou em xeque os conceitos de soberania, Estado-Nação,
imperialismo ou colonialismo, cidadania e sujeito político
(LYOTARD, 1988; VATTIMO, 1992), também veio transformar a
própria ideia de política, oferecendo novos significados para
aquilo que, em seu sentido original, consistia em algo que se de-
senvolve entre os homens (ARENDT, 2002).
Tal ruptura da premissa moderna de que tudo é política, do
homem como medida de todas as coisas, torna-se fundamental
para pensarmos a qualidade da ação em rede nos nossos dias,
uma vez que distintas correntes teóricas voltadas para a compre-
ensão deste novo tipo de ação e participação nas redes sociais

360
digitais ainda situam o fenômeno na esfera da política. Por esta
razão, propomos uma reflexão sobre como a política se inscreve
na situação de dilúvio de informações e de dados da cultura das
redes em sua fase mais recente, marcada pela expansão do big
data e da ação dos algoritmos, que trouxeram os elementos não-
humanos de volta ao centro do debate (LATOUR, 2012) sobre o
social.
Neste artigo, de natureza teórico-crítica, buscamos refletir so-
bre a questão a partir da abordagem da participação social (DI
FELICE, 2010) nas redes sociais digitais, nomeadamente sobre
como isto acarreta transformações nos campos mais diversos da
vida cotidiana, sem ignorar os riscos inerentes a uma sociedade
dos dados (KERCKHOVE, 2018). Em seguida, apresentamos a
teoria das redes como um novo sistema operativo social (RAINIE
e WELLMAN, 2012), que observa a tecnologia como algo oposto
a um recurso isolante, como estágio ulterior de uma revolução
tripla – redes sociais, internet, telefonia móvel – fomentadora de
um novo espaço público formado por indivíduos conectados.
Somamos ao debate das redes como nova esfera pública
(HABERMAS, 1991) digital a visão que reconhece a existência de
uma cultura de massa no interior da cultura digital
(TERRANOVA, 2004), capaz de coabitar com um sem número
de microssegmentações que fazem da multidão conectada um es-
paço para experimentação da atividade política. Por fim, ainda
na dimensão política da qualidade da ação em rede, tratamos das
experimentações de ativismo em rede enquanto amplificação de
um agir político sem partido (CASTELLS, 2013) – e, portanto,
aparentemente dissociado dos moldes tradicionais das suas ins-
tituições, em acentuada crise na contemporaneidade.

361
A INSCRIÇÃO DA POLÍTICA NA ERA DO BIG DATA E DOS
ALGORITMOS

As quatro revoluções comunicativas – a escrita (no século V


a.C., no Oriente Médio), o surgimento da prensa (século XV, na
Europa), a cultura de massa na era da eletricidade (séculos XIX
e XX, no Ocidente) e a cultura digital (século XXI, em todas as
latitudes) – proporcionaram, cada uma à sua maneira, transfor-
mações profundas nos modelos de comunicação e organização
das sociedades, culminando num processo crescente de aparente
desmaterialização da informação que afetaria todas as esferas da
vida nos mais distintos modelos de sociedade.
Se desde os primórdios as tecnologias midiáticas apresenta-
ram vocações democráticas relacionadas ao acesso à informação,
não devemos ignorar o avanço da participação popular nesses
processos. Conforme elenca Di Felice (2010), inicialmente o tea-
tro servia de palco para a democracia ateniense, com o voto do
público nos espetáculos e as discussões sobre a pólis. Depois, a
prensa de Gutenberg veio possibilitar a reprodução de periódicos
e livros em larga escala, retirando o monopólio dos livros aos
monges e às hierarquias eclesiásticas; seguida, quatro séculos de-
pois, por um processo acelerado pelo advento da eletricidade e,
com esta, dos media de massa. Estes últimos são considerados
fundamentais para a difusão e a consolidação dos estados nacio-
nais, marcando o desenvolvimento da sociedade pós-moderna.
Finalmente, após a quarta revolução comunicativa, a revolu-
ção digital, com a transformação do modelo de comunicação bi-
direcional (baseado na distinção identitária entre emissor e re-
ceptor comum aos media de massa) ou piramidal (com o topo da
pirâmide dominado pelo Estado e pelos conglomerados midiáti-
cos) num modelo rizomático (DELEUZE e GUATARRI, 1995) ou
reticular, novas mudanças se disseminaram nessa lógica hori-
zontal que potencializou o fim dos pontos de vista centrais.
Com a informação cada dia mais ubíqua, disponível em todo
o lugar e acessível a partir de qualquer ponto, componente

362
elementar da época do big data181, poucos campos da vida coti-
diana restam intocados por essa transformação. Desde as auto-
matizações nos processos de trabalho a partir dos softwares da
gestão de tarefas, passando pelas digitalizações dos encontros
afetivos em redes como Skype, Tinder e Grindr, pela renovação
dos elementos não humanos – de um frigorífico ao planeta Marte
– como nossos informantes (LATOUR, 2012; LEMOS, 2013) à
moda internet das coisas até propriamente as formas de fazer,
pensar e contestar a política encontram nova configuração na so-
ciedade informatizada.
Enquanto antes do incremento do digital as informações rela-
cionadas às gestões políticas amontoavam-se em pastas e arqui-
vos cobertos por burocracia e pó nos gabinetes das repartições
públicas, em tempos de transparência os dados devem ser atua-
lizados à velocidade dos cliques. Hoje, os dados já não são mais
vistos como estatísticas ou coisas obsoletas, que perdem a impor-
tância quando o propósito pelo qual foram coletados tenha sido
alcançado, como depois de uma consulta de pesquisa ser proces-
sada, como afirmam Mayer-Schönberger e Cukier (2013). Esta-
ríamos diante de um material bruto de negócios, cada vez mais
utilizados para criar formas de valor econômico.
Numa velocidade nunca imaginada, o big data atualizou, nos
mais diversos campos, aquilo que Pierre Lévy (2003) havia cha-
mado de inteligência coletiva: uma inteligência distribuída por
todos os lados, incessantemente valorizada, coordenada em
tempo real, resultante de uma mobilização efetiva das competên-
cias. Ou, mais apropriadamente, no caso dos sistemas e algorit-
mos, legitimaram aquilo que havia sido definido por John
McCarthy como inteligência artificial, capaz de executar funções
que, caso fossem realizadas por humanos, seriam consideradas
inteligentes.

181 De acordo com Mayer-Schönberger e Cukier (2013), o termo cada vez mais relevante
na sociedade da informação foi cunhado por ciências como Astronomia e Genômica, em-
bora o conceito esteja migrando para todas as áreas de desenvolvimento humano.

363
Antes de nos lançarmos na discussão sobre as novas possibi-
lidades de participação e colaboração através do atual modelo de
comunicação em rede, cumpre explicar que este dilúvio informa-
cional, o qual ajudamos a alimentar com a partilha de dados so-
bre nossos deslocamentos, interesses, posições políticas e religi-
osas – seja de forma consciente (através de publicações em redes
como Facebook, Instagram, YouTube ou Twitter), inconsciente
ou distraída (através de acessos a aplicativos, pesquisas em mo-
tores de busca e sites de compras etc.) –, também nos leva a re-
fletir sobre a dimensão da real agência do chamado indivíduo no
processo de transmissão de informação.
Como afirmam Sara Orsi e Luisa Ribas (2018), dados em for-
matos distintos, como sons, imagens e textos, referentes ao tra-
balho, ao lazer e até mesmo às emoções, passaram a estar frag-
mentados em unidades da mesma espécie e a coabitarem nas
mesmas bases de dados não hierarquizadas. Na falta de uma or-
dem preestabelecida, “os algoritmos são invocados como pode-
rosas entidades que governam, julgam, organizam, regulam,
classificam, ou de outra forma disciplinam o mundo” (BAROCAS
et al., 2013, p. 3).
Embora estes pareçam entidades distantes e invisíveis para a
maioria das pessoas, os tablets, smartphones e smart TVs, os ve-
ículos e semáforos inteligentes, os mecanismos de busca na in-
ternet, sistemas de aprovação de crédito bancário, entre tantos
dispositivos, dão pistas da presença dos algoritmos na paisagem
contemporânea, entrelaçados nas relações sociais, econômicas e
políticas. Os algoritmos agem a partir de uma avaliação de rele-
vância de dados, sendo capazes de definir quais informações são
mais ou menos importantes para cada pessoa, produzindo “pú-
blicos calculados, amostras que passam a reconfigurar a visão
que possuem do seu próprio grupo” (SILVEIRA, 2017, p. 273).
Independentemente da nossa ação direta como informantes
nesses processos, a manipulação de dados operada pelos algorit-
mos transforma o modo como vivemos, consumimos e nos rela-
cionamos com o mundo. Revela também os nossos rastros,

364
orientando as nossas tomadas de decisão e as estratégias adota-
das pelos media, pelas empresas, pelas instituições e pelos Esta-
dos, correspondentes a temas que vão desde campanhas de mar-
keting político (como no caso do vazamento de dados de usuários
do Facebook para a empresa Cambridge Analytica)182 a políticas
públicas implementadas por cada governo183 – ultrapassando,
indubitavelmente, essas fronteiras.
Derrick de Kerckhove (2018) alerta para os riscos dessa trans-
formação, quando afirma que o governo, a gestão dos corpos e,
até mesmo, das mentes, em espaços físicos e virtuais, estão nas
mãos de algoritmos. Para o autor, o mundo permeado pelo big
data pode nos levar da democracia à datacracia, com a passagem
do aparato estatal do orgânico para o tecnicismo. Dito de outro
modo, estaríamos a um passo de uma ditadura dos dados, de um
modelo de engenharia social que delega todos os poderes decisó-
rios do governo ao big data, à inteligência artificial e à robótica,
como os modelos em andamento em países como a China, com
sistemas estatais de vigilância em massa (DIAS, 2018).

Se pensarmos fundamentalmente, já estamos delegando


nossas capacidades cognitivas (e até emocionais) aos sistemas
de inteligência artificial. Os algoritmos já estão dominando o
mundo. (...) De fato, o que está acontecendo após a adoção glo-
bal da Internet é uma diminuição gradual das liberdades e ga-
rantias civis que associamos à ideia de democracia ocidental
(KERCKHOVE, 2018, p. 16).

182 Escândalo sobre a coleta de informações de mais de 50 milhões de usuários do


Facebook que a Cambridge Analytica começou a recolher em 2014. Os dados foram ma-
nipulados, de forma ilegal, para direcionar determinados conteúdos a usuários a fim de
ajudar políticos a influenciar eleições em seus países, como no caso da votação do Brexit,
sobre a saída do Reino Unido da União Europeia, e a eleição do presidente dos Estados
Unidos Donald Trump, em 2016 (GRANVILLE, 2018).
183 Ainda que na administração pública brasileira o nível de soluções algorítmicas seja
ainda pouco expressivo, algumas soluções automatizadas estão sendo substituídas por
algoritmos mais complexos, como os semáforos inteligentes e o gerenciamento algorít-
mico da prioridade de atendimento nas repartições públicas (SILVEIRA, 2017). Acres-
centamos, aqui, a aplicação de algoritmos de reconhecimento facial como dispositivos e
tecnologias de controle, em franca expansão em diversos estados do Brasil.

365
Se a realidade contemporânea vem sendo cada vez mais regu-
lada de acordo com uma nova ordem que parte da coleta e análise
dos dados, transferidos para a inteligência artificial que estabe-
lece padrões, com propósitos distintos, a partir dessas informa-
ções, o arranjo político, econômico e cultural de instituições e
dispositivos em rede também parece pouco democrático para
Sérgio Amadeu Silveira (2018), que sublinha o seu potencial de
fortalecimento das corporações.
Evgeny Morozov (2018) também trata esse novo tipo de go-
vernança sob o signo da regulação algorítmica. Porém, por mais
que o Vale do Silício, coração do desenvolvimento da tecnologia
de ponta mundial,184 detenha a infraestrutura necessária e seja
capaz de desenvolver uma miríade de soluções para atender aos
interesses do Estado, Morozov (2018) ressalta que o mesmo não
pode ser dito das necessidades dos cidadãos organizados por
conta própria.
“A regulamentação algorítmica, independentemente de seus
benefícios imediatos, nos dará um regime político no qual todas
as decisões são tomadas pelas empresas de tecnologias e pelos
burocratas estatais” (ibidem, p. 101). E entre a utopia das redes e
a distopia do controle, isto estaria ocorrendo, segundo Franco
Berardi, praticamente sem alarde: “o melhor modo de impor um
percurso é tornar o acesso quase imperceptível, quase inconsci-
ente, quase automático” (2019, p. 121).
Esta linha de pensamento crítico sobre o avanço da centrali-
dade tecnológica apresenta-se como um contraponto após uma
ressaca dos movimentos de ativismo em rede, conhecidos como
net-ativismo (DI FELICE, 2010) ou redes de indignação e espe-
rança (CASTELLS, 2013), que emergiram em diversos países nas
últimas décadas, num cenário de crise da democracia ocidental.
Frente a movimentos como a Primavera Árabe (no norte da
África e no Oriente Médio); o MoVimento 5 Stelle, na Itália; a
Geração à Rasca, em Portugal; o Movimento 15-M, na Espanha;

184 Situado nos Estados Unidos, na região da Baía de São Francisco, concentra diversas
empresas de alta tecnologia, redes sociais, design e marketing.

366
o Occupy Wall Street, nos Estados Unidos; e as Jornadas de Ju-
nho de 2013, no Brasil, analisados empiricamente em obra ante-
rior desta autora (MAGALHÃES, 2018), surgiram teorias que
trataram a qualidade da ação em rede na perspectiva da partici-
pação sociopolítica. Nos próximos tópicos buscaremos uma
abordagem teórico-crítica de algumas dessas interpretações.

O NOVO SISTEMA OPERATIVO SOCIAL DAS REDES

Lee Rainie e Barry Wellman (2012) pensam a qualidade da


ação em rede a partir da ideia de um individualismo conectado,
enfatizando uma potencialização da autonomia que reside na
gestão das redes criadas por cada indivíduo. Na visão dos auto-
res, nenhuma tecnologia é vista como constituinte de um sistema
isolado ou isolante, mas como algo entrelaçado, de forma cada
vez mais evidente, à vida pessoal de cada um.
Este individualismo conectado representaria o novo sistema
operativo social, em contraste com o duradouro sistema opera-
tivo até então formado em torno das grandes e pequenas buro-
cracias hierárquicas. Logo, figuraria como sistema operativo por-
que descreve as formas que as pessoas se conectam, comunicam
e trocam informações, mas também evidencia que a sociedade,
assim como o sistema de computador, tem conectado estruturas
que providenciam oportunidades e restrições, regras e procedi-
mentos.
Na visão de Rainie e Wellman (2012), como a maioria dos sis-
temas operativos computacionais e de todos os sistemas móveis,
o sistema operativo da rede social é pessoal, pelo fato do indiví-
duo estar no centro autônomo da sua rede e por esta ser alcan-
çada a partir do seu computador ou dispositivo próprio; multi-
uso, porque pessoas estão interagindo com numerosas outras;
multitarefas, por estarem desenvolvendo coisas de naturezas di-
versas; e multiemaranhado, por seus usuários estarem fazendo
tais coisas mais ou menos simultaneamente.

367
Diante de mundos sociais múltiplos, possibilidades de auto-
nomia (cada pessoa pode criar o seu conteúdo e personalizar a
sua experiência de internet) e de presença contínua (na qual a
separação física de tempo e espaço não parece mais importante),
tal individualismo conectado seria fruto de uma tripla revolução.
Os autores indicam, como marco inicial desta revolução, as ino-
vações responsáveis por encurtar distâncias em épocas anterio-
res à web, de forma mais acelerada no período pós-industrial.
A rede mundial de computadores é apontada como o segundo
vértice para a extensão do agir deste indivíduo conectado, através
das possibilidades de gestão de conteúdo e da realização de con-
sultas/pesquisas de informação, tendo impulsionado ainda a for-
mação de grupos com interesses diversos, em um modelo de co-
municação aberto em que os seus membros têm a oportunidade
de se expressar nas redes em que fazem parte.185
Já a etapa ulterior da revolução tripla teria sido acelerada pe-
las comunicações móveis via smartphones, tablets etc., por meio
das quais inauguram-se experiências como presença conectada
(a possibilidade de se fazer presente independente das interações
face a face), ausência presente (quando o usuário se situa pre-
sencialmente num ambiente, mas a sua atenção está voltada para
as conexões digitais) e presença ausente (referente à participa-
ção à distância viabilizada pelas conexões em rede).
De certo modo, a perspectiva da conectividade oferecida por
Rainie e Wellman (2012) realça a superação das barreiras es-
paço-temporais desde logo alardeada na chamada cibercultura
(LÉVY, 2003), avançando acerca da dissolução de outras barrei-
ras (online/off-line, realidade física/realidade digital etc.) que fa-
zem cada vez menos sentido nos tempos dos media móveis. Po-
rém, a ênfase na autonomia do usuário na criação e compartilha-
mento do conteúdo, por meio da qual os papéis entre produtores

185 Neste ponto não podemos ignorar os efeitos recentes das bolhas criadas pelos algo-
ritmos nas redes sociais digitais, responsáveis por direcionar determinados conteúdos a
grupos específicos de usuários, com base em dados recolhidos sobre ações e preferências
que definem cada perfil (SILVEIRA, 2017).

368
e consumidores também se confundem, acaba por realçar a ideia
deste como sujeito da ação e da rede, como a figura central de
uma nova esfera pública digital.
Nessa tripla revolução em que as redes sociais, a internet e a
telefonia móvel alargaram as fronteiras dos ciclos sociais para
uma dimensão infinitamente mais ampla e diversificada, a noção
de indivíduos conectados (os ditos usuários) chega para substi-
tuir a de membros de grupos. Logo, as redes sociais digitais pas-
saram a ser vistas como um aprimoramento das redes sociais
desconectadas. Tal melhoria estaria na oportunidade de conexão
a redes que se mostrarem mais úteis de acordo com as necessi-
dades de cada indivíduo – de aconselhamento médico e jurídico,
suportes emocionais, auxílios em necessidades logísticas, reco-
mendações culturais (de restaurantes a livros) até mobilizações
políticas. Em outras palavras, aqueles usuários para quem as opi-
niões políticas carregam maior peso (RAINIE e WELLMAN,
2012).
Ainda que para os autores a qualidade da ação em rede não
seja observada na perspectiva de um agir exclusivamente polí-
tico, tais redes não deixam de ser compreendidas como um mero
prolongamento do espaço público, um ambiente de discussões
para tomadas de decisão – desde questões simples, cotidianas –
e para a formação de forças colaborativas. Em suma, são perce-
bidas como meios mais amplos de dar às pessoas o seu lugar na
vida, possibilitando novos modos de se conectarem à mais ex-
tensa fábrica da sociedade (RAINIE e WELLMAN, 2012).
Uma vez que o novo meio é considerado a nova vizinhança, a
internet tem o seu papel reconhecido como um canal de partici-
pação, de conexão sobretudo ao que não está fisicamente no en-
torno dos indivíduos conectados. E o novo poder de criar meios
e projetar as suas vozes às mais extensas audiências vêm se tor-
nando parte dos novos mundos sociais impulsionados pela tripla
revolução. Assim, as linhas entre informação, comunicação e
ação são cada vez mais borradas, na medida em que os usuários
se conectam para obter informações nas pontas dos dedos e, a

369
partir delas, elaborar suas decisões sobre diversos assuntos, de-
legando reivindicações a “especialistas” conectados – sendo estes
válidos ou não” (RAINIE e WELLMAN, 2012).
Entre os reflexos evidenciados nos campos de acesso e produ-
ção da informação, os autores também destacam os recursos para
mudar o mundo – a vizinhança ou situações adversas – através
de uma maior organização da atividade política. Ainda que não
resumam o ativismo em rede à essa esfera, insistem em redimen-
sionar as redes como uma ampliação do social desconectado ou
como um prolongamento da experiência física: um espaço pú-
blico digital composto por indivíduos atores, autônomos das suas
ações nesse novo sistema operativo social. Porém, não seriam os
não-humanos – o big data, os algoritmos, os sistemas de conec-
tividade etc. – também atores nesse processo?

MASSAS E MICROSSEGMENTAÇÕES DA ESFERA


PÚBLICA DIGITAL

Para pensar a qualidade da ação em rede no contexto desta


assembleia heterogênea que é a cultura conectada, com uma
abundância sem precedentes de resultados informativos e de
aceleração das dinâmicas de informação, Tiziana Terranova
(2004) aborda as suas implicações no interior de uma possível
dimensão política da comunicação, a partir da seguinte questão:
é ainda possível falar dos media como uma esfera pública na era
da propaganda de massa, dos oligopólios midiáticos e da guerra
da informação?
Se a massificação for tomada como um campo para a propa-
gação de afecções, também pode ser vista como capaz de incluir
audiências especializadas e, no caso da internet, microssegmen-
tadas. Tal meio comum, interconectado por fluxos de imagens e
afetos, é apontado pela autora como um lugar de surgimento de
novos experimentos políticos. Sua análise sobre a constituição do
biopoder comunicativo como forma de resistência numa cultura

370
conectada parte da lacuna de transparência e de prestação de
contas existentes nas instituições públicas oriunda de uma cul-
tura do secretismo, responsável por minar o bom funcionamento
da democracia.
Isto porque a tríade “comunicação, transparência e democra-
cia” é aqui apontada por como uma das premissas do pensa-
mento moderno. A democracia não apenas deveria garantir, mas
ser garantida pelos direitos dos seus cidadãos à representação em
ambas as esferas, política e comunicativa; ao acesso às informa-
ções relativas ao exercício do serviço público e a serem represen-
tados no espectro das posições. Em outras palavras, liberdade de
informação e comunicação sustenta a liberdade de expressão, li-
berdade de expressão sustenta a democracia (TERRANOVA,
2004).
Em outras palavras, o acesso ao espaço público da comunica-
ção e informação é tomado como condição elementar para que os
cidadãos possam aprender sobre o funcionamento da res publica,
desenvolver uma opinião informada, expressá-la e pressionar os
governos. Desde a ascensão da burguesia, à qual Jürgen Haber-
mas (1991) remonta o surgimento da esfera pública como um es-
paço independente politicamente para racionalizar o exercício
público da autoridade, a opinião pública aceitava que o poder de
governar fosse delegado, desde que se preservasse o direito de
monitorar os políticos.
O poder esmagador constituído pelos media tradicionais –
jornal, rádio, televisão, etc. – na vida política da social democra-
cia teria levado, segundo Terranova (2004), a inúmeras teorias a
respeito da emergência de uma nova esfera pública, ainda que a
relação entre a comunicação e a democracia nunca tenha sido o
domínio exclusivo de uma esfera pública em que cidadãos moni-
torassem a ação dos eleitos e incontáveis governos. Em sua visão,
a maior parte da sociedade não se sentia incluída como cidadão
iluminado pensante desta esfera, o que contribuiu para que o pa-
pel de formador de opinião fosse delegado à cultura de massa,
progressivamente entrelaçada aos interesses políticos.

371
Tal fenômeno seria provado, mais notoriamente, desde os re-
gimes totalitários de meados do século XX, quando a comunica-
ção não representava apenas um caminho para o acesso à infor-
mação e ao debate público, mas a manipulação através de diver-
sas táticas (da propaganda à censura e distorção). Tal manipula-
ção midiática ao longo das democracias de massa, por parte dos
que puderam financiá-la, nem de longe lembraria a esfera com-
posta por indivíduos engajados em debater os interesses públi-
cos.
Sendo assim, a solução contra a corrupção dos meios de co-
municação tradicionais pelos interesses privados passaria pela
reconstituição de um espaço livre e aberto de comunicação, indi-
cado como chave para o retorno a uma vida democrática mais
autêntica. As esperanças para a composição desta nova esfera pú-
blica como espaço alternativo aos velhos media foram colocadas
na internet e na sua multidão conectada em modo ciberdemocrá-
tico, que teriam revelado um meio político eficiente em termos
de poder de mobilização e de abertura ao acesso à informação.
Essa massa conectada é percebida por Terranova (2004)
como reveladora de um tipo de poder ativo de diferenciação: é
ainda massa, mas não pode ser feita para formar uma maioria
estável em torno de algum tipo de consenso; do mesmo modo que
os segmentos têm perdido algo da sua rigidez na recombinação
dos fluxos informacionais. Tratar-se-ia, mais, de um campo polí-
tico que não pode ser reduzido a um significante único (como a
classe trabalhadora), tampouco dividido em segmentos com
identidades socioculturais completamente distintas (nem
mesmo aquelas híbridas), aproximando-se de um espaço que é
comum sem ser necessariamente homogêneo ou igual.
Movimentos ativistas globais como aqueles contrários às po-
líticas neoliberais – assembleias do Fórum Social Mundial, mo-
vimentos indígenas, organizações não-governamentais etc. – são
apresentados como exemplos deste tipo de experimentação, com
os problemas e potenciais relativos ao processo. Todos eles te-
riam conferido, ainda que de forma temporária, uma poderosa

372
visibilidade aos processos de comunicação horizontal e difusa de-
senhados tanto a partir das tecnologias recentes (entre celulares
com webcam à internet sem fio) como por estratégias mais esta-
belecidas (conferências, acampamentos, encontros, caravanas,
entre outros recursos anteriores ao digital).
Diante da impossibilidade de se construir um consenso ou de
serem estabelecidas formas fixas de organização, tal elemento é
aqui analisado não como um limite, mas como um potencial para
as redes, uma ressignificação do que se entende como multidão.
O desafio imposto pela diversidade surge mais como uma força
que como uma fraqueza, produzindo diálogos em torno de devi-
res, oferecendo resistência a estruturas burocráticas através de
um espaço aberto a experiências acidentais e inusitadas. Em
suma, fruto de investimentos e trabalhos afetivos de uma inteli-
gência política emotiva e inventiva no terreno digital do comum,
constituinte das políticas contemporâneas de comunicação.

AS REDES COMO AMPLIFICAÇÃO DA POLÍTICA

Mobilizado pelos levantamentos ocorridos na Tunísia no final


de 2010, que se difundiram de forma viral pelo mundo árabe e
por diversos países do mundo, Manuel Castells (2013, p. 13)
identificou um novo padrão de movimentos como expressão das
novas formas de mudança social do século XXI, definido como
uma “transformação de relações de poder em interação com a
transformação da comunicação”.
Para o sociólogo espanhol, os movimentos eclodiram nas re-
des sociais na internet por estas configurarem espaços de auto-
nomia, distanciados do controle dos governos e das empresas
que, ao longo da história, monopolizaram os canais de comuni-
cação na fundação do seu poder. Neste espaço público livre, pes-
soas de todas as idades e condições sociais formaram redes para
além de suas visões pessoais e ligações organizacionais, como
“(…) um encontro cego com cada qual, e com o destino que elas

373
queriam forjar, afirmando o seu direito de fazer história – a sua
história” (ibidem, p. 20).
Tais movimentos em busca de uma participação sociopolítica
sem partido resultariam de uma degradação das condições ma-
teriais de vida e de uma crise de legitimidade dos responsáveis
pela conduta dos assuntos públicos. Essa combinação é apontada
como a mola propulsora de ações coletivas fora dos descredenci-
ados canais institucionais, a fim de defender as exigências dos
manifestantes, mudar os responsáveis ou as próprias regras do
jogo em que estão inseridos.
Ao comparar os movimentos sociais desenvolvidos ao longo
da História aos contemporâneos – mesmo oferecendo uma lei-
tura desses últimos como um redimensionamento, na internet,
dos problemas reais de uma sociedade –, Castells (2013) não
nega o papel crítico da comunicação na sua formação e nas suas
práticas. Entretanto, afirma que estes se dariam independente-
mente dos meios de comunicação ou tecnologia de cada época
estarem ou não nas suas raízes, “porque as pessoas só podem de-
safiar a dominação ligando-se umas às outras, partilhando a
raiva, sentindo-se unidas, e construindo projectos alternativos
para si próprias e para a sociedade em geral” (ibidem, p. 223).
Assim, somos convidados a pensar a qualidade da ação em
rede pelo viés dos atores coletivos conectados, que se voltam para
a criação de novas formas de vivência em busca de um novo con-
trato social. As redes, aqui, cumpririam o seu papel de ponte: na
transição entre a individualização e a autonomia, permitindo
“que actores individuais construam a sua autonomia, com pes-
soas com interesses semelhantes, nas redes que escolhem”, como
fruto da cultura da liberdade que é a internet. “Foi deliberada-
mente desenhada por cientistas e hackers como uma rede de co-
municação descentralizada, capaz de resistir ao controlo de qual-
quer centro de comando” (ibidem, p. 225).
Isto significa dizer que a internet é vista como uma rede de
redes, descentralizada, capaz de maximizar hipóteses de partici-
pação nas ações coletivas, ao mesmo tempo em que reduz a

374
vulnerabilidade dos seus membros em relação às ameaças de re-
pressão e aos perigos internos de burocratização e manipulação
nos movimentos. “Enquanto esses movimentos normalmente co-
meçam nas redes sociais da internet, eles tornam-se um movi-
mento pela ocupação do espaço urbano, seja a ocupação das pra-
ças públicas ou a persistência das manifestações de rua”
(CASTELLS, 2013, p. 217).
Essa lógica observa o espaço do movimento como aquele
construído por uma interação do espaço de fluxos da internet e
das redes de comunicação sem fios, lado a lado com o espaço fí-
sico e os edifícios simbólicos ocupados pela ação de protestos,
uma espécie de híbrido entre a interação online e off-line. Porém,
o que entendemos por net-ativismo, um fenômeno que surge em
rede e nas redes (MAGALHÃES, 2018; DI FELICE, 2010), ficaria
restrito aos movimentos que transitam entre a rede e a rua, ex-
cluindo outras formas colaborativas.
Movimentos hacktivistas como o Anonymous, que atuam
através de invasões de sistemas, propagação de vírus eletrônicos,
vazamentos e manipulação de dados etc., seriam relegados ao
que o sociólogo define como “desafio sem uma base permanente
de autonomia no espaço de fluxos é equivalente a activismo des-
continuado” (CASTELLS, 2013, p. 217).
Ainda que o pensador espanhol considere que seja impossível
pensar a sociedade afastada das suas tecnologias comunicativas,
a questão do net-ativismo se revela mais complexa que as dispu-
tas de narrativas entre os representantes políticos tradicionais e
os manifestantes que continuam a ocupar, em 2019, as ruas de
diversas cidades ao redor do globo (Barcelona, Santiago do Chile,
Quito etc.). Kevin Kelly (1994) há pelo menos duas décadas nos
convida a olhar para a conexão de rede como a instituição de uma
espécie de superorganismo bioinformático, no qual se concate-
nam elementos orgânicos, biológicos, eletrônicos e cognitivos em
um continuum cujos componentes não conseguimos mais distin-
guir (BERARDI, 2019) nem aprisionar em uma leitura mera-
mente política da qualidade da ação conectada.

375
CONSIDERAÇÕES FINAIS

Vimos ao longo deste artigo que nos movimentos que se espa-


lharam por diversas latitudes na última década havia algo mais
em comum além da crise da democracia representativa e da crise
econômica global. No seio das manifestações em rede estava o
que Castells (2013) destaca como a humilhação provocada pelo
cinismo e arrogância dos que estavam no poder, seja financeiro,
político e cultural.
Se as instituições de poder seguem em crescente declínio, de-
safiadas pelos movimentos sociais emergentes, isso mostra que
tal poder, antes exercido pelos meios coercitivos (o monopólio da
violência, legitimada ou não, pelo controle do Estado) e/ou pela
construção de significados na mente das pessoas (através de me-
canismos de manipulação simbólica), vem sendo cada vez mais
questionado na sociedade em rede. Mas o contrapoder do net-
ativismo não focaliza uma disputa de poder em relação às insti-
tuições vigentes nem tenta ocupar de forma definitiva cargos e
prédios públicos – marcas da disputa histórica entre os partidos
de esquerda e direita. Estaria mais próximo de um desafio a todo
o sistema político, por mostrarem os seus sinais de colapso.
Esse novo tipo de participação busca superar a pauta de rei-
vindicações para experimentar uma vivência mais interativa, ao
mesmo tempo local e global, de uma essência conectiva que in-
terliga humanos, não-humanos, toda a biosfera. Contudo, em-
bora Castells (2013) relativize a importância da questão, obser-
vamos o net-ativismo não como um fenômeno que se apropria
das redes digitais, mas que se constitui em colaboração com es-
tas, em uma lógica horizontal em que elementos de naturezas di-
versas – tecnoatores, dispositivos de conectividades, big data,
redes sociais digitais, algoritmos, etc. – atuam no curso da ação.
Em sua relação com a política, os movimentos net-ativistas
contemporâneos concentram-se em desafiar a soberania dos go-
vernos, empresas e instituições; visam, como fim, transformar o
Estado, não tomar o Estado. Em síntese, compartilham de um

376
modo de agir coletivo, situado por Terranova (2004), Rainie e
Wellman (2012), Castells (2013) na dimensão de uma natureza
política na qual um grupo de atores sociais, reunidos por um pro-
pósito específico, se articula em rede para atingir os seus objeti-
vos.
Esta ideia do ativismo em rede como um agir político observa
um homem em ação, articulado com outros homens através de
um suporte tecnológico, para sair de uma condição de isolamento
e posicionar-se politicamente sobre questões diversas. Em co-
mum com o posicionamento que provocamos aqui, tal aborda-
gem compreende o net-ativismo como um agir em rede, como
uma ação coletiva, impulsionada pela descrença nos valores das
instituições que até então ditavam as regras para a base da pirâ-
mide – ordem cada vez mais desestabilizada com o advento da
internet, sobretudo em sua fase web 2.0, das redes sociais digi-
tais.
Mesmo com o reconhecimento de que a política em tempos de
big data já não é como antes, se considerarmos também a ação
dos algoritmos e da inteligência artificial nas campanhas políti-
cas e na implementação de políticas públicas, as leituras aqui
apresentadas ainda nos levam a observar a espinha dorsal dos
movimentos aprisionados nas paredes da participação política.
Embora a noção do ativismo em rede restrita aos movimentos
sociais digitais – em busca de autonomia, poder e maior sociabi-
lidade – ofereça uma leitura possível, consolidada e amplamente
reproduzida no ambiente acadêmico, existem outros caminhos
para observar o social conectado.
Um novo olhar sobre a questão do net-ativismo demanda,
como ponto de partida, uma ideia de social não mais restrita aos
humanos, que evidencie o papel dos não-humanos para além de
ponte, ferramenta ou suporte das articulações em rede, mas
como atores ou actantes (LATOUR, 2012; LEMOS, 2013) que
inauguram uma nova qualidade da ação em rede, não mais an-
tropocêntrica, mas de uma nova ecologia reticular e conectiva
(MAGALHÃES, 2018). Pois, se a política está em crise, agravada

377
desde o fim da modernidade, por que continuamos a ver o ho-
mem como sujeito central da ação e a observá-la como unidade
de medida de todas as coisas?

378
REFERÊNCIAS

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mas compilados por Ursula Ludz. Rio de Janeiro: Bertrand Bra-
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381
 SOBRE OS/AS AUTORES/AS

382
ALLAN SANTOS é doutorando e mestre pelo Programa de Pós-
Graduação em Comunicação da Escola de Comunicação da Univer-
sidade Federal do Rio de Janeiro (ECO-UFRJ), sendo bacharel em
Comunicação e Mídia com especialização em Publicidade-Propa-
ganda e Relações Públicas pelo City College of New York. É também
pesquisador integrante do Núcleo de Estudos em Comunicação,
História e Saúde (NECHS - Fiocruz/UFRJ) e servidor da Fundação
Biblioteca Nacional.

E-mail: allansantos29ny@gmail.com

ANA LUIZA DE FIGUEIREDO SOUZA é mestre pelo Programa de


Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal Flumi-
nense (PPGCOM UFF), sendo bacharela em Comunicação Social –
Publicidade e Propaganda – pela Universidade Federal do Rio de
Janeiro (UFRJ). Integrante do grupo de pesquisa MiDICom. Coor-
denadora da equipe de revisão da Revista Contracampo (PPGCOM
UFF). Também atua como produtora de conteúdo, copidesque, as-
sistente editorial e escritora, com obras selecionadas para o catálogo
da Feira de Bolonha, acervo básico da FNLIJ e Mostra de Teatro In-
fantil da ATACEN. Integra a coletânea La maternidad en la ficción
contemporánea (Universitat de Lleida/Peter Lang).

E-mail: analuizafigueiredosouza@id.uff.br

ANDREA MEDRADO é Professora Adjunta da Universidade Fede-


ral Fluminense, atuando no Departamento de Comunicação Social
(GCO) e no Programa de Pós-Graduação em Mídia e Cotidiano
(PPGMC). Doutora em Estudos de Mídia pela University of Westmi-
nster em Londres. Membra do Centro de Pesquisas e Produção em
Comunicação e Emergência – EMERGE/UFF.

E-mail: andreamedrado@id.uff.br

383
BEATRIZ BRANDÃO POLIVANOV é professora adjunta do Depar-
tamento de Estudos Culturais e Mídia da Universidade Federal Flumi-
nense e docente permanente do Programa de Pós-Graduação em Co-
municação (PPGCOM) da mesma instituição. Em 2019 realizou pós-
doutorado na Universidade McGill, em Montreal, onde atuou como
professora visitante no Art History and Communication Studies De-
partment. Coordenadora do GP de Comunicação e Cultura Digital da
Intercom (2018-2019) e do grupo de pesquisa MiDICom – Mídias Di-
gitais, Identidade e Comunicação – (UFF/CNPq). Doutora e mestre
pelo PPGCOM da UFF. Bacharel em Letras – Português e Inglês – pela
Universidade Federal do Rio de Janeiro.

E-mail: beatrizpolivanov@id.uff.br

BIANCA S. BIADENI é mestranda em Comunicação e Práticas de


Consumo na Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM),
São Paulo. Pesquisadora do GRUSCCO, Grupo CNPq de Pesquisa
em Subjetividade, Comunicação e Consumo liderado pela profa. Gi-
sela G. S. Castro. Graduada em Jornalismo pela Universidade São
Judas Tadeu (USJT), possui especialização em Mídia, Informação e
Cultura pelo Centro de Estudos Latino-Americanos sobre Cultura e
Comunicação (CELACC), da Universidade de São Paulo (USP).

E-mail: biancabiadeni@gmail.com

CAIO CESAR GIANNINI OLIVEIRA é doutor e mestre em Admi-


nistração pela PUC Minas e bacharel em Comunicação Social – Pu-
blicidade e Propaganda – pela Universidade Federal de Minas Ge-
rais. Tem experiência em investigações em Comunicação Digital,
Produção Multimídia, Mídias e Redes Sociais, Estratégia, Marketing
e Design Centrado no Usuário. É docente na PUC Minas desde 2001,
tendo feito parte de equipes de elaboração de projetos pedagógicos
de cursos de graduação e especialização. Desde 2018, atua como
professor colaborador do Programa de Pós-Graduação em Comuni-
cação da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais.

E-mail: caiocgo@pucminas.br

384
CELINA LERNER é formada em jornalismo e mestre em Sociologia
pela USP. Realizou doutorado no programa de Ciências Humanas e So-
ciais da UFABC, com período de intercâmbio (PDSE/CAPES) no Digital
Media Research Centre da QUT, na Austrália. Sua tese, defendida em
2019, tem como título "A Mentalidade Conservadora no Brasil: uma aná-
lise da interação política em redes sociais digitais (2012-2018).

E-mail: celina.lerner@ufabc.edu.br

DANIELE RODRIGUES é jornalista formada na Universidade Es-


tadual de Ponta Grossa e mestre pelo Programa de Pós-Graduação
em Ciências da Comunicação (ECA-USP). É pesquisadora do COM+
e professora de pós-graduação na ESPM e na FAAP. Há 13 anos tam-
bém atua com estratégia para marcas de diferentes segmentos.

E-mail: daniele.rodrigues100@gmail.com

DAVI REBOUÇAS é doutorando do Programa de Pós-Graduação


em Mídia e Cotidiano da Universidade Federal Fluminense
(PPGMC/UFF) e Mestre em Linguística Aplicada pela Universidade
Estadual do Ceará. Também é membro do Centro de Pesquisas e
Produção em Comunicação e Emergência – EMERGE/UFF e atua
como Professor do curso de Pós-Graduação em Comunicação e Mar-
keting em Mídias Digitais do Centro Universitário Estácio do Ceará.

E-mail: davi.mreboucas@gmail.com

GUILHERME POPOLIN é mestre em comunicação pela Universi-


dade Estadual de Londrina (UEL / 2018), bacharel em Comunicação
Social – Jornalismo e especialista em Comunicação com o Mercado
pela mesma instituição. Sócio da Associação Brasileira de Pesquisa-
dores em Comunicação e Política (Compolítica) e da Sociedade Bra-
sileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação (Intercom),
estuda os memes políticos da internet e a direita brasileira, sob a
perspectiva da Comunicação Política.

E-mail: gpopolin@gmail.com

385
GISELA G. S. CASTRO é doutora em Comunicação e Cultura
(UFRJ), com pós-doutorado em Sociologia (Goldsmiths College,
Londres). Docente do Programa de Pós-graduação em Comunicação
e Práticas de Consumo da Escola Superior de Propaganda e Marke-
ting (PPGCOM ESPM), São Paulo, lidera o GRUSCCO - Grupo CNPq
de Pesquisa em Subjetividade, Comunicação e Consumo.

E-mail: castro.gisela@gmail.com

KÉRLEY WINQUES é doutoranda e mestre pelo Programa de Pós-


Graduação em Jornalismo da Universidade Federal de Santa Cata-
rina (UFSC). É pesquisadora do Núcleo de Estudos e Produção Hi-
permídia Aplicados ao Jornalismo (Nephi-Jor), inserido no Grupo
de Pesquisa Hipermídia e Linguagem, vinculado ao CNPq. Também
participa como pesquisadora do projeto Governança Social, Produ-
ção e Sustentabilidade para um Jornalismo de Novo Tipo (GPSJor).
Na Faculdade Ielusc, em Joinville (SC), atua como professora nos
cursos de Jornalismo e Sistemas para Internet.

E-mail: ker.winques@gmail.com

LUANA INOCÊNCIO é Professora efetiva de Comunicação Social -


Publicidade e Propaganda da Universidade Federal Fluminense.
Doutoranda em Comunicação pela mesma instituição
(PPGCOM/UFF). Pesquisadora do Laboratório de Pesquisa em Cul-
turas Urbanas e Tecnologias da Comunicação (LabCult/UFF) e do
Grupo de Pesquisa em Retóricas do Consumo (ReC/UFF).

E-mail: luanahinocencio@hotmail.com

386
LUIZA CAROLINA DOS SANTOS é doutoranda no Programa de
Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal do Rio
Grande do Sul, com período de Doutorado Sanduíche no Exterior
(PDSE/CAPES) na Goethe Universität, Alemanha, e no Sussex Hu-
manities Lab, da Universidade de Sussex, na Inglaterra. É pesquisa-
dora do grupo de pesquisa Laboratório de Artefatos Digitais (LAD),
da UFRGS. Mestre em Comunicação Social pela Pontifícia Universi-
dade Católica do Rio Grande do Sul, Especialista em Economia da
Cultura da UFRGS e Jornalista pela Universidade de Passo Fundo.

E-mail: luizacdsantos@gmail.com

MARINA MAGALHÃES é Doutora em Ciências da Comunicação


(Cultura Contemporânea e Novas Tecnologias) pela Universidade
Nova de Lisboa, Mestre em Comunicação e Culturas Midiáticas e Ba-
charel em Comunicação Social – Jornalismo pela Universidade Fede-
ral da Paraíba. É professora do curso de Comunicação Social (Educo-
municação) da Universidade Federal de Campina Grande (UFCG) e
do curso de Jornalismo da Uninassau João Pessoa. Ainda atua como
docente convidada do Mestrado em Comunicação, Redes e Tecnolo-
gias da Universidade Lusófona do Porto (Portugal) e como investiga-
dora integrada ao ICNOVA e ao Centro de Pesquisa ATOPOS.

E-mail: marinamagalhaes@msn.com

VANESSA CARDOZO BRANDÃO é Professora Adjunta (DE) do


Departamento de Comunicação Social da UFMG. Doutora em Lite-
ratura Comparada (UFF), Mestre em Literaturas de Língua Portu-
guesa (PUC Minas) e Publicitária graduada pela UFMG. Coordena o
grupo de leitura e estudos Entremeios - costuras entre mídia e lite-
ratura. Pesquisa nas áreas de Intermidialidade e Convergência Mi-
diática na Publicidade e no Consumo; Narrativas Midiáticas; Inter-
faces entre Comunicação, Publicidade e Literatura. É membro dos
Grupos de Pesquisa Núcleo de Conexões Intermidiáticas (NucCon
UFMG) e Afetos: Grupo de Pesquisa em Comunicação, Acessibili-
dade e Vulnerabilidades.

E-mail: vcbrandao@gmail.com

387
TARCÍZIO SILVA realiza Doutorado em Ciências Humanas e Soci-
ais no PCHS-UFABC e é Mestre em Comunicação e Cultura Contem-
porâneas pelo PPGCCC-UFBa. Co-editou livros sobre comunicação
digital como “Para Entender o Monitoramento de Mídias Sociais”
(Bookess, 2012), “Monitoramento e Pesquisa em Mídias Sociais:
metodologias, aplicações e inovações” (Uva Limão, 2016) e “Estu-
dando Cultura e Comunicação com Mídias Sociais” (Editora IBPAD,
2018).

Site: www.tarciziosilva.com.br/blog

WILLIAN ARAÚJO é doutor em Comunicação e Informação pela


Universidade Federal do Rio Grande do Sul (2017), mestre em Pro-
cessos e Manifestações Culturais pela Universidade Feevale e gra-
duado em jornalismo pela Universidade Federal de Santa Maria. Re-
alizou estágio doutoral no Institute Interdisciplinary Internet (IN3)
da Universitat Oberta da Catalunya (UOC, Barcelona). Professor da
Universidade de Santa Cruz do Sul (Unisc). Vice-coordenador do GP
de Comunicação e Cultura Digital da Intercom (2018-2020). Pes-
quisa a mediação tecnológica em mídias digitais, principalmente
nos debates sobre infraestruturas, softwares e algoritmos.

E-mail: willianfaraujo@gmail.com

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